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Rio de Janeiro
2012
FACULDADE DE SÃO BENTO DO RIO DE JANEIRO
Rio de Janeiro
2012
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais por todo esforço empreendido para que eu chegasse até esta
etapa de minha vida, por nunca terem cultivado em mim superstições e medos, e, principal-
mente, por sempre acreditarem em meus sonhos.
Agradeço ao professor e orientador Joathas Bello pela orientação e por ser um exemplo
inspirador de humanidade.
Agradeço aos professores e ex-orientadores Wagner Anacleto e Fábio Alves por terem
suscitado e feito desenvolver em mim um grande espírito investigativo, do querer descobrir e
lapidar sempre mais, indispensável ao exercício da ciência e da filosofia.
Agradeço a Dom Henrique, magnus magister de latim, por ter me dado a possibilidade
de acesso a grandes textos latinos da filosofia e pela benevolência contagiante.
Agradeço às grandes pessoas que conheci no Rio de Janeiro, especialmente, aos amigos
Aulo Silvio, José Maguiña, Marcus Tadeu e Sylvia Leite, pela alegria dos diálogos e experiên-
cias sempre enriquecedoras e pelo apoio e incentivo constantes.
Por fim, agradeço à Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro por ter permitido que eu
me graduasse em filosofia, sendo, sempre que necessário, compreensiva; e, também, ao Instituto
Militar de Engenharia pelo amparo financeiro, sem o qual eu não teria condições de me manter
durante todo o período de faculdade.
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“Não creio de modo algum, em sentido filosófico, na li-
berdade dos homens. Cada um procede não só sob coação
externa, mas também conforme a necessidade interna.”
Albert Einstein
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S UMÁRIO
1 Introdução 6
3 Considerações Finais 28
4
R ESUMO
Este trabalho aborda a questão da liberdade segundo Spinoza. A liberdade é um tema que, pela
complexidade, foi e sempre será um desafio para a filosofia. Com Spinoza, porém, surgem
ainda mais problemas na sua compreensão, uma vez que é preciso concebê-la num mundo em
que nada escapa ao determinismo da causalidade absoluta. Apoiando-se na carta 58 do conjunto
de sua correspondência e à luz da Ética, mostra-se que a liberdade não se traduz por poder de
escolha ou livre-arbítrio. Com efeito, ela é o mesmo que “necessidade livre”, o que significa
que algo só se efetiva como livre quando supera necessidades ou condicionamentos externos,
tornando-se causa livre. Portanto, a liberdade, de maneira nenhuma, é inata. As coisas não são
produzidas contendo em si a liberdade, mas, em vez disso, contendo o princípio que permite
que ela seja conquistada. Trata-se de seu próprio conatus, que nada mais é que sua potência ou
essência.
Palavras-chave: liberdade; necessidade; livre-arbítrio; vontade; potência; conatus.
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C APÍTULO 1
I NTRODUÇÃO
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no sistema spinozista, sobretudo na Ética demonstrada segundo a ordem geométrica1 , em que
o objetivo último é o entendimento do que vem a constituir a verdadeira liberdade humana.
Para Spinoza, nem o homem, nem qualquer outra coisa existente, possui em sua natureza
a liberdade; nada é produzido contendo em si, originariamente, a liberdade. Assim sendo, não
se pode dizer que o homem nasce livre, mas, somente, que ele se torna livre. Cabe, portanto,
saber-se, no sistema spinozista, o que é ser livre e, depois, como e o que possibilita que algo
venha a sê-lo. E é isto o que, de maneira breve, se propôs aqui a fazer.
A tradução foi, então, realizada a partir de duas edições do texto latino: a original e a de
J. Van Vloten e J. P. N. Land; e cotejada, eventualmente, com as traduções inglesa, de Robert
Elwes, e francesa, de Émile Saisset. O resultado encontra-se em anexo ao final deste trabalho.
Até onde se sabe e se investigou, trata-se da primeira tradução completa do texto para a língua
portuguesa. E, ademais, embora do mesmo se tenha conhecimento de traduções parciais, muito
provavelmente, em virtude de constatação de certas divergências, não foram elas concebidas
diretamente a partir do original em latim.
Foi correspondente tanto de Spinoza, como de Leibniz, sendo, muitas vezes, enigmático, sigiloso e contraditório
nas cartas ao último. Além de seu legado epistolário, e das referências a ele nas cartas de outras pessoas, Schuller
dificilmente deixou outro vestígio, não escrevendo, até onde se sabe, nenhum livro (STEENBAKKERS, 1994, p.
50-51).
3 Ehrenfried Walther von Tschirnhaus (1651-1708) foi um médico, fisíco e matemático pertencente à pequena no-
breza alemã. Foi célebre em sua época, sendo seus trabalhos científicos, ligados à matemática e à ótica lidos e
citados nas universidades alemãs até o século XVIII. Hoje, contudo, não obstante o legado de sua obra, Tschir-
nhaus é mais conhecido por sua correspondência com Spinoza (CHAUÍ, 2000, p. 49).
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então, segundo conteúdos específicos, divididos em nove excertos, que, por sua vez, foram
citados, trabalhados e explicados, cada um a seu turno, totalizando nove seções.
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C APÍTULO 2
“Digo ser livre uma coisa que existe e age somente pela necessidade de sua própria natureza;
e, por outro lado, ser coagida uma coisa que é, por outra natureza, determinada a existir e a
operar de maneira definida e determinada.”
A definição VII da primeira parte da Ética estabelece uma concepção de liberdade ine-
xoravelmente vinculada à necessidade:
Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza
e que por si só é determinada a agir. E diz-se necessária, ou melhor, coagida,
aquela coisa que é determinada por outra a existir e a operar de maneira defi-
nida e determinada (1D7)1 .
Para Spinoza, toda necessidade parte de causas eficientes. Isto porque, em sua ontologia,
não só se renunciam as causas finais2 , como também designam-se igualmente eficientes, dado
que decorrem da mesma necessidade substancial, todas as outras três causas — eficiente, formal
e material, segundo a classificação aristotélica. Desta maneira, toda causa responde, ao mesmo
tempo, pela necessidade da natureza, da existência e da ação ou operação de uma coisa (CHAUÍ,
2010, p. 60).
Todas as coisas na natureza são, para Spinoza, causas e também efeitos. É o que se
pode concluir a partir das duas afirmações seguintes: (i) “de uma causa dada e determinada
1 As citações da Ética, retiradas da obra com tradução de Tomaz Tadeu, seguem o modelo: número da parte em
algarismos indo-arábicos; axioma indicado por “A”, seguido de referência em algarismos indo-arábicos; definição,
por “D”, seguido de referência em algarismos indo-arábicos; lema, por “L”, seguido de referência em algarismos
indo-arábicos; proposição, por “P”, seguido de referência em algarismos indo-arábicos; demonstração, por “dem”;
corolário, por “cor”; escólio, por “esc”, seguido, eventualmente, de referência em algarismos indo-arábicos;
apêndice, por “AP”; e prefácio, por “PR”. Assim, por exemplo, 3P17esc significa “escólio da proposição XVII da
terceira parte”.
