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CLÍNICA EM TRÂNSITO:

ACOMPANHAMENTOS TERAPÊUTICOS

Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Instituto A CASA

2018

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SUMÁRIO

Apresentação:
Tomás Bonomi, Cristiana Kehdi Gerab, Márcia Fares

Prefácio:
Leonel Braga Neto

Cap1. (Des)Caminhos do AT.


Adriana Canepa

Cap2. Esforço de (A)tração: considerações sobre o tratar.


Márcia Fares

Cap3. Volta ao mundo no acompanhamento terapêutico: psicose, recusa e


ancestralidade.
Cristiana Kehdi Gerab

Cap 4. Journey: acompanhando no deserto virtual.


Rafael Muscalu Raicher

Cap 5. Psicopatologias graves e o virtual: alienação ou laço social.


Tomás Bonomi

Cap 6. Nascer para dentro.


Juliano Pessanha

Cap 7. A loucura entra na escola: o que acompanhamos? sobre a tessitura


de esferas imunológicas
Marcos Salém Vasconcelos

Cap 8. (Re) invenções do Acompanhamento Terapêutico no campo


escolar
Juliana Vidigal; Paula Buainain Albano; Taísa Martinelli

Cap 9. O Camper
Marcus Góes

Cap10. Formação do AT: Uma forma-ação que não é com-forma.


Clarissa Metzger

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Cap11. Na manha do gato: relato e discussão de caso clínico de AT.
Juliana Scharff

Cap.12 A Mania de G.
Rogéria Neubauer

Cap.13 Com-pulsão e Repetição: reivindicações rítmicas no AT.


Rodrigo Veinert

Cap 14. Adolescentes em serviços de acolhimento: transição entre o


dentro e o fora
João Vítor Verani e Mahyra Costivelli

Cap15. Acompanhamento terapêutico no envelhecimento: envelhe-ser ou


esque-ser, eis a questão.
Maíra Humberto Peixeiro e Natália Alves Barbieri

Cap 16. A potência clínica e política do Acompanhamento Terapêutico


na rede pública de atenção à saúde mental
Débora Margarete Marinho

Cap 17. Entrevista com Maurício Porto e Kleber Duarte Barreto


Equipe de AT Instituto A Casa

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APRESENTAÇÃO

Cristiana Gerab, Márcia Fares, Tomás Bonomi

Este livro reúne testemunhos clínicos e questionamentos vivos acerca do


trabalho do Acompanhamento Terapêutico. Retratar o trabalho da equipe de ATs do
instituto é uma das muitas finalidades que este livro pode ter. Os relatos crus da
clínica convidam o leitor a viver passo a passo as aventuras que esta prática traz.
Seguimos uma tradição (iniciada em 1991) de publicações pioneiras e de
qualidade no campo do Acompanhamento Terapêutico. O quarto livro da equipe de
ATs do instituto A Casa foi produzido após um hiato de 12 anos sem publicações. Ao
nosso ver, tanto o campo quanto a técnica do A.T foram ampliados consideravelmente
durante essa época. Se a rua era o espaço clínico por excelência da prática do A.T no
fim do século passado e começo do atual, hoje, o alargamento do escopo do A.T
engendra novos desafios e nos coloca a pensar sobre diferentes formas de acompanhar
- não que a rua e a cidade tenham perdido sua importância, apenas ganham nova
dimensão nesses tempos.
Não haveria como não falar sobre as transformações históricas que convocam
a clinica do A.T para uma constante reflexão e recolocação de sua pratica. Seguimos a
serviço de escutar a loucura, mas quais as loucuras de hoje? Como aparecem? A que
demandas estão tentando escapar – já que a loucura, como a concebemos, trata-se de
uma forma de escape de um imperativo cultural.
Estar lançado na vida de alguém é a frase que melhor define o
Acompanhamento terapêutico, prática do encontro por excelência.. Os autores aqui
discorrem sobre como acompanhar idosos com demências e pouquíssima perspectiva
e tempo de vida; sobre acompanhar alcoolistas; sobre acompanhar crianças em
situações de inclusão escolar; sobre acompanhar adolescentes na transição entre a
instituição e a rua, ou entre a casa e a rua, sobre sujeitos completamente imersos no
campo virtual; ou mesmo sobre acompanhar pacientes psicóticos graves que há
pouquíssimo tempo estariam confinados em hospitais psiquiátricos.
Este trabalho coletivo, produção autoral da equipe de ATs do instituto A Casa,
também conta com textos escritos por parceiros convidados que, de alguma forma,

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contribuíram com a nossa clínica, seja através de aulas, supervisões, conversas ou
leituras. 
Nossa vontade é a de criar um livro que se proponha a pensar as diversas
psicopatologias a partir das afetações dos acompanhantes, e assim construir e
problematizar manejos transferenciais e direções de tratamento. Também debater a
diversidade e expansão do campo do AT, que vem aumentando consideravelmente.
Abarcar essa vontade em 17 capítulos pareceu-nos tentar dar corpo a uma vivacidade
clínica que não pode ser contida. Esperamos que as palavras nos ajudem a transcender
qualquer formula, qualquer tentativa de formatação do discurso e pensamento sobre o
AT – e nos levem além.

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(DES)CAMINHOS DO AT
Adriana Canepa

Se o acompanhamento terapêutico, hoje, me convoca a escrever, não é no


sentido de encorpar sua abundante teorização clínica, mas sim, atrofiar sua
estruturação teórica, que ao meu ver, é contrária à sua natureza. A cada tentativa de
apreensão conceitual do acompanhamento terapêutico, sinto-lhe escapar, matéria
fugidia a escorrer pelos conceitos. A fim de reaver o indomável que aí se inscreve,
escreverei, não pela sua captura, mas em prol de sua alforria. Não pretendo aqui,
anarquizar o saber clínico, tampouco invalidar sua valia. Pretendo apenas situá-lo em
outro lugar, e afastá-lo, em nossa discussão, do encontro com a loucura.
E se hoje isto me convoca, é por estar inteiramente submersa na
institucionalização teórica desta prática. É por circular cotidianamente pelo clube do
saber, e descontente, deparar-me com as produções incessantes de seus associados.
Transferência, Corpo, Desejo, Simbólico, Delírio, Real, Vínculo, Linguagem,
Colagem, Fragmentação, são alguns exemplares dos emblemas aí instituídos.
Sustentados por uma densa pirataria conceitual, os acompanhantes legalizam-se e
legitimam a sua prática. Contrabandistas legalizados, importam, dos grandes corpos
teóricos utilizados na psicologia, as ferramentas conceituais que lhe parecem
adequadas. Psicanálise, fenomenologia e behaviorismo são alguns dos sistemas
teóricos, que hoje tutelam esta prática, num novo formato de relacionamento com a
loucura. Vale lembrar que, sem a devida competência, não discuto aqui a valia em si
de tais teorias, mas sim, a magnética ligação entre elas e a prática do
acompanhamento terapêutico.
E aqui, abrirei um parênteses mnêmico relembrando a origem do
acompanhamento terapêutico. Retomar, não os eventos que o precederam, mas sim, o
desconforto que o fez surgir. Sem me ater nesta ou naquela corrente da anti-
psiquiatria, lembrarei Laing e Cooper, seus precursores, bem como Oury e Basaglia,
apenas pelo incômodo que parece tê-los animado. Incômodo este, que se hoje me
desanima, anima-me, neste momento, a escrever o que aqui se inscreve.
Aterei-me brevemente na natureza de meu desconforto. Traçarei um paralelo
imaginário, entre o que hoje me (des)anima, e o que, na década de 50, parece ter

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(des)animado nossos precursores. A despeito das particularidades de épocas, há uma
semelhança, que ainda hoje nos aproxima de nosso passado. Se lá, a loucura inicia seu
processo de libertação, hoje ela pede mais, e suplica em nós, a continuidade de tal
início. E se situo a loucura num lugar ativo de sujeito, não é pela posição que ainda
hoje ocupa. Trata-se apenas de uma pressão, um empuxo exterior na direção de sua
emancipação. Emancipação aqui refere-se, não a uma autonomia da loucura em
relação ao seu avesso, mas sim, uma dissolução de tais fronteiras na relação com o
que hoje, é o seu oposto. E se insisto, também forçadamente, na dicotomia
loucura/normalidade, é por sentir em mim a arcaica cisão entre ambas condições. É
por se inscrever, no crachá de minha atividade profissional, a necessária divisão que
aí se estabelece. Não há acompanhamento terapêutico sem a separação entre
normalidade e loucura, sem a supremacia do primeiro sobre o segundo.
Com isto, creio ter me aproximado, ainda mais, do incômodo que me
incomoda. Vale retirar de minha frente, a prevista e equivocada reação, quanto a uma
certa apologia da loucura. Empatia a parte, não estou aqui, glorificando tal fenômeno.
Mas, falarei disto mais tarde, pois se falo em loucura, falo do caos, e sobre este, sobre
o atual exílio do caótico, quero poder me dedicar.
E se pude, agora, me aproximar de meu incômodo, é por ele se situar
justamente na cratera aberta em tal separação. Cratera esta, que se a modernidade, a
proto-psiquiatria e o conseqüente desdobramento da medicalização da loucura insistiu
em abrir, a psicanálise e a anti-psiquiatria começaram a aterrar. A psicanálise, na
arqueologia do inconsciente, institui ao delírio um lugar de verdade, um lugar de
produção subjetiva que, ao invés de ser calado, merece ser escutado. Uma grande
revolução na direção do tratamento, que pela proto-psiquiatria de Pinel e Tuke,
focava-se na correção moral, posto que os excessos comportamentais e alucinatórios
decorriam da desmedida passional e da imoralidade mental. O que antes eram desvios
e (ou) “lesoes do intelecto e da vontade”, tornam-se, para Freud, narrativas legitimas
do sujeito do inconsciente, ou, do inconsciente do sujeito.
A psiquiatria, a despeito da psicanalise, caminha para a fisiologia e torna-se
medicamentosa: desloca da moral para o orgânico a causa das enfermidades mentais.
O tratamento deixa de ser corretivo e moral para atuar na disfunção química e
fisiológica do corpo - seu objetivo é a remissão dos delírios e sintomas alucinatórios.
A anti-psiquiatria, em oposição a isto, como o próprio nome já diz, vem questionar a
soberania psiquiátrica e a qualidade da abordagem aí instituída. Abordagem

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nosográfica, cuja relação com a loucura restringe-se, pela enumeração dos sintomas, a
identificar o diagnóstico e seu respectivo tratamento medicamentoso. Loucura no
lugar de doença, paciente no lugar de doente, e nada além disto.
É desta estreiteza relacional que surge a anti-psiquiatria. A fim de alargar os
horizontes, propõe, não uma nova teoria, mas sim, utiliza-se de teorias já
estabelecidas para pensar novas formas no tratamento da loucura. Pensar a loucura,
não como fenômeno individual, mas sim como produto social de uma política
relacional. Cada qual a seu modo e com suas particularidades teóricas, há aí, nas anti-
psiquiatrias, o elemento comum que as agrega num único movimento. Há o elemento
do desconforto, natureza inquieta que espreita, pelas grades do instituído, novos
caminhos a serem percorridos.
E é justamente aí, no elemento da inquietude, que me encontro com nossos
precursores. Na necessidade, que em mim se impõe, de estabelecer um outro tipo de
encontro com a loucura. Lá, o algoz era a psiquiatria com sua abordagem parcial e
patologizante. Aqui, eu diria não haver algoz, mas sim, uma certa urgência de
arrebentar o paradigma do tratamento. É por querer algo além do tratar, que hoje sou
posta a escrever.
E talvez se inicie aqui, o texto propriamente dito. Se inicie aquilo que preciso
dizer, que preciso partilhar, com aqueles que a isto se dispuserem. Pois não são todos,
e isto eu já pude perceber, que partilham comigo a inquietude que me inquieta. Pois a
inquietude que me inquieta necessariamente abala a estrutura de nossa profissão. E se
insisto no termo “profissão”, para a prática alternativa do acompanhamento
terapêutico, é por ver aí uma tendência afirmativa deste movimento, originariamente
subversivo. É por perceber uma certa vaidade orgulhosa em prover-lhe de teorizações
e inserções no campo conceitual. O acompanhamento terapêutico, hoje, está no ápice
de sua carreira, de seu alpinismo profissional em busca de reconhecimento. E é
justamente aí, neste cume profano da visibilidade, que meus olhos, ofuscados pela
claridade, se fecham para não se cegarem.
Pois aquilo que a muitos envaidece, a mim, me entristece. Não comemoro os
novos livros, textos, congressos, associações ou cursos sobre o acompanhamento
terapêutico. Não celebro a disseminação epidêmica desta prática, e a despeito de
minha tristeza, sinto-me inteiramente responsável por aquilo que me entristece. Sinto-
me parte, não tão ativa, mas ao menos passiva, desta coletividade em busca de
legitimação. E se algo me entristece na expansão do acompanhamento terapêutico,

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não é o benefício que os acompanhados podem ter, mas o prejuízo de sua auto-
instituição.
Pois sua auto-instituição passa, necessariamente, pela sua positivação
enquanto saber. Passa pelo equivocado processo de filiação teórica, ainda que em
diferentes teorias, na auto-confecção de um conhecimento próprio. É preciso se
apresentar, e para tal, constitui-se, ainda que arbitrariamente, uma identidade teórico-
profissional. Quantas e quantas vezes, não escutamos, nos bastidores de nossa
atuação, a fundamental questão sobre a especificidade da clínica do acompanhamento
terapêutico. Quantas e quantas vezes não se desenvolve, pelas mais variadas teorias,
sofisticados raciocínios sobre a diferenciação entre a análise tradicional e o
acompanhamento terapêutico. Quantos e quantos conceitos não foram pirateados para
responder a uma pergunta, que ao meu ver, não deveria ser vasculhada. Não
deveríamos delimitar o nosso campo, pois o nosso campo é filho da abertura, do
rompimento, da urgência de libertação. Quanto mais insistimos em fechá-lo, mais
distantes ficamos de sua verdade originária, do afeto que o trouxe ao mundo.
Pois o afeto que o trouxe ao mundo foi um afeto claustrofóbico, um afeto
sufocado pelas paredes da Instituição. Instituição esta que, nas suas origens, era
representada pela psiquiatria, e hoje, décadas depois, pela própria institucionalização
do acompanhamento terapêutico. Ou seja, o acompanhamento terapêutico, cuja
origem remonta ao processo libertador da anti-psiquiatria, se vê hoje aprisionado na
sua auto-instituição. Se vê enredado em sua auto-determinação, distanciando-se com
isto, do encontro com a loucura.
E quando digo “distanciando-se do encontro com a loucura”, não nego a boa
intenção presente em tais produções. Não nego que, muitas vezes, as teorizações
sobre o at visam à compreensão libertadora da loucura numa ponte com o social.
Visam a tal da inclusão, buscando através da clínica, a maior circulação da loucura
pelo circuito cultural. Não nego nada disto, e reconheço no acompanhamento
terapêutico um dispositivo benéfico para aqueles que dele se utilizam. A questão que
a mim se coloca, e que aqui eu coloco, é se não existem outras formas de encontro
com a loucura. Se nós, até então terapeutas, podemos explodir esta estrutura num
novo contato com este fenômeno.
E talvez aqui, se dê um novo início de texto, um novo pedaço que preciso
partilhar. Pois este texto nasce da mesma claustrofobia que deu á luz ao
acompanhamento terapêutico. Nasce de um certo desencanto com as formas

