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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Psicologia

Orientadora: Heliana Conde

Orientanda: Vanessa Matos de Sousa

Caminhando pela Clínica do


Acompanhamento Terapêutico: Quais as
possibilidades?

Outubro/2012
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Sumário

Introdução 3

Capítulo I: O que é Acompanhamento Terapêutico? 7

I.1: Um pouco de história... 7

I.2: Acompanhamento Terapêutico 10

Capítulo II: Acompanhamento Terapêutico em Residência Protegida 13

II.1: Um almoço 17

Capítulo III: Um pouco de diálogo... 20

Considerações Finais 30

Bibliografia 32
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INTRODUÇÃO:

Em um breve passeio pela história da loucura, é possível vislumbrar um deslocamento quanto


às práticas aplicáveis e aplicadas no campo da saúde mental. Discute-se, então, paradigmas normativos
diretamente ligados à loucura, de modo que seja constituído um lugar para esses sujeitos para além do
seio da sociedade dita normal, porém dentro de seus contornos físicos e ideológicos e ao alcance de
seu controle.
Com a instituição da Psiquiatria enquanto ciência e da loucura enquanto objeto de estudo,
constitui-se a ideia de cura e, portanto, de doença. Consequentemente, é construído um lugar de
tratamento e confinamento desses sujeitos desprovidos de razão, condenados à uma (des)razão
insuportável à sociedade, surgindo a estrutura asilar e os manicômios em substituição aos hospitais
gerais, onde toda sorte de marginalizados era depositado com o objetivo de privar a dinâmica social de
suas práticas subversivas.
Nesse panorama, após anos de práticas asilares, surge a Reforma Psiquiátrica inicialmente na
Europa e E.U.A. e, posteriormente, tais discussões chegam, ao Brasil com a pretensão de reestruturar
toda forma de organização das instituições de saúde. Dentre todas essas discussões e problematizações
no campo da saúde mental, em termos de políticas públicas e práticas clínicas possíveis, um dos
pontos de extrema relevância é o progresso que se pode alcançar quanto à produção de subjetividade e
à garantia de cidadania a esses sujeitos.
Principalmente no que tange o contexto histórico em que tais práticas são discutidas, começa a
surgir cada vez mais preeminentemente a necessidade de considerar o sócius enquanto pertencente, ou
melhor, parte fundamental na produção de um sujeito que não existe dissociado do mundo, isto é, que
só surge em relação, na relação.
Assim, delineia-se o Acompanhamento Terapêutico(A . T.) que, segundo Antonio
Lancetti(2009) “consiste em transitar pela cidade com pacientes psicóticos ou com alterações
psíquicas graves.”
Tal prática surge como alternativa às internações em hospitais psiquiátricos e, ainda, quando
os pacientes não se adaptam aos protocolos clínicos tradicionais, de modo que são estremecidas as
relações sociais em função de toda desestruturação e fragmentação da crise ou surto. Se a psicose traz
em si mesma a fragmentação do pensamento por parte do sujeito, o momento crítico do surto
desestrutura qualquer tipo de vínculo afetivo, nesse caso, a posição do sujeito em relação à sua família
e às políticas públicas vigentes.
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A questão que se coloca, então, é: caminho é esse, ao qual o Acompanhamento Terapêutico é


capaz de nos levar? E que “nós” é esse que se permite guiar por uma prática tão fluídica, deveras
processual e que sutilmente faz desviar de percursos previamente traçados? PROBLEMA
A experiência à qual me refiro não diz respeito à juízos de valor _ perder ou ganhar corpo_
mas de outra forma, que corpo é esse que surge despessoalizado, surge da fragmentação, uma
construção que emerge da derrocada de construtos social e culturalmente instituídos?
Sentir essa fragmentação é, a priori, de uma angústia indescritível. Porém, dispor-se a deixar
cair o véu da forma, da organização e simplesmente aguardar o que possa ou não surgir daí, é de uma
intensidade sem igual.
É fascinante entrar nesse “jogo de devires”, onde estar criança, louco, mulher, homossexual,
negro, tudo faz parte de um caminho outro, diverso do que a orientação ideológica capitalista institui,
impõe, e que em última análise, só se tem como alternativa aceitar.
Mas e o não aceitar, e a posição ou possibilidade de apreender o mundo de uma maneira outra,
sob uma lógica diversa daquela que pressupõe a compra de modelos prontos que não cabem, não se
ajustam, não são flexíveis o suficiente para ao menos considerar a hipótese da diferença, esses
questionamentos ajudam a compor a prática clínica referida ou, ao menos, garantem que se continue
pensando sobre a prática.
Essas são questões despertadas pelo caminho ainda acanhado do Acompanhamento
Terapêutico em minha vida, acanhado porque ainda iniciante, não sei se prematuro, mas acima de tudo
fascinante... principalmente se for considerada a rigidez de uma sociedade que se pretende liberal, mas
que a cada dia libera mais a capacidade de reprimir, de enquadrar, de controlar.
Se inicialmente tinha-se vigilância e punição marcadamente inscritas na sociedade, e a isso
restava ser vigiado ou punido salvando as devidas proporções, o que se pode observar na atualidade é
um controle voraz que de uma maneira muito mais sutil aplaca desejos, sufoca anseios, aprisiona
sujeitos.
É diante desse panorama que surge a pretensão de aprofundar o conhecimento acerca desta
prática tão peculiar que é o AT, deste acompanhar e ser acompanhado fazendo e sofrendo intervenção.
Essa é uma clínica outra que se mostra imediatamente, pensamento e ação que não se estancam ou se
separam, pelo contrário, se misturam, se atravessam e fazem com que desejos se atravessem e
possibilitem o emergir de realidades outras ... baseadas no grupo, no social e não no individual.
Desejos que se instauram e que de forma alguma são propriedade privada, do indivíduo ou do eu.
A questão que nesse momento se delineia é se a referência é à contaminação ou à contágio...
Energia boa que contagia ou desfragmentação que contamina? Juízos de valor que são a priori
definidos ou da ordem da relação, da transversalidade e dos atravessamentos que, ainda negados, se
confirmam?
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Uma novidade que desestabiliza, um novo que, para a psicose, desagrega ainda mais a
fragmentação. É esse sofrimento que intriga e instiga, chama, atrai, convida a um olhar mais
próximo... contato, imediato, ação. Não é possível desimplicar-se, não ser afetado por essa energia
deliciosamente destruidora, uma destruição rumo à construção (esquizo-revolucionária?) e, pior,
construção de que, do que, de quem?
O “eu” parece não existir enquanto figura emblemática da individualização, de modo que tudo
se torna coletivo, ou seja, da ordem do “sócius”: os segredos mais ocultos são naturalmente expostos,
desvelados, revelados... sem pedidos de licença, sem a menor cerimônia.
O que não puder aparecer, que não entre... máquina desejante, desejo maquínico que é sempre
despessoalizado e que na despessoalização fisga cada migalha de individual...
A hipótese que se pretende investigar é a de que o Acompanhamento Terapêutico traça
caminhos configurados pela produção de saúde, que de modo algum são previamente estabelecidos.
Não há modelos, pelo contrário, conta-se sempre com a probabilidade de que o impossível seja dado
através da experimentação . HIPÓTESE
Assim, a metodologia a ser adotada é a de uma revisão bibliográfica em busca de maiores
esclarecimentos acerca desta prática clínica denominada Acompanhamento Terapêutico, partindo de
bibliografias específicas do campo e de artigos publicados no meio acadêmico.
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Capítulo I: O QUE É ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO?

O acompanhamento terapêutico é uma prática recente no Brasil cronologicamente, de modo


que se faz necessária uma contextualização, a fim de conectar-se com o que vem sendo produzido no
campo da saúde mental. Essa produção tem se dado grandemente em torno das práticas clínicas e em
resposta à insuficiência dos protocolos clínicos tradicionais, como veremos.

I.I) Um pouco de História...

Desde o século XVIII, com o nascimento da Psiquiatria, o termo reforma já figura no cenário
da relação sociedade-loucura. Isso em decorrência do “gesto pineliano” de desacorrentar os loucos,
garantindo-lhes um tratamento (seja ele moral ou não) e a produção de saberes acerca da loucura,
instaurando a derrocada do Antigo Regime e com ele, da Grande Internação nos Hospitais Gerais.

Dessa forma, a ciência psiquiátrica inaugura um lugar para o louco envolvendo-o como objeto
de estudos e visando a produção de saberes, em contrariedade à lógica absolutista europeia, em que a
intenção era afastar para o mais longe possível os desviantes das normas- os anormais- do seio da
sociedade tradicional e pouco importando a ordem desses desvios, de modo que amontoavam-se
bêbados, sifilíticos, prostitutas, assassinos e inclusive, loucos.