2 Segundo Spinoza, as causas finais não passam de ficções humanas. Argumenta, para isso, que “a doutrina finalista
inverte totalmente a natureza, pois considera como efeito aquilo que é realmente causa e vice-versa” (1AP).
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segue-se necessariamente um efeito; e inversamente, se não existe nenhuma causa determinada,
é impossível que se siga um efeito” (1A3) e (ii) “não existe nada de cuja natureza não se siga
algum efeito” (1P36). A relação entre causa e efeito é, portanto, uma exigência. Todas as
coisas são, simultaneamente, causas e efeitos de outras e seguem-se com a mesma necessidade
absoluta com que da essência de um triângulo se segue a conclusão de que a soma de seus três
ângulos internos é igual a dois ângulos retos.3
Todo o encadeamento causal, a relação, a conexão ou a ordem das coisas, não é senão
a própria necessidade. Nas palavras de Gilles Deleuze (1925-1995), “o necessário é a única
modalidade daquilo que existe: tudo o que existe é necessário, ou por si, ou pela sua causa”
(DELEUZE, 1989, p. 104). Na Ética, a asserção correspondente aparece da seguinte maneira:
“Uma coisa é dita necessária em razão de sua essência ou em razão de sua causa. Com efeito,
a existência de uma coisa segue-se necessariamente de sua própria essência e definição ou da
existência de uma causa eficiente” (1P33esc). Essa distinção entre necessário “por si” e “pela
sua causa” é, na verdade, consequência de uma outra, desta vez entre natureza naturante (natura
naturans) e natureza naturada (natura naturata). Pela primeira, deve-se entender a substância
divina, ou seja, aquilo que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido, e sua infinidade de
atributos infinitos; pela segunda, por sua vez, deve-se entender o que é produzido por Deus, ou
seja, o conjunto dos modos4 , que sem Deus não podem existir nem ser concebidos (1P29esc).
Além das naturezas naturante e naturada, isto é, da substância e dos modos, nada existe
(1P15dem). É o que também se pode concluir pela recíproca do axioma I da primeira parte da
Ética: “Tudo o que existe, existe ou em si mesmo ou em outra coisa”. Todas as coisas existentes
estão, pois, sujeitas à necessidade da natureza de Deus. Como a necessidade da natureza divina
se dá numa causalidade absoluta ou estrita, conforme já se mostrou, devem então, necessari-
amente, inserir-se nessa causalidade todos os modos dos atributos de Deus. Acerca disso, a
asserção de que “a necessidade das coisas é a própria necessidade da natureza eterna de Deus
(1P44cor2dem)” é bastante elucidativa, porque refuta qualquer gradação na necessidade dos
modos, tornando incompatíveis com a necessidade da substância estatutos como os de fraca ou
forte, relativa ou condicionada.
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nidade e infinitude se exprimem simultaneamente por meio de cada um de seus infinitos atri-
butos. Da mesma maneira ocorre com os modos infinitos, isto é, com tudo o que se segue
da natureza absoluta de algum atributo de Deus, ou imediatamente, ou por meio de uma mo-
dificação que existe necessariamente e é infinita (1P23dem). Com os modos finitos5 , porém,
acontece diferente: estes não apenas servem à necessidade de sua própria natureza, mas tam-
bém são determinados a existir e a operar por outros de maneira definida e determinada. São,
portanto, duplamente determinados (modalmente, e, não, realmente) por necessidades internas
e necessidades externas.6
Sempre que faz uso da expressão “de maneira definida e determinada”, Spinoza se re-
fere aos modos finitos. Um modo finito existente é definido em sua natureza por outra coisa
de mesma natureza e determinado em sua existência por qualquer modo que o nega (negar e
determinar são o mesmo para Spinoza), num lugar ou num momento; mas isto só enquanto se
considera o modo em si mesmo, sem envolver as causas de sua existência e essência (Ibidem,
p. 106). Dizer que um modo finito é determinado a existir e a operar é dizer que ele não pode
existir e operar a não ser por outra causa finita e, essa, por sua vez, por outra, e assim por diante
até o infinito (1P24cor).
Uma vez que se determina por uma causa externa, um modo não faz outra coisa a não
ser “operar”. Não se pode dizer que ele “age”, pois a ação só é digna do que se determina
por sua própria natureza, ou seja, daquilo cuja causalidade não é afetada por nenhuma outra
exterior. Nesse sentido, rigorosamente, somente Deus age plenamente, já que não há nenhuma
causa que não seja interna a ele, ou seja, não há nenhuma coisa fora dele, nenhuma causa que,
extrínseca ou intrinsecamente, o coaja.7 A essência de Deus, aliás, diz Spinoza, não é senão
5 Entende-se “modos finitos” e “coisas singulares” (ou simplesmente “coisas”) com o mesmo significado (2P8).
6 Deve-se evitar, contudo, pensar num sistema “ortogonal” de dupla causalidade, formado por uma vertical, cons-
tituída por Deus, e por outra horizontal, constituída pelos infinitos modos. Isso porque cada modo remete a Deus
sua própria necessidade (DELEUZE, 1989, p. 60).
7 Dada a identidade do existir e do agir na essência divina, é tão impossível conceber que Deus não age quanto que
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potência (2P3esc), isto é, potência absoluta de agir e potência absoluta de pensar.8
Contudo, embora não plenamente, um modo também pode agir. Sendo sua essência
dada (por “dada” deve-se entender “posta a existir”) uma parte da essência infinita de Deus, ou
seja, de sua potência (4P4dem), então, ela é também potência. Assim, à medida que exprime a
necessidade de sua própria potência, um modo deixa o campo do operar (operare) para estar no
do agir (agere), tornando-se, por conseguinte, livre.
“Deus, por exemplo, embora necessário, existe livremente, pois existe somente a partir de sua
própria necessidade. Assim, em absoluta liberdade, Deus compreende a si mesmo e a todas as
coisas, pois resulta somente da necessidade de sua própria natureza que ele as compreenda.”
Deus é necessário porque decorre de sua natureza que ele seja absolutamente infinito e
eterno (1D6). Deus é causa de si (causa sui), ou seja, sua essência envolve a existência (1D1).
De fato, a essência e a existência de Deus são uma só e mesma coisa (1P20), de maneira que
ele não pode deixar de se causar, de se produzir e, evidentemente, de existir. Portanto, se não
há nenhuma razão ou causa pela qual a existência de Deus seja impedida, segue-se que Deus,
embora necessário, existe livremente.