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instituídas, de um certo desespero com uma possível paralisia. Um medo de que a
história pare aqui, e sem sair do mesmo círculo, dê voltas e mais voltas adornando o já
inscrito. Teorize e teorize, sem escapar das teorias. Trate e trate, sem escapar dos
tratamentos.
Não acredito nisto, e vislumbro, nas tangentes que se configuram, um novo
desdobramento para a nossa história. Vislumbro, pela busca cada vez mais freqüente
por outros saberes, o deslocamento da loucura para um lugar menos doente.
Geografia, história, arte, filosofia, entre outros, já circulam por nosso clube
reformando sua legislação. Não é apenas da tutela do tratar o encontro com a loucura.
Não é mais apenas do ministério da saúde, mas também da cultura, as políticas
referentes à saúde mental.
Talvez estejamos num momento transitório, numa destas épocas históricas que
o futuro elege para indicar uma passagem. Não sei... Mas sei que sinto em mim o
rasgo desta passagem, a quebra de um mesmo em busca de sua diferenciação. E sinto-
o, das mais variadas formas, mas sobretudo, pelo profundo desconforto com o lugar
que hoje ocupo. Desconforto com o lugar de terapeuta, daquela que, por algum
motivo a mim desconhecido, detém algum saber sobre a loucura. Mas o que sinto é
justamente o contrário, pois sinto na loucura o anúncio do que não mais conseguimos
viver.
E se digo “do que não mais conseguimos viver”, não digo de algo restrito ao
presente, mas sim, fruto de um processo histórico iniciado em Platão, e retomado na
modernidade. E não pretendo aqui, tratar da complexa constituição desta época
histórico- filosófica. Sem possuir tal competência, contento-me em partilhar os
efeitos nocivos de tal constituição. E se digo “efeitos nocivos”, falo, não por
referências bibliográficas, mas por uma espécie de impregnação cotidiana que sinto
em meu existir. Como se a vida não pudesse mais viver, sinto-a capturada numa
estrutura historicamente arquitetada. Uma camisa de força existencial parece isolar a
vida da totalidade que ela pode e deve ter.
E talvez não seja em vão, descrever as minúcias desta sensação. Descrever o
incômodo, que se hoje me faz escrever, é para procurar o que não mais consigo ver.
Para tentar dissolver a camada isolante que, desde Sócrates, e depois com Descartes,
vem nos apartando do que nos é original. Pois é daqui, do interior a vácuo desta
camada, que uma espécie de dor me põe a falar. E a dor que me põe a falar é um
vestígio arqueológico, indício remoto do que busco reaver. Longe de querer sedá-la,

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me ponho a escutá-la como um sinal de emergência, um pedido de urgência pela vida
que se extingue. Pois a dor é a antítese do torpor, uma espécie de reação ao Doril
existencial que dopou nossa condição.
E o Doril existencial que dopou a nossa condição foi prescrito pelo Guru
Sócrates, e posteriormente, pelo Dr. Descartes. E se a dor sumiu, junto a ela, o
homem, no que lhe há de mais humano, também sumiu. Pois é Sócrates quem inicia o
massacre do trágico e da irracionalidade que em nós habita. É ali que se funda a
virtude da racionalidade, na associação do Belo ao conhecimento. Seu “conhece a ti
mesmo”e “só sei que nada sei”, nos inaugura no compulsivo movimento histórico da
razão. Pois, desde então, com o longo pit stop medieval, saímos babando atrás da
verdadeira essência platônica das coisas e do mundo. Mas isto foi só o começo. Pois,
se Descartes, com a dualidade corpo / alma, inaugura a física, a mecânica e as
ciências positivistas, junto a este legado, ele sepulta a complexidade que nos permeia.
Ao instituir o Eu enquanto mera substância pensante, apartado daquilo que o anima,
ele inaugura a faxina existencial que ainda hoje se efetiva. Pois o Eu que Descartes
nos oferece é o presente típico de um obssessivo, um eu higienizado e esterilizado
daquilo que o desestabiliza. Partícula pensante, tornamo-nos um átomo indivisível de
razão.
E é por esta, entre outras razões, que vejo na dor um indício da vida. Pois em
mim, diferente do cartesianismo, o eu pensante nasce no solo orgânico dos afetos.
Fruto natural, nasce nas intempéries de um fluxo vital, de um fluxo afetivo que não se
separa do movimento racional. Não há em mim a cisão cartesiana, e ao meu ver, tal
integração compreende a totalidade da experiência humana.E se digo tudo isto, não é
a fim de defender ou fazer apologia ao sofrimento. Ao contrário, busco apenas
recuperar a vida na intensidade de seu encantamento.
Mas a vida, na intensidade de seu encantamento, é incompatível com o
movimento cartesiano de fazer ciência. E se falo em ciência, não me refiro a algo
específico, mas a produção indiscriminada de saberes interventivos sobre a vida na
terra. Pois bem... A ciência, esta produção incessante de saberes, é fruto de um anseio
bem intensionado na preservação, manutenção e melhoria das formas vitais. Seu
desdobramento, no entanto, só é possível diante da anulação dos movimentos vitais.
Um grande paradoxo, já que a vida, ao se converter em objeto de intervenção
científica, deixa de ser viva no que carrega de natural. A vida abordada pela ciência
não é mais viva, mas sim, um simulacro desencantado e artificial.

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E novamente digo que ciência, aqui, não são apenas os clones, os pepinos
transgênicos ou os beiços-silicones. Ultrapassando as aberrações, ciência aqui, é toda
decisão voluntária na produção de um saber. Todo movimento do pensamento que se
enraíza, não na instabilidade de uma tensão vital, mas no fundamento fixo de nossa
massa pensante. Todo pensamento que surge, não por forças que se impõem, mas pela
tão bem quista “força de vontade”. E é esta “força de vontade” que produz, sem as
forças que se impõem, os inúmeros textos-congressos e textos- publicações que
burocratizam a natureza livre do pensar. E esta modalidade burocratizada da ciência,
nasce então, de um lugar altamente imunizado, um berço esterilizado e apartado da
vida afetiva. Uma ciência frágil, pois uma ciência que, desnecessária e alheia ao seu
autor, é facilmente descartada por seu leitor.
E este tipo de produção revela a decadência de nossa espécie. Tornamo-nos
uma espécie amputada, autistas afetivos, programados para pensar e despreparados
para sentir. Sem aliar o pensamento com o que a ele escapa, tornamo-nos frágeis e
fóbicos ao elemento impensável. Isolado de nossos afetos, nosso pensamento atrofiou
e desaprendeu o genuíno pensar. Uma espécie de emburrecimento histórico nos
contaminou enquanto espécie e nos fragilizou diante da totalidade caótica que nos
constitui em vida.
E se insisto na qualidade caótica de nossas afetações, é por elas escaparem a
qualquer rito de domesticação. É por serem refratárias às nossas intervenções, e se
imporem diante de nós, independente de nossas concessões. Não há, na real vida
afetiva, o elemento anterior que decide pelo sentir. O sentir se impõe e contamina a
totalidade subjetiva, desestabilizando a fundação do átomo pensante. Não há
pensamento que impeça o fluxo afetivo, e este tipo de onipotência expulsou o homem
de sua própria essência. E é este homem que, estrangeiro em si mesmo, cria e se recria
a partir da psicanálise. Pois o homem extraviado, é o homem sem familiaridade, é o
homem do susto e estranhado. É preciso uma certa arqueologia, uma genealogia de
auto- resgate e reconhecimento. Para acabar com o susto do estranhamento, há que se
legitimar o homem em seu primitivo e original elemento. Há que restaurar sua
estrutura dilacerada, devolvendo-lhe a totalidade historicamente retirada.
E se falo em psicanálise, penso, não em determinado corpo teórico, mas numa
espécie de sintoma a revelar nosso extravio. Foi preciso criarmos uma estratégia de
salvação, e se a psicanálise nos conduz ao que é nosso, outras estratégias caminham
em sentido oposto. Pois se a psicanálise nos diz: “veja, sinta e não se assuste”, há

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quem diga não haver o que ver, o que sentir e o que temer. E, infelizmente, o homem
atual é uma espécie covarde e despreparada para a vida em sua tensa integralidade. É
por isto que adere, sem resistência, a toda promessa de garantia, a todo artifício de
camuflar o curto prazo de nossas vidas. É por isto que a estética botox caminha
triunfante ao lado da psiquiatria, e o exército branco da medicina situou a morte como
rival da vida. Pois não há mais espaço para a finitude no homem atual. E se falo em
finitude, falo, não da morte que põe fim a vida, mas da presença do fim que a vitaliza.
Da presença do extremo que abre a vida em sua inesgotável infinitude. Mas o
homem, por não suportar os abalos de sua condição, se recria numa estática e
inabalável configuração. E não há, nesta nova ficção, a presença integrada de nossas
caóticas afetações.
E era a isto que me referia, quando mencionei o exílio do caótico no mundo
atual. Não um caótico ideológico e anárquico, mas da necessária espontaneidade que
constitui a vida. Espontaneidade que se auto-determina independente de nossas
determinações. E se hoje não sabemos mais acolhê-lo, reconheço na loucura a
presença desta ausência.
Antípoda de qualquer racionalidade, a loucura, pelo a menos a mim,
despotencializa meu próprio pensar. Não me é possível, diante do louco, a faculdade
de raciocinar. Como estrangeira em pátria distante, desconheço e sou suscetível, aos
seus riscos e encantos. País de referência única, não me permite o turismo ou a visita
dirigida. Apenas me conduz, de forma a mim incompreensível, aos sítios mais
inusitados de seu existir. Numa espécie de trilha – cega, sou levada por atalhos que se
desdobram magicamente frente ao meu olhar. E isto é algo da ordem do miraculoso,
do inaudito, do inédito. E tudo que nos é inaugural, é também terrível e assustador.
Nos coloca, sem proteção, frente a insistente presença do enigma, do inusitado e
imprevisível. E, para mim, tão mais atraente quanto mais intacta puder ficar. Sinto um
apelo, e um chamado, que me convidam a uma espécie de inocência pré-socrática.
Poder seguir com a loucura sem minhas próprias referências. Poder acompanhá-la
sem que ela precise me acompanhar. Sem que o meu pensamento sobre ela seja os
passos a lhe orientar. Os passos históricos de minha razão não deveriam conduzi-la.
Das correntes ao medicamento, da internação ao Ate, é a loucura nos acompanhando,
nos seguindo, caminhando atrás de nós, pela trilha que trilhamos. Uma trilha, sem
dúvida, que se abre e se ramifica em novos horizontes humanos e existenciais. Mas

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uma trilha, ainda, aberta e determinada por nós. Seria viável algum deslocamento?
Alguma alternativa em que saíssemos da frente para ficarmos, também, ao lado?
Isto não significa abandono do já realizado. Significa, apenas, uma nova
possibilidade para estar perto da loucura. Possibilidade esta, que não é incompatível
com o que já está constituído. Ao contrário, que poderia lhe somar, acrescer,
ampliando assim, o restrito universo de nossos pacientes. Pois a loucura, por melhor
que esteja sendo tratada, ainda é apenas tratada. Por mais longe que tenha ido o nosso
pensamento clínico, é ainda um pensamento clínico. E o acompanhamento
terapêutico, como alcance máximo deste limite, já esbarrou em seu próprio limite.
Pelo menos, para mim, enquanto acompanhante, ele se esgotou em seu discurso. E se
um por vir, ainda incipiente, pudesse se anunciar? E se algo, que extravazasse a
ordem do tratar, pudesse também se despontar?
Tenho consciência de que isto é algo pessoal e pouco expressivo para ser
considerado. Portanto, pouco expressivo, talvez, para alguma mudança. Mas, se isto
se deu em mim, à revelia de minha vontade, porque não imaginar alguma
ressonância? Por ora, são somente questões, que obviamente, não posso responder.
Apenas me legitimo na inquietação afetiva de nossos precurssores e as acolho como
possíveis. Sem querer encerrá-las, me contento em deixá-las aqui, escutá-las, e
sempre que possível, partilhá-las com alguém.

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ESFORÇO DE (A)TRAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRATAR

Márcia Fares

A minha vida a mais


verdadeira é irreconhecível,
extremamente interior e não
tem uma só palavra que a
signifique. Meu coração se
esvaziou de todo desejo e
reduz-se ao próprio último ou
primeiro pulsar. A dor de
dentes que perpassa esta
história deu uma fisgada
funda em plena boca nossa.1

Não pretendo, com este texto, teorizar a respeito do tratamento das psicoses,
nem mesmo sobre a proposição do acompanhamento terapêutico. Também não almejo
dissertar a respeito do já tão conhecido e bem explorado questionamento sobre essa
clínica que fazemos ser uma função ou uma profissão. Em vez disso, quero propor um
retorno ao tempo em que quase nada sabíamos a respeito desta clínica para depositar
uma interrogação sobre o termo tratamento.
Ao pesquisar sua etimologia2, encontra-se que a palavra tratamento se origina
no latim tratare, que significa lidar, administrar, manejar. Sua raiz também dá origem
ao verbo trahere, que significa arrastar, puxar, trazer.
Em especial, a relação com o verbo trahere e sua tradução me suscita a
necessidade de uma pausa. Há algo no significado desta palavra que nomeia com certa
clareza o que acredito fazer, em muitos momentos, na clínica do acompanhamento
terapêutico. Depois de acompanhar muitas crises, sucumbir a outras tantas e ajudar a
conter algumas, percebo que o que fiz em vários desses momentos foi exatamente
isso: puxar, arrastar, trazer. Vejo-me, com alguma frequência, munida desse esforço
de tração3 ao tentar trazer o acompanhado para fora do quarto, para longe da casa,
sugerindo novos lugares de saída ou insistindo em determinados elementos do

1
Clarice Lispector, A hora da estrela, 1984, p.17.
2
Gramática.net.br, 2018.
3
Permito-me a licença para associar foneticamente trahere à palavra tração.

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tratamento (como a medicação, por exemplo). Pensando nos efeitos desse esforço,
acredito que sua definição pela física pode nos ajudar a pensar a respeito do gesto.

O esforço de tração causa uma reorganização na estrutura molecular da


peça movimentando os átomos a fim de se agruparem o máximo possível
até um certo limite. Isso ocorre devido ao deslocamento de moléculas que
se alojam nas “imperfeições” causadas no momento da solidificação. Estas
“imperfeições” são chamadas de contorno de grão e são melhor estudadas
na ciência dos materiais.4

Seria esse esforço de tração, assim como acontece na física, capaz de produzir
alguma reorganização que, neste caso, é psíquica? Na ciência, já vimos que o esforço
de tração é capaz de produzir um rearranjo estrutural podendo até mesmo preencher
algumas lacunas formadas a partir de um estado de “endurecimento” das moléculas.
Transpondo esta lógica científica e seus resultados para o esforço de tração enredado
na clínica e que é tão constituinte do desejo dos ates, questiono: é possível falar em
ética quando o desejo do acompanhante se utiliza do esforço de tração no encontro
com o acompanhado? Até onde é possível leva-lo(s)5 ou, retornando à linguagem
“psi”, até onde é possível ser sujeito na transferência com um outro psicótico? Qual a
potência – constitutiva ou destrutiva - que pode conter uma oferta mais incisiva (ou
invasiva?) a alguém que se encontra impedido de seguir?
A partir de um grande incômodo que só teve início através da prática do
acompanhamento terapêutico, me vi pensando sobre os efeitos negativos dessa
potência, melhor dizendo, os efeitos destrutivos da potência que pode conter um
esforço de tração. Pensando os efeitos clínicos desta, dei continuidade às minhas
pesquisas sobre o que a física tem a nos ensinar a respeito dos efeitos da tração e
encontrei uma explicação que, embora exija esclarecimentos (solicitados pela própria
página Wikipédia), mobilizou uma questão: “Na física, a tração é a força aplicada
sobre um corpo numa direção perpendicular à sua superfície de corte e num sentido
tal que, possivelmente, provoque a sua ruptura6 (grifos meus).”
Em que momento, munidos de nossas potências de acompanhantes
terapêuticos, passamos a caminhar para uma ruptura? Vale lembrar que esta pode
ocorrer em dois sentidos bastante opostos: É possível, através de intervenções ou
invenções mais incisivas (ao arriscar demais, por exemplo), romper com o mundo
4
Wikipédia, 2018
5
O duplo sentido do pronome “lo” e o acréscimo do “s” entre parênteses é proposital. Até onde é
possível levar tanto o esforço de tração quanto o acompanhado?
6
Wikipédia, 2018

16
defensivo do paciente e causar-lhe algum tipo de destruição ou, no mínimo, uma
intensa desorganização psíquica. Mas, potencialmente, também é possível tracionar e
romper com certa inércia sintomática, causando um acontecimento vivo que aponta
para novos caminhos no acompanhamento.
Nesse sentido, analisar o significado da palavra tratamento e seus
desdobramentos que aqui se deram talvez nos ajude a esboçar alguma discussão a
respeito da ética no acompanhamento terapêutico. Embora haja grande contribuição
teórica da psicanálise para pensarmos a questão da ética, arrisco dizer que esta
somente pode ser experimentada num encontro real com o acompanhado.