Instaura-se, portanto, o modelo asilar e a própria loucura enquanto enfermidade capaz de


produzir sofrimento psíquico, dentre outros. Surge a noção de doente mental, os alienados e
inimputáveis passam a ser alvo de discussões específicas e se tem a preocupação de formar, construir,
reformular saberes que dêem conta dessa doença insuportável na relação social... esses alvos ganham o
centro do palco sob a tutela dos médicos, sob uma ótica disciplinadora, moral que seja capaz de
conhecê-los para dominá-los.

É só a partir do século XX que surge a crítica a esse modelo asilar, porém num primeiro
momento o que se questiona são característica puramente estruturais, da ordem dos equipamentos,
instrumentos e ferramentas usados no tratamento, surgindo de maneira basicamente higienista, em
denúncia às condições dos locais onde se verificava a tutela desses doentes mentais, que neste
momento ainda não são sujeitos, são apenas hospedeiros de uma “praga” que antes de individual, é
social, coloca diante da sociedade as mazelas que ela não suporta ver, com a qual ela não quer
interagir. Nesse contexto, questiona-se a quantidade de leitos nos Hospitais Gerais, as condições
higiênicas a que esses indivíduos são submetidos durante a internação e, principalmente o abandono
no qual se transforma a internação dada sua duração: de pacientes a moradores, a zumbis que
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transitam e se prendem ou são presos às instituições e ao que se tem enquanto instituído nessas
relações.

Em um momento seguinte, dá-se início ao questionamento acerca da insuficiência asilar


enquanto proposta de tratamento da doença mental. Segundo Fernando Tenório (2002), “ o processo
que denominamos reforma psiquiátrica brasileira data de pouco mais de vinte anos e tem como marca
distintiva e fundamental o reclame da cidadania ao louco. Segundo Fernando Tenório (2002), citando
Paulo Amarante (1995):

“Está sendo considerada Reforma Psiquiátrica o processo histórico


de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração
de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil, a
reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente a partir da conjuntura
da redemocratização, em fins da década de 1997, fundado não apenas na crítica conjuntural ao
sistema nacional de saúde mental, mas também, e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às
instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda esta mesma conjuntura de redemocratização.”
(Amarante,1995, p.91 in: Fernando Tenório _ A reforma psiquiátrica brasileira)

Nesse sentido, começa-se a discutir a desinstitucionalização dos pacientes dada a insuficiência


do asilo e tendo em vista a rigidez pragmática no que tange a compreensão e a apreensão da loucura
no Brasil. Isso porque a ênfase dada é à doença e o objetivo final, até então, é uma pressuposta cura,
contrariando, ou melhor, excluindo dessas práticas o contexto sócio-histórico. A redemocratização
incide justamente sobre esse aspecto: a exclusão do louco dos processos sociais, inclusive no quanto à
produção de subjetividade. Daí discorre que, se não há sujeito, não há produção, havendo por
conseqüência, apenas doença enquanto desvio da norma instituída.

Observa-se, portanto, que em se retirando o louco do confinamento asilar, é necessário


redimensionar o lugar e as práticas, a relação da própria sociedade com a loucura. No
Acompanhamento Terapêutico (AT), o lugar é o mundo e a sociedade está implicada no tratamento, na
funcionalidade do psicótico.

De acordo com a Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital Dia A CASA in: “A rua
como espaço clínico” (1991):

“No Brasil ( final da década de 60) essas ideias tomam corpo com a formação das primeiras
comunidades terapêuticas no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Uma das mais conhecidas no
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Rio é a clínica Vila Pinheiros onde assim como as experiências europeias, médicos e não médicos,
psis e não psis se debruçam na tentativa de aproximação cotidiana com a loucura. Nessas
comunidades o recurso de acompanhamento terapêutico começa a ser utilizado. Eram, como dizia
Cooper, ‘jovens sensíveis, frequentemente universitários (e frequentemente julgados pelos
funcionários como um tanto malucos...) os quais seriam capazes, sem ter que se preocupar com um
futuro na carreira de enfermagem, de se permitir a aproximação à experiência dos pacientes
desintegrados’. Esses jovens sensíveis que foram ganhando uma função destacada na Vila Pinheiros,
com a ditadura militar e o fim das comunidades terapêuticas se viram nas ruas... e começam a ser
procurados para atendimentos particulares indicados por terapeutas que preferiam esta alternativa à
internação psiquiátrica.”
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I.2) Acompanhamento Terapêutico (AT)

Partindo de uma contextualização histórica, em termos de reforma psiquiátrica brasileira, é


possível prosseguir quanto à conceituação da prática clínica em questão_ Acompanhamento
Terapêutico. Em “A rua como acompanhamento terapêutico: acompanhamento terapêutico”,
organizado pela equipe de acompanhantes terapêuticos do Hospital Dia A CASA em 1991, foi
possível visualizar nitidamente como essa prática foi delineada com o passar dos anos e em
decorrência de um novo olhar acerca do campo da saúde mental.

Na referida obra, há uma reunião de textos produzidos pelos acompanhantes terapêuticos,


numa tentativa de constituir material sobre o trabalho que vinham realizando no Hospital Dia A
CASA. Assim, logo no primeiro texto, foi possível reunir elementos de fundamental importância da
tentativa de conceituar essa prática clínica que se pretende estudar.

Tal prática tenta extravasar ou extrapolar o fechado das instituições totais e até mesmo dos
consultórios, rompendo com os protocolos clínicos tradicionais que remontam à insuficiência das
condutas asilares. O cuidado com o psicótico demonstra essa insuficiência, sua fragmentação exige
novas fórmulas, ou melhor, a dissolução de fórmulas prontas que devem se encaixar no sujeito, mas
que sujeito é esse? Essa última é uma questão que norteia o acompanhante terapêutico e acaba por
mover sua produção nos locais onde se torna, se faz a possibilidade de acompanhar. Na rua, pela rua,
atravessando os espaços, negociando prováveis parcerias é que se faz o acompanhamento, muito mais
do que o que é o AT, é possível descrever como se faz essa prática, que antes de mais nada se dá na
relação com o outro, relação afetiva capaz de produzir resultados interessantíssimos que, antes de
moldar o sujeito, pode aliviar seu sofrimento, dar passagem à sua angústia e trabalhar com ela sem
necessariamente calar-lhe o grito de socorro, pelo contrário, esse grito de socorro é material de
trabalho.

Acompanhar sem um lugar demarcado fisicamente aproxima acompanhante e acompanhado,


principalmente, como já referido, no caso da psicose. Não interessa se o delírio ou alucinação é de fato
verdade, longe disso, trabalha-se com o pressuposto de que tais fenômenos querem dizer de algo que
aflige o sujeito em questão, que na constituição de sua subjetividade, de alguma forma, esses
elementos se colocam e, além disso, na maneira como esse mesmo sujeito se relaciona com o sócius,
tais elementos novamente comparecem.

Retomando a idéia dos protocolos clínicos tradicionais, segundo Antonio Lancetti (2009) tanto
psicóticos e neuróticos graves quanto dependentes químicos em potencial não respondem, não se
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adaptam a tais protocolos dada a complexidade de seus quadros. Em sua experiência em Santos com
dependentes de crack, heroína e cocaína, na grande maioria moradores de rua, há relatos da não adesão
às clínicas de desintoxicação e às práticas de saúde vigentes. Por isso, Lancetti retoma o termo
peripatético utilizado por Aristóteles para definir suas aulas, dado em passeios, em caminhadas ao ar
livre, sem um lugar de continente. Assim, começa a desenvolver uma clínica peripatética que serve
também de ponto de aproximação quanto à conceituação de AT, no sentido de serem práticas que se
dão no entre das relações.

Para dar conta dessa tentativa de conceituação dessa prática clínica, é necessário recorrer à
diferentes estudiosos do referido tema, como José Fernando de Freitas (2003) in: “Acompanhamento
Terapêutico – A construção de uma estratégia clínica(2005)”:

“O paciente não é mais um diagnóstico a ser tratado. Não se acompanha uma CID. A
percepção das pequenas, mas importantes, dificuldades da rotina diária, em que se manifestam as
ausências de afeto e de cuidado da história de vida dessa pessoa. O acompanhante terapêutico utiliza
não só seu conhecimento teórico e prático, mas também a parte humana de seu ser. Um profissional
que não se esconde entre quatro paredes, deduzindo a realidade por trás da fala do cliente; ele se
encontra exatamente no momento das dificuldades, podendo ter uma visão muito mais ampla,
possibilitando atitudes terapêuticas ativas.