Assim, Deus tem uma relação causal de imanência com seus modos, sendo, por isso,
causa imanente, e, não, transitiva, de todas as coisas (1P18), isto é, de “tudo o que pode ser
abrangido sob um intelecto divino” (1P16). Diz-se isto porque em tal intelecto está contida,
segundo Spinoza, a própria ideia de Deus, um modo infinito do atributo do pensamento do qual
se seguem infinitas coisas de infinitas maneiras.
8 Estas potências,
porém, ao contrário do que se pode inferir, não dividem Deus entre si; em vez disso, o exprimem,
paralelamente, de maneira igual (RAMOND, 2010, p. 63-64).
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O intelecto divino existe, em termos aristotélicos, apenas em ato, e é a única causa das
coisas, tanto da essência quanto da existência. Pois, conforme explica Spinoza, “o ser formal
das ideias reconhece Deus como sua causa enquanto ele é coisa pensante” (2P5dem), e, ademais,
“a verdade e a essência formal das coisas são o que são porque elas existem, objetivamente, no
intelecto de Deus” (1P17esc). Assim, pode-se dizer que, da mesma maneira como se segue da
necessidade da natureza de Deus que ele compreenda a si próprio — pois ser causa sui é se
autocompreender —, também se segue da mesma necessidade que ele compreenda tudo o que
é causado, isto é, todos os modos.
“Vês, portanto, que não coloco a liberdade como decisão livre, e sim como necessidade livre.”
Descartes, no século XVII , também pensa uma liberdade fundada na vontade livre (li-
bertas arbitrii), a qual ele afirma consistir
somente em fazer ou não fazer algo (isto é, afirmar ou negar, seguir ou fugir),
ou, antes, somente no fato de que, para afirmar ou negar, ou seguir ou fugir ao
que nos é proposto pelo intelecto, sejamos conduzidos de tal modo que não sin-
tamos que somos determinados por nenhuma força externa.9 (DESCARTES,
1842, p. 45, tradução nossa).
9 No original: “quod idem vel facere vel non facere (hoc est affirmare vel negare, prosequi vel fugere) possimus, vel
potius in eo tantum quod ad id quod nobis ab intellectu proponitur affirmandum vel negandum, sive prosequendum
vel fugiendum, ita feramur, ut a nulla vi externa nos ad id determinari sentiamus.”
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Como se observa, a concepção cartesiana de vontade livre flutua entre o poder de escolha — que
não pode ser exercido se há coação por forças externas — e a não coação por forças externas
— na qual, mesmo não existindo poder de escolha, ocorre uma inclinação às necessidades da
própria natureza ou às evidências das ideias claras e distintas (FILHO, 2010, p. 30). Pode-
se dizer, desta maneira, que, com Descartes, ao mesmo tem em que se preserva a doutrina
agostiniana do livre-arbítrio, lançam-se as bases para a elaboração de uma nova concepção, a
spinozista.
A vontade é, para Spinoza, um ente universal, “uma ideia pela qual explicamos todas
as volições singulares, isto é, aquilo que é comum a todas elas” (2P49esc). Não há nenhuma
volição, nenhuma afirmação ou negação, na mente, que não seja aquela que a ideia, enquanto
ideia, envolve (2P49). Por conseguinte, a vontade não possui a afirmação ou a negação senão
daquilo que é percebido tão clara e distintamente quanto possível; e, portanto, sendo um modo
definido e determinado do pensar, não se distingue em nada do próprio intelecto (2P49cor).
Uma vez que vontade e intelecto são idênticos, nega-se, por conseguinte, a consideração
cartesiana de que a vontade afirma ou nega aquilo que o intelecto lhe propõe, e, ainda, de que
ela não se limita a afirmar como verdadeiras somente as ideias claras e distintas, podendo fazer
o mesmo para outras que lhe sejam apresentadas pelo intelecto de maneira confusa e obscura.
Para Spinoza, contudo, não é o homem que por meio da vontade afirma ou nega uma coisa.
O que ocorre, com efeito, aparece com maior clareza em sua obra Breve tratado de Deus, do
Homem e do seu bem-estar:
Pois dissemos que o entender é uma pura paixão, isto é, uma percepção, na
mente, da essência e da existência das coisas, de modo que nunca somos nós
que afirmamos ou negamos algo da coisa, mas que ela mesma, em nós, afirma
ou nega algo de si mesma (ESPINOSA, 2012, p. 123, grifo nosso).
Como se nota, retira-se da vontade o poder de decisão que lhe era atribuído, ou seja, sua
concepção como desejo pelo qual a mente apetece ou rejeita as coisas. E isso é tão rigoroso e
abrangente, que nem mesmo Deus escapa: ele não é livre porque toma decisões e age por sua
vontade absoluta, ou seja, por seu absoluto beneplácito, mas devido à sua natureza absoluta, ou
seja, sua infinita potência, da qual tudo decorre necessariamente (1AP).
De fato, a vontade nem mesmo pertence à natureza de Deus, “mas tem, com esta natu-
reza, a mesma relação que tem o movimento e o repouso e todas as coisas que se seguem [...]
da necessidade da natureza divina, e que são por ela determinadas a existir e a operar de uma
maneira definida” (1P32co2). Donde se entende que a vontade, assim como todas as coisas,
requer, necessariamente, uma causa derivada de um nexo causal infinito, pela qual seja determi-
nada a existir e a operar, e que, por isso, não pode ser chamada de causa livre, mas, unicamente,
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de causa necessária (1P32dem).
É impossível, portanto, dizer, com Descartes, que a liberdade está ligada à vontade livre
ou absoluta. No sistema spinozista, não se pode fugir, burlar ou romper a necessidade divina
que manifesta a ordem e a conexão de todas as coisas. Consequentemente, não se pode pensar
a liberdade senão como algo estritamente relacionado a essa necessidade, ou seja, de acordo
com as leis da natureza. Por exemplo, um homem que ordena como quer uma sequência de
números e símbolos matemáticos de maneira nenhuma procede com liberdade (ou seja, “age”),
pois, evidentemente, disso nada pode se concluir de verdadeiro. Todavia, se, em vez disso, ele
se propõe a compreender as leis matemáticas — isto é, de que maneira se dão, na matemática,
as relações entre símbolos, números e conceitos — para aplicá-las, então, sim, ele poderá atuar
livremente, alcançando respostas verdadeiras pela via da razão. Acerca disto e em defesa da
liberdade como consciência da necessidade e não como liberdade da necessidade, Scruton diz:
É, pois, esse o sentido que Spinoza busca ao tratar a liberdade como “necessidade livre”, e não
como “decisão livre”.
“Mas desçamos até as coisas criadas, que são todas determinadas por causas externas a existir
e a operar de maneira definida e determinada.”
