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Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.

- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublai Khan


- A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra - responde Marco - , mas pela
curva do arco que estas formam.
Kubai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Responde Marco:
- Sem pedras o arco não existe.
(Calvino, 1990)
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Na última quinta-feira, dia 05/04/18, fiz pela primeira vez o acompanhamento de uma
paciente em cujo caso entrei a pouco, sozinho. Essa experiência foi única e muito marcante
para mim. Vou tentar aqui passar mais do que vivi e um pouco do que tenho refletido e me
debrucei nos últimos dias. Tentei encontrar em alguns fragmentos e passagens nas quais
pudesse me apoiar para além das minhas próprias pernas.
Eu e Bruna ficamos a frente do AT dessa jovem, desde que sua terapeuta Bettina saiu
de licença. Bruna busca-a na escola e traz para a Casa Jangada. Tocamos bateria, teclado,
violão e praticamente todos instrumentos que tenho. A Julia fica sempre em uma sintonia que é
própria dela. Vez ou outra quando estamos tocando sinto que nos conectamos, musicalmente
falando. Muitas vezes ela usa fones de ouvido, plugado no celular tocando algo que ela gosta.
E existe esse distanciamento que sei que é dela e da sua condição.
Pois bem, nesse dia ao qual me refiro tudo foi muito diferente. Começando pelo fato de
que a busquei na casa de uma tia no Largo do Machado. Chegando ao prédio, a porteira me
informou que a tia estava na minha frente. Logo, a tia entendeu o motivo da minha chegada e
disse: “Vai passear com a Julinha né? Ela fala muito de você.” Não entendi como seria
possível ela falar muito de mim, mas achei essa fala interessante. Eu, particularmente, tenho
um pouco de dificuldade de ouvir e entender o que a Julia fala, por isso achei um pouco
engraçado na hora.
Quando Julia chegou, convidei-a para irmos ao Oi Futuro do Flamengo e ela topou.
Comprimentou-me com dois beijos e fomos andando em direção a rua Dois de Dezembro. No
caminho, comentei com ela que tinha vindo de bicicleta e mostrei ao passarmos pela mesma.
Quando chegamos no Oi Futuro havia uma excursão de alguma escola Estadual e o térreo
estava lotado de jovens. Julia diz: “Eu estudo numa escola de grã-finos”. Eu acho engraçado e
ela completa: “ Minha escola é de grã-finos”.
Entramos na primeira sala e ela diz que não gosta de poesia, que acha poesia chata.
Sentados nessa sala, pergunto se já havia visto uma foto do filho recém nascido da Bettina.
Julia diz que não e então a mostro no celular. Ela dá um sorriso. Subimos um lance de escada
e chegamos numa parte que tem várias raridades da telecomunicação e no meio dessas coisas
tem um teclado. Ela digita algumas letras e pressiona o enter. Sai o som do que seriam aquelas
letras. Escrevo Julia, ela ri. Escrevo Chico, Bruna e Bettina, o computador fala de um jeito
engraçado e nós dois rimos. Ela vai e escreve, pressiona o enter e ouvimos: “Oi”.
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“No começo, bem antes de todo gesto, de toda iniciativa e de toda vontade deliberada
de viajar, o corpo trabalha, à maneira dos metais, sob a ação do sol. Na evidência dos
elementos, ele se mexe, se dilata, se entende, se distende e modifica seus volumes. Toda
genealogia se perde nas águas tépidas de um líquido amniótico, esse banho estelar primitivo
onde cintilam as estrelas com as quais, mais tarde, se fabricam mapas do céu, depois
topografias luminosas nas quais desponta e se aponta a Estrela do pastor - que meu pai foi o
primeiro a me ensinar - entre as constelações diversas. O desejo de viagem tem sua confusa
origem nessa água lustras, tépida, ele se alimenta estranhamente dessa superfície metafísica e
dessa ontologia germinativa. Ninguém se torna nômade impenitente a não ser instruído, na
carne, pelas horas de ventre materno, arredondado como um globo, um mapa-mundi. O resto
‘e um pergaminho já escrito”. (Onfray, 2009)

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Dali subimos mais um lance de escada e chegamos à outra exposição.