A relação entre o cliente e o acompanhante terapêutico é o passo inicial dessa trajetória de


integração. A presença física e emocional de um ser humano que o acolhe, da forma como ele
realmente é, podendo expressar-se a partir de seu ponto de vista, sem medo de julgamento e punição,
aprendendo a exercer seu direito de cidadania, o seu direito de ir e vir na relação com o A.T. para a
relação com o seu meio.”

Partindo de mais esse ponto de vista em relação ao A.T., é possível estabelecer um diálogo
ainda mais efetivo com essa nova proposta clínica, delineada não apenas partindo de uma ou outra
teoria, antes disso, partindo da relação efetiva entre acompanhante e acompanhado. Isso mesmo,
determinar o que é A.T. se torna uma tarefa praticamente impossível se o viés adotado for o de
formatos previamente estabelecidos, capazes de pressupor interpretações e descartando o que há de
mais relevante nesta prática: o humano. É, o humano... não um homem com características e
especificidades já dadas, pelo contrário, um homem que surge com o passar dos dias, dos momentos,
no acontecer de encontros. Esses encontros são de outra ordem que aquela que se tem em geral, com
horários e lugares marcados, são encontros no acontecimento, no próprio ato de acontecer. Isto é, uma
ida ao supermercado pode ser só uma saída, ou pode, inclusive, ser um ponto de encontro perfeito
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entre acompanhado, acompanhante e o mundo, o social, que ainda que à contra gosto, está sempre
sendo afetado pela loucura, ainda que seja no esforço de mantê-la longe, deixá-la fora de seu campo de
visão, mas nunca fora da vida.

Enfim, muitos são os esforços de determinação conceitual em torno do Acompanhamento


Terapêutico, porém, contrariando os preceitos normativos e normatizadores, não se trata de uma
clínica pomposamente elaborada, repleta de conceitos difíceis e complicados, construtos demasiado
rebuscados. Trata-se de uma simplicidade assustadora e, por isso mesmo, na maioria esmagadora das
vezes considerada menor, considerada no campo de práticas auxiliares, mas que acima de tudo, lida
com a simplicidade da vida, do cotidiano, lidando com o excedente, com a sobra de vida com a qual
não há o desejo de conviver. Isso porque trabalha com uma parte do humano que convoca muita dor,
que faz com que sejam revisitados lugares aos quais não se quer mais ter acesso, de outra maneira o
desejo age no sentido de cuidar sim, mas cuidar para deixar longe, cuidar pra afastar fantasmas, deletar
lembranças, diminuir contato e, porque não dizer, aplacar relações.
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Capítulo II: Acompanhamento Terapêutico em Residência Protegida

Às vezes tem-se a impressão de que uma experiência anterior nos prepara para tudo o que se
sucederá: engano! O estágio de um ano no Hospital Municipal Jurandyr Manfredine obviamente
possibilitou um contato com o inconsciente a céu aberto que é a loucura, mas está longe de ter
preparado ou pressuposto o que seria essa viagem pelo acompanhamento terapêutico.
A vivência na casa faz com que percursos sejam refeitos a todo instante, com que práticas
sejam revistas e, talvez o mais desconcertante, faz com que se esteja deparado consigo mesmo uma
quantidade inquietante de vezes em vinte e quatro horas. E talvez seja essa a tarefa mais difícil e
desafiante: aceitar a convocação feita pelos pacientes a lidar com questões próprias e só assim fazer
uma ou outra intervenção nesse meio que não é estático, mas que antes de tudo atravessa os corpos _
não é um meio no qual se está ou não inserido, mas que se insere em cada um sem que a ordem ou a
ideia moral de certo ou errado atue como limite visível e praticável.
É uma lógica de funcionamento peculiar, onde não cabe um copiar e colar prática alheias, já
dadas desde a chegada. É antes uma construção própria de um modo de agir e interagir com essa
dinâmica que não tem nada de a priori, um estar disposto a refazer, reler e apreender a paisagem que
se mostra a cada instante, sempre que seja convocado, e ainda mais quando não há convocação
alguma.
Ocorre uma miscelânea de sensações e percepções capazes de dar ou não o tom de cada
intervenção. É isso o que mais fascina! Há uma inconstância de formas , cores, cheiros e sons que se
misturam e se reconfiguram indicando o melhor caminho a ser seguido, desafiando o próprio corpo e a
mente a fim de que se alcance um devir louco com o qual deve se trabalhar incessantemente, chegando
por vezes à idéia de uma alucinação ou de estar vivendo um delírio propriamente dito, regido por essa
dinâmica de velocidade ímpar e que faz a distância do mundo real estar para além dos muros.
Isso mesmo, quando se ultrapassa o portão parece estar adentrando um mundo alternativo,
para além da realidade e onde a ordem e o tempo das coisas são peculiares, não que não haja a referida
ordem, mas ela existe de uma maneira outra que não a pré-estabelecida.
Há um grande atravessamento afetivo e muito efetivo, capaz de alterar completamente o clima
e as relações interpessoais nessa casa, que mais parece uma obra de arte, tamanha a quantidade de
impressões que provoca.
O contato com esse lugar de acompanhamento da loucura fez com que meus limites se
estendessem a fronteiras as quais não sei definir. Em princípio, o pavor de uma crise do Alexandre ou
do César me impulsionaram mais do que qualquer outra coisa: fui fazer jiu-jitsu. Naquele momento o
possível contato corporal me assustava mais do que qualquer outra forma de intervenção. Porém,
quando a primeira crise do Alex se impôs, rompendo a casa com um raio cortando o céu escuro, fui
capaz de compreender qual o meu papel naquele momento crítico, eu precisava ser uma certeza, ser
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um forte (e não forte) capaz de fazê-lo achar um caminho de volta. Caminho esse que não passa pela
noção de bom e mal, mas pela concretude com que a psicose lida em tempo integral, não se tratando,
portando de aprender uma técnica, mas de construir relação com cada um dos moradores e, a partir
daí, poder de fato intervir, mas não neles, de outra forma, na relação, sempre.
Aqui, justamente neste momento, convido Deleuze e Guattari para me ajudarem na caminhada
teórica, a partir da diferenciação entre trabalho e ação livre que fazem em Mil Platôs V:

“O trabalho é uma força motriz que se choca contra resistências, opera sobre o exterior, se consome
ou se dispende no seu efeito, e que deve ser renovado de um instante a outro. A ação livre também é
uma causa motora, mas que não tem resistências a vencer, só opera sobre o próprio corpo móvel, não
se consome no seu efeito e se prolonga entre dois instantes. Seja qual for sua medida ou grau, a
velocidade é relativa no primeiro caso, absoluta no segundo (ideia de um perpetuum mobile). O que
conta no trabalho é o ponto de aplicação de uma força resultante exercida pela fonte de ação sobre
um corpo considerado como ‘uno’ (gravidade), e o deslocamento relativo desse ponto de aplicação.
Na ação livre, o que conta é a maneira pela qual os elementos do corpo escapam à gravitação a fim
de ocupar de modo absoluto um espaço não pontuado. As armas e seu manejo parecem um modelo de
ação livre, da mesma maneira que as ferramentas parecem remeter a um modelo de trabalho. O
deslocamento linear, de um ponto a outro, constitui o movimento relativo da ferramenta, mas a
ocupação turbilhonar de um espaço constitui o movimento turbilhonar de um espaço constitui o
movimento absoluto da arma. Como se a arma fosse movente, auto movente, ao passo que a
ferramenta é movida.”
Esse diálogo viabiliza a clareza necessária no que diz respeito à configuração das intervenções
na referida residência. Trata-se, portanto, de utilizar esse fragmento de texto para exemplificar a
maneira como esse dispositivo clínico que é a casa delineia seu funcionamento, na tentativa de abolir
os “tem que”, dito de outra forma, expurgar as amarras instituídas, apregoadas pela cristalização das
relações sociais.
É preciso entender que estamos na casa, falando de singularidades enquanto aquilo que
garante multiplicidade à criação do comum, segundo Negri & Hardt( 2005 ). Entender a natureza
disso que acontece, mas que de forma nenhuma é prescrito em cada intervenção, que dorme, acorda,
lê, estuda, produz desejantemente e faz com que dentro desse mesmo dispositivo, não diferencia
moradores e terapeutas e cuidadores e administradores e supervisores. Uma ajuda aos referidos
autores, a partir do livro MULTIDÃO(2005):
“A carne da multidão é puro potencial, uma força informe de vida, e neste sentido um
elemento do ser social, constantemente voltado para a plenitude da vida. Dessa perspectiva
ontológica, a carne da multidão é uma força elementar que constantemente expande o ser social,
produzindo além de qualquer medida de valor político-econômico tradicional. Qualquer um pode
tentar capturar o vento, o mar a terra, mas eles sempre serão mais do que podemos apreender. Do
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ponto de vista da ordem e do controle políticos, assim, a carne elementar da multidão é