Sobre o fazer técnico


Lembro-me de já trazer questões desta ordem às reuniões de supervisão da
equipe e sei que sempre estive (e permaneço) inundada por dúvidas a respeito de
quando e como intervir, quando estar na posição de terapeuta, quando sair ou quando
combinar as duas. Penso que, em alguns momentos mais críticos, assumir a posição
da profissional técnica (aquela que trata?) foi indispensável para o bom tratamento,
principalmente quando houve necessidade de realizar orientações às famílias ou
discutir e definir projetos terapêuticos com colegas que também acompanhavam os
pacientes. Muitas vezes, atravessados pelo aporte teórico e por uma certa autorização
terapêutica nós, os acompanhantes terapêuticos, nos permitimos puxar o sujeito para
fora de seu mundo que, muitas vezes, está bem estruturado e “seguro”, mas
absolutamente árido. Com isso, já realizamos movimentos vitais que possibilitaram
reorganizações psíquicas importantes – sustentar diante dos psiquiatras a necessidade
da regulação ou mudança das medicações, buscar parcerias com instituições de
tratamento que entram como parceiras no projeto terapêutico, aumentar a duração e a
frequência dos acompanhamentos em tempos de crise. Tais iniciativas não teriam sido
possíveis se não houvesse minimamente algum saber teórico e alguma técnica em
jogo. Mas me parece que tratar vai além disso.

Sobre o fazer ético


Dentre todos estes significados relacionados a tratamento – lidar, administrar,
manejar – o primeiro me parece o mais próximo do que acredito que seja esta clínica.
Em muitos momentos, mais acompanhamento, menos terapêutico. Lidar – e não curar
- é o exercício que, repetidamente, nos cabe. Lidar com o enlouquecimento ou com a

17
eminência de um surto, suportar7 famílias difíceis que, não raramente, tomadas pela
exaustão após inúmeras tentativas de tratamento, empurram seus loucos para um
abismo ainda mais profundo e solitário. Lidar com alguém que “não melhora” 8, que
topa pouca ou nenhuma nova empreitada, que não consegue encadear uma sequência
de pensamentos e que é engolido por eles mesmo antes de dar o primeiro passo em
direção à porta de saída. Quantas vezes escutei: “Aqui dentro é mais seguro”. E como
posso dizer que não? Munida de qual técnica ou teoria posso dizer que sim, aqui fora
é seguro, quando o que é experimentado em seu íntimo é a mais violenta invasão?
Sair à rua, muitas vezes, implica em encontrar mensagens subliminares nas placas dos
carros, nas expressões faciais dos pedestres; em escutar vozes que, incessantemente,
tentam fazê-lo acreditar que todas as pessoas amadas estão mortas. Sabiamente, em
dias mais fáceis, alguns conseguem dizer: “Não sei se o que estão dizendo é verdade,
mas eu não alimento, eu deixo fluir.” Retomo: munida de qual potência posso querer
que eles tentem existir de outra forma?
A possibilidade de acompanhar esse tipo tão particular de existência implica
numa sensibilidade que só se experimenta na prática e, aqui, sensibilidade está
colocada no sentido da disposição para sentir, para ser incomodado. Eventualmente,
ser ferido. Zygouris, em seus escritos a respeito do vínculo, ajuda-nos a pensar sobre
essa espécie de ‘pano de fundo das relações humanas’, indispensável para a
construção da transferência e, não menos importante, dessa sensibilidade tão
necessária.
O que sustenta as palavras? O tecido do vínculo é o real entre dois organismos
humanos. Trata-se, antes de tudo, de uma característica da espécie humana, uma
realidade feita de ‘sentires’ (feelings), emoções em sua maioria inconscientes, mas
também conscientes, de sensorialidades que nada têm de especificamente
analíticas, inclusive na sessão analítica. O que faz vínculo entre dois humanos são
os alicerces de uma presença, alicerces de singularidade jamais generalizáveis. É a
partir desses alicerces que um se liga ao outro e que o vínculo se estabelece ou
não. É aí que a transferência se entrelaça.9

Penso que uma aproximação legítima acompanhada de uma técnica apoiada na


transferência nos permite, pouco a pouco, exercitar uma escuta e uma presença tão
sensíveis que nos capacitam a intervir de modo a não fazer uso (ou pelo menos tentar)
7
Tanto como verbo transitivo direto (ser capaz de segurar, carregar) quanto como verbo pronominal
(tolerar-se, aturar-se).
8
Aqui, vale atentar para o fato de que uma possível ‘melhora’ é frequentemente associada à
normatizações, formatações e adequações a uma existência mais ligada à neurose.
9
Zygouris, Radmilla. O vínculo inédito, São Paulo, Escuta, 2002, p.10-11

18
de uma potência que seja disruptiva. Pude pensar nisso a partir de um pequeno recorte
de experiência.
Depois de algum tempo como acompanhante terapêutica, me vi
compreendendo razoavelmente a língua e o discurso tão particulares de um paciente.
No início, lembro de encontrar tanta dificuldade na compreensão do que ele me dizia
que achava necessário anotar tudo quando ia embora para poder repetir e levar à
supervisão de equipe, imaginando que alguém pudesse traduzir aqueles termos,
aquelas histórias. A verdade é que, depois de algum tempo, já me via repetindo
mentalmente a sequência de frases que ele dizia toda vez que nos encontrávamos e,
aos poucos, pude saber com mais propriedade sobre como e quando essa mesma
sequência de frases me dava indícios de que ele estava bem ou nem tão bem assim;
quando suas frases traduziam-se em pedido para que eu ficasse mais um pouco ou
fosse embora mais cedo, ou então para me comunicar que estava mais paranoico do
que habitualmente, que estava mais inseguro e desconfiado, e algumas vezes até que
estava chateado comigo - estas coisas somente puderam ser ditas por ele e
compreendidas por mim quando juntos nos apropriamos e adquirimos alguma fluência
nessa língua comum.
A questão que suscita o interesse por escrever este texto vai tomando mais
forma a partir de agora. De que maneira eu, imersa nessa linguagem que nos é
comum, posso desconsiderar ou suspender seus pedidos em relação ao seu próprio
tratamento? E aqui está o conflito: muitas vezes, seus pedidos contrariavam e
desvalidavam tudo aquilo que eu, enquanto técnica, considerava fundamental para seu
projeto terapêutico.

“Gordo e esquizofrênico. Ele é um fósforo queimado”


É assim que chega à nossa equipe o pedido de acompanhamento terapêutico
para um homem de 43 anos que havia tido seu primeiro surto psicótico por volta dos
quatorze. Desde então, ele sentia que sua existência estava absolutamente ameaçada.
Relacionar-se com alguém era um risco para ele e para o outro. Sua adolescência e
sua vida adulta foram permeadas por perseguições, confusões, impossibilidade de
finalizar os estudos, relações interrompidas, abuso de drogas, peregrinações
religiosas. Viveu – e sobreviveu, como ele mesmo dizia – diante da impossibilidade
de estar no mundo à sua maneira. Um “caipira” em uma família de intelectuais,
mestres e doutores. Alguém que teve sua identidade roubada e negada e que tentava,

19
incessantemente, garantir que ela se sustentasse de algum modo. E foi para isso que
nós da equipe de acompanhantes terapêuticos estivemos lá. Às vezes para tratar, mas
mais ainda para acompanhar – para mim, há alguma diferença entre estas duas
posições. Em seus dias de desespero e de hostilidade, o maior movimento possível era
estar com ele em seu quarto, com as portas fechadas. Era estar. E só. Muitas vezes,
sem pronunciar uma palavra sequer. “Apenas fique aqui comigo”, como se
pudéssemos testemunhar sua existência apenas ficando ali, em silêncio. Em muitas
dessas vezes era possível identificar algum traço de lucidez em suas palavras, e foi
dele que escutei as que ecoam em mim há bastante tempo e que me despertaram para
a escrita deste texto:
“Você não sabe e nunca saberá o que eu sinto. Como pode dizer o que é bom pra
mim?”
Falávamos sobre sua permanência em um CAPS durante alguns dias na
semana. No início, estar no CAPS fazia parte de seu projeto terapêutico inclusive com
o objetivo de evitar ou diminuir a quantidade de internações, afinal, a última havia
acontecido a partir de seu afastamento do serviço e um consequente isolamento social.
Entretanto, ele me dizia que não se sentia bem ali. Que se sentia bem em outros
lugares, mas não ali. Aquilo não era para ele, ia totalmente contra suas crenças
religiosas, sociais e políticas e ele acreditava que estar lá o faria enlouquecer ainda
mais. Sentia também que poderia fazer algum mal às pessoas de lá se alguma relação
se tornasse suficientemente sólida. Pensei, claro, que essas queixas tinham a ver com
toda sua dificuldade de estar em contato com o mundo (o que também era verdade).
Sendo assim, eu acreditava que deveria insistir pela sua permanência no serviço e
continuar lhe dizendo que aquilo era essencial para seu bem-estar, pois era lá que ele
poderia estar em contato com outras pessoas e, quem sabe, isso enfraqueceria sua
tendência ao isolamento. Então um dia, já certo do que havia decidido – e claro, a
decisão era dele e de ninguém mais - ele me fez essa indagação e eu não tive
respostas. Não que eu pretendesse tê-las, mas, ainda que essa fala não seja exatamente
uma retórica, causa em mim um nó no estômago por não poder respondê-la, e esse nó
aperta cada vez que me movo em direção ao “tratar”. Em que momento eu acreditei
que teria o direito de lhe dizer o que era melhor?
O que fazer diante de um sujeito que vê no isolamento de seu corpo e na
alienação de sua mente a segurança que ele tanto procura? Munida de qual saber
teórico/terapêutico eu teria o poder de dizer que talvez fosse melhor que ele saísse um

20
pouco de casa ou que continuasse seu tratamento no CAPS? Como dizer isto a um
sujeito absolutamente invadido pelos barulhos do mundo, pelos olhares, pelas vozes e
imagens que entram em sua cabeça? Como dizer isso a alguém que está exausto da
loucura que é amplificada a cada passo em direção à rua? Com que direito eu,
enquanto sua terapeuta, posso lhe dizer que lá fora – fora de sua armadura
malcheirosa e de seus pensamentos – existe um mundo que não o ameaça? Se é
exatamente essa sensação que o invade quase a todo tempo.
“Um louco consciente”. Era assim que ele se definia e eu realmente acreditava
em uma consciência plena e lúcida a respeito de seus desejos, até porque ele sabia e
aceitava que algum acompanhamento psicológico e a utilização correta de sua
medicação o ajudavam a prosseguir. Ele nunca disse que não aceitaria nenhum tipo de
tratamento, negava-se apenas a aceitar aquele que julgava não lhe ser útil ou
respeitoso.
Os questionamentos desse acompanhado, especialmente, suscitam em mim um
incômodo imenso em ocupar a posição daquela que trata10. Impossível negar que,
durante algum tempo, tratei de deslegitimar seu desejo de se isolar do mundo. Se ele
me diz que isso ou aquilo o atormentam e esmagam sua já tão insuportável existência,
munida de qual ética devo insistir? O fósforo não estava queimado. Estava aceso e,
agora, talvez em direção ao seu próprio desejo. Alguns anos depois dessa indagação,
pude escutá-lo dizer - diante da exigência de sua família para que jogasse fora parte
de suas tão amadas e importantes coleções: “Ninguém mais vai me obrigar a nada
porque agora eu sei me defender, agora eu sei dizer o que quero e não vou mais deixar
ninguém me invadir”.

“Mas o remédio não era pra eu me sentir melhor?”


Em outro acompanhamento me vi, há algum tempo, escutando o sofrimento de
quem não podia mais lidar com os efeitos colaterais das medicações (claramente
amplificados por um surto psicótico): tremores, desânimo, fraqueza nas mãos e
mudanças pelo corpo como inchaços e manchas. Tudo isso no corpo de uma mulher
adulta e absolutamente ativa, criativa, viva. Diante disso, ela se encontrava impedida
de pintar seus quadros, rabiscar desenhos ou segurar firmemente o microfone durante
10
Por ora, acredito que esse incômodo muito tem a ver com a condição inerente e irreversível da
dualidade terapeuta-paciente, mas esse é tema para um futuro texto.

21
suas competições de canto. Ela não conseguia mais sair à rua porque enxergava seu
corpo totalmente disforme e irreconhecível. Aquele tremor não pertencia a ela. Depois
de um curto tempo de queixas e reclamações, ela decidiu: “Não quero mais continuar
com isso, esses remédios ainda vão me matar”. Ela me dizia que aquilo era
insuportável e me alertava que alguma coisa nisso que chamavam de tratamento não a
ajudava, não fazia com que ela se sentisse melhor ou mais lúcida. Naquele momento,
aquela medicação fazia com que ela temesse, diariamente, a morte, o despedaçamento
do corpo e o enlouquecimento completo da mente. Dores na alma se confundiam com
dores pelas pernas, inquietação pelo corpo, zumbidos nos ouvidos. O que antes era
música se transformou em barulho: “Não posso mais continuar com isso! Eu vou
parar”. Eu decidi que pararia junto com ela.
Durante três ou quatro meses sustentamos, juntas, o desejo dela de não se
medicar. Como era esperado, as alucinações e os delírios voltaram a atormentar, mas
dessa vez, pudemos recomeçar de outro jeito, jogar com novos elementos e parceiros.
Uma nova psiquiatra, novas medicações (a menor quantidade possível), novas
transferências –– e, a partir daí, novos efeitos no corpo e uma nova história. Agora,
ela treme “só de vez em quando e dá pra disfarçar” (sic). Arrisco dizer que todo o
efeito dessa nova organização só foi possível porque eu recuei, sustentada por uma
ética, diante de minhas técnicas e teorias e disse a ela: “Estamos juntas, eu respeito a
sua escolha”. Tal plasticidade, tão precocemente já recomendada por Freud (1912), é
o que permite que novos caminhos – mais livres e menos mecânicos – sejam
experimentados e legitimados em seu propósito.
A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade
de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a
qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de
regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que
habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado.11

Para novos fins, novos meios.

Por uma clínica ética


Mesmo depois de transcrever esses trechos, formular perguntas e tentar
responder algumas delas, penso que ainda há um tanto dessa clínica e do que a norteia
que seja inapreensível pelo discurso, pelas palavras e, ainda, talvez exista algo com o
11
Freud, Sigmund. Volume XII. In: Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a
técnica da psicanálise), 1912, p.75.

22
qual só é possível entrar em contato através dos encontros e das parcerias que se
formam nos acompanhamentos. De qualquer modo, acredito que seja essencial
apontar a necessidade de uma escuta ética que aponte para a ética do sujeito – que
muito tem a ver com a ética da psicanálise. Segundo Figueiredo (2008, p.21), “a
psicanálise não é uma cura pela sugestão, não é uma construção mais ou menos
autoritária do psicoterapeuta, não é uma pedagogia, não é uma imposição ortopédica
de novas formas para corrigir formas antigas e defeituosas”. Pedidos por alguém que
possa corrigir formas de existência indesejáveis são recorrentes na clínica do AT; que
o paciente coma direito, que durma em um horário considerado normal, que não
aborde estranhos na rua, que fale baixo, que não grite. Muitos encaminhamentos
contém uma mensagem implícita: “transforme-o em quem ele não é e nunca poderá
ser”. Nosso papel, enquanto acompanhantes, é deixar emergir esse sujeito com todas
as particularidades e ‘esquisitices’ que lhe forem próprias para, a partir daí – dessa
existência singular – inventarmos juntos um jeito de habitar o mundo. Cabe aí uma
delicadeza difícil de explicar ou transmitir.
É uma tarefa praticamente impossível definir, teoricamente e tecnicamente, em
qual momento devemos lançar mão do tal esforço de tração e quando é preciso
recuar, ou ao menos, não insistir. É certo que, em muitos casos, é o desejo do
acompanhante que faz com que o acompanhado retome aspectos importantes da vida,
e por que não dizer que é o esforço de tração do AT que faz com que seu
acompanhado construa melhores formas de existência? Há muita potência constitutiva
no desejo do AT que, quando genuinamente interessado e conectado com a história de
seu paciente, pode ser o facilitador de muitas mudanças e conquistas que, sem um
parceiro, seriam difíceis de acontecer. Sabemos bem como a loucura pode ser
esmagadora quando não é devidamente acolhida. Ao mesmo tempo, é infinitamente
fácil nos perdermos nessa medida que define até onde tracionar sem romper com
elementos estruturantes.
Vejo que alguma coisa se modificou na minha clínica a partir disso. Vou e
volto cercada de dúvidas do quanto posso fazer uso ou não da técnica que me cerca, e
de fato faço muito uso dela quando necessário. No mais, na impossibilidade de saber
de antemão a medida que protege o fio do desejo de se romper - e ciente de que
nenhuma proposta clínica em si mesma é capaz de dar conta das infinitas formas de
sofrimento psíquico - continuo a lidar, no sentido mais puro e simples do termo.
Acima de tudo, é preciso poder escutar.