“Essa sala é escura”, ela disse. Andamos mais um pouco e vimos que tinha um vídeo
sendo projetado na parede. Atravessamos a sala e, batendo na barriga, ela disse: “Que fome”.
Eu estava um pouco fascinado com o fato de estar entendendo tudo que ela dizia.
Deixamos o Oi Futuro e seguimos em direção ao McDonalds. Na fila do caixa, Julia me entrega
o guarda-chuva dela. (Essa peça ficou em minha posse até o momento que eu a deixei em
casa). Eu peço meu lanche, ela pede o dela. O dela é pra viagem. O meu é pra agora. Sento
para comer e ela está comendo as batatas, pergunto se ela quer um nugget, ela aceita e pede
para mergulhá-lo no catchup e me dá uma batata frita em troca. Pergunto se ela quer um pouco
de cheddar para passar nas batatas ela responde que sim. E assim comemos o meu lanche.
Ao terminar Júlia me diz que quer comprar um fone de ouvido. Diz que tem um camelô
onde a mãe dela faz exames. Caminhamos em direção a Galeria Condor, é a segunda vez que
cruzamos a praça juntos. O vendedor parece conhecê-la. Aponta o fone de sua escolha e paga
o valor anunciado.

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“Deligny contrapõe ​agir ​e ​fazer. ​Fazer é fruto da vontade dirigida a uma finalidade, por
exemplo, fazer obra, fazer sentido, fazer comunicação, ao passo que agir, no sentido muito
particular que lhe atribui o autor, é o gesto desinteressado, o movimento não representacional,
sem intencionalidade, que consiste em eventualmente em tecer, traçar, pintar, no limite, até
mesmo em escrever, num mundo onde o balanço de pedra e o ruído da água não são menos
relevantes do que o murmúrio dos homens” (Pelbart, 2016)

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Nesse momento, tudo parece se encaminhar para irmos embora. Pergunto para ela se
voltará para a casa da tia ou se iria para a dela. Ela responde que vai para a casa dela.
Lembro-me então que tenho que pegar minha bicicleta. Caminhamos em direção a ela. Ao
chegarmos começo a procurar as chaves para destrancar a tranca, enquanto isso Julia olha
bastante para a bicicleta. É uma bicicleta da marca Subrosa, branca com pontinhos vermelhos,
"Era uma bike fixa que eu mudei para roda livre a pouco tempo", eu disse, "Coloquei um
bagageiro atrás, no qual corriqueiramente carrego alguém".
Depois de soltar a bicicleta falei: "Vamos andando, eu vou empurrando a bicicleta".
Ela acenou negativamente.
Eu disse: Você quer que eu te carregue?
Ela acenou positivamente.
Confesso que gelei.

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“O passeio esquizofrênico: eis um modelo melhor do que o neurótico deitado no divã.


Um pouco de ar livre, uma relação com o fora. (...) Continuação do passeio do esquizofrênico,
quando os personagens de Samuel Beckett decidem sair. É preciso ver, primeiramente, como
seu percurso variado é já uma máquina minuciosa. E depois, a bicicleta…” (Deleuze e Guattari,
2010)

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Andamos até o meio da praça e falei que iríamos andar só ali. Eu subi na bike, ela se
sentou na garupa e comecei a pedalar bem devagar. Ela mantinha as pernas abertas e
esticada para não encostar nem no chão nem na roda. Uma mão segurava o lanche e a outra
segurava o banco. Comecei a chorar. Uma emoção tão grande me preenchia. Uma coisa tão
linda estava acontecendo. Senti como se a coragem da Julia enchesse meu peito de coragem
e alegria. Então era possível, pedalar e ser carregado ao mesmo tempo.
Demos umas voltas na praça e eu quis parar para seguirmos andando, ela mais uma
vez negou. Seguimos pela rua Ministro Tavares Lira, indo bem devagar. Atravessamos no sinal
e segui em direção à rua São Salvador, lá decidi descer até a praça e demos uma volta
retornando pela mesma rua até chegarmos a Rua: Marquês de Abrantes. Então fomos até a
rua Paissandu de bicicleta e depois seguimos andando. Durante esse tempo meu coração
bateu tão forte e meus olhos brilhavam com essa emoção, com essas coisas todas que senti e
pude viver com Julia.