desesperadoramente fugidia, pois não pode ser inteiramente enfeixada nos órgãos hierárquicos do
corpo político.”
O que há são fluxos, segundo Deleuze e Guattari, desejantes constituídos no coletivo, desejo
de agenciamento e agenciamento de desejo.
E, por incrível que pareça, a partir daí muita coisa mudou em mim e na maneira de intervir na
casa: não sei bem como, mas achei uma maneira própria de agir e reagir às convocações. E aí sim vi
no que o jiu-jitsu pode me ajudar: superação. Antes de pensar, senti que poderia superar limites,
romper barreiras.
Por isso, acredito que não há como colar nesse “quadro-casa” práticas prontas, bem como
teorias fechadas, em si. Antes é preciso estar em construção de um modo de interagir com todo esse
dinamismo. E é o que hoje tento fazer: sentir a casa, cada um dos moradores e frequentadores. Sim,
porque acredito que uma afinação (e não afinidade) com os cuidadores é fundamental. É como fazer
um nós, forte e coeso, capaz de auxiliar no conjunto da obra, o que não impede a ocorrência de erros,
porém me deixa mais à vontade com eles e com uma tentativa real de cooperação.
As intensidades, durações, cada instante... no instante, acontecendo, vivendo, vivenciando...
tudo muito misturado, atravessado e repleto de afetos e afetações. Não viver isso que a cada momento
se apresenta de uma maneira outra, inversamente ocasional, e bizarramente relacional é abandonar
potências, possibilidades de estar e ser no mundo.
Confusão de sentimentos, sensações que se atropelam e atropelam o próprio vivido. E isso é
vida, é pulsar, é corpo, um corpo diferente, que não estaciona, mas aciona outras instâncias do
sensível, do possível... até mesmo do dizível... estranho... as palavras fogem, se modificam, alteram,
sofrem mutações, são metamorfoseadas dada a intensidade com que os afetos circulam e se articulam
com o mesmo isso que pulsa, uma repulsa à aceitação, à acomodação impossível diante de tanto
movimento. É isso o A.T.? Bem, se é ou se não é, verdade ou possibilidade, é como me chega, é como
me afeta, e injeta novas verdades a cada instante... protegido? Jamais... pelo contrário, totalmente
exposto! Não há proteção efetiva, não há como proteger-se de um outro que invade, que se mistura a
tal ponto que não se diferencia o eu do outro. É de extrema dificuldade falar disso que não é
conceitual, que não é pronto, mas que acontece no próprio ato de acontecer, que inverte papéis
ingenuamente estabelecidos, e onde de acompanhante se passa a acompanhado sem que se possa ao
menos piscar os olhos... que olhos? Não há visão com olhos, ou audição com o ouvido, há um corpo
que sente, que se coloca e é colocado “pra rolo”, no rolar dos instantes que de tão rápidos, se
eternizam...De que proteção estamos falando? Proteção do olhar do outro ou do outro olhar... ?
Residências protegidas de que e de quem? Dos limites, das barreiras, das censuras e dos
censores... do papai e da mamãe, dos choques de realidade devido às inúmeras realidades que
conversam ora numa boa, ora em forma de gritos, berros, ecos que ressoam e ecoam o quanto é
inoportuno para a social manter algo tão próprio e tão louco como só a loucura pode ser... todo esse
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movimento, esse não dar conta, esse “esquizoidar” entorpece os olhares impregnados de uma moral
tacanha que agride muito mais e que não suporta ver que tudo que uma crise pede é continente, e que
esse continente é a relação, os atravessamentos e agenciamentos possíveis e infalíveis diante da
intensidade do cuidado.
Como cuidar para não ser visto como transgressor das regras e dos bons costumes de calar a
loucura? Diversas vezes essa pergunta permeia a própria prática, dizendo de um cuidado com o olhar
repressor do outro, um alguém que não acolhe e que de outro modo, escolhe não acolher, se mantém
fora, demora... passa a vida sem se aproximar desse algo assustador que é o louco, que afeta sem
querer e que já está afetando. Esse louco terapeuta, receptor de uma energia que não só se desloca,
mas que coloca a todos numa incômoda e vexatória posição que independe do querer, o desejo não se
quer, ele simplesmente é. Não quer ser invadido, prefira não! Prefira não querer a querer se esconder
disso que contagia... que é sentido como magia, dada a falta de referência concreta. É inacreditável
onde se pode chegar com o acompanhamento terapêutico, onde os percursos nos levam, se fazendo e
deixando fazer relações cada vez mais inéditas e que, ao contrário do que é esperado, funciona. É bem
verdade que depende pra quem funciona... não funciona pra formatar, pra aprisionar, pra enjaular
vontades de potência, desejo de intensidade, capacidade de viver ainda que de um modo diferente,
onde ser diferente não é imoral, ilegal... é somente diferente, mas ainda é vida que pede passagem, que
pede viagem, música, acampamento, acompanhamento, companhia, ironia... pede vida e movimento
acima de tudo, porque entende, ou melhor, sente que parar é a morte, que a prisão é o fim, que o não
querer é muito pior do que querer outra coisa.
É, antes de tudo, de um cotidiano que estamos falando. De como conviver com o
esquizofrênico partindo de um lugar de movimento, ou melhor, no próprio movimento. Fala-se,
portando da maneira como não nos enclausuramos e enclausuramos a clientela do serviço que
prestamos num simulacro do louco institucionalizado, à reboque da medicalização excessiva que o
mantém fora, no fora das relações.
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II.1) Um almoço...

E, falando em cotidiano: um almoço se faz possível, ou a possibilidade de almoçar acaba


acontecendo? Talvez a impossibilidade fosse a causa principal... a força motriz da construção de uma
nova prática alimentar no interior de uma residência que se pretende terapêutica. Apropriar-se do
processo de prover a nutrição de um grupo unido pela psicose, com a liga do acompanhamento
terapêutico enquanto prática clínica. Brincar com o que já está instituído e delimitado, bagunçar o
instituído e imediatamente engessado das relações sociais.
Processo tão primário esse, o de se alimentar e alimentar os outros, mas que é imediatamente
atravessado por um emaranhado de afectos de ordens as mais variadas e que intensivamente faz da
comida uma outra coisa, ao invés de mero produto da hora de comer. Em construindo a possibilidade
de alimentação, apropria-se também dos efeitos prováveis dessa ação, sendo possível fazer diferente,
incluindo uma dose de prazer e satisfação no processo como um todo, e deslocando a ideia de um
entulhar de comida, do qual não se tem a menor noção de operacionalidade, não tem o porquê a não
ser pra atender à uma exigência que está pra além daquilo que os corpos realmente necessitam.
Implicar-se na alimentação desde o início, ainda no planejamento, parece ter um efeito incrível
dos corpos se preparando para serem nutridos de um ingrediente bastante peculiar que é o cuidado,
somado à outros fatores, como a parceria entre a equipe e os moradores, que faz o funcionamento ter
efeitos surpreendentes. Surpresa potente, ação livre que faz do almoço um bom encontro com a
comida, com o grupo e com o próprio corpo.
São corpos que necessitam de comida, mas que tem necessidade de vida, de potência, de
intensidade. Tal qual nos acrescenta Spinoza, tem esses corpos o Direito de Natureza de perseverarem
na existência, compondo inclusive com a comida bons encontros capazes de saciar, confortar, nutrir
seus vazios afetivos mais profundos. Vazio esse que é subjetivo, que vai além de um amontoado de
comida capaz de calá-lo, sem sequer escutar sua queixa. Esses corpos tem o direito de ter necessidade
de comer, de escolher o que precisam, de implicarem-se no processo, de compor o processo, ao invés
de somente repetir à despeito do próprio corpo e em concordância extrema com moral e cultura
vigentes. Nesse sentido, encontramos em Nietzsche (2006):