23
Referências Bibliográficas:

WIKIPÉDIA. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Tração_(física)>. Acesso


em: 20 jun. 2018.
GRAMÁTICA.NET.BR. Disponível em <http://www.gramatica.net.br/origem-das-
palavras/etimologia-de-tratamento> . Acesso em 20 jun. 2018.

FREUD, S. Vol. XII, In: Sobre o início do tratamento: novas recomendações sobre a
técnica da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 1912.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
ZYGOURIS, R. O vínculo inédito. São Paulo: Escuta, 2002.
FIGUEIREDO, L. C.; JUNIOR, N. C. Ética e Técnica em Psicanálise. São Paulo:
Escuta, 2008.

VOLTA AO MUNDO NO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO


psicose, recusa e ancestralidade

Cristiana Kehdi Gerab

24
“O problema da loucura é insepará vel da questã o posta pelo
homem sobre a sua identidade” (Mannoni, p.27)

São duas horas da tarde de quarta-feira, dia da saída de Luís ao parque


acompanhado de sua at. É um dos dois dias da semana em que passa algumas horas
ao lado de alguém de fora da família oriental. E, ponto importante a se tratar, alguém
de fora do universo japonês.
O assunto das primeiras conversas deste encontro: vídeos e músicas que
buscou na internet, coisa que faz praticamente durante todo o tempo de sua existência.
Todos mostram algo do Japão: um cantor antigo, uma novela da moda, um comercial
de carro dos anos 80 – década em que ali viveu.
Reside no Brasil desde que tem seis anos de idade (hoje já é um adulto de 34),
mas costuma trazer vivas lembranças dos tempos em seu país de origem, dos lugares
que freqüentava, ruas, parques, shoppings. Gosta de falar, sobretudo, dos amigos de
seu pai com quem saía – portadores de um afeto que o ajudaram a constituir-se, afeto
fundamental que ele vem tentando reencontrar. Fala o japonês fluentemente, língua
materna e a única falada em sua casa quando estão entre eles – pai, mãe e filho.
Durante os encontros com as ats (são duas que o encontram semanalmente), é
notável sua também fluência na língua portuguesa, que fala e escreve desde pequeno.
Há afeto e confiança no vínculo com as ats, o que torna possíveis tanto para ele,
quanto para a família, suas saídas. Mas desconfia que os outros (os brasileiros) não o
entendem, e desse não entender passa a acreditar que não o admiram, que o olham
torto – até que, enfim, o odeiam – são diversas as sensações de não pertencimento ao
pais em que vive. Essas sensações muitas vezes culminam em crises paranóicas
intensas que já levaram Luís desorganizar-se completamente e a se manter
enclausurado em casa por dias a fio, acreditando inclusive que se “esqueceu de como
falar português”.
A família de Luis possui uma característica bastante particular: são, de fato,
estrangeiros residentes no Brasil. Não possuem cédula de identidade. O pai apenas
balbucia o português e a mãe é uma autodidata, fala com fluência, mas pouco é capaz
de traduzir a Luís o que ele precisa compreender. Quando em crise, Luís diz
incessantemente que nenhum brasileiro o entende. Já sofreu bulling na escola quando
adolescente, o que provavelmente desencadeou sua crise psicótica, alem de marcar

25
fortemente sua experiência com os brasileiros. A mãe acredita piamente que foi “sua
culpa” não ter previsto a gravidade do que lhe acontecia na escola. Ela toma a língua
das crises ao pé da letra: desespera-se, amedronta-se, protege-o de qualquer estímulo
que ela acredite provocar esta instabilidade no filho. Os pedidos de Luís para não sair
são corroborados pelos pais: assim ele deixou de freqüentar o hospital-dia do qual
fazia parte algum tempo atrás, assim perdeu os poucos amigos que fez na escola e na
academia. Foi se retirando dos poucos lugares de convívio. Se algo o amedronta e o
deixa “nervoso demais”, Luis se isola, e a mãe reitera esta penosa prática,
escondendo-o também. Assim, ela acredita protegê-lo do contato com aquilo.
“Aquilo”, pulsante, efeito do próprio inconsciente familiar, que retorna em forma de
alucinação e delírio para ele, inapreensível. O pai quase não se coloca, falhando em
sua função de corte desta linguagem esquizofrênica em que toda a família se funde em
um só enunciado: o Brasil não me quer.
Em seu acompanhamento terapêutico, Luís tenta algum convívio com o lado
esquerdo do mundo. Não há outras inserções, espaços de convívio, o que torna sua
rede de tratamento bastante precária. O acompanhamento é a oportunidade que tem de
criar laços, falar de sua experiência, construir-se a si mesmo no mundo.
É um rapaz alto, de olhos vivos, passos largos e sorriso fácil. Tem o poder de
cativar as pessoas, o desejo intenso e fugaz de fazer laço com o outro (qualquer outro
– a caixa da padaria, o porteiro do prédio, a senhora que caminha no parque). Fala de
seus assuntos, pergunta ao outro se conhece aquela música ou aquele ator japonês de
quem é fã. Diz que tem tido confusões com um apresentador de televisão brasileiro
sensacionalista, ou que o Partido dos Trabalhadores o tem deixado muito nervoso – ou
mesmo que a fumaça dos cigarros dos brasileiros o faz tossir – e tosse. As alucinações
e construções delirantes devem ser indagadas quanto a seu valor enquanto sintoma
psíquico.
Abro aqui um parêntese para dizer que foi Freud quem já nos alertou sobre o
valor do delírio enquanto sintoma e, portanto, tentativa de cura na psicose. Freud
pensava a alucinação e o delírio como derivados de impulsos infantis reprimidos e
que contêm, em sua essência, fragmentos de verdade histórica. Fornece-nos a pista
mais importante para o entendimento e a técnica terapêutica com psicóticos.
Abandonar-se-ia o vão esforço de convencer o paciente do erro de seu delírio e de sua
contradição da realidade, e, pelo contrario, o reconhecimento do núcleo de verdade permitiria um
campo comum sobre o qual o trabalho terapêutico poderia desenvolver-se. (Freud, 1937)

26
Bernard Penot, autor abordado nesse texto, construirá uma teoria a partir da
recusa enquanto processo defensivo presente na gênese dos delírios dos psicóticos. A
recusa, diferente da repressão, manifesta-se pela evidência de um jogo simbólico
deficiente na economia psíquica do sujeito, que carece de remendos, colagens para
seguir operando– como disse Freud, “tentativas de explicação e cura, embora seja
verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem fazer mais do que
substituir o fragmento de realidade que está sendo recusado no passado remoto”. O
interessante em Penot, sobretudo, é o fato de localizar a recusa enquanto presente na
estrutura familiar, portanto já atuante na geração anterior. Retomaremos essa idéia
apos uma apropriação mais precisa da história dessa família, que foi ocorrendo ao
longo do AT.

Voltemos ao acompanhamento de Luís e a suas tentativas de conversa com os


estranhos do parque. Nem sempre, ao convocar os outros da maneira como faz,
“abordando” o outro (como ele mesmo explica) para falar de seus assuntos, encontra
apaziguamento. É olhado com desconfiança e até medo por parte de alguns. Na
maioria das vezes, é simplesmente ignorado – reação a que costuma ser muito
sensível, já que acaba confirmando a ameaça (sempre presente para ele) de seu
desaparecimento.
A constituição psíquica na psicose vai dificultar que haja a relação com o
outro porque é a própria alteridade que se encontra prejudicada – sem recursos
simbólicos, Luís mantém o outro “colado” a si. Penso que a possibilidade de fazer
laço com o outro, no caso de Luís, passa pela possibilidade de humanizar o outro
(separar) e encontrar traços em comum – esvaziando assim seu potencial ameaçador.
Por exemplo, alguém que goste de caminhar no parque (como ele) ou que goste de
chá (como ele), que admire os templos orientais (como ele).
Aqui, penso na potência do acompanhamento terapêutico que, por se tratar de
uma clínica na rua, por ter seu enquadre em constante movimento, pode contar com
elementos reais. Lida-se com o risco de que tais elementos assumam formas
delirantes, mas também com a oportunidade de testemunhar e poder intervir nessas
experiências de encontro. A at ao lado de Luís dá sustento ao que ele vive nessas
experiências – delirantes ou não - ajudando-o, seja a vivê-las e superá-las, seja a
verbalizá-las, seja a tentar outra vez.. E eis que, muitas vezes, encontram chineses,

27
coreanos, e outros japoneses ali no parque. Eis que, muitas vezes, ele tem a sorte e
felicidade de travar uma conversa inteira em japonês com alguém que também veio
daquele lado do mundo – parece estar mesmo conversando, e chega a se emocionar
depois que se despede. Diria que, neste momento, ele encontra identificações
marcadas por significantes que remetem a sua história, às diferenças entre culturas, ao
conforto de saber que como ele, há outros orientais que residem no Brasil. E alguma
alteridade parece poder tomar corpo, já que também aqueles com quem conversa são
diferentes dele.
Assentir que ele converse em japonês, contando com a sorte de ter aquilo
eventualmente traduzido, é tarefa essencial na terapêutica com Luis. É preciso ter,
como uma vez sua irmã disse referindo-se ao lugar das acompanhantes para Luís, uma
supra-nacionalidade: nem brasileiras, nem japonesas, expatriadas.
Tal arranjo das situações o leva, freqüentemente, a uma notável organização
psíquica. Dura nele tempo suficiente para que volte para casa e conte para a mãe, que,
como já é de se esperar, não fica muito feliz com o fato de seu filho estar se
“expondo” por aí. O apartamento serve como um esconderijo da loucura explosiva e
expositiva do filho, em quem se projeta toda a vergonha que paira na família. “O
louco - diz Mannoni - tem a função na família de fazer com que o sacrifício de um só
vá permitir o equilíbrio de todos” (p.50).
Esta questão que se abre coloca em pauta o que Penot pensou mais
profundamente com relação à recusa familiar, em suas palavras “uma recusa anterior,
portanto em anterioridade a entrada do próprio sujeito na história” (p. 89). Penot toma
a recusa familiar correlacionada ao que chama de não-admissão simbólica (isto é, de
significação e valor) de certo traço da história da família por um ou ambos os seus
genitores. É como se aquele traço ficasse fora de uma cadeia significante que
possibilitaria a simbolização de um conflito.
Este movimento pode culminar na recusa do reconhecimento do sujeito, do
porquê e a que veio ao mundo – questões que encontram respostas justamente no que
animou o desejo dos pais – referencias de filiação e identidade. Aqui podemos
articular o que entendemos por recusa familiar aos efeitos psicotizantes que trazem ao
sujeito, vividos nesse AT e agora narrados neste texto.
Tomando a hipótese de que há uma transmissão problemática entre duas
culturas para Luís, seu quadro psicótico leva a questionar a relevância do lugar desta
transmissão na história dos pais. Ou mesmo da possibilidade desses pais em

28
transmiti-las. Uma história não clara, não significada, uma vivência literalmente
cindida entre duas culturas e a impossibilidade de nomear um movimento familiar de
retirada do país de origem são pontos que merecem toda a atenção neste caso.
O fato é que o contexto do tratamento de Luís veio se complicando nos
últimos tempos: o pai faleceu de um câncer fulminante, pai que acreditamos ser o
detentor de muitos traços não contados da história da vinda dessa família para o
Brasil. Foi o pai quem desejou a vida no Brasil, e não sabemos a fundo o que
sustentava esse desejo nem o que culminou na frustração com a vida que acabou
encontrando. Um pai que se dedicou quase inteiramente aos cuidados desse filho, o
que o levou também a um isolamento e sacrifício dos laços com amigos.
Profissionalmente, no entanto, parece ter conseguido se realizar.
A mãe, alguém que deixa uma vida de “princesa” no Japão, abre mão de sua
família, de coisas caras (para sempre?) em nome do casamento com esse homem que
deseja a vida no ocidente. O que levou essa mulher a se apaixonar por “esse” homem?
Um “desempregado no Japão”- motivo de vergonha e censura para uma família
tradicional japonesa – avós maternos de Luís. Assim nos contou a mãe na última
conversa conosco. Contou que pagou por seu “erro”com o filho louco que gerou –
“sua cruz” (sic).
Uma equação impossível a Luis simbolizar está montada. Se deseja o Brasil,
perde os traços que marcam a mãe e a filiação simbólica que poderia ser obtida, por
exemplo, por meio da identificação aos ancestrais maternos. Se deseja o Japão,
encontra-se expatriado de onde vive atualmente, e perde o acesso ao motivo da
imigração de sua família – herança paterna. Ele segue existindo como a marca da
vergonha vivida por essa família, inalterada pois jamais elaborada por eles.
Detenho-me aqui na reflexão que gostaria de propor com esse texto: a potência
do acompanhamento terapêutico para jogar com uma coexistência de culturas.
Potência, então, a facilitar movimentos de ligação entre elementos recusados da
ordem simbólica.
Se há uma mesmice nos encontros com Luís, muitas vezes levando as ats a um
desânimo e desesperança com relação a qualquer melhora em seu quadro – seja pela
atenuação das crises paranóicas, seja pelo ganho de autonomia, pela inclusão de mais
espaços de convívio na vida de Luís – há também nesse trabalho de AT aberturas
possíveis. Ele sai, mesmo que quase sempre para o mesmo lugar, o parque (entendo
que pela ameaçadora desagregação, ele tenha necessidade de um enquadre que

29
promova segurança - mais rígido, mais repetitivo). Sai do convívio com a mãe, que
possui pouquíssima capacidade para ajudar Luis a significar aquilo que sente e pode
se deslocar minimamente do lugar da vergonha familiar.
Também o trabalho com a família é de extrema riqueza para um caso como
esse: ajudar essa mãe a significar a sua própria imigração, sua frustração com o
casamento, a maternidade12. Um espaço que promova alguma possibilidade de
elaboração para essa mãe é culminante para a melhora de nosso paciente.
Luís, pode, enfim, sair de uma existência para a possibilidade de uma outra,
em que haja a relação de signos brasileiros e japoneses, sem que a existência de um
aniquile por completo o outro: as ats, sintonizadas com este acompanhamento,
precisam estar abertas a receber o Japão em si.
Todas as coisas que o acompanhante terapêutico percebe durante uma saída, do acompanhado
e de tudo o que os envolve, são percebidas quando ele está alterado pela presença do acompanhado ao
seu lado. Todas as coisas que o acompanhante terapêutico percebe são as coisas mesmas mais um
índice de mistura que vem do vinculo que ele mantém com o acompanhado (Porto, p.140)

São as ats portanto que, por vezes, tornam-se estrangeiras. Japonesas dentro
do Brasil, brasileiras dentro do Japão. É um trânsito de culturas e tempos diferentes
que é preciso vivenciar no AT com Luís – retornar com ele ao Japão dos anos 80 com
seus carros antigos e cantores populares; passear com ele pelo Brasil de hoje, com
seus parques, shoppings, brasileiros fumantes, caixas da padaria e vendedores de água
de coco; “viajar” com ele ao Japão atual e imaginar as diferenças, ou olhar as
diferenças pelos vídeos que ele encontra na internet – carros novos e arranha-céus,
atores ocidentalizados que ele abomina. Às vezes, nos dirigimos ao oriente ancestral e
assistimos juntos a histórias do século V, guerras com chineses – e vamos até a China
e sua milenar cultura de artes marciais, invasões, dinastias. Vivemos juntos três horas
por semana de excursões pelos tempos e de volta ao mundo.

Referências Bibliográficas:

FREUD, S. Construções em análise (1937). Volume XXII. freudonline.com.br


FREUD, S. Neurose e Psicose (1924). Volume XIX. freudonline.com.br
12
Ela deu a luz ao sem-sentido de sua escolha matrimonial – um louco, que atualiza aquela
mesma vergonha que sentiu pelo marido desempregado – e que a fez fugir de seu país?

30
LACAN, J. O Seminário, LIVRO 3. (1955-1956) As Psicoses. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1988.
PENOT, B. Figuras da Recusa. Aquém do negativo. Porto Alegre, Artes
Medicas, 1992.
PORTO, M. Acompanhamento Terapêutico. São Paulo, Casa do Psicólogo,
2015.
MANNONI, M. O psiquiatra, seu louco e a Psicanálise. Porto, Afrontamento,
1978.