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No restante do caminho ela falou muito, ao passarmos pela sua escola, ao chegarmos
perto da prédio. Nos despedimos e foi tudo muito bom de ser vivido.
Não quero enfatizar a fala enquanto o único caminho de conexão. Porque na bicicleta
não falamos nada e pra mim foi o momento em que mais nos comunicamos. Gostaria de
apontar para uma vontade de continuar essa troca e acho que aqui entra um apêndice mais
pessoal. (Caso não tenha interesse pule)

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Apêndice pessoal:

Nunca conversei muito com ninguém a respeito de porquê eu parei de atender ou do


porquê eu saí do trabalho. Está muito claro as escolhas que eu fiz de trabalhar e me dedicar a
outras coisas, mas nunca falei dos outros motivos.
Existia, sim, um cansaço de estar fazendo a mesma coisa e existiu, sim, uma decepção
pessoal em relação a algumas pessoas. Hoje eu entendo que todas as decepções
aconteceram dentro de mim. Entendo que me prendi a uma imagem criada de mim por mim.
Acreditei na premissa afirmativa da minha indispensabilidade, acreditei na diferença feita por
mim. Esse momento é muito incrível, pois acredito no fato de que muitas pessoas vão dizer que
hoje estou me cobrando muito. Mas quero dizer: Na verdade hoje estou me cobrando bem
pouco, tento viver de forma mais leve e descontraída.
Anos atrás, na minha cópia do livro ​Conversações, do Deleuze, antes do capítulo ​Os
Intercessores, ​eu escrevi a seguinte pergunta: “Qual a pertinência de fazer algo junto?”. Fico
imaginando minha cara escrevendo isso. Acho muito engraçado, pois na abertura dessa
entrevista Deleuze diz:

“Se hoje em dia o pensamento anda mal é porque, sob o nome de modernismo, há um retorno às
abstrações, reencontra-se o problema das origens, tudo isso… De pronto são bloqueadas todas as análises em
termos de ​movimentos​, de vetores. É um período bem fraco, de reação. No entanto, a filosofia acreditava ter
acabado com o problema das origens. Não se tratava mais de partir nem de chegar. A questão era antes: o que se
passa ​entre? ​E é exatamente a mesma coisa para os movimentos físicos”

Acho que pode ser muito comum vivermos uma paralisia e alguns movimentos
realmente cessarem. Seja por fadiga ou seja por impossibilidade. Deleuze continua:

“​Os movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito tempo viveu-se baseado numa
concepção energética do movimento: há um ponto de apoio, ou então se é fonte de um movimento. Correr, lançar
um peso, etc: é esforço, resistência, com um ponto de origem, uma alavanca. Ora, hoje se vê que o movimento se
define cada vez menos a partir de um ponto de alavanca. Todos os novos esportes - surfe, windsurf, asa delta - são
do tipo: inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de
colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna
de ar ascendente, ‘chegar entre’ em vez de ser origem de um esforço“

Acho que muito da minha solidão desse momento foi escolhida. Não fazia mais terapia,
não fazia mais supervisão, faltava boa parte das reuniões de equipe e evitava as pessoas.
Cumpria meu trabalho e vivia a minha vida em outros lugares. Tenho essa mania de me
desligar das coisas ainda vivendo elas.
Ao mesmo tempo durante esses anos, de alguma forma reconstruí muitas coisas e
muitos caminhos. Retomei vários espaços que são meus. Retornei a vários cuidados que
mereço. E quando algumas coisas pareciam ir para um lado, me reencontrei com pessoas
queridas e com uma vontade de fazer e ser diferente. “Por que não basta dizer: os conceitos se
movem. É preciso ainda construir conceitos capazes de movimentos intelectuais” (Deleuze,
1992).

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“é preciso ‘limpar o terreno’ constantemente, livrá-lo do que recorta o mundo em


sujeito/objeto, vivo/inanimado, humano/animal, consciente/inconsciente. Só assim é possível
traçar as linhas de errância, estabelecer lugares. Da aranha interessa não só o tecer
incessante, sem finalidade (pois Deligny dúvida que a finalidade da teia seja agarrar a mosca),
mas a própria teia aracniana, isto é, a rede” (Pelbart, 2016).

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Termino dizendo que pra mim tem sido muito importante essa retomada junto com
vocês -- a partir de relações já estabelecidas renovadas e novas relações inauguradas. Cada
momento, cada discussão e principalmente cada atividade junto tem sido fundamental. Me
lembrei muito do texto do Deleuze: Michel Tournier e o mundo sem outrem -- acho que pode
ser uma leitura para fazermos juntos. Fecho aqui com mais uma aparição de Calvino.

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