“Deus é uma resposta esbofeteada e grosseira, uma indelicadeza contra nós, os pensadores - no
fundo apenas uma proibição esbofeteada e grosseira contra nós: vós não deveis pensar!... Me
interessa de maneira bem diferente uma questão à qual a ‘’sorte da humanidade’ está ligada muito
mais intimamente do que a qualquer curiosidade teológica: a questão da nutrição. A gente pode
formulá-la da seguinte forma para suas próprias conveniências: ‘Como é que deves te alimentar a fim
de alcançares teu máximo em forças, em virtù, segundo o conceito renascentista, ou seja, em virtude
livre de moralina*?’” Nietzsche, in: Ecce Homo
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É realmente uma outra forma de nutrição, que vai além do que está moralmente constituído,
partindo do que é necessário ao corpo, para além daquilo que se deve ou não fazer:

“Mais algumas indicações à respeito da minha moral. Uma refeição vigorosa é mais fácil de ser
digerida do que uma refeição demasiado pequena. O fato de o estômago entrar em atividade como um
todo é o primeiro pressuposto de uma boa digestão. A gente tem de conhecer o tamanho de seu
estômago.” Nietzsche, in: Ecce Homo

Trata-se, portanto, de algo que supera o fisiológico e o social enquanto conceitos em si,
estanques, é de outra ordem sim, é uma potência intensiva da vida:

“Mas por que este desfile lúgubre de corpos costurados, vitrificados, catatonizados, aspirados, posto
que o Corpo sem Órgãos (CsO) é também pleno de alegria, de êxtase, de dança? Então, por que esses
exemplos? Por que é necessário passar por eles? Corpos esvaziados em lugar de plenos. Que
aconteceu? Você agiu com prudência necessária? Não digo sabedoria, mas prudência como dose,
como regra imanente à experimentação: injeções de prudência. Muitos são derrotados nesta batalha.
Será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos para ver, os pulmões para respirar, a boca para
engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Por que
não caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa
Simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna, Love,
Experimentação. Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a
anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos,
saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É
aí que tudo se decide.(...) O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente
o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações.”
Deleuze e Guattari, Mil platôs III (1947)

Somente para completar o que Deleuze e Guattari(1947) tem a dizer no mesmo texto já referido,
sobre corpo sem órgãos:
“ Um corpo sem órgãos é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades.
Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma cena, um lugar, nem mesmo um
suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar
intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é
espaço e nem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau-grau que
corresponde às intensidades produzidas. Ele é matéria intensa e não formada, não estratificada, a
matriz intensiva, a intensidade=0, mas nada há de negativo neste zero, não existem intensidades
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negativas nem contrárias. Matéria igual a energia. Produção do real como grandeza intensiva a
partir do zero. Por isso tratamos o CsO como o ovo pleno anterior à extensão do organismo e à
organização dos órgãos, antes da formação dos estratos, o ovo intenso que se define por eixos e
vetores, gradientes e limiares, tendências dinâmicas com mutação de energia, movimentos
cinemáticos com deslocamento de grupos, migrações, tudo isto independentemente das formas
acessórias, pois os órgão somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras.”
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Capítulo III: Um pouco de diálogo...


Que céu é esse.... outro que nem
De longe se parece aquele que deixamos pra trás
Naquela manhã de sábado!
Cronologicamente, pouco se passou...
Porém, tudo passou e nos atravessou
Durante aquele esquizo-camping,
Que não foi estratégico
Mas foi necessário...
Foi mudança, construção, processo
Ato e efeito, causa e conseqüência
Pensamento e ação, simultaneamente.
Que numa miscelânea inebriante
Se “re-misturam” a exemplo das águas restauradoras de Sana...
Do ar purificador do Sana,
Da Lua feiticeira e enfeitiçada
Da noite maravilhosa do Sana ...
Que Arraial do Sana é esse ?
Que Clínica é essa?
Sem lugar... no caminho
Sem tempo... em tempo!
Cura? ... Nunca!
Releitura e Reconfiguração
De um corpo outro que não
Aquele chapado numa forma
Numa “fôrma” acabada em si
Corpo mais do que nunca em movimento
Trazendo consigo
Devires novos, outros
Além daqueles que já se
Inscreviam e que somam,
Ou melhor... multiplicam!
Santo Sana, Saúde, Loucura,
Prazer, Satisfação, Inovação...
Santa Mudança,
Santo céu do Rio de Janeiro....
Capaz de proporcionar esse contraste,
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Permitindo a visualização ainda mais perfeita desse processo...


Ave processo!
Vanessa Matos

Era fevereiro de 2011. Nasce o desejo de uma viagem com toda a Casa de Jacarepaguá e
equipe. Por casa, entenda-se os então 6 moradores e por equipe entenda-se os 11 acompanhantes que
até então revezavam-se nesse projeto.
Todos os agenciamentos feitos, o desejo se faz realidade. Barracas e malas prontas, saímos
rumo ao Arraial do Sana, em Casimiro De Abreu, Rio de Janeiro. Não foram mais que três horas de
viagem, mas de alguma forma, abriu-se um portal para um universo outro de experimentações. Até ali,
não passava pela minha cabeça um acampamento com a loucura, um estreitamento tal que efetivasse a
noção de junto e do próprio Acompanhamento Terapêutico enquanto prática clínica.
Mesmo toda a literatura, o embasamento teórico, enfim, não me propiciaram a qualidade dessa
vivência. Como estar no coletivo com essa galera? Eram 6 pacientes psiquiátricos crônicos, era
impossível que pudessem interagir com o muro fora dos muros da referida residência, que protegiam a
todos nós. É... dessa impossibilidade nasceu um fantástico acontecimento, da ordem do impossível tal
qual Fábio Araújo(2007), citando Derrida(2004) em seu livro Um passeio esquizo pelo
acompanhamento terapêutico-dos especialismos à política da amizade:

“Quando o impossível se faz possível, o acontecimento tem lugar(possibilidade do impossível). Nisso


consiste mesmo, de modo irrefutável, a forma paradoxal do acontecimento: se um acontecimento á
apenas possível, no sentido clássico da palavra, se ele se inscreve em condições de possibilidade, se
outra coisa não faz senão explicar, desvelar, revelar, realizar o que já é possível, então não é mais um
acontecimento. Para que um acontecimento tenha lugar, para que seja possível, é preciso que seja,
como acontecimento, como invenção, a vinda do impossível. Eis aí uma pobre evidência, uma
evidência que nada mais é do que evidente. É ela que nunca terá deixado de me guiar, entre o possível
e o impossível. É ela que terá me levado tantas vezes a falar de condições de impossibilidade.”

Montagem das barracas, caminhadas, trilhas, almoço, lanche, jantar, dormir. Tudo
absurdamente inimaginável, mas ali, acontecendo.
Ainda hoje é possível observar as marcas deixadas, forjadas, esculpidas pela viagem a Sana:
outro corpo no corpo, novos movimentos em movimento.
Foi um marco em termos de produção clínica, trabalho propriamente dito. Ver no coletivo o
que já era visto na Residência Terapêutica – vida – é possível vida, viver na loucura. Mesmo que esta
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seja vista ainda aprisionada, tutelada, “contida” na sociedade, seja nos Hospitais Psiquiátricos, CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial), Residências Protegidas, sob as amarras do acolhimento e da
vigilância.
A quem proteger? De quê? Por quê? Questões pertinentes...
Toda saída é uma crise... De quem?
Os loucos devem ser protegidos do social ou a sociedade deve ser protegida da loucura?
Tais questionamentos vêm à tona após esse um ano de trabalho com acompanhamento
Terapêutico (A.T.), ou melhor, durante esse mesmo um ano de vivência tão próxima: experimentar
comer, dormir, morar, viver e conviver com a loucura e com tudo aquilo que ela convoca em mim e
nos outros. Todo acontecimento atravessa e conversa comigo no meu corpo... Corpos como meio para
a relação, para o próprio acontecimento. O ser já não é, tão pouco está, tudo se faz fazendo, acontece
acontecendo, supera o que foi dado como certo e o que é possível... bem, provavelmente já é outra
coisa.
Parece mera confusão, mas é construção de realidade produzida desejantemente e não
reproduzida pelas formas já existentes. Seguir com a produção em série da lógica Capitalista de querer
o mesmo de novo, e repetidas vezes e para inovar, querer repetir o que insistiu-se como novo, é
adequar-se aos modelos tão veementemente apregoados, é recair no adoecimento e na paralisia
edipianos de uma sociedade duramente construída a partir de arquétipos enrijecidos de um papai,
Mamãe e filhinh@ extremamente cristalizados. E todo o mundo responde a esta lógica, ainda que o
desejo já aponte para outro lado, para outra coisa que não seja estagnação moral e conceitual.
Como rota de fuga deste modelo fracassado está a utilização dos espaços públicos para uma
terapêutica diferenciada, que expande os limites do setting terapêutico transformando o analisado,
paciente, em companheiro, acompanhado. Ao Invés de dirigir ou comandar, ir junto e seguir o fluxo
do desejo que se desenha no caminho, a caminho, no percurso que se faz outro a cada novo instante. E
no meio desse caminho, permitir a si e ao outro apenas sentir, permitir-se afectar pelo mundo numa
velocidade diferente da vida cotidiana que imprime um ritmo mais louco que a própria loucura.

Segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari(2010), refere-se, portanto, à produção das máquinas
desejantes enquanto produção de produção, o produto não é final e, se é o fim é só para iniciar a
produção de outra coisa. A operacionalidade dessa máquina é dada por acoplamentos, conexões,
fluxos e paradas, fluxos e cortes que dão o tom de cada nota na canção de engrenagens múltiplas.
Não se espera sentir fome para comer, não se espera o sono chegar para dormir, não se
aguarda o desejo... tem que transar! Tem que comer (ou não!) e tem que dormir, nem que seja sob
efeito de drogas. Que droga de vida! É uma ditadura do “tem que”, são tantas regras de conduta e
condução que só o que resta é englobar categoricamente a existência de um Relógio Biológico às
avessas.
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“Isso funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso
respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode. Mas que erro ter dito o isso. Há tão somente
máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos,
suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a
outra corta. O seio é uma máquina que produz leite, e a boca, uma máquina de comer, uma máquina
anal, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (crise de asma). É assim que todos somos
‘bricoleurs’; cada um com as suas pequenas máquinas. Uma máquina-órgão para uma máquina-
energia, sempre fluxos e cortes. O presidente Schreber tem os raios do céu no cu. Ânus solar. E
estejam certos de que isso funciona. O presidente Schreber sente algo, produz algo, e é capaz de fazer
teoria disso. Algo se produz: efeitos de máquinas e não metáforas.”
Deleuze & Guattari (2010) in: “O Anti-édipo”
E no meio disso tudo, a loucura! Dotada de uma estranheza ímpar, que assusta a todos e
amedronta outros tantos. É realmente de causar estranheza mundos tão distantes serem tocados, ou
melhor, se tocarem pela tão falada realidade, mas esse é o trabalho, todo investimento é seguir nessa
direção, a possibilidade de coexistência e coabitação desses mundos pela relação, na relação.
A cada um desses encontros, a expectativa é enxergar a possibilidade ou não de fazer
diferente, e que se entenda essa diferença não como revolução constante, guerra declarada, mas como
proposta de novos caminhos que levem à saúde e não ao padecimento.
Nesse sentido, e ainda no diálogo com Deleuze e Guattari, o passeio do esquizofrênico
configura-se como melhor modelo para exemplificar tais máquinas que o neurótico (“deitado num
divã”), por se tratar de uma relação com o fora, com um não- eu que permite o funcionamento dessas
mesmas máquinas, permitindo também a passagem de fluxos, capazes até de serem vistos, quase que
da ordem de uma alucinação. Explico: esse inconsciente à céu aberto é capaz de produzir ainda mais,
ou melhor, deixar-se ver em plena produção, é desejo maquínico que atua nas redes através de
atravessamentos, rompendo com estruturas sociais e institucionais as mais diversas.
Faz-se necessário uma pequena pausa, a fim de melhor explicar tais atravessamentos, sem com
isso abandonar os mesmos interlocutores. Essa pausa ou desaceleração faz ponte com a questão dos
afectos e dos sentimentos, e para tanto é possível uma troca com o “Tratado de nomadologia”, também
de Deleuze e Guattari (1995). No referido texto, é traçado um paralelo entre a máquina de guerra e o
aparelho de Estado, onde estão representados movimentos de ruptura e conservação, respectivamente.
Em uma breve diferenciação de tais movimentos, é possível relacionar a máquina de guerra com a
questão dos fluxos, semelhantemente aos movimentos fluidos da água, à turbilhonar, à maneira de um
turbilhão, contando com o devir e as heterogeneidades, próprias deste modo de ciência que tem como
característica principal o nomadismo, a desterritorialização, que fazem relação direta com a loucura,
tal qual é trabalhada no Acompanhamento Terapêutico. Em contrapartida, o aparelho de Estado diz de
uma conservação extrema, passando por movimentos de extrema rigidez, controle acerca das
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estruturas institucionais e individuais, direcionando à homogeneização inclusive dos processos de