A expressão “desçamos” decorre dos graus de perfeição que dizem respeito às coisas
criadas — ou produzidas, para não usar um termo comum ao criacionismo. A perfeição de
que fala Spinoza não é aquela que só é perfeição relativa, isto é, perfeição a respeito de algo
que é absolutamente perfeito. Na visão dele, realidade, perfeição e ser são uma só e mesma
coisa (2D6; 1P9). Isto soa, de início, bastante semelhante ao que é dito por Santo Tomás de
Aquino (1225-1274): “cada criatura representará a perfeição divina a modo de vestígio, ou seja,
menos intensiva quanto ao ser” (AQUINO, 2005, p. vii). Spinoza, contudo, não imputa uma
transcendência àquilo que possui a absoluta perfeição, isto é, Deus; pois, conforme já foi dito na
seção 2.2, Deus é causa imanente e, não, transitiva das coisas. Ademais, a gradação que sugere
Spinoza em nenhuma instância procede de privações de perfeição. Como ele mesmo argumenta,
as coisas que são produzidas por Deus, consistam elas de muitas ou de poucas partes, devem
sua perfeição (ou seja, sua realidade) à virtude de Deus (1P11esc). Assim, cada coisa possui
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uma perfeição que lhe é própria, não está privada de nada e não pode fazer senão aquilo que
necessariamente se segue de sua natureza determinada (1P29).
Afirmar que uma coisa tem mais perfeição que outra não quer dizer, por exemplo, que
um animal é mais perfeito que uma árvore, e esta, por sua vez, que uma pedra, como diria
Santo Tomás; significa, em vez disso, que a coisa tem mais perfeição, realidade ou ser, porque
mais atributos lhe competem (1P9); o mesmo valendo quando se comparam dois animais, dois
vegetais ou dois minerais. Segundo Spinoza,
a perfeição das coisas deve ser avaliada exclusivamente por sua própria natu-
reza e potência: elas não são mais ou menos perfeitas porque agradem ou de-
sagradem os sentidos dos homens, ou porque convenham à natureza humana
ou a contrariem (1AP).
Ademais, ele afirma: “a perfeição e a imperfeição são, na realidade, apenas modos de pensar,
isto é, noções que temos o hábito de inventar, por compararmos entre si indivíduos da mesma
espécie ou do mesmo gênero” (4PR) — sendo isto tão impróprio quanto dizer que um icosaedro
é mais perfeito que um tetraedro porque tem mais faces. Diferentemente, o intelecto de Deus
não compreende as coisas por meio de noções comuns ou universais (tais como animal, árvore
e pedra). Em vez disso, Deus compreende essências singulares das coisas, e não concebe nem
mais nem menos perfeição do que lhes concederam seu intelecto.
“Para que isso possa ser claramente entendido, concebamos algo muito simples. Por exemplo,
uma pedra recebe uma certa quantidade de movimento a partir de uma causa externa que a
impulsiona, e, em seguida, cessando o impulso dessa causa, continua, necessariamente, a se
mover. Esta permanência da pedra em movimento é, portanto, coagida, não porque necessária,
mas porque deve ser definida pelo impulso da causa externa; e o que aqui se entende para uma
pedra o é para qualquer coisa singular, ainda que concebida como composta ou com numerosas
ligações, em que cada uma é, necessariamente, determinada por alguma causa externa a existir
e a operar de maneira definida e determinada.”
Spinoza utiliza o exemplo de uma pedra que é posta em movimento para ilustrar não só a
determinação dos modos finitos do atributo da extensão — já que em uma pedra existem apenas
relações de movimento e repouso —, mas a de toda modificação finita de qualquer atributo
da substância, consista ela em muitas ou em poucas partes. Isto porque, afirma Spinoza, (i) a
matéria não se distingue em partes realmente, e, sim, modalmente, ou seja, apenas enquanto
a concebemos como matéria afetada de diferentes maneiras (1P15); e (ii) “quer concebamos a
natureza sob o atributo da extensão, quer sob o atributo do pensamento, quer sob qualquer outro
16
atributo, encontramos uma só e mesma ordem, ou seja, uma só e mesma conexão de causas”
(2P7cor).
Este lema — que é uma consequência da proposição XXVIII da primeira parte da Ética, quando
especificada para o atributo da extensão — é o que se pode chamar de “princípio de inércia spi-
nozista”. À primeira vista, parece manter-se o mesmo enunciado proposto por René Descartes,
segundo o qual “cada coisa, enquanto é simples e indivisível, permanece, tanto quanto está em
si, sempre no mesmo estado, e não muda em nenhum momento, a não ser por alguma causa
externa.”10 (DESCARTES, 1677, p. 38, tradução nossa, grifo nosso). Todavia, a expressão
“tanto quanto está em si” (quantum in se est), empregada no sentido de uma coisa existir por si
mesma, se não é determinada por nenhuma outra, contraria fortemente o que se diz no lema III
(KLEVER, 2000).
retomada pelo físico e filósofo Ernst Mach (1838-1916) em seu “princípio de Mach”, no qual se afirma que a
inércia de um corpo só existe devido à sua interação gravitacional com a matéria do restante do universo ao seu
redor.
12 No original: “omnia [...] corpora ab aliis circumcinguntur, et ab invicem determinantur ad existendum et ope-
randum certa ac determinata ratione, servata semper in omnibus simul, hoc est, in toto universo, eadem ratione
motus ad quietem; hinc sequitur, omne corpus, quatenus certo modo modificatum existit, ut partem totius universi
considerari debere, cum sua toto convenire, et cum reliquis cohærere.” Carta 15.
17
1677, p. 441, tradução nossa).
Assim, o impulso que sofre a pedra nunca cessa, pois, cessado o primeiro, inicia-se o segundo,
e assim por diante.13
“Indo adiante, concebe agora, se te apraz, uma pedra que, enquanto continua em movimento,
é capaz de pensar e saber que ela está se esforçando tanto quanto pode para continuar a
se mover. Esta pedra, visto que está consciente apenas de seu próprio esforço, e de modo
nenhum indiferente a ele, acreditará que é completamente livre e que continua em movimento
por nenhuma causa a não ser porque quer. E esta é aquela liberdade humana que todos se
vangloriam de possuir, e que consiste apenas no fato de que os homens são conscientes de seus
apetites, mas ignoram as causas por que são determinados.”
O exemplo do lançamento de uma pedra, não obstante toda a discussão física que ele
suscita, é, principalmente, uma maneira de Spinoza se contrapor, diretamente, ao pensamento
apresentado por Santo Agostinho no livro III , 1, 2, d’O livre-arbítrio (CHAUÍ, 1999, p. 78).
