Você está na página 1de 3

Um Acompanhante Terapêutico à Deriva

Ana Paula C. Scagliarini

Gostaria de comentar com vocês sobre a Deriva.


Entramos em contato com essa idéia no II encontro sobre acompanhamento terapêutico
realizado aqui em Uberlândia em 2002. Numa mesa redonda para a qual convidamos
vários profissionais de áreas afins com o at, um arquiteto nos mostrou essa forma
original e criativa de estar na cidade.
A Deriva é uma espécie de jogo, que em poucas palavras, é uma forma de andar pela
cidade com passos relativamente rápidos ( não é um passeio contemplativo), de forma
aleatória, com o objetivo de se criar um mapa afetivo da cidade.
Essa prática foi utilizada por um grupo denominado Internacional Situacionista que
atuava na Europa na década de 50/60 do século 20.
“Os situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia, e uma prática
ou técnica, a deriva, que estavam diretamente relacionados. A psicogeografia foi
definida como um “ estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente
planejados ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos
indivíduos”. E a Deriva era vista como um “ modo de comportamento experimental
ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem rápida por ambiências
variadas...”.... Ficava claro que a deriva era o exercício prático da psicogeografia ...
Nós achamos tão interessante que fomos experimentá-la.
Quando fizemos a primeira Deriva nos encontramos na praça Tubal Vilela, no centro da
cidade, e nos dividimos em dois grupos. Fomos definido as regras do jogo na medida
em que ele ia acontecendo. No meu grupo a regra inicial foi que pegaríamos o primeiro
ônibus vermelho. Ao entrarmos nele outro integrante do grupo colocou outra regra:
vamos descer quando a primeira pessoa de blusa preta descer, e daí por diante.
Percorremos o bairro Martins e descobrimos que as pessoas têm o hábito de se sentarem
na calçada para conversar num sábado pela manhã e que há uma colônia de casas em
frente a uma frondosa árvore.
De uma outra vez que experimentamos a Deriva, meu grupo partiu do bairro Fundinho
em linha reta a procura de um cachorro e foi muito interessante perceber que vimos
cavalos, gatos, e que cachorro mesmo só bem no meio do Patrimônio ( bairro vizinho).
De tanto andar, até pensamos em burlar a regra para facilitar. Mas nos mantivemos
firmes.
E se afinal se dispor a andar assim é divertido também pode ser perigoso. Outro grupo
se aventurou por bairros mais periféricos da cidade e passou por maus lençóis.
Depois de cada Deriva faz-se um desenho do percurso a fim de se construir um mapa
que se sobrepõe ao mapa físico, ou seja, um mapa subjetivo, ou afetivo. Este mapa
amplia o potencial do percurso e da cidade, que de uma cidade se transforma em
milhares....
Antes de tentar fazer conexões da Deriva com o AT , gostaria de falar um pouco da
relação entre AT e cotidiano.
Gosto da idéia de sermos agentes de transformação que ocupam lugares corriqueiros.
Estar com o paciente no quarto de dormir quando ele está levantando, na cozinha
fazendo um lanche ou mesmo no banheiro até que ele arrume o cabelo são cenas que
acontecem em nosso dia a dia. Ocupar espaços como a padaria na esquina, o sacolão, a
farmácia.
Lugares do cotidiano.
Cotidiano este, que se configurava antes de nossa chegada, geralmente numa forma e
num molde construído através de anos de relações cristalizadas e doentes, sem
vitalidade, sem energia.
O objetivo do at é, justamente, romper com esta forma desenhada pela patologia e co-
construir outras possibilidades.
Esse é um processo de muitas idas e vindas. Quando estamos com um paciente a muitos
anos o risco de nos aprisionarmos no Mesmo é muito grande. A rotina, a mesmice, pode
ter uma força grande. Esse é um lado da rotina que aprisiona, que nos fecha e não nos
deixa ver uma saída.
Alice depois de seis anos de atendimento já esperava seu at vestida e pronta para sair.
Após a constatação de um problema digestivo, que não a impedia de se locomover,
volta a esperá-lo na cama dizendo que está doente e que não pode sair.
Para o at, o mesmo .O retorno para um território já conhecido e que se pensava já
superado.