subjetivação. Em Hardt & Negri(2005):
“Em outras palavras, a subjetividade é produzida através da cooperação e da comunicação, e
por sua vez essa subjetividade produzida vem a produzir novas formas de cooperação e comunicação,
que por sua vez produzem nova subjetividade, e assim por diante. Nessa espiral, cada movimento
sucessivo da produção de subjetividade para a produção de comum é uma inovação que resulta numa
realidade mais rica. Talvez devamos identificar nesse processo de metamorfose e constituição a
formação do corpo da multidão, um tipo fundamentalmente novo de corpo, um corpo comum, um
corpo democrático. Seja como for, ainda que a multidão forme um corpo, continuará sempre e
necessariamente a ser uma composição plural, e nunca se tornará um todo unitário dividido por
órgãos hierárquicos.”
Não se trata, portanto, de um guerrear desenfreado, de imposições e embates perpétuos. Pelo
contrário, é apropriar-se do que é potente, do que é potência. Reconhecimento e não espiritualização,
conscientização acerca do que se quer ou não. Isso porque esse último caminho leva a uma lógica
excludente, em que a possibilidade única é a negação, onde somente é possível uma coisa ou outra. De
outra forma, a direção apontada é a da afirmação de uma determinada coisa, e outra, tendo como
resultado o aumento de uma potência tal que se busque o processo como produto final.
Esse produto final é contestável, é verdade, porque em se falando de processos o que há são
“meios”, “entre” uma coisa e outra.
O que de fato é importante salientar é o deslocamento de uma postura unicamente negativa
para uma flexibilização afirmativa, no que tange a afirmação da potência incluindo a de positivamente
negar. Desse modo, afirmar uma potência é apropriar-se dela, ainda que que isso signifique dizer não!
Mas afirmando e exercendo intensivamente isso que não são conjecturas, postulados... conceitos.
É aí que se pode observar a possibilidade de fugir do padecimento, indo ao encontro de saúde,
produzindo tais processos. Há uma ilusão que estar saudável é estar bem, e isso traz muita confusão,
somado à tal confusão está a noção de normal e patológico . Isso porque o fato de ser acometido por
uma enfermidade não é o que, necessariamente, faz de alguém adoecido ou não. Esse adoecimento diz
muito mais de uma postura diante da vida.
A busca e a produção de bons encontros é exemplo claro disto. A composição possível e o
consequente aumento de potência evidenciam a relevância de tais eventos. A alegria que emerge dos
referidos eventos atravessa os corpos e intensivamente os transforma: é uma espécie de contágio!
Alegria contagiante, extremamente vibrátil, capaz de “aleijar” estruturas maciçamente cristalizadas.
Assim, algo novo surge e, nem sempre, ou melhor, quase nunca é sabido o “porque”. Não se tem
tempo para racionalizar, o pensamento já é e somente é possível analisar o que já foi, agora como uma
lembrança.
Corpos tocam e são tocados, e, tal qual instrumentos musicais, ecoam, ressoam e rompem o
ambiente físico seja ele de qual natureza for... o EU e VOCÊ, a pessoalização é a mais pura ilusão, é
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transformado num equívoco grosseiro. É só desejo, e ele não tem dono... é quase como uma
convergência de pontos, que enfim apontam para uma explosão de alegria e “BOOM”; fez-se uma
festa, do nada, no instante, há tempo, em tempo e, no momento seguinte, satisfação, alegria, missão
cumprida, trabalho feito! Parece muito, mas foi somente a descrição de uma tarde, de uma chegada
para em seguida fazer outra coisa, mas que afetivamente altera e caracteriza um bom encontro, a
felicidade de corpos que, apropriados das respectivas potências, se reúnem e fazem o impossível
acontecer.
É como se fosse uma rede de pesca... uma pesca de arrasto, que junta tudo, puxa, repuxa,
embola, e alguém sempre rebola, e é forçado a se haver com aquilo que tenta frustradamente sublimar,
interiorizar, conter. Não adianta, a única obrigação que se tem é “botar o corpo pra rolo”! Um corpo
que rola e desenrola questões antigas e novas, verdades cristalizadas, construídas ao longo da história
da civilização do EU cristianizado desde a mais tenra infância. “Bota pra rolo”... ou então, corre, foge,
se esquiva, sai dessa ciranda louca que se desenha outra a cada micro-segundo, nanotecnologia
desejante maquinicamente alimentada. Loucura, sociedade, eu, você, aí vamos nós... rumo ao
movimento, processo, relação, acontecer de novo e novamente e novamente e repetidas vezes... gozar!
E esse gozo é estranho, causa estranheza porque, justamente, como último aspecto possa ser
que seja individual, a última esfera que ele percorre é a da produção de individualidade. Ele é, ou
melhor, pode produzir uma visita ao indivíduo adoecido que se achava sujeito deliberante
(deliberador) de suas ações. Um sujeito dotado do poder de escolha, de julgamento, cônscio de si e do
mundo e que, em última análise, se culpa pelas mazelas e pelo sofrimento da humanidade nele e do
humano do mundo.
Sujeito desapropriado de si e que acredita ter no mundo e no outro sua maquete pessoal,
particular, seu próprio sistema de crenças que funciona a seu “bel prazer” e que é castigado à própria
revelia. Sujeito inteiro, global, em si, que vê no outro objetos da mesma forma inteiros, completos e
que por isso mesmo sofrem de um mal terrível: a falta. Tem sempre algo faltando, este sujeito está
sempre devendo e o universo é a medida dessa cobrança.
Com isso, pessoalmente, o que há são desencontros, decomposições, despotencializações,
enfim, sofrimento e desprazer. É uma tristeza sem limites, é uma incompletude eterna, é parada no
fluxo do desejo que acredita-se único, descontextualizado, que vê no social um aspecto que lhe é
posterior, que pode ou não interferir numa produção a priori: a subjetividade.
É justamente esse dado apriorístico que no A.T. contesta-se inúmeras vezes, porque não dizer
na prática clínica delineada (investigada, questionada). Isso porque observa-se a necessidade de
renascimento e reconstrução desse EU, dessa subjetividade, a todo instante e isso é concreto,
principalmente no diálogo com a loucura, essa subjetividade vai se fazendo na relação, não está
pronta, não é dada, não chega como um presente ou uma dádiva divina, e está pronta para ser usada.
Essa subjetividade passa necessariamente pelo corpo, ela é intensivamente arquitetada e forjada a cada
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atravessamento, por cada afeto que chega e se vai e que, se preciso for, é esvaziado para dar lugar a
outra coisa e a outro corpo, que chega preparado para em pouco tempo sofrer de múltiplas mutações.
Esse movimento maquínico, que se dá num ritmo frenético é saúde: garante senão a
possibilidade de cura para o autismo e a esquizofrenia, ao menos a opção de não cristalizá-los nos
asilos e manicômios. É a probabilidade do novo que assim como o inconsciente a céu aberto
freudiano, garante ao louco o exercício de sua loucura para além dos muros e cárceres. É ainda a
possibilidade de enlouquecer com a loucura, de burlar essas regras morais tão aprisionadoras e
doutrinárias. É fugir do pragmático, do burocrático, e permitir-se brincar, sentir com a inocência e a
ingenuidade de uma criança e o descomprometimento do louco. É livrar-se do peso das obrigações que
tem que ser cumpridas e dos protocolos que tem que ser seguidos à risca. É planar e, porque não, voar
com as asas do devir, sob a força motriz da imanência.
Examinar-se e não ver a si mesmo, não como algo total, inteiramente pronto, completo, em
si... angustiante? Intenso! Intensivo! Acontecendo, isto é, em processo, no processo, sendo.
É essa a clínica buscada: não uma clínica da memória, mas da construção, do movimento, da
busca incessante por saúde, clínica das linhas de fuga e do esquecimento. Lembrança? Só se for do
futuro, por apropriação de potência. Apropriação e não conscientização do que se pode, e isso que se
pode não é dúvida, é simplesmente... certeza.
Certeza esta que não é garantia do mesmo, mas ao contrário, garante que o impossível possa
acontecer sempre de uma maneira outra. E não se trata com isso, de abandonar o passado, mas de
atualizá-lo e não ressentí-lo, é fazer diferente ao invés de sempre repetir.
Fazer do tempo um aliado para a vida, não vivendo do passado, mas indo adiante podendo
contar com o vivido, com o experimentado para ultrapassar as essências, o essencialmente
espiritualizado.
Esse mesmo tempo que é visto com sofrimento, pesar, lamento... Esse tempo parado, estático,
em si, estagnado. Tempo como produtor de subjetividades estanques pode ser vivido como produto
que se faz produzindo cada vez mais realidades, que fujam de ideais preestabelecidos. Fugir das
prisões, dos invólucros, das cápsulas, das couraças... das carapaças e/para viver.
Tempo, subjetividade, clínica, elementos entrelaçados no acontecimento. E, em acontecendo,
há inevitavelmente um certo grau de mistura. Corpos, sensações, afetos, nesse mixer que é a vida, e é
necessário, portanto, agenciar, negociar, entender. Saber por quais linhas, cartografias, mapas, se
esquadrinha o desejo, porque estar ao sabor do acaso é um dos mais doces e traiçoeiros engodos.
Em falando em cartografias, é possível mais uma vez conversar com Deleuze e Gattari (1997)
agora em Crítica e Clínica:
“Uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da psicanálise.
Esta última vincula profundamente o inconsciente á memória; é uma concepção memorial,
comemorativa ou monumental, que incide sobre pessoas e objetos, sendo os meios apenas terrenos
capazes de conservá-los, identificá-los, autentificá-los. Desse ponto de vista, a superposição das
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camadas é necessariamente atravessada por uma flecha que vai de cima para baixo, e trata-se sempre
de afundar-se. Os mapas, ao contrário, se superpõem de tal maneira que cada um encontra no
seguinte um remanejamento, em vez de encontrar nos precedentes uma origem: de um mapa a outro,
não se trata de busca de uma origem, mas de uma avaliação dos deslocamentos. Cada mapa é uma
redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras, que necessariamente vai de baixo
para cima. Não é só uma inversão de sentido, mas uma diferença de natureza: o inconsciente já não
lida com pessoas e objetos, mas com trajetos e devires; já não é inconsciente de comemoração, porém
de mobilização, cujos objetos, mais do que permanecerem afundados na terra, levantam vôo”.
Não se trata de previsões ou oráculos, mas de contar com o vivido de modo que haja maior
probabilidade de composições alegres.
Compor com o ambiente e disso fazer brotar alegrias faz do cotidiano algo menos enfadonho,
chato, mordaz, como só o dia-a-dia é capaz de ser. Inventar novas estratégias não diz de travar
batalhas esdrúxulas com o mundo a todo instante, mas poder contar com cada ínfimo elemento que,
em conexão com infinitas outras possibilidades, simplesmente produz a vida, a alegria de viver.
Composição que é música e dança, passos trocados no espetáculo terapêutico. O espaço
público surpreende dado o leque de possibilidades que se abre diante dos olhares atentos às sutilezas
dos instantes. No A.T., papéis são trocados e intervenções são feitas nas mais surpreendentes direções.
Tal qual na referida dança, de condutor passa-se a conduzido e vice-versa. Principalmente no que
tange a Casa de Jacarepaguá, enquanto dispositivo clínico, não é possível tal diferenciação, a clínica
acontece para todos, independente de qual posição ocupe. E assim permanece, quando um passeio
descomprometido, ingênuo até, pode movimentar acompanhante e acompanhado rumo a lugares de
descarga e esvaziamento de tensões das mais variadas ordens. Seja como for, fato é que as
intervenções não podem ser ditas rígidas ou unidirecionadas, pelo contrário, contam justamente com a
multiplicidade e com a diferença para acontecer.
Energias que confluem e são dissipadas, ou não, se não houver caminho, um maremoto de
afetos abre um novo, uma avalanche da referida energia se faz para dar conta disso que incomoda e
atola, que para as engrenagens da máquina corpo e o coloca novamente a pulsar... milhares de batidas,
rebatidas, frequências, fluxos, ritmos e paradas, ainda que para respirar, comer e descansar, continuam
sendo movimento.
O que tem que ser não acontece, o trabalho prescrito não funciona, só dá pra viver... se tem
que ser com música, as notas não chegam, o tom não é encontrado, a harmonia se faz impossível, não
há. Se tem que ser com dança, o corpo trava... não ata nem desata.
Porém, um colo acolhedor, um abraço apertado, um beijo estalado (do nada!), fazem terapeuta
e paciente um só bloco de afetos que ultrapassam os limites estipulados por uma prática clínica ou
outra. É gente se relacionando! E nessa relação, vale amor, carinho, ternura, tesão, raiva, nojo,
teimosia, irritação, vale corpo-a-corpo, vale ringue, jato d’água, caldo, massagem. Vale contato, tato,
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olfato, paladar. Vale sentir tudo e ter todos os sentidos aguçados pelo prazer e pela dor de cada relação
e cada vínculo estabelecido.
É uma experiência ímpar ver-se emaranhado com outros corpos e depois ver no seu outra
coisa. Preocupações, tensões, o cotidiano chama, apressa, acelera, mas intensivamente a vida é outra...
Deixar passar, e ver que no minuto seguinte a raiva passou, foi acolhida, sentida, virou sono tranquilo.
E que vontade é essa... de estar junto? E que junto é esse, que mistura? De fato, só o que há é
relação! E somente é possível esse junto na relação com alguma coisa e essa relação passa pelo corpo,
necessariamente.
O que complica bastante é o fato de não se tratar de relações dicotômicas ou dialéticas, mas de
redes de atravessamentos. Nesse caso, corpos são meios pelos quais tais afetos chegam no mundo e,
ainda, o contrário bem que pode acontecer: uma tempestade chegar no corpo. Isto é, naturalmente...
vida.
É essa vida que convoca incessante e incansavelmente e que, em não se estando inteiro, adia-
se, agencia, negocia, produz uma relação outra capaz de viabilizar o junto e o separado, o colado e o
misturado.
Muito curiosa a maneira como essas relações se diferenciam quanto à sua natureza. Em tese,
são múltiplas e isso faz com que cada dezena de milhares de entrecruzamentos produza mais e mais
relações. Encruzilhadas de afetos, confusão de sentimentos, que contrariamente ao que se possa supor,
não necessitam ser esclarecidos, de outra forma, é preciso que sejam sentidos, vividos,
experimentados. Não é do campo do sabido, do conhecido, mas é intensivo.
Uma maratona que toma... conta, cuidado, contato! Corpos sendo malhados, acessados e
acionados para uma outra coisa que não o código cotidiano da negação: tem corpo aqui! Mas onde?
Como? Por que?
Uma caminhada, simples, até pesada... mas sem respiração, não rola, enrola células, processos,
organismos que não flui, só para até que... aprende-se a respirar! Processo primitivo, instintivo, já se
respira ao nascer, não é isso? Não, não é isso. Ao longo do tempo o corpo vai ganhando marcas que
são como vícios, cárceres, presídios. Esse mesmo corpo aprende a dar respostas como que
condicionadas, automaticamente programadas para dar erro. Fluxos são incansavelmente cortados e
moldados sob uma forma ou outra justamente para paralisar, adoecer. Esse adoecimento é inscrito da
mesma forma no corpo e no social: a vida é ágil, veloz, e o corpo, automático. Não se está atento ao
que ambos dizem, gritam, clamam: socorro! Preciso de ar!
Assim como o trânsito enlouquecedor das megalópoles, o funcionamento (ou
“desfuncinamento”) das vísceras. Não dá pra desconectar, o separado não existe e nisso está a
confusão, ou, pelo menos, é aí que ela se instaura. Ilusão! É pura ilusão, ingenuidade até, supor que
esses processos ocorram isoladamente. Por isso tão cara a experimentação do corpo e da consciência
dele no coletivo, na experimentação do Acompanhamento na cidade:.
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“Quanto ao trajeto dos A.T’s, não posso deixar de ficar emocionado: extrapolam muros, ganham as
ruas com seus pacientes; produzem um campo para a elaboração de corpo teórico que suporte sua
clínica e lhes dê força em sua identidade de A.T.’s; estabelecem encontros e também desencontros
com a coletividade, com a cidade; enfim, ganham espaço na troca com outros diferentes A.T.’s, que já
se formaram nesse universo de trabalho com a saúde mental.” Nelson Carrozzo, diretor do
Departamento de A.T.’s de A CASA IN: Crise e cidade: Acompanhamento Terapêutico
Se ao subir não se sabia respirar, ao descer não se sabia andar: pavor, horror, pânico! Como é
possível? O que é isso, que trava o corpo, segura, trava os músculos e sobrecarrega os ossos? Que
tensão é essa que dói tanto? Que marcas foram essas que condicionaram dessa forma tão pesada?
Massificações, estratificações, inflexibilizações, cristalizações estruturais, paradas.
A vida pede movimento e, em resposta, para-se cada vez um pouco mais. O que se estranha,
porém, é o quanto não se acompanha ou se apropria dessas paradas e tampouco de seu contrário, o
fluxo.
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Considerações finais:

Algumas perguntas, mesmo depois de todo esse trajeto, ainda ecoam: que movimento será este
que me toma, me arrebata e rebate, empurra, soca, chuta...? Que movimentação será esta, capaz de
entorpecer e fazer gargalhar? Música, ritmo, passos marcados, marca-passos, micro passos que dão o
tom exato de cada dança na ciranda da saúde.

Produção maquínica de corpos? Corpos que se produzem e são esculpidos por um desejo que é
de todos e, em todos reverbera, ressoa, ecoa, entoando cânticos alegres e tristes, tristeza de sorrir e
alegria de chorar.

Cantiga de roda, bala, bombom, paçoca, doces lembranças de um velha infância que se
eterniza na atualização... invenção de novos possíveis no jogo de impossibilidades que é a vida...
Acontecimento! Clínica como hoje, que se utiliza da repetição para fazer de novo outra coisa! Arroubo
de afectos que infeccionam, cortam, dilaceram velhas estruturas, cristais de sentimentos endurecidos
por captura... Mágica (Deleuze e Guattari, in: Tratado de Nomadologia)!

Abolir, fervilhar, crescer, mudar e, de novo, novamente, simplesmente acompanhar e, em


acompanhando, colocar-se como meio, no entre, em meio a tantos outros corpos que
compõem/decompõem a canção do hoje, a poesia do amanhã. Agora? Já passou! Já era, já foi...
embora, “em boa hora: tudo junto, misturado, encharcado por esse fluido vagabundo que é o desejo.

Instituído versus instituinte, constituído versus constituinte, adversários eternos na máquina de


guerra que brinca de revirar o aparelho de Estado. Ludicamente, lindamente, graciosamente bailando
nos salões nobres, nos esconderijos e nos guetos. Brincar de faz de contas, delirar, mentir, inventar,
intervir. Colocar e recolocar analisadores e, em última análise, fazer da clínica um campo de forças
onde o rizoma (Deleuze e Guattari, MIL PLATÔS V) arbitra e o agenciamento é a regra do jogo.
Objetivo? Viver!

Metodologia? Entre, na relação... Utilizando dos mais variados dispositivos para estar junto,
para direcionar-se à procura de bons encontros capazes de compor cenários outros que os habituais
engessamentos dessa lógica de mercado apregoada pela ideologia capitalista.

Dentre as possibilidades dessa Clínica Nômade, a adoção de trajetos em detrimento dos


caminhos endurecidos pelas instituições. De desterritorialização em desterritorialização, aproveitando
a potência dos afectos, sua capacidade de atravessar corpos tecendo tramas as mais surpreendentes...
Agenciando, desejando, acompanhando os relevos do coletivo, comumente definido como reunião de
individualidades, por um arcabouço ideológico que faz do individualismo sua matéria prima principal
para irradiar conceitos e fórmulas prontas para serem vestidas, pouco importando se não cabem e aqui
principalmente, quando o manequim é a loucura: signo do que está fora.
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Foi essa a clínica que descrevemos do decurso deste texto e é sobre ela que embasamos nosso
trabalho, nossa prática, nossa visão acerca da psicose. É com essa lente, sob esse ângulo que
conseguimos, ou melhor, temos conseguido um contato cada vez mais próxima da psicose, na
tentativa de aproxima-la também do coletivo que tanto se assusta e estranha, mas que de outra forma,
se diverte com nossos passeio tanto quanto nós. É dessa potência do junto, do comum, das
singularidades que olhamos cada intervenção, e colhemos frutos alegres por atuarmos como
mediadores, facilitadores na árdua tarefa de lidar com todo sofrimento atribuído à psicose anos a fio.
Não há promessas, nem cura, há experimentação. Essa é nossa principal estratégia de ação:
experimentar. Expurgamos qualquer possibilidade de neutralidade justamente porque fazemos do
social nosso campo de atuação. Estamos sempre implicados e implicantes, misturados por nossas
vísceras com cada caso que nos chega. Vibramos com cada peculiaridade, cada estereotipia nos alegra
porque fazemos dela uma maneira nova de agregar e compor as cenas cotidianas rumo à saúde. Porque
se não há como não sofrer, que soframos bem!

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