JOURNEY
Acompanhando no deserto virtual

Rafael Muscalu Raicher

Percorrendo Desertos - Felipe e o AT

- Toma - disse ele me entregando o controle - joga, não vou dizer o que você
tem que fazer, quero ver como você vai lidar com o jogo.

31
Foi uma das primeiras vezes que Felipe, um homem grande de 27 anos,
barbudo, me olhou com curiosidade. Melhor dizendo, umas das primeiras vezes que
ele me olhou. Antes disso, me aceitou em sua casa, sempre com um olhar de “saco
cheio”, sempre com certa má vontade. As vezes sua avó o obrigava a atender a porta,
outras eu subia e o encontrava em sua real morada dentro da casa; um pequeno recuo
no corredor em frente a porta do quarto da mãe, onde ficava uma mesa de escritório
com seu computador e tablet ligado. Lá ele passava o dia e as vezes a madrugada. Seu
quarto, reformado na época em que estudava no cursinho (reforma sobre a qual dizia
que nada lhe perguntaram como e onde seria), ficava numa edícula fora da casa. Mas,
como o sinal da internet não pegava em seu quarto, não fazia sentido habitá-lo. Em
seu computador passava o dia assistindo outros jogadores, as vezes jogava algum
jogo. As vezes “zapeava” entre canais sobre jogos, matemática, física e desafios de
lógica, seus interesses. Muitas vezes dava a impressão de que nada assistia. Porém
tinha escolhas e gostos. Gostava de testar jogos difíceis, intuitivos ou independentes,
Indies13, interessava-se por eles, pelo menos por um tempo. Um campeonato, ou a
versão Beta14 de um jogo eram os picos de interesse que o ocupavam
temporariamente. Testavas jogos assim como fez um teste comigo naquele dia.
Meses antes, sua mãe pediu por um Acompanhante Terapêutico, tinha medo
do que o filho poderia fazer com ela, ou com ele mesmo. Disse que ele poderia ser
agressivo, especialmente com ela, apesar de ser um “bom menino”. Contou que Felipe
não estava bem, tinha parado com qualquer atividade além de passar o dia em frente
ao computador. E ela sofria imensamente em ver seu filho naquela situação. Seu
pedido foi por alguém para ajuda-lo, já que ele não aceitava ir ao médico, psicólogo
ou tomar qualquer medicação por conta própria.
No início (e durante todo o acompanhamento isso retornava) Felipe me
recebeu como indesejado, um fardo na rotina. Mas, ao mesmo tempo, respondia às
minhas perguntas, mostrava certa curiosidade em relação a quem eu era e o que
estaria fazendo ali. Quando falava e se abria, era sempre muito intenso, cheio de dor e
angústia. Intensidade auto detectada prontamente, e resolvida com o olhar que se
voltava à tela e que o acalmava como um ansiolítico. E assim, ficávamos por

13
Jogos de pequenas produtoras, que costumam ser mais criativos, experimentais e estéticos
14
Quando um jogo ainda não é oficialmente lançado ao grande público, mas distribuído para
alguns jogadores afim de checar por problemas “bugs”, e testar a jogabilidade, diversão,
reação dos mesmos e assim fazer os ajustes finais para o lançamento definitivo.

32
acompanhamentos a fio, ele olhando a tela, eu ao lado, quase em silêncio se não
fossem minhas perguntas que tentavam me aproximar de seu mundo.

Quando, naquele dia, peguei o controle oferecido, ele olhava sem tanta
angústia, era diferente, tinha um plano, uma tarefa, estava curioso em relação a mim.
O motivo manifesto era o jogo de videogame Journey, considerado revolucionário
entre os jogos Indies. Mas ele não explicou com antecedência, quis me observar na
experiência de um novato, de um cara que não conhecia o mundo dos jogos e se
deparava com os mecanismos propostos pela obra. Para ele tal vivência seria
impossível, ele entendia a lógica, ele sabia como lidar com aquilo. Eu não.
Meu personagem (padrão do jogo), um tipo sem nome, sem rosto, vestido com
uma túnica que cobre o corpo numa forma sem gênero, aparece sozinho em meio a
um lindo deserto. Não há texto, “missão” ou explicação. Apenas uma montanha ao
fundo e uma trilha sonora sublime que reage a certos movimentos e que faz você
intuitivamente seguir naquela direção. E assim o jogo vai evoluindo. Fui descobrindo
como manejar o personagem, o que fazer e como explorar aquele deserto sem
palavras, e com o tempo uma espécie de linguagem baseada em símbolos e sons
rudimentares, que apesar de deixar-me confuso, fazia-me supor possíveis caminhos.
Eu tentei perguntar ao Felipe, mas ele ria se recusando a explicar. Claramente me
avaliava, tanto no que eu fazia com meu personagem, como minhas próprias reações
ao desconhecido, como reagia à beleza do deserto e às descobertas.
Com essa cena fiz a hipótese central para o acompanhamento de Felipe e para
esse texto. Era uma forma de se comunicar, ele me testava e ensinava ao mesmo
tempo que tipo de acompanhante terapêutico eu teria que ser com ele. Ele mostrava
como ele queria que alguém o alcançasse em seu deserto. Não um profissional que
sabia, que o tratava, mas alguém a quem pudesse se aproximar na sutileza das não
palavras, do intuitivo. Era esse o seu pedido. Ao me convidar a jogar ele testou se eu
estaria apto a ser seu acompanhante naquele deserto belo, porém solitário.
Numa espécie de ritual de passagem, ao mesmo tempo em que ele me testava,
eu também já era aceito. Mesmo sem entender totalmente o que fazer naquele deserto,
eu já podia experimentá-lo, percorrê-lo. Felipe, finalmente, viu sentido em eu estar ali
toda semana. Nossos encontros não eram um jogo com fases, com explicações,
análises ou tutoriais. Era como o Journey, intuitivo, estético, underground, sem nome,

33
sem gênero, sem rosto e sem linguagem. Esse era seu sonho15 e ele me convidava para
experimentá-lo. Entendimento esse que teve sua confirmação quando, de repente,
Felipe se assustou com um acontecimento dentro do jogo que era conectado à
internet: Um novo personagem aparece ao meu lado. Felipe, saindo do seu lugar de
expectador, finalmente fala:
- As vezes, o jogo te conecta com outros jogadores que o ajudam na Jornada
(Journey), sem comunicar uma palavra eles simplesmente aparecem ao seu lado e
você pode acompanha-los se assim desejar. - Diz que normalmente são pessoas que já
terminaram o jogo e decidem guiar os novatos pelas areias por puro prazer. Sem
nenhuma outra recompensa concreta. Mas, o surpreendente é que aquele jogo já não
era lançamento, poucas pessoas ainda o jogavam, seu tempo tinha passado. Mesmo
assim, alguém entrou no meu deserto pra me acompanhar. Sem palavras, entendemos
aquele momento surpreendente como uma metáfora do que ali se passava.
Foi assim que Felipe me convidou a ser seu AT. Convite instável, afinal, eu
tinha vindo através de sua mãe; ela que me contratou, justo ela, que segundo a sua
realidade psíquica, era a causa de todos seus problemas, a mãe que não o escutava,
não o via, não o entendia. Atraindo-o para uma posição de sentinela em frente ao
quarto materno, impedindo ambos de seguirem em frente em suas vidas privadas.
Felipe guardando a vida intima da mãe, horas a fio, inclusive muitas madrugadas,
sentado no computador na frente do quarto dela. Ele sem sair de casa, ela sem
privacidade quando em casa.
Felipe pensava demais. Quando cheguei ele logo se abriu (para depois se
fechar por diversos acompanhamentos, como descrito acima). Não tinha lugar no
mundo. Começou a faculdade na área de computação, fez estágio em uma empresa de
games. Mas ninguém o entendia. O mundo o atropelava. Odiava a todos, mas
principalmente a si mesmo: Sua mãe era a primeira a odiar, trabalhava em 3
empregos e nunca estava ali para ele, nunca o enxergava em suas demandas, e ainda
mais, o atrapalhava. Exemplo disso foi quando reformou a casa (muito barulho bem
quando ele mais precisava estudar, queria passar na USP) em meio aos seus estudos
do cursinho deslocando-o para a edícula e para longe da casa materna. E agora que ele
estava mal, sem sair de casa, sem tomar banho, era ela que se colocava como vitima
de uma sina angustiante, como protagonista do sofrimento tratando-o com
condescendência. Tinha motivos também para odiar seu pai, com quem nunca foi
15
Correlações entre o sonhar e o jogo para Felipe serão feitas mais adiante no texto

34
próximo, vivia separado e pouco tinha contato. Sua irmã e seus antigos amigos, que
com seus aparentes sucessos e vidas normais pareciam por demais adaptados e
distantes dele. Porque eles conseguiam e ele não? E, por fim, a última desilusão, que o
fez jogar tudo para o alto: A “destruição” dos games para celular que ajudou a criar
em seu estágio. O dono da empresa, pressionado por transformar o investimento em
lucro, decidiu transformar os jogos, inicialmente gratuitos, simples, lúdicos e
funcionais em plataformas de propagandas indesejáveis. Felipe, deslocado na
faculdade, da família, dos amigos e traído em sua obra de trabalho 16, decidiu - como
disse logo nos primeiros encontros - “sair do ônibus da vida” para poder parar um
pouco. Saiu de tudo e se refugiou 17 na tela. Porém, passados uns 5 anos, já não fazia
ideia de como subir novamente no ônibus. Este não parecia fazer paradas, todos
seguiam nele e ele teria que entrar com o ônibus em movimento. O que lhe parecia
impossível.

Construindo no Deserto - Tijolos e argamassas Teóricas

Pensar demais significava sofrer, sua mente não lhe dava alivio. O silêncio e o
ócio o jogavam no abismo de saber demasiado, de saber que sua vida tinha acabado,
de odiar a si mesmo por seu fracasso, que nada poderia fazer. Sua “cura” era a tela,
era o tédio (que veremos ser muito diferente do ócio). Em frente ao computador podia
não pensar, apenas assistir, clicar, buscar novos videos, novos textos e jogar os
enredos já pré estabelecidos pela industria, expandindo-se seguramente pelos
caminhos virtuais de um campo que, apesar de aparentemente amplo, mantinha-se
restrito a um fora de si mesmo. Tentava abdicar de sua vida para viver os temas e as
questões do virtual que o mantinham ocupado, trocando o vazio e o ócio pelo tédio.
Deixava, assim, a culpa, o medo, o ódio, a angustia e os pensamentos obsessivos
menos dominantes, pelo menos temporariamente. Mas sua mãe, a sociedade e ele
próprio o acusavam de errar em sua cura. Tinha que sair da frente do computador, era
isso que todos pediam, era esse o pedido para entrada de um AT. Eu era, já de início,
colocado como um emissário para a saída daquela solução sintomática que Felipe
tanto investia e desesperadamente tentava manter.

16
Podemos relacionar aqui com os imperativos do principio de realidade. Um empresario não
faz um jogo só porque ama jogos, mas também porque precisa ganhar dinheiro.
17
Fuga do princípio de realidade citado acima?

35
Para Freud, em sua primeira tópica (antes de 1920, da introdução do conceito
de pulsão de morte) o sintoma é uma formação de compromisso entre a libido e os
sistemas repressivos. Assim, formamos um sintoma quando a libido não pode ser
satisfeitas em sua plenitude (nunca o é), então temos que encontrar maneiras em que
tanto a libido como o sistema repressivo sejam parcialmente (e conflituosamente)
satisfeitos. (Freud, 1917)
O Sonho, espécie de “primo” do sintoma, é um caminho claro para satisfação
de um desejo que não poderia existir num sujeito desperto (seria prontamente
reprimido) e, por isso, encontra seu refúgio seguro na noite, disfarçado por
condensações e deslocamentos, tornando-se menos ameaçador ao Eu (Freud, 1900) .
Os sintomas seguem a mesma lógica, a libido impossibilitada de satisfazer-se
completamente é deslocada e condensada via representação no corpo da histérica ou
em pensamentos compulsivos do obsessivo para poder aparecer. Porém, como a
formação de um compromisso é entre a busca de satisfação e a repressão, nem tudo
são flores no sintoma: ao mesmo tempo que ele é fonte de prazer, é também de
desprazer e angustia, resultado do conflito entre estas instâncias.
No caso de Felipe é importante apontar que, seguindo essa lógica de Freud,
seu sintoma não se inicia propriamente na sua relação com o computador, apesar desta
ser sintomática e parte da expressão do mesmo. (todo sintoma é uma expressão). Seu
sintoma anterior é o pensar demais, os pensamentos obsessivos. A tela é a cura,
também sintomática, encontrada para tal. E, portanto, secundária.
Ficar em frente ao quarto da mãe é certamente um bom indicativo desse prazer
primário satisfeito por seu sintoma. Mantendo toda a cena primária imóvel,
equilibrada porcamente entre o insustentável e o gozo de manter tudo como está. Isto
é, “fracassar na vida” e ficar esperando que a mãe, qualquer outro ou um Eu heróico e
impossível retorne e o salve, que o ônibus pare para ele subir. Sua raiva e sentimento
de cobrança em relação a mãe colaboram ainda mais com essa linha interpretativa.
Felipe espera que algo de fundamental aconteça. Temos indicativos que há nós
fundamentais em relação a sua mãe, ao principio de realidade, ao ódio de si mesmo e
do mundo que apontam para com um diagnóstico de neurose obsessiva, mas tais
questionamentos vão muito além do pretendido nesse texto e talvez da proposta de
acompanhamento terapêutico de Felipe. O que nos leva as perguntas que defino como
fundamentais nesse texto:

36
Será que, ao construir todo esse pensamento, não estou aqui realizando a anti
jornada (Journey) para a qual Felipe me convidou? Por que me preocupo em procurar
todas essas edificações teóricas em meio ao deserto em que ele vive? Qual era a tal da
proposta fundamental desse acompanhamento? Ou melhor, o que eu, como AT, podia
fazer por Felipe?