Agostinho utiliza a queda de uma pedra no ar para distinguir dois tipos de movimento: o natural
e o voluntário. Segundo ele, o movimento que arrasta a pedra para baixo é atribuído à sua
13 Pode-se realizar um experimento mental bastante interessante. Considere a mesma pedra e a mesma causa
externa usadas no exemplo de Spinoza; inicialmente, a pedra está recebendo um impulso da causa considerada
(enquanto isso, nada é alterado, ou seja, assume-se a condição ceteris paribus); a seguir, esse impulso cessa
e todos os corpos existentes são extintos (a Terra, as estrelas etc), permanecendo unicamente pedra. O que
acontece, então, com seu movimento? Pela formulação cartesiana do princípio da inércia, a pedra continua a se
mover em linha reta. Pela formulação de Spinoza (lema III), porém, ela se torna incapaz de movimento, uma vez
que toda inércia de qualquer corpo se deve justamente à interação dele com os demais existentes; é somente por
causas externas que cada corpo permanece no seu estado ou é desviado dele.
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própria natureza (involuntário), não havendo, por isso, nenhuma culpa pelo seu direcionamento
às coisas inferiores. Com a alma, porém, não se dá o mesmo: o movimento para baixo não
lhe é próprio; ela só cai quando se submete à paixão, e isto ocorre somente com a permissão
de sua própria vontade — pois nenhum agente, seja ele superior ou inferior, pode coagi-la
a não submeter-se dessa maneira. Por conseguinte, se a alma se volta voluntariamente para
os bens inferiores em prejuízo dos superiores, é plenamente cabível que ela seja condenada e
repreendida (AGOSTINHO, 2006, p. 149-150).
Embora a mente humana só conheça seu próprio corpo e os outros do exterior enquanto
percebe as ideias das afecções pelas quais eles são afetados, não significa que tais ideias en-
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volvam um conhecimento verdadeiro. De fato, sempre que a mente está afetada externamente,
pelo encontro fortuito das coisas, a considerar isto ou aquilo, ela não tem de si própria, nem
de seu corpo, nem de todos os corpos do exterior, um conhecimento verdadeiro, mas apenas
um conhecimento “confuso e mutilado” (2P29cor).14 Segundo Spinoza, as ideias confusas e
mutiladas (ou inadequadas) são assim porque envolvem a falsidade, a qual
“Assim, um bebê crê desejar livremente leite; um garoto furioso, a vingança; e uma criança
medrosa, fugir. Ademais, um homem, quando ébrio, acredita falar a partir da livre decisão de
sua mente, e, mais tarde, quando sóbrio, preferiria ter ficado calado. Assim, os delirantes, os
tagarelas e muitos outros desta farinha julgam agir pela livre decisão de suas mentes, e, não,
que são levados por impulso.”
20
O estágio de mínima potência na vida do homem é a infância. Trata-se de um período
de grande instabilidade, em que se está mais suscetível às paixões, sejam elas alegres ou tristes.
Segundo Spinoza,
a experiência nos mostra que as crianças, por seu corpo estar como que em
um estado de oscilação contínua, riem ou choram só de verem ou rirem ou
chorarem. [...] Pois as imagens das coisas são, como dissemos, as próprias
afecções do corpo humano, ou seja, as maneiras pelas quais o corpo humano é
afetado pelas causas externas e está inclinado a fazer isto ou aquilo (3P32esc).
É por isso que a criança deseja se alimentar, se enfurece, sente medo, ri, chora etc, tudo muito
facilmente. Por ter um intelecto ainda pouco desenvolvido e, ao mesmo tempo, por estar in-
tensamente aberta a experimentações do exterior, ela acaba por tomar as imagens das coisas —
ou seja, as afecções de seu próprio corpo, cujas ideias representam os corpos exteriores como
estando presentes (2P18esc) — como as próprias coisas. O bêbado e o delirante também estão
bastante submetidos a determinações externas. Embriaguez e delírio são estados que reduzem
a potência do homem a um grau muito baixo, pois perturbam o conhecimento que a mente tem
tanto do próprio corpo quanto de todos os exteriores. Também é semelhante o caso do falatório:
o tagarela16 é aquele no qual o falar e o calar pouco estão sob seu poder17 , ou seja, aquele que
tem um controle reduzido sobre os impulsos que o determinam a falar, e que, por conseguinte,
favorecem um conhecimento desprovido de sua causa ou razão (2P28dem).
“E porque esse preconceito é inato a todos os homens, não se livram facilmente do mesmo.”
“Todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas” (1AP), afirma Spinoza. Por
isso, antes de compreenderem, é natural que eles imaginem.
21
Na formação de noções universais a partir de coisas singulares, o homem considera as
afecções de seu corpo, cujas ideias representam os corpos exteriores como estando presentes,
sem, contudo, restituir a figura das coisas (2P17esc). Tais representações ou imagens, na au-
sência do encadeamento correto do intelecto, fornecem ao homem uma “experiência errática”:
imediata, confusa e mutilada.18 Assim sendo, a mente não possui, a partir das imagens dos
corpos exteriores, uma ideia verdadeira dos mesmos; ela é, na verdade, levada
a fabricar causas imaginárias para o que se passa em seu corpo, e nos corpos
exteriores, por conseguinte, enredando-se num tecido de explicações sobre si,
sobre seu corpo e sobre o mundo, porque explicações parciais, nascidas da
ignorância das verdadeiras causas (CHAUÍ, 2005, p. 57).
Já na formação de noções universais a partir de sinais, “os laços entre as ideias são função
das relações associativas geradas pela experiência sofrida, como a proximidade temporal ou
espacial, a semelhança, a repetição devida ao hábito” (RIZK, 2010, p. 79).
No entanto, ainda que a formação de ideias inadequadas seja uma condição originária do
homem — ainda que o preconceito lhe seja inato —, é possível que ele as ultrapasse. Segundo
Spinoza, o conhecimento oriundo da imaginação só é inadequado enquanto inexiste na mente
a totalidade que a clareza e a distinção exigem (não há o conhecimento verdadeiro da causa
tanto da coisa, como da ideia dessa coisa). Por conseguinte, para que ideias adequadas sejam
formadas, isto é, para que a mente supra a parcialidade que as ideias imaginativas envolvem,
o homem deve alcançar o que Spinoza chama de “segundo gênero do conhecimento”. Este
segundo gênero define-se, não mais, por noções universais, mas por ideias ou noções comuns,
as quais, segundo Spinoza, “constituem os fundamentos de nossa capacidade de raciocínio”
(2P40esc1). Estas noções são ditas comuns porque estão tanto na parte, como no todo (sem,
contudo, constituírem alguma essência singular), e são tanto mais adequadamente percebidas
pela mente, quanto mais propriedades em comum com outros corpos tem o corpo de que ela é
ideia (2P37-39cor).
Assim, embora o homem nasça plenamente ignorante das causas das coisas, isto é, servo
18 “As ideias das afecções do corpo humano, à medida que estão referidas apenas à mente humana, não são claras
e distintas, mas confusas.” (2P28).
22
do mundo, não ocorre que ele seja assim por toda a vida. Existe, com efeito, uma tensão
originária: se, por um lado, a natureza fornece ao homem a condição inata da servidão, ou
seja, o primado do conhecimento inadequado da imaginação, por outro, ela o provê justamente
daquilo que lhe permite insurgir-se contra essa condição: sua essência.