Um infinito desânimo de pensar que começaria tudo de novo.
Como começar tudo de novo de um jeito diferente?
Maria tem 80 anos e acredita que seu at está ali para levá-la para passear no shopping.
Para ela é sempre um passeio agradável, ela gosta de ver as pessoas, as vitrines, de se
pesar na balança da farmácia.
Sua at fica imaginando quando algum empresário terá a feliz idéia de construir outro
shopping. Essa rotina por vezes é insuportável, por vezes é reconfortante porque ela não
precisa nem pensar no que fazer. O roteiro já está definido de antemão.
Mas o objetivo do at não é levar ninguém para passear por passear. O passeio é uma
ação de movimento e deslocamento de espaços subjetivos.
E é aqui que eu acredito que a Deriva pode contribuir com o cotidiano da acompanhante
terapêutico.
Essa prática divertida e inusitada de ocupação do espaço urbano revela outras facetas da
cidade supostamente conhecida, que num mesmo percurso de carro ou de ônibus não
alcançaríamos. E acaba resgatando em nós um personagem: o explorador em busca de
aventuras.
Na deriva existe um estado pressuposto de exploração do mesmo, de apropriação
diferente da mesma cidade, do mesmo bairro. Uma exploração do próprio jogo, do
porvir, de estar aberto a acontecimentos e o que pode vir da criação de situações.
Para que você possa criar, a partir de uma simples ação do outro, como a deixa que um
ator dá para o outro no teatro.
No espaço aberto que é a cidade, na teia de relações que se forma no social, nossa
percepção pode criar o espaço de abertura para o novo, mesmo que isso signifique
circulação em velhos ambientes, velhos hábitos.
O shopping center é o mesmo, mas as vitrines mudam, pessoas diferentes circulam,
encontros podem acontecer ao sabor do acaso.
Podemos desfazer o encanto e liberar o sublime que existe no banal, na rotina, no
cotidiano?
O Acompanhamento Terapêutico pretende uma abertura do sujeito para o mundo e sua
conseqüente ampliação. A Deriva utilizada como postura clínica, ética, poderia
imprimir um olhar de constante revisitação e novidade na relação do at com seu cliente.
Imagine-se como um viajante desejoso de explorar o mundo. Você chega numa nova
paisagem, torna-a confortável, se deleita um pouco com ela, suporta o que ela tem de
bom e de ruim e precisa partir porque você é um viajante em primeiro lugar.
E essa partida pode provocar várias sensações: alívio, desconforto, pânico, surpresa.
Um viajante estrangeiro que tem como marca o desejo de explorar novos territórios.
Porque uma característica do at é que ele precisa estar em constante movimento.
Movimentar-se nos espaços físicos e nos espaços subjetivos.
E é sobre como movimentar-se nesse cotidiano cheio de armadilhas e belezas que a
Deriva pode colaborar.
A ludicidade do jogo pode novamente colocar a roda para girar. Simbolicamente o jogo
é uma luta contra a morte, contra si mesmo...
Com Alice, num dia respeitando o seu suposto desejo de não sair.
Em outro sentando-se do lado de sua cama e conversando de outros assuntos.
Abrindo seu guarda roupa para ver a camiseta nova que seria usada se ela estivesse bem
de saúde.
Brigar porque o at se deslocou e ela não se move da cama e deixar claro seu
desapontamento com a paciente.
Com Maria, para não sucumbir ao tédio e para honrar os princípios de seu trabalho, o at
põe mãos a obra e começa a criar.
A monotonia da paisagem do shopping pode ser quebrada por percursos diferentes: cada
dia uma entrada nova. Mais perto ou mais longe da balança da farmácia.
Lugares diferentes para se sentar na praça da alimentação. Experimentar comidas
diferentes, ou experimentar todos os chocolates quentes e ver qual é o melhor ou passar
pelas vitrines e escolher um objeto para contar uma história.
Percorrendo o mesmo território lançando a ele um novo olhar. Se deixando surpreender
quando tudo parece ser tão monótono.
Experimentando novas formas de estar na situação. Criando jogos de possibilidades.
Ajudar o paciente a se deslocar internamente de um lugar conhecido para outro
desconhecido, explorando novos papéis, buscando uma companhia para a viagem
exploratória.

Texto apresentado no Pré-Congresso de AT 2006.

Você também pode gostar