Algumas construções viram pó no deserto, porém continuamos a construir…

O terapeuta pensa, e por isso faz hipóteses e teoriza, o terapeuta sente e por
isso faz sua própria análise, e o terapeuta age (especialmente os ATs) e interpreta e
por isso faz supervisão (essa separação é apenas ilustrativa; pensar, sentir, agir,
interpretar não tem correlação única e exclusiva com teorizar, estudar, fazer análise e
supervisão. Esses campos se misturam). Dessa forma, apesar da importância de se
fazer uma construção teórica-clinica de um atendimento (ou seja, pensar sobre), é na
possibilidade do terapeuta de teorizar (pensar sobre) que reside um dos indícios
fundamentais do trabalho clínico. Explico: O encontro entre o acompanhante e
acompanhado não é simétrico, o acompanhado sofre com suas angustias e sintomas, o
acompanhante é aquele que vai ao encontro com a realidade psíquica desse
acompanhado, aproxima-se de seu mundo, mas nunca o habita completamente. Há um
encontro desencontrado. Não é possível, nem desejável que o terapeuta viva o que seu
paciente vive. Para ser terapêutico, é necessário que o profissional não compartilhe
totalmente do sintoma de seu paciente. O movimento resultante desse desencontro, é
que gera a necessidade do terapeuta pensar, ou melhor, elaborar, seus atendimentos.
Ao mesmo tempo, ambiguamente, não há acompanhamento se não há esforço do
terapeuta em ir de encontro. Se pensarmos os sintomas como aprisionamentos
subjetivos, é necessário que o terapeuta não se encontre na prisão, ao mesmo tempo
em que precisa se aproximar do mesmo.
Eu aceitei o convite para circular pelo deserto de Felipe, mas sei que a vida vai
além daquele lugar aparentemente calmo, sem linguagem, sem pressão, sem conflito,
sem nada. Sei que essa era a fantasia (e o sonho) de Felipe, não sua realidade. Ele
sofre, ele não sustenta aquele paraíso. E o próprio jogo (em mim) dá sinais disso. O
mapa se torna tedioso, repetitivo e sem sentido com relativa facilidade. Incômodos
afetivos, corporais, teorias, hipóteses, interpretações me arrebatam para fora do
deserto quase imediatamente, e eu tento entender, tento sair de lá. Inevitavelmente

37
construo edifícios18, vou além da montanha do horizonte dado porque chega uma hora
que andar sem rumo cansa. Mas também, como nesse texto, sou obrigado a lembrar-
me que construções viram desertos com relativa facilidade. Felipe tentou construir as
suas edificações e falhou naquelas que são socialmente esperadas (estudo, trabalho,
higiene, vida social), mas, ao menos, conseguiu construir algo para que o mundo não
se desfizesse totalmente. Ele joga o deserto, ele recorre à tela. Ele não é apenas
deserto e tela. Não está devastado, apesar de estar bem próximo à isso. O deserto
virtual substitui e o “salva” de uma desertificação psíquica total, ao mesmo tempo que
o aprisiona.
O mesmo poderia se dizer sobre o sonhar, se A Jornada foi um sonho
compartilhado e deslocado para a tela, eu, como terapeuta afetado, ao construir
possibilidades no meio do deserto (teoria, pensamento, interpretações, ou seja,
linguagem) convidei Felipe a sonhar por conta própria, a experienciar suas
possibilidades de sonhar qualquer coisa para além daquele já dado pela tela. Dizendo
de outra maneira, Felipe sonha em viver aquela mansidão. Mas, como todo sonho é
fundado na ambivalência entre pulsões e repressões, ele também sofre de
ambivalências em seu sonhar. O sonho da Jornada poderia ser considerado
empobrecido pois é externo, é feito por outros, e, a Felipe, resta apenas manobrar
entre aquilo já estabelecido pelos seus desenvolvedores. Por outro lado esse sonho
externo, industrial, um pouco Indie é preenchido por sua vida psíquica, serve como
apoio para o sonhar de Felipe que mostrou ao seu AT com o que sonha e isso por si só
já mostra quão singular é.
Eu, como acompanhante, tive o privilégio de acompanhar seu sonho, de
escutá-lo, e ainda mais, de presenciá-lo. Mostrou que sua angustia descansa no sonho
do deserto utópico da Jornada. Mas não durará. Convidou-me a participar ou a
mostrar sua esperança de que aquele deserto seria real. Mas isso é impossível, eu sou
outro, meus desertos desejados são outros, minhas montanhas meta nunca serão as
mesmas. Eu, ao acompanhá-lo, trago-lhe a má notícia de que ninguém compartilha o
mesmo deserto. Mas, para trazer a notícia, eu preciso aceitar o convite, estar junto,
aguentar com ele, sobreviver com ele ao desterro. Essa é uma das fundamentais
contradições de ser acompanhante que se propõe ao terapêutico.
Por fim, retomando às perguntas desse texto. É verdade que construir
pensamento é se afastar da proposta de Felipe. Quando ele me convida ao deserto, eu
18
Como na seção anterior desse texto

38
não posso aceitar o convite de maneira plena, e é justamente ai que reside uma das
bases do que é clínico num encontro de acompanhante-acompanhado. É esse
desencontro que permite ao terapeuta pensar e sair do aprisionamento sintomático do
acompanhado. Auxiliando-o assim em seu trajeto para a cura possível. Uma das
tarefas essenciais do AT é continuar construindo, mesmo que os desertos encontrados
(e sonhados) muitas vezes são áridos e hostis a qualquer construção.

Rerências Bibliograficas:

FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos - Volume 1 e 2. Tradução Renato Zwick.


Porto Alegre. LPM. 2016

_________. Os Caminhos da Formação de Sintomas. In: Conferências Introdutórias


à Psicanálise (1916 – 1917) – Obras completas, vol. 13. Tradução de Sergio
Tellaroli. São Paulo. Cia.das Letras. 2014, p. 475 - 500

39
PSICOPATOLOGIAS GRAVES E O VIRTUAL:
alienação ou laço social.
Tomás Bonomi

“você está tão longe


que às vezes penso
que nem existo

nem fale em amor


que amor é isto”

Paulo Leminski (p.40)

As questões relacionadas ao virtual estão cada vez mais presentes nos


consultórios e nas discussões clínicas de hoje. Não é nenhuma novidade que já há
algumas décadas os jogos virtuais fazem parte do repertório das crianças, adolescentes
e, mais recentemente, dos adultos e idosos.
Existem diversas discussões interessantes sobre este tema, como, por exemplo,
qual seria a melhor idade para introduzir a tecnologia na vida das crianças; sobre o
uso que os pais fazem de tecnologias móveis para acalmarem seus filhos muito
pequenos, às vezes bebês; sobre a possível influência dos jogos virtuais violentos na
vida dos adolescentes (tema que sempre vem à tona quando ocorrem tiroteios em
escolas e universidades – principalmente nos EUA), ou mesmo, a discussão acerca do
uso dos jogos eletrônicos como ferramentas educacionais. A questão que pretendo
explorar neste capítulo diz respeito ao uso e a função destas tecnologias no âmbito dos
quadros psicopatológicos graves.
No contexto específico do acompanhamento terapêutico, são muitos os casos
que se relacionam com esse tema de forma mais ou menos direta. Em geral, são
adolescentes e jovens adultos que encontram no meio virtual uma forma mais segura
de viver, pois se sentem oprimidos pelo contato direto com outras pessoas e pelos
imperativos sociais como ter que trabalhar, estudar, ter amigos e etc.
Já no meio virtual, desenvolvem uma vida mais excitante e criativa, além de
conseguirem conquistar feitos que não conseguiriam por outros meios, como por
exemplo: um relacionamento afetivo, ser reconhecido por um grupo de pessoas como

40
um ótimo jogador, Youtouber e até mesmo ter sua vida curtida por diversas pessoas
através das redes sociais.
A demanda pelo acompanhamento terapêutico nestes casos normalmente
ocorre quando tais indivíduos passam a viver quase que exclusivamente no virtual. Na
maioria das vezes são pessoas que estão caminhando ou já se encontram em uma
situação de intenso isolamento social. Com todo esse cenário, surge a pergunta: por
que estes casos com grande frequência chegam aos Acompanhantes terapêuticos?
Usualmente, tais pacientes já participaram anteriormente de algum outro
tratamento com pouco sucesso e, quando se encontram nesta situação, não aceitam
mais nenhum tipo de ajuda. Muitas vezes são ou já foram medicados e carregam
algum dos seguintes diagnósticos psiquiátricos: esquizofrenia, autismo, síndrome de
Asperger, transtorno global do desenvolvimento, transtorno afetivo bipolar, transtorno
de personalidade borderline e etc. Atualmente, já existe um diagnóstico específico
para a questão da dependência da internet: (IAD) Internet addiction disorder, ainda
pouco utilizado no Brasil, mas que cresce rapidamente no mundo, inclusive com o
surgimento de clínicas de desintoxicação específicas para esses casos19.
Uma outra característica bastante presente nesses casos refere-se à pouca ou
nenhuma circulação dos pacientes, que geralmente vivem estritamente dentro de seus
quartos ou no cômodo em que o computador está instalado, onde não há necessidade
de nada além do acesso à internet. É comum ao A.T. encontrar alguém pouco ou nada
disposto a te conhecer, virado para uma tela e de costas para você. Este seria o
prefácio do que chamei de acompanhamento virtual.
Ao longo de diversos processos analíticos sempre carreguei a seguinte
questão: o que aconteceria com a economia libidinal destes pacientes se vivessem em
uma época que não dispusesse de tamanha tecnologia? Esta pergunta me conduz ao
seguinte questionamento: estariam os pacientes ainda mais isolados e alienados se não
dispusessem do virtual?

Mario e a DC Comics:

Mario (nome fictício) tem por volta de 25 anos, mora com os pais e com uma
irmã mais nova. Nunca se interessou pelos estudos, mas sempre frequentou escolas
19
Para mais informaçõ es sobre o tema há o documentá rio “Web Junkie” (2012) que retrata um
desses centros de tratamento na china.

41
particulares bastante exigentes e jamais repetiu um ano. Conta ter sempre sofrido com
as obrigações escolares e de certa forma se diz traumatizado com essa época.
Desde pequeno teve muito interesse por vídeo games, quadrinhos, desenhos,
filmes de super-herói e etc. Em suas palavras, por ter estes interesses, na escola o
taxavam de nerd, e tinha enormes dificuldades em realizar amizades.
Após o colégio, Mario ingressa em uma faculdade de comunicação, porém
continua com grande dificuldade em desenvolver laços sociais e acaba largando o
curso pela metade.
Desde então, a vida de Mario acontece quase exclusivamente em seu quarto,
na frente do computador. Ele evita ao máximo qualquer tipo de relação afetiva, estes
contatos parecem ser muito desconfortáveis para ele e, pelo menos em sua fala, diz
não sentir falta das pessoas.
No computador, Mario passa os dias assistindo vídeos de comediantes, filmes
on line, canais de youtube e blogs que comentam a vida das celebridades
hollywoodianas e principalmente críticos de jogos de vídeo game e filmes.
O próprio Mario tem um canal de youtube e um blog em que posta
informações, textos e vídeos dele próprio fazendo críticas à filmes de super heróis.
Mario faz isso há alguns anos e sempre encontrou grande dificuldade em acompanhar
o ritmo de produção de outros youtubers. Enquanto eles produzem alguns vídeos por
semana, Mario consegue fazer no máximo um por mês.
Mario tem um cotidiano bastante repetitivo, seu quarto é muito bagunçado e
sujo. Ao se arrumar para sair correm algumas horas. Tem pouco cuidado com a
higiene e não se alimenta de forma saudável.
Por mais que exista um isolamento social, quando Mario precisa ou quer algo,
como ir ao supermercado, ou assistir a um filme, ele sai de casa sem maiores
problemas, apesar de reclamar bastante de todos os contatos sociais que realiza nestes
momentos.
Dentre as diversas atividades que realiza na internet, Mario concentra a maior
quantidade de energia e tempo em assistir tudo o que diz respeito a produtora de
filmes e quadrinhos DC Comics. São dela os personagens Batman, Super Homem,
Mulher maravilha entre outros. Atualmente, existe uma opinião dominante entre os
jovens de que tal companhia estaria quase sempre produzindo filmes sem grande
sucesso, ainda mais se comparados a sua concorrente Marvel.

42
A partir deste discurso, Mario entende estar incumbido da função de mostrar
ao mundo que esta opinião estaria errada e que a maioria das pessoas seria estúpida
por não reconhecer a genialidade dos filmes e quadrinhos produzidos por tal empresa.
Assim como na escola, mais uma vez Mario se encontra do lado dos excluídos na
missão que se coloca de salvar a honra da DC Comics. Há poucos que concordam
com suas ideias e quando encontra uma opinião contrária – quase que diariamente –
Mario sente que os ataques e piadas destinadas à companhia o ofendem pessoalmente.
Mario é medicado por um psiquiatra há mais ou menos dez anos, houveram
muitas mudanças de remédios até que se encontrasse uma medida e combinação
satisfatória para diminuir sua raiva, depressão e ansiedade. Sintomas relatados na
época em que procurou o psiquiatra.
No início de meus atendimentos (7 anos atrás) e de certa forma até hoje, tive
muito pouco espaço para expressar ideias, comentários, interpretações ou
apontamentos sobre quase qualquer assunto. Vejo-me transferencialmente colocado
em um lugar de plateia, como se fosse uma espécie de plateia-cobaia com a qual
Mario testa suas opiniões antes de colocá-las em prática. Outro lugar que também
entendo ocupar na transferência seria o de receptáculo de angústias que precisa
sobreviver aos seus investimentos agressivos. Como uma mãe que sobrevive às
pulsões destruidoras do bebê. Nos momentos de angústia, Mario socava as paredes,
dava chutes e xingava muito as pessoas que habitam ou habitaram sua vida, seja
familiares, pessoas de seu passado (colegas da escola) ou figuras da internet que ele
acompanha com afinco.

Discussão:

A psicanalista Helen Deutsch (2007) criou o conceito de “personalidade como


se” para descrever um tipo de defesa psíquica. Segundo a autora, esta defesa agiria
como uma tentativa de adaptação completa à realidade no intuito de proteger o ego
dos impulsos internos do super eu. Isto se daria pela imitação mimética de objetos em

43
detrimento de uma relação de objeto20 que exigiria um aparelho psíquico mais apto e
desenvolvido.
Nos casos descritos como “personalidade como se” o sujeito se colaria a um
objeto no intuito de encontrar um estado de organização psíquica onde reinaria a
ordem. Um mundo totalmente organizado seria a tentativa psíquica de encobrir uma
angústia arcaica referente ao temor da perda dos objetos, e, por consequência, o
esfacelamento egoico. Desta forma, o sujeito se colaria em um objeto na tentativa de
eliminar o espaço intrapsíquico conflitivo. Entretanto, Deutsch afirma que apesar
desta colagem proteger o indivíduo de certas angústias, tal defesa proporcionaria
somente um frágil equilíbrio psíquico.
Ao se sentir pessoalmente atacado pelas críticas e zombarias a DC Comics,
Mario de alguma forma encarna esta empresa, ele vive na pele os ataques. Aos poucos
fui pensando que esta relação poderia ser explorada através do conceito de adesão
mimética a um objeto.
Passados dois anos e meio do início do tratamento, após inúmeras repetições e
apontamentos, Mario conseguia distinguir os ataques à DC Comics, da sua pessoa, e
até se perguntava o porquê de reagir daquela maneira intempestiva. Ao formular esta
pergunta, Mario iniciava um processo elaborativo e poderíamos esperar que aos
poucos pudesse desenvolver outras relações de objeto que não se utilizam
necessariamente da imitação objetal. No entanto, invariavelmente, voltava a se sentir
muito angustiado diante das mesmas críticas, de forma que toda a elaboração feita
parecia praticamente desaparecer.
Em um determinado encontro, Mario conta que seus familiares já tinham lhe
dito que deveria deixar a DC Comics de lado, pois seria algo de menor importância.
Ao refletir sobre esta questão, Mario começou a se angustiar bastante e a chorar
afirmando que se ele não fizesse isso, o que faria da vida? Em seguida afirmou que
nada mais importava e que essas questões eram a vida dele.
Contratransferencialmente vivi este momento com bastante dificuldade, sentia que
tinha uma criança indefesa em minha frente e que estava prestes a se desfazer.

20
Utilizo a definição de relação de objeto presente no Vocabulário da psicanálise de Laplanche e
Pontalis (2001). “A expressão “relação de objeto”pode desorientar o leitor não familiarizado com os
textos psicanalíticos. Objeto deve ser tomado neles no sentido específico que possui em psicanálise em
expressões como “escolha de objeto”ou “amor de objeto”. É sabido que uma pessoa, na medida em que
é visada pelas pulsões, é qualificada de objeto; isso nada tem de perjorativo, nada em especial que
implique que a qualidade de sujeito seja por isso recusada à pessoa em causa.