Como já se explicou na seção 2.1, a essência de todo e qualquer modo é também potên-
cia. Na demonstração da proposição VII da terceira parte da Ética, afirma-se:
a potência de uma coisa qualquer, ou seja, o esforço pelo qual, quer sozinha,
quer em conjunto com outras, ela age ou se esforça por agir, isto é, a potência
ou o esforço pelo qual ela se esforça por perseverar em seu ser, nada mais é do
que sua essência dada ou atual (3P7dem).19
Esta demonstração, entretanto, não identifica potência e essência atual exclusivamente. Como
se pode verificar na mesma, ao dizer que a potência de um modo é sua essência atual, Spinoza
utiliza como equivalentes “agir” e “perseverar no ser”, tornando idênticos, por conseguinte,
potência e conatus. Essa identidade seria imprópria, se se considerasse “perseverar no ser”
o mesmo que permanecer na existência. No entanto, “ser” não tem, rigorosamente, apenas o
sentido de “existir”. O “ser” de um modo é, de fato, sua “realidade” (1P9-10), ou seja, sua
causalidade interna tomada em si mesma, sem determinações do exterior. E perseverar nesta
condição é extamente o que se entende, no sistema spinoszista, por “agir”, ou seja, ser deter-
minado, necessariamente, por si mesmo, isto é, estar sob o domínio exclusivo de necessidades
internas.
Apesar de ter sido apresentado, anteriormente, para o caso específico de uma pedra, o
princípio do conatus é válido para “cada” coisa existente, isto é, é extensivo à toda a natu-
reza naturada. Com efeito, cada coisa tem um nível ou grau próprio de conatus, o qual pode ser,
inclusive, aumentado ou diminuído. Assim, por exemplo, enquanto autopreservadores rudimen-
tares, como as rochas, se submetem a pouquíssimo ou a quase nenhum aumento ou diminuição
em sua capacidade de se preservarem (GARRETT, 2010, p.26), um organismo vivo é capaz de
executar, não apenas suas funções biológicas primárias (como respirar, nutrir-se, manter-se na
19 Note-se bem, não se pode concluir que a essência em geral de um modo finito, sem nenhum qualificador, é
o seu conatus. Pois, explicitamente, trata-se aqui da essência “dada” ou “atual” (ou, ainda, “formal”), isto
é, da essência de um modo finito que existe. Nesse sentido, somente em Deus essência e essência atual se
identificam (a essência de Deus é sempre atual). Pois, conforme já se disse na seção 2.1, a essência divina
envolve a existência, não havendo nenhuma causa pela qual tal existência seja impedida. A essência de um
modo finito, por sua vez, não envolve nem a existência nem a duração (1P24cor), e, consequentemente, nem
sempre é atual. Todavia, não se deve concluir que a retirada da existência implica no total desaparecimento da
essência. Para Spinoza, a essência de um modo finito, existente ou não, existe, antes, objetivamente, no intelecto
de Deus (1p17esc), sendo concebida como uma verdade eterna e não podendo, por isso, ser explicada pela
duração ou pelo tempo (1D8). Portanto, quando um modo finito é destruído, retira-se dele apenas sua essência
atual, permanecendo, compreendida na ideia infinita de Deus, sua essência eterna.
23
temperatura adequada etc), mas, também, de “evitar o dano, resistir a ele quando ameaçado, e,
até mesmo, recuperar-se quando ele é infligido” (SCRUTON, 2005, p.71).20
O homem, por sua vez, é o único organismo consciente de que se esforça por perseverar
no seu ser, o que o torna “o mais potente dos modos finitos” (DELEUZE, 1989, p. 96). Nele, o
conatus da mente, ou seja, a potência de pensar ou “potência da mente, pela qual ela se esforça
por compreender as coisas” (5P10dem) ou, ainda, a vontade (3P9esc) é o princípio ativo que
permite a transição de ideias inadequadas a ideias adequadas, isto é, o raciocínio. Com efeito,
à medida que raciocina, o homem interpreta, adequadamente, as imagens de seu corpo e dos
corpos exteriores, ou seja, torna-se “causa adequada dos apetites e imagens do corpo e dos
desejos e ideias da mente” (CHAUÍ, 2011, p. 97).
Portanto, em virtude de seu conatus, o homem é capaz de voltar-se e agir contra aquilo
que o determina e lhe é alheio, ou seja, livrar-se dos preconceitos que se alimentam do conhe-
cimento inadequado.
“Pois, embora a experiência tenha ensinado, mais que suficientemente, que os homens nada
menos podem do que regular seus próprios apetites, e que, com frequência, enquanto são ata-
cados por afetos contrários, veem as melhores coisas e seguem as piores, acreditam eles que
são livres, e que, por esse mesmo motivo, quando perseguem sem muito empenho certas coi-
sas, o desejo por essas mesmas coisas pode ser facilmente mitigado pela lembrança de outras
coisas, de que se recordam com frequência.”
Um caso especial no qual os homens julgam-se livres é conhecido como akrasia (palavra
transliterada do grego que pode ser traduzida por “não possuir comando sobre si mesmo”),
e se constitui no fato de que seguem em seus atos algo diferente daquilo que sabiam ser o
melhor seguir. Segundo Donald Davidson (1917-2003), a akrasia consiste-se na violação de
dois princípios: (i) se um agente quer fazer X mais do que quer fazer Y e acredita que é livre
para fazer tanto X quanto Y, então ele fará X intencionalmente; (ii) se um agente julga que seria
melhor fazer X do que Y, então ele quer fazer X mais do que quer fazer Y (DAVIDSON, 2001,
p. 23).
Ao longo da história da filosofia, a akrasia foi uma questão discutida com frequência. O
primeiro a tratar dela é Sócrates (469-399 a.C.), o qual, sob a voz de Platão (427-347, provavel-
20 Nesse sentido,
de acordo com Antonio Damasio, pode-se dizer que o conatus de Spinoza é um precursor, na bio-
logia moderna, do entendimento de homeostase, o qual denota a capacidade do organismo de procurar e manter
um estado de equilíbrio ou estabilidade em seu ambiente interno ao lidar com alterações externas (DAMASIO,
2003, p. 37).
24
mente), no Diálogo Górgias, estabelece o seguinte paradoxo: “ninguém comete injustiça por
vontade, todos os que praticam o mal procedem sem o querer” (PLATÃO, 2007, p. 141). Para
ele, como todas as ações têm em vista o bem, é impossível dizer coisas como “vejo e aprovo
o melhor, mas sigo o pior”21 ou “não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que não
quero”22 . Quem vê o melhor necessariamente também o faz, e quando faz o mal, isto é, age
injustamente, é por um erro da razão, ignorância do verdadeiro bem (REALE, 1990, p. 90).