44
Quando isso ocorreu, permaneci ao seu lado longos minutos além do tempo do
acompanhamento esperando uma espécie de reintegração egoica.
Seguindo esta linha das dificuldades no estabelecimento de relações objetais,
Renné Roussillon (2012) cunha o termo “transtorno narcísico identitário” para se
referir aos problemas nas fronteiras entre Eu e outro. O termo faz referência à uma
espécie de passagem capenga pelo narcisimo primário, quando o sujeito chega a
desenvolver relações de objeto, mas permanece com uma dificuldade na diferenciação
eu x outro - própria deste momento primário do narcísismo. Um Eu que se formou
prematuramente trará cicatrizes, pois foi forçado a viver angústias primitivas e por
consequência lançar mão de defesas arcaicas. Logo, forma-se um Eu com funções
egoicas cindidas e amputadas, este sujeito sempre terá dúvidas sobre sua identidade,
pois não houve uma integração narcísica regular.
Segundo o autor, nos adoecimentos narcisistas o sujeito estabelece relações
objetais marcadas pela especulariedade, pois refletem a onipotência infantil própria do
narcisismo primário. Sendo assim, surgem duas formas de relação: na primeira, o
sujeito buscará a todo custo identificações imaginárias ideais impossíveis de alcançar.
Na segunda, buscará - ele próprio - ocupar o lugar de objeto imaginário à espera de
aplausos.
Percebo em Mario estes dois movimentos, ele tanto se identifica maciçamente
aos críticos de cinema que possuem milhões de seguidores e grande impacto no meio
virtual como, por vezes, vivencia uma espécie de delírio de grandeza em que, de um
dia para o outro, estará famoso e milionário. Ambas as formas de relação são muito
frágeis e lhe impõem um sofrimento cotidiano.
A primeira impressão que temos da relação de Mario com os jogos eletrônicos
e a internet consiste justamente no modelo das relações especulares, uma vez que os
filmes e jogos funcionam como objetos alienantes tendo a função de sustentá-lo
narcisicamente a partir da identificação com o objeto DC Comics. Esta relação objetal
desmontaria a oposição eu x outro e provocaria um estágio regressivo do ego no qual
qualquer experiência de alteridade é praticamente anulada.
Uma outra forma de olhar para este fenômeno reside nos momentos em que
Mario consegue estabelecer algum tipo de relação de alteridade - justamente através
dos jogos e a internet. Isto se dá, por exemplo, quando Mario reage à uma crítica feita
a um de seus vídeos. Nestas ocasiões, existe um trabalho egoico complexo em
operação: ele escolhe se irá responder ou não ao comentário, pondera se deveria ler as

45
críticas e, para isso, tenta de alguma forma se colocar no lugar do outro para entender
a razão de determinado comentário. Além disso, reconhece que em momentos
passados agia de forma parecida a de seus comentadores ao tecer somente
comentários jocosos (trolls) aos vídeos de outras pessoas. A partir de uma produção
singular colocada na internet, Mario estabelece contato com uma outra pessoa que
imprime um comentário sobre seu trabalho. Mario passa por um conflito intrapsíquico
que o faz responder de uma maneira ou de outra. Percebemos neste exemplo uma
forma de relação objetal que não se parece com a defesa mimética, talvez até possa
ter surgido deste objeto imitado, mas existe claramente um deslocamento e a
possibilidade de alguma simbolização. Quando isso ocorre, Mario consegue fazer uso
do objeto internet - exercitar suas funções egoicas -, ao produzir conteúdos originais e
dialogar com pessoas do meio.
Contudo, tais momentos são raros. Mario normalmente tem muitas
dificuldades em continuar produzindo materiais e, a imensa maioria do tempo, passa
jogando e assistindo vídeos que invariavelmente o irritam e o puxam novamente para
uma posição bastante defensiva em relação ao mundo, como se todos quisessem
atacá-lo, ou como se todos fossem estúpidos, pois não concordam com ele. Apesar
dessa repetição insistente, esta defesa psíquica o protege de uma posição ainda mais
mortificante, pois tal relação objetal tem uma função primordial em sua economia
libidinal; ele mesmo expressa: O que seria de mim sem a DC Comics? Apesar da
dinâmica psíquica no “transtorno narcísico identitário” apontar para um difícil
prognóstico e manejo clínico, Roussillon desenvolve a ideia da “função simbolizante
do objeto” na tentativa de traçar uma possível direção de tratamento para estas
situações clínicas.
O autor dedica um artigo inteiro para se aprofundar na função que um objeto
primário teria no desenvolvimento das capacidades de simbolização dos sujeitos. Para
Roussillon, o nascimento da exterioridade (diferenciação eu x outro) não se daria
simplesmente pela frustração vivida pelo bebê ao viver na pele o corte da relação com
sua mãe. Além dessa vivencia traumática, faltaria ao desenvolvimento desse
psiquismo a vivência de uma relação na qual o objeto primário (mãe) deixa-se usar
pelo sujeito. O autor denomina este processo de “uso do objeto” no qual um sujeito
se presta à outro no sentido da promoção da simbolização. Sobre isso Roussillon
(2015) afirma:

46
Para ser descoberto, o objeto deve "sobreviver" à destrutividade, o que
implica a presença de três características de suas "respostas" a ela: a ausência
de retirada - o objeto deve se mostrar psiquicamente presente -,a ausência de
represálias ou de retaliação - o objeto não deve estabelecer um rapport de
força com o sujeito. No entanto, estas duas primeiras características,
geralmente apenas mencionadas, não são suficientes, o objeto - e nisso ele
testemunha sua existência como outro-sujeito - deve sair da órbita da
destrutividade para restabelecer o contato com o sujeito: deve se mostrar
criativo e vivo. É essa retomada de contato que é decisiva na descoberta da
exterioridade do objeto; as outras duas características são, no fundo, apenas
pré-condições necessárias para que ela ocorra. (p.263-264).

Portanto, a função simbolizante do objeto propriamente dita seria a de fornecer


originalmente à criança, – mas também nos casos graves aos adultos - as ferramentas
necessárias para atenuar a falta advinda da perda desse objeto primário. Ou seja, a
possibilidade de usar outros objetos que simbolizem e possam se deslocar para esta
função. Neste sentido, o “uso do objeto” promoveria o desenvolvimento da
capacidade de simbolização na medida em que exercita a capacidade de construir algo
que represente outro algo. Capacidade esta que se encontra bastante prejudicada nas
formas de relações objetais presentes nos estados “narcísicos identitários” e nas
“personalidades” como se”, pois, como vimos, nestas formas de relação não há espaço
para o deslocamento de representações. O sujeito se agarra em um primeiro objeto
com toda sua força na tentativa desesperada de sustentar a fantasia de um narcisismo
infantil.
Roussillon concebe a ideia do “outro-sujeito” para destacar uma forma de
presença analítica em que o A.T. aceita apagar ou atenuar sua própria existência –
enquanto alteridade – justamente para permitir a alteridade, sendo assim, o analista
tentaria ocupar o lugar de um proto-objeto primário visando em alguma instância
provocar operações de simbolização. Surge então uma aposta clínica de que a partir
dessa nova experiência vivida com o terapeuta, seja possível instaurar uma
reorganização da experiência da ilusão primária e, assim, criar algum espaço de
deslocamento subjetivo que permita relações objetais que não operem somente através
do prisma narcísico.
Repensando a transferência com Mario, não se trataria somente de sobreviver
aos seus investimentos destrutivos, mas sim de desenvolver um vínculo que se revela
e se dá no ataque, uma ligação que se daria a princípio via a destrutividade, já que nas
patologias narcísicas o sujeito tenta o tempo todo destruir vínculos. No caso de

47
Mário, entendo que foi somente sobrevivendo à sua ira, que ele pode me colocar no
lugar de plateia e assim experimentar uma relação viva e criativa, e com o estofo
necessário para se sujeitar aos humores e opiniões de um terceiro. Neste sentido,
deixar-se ser usado pelo paciente seria uma posição analítica no at.

Por fim:

Voltando a pergunta inicial deste trabalho sobre o que aconteceria com a


economia libidinal destas pessoas se vivessem sem a internet e os jogos eletrônicos,
posso somente confabular sobre o passado, os mais nostálgicos se lembram de quando
se jogava “pelada” na rua e se rodava pião Muitos normalmente advogam contra as
tecnologias e alegam que o mundo de hoje produz seres adoecidos. Mais do que
qualquer coisa, tal argumento me parece um julgamento moral. A realidade de hoje é
uma realidade que impreterivelmente promove relações objetais virtuais. Isso faz
parte do atual interstício cultural e, assim como todas as produções culturais, são
apropriadas pelo psiquismo produzindo diversas formas de subjetivação, sendo assim,
não se poderia simplesmente qualificar tais relações como alienantes ou não.
O que talvez seja possível afirmar sobre os sujeitos que apresentam economias
libidinais exacerbadamente voltadas ao virtual se traduziria em um paradoxo: por um
lado, encontram nessas relações algum tipo de segurança narcísica, o que em tese
possibilitaria a constituição de relações objetais mais complexas. Porém, acabam
destinados à vidas empobrecidas de relações afetivas, pois não conseguem
desprender-se dessa dinâmica psíquica colada ao objeto virtual.
No caso de Mario e de outros que atendi ou me foram relatados, penso que a
relação transferencial com o terapeuta, quando constituída nos moldes do “outro-
sujeito”, pode imprimir uma marca subjetiva única e originária. Digo única e
originária, pois diante de uma falência subjetiva, em que toda a economia libidinal do
sujeito está voltada ao virtual, o estabelecimento de uma relação - que conceba a
alteridade - tem a potência de produzir novas aberturas e possibilidades de existência,
ou seja, expandir o universo de ligações pulsionais tornando este psiquismo um pouco
menos repetitivo e preso às velhas relações objetais. Ou seja, o acompanhante
terapêutico à serviço do jogo da simbolização. Neste sentido, é fundamental a
presença de A.T. que acredite e reconheça que sim, há vida naquelas telas.

48
Referências Bibliográficas:

Deutsch, H. (2007). Les comme si: et autres textes : 1933-1970. Paris, Seuill.

Laplanche, J e Pontallis. (2001) Vocabulário da psicanálise; sob a direção de Daniel


Lagache ; tradução Pedro Tamen – 4ed –São Paulo, Martins Fontes.

Leminski, P. (2004). La vie en close. São Paulo: Brasiliense.

Roussillon, R. (2012). Manuel de pratique clinique. Amsterdam, Elsevier Masson.

Roussillon, R. (2015). A função simbolizante. Jornal de Psicanálise, 48(89), 257-286.


São Paulo.

Web Junkie. Direção: Shosh Shlam e Hila Medalia, Produção: Shosh Shlam, Hila
Medalia e Neta Zwebner-zaibert. China. Produtora: Chicken And Egg Pictures,
Impact Partners, Shlam Productions. 2013.

49
NASCER PARA DENTRO, NASCER PARA FORA: a mãe

Juliano Garcia Pessanha

Há muitos anos escrevi sobre o nascer para fora. O nascer para fora foi minha certidão
de nascimento e, por isso, foi fácil escrever sobre ele. Minha vida filosófico-literária
começou com um texto que soletrava o meu idioma natal, era intitulado “O ponto K”,
para fazer uma alusão ao antimundo de Kafka, mas o autor que usei para explicitar o
nascer para fora foi Heidegger. Passaram-se vinte e seis anos desde então, e foi só de
alguns anos para cá que eu me encontrei em condições de explicitar não mais o ponto
K, mas o lugar A. O lugar A é o idioma estrangeiro que aprendi a soletrar, é a terra de
uma antropogênese feliz e sustentada. Eu não teria conseguido falar a língua do lugar
A sem a incorporação canibalizadora da obra de Peter Sloterdijk e da sua trilogia
Esferas, especialmente o livro I, Bolhas, acerca dos espaços íntimos. Assim, se
Heidegger me permitiu articular a questão, o que é nascer pra fora?, Sloterdijk me
possibilita dizer o que significa nascer para dentro, ainda que, para isso, eu vá saquear
os termos de Esferas I e sintetizá-los a ponto de trazer parte do sumo dessa obra de
quase seiscentas páginas em apenas algumas.21 O que Esferas I esclarece é que o
nascer para dentro é uma questão de aliado: inclui-se num espaço interior ou nasce
para dentro aquele que participa de pequenos duetos ressoantes de alta
complementariedade.
Um aliado complementador nota o tipo de vibração e de sonoridade que
emergem do outro polo e responde numa mesma afinação adensadora, para falar em
termos musicais. Se uma vibração exógena ou uma música trocada aborta o
engrandecimento da musicalidade que surge no outro polo, um bom aliado é aquele
que dá continuidade ao tom que o outro emite, a ponto de os polos se confundirem
numa musicalidade una e única. Quem passou por essa câmara dual de ressonâncias
pode, um dia, seguir para mundos e contextos ampliados, pois já está munido de um
repertório próprio. Já aquele que não esteve contido nesse espaço de atenções, ou
esteve, mas foi invadido por sonoridades alheias, ficará congelado ou obrigado a
21
Apesar deste texto realizar uma incorporação e uma simbiose com a obra de Peter Sloterdijk, decidi
citar alguns trechos para que o leitor possa ele mesmo também apreciar a excelência da escrita do
filósofo, já que meu procedimento é de enxugamento e condensação diante de obra tão expansiva e
caudalosa.

50
emitir músicas impróprias. De qualquer modo, nenhum ser humano pré-existe aos
seus animadores e aliados. Ele depende de mecenatos matriciais de acompanhamento
e de ressonância para chegar a si e ao mundo. Sem as boas temperaturas de um
sistema de mimos e acompanhamentos, há o risco de contrair um “catarro ontológico
incurável”, nas palavras de Sloterdijk, em O sol e a morte, e de zanzar por aí
carregando um “não maior que o mundo”, nas de Cioran.
Como a escassez de cuidado e a rarefação do sopro de atenções extáticas são
um assunto lotérico, o ser humano tanto pode acontecer e chegar a si quanto ficar
congelado e extraviar-se de si e do mundo. Tudo depende da hospitalidade do aliado e
da imersão no halo da atenção envolvente. E o que é um aliado hospitaleiro? Aliado
hospitaleiro é aquele que permite ser devorado, canibalizado e criado pelo outro polo
no duo bipolar. O aliado hospitaleiro permite a confusão no tráfego de gestos e todo
tipo de mergulho extático na área surreal da intercorporeidade. Aliado hospitaleiro é
aquele que proíbe o uso do termo “objeto” para designá-lo e que não vê plágio e
roubo por parte de seu em-frente, ou seja, o outro polo da díade. Nos duetos
originários, o “roubo” é consentido, pois o outro é, simultaneamente, outro e minha
própria obra, isto é, eu mesmo. O paradoxo winnicottiano, segundo o qual encontro
com um ente que é experimentado como minha própria criação, garante tanto o
estender-me na direção do mundo quanto um preenchimento não alienado de si
mesmo. Se o encontro com a alteridade e o estranho doa o oco, o vazio e a retração, o
encontro com o ente criado concede o preenchimento e a territorialização.
Quando o filosofar parte do começo antropológico que é a necessidade de
complementação do bebê humano e da demanda de intimidade de uma criança, então
ele problematiza tanto a xenofilia dominante nas ontologias contemporâneas quanto o
paradigma subjetivo da filosofia moderna.22 Partir do fenômeno da consubjetividade
originária, como faz Peter Sloterdijk, o filósofo intimizado e devorado neste texto, é
deixar para trás o dogma individualista, apoiado na ontologia da coisa, presente tanto
na fenomenologia quanto na psicanálise vienense. Falar de indivíduo e de sujeito elide
o divíduo: o indivíduo nasce do divíduo, nasce das visitações e das lentas estadias de
hóspedes duradouros. A própria interioridade humana é o precipitado de um encontro.
Os homens ocos, os pastores do ser e os corpos sem órgãos ganharam o vazio de
aliados indiferentes, sequestrados, desatentos e donos de mamilos e de halos
22
Se as ontologias contemporâneas seguem em grande medida o privilégio heideggeriano concedido à
estranheza originária, o paradigma subjetivo da filosofia moderna não vê o fenômeno esferológico das
díades iniciais.

51
proibitivos. Para alguém enlouquecer, ensinou o psicanalista Harold Searles, é preciso
um longo exercício de abandono, desafinação e desajuste de dádivas.
É sempre no duo que se decide o um. O encontro originário formador, o duo
autoincubador é o “realissimum esferológico”. O ser-um-no-outro vivo e sustentado
do pacto pneumático cocriador é a própria estufa na qual cresce e se territorializa o
self verdadeiro. Se um aliado devotado e cuidador apresenta o mundo paulatinamente,
se doando nas coisas que apresenta, então essas coisas tomam a criança na mesma
medida em que ela as toma. Eis aí o segredo do povoamento interior do menino. Essas
entidades benévolas, os “mamilos eudaimônicos”, as “fadas bebíveis” e os “caramelos
cheirosos”,23 a velar sobre o berço da criança, se derramam no seu interior, escavando
um aposento comum repleto de espíritos associados. O incorporar-se produtivamente
do menino faz-se de estar possuído por entes hospitaleiros. Já o menino que ficou oco
não consegue constituir mobiliário interno. Ele fica desprovido de “alma” e sem saber
quem é. Ele cospe e rejeita o leite materno – por este ter chegado cedo ou tarde
demais de halos pétreos e envenenados – em condições nas quais ele não pôde se
sentir seu dono. O estranhamento vigora para aquele que chegou ao mundo em
condições de catástrofe esferológica. Sem a imunização decorrente da presença do
aliado, o frio da exterioridade aniquila a vinda a si e ao mundo. O menino oco nasce
do não fundamental e do recuo. Ele pode manter aceso o grande vazio e tornar-se
mero lugar para dizer o ser e o clarão inquietante da vinda de um não-mundo
enigmático ou povoar-se pobre e imaginariamente em figuras de desenho animado ou
heróis virtuais. Nesse sentido, aquele que se ancora numa imagem é o menino cuja
estufa imunológica explodiu e cujo aliado não o incluiu em participações animadoras.
É por isso que a esferologia pode dizer que “toda animação é um acontecimento
midiático – e que todos os distúrbios psíquicos são deformações da participação, ou
seja, doenças dos meios”.24
Esferas I, ao descrever os duetos formadores do eu a partir de situações pré-
subjetivas e pré-objetivas, inaugura um modo de falar do devir-sujeito e da
antropogênese que abandona a gramática moderna sujeito/objeto e isso evidencia que

23
Na tradução brasileira, a referência a essas entidades encontra-se em: “Não está, cada criança que
não enfrentou o abandono, convencida da vantagem de ter nascido apenas porque as mamas
eudemoníacas, os bons espíritos dos doces, as mamadeiras conspiratórias, as fadas potáveis velam
discretamente ao pé de seu berço para adentrar de vez em quando seu interior e tranquilizá-la?” (P.
Sloterdijk, Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade,
2016, pp. 88-89).
24
Id., ibid., p. 274.