Aristóteles, no livro III , 2, 1112a, da Ética a Nicômaco, discute a mesma questão ao refutar
a concepção de escolha como exercício da opinião. Segundo o estagirita, “nós elegemos (es-
colhemos) somente as coisas que sabemos absolutamente serem boas, ao passo que opinamos
sobre coisas que de modo algum conhecemos com certeza” (ARISTÓTELES, 2009, p. 93-94).
Assim, quando um homem escolhe o pior, não é, na verdade, uma escolha o que ele faz, mas,
sim, a formação de opiniões que ele acredita serem as melhores. Diferentemente, a solução
de Santo Agostinho para o paradoxo socrático consiste em imputar à vontade, e não à razão, a
possibilidade da escolha: não obstante sejam faculdades disjuntas do espírito humano, razão e
vontade estão ligadas de forma que a primeira conhece e a última escolhe, podendo escolher até
aquilo que foge à razão (REALE, 1990, p. 457). Na esteira do mesmo pensamento, Descartes
concebe a vontade como poder de escolha ou indiferença positiva e afirma que é justamente
porque há um poder absoluto de escolher, que o homem, mesmo vendo o melhor, pode fazer o
pior, ou seja, negar aquilo que o intelecto lhe propõe (FILHO, 2010, p. 34).
Existem aqueles que justificam, ilusoriamente, a akrasia pela crença de que fazem muito
pouco livremente aquelas coisas que perseguem com um afeto intenso, o qual não pode ser
atenuado pela recordação de outra coisa (3P2esc); e que, ao contrário, só fazem livremente
aquelas coisas que perseguem sem muito esforço, porque o apetite por essas coisas pode ser
21 Ovídio em Metamorphoses.
22 Apóstolo Paulo em Epístola aos Romanos (Rm 7,19).
25
facilmente mitigado pela recordação de alguma outra coisa de que se lembram com frequência.
Eles imaginam-se livres ou não, conforme a intensidade do impulso afetivo que recebem, ou
seja, se ele é ou não passível de ser controlado pela memória. Não percebem, contudo, que não
há a possibilidade de livre recordação: “não está sob o poder da mente esquecer ou lembrar uma
coisa” (3P2esc).
A memória, diz Spinoza, não é “senão uma certa concatenação de ideias, as quais en-
volvem a natureza das coisas externas ao corpo humano, e que se faz, na mente, segundo a
ordem e a concatenação das afecções do corpo humano” (2P18esc). Assim sendo, as recorda-
ções seguem-se com a mesma necessidade com que se seguem as afecções do corpo humano,
não podendo ser suplantadas por livre beneplácito. Se se diferenciam quanto à intensidade, é
somente na medida em que são determinadas por mais ou menos corpos, e não porque o nexo
causal em que se inserem é mais ou menos intenso.23
o afeto assim como a dúvida está para a imaginação (3P17esc), e se o afeto está no domínio da imaginação, então
a dúvida envolve a flutuação de ânimo.
26
como afirmam Agostinho e Descartes. Em vez disso, para Spinoza, quando a mente erra, é
porque está privada do conhecimento que o conhecimento inadequado das coisas envolve; o
que, grosso modo, parece estar alinhado à explicação de Sócrates, já que ela se fundamenta no
“erro da razão” ou “ignorância do verdadeiro bem”.
27
C APÍTULO 3
C ONSIDERAÇÕES F INAIS
Spinoza buscou desenvolver uma tese sobre a liberdade que fosse, ela própria, livre,
isto é, isenta de todos os preconceitos oriundos da tradição filosófica ocidental até sua época.
Atentou, para isso, à necessidade de se estar sempre à luz do verdadeiro, do claro e distinto,
e não à sombra do “confuso e mutilado” que é produto da imaginação; ademais, combateu, a
todo custo, qualquer tipo de coação externa, qualquer coisa capaz de inibir a livre expressão de
uma determinada natureza, potência ou conatus. Pois, para Spinoza, só há liberdade enquanto
há aumento da potência, ou seja, à medida que potência de existir e potência de agir se alinham
às leis da natureza.
Não cabe dizer se, na elaboração de sua doutrina da liberdade, Spinoza respondeu ple-
namente aos entraves impostos por seu próprio sistema filosófico. Entretanto, considerando
aquilo que é, definitivamente, apresentado em sua opus magnum, a Ética, o que se afirma, com
Ramond, é que “o problema tradicional da saída da servidão é tratado de forma completamente
original, num texto sem temporalidade, sem ruptura inaugural, sem reviravolta: nem relato
passado nem dramaturgia presente da liberdade” (RAMOND, 2010, p. 49).
28
que possui a carta 58. Muito embora sumárias, as palavras de Spinoza, dirigidas diretamente a
Schuller e indiretamente a Tschirnhaus, extravasam conceitos e teses. O exemplo da pedra é,
pois, a marca principal do texto; é o “reforço didático” que Spinoza fornece, ao mesmo tempo,
de sua concepção de liberdade e da liberdade ilusória que, segundo ele, a ignorância dos homens
costuma cultuar.
Compreender a liberdade em Spinoza é, sem dúvida, tarefa que suscita amplitude, di-
ficuldade e desafio, e que, por isso, exige incessantes investigações e reflexões. Não foi, por-
tanto, de maneira alguma, intenção deste trabalho encerrar tudo aquilo que pode ser dito sobre
o assunto. Todavia, as delimitações propostas no projeto inicial permitiram que importantes
discussões se desenvolvessem a contento, envolvendo, suficientemente, o período de que se
dispôs. Caso mais tempo houvesse, seria ele, certamente, dirigido a maiores apronfundamentos
e a mais revisões da tradução que se empreendeu.
29
A NEXO
bc
CARTA LVIII
Ao Mui Douto e Experto Homem
G. H. Schuller
B. D. S.
Expertíssimo Senhor,
Nosso amigo J.R. enviou-me a carta que tu tiveste a consideração de escrever-me, junta-
mente com a crítica de teu amigo sobre a minha visão e a de Descartes acerca do livre-arbítrio;
ambas me foram muito bem-vindas. E, embora, neste momento, eu esteja muito envolvido
em outras coisas, além de não ter uma saúde muito boa, seja tua benevolência singular, seja o
interesse pela verdade que tu preservas, o que eu, particularmente, mais estimo, me obrigam
a satisfazer teu desejo tanto quanto minha pobre capacidade permitir. Na verdade, eu não sei
o que teu amigo ataca, antes de apelar para a experiência e pedir cuidadosa atenção. O que
ele acrescenta depois — Se, alguma vez, entre dois disputantes, um afirma algo a respeito de
alguma coisa que o outro nega etc. — é verdadeiro se se entende que os dois, ao utilizarem
os mesmos termos, pensam, entretanto, em coisas diferentes; coisas das quais, outrora, enviei
vários exemplos ao amigo J.R., a quem agora escrevo para que os comunique a ti.
Prossigo, então, com aquela definição de liberdade, que ele diz ser a mesma que a minha,
mas que ignoro de onde ele a tenha tirado. Digo ser livre uma coisa que existe e age somente
pela necessidade de sua própria natureza; e, por outro lado, ser coagida uma coisa que é, por
outra natureza, determinada a existir e a operar de maneira definida e determinada. Deus, por
exemplo, embora necessário, existe livremente, pois existe somente a partir de sua própria ne-
cessidade. Assim, em absoluta liberdade, Deus compreende a si mesmo e a todas as coisas, pois
resulta somente da necessidade de sua própria natureza que ele as compreenda. Vês, portanto,
que não coloco a liberdade como decisão livre, e sim como necessidade livre.
Mas desçamos até as coisas criadas, que são todas determinadas por causas externas a
existir e a operar de maneira definida e determinada. Para que isso possa ser claramente enten-
dido, concebamos algo muito simples. Por exemplo, uma pedra recebe uma certa quantidade de
30
movimento a partir de uma causa externa que a impulsiona, e, em seguida, cessando o impulso
dessa causa, continua, necessariamente, a se mover. Esta permanência da pedra em movimento
é, portanto, coagida, não porque necessária, mas porque deve ser definida pelo impulso da causa
externa; e o que aqui se entende para uma pedra o é para qualquer coisa singular, ainda que
concebida como composta ou com numerosas ligações, em que cada uma é, necessariamente,
determinada por alguma causa externa a existir e a operar de maneira definida e determinada.
Indo adiante, concebe agora, se te apraz, uma pedra que, enquanto continua em movi-
mento, é capaz de pensar e saber que ela está se esforçando tanto quanto pode para continuar
a se mover. Esta pedra, visto que está consciente apenas de seu próprio esforço, e de modo
nenhum indiferente a ele, acreditará que é completamente livre e que continua em movimento
por nenhuma causa a não ser porque quer. E esta é aquela liberdade humana que todos se van-
gloriam de possuir, e que consiste apenas no fato de que os homens são conscientes de seus
apetites, mas ignoram as causas por que são determinados. Assim, um bebê crê desejar livre-
mente leite; um garoto furioso, a vingança; e uma criança medrosa, fugir. Ademais, um homem,
quando ébrio, acredita falar a partir da livre decisão de sua mente, e, mais tarde, quando sóbrio,
preferiria ter ficado calado. Assim, os delirantes, os tagarelas e muitos outros desta farinha
julgam agir pela livre decisão de suas mentes, e, não, que são levados por impulso. E porque
esse preconceito é inato a todos os homens, não se livram facilmente do mesmo. Pois, embora
a experiência tenha ensinado, mais que suficientemente, que os homens nada menos podem
do que regular seus próprios apetites, e que, com frequência, enquanto são atacados por afetos
contrários, veem as melhores coisas e seguem as piores, acreditam eles que são livres, e que,
por esse mesmo motivo, quando perseguem sem muito empenho certas coisas, o desejo por
essas mesmas coisas pode ser facilmente mitigado pela lembrança de outras coisas, de que se
recordam com frequência.
Expliquei, com estas coisas, suficientemente, se não me engano, minha opinião acerca
das necessidades livre e coagida, e acerca do que é a falsa liberdade humana, a partir das quais
estão respondidas, facilmente, as objeções de teu amigo. Pois, quando ele diz, em companhia
de Descartes, que é livre aquele que não é coagido por nenhuma causa externa: se por homem
coagido ele entende aquele que age contra sua vontade, admito que estamos coagidos em certas
coisas, e, a respeito disto, que há livre-arbítrio. Mas, se por coagido ele entende aquele que,
ainda que não contra a sua vontade, age, contudo, necessariamente (como expliquei acima),
nego que somos, de qualquer maneira, livres em algo.
Contudo, teu amigo, contrariamente, afirma que podemos fazer o exercício mais livre da
razão, isto é, de maneira absoluta. Neste ponto ele persiste de maneira bastante, para não dizer
demasiadamente, confiante. Pois quem, diz ele, poderia negar, a menos que contradizendo a
31
própria consciência, que posso pensar com os meus pensamentos, que desejo ou não desejo
escrever? Queria muito saber sobre que consciência ele fala, além daquela explicada acima
por meio do exemplo da pedra. Eu, certamente, não contrariando minha consciência, isto é,
a razão e a experiência, e sem alimentar a ignorância e os preconceitos, nego possuir alguma
potência absoluta de pensar para poder pensar que desejo ou não desejo escrever. Mas apelo à
consciência, que, sem dúvida, se experimenta, de que nos sonhos não se tem o poder de pensar
que se deseja ou não escrever; nem que, quando se sonha que se deseja escrever, se tem o poder
de não sonhar que deseja escrever; Tampouco creio ser menos experimentado que a mente nem
sempre é igualmente capaz de pensar sobre o mesmo objeto, mas que à medida que o corpo é
mais suscetível à imagem deste ou daquele objeto que está nele estimulada, mais suscetível é,
então, a mente a contemplar o mesmo objeto.
Além disso, acrescenta ele que as causas pelas quais ele aplica sua alma para escrever
o têm impelido, e, não, coagido, a escrever; isto não significa senão (se quiseres examinar
com igual importância) que sua alma estava, então, disposta de tal modo que as causas que,
noutro momento, não tivessem podido estimulá-lo a escrever — com ele afligido por algum
grande afeto —, agora puderam facilmente; isto é, causas que, noutro momento, não o tivessem
podido coagir, já o coagiram, não para que escrevesse contra a vontade, mas para que fosse,
necessariamente, desejoso de escrever.
O que, ademais, ele coloca: que, se fôssemos coagidos por uma causa externa, ninguém
poderia adquirir o hábito da virtude; ignoro, quem tenha dito a si mesmo que não pode tornar
o ânimo firme e constante a partir da necessidade predestinada, mas, somente, a partir da livre
decisão da mente.
E o que ele por fim acrescenta: que isto posto seria toda maldade desculpável; que se
segue disso? De fato, homens maus não são menos temidos e nem menos perniciosos quando
são maus por necessidade. Mas sobre estes, se te apraz, consulta meus apêndices dos livros I e
II dos Princípios da Filosofia Cartesiana. Demonstrados Segundo a Ordem Geométrica. Parte
II . Capítulo VIII.
Em suma, gostaria que teu amigo, o qual me objetou com estas coisas, me respondesse
por que razão ele concebe ao mesmo tempo a virtude humana, que surge a partir da decisão livre
da mente, e a pré-ordenação de Deus. Se, com Descartes, ele confessa não saber como conciliar
essas coisas, então, tenta brandir em mim a lança pela qual ele próprio já se perfurou. Porém,
em vão. De fato, se tu examinares atentamente minha opinião, perceberás tudo concordar etc.
32
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