52
o papel terapêutico do aliado substituto é muito mais ativo e formador do que o termo
psicanálise poderia supor. Não se trata evidentemente de análise, mas de atividade
sintética e de imersões e de empréstimos de ser que permanecem invisíveis para a
linguagem objetivante e para a dogmática individualista. Assim, se sou um menino
psicótico, que morde os botões da camisa de um terapeuta, a fim de com eles costurar
uma forma possível, então o terapeuta deve se deixar saquear a ponto de possibilitar o
êxodo do disforme e dar passagem de migração do sem lugar e do fora para o lugar
dentro.
Pensar o dois-em-um ou o ser-um-no-outro do duo simbiótico ou, ainda, partir
da mãe como situação do filho é abandonar, de partida, o individualismo e a ontologia
da substância. Como já foi dito, um ontologista do íntimo deve poder descrever a
própria gênese do eu no vocabulário das incorporações produtivas, mergulhos
extáticos e gestos antropofágicos. (Não é exatamente isso o amor implacável de que
falava Winnicott?) Quem se desloca pelos espaços íntimos é capaz de nomear o
tráfego e a orgia dos gestos incorporadores e a imersão abissal no próximo. Ora, a
linguagem sujeito/objeto falsifica o campo das dualidades arcaicas.
Outro aspecto da microesferologia que suscita debates e consequências
fecundas é a ideia de que a própria díade ressoante perfaz um espaço interior de
sustentação. Se a mãe, anfitriã primeira, é um lugar imunológico ex-útero,
conformador de espaço e de familiaridade, então é preciso relativizar e circunscrever
o ponto de partida do estar-lançado (Geworfenheit) heideggeriano e as figuras do
pensamento centradas no desamparo e no desastre como são os casos de Bataille e
Blanchot, entre outros. Há que se compreender de um outro lugar o culto ao
estranhamento e à extimidade reinante entre os pós-heideggerianos. O pensamento da
diferença ontológica, aquele se detém no rasgo de eventualização do ser no ente, não
tem repertório suficiente para pensar a diferença entre o estar exposto, o estar no puro
exterior (exterioridade) e o estar ocupando um espaço interior. Essa é, para Sloterdijk,
pensador dos mundos e do dentro, a diferença antropológica fundamental. Ninguém
entenderá qual a senha de entrada se não entender de aliados e acompanhantes. O
adentramento no mundo não coincide com o nascimento biológico, mas tem a ver
com a participação em relações de proximidade no interior de receptáculos
autogerados. O susto e a perplexidade permaneceriam nosso antiendereço constante e
o espanto nossa única morada se o ente não viesse até nós pelas mãos do aliado. É ele
quem, ao nomear e sorrir, imuniza o clarão alético com o seu gesto humanizador. Se

53
este for sintônico e correspondente, o outro polo experimentará o ente que toma nas
mãos ou põe na boca, não como uma mera coisa diante dos olhos ou um utensílio,
mas como uma criatura sua, vivaz e animada. Seres humanos são migrantes que, por
chegarem prematuramente do interior materno, dependem de seres que emprestem
seus próprios corpos para que esses, como pequenas arcas e escudos íntimos,
controlem inclusive o quantum, o volume de mundo que pode entrar no interior da
célula de intimidade. Nisso reside a seriedade do abraço, pois este delimita o
envoltório imunológico no interior do qual o que vem ao encontro ganha uma digital
humana e uma feição familiar. Se estamos dentro, já não estamos soltos ao “pé das
coisas e ao pé das pessoas”, como diz Sloterdijk em O estranhamento do mundo. A
delimitação do abraço opera uma transfiguração, pois, o que surge nesse espaço,
longe de ser uma simples coisa no jorro de uma fulguração alética, passa a ser, na
medida em que nomeados e tocados pelo aliado, uma coisa-amiga, uma entidade-
benigna, que se derrama sobre mim, me povoando e me retirando lá de fora. Ser
resgatado da exterioridade é experimentar alguma coisa como um demônio benigno
que me possui e me toma no mesmo momento em que eu o tomo – como é o caso do
leite materno. Sloterdijk diz que: “Se os confeitos e as mamadas fossem sujeitos, e
não meras coisas, se fossem, por exemplo, demônios benevolentes, então se poderia,
sem extravagância, explicar que eles se apossam de seus consumidores e neles se
instalam como ocupantes que tencionam ali permanecer por longo tempo”.25 É dessa
ocupação benévola que nasce a interioridade e é com esse povoamento que se ergue
um eu, apoiado no seu clube de associados. Já o menino oco, desfiliado e sem apoio,
terá de enraizar-se ou ancorar-se mimeticamente a partir dos meios de comunicação e,
com esse tipo de organização, encobrir o buraco do self negativo. As crianças ocas,
em sua grande loucura branca, e o autor deste texto inclui-se também nesta categoria,
existem sem o mergulho no sim e no aquietamento. Quem nasce para fora fica detido
em uma chegada permanente. Fica refém no aí de uma inicialidade sem fim. Quem
nasce para fora anota a própria irrupção enigmática no mundo. Não consegue se
esquecer do evento de estar sempre chegando num lugar para o qual não adentra!
Suspenso numa retração de quebrar o fôlego, diz apenas de uma movimentação
extática, mas não sabe contar de uma localização inclusiva. Sem pai ou mãe para se
originar ou para começar a costurar um dentro, assiste à própria eclosão no clarão

25
Peter Sloterdijk, Esferas I: bolhas. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação
Liberdade, 2016, p. 88.

54
inquietante do aberto. E por ser chegada incessante, o nascido para fora pode
converter-se num locutor do ser, mas é alto o preço que paga aquele que não se
integra ao mundo nem se encosta nos entes. Um locutor do ser – ou uma “estenógrafa
da vida”, como se autonomeava Marina Tsvetaiéva – precisa estar bem oco para
acolher o ditado do mundo, a eventualização do que é. Alguém dotado de
interioridade e ocupado com o contexto de seu mundo dificilmente estará disponível
para ser fiel ao evento do acontecimento do ser no ente. A única vantagem de ter
ficado vazio – de interioridade, de preenchimento, e de mobiliário psicológico – é a
de, na despersonalização e na impessoalidade, tornar-se um espelho vivo e fiel do
mundo. Vantagem, bem entendido, para o ser e para a poética do serviço, mas não
para quem permanece oco e suspenso, aprisionado no umbral da movimentação do
ser. Este fica privado de uma vida biográfica e é mero lugar de revelação.

***

No que diz respeito à minha própria experiência de ter ficado suspenso e desenraizado
a ponto de ter criado uma grande quantidade de eus, posso afirmar que ela conheceu
ao menos duas fases: uma primeira, espontânea, na qual eu invejava e queria entender
os homens de dentro, e uma segunda, filosófico-teológica, na qual, em virtude das
obras que lia e de uma aliança terapêutica, estive tomado pela mania da eleição: eu me
considerava não mais um louco como antes, mas um ser especial, um ser
teologicamente investido, falado pela língua originária, um ser que fazia parte de um
clube de iluminados, como o Kafka, o Heidegger, o Nietzsche, o Blanchot, o Lacan e
cia limitada. Havia, inclusive, uma missão epocal para mim e eu era uma espécie de
homem requalificado, alguém já talhado para uma nova era alético-poemática. Mas o
fato é que, por mais que eu abrisse as portas de minha casa e levasse a palavra real-
profética por toda parte, incluindo aí escolas públicas e hospitais psiquiátricos, eu
notava que a palavra trágica e quebrada não encontrava muita ressonância nem fazia
comunidade. Não havia muitos seres infundados e expostos para comigo seguir o
caminho da única revolução. Concluí, finalmente, que eu havia nascido para o mundo
com um repertório negativo para o qual parecia não haver lugar e, mais do que isso,
senti que o mundo técnico-monetário não era mais ultrapassável.
Após um ano em que apenas um aluno me procurava, as goteiras se
espalhando pela casa, o saldo negativo e o rato que tive de matar para defender o

55
território da cozinha, me acordaram do delírio e me libertaram do mantra hipnótico;
do estranho relato no qual o desastre humano havia se convertido em privilégio e que
o conhecimento da dor e da ruína me asseguravam um destino promissor. Minha
revolução para fora do mundo alienado e esquecido não encontrava nenhum parceiro
além de meu próprio terapeuta. De um lado, as pessoas com um “eu” não queriam
perdê-lo, de outro, os que estavam enlouquecidos ou desabando em angústias
psicóticas queriam ganhar um, mas não transfigurar o vazio e o nada para a visita do
ser e do poema. A minha pregação pós-metafísica estava reduzida às moças que
serviam café no Eldorado: eu tinha me tornado uma espécie de mestre Eckhart de
shopping-center. Nesse sentido, bastou uma lufada de falta de dinheiro, essa senha
para a acessibilidade aos entes, para que minha revolução ontológica desmoronasse.
Simultaneamente, o interesse pelas pessoas do dentro e a pergunta de juventude, qual
o envelope que contém os seres humanos?, começava a tomar o lugar do elogio do
desassossego. Percebi que eu, o pretenso pastor do ser, possuído pelo logos profético,
não passava de um último homem com medo de perder a acessibilidade, a casa, o
edredom antialérgico, o conforto. Queria integrar-me ao mundo e compreender os
segredos do Dentro. Além disso, como desde menino eu fui sempre o sonho de uma
outra pessoa, concluí que o personagem pastor do ser e escritor – ainda que ancorado
na única experiência verdadeira que conheci, a do desastre humano – não passava de
uma estetização aristocrática para ser amável e especial para alguém. Ele equivalia
assim ao desejo de ter um braço forte e estampar nesse mesmo braço, de preferência
bronzeado, uma tatuagem atraente para exibi-la nas areias do litoral norte. Vale dizer
que, quanto mais o escritor desmoronava, e quanto mais risível e abjeto se tornava
para mim o conto do homem vindouro, despossuído já das bengalas da identidade,
mais crescia em mim o desejo de compreender o mundo e o Dentro. E é óbvio que eu
não teria conseguido formular uma filosofia do Dentro, ainda mais com a amplitude e
a perfeição com que a realizou o Peter Sloterdijk nos três volumes da sua esferologia.
Esses três livros me arrebataram de uma tal maneira que eu escrevi uma tese de
doutorado sobre eles a fim de não só compreender o Dentro, mas de tratar de
conseguir mais senhas e mais chaves para existir no interior plural do Dentro
moderno. Foi essa trilogia que esclareceu a minha pergunta juvenil acerca da
diferença entre estar Dentro e estar Fora, assim como sobre a natureza dos invólucros
e continentes. Eu finalmente entendi o que era um povoamento interior, o que era uma
subjetividade e o que eram os sucessivos mundos nos quais o ser humano pôde existir

56
e ser contido. Eu não apenas li e reli esta obra a ponto de os livros se desmancharem
em minhas mãos, mas eu a comi e a incorporei de uma forma tal que a mera
competência acadêmica não abarcaria sequer um grama dos quilos e quilos que
transformei em partes do meu próprio corpo. É por isso, é por causa dessa simbiose
que eu, neste texto, ao usar as palavras e os conceitos de Peter Sloterdijk, decidi nem
sempre usar aspas, pois todos esses conceitos foram legítima e verdadeiramente
plantados no meu próprio ser como sendo meus. Não deve ser algo muito incomum o
fato de um filósofo responder a questões que nossa vida já havia formulado, mas que
não tínhamos competência para responder. Penso que, neste caso, o plágio está
autorizado e que podemos considerar tais obras como nossas também, pois nós a
recriamos em nossas leituras. E foi exatamente isso que eu disse a ele, no dia em que
o encontrei em São Paulo. Disse que o tinha recriado e que eu lhe era grato por ter me
libertado do romantismo do aberto e do romantismo da psicose. Disse que minha vida
havia conhecido apenas a ek-stase heideggeriana, a suspensão no nada e o inferno
incessante de estar sempre chegando, mas que os livros dele haviam me revelado a
beleza e o segredo da ens-tase, da localização no interior dos mundos. A senha para
entrar estava desvendada e eu agora tinha o acesso ao que havia me faltado em minha
chegada e me condenado ao descontínuo do clarão do ser. Ele devolvia assim minha
problematicidade e arrancava meus privilégios de singularidade poética para
devolver-me também ao diagnóstico psicopatológico. Essa operação restituía minha
lucidez e me libertava da mania da eleição. De fato, foram apenas alguns minutos de
conversa numa fila para que ele autografasse os meus exemplares de O estranhamento
do mundo e Filhos terríveis da modernidade, e me dei conta de que com aquelas
quatro ou cinco palavras – romantismo, aberto, psicose, ek-tase, ens-tase – toda uma
era de minha vida ficava para trás e eu recusava definitivamente o não lugar como
morada para o homem. Com aquelas poucas palavras, eu enterrava o rebelde, o
pseudomístico sem deus e o amigo da exterioridade. Eu já não olhava mais o Dentro
pelo Fora, mas sim o Fora pelo Dentro, e já não considerava mais minha singularidade
uma graça, mas uma aberração. Não é uma espécie de aberração confrontar-se com
um ser humano que conhece apenas o suplício de Tântalo da questão do ser, o
descontínuo e a pergunta? E ainda mais quando isso é visto da ótica de quem conhece
a duração e a continuidade de si mesmo? Este texto é, nesse sentido, uma operação de
inversão, pois se em minha heterotanotografia eu agradeci minha mãe por ter me dado

57
a solidão e o exílio, aqui, eu pergunto se é mesmo possível agradecer alguém que me
privou de eu e de mundo.
Penso que minha singularidade, o oco e o vazio foram concessão de minha
mãe. Não tenho aqui como retroceder até o meu ser-para-o-início e exibir algum filme
ou foto estampando o terror no corpo onde nasci diante do meu gesto e das minhas
tentativas para lhe abocanhar o mamilo e o halo. Pelo que vivi depois do início, sei
que não pude viver com a minha aliada a orgia ressoante dos gestos incorporadores: a
fábrica do eu falhou. Se o Kafka foi expulso do mundo pelo pai, no meu caso, o
processo de expulsão começou pela mãe. Minha vida inteira até a desaparição de
minha aliada não passou de um terrível combate de amor no qual tentei acordar a
maternidade naquela mulher e ressuscitar seu corpo a fim de que eu pudesse nele
mergulhar, mas minha anfitriã era cega para a minha existência, não entrava comigo
em duetos antropogênicos e nas mutualidades mágicas porque, para ela, eu já era
apenas um pedaço dela mesma e, nessa estranha condição, ficava abandonado e
desassistido. Não se criou em mim um repertório “eu”, mas apenas sensores e radares
para ler e cumprir a mente de minha mãe. Fui assim o hermeneuta de um corpo morto.
Quando, já um pouco mais velho, comecei a beber e a quebrar coisas que encontrava
pela frente para sair daquela condição xipófaga, minha aliada assustou-se demais e
tratou-me como monstro, pois, quer pessoalmente e com suas próprias mãos, quer
contratando grupos de homens do crime, tentou livrar-se de mim. Algumas vezes, nas
madrugadas de pânico, eu escutava minha mãe dizer ao telefone: “arrumei uns
rapazes para dar cabo do Juliano. É o melhor para ele. Ele vive em carne viva. É um
elefante branco nesta casa e o psiquiatra confirmou que é mesmo um doente mental.
Você sabe, um doente assim acaba com o patrimônio da família!”. Então, após algum
tempo eu escutava o interlocutor telefônico tocar a campainha e adentrar a casa para
tentar dissuadir minha mãe do desejo de me dar um fim.
Esse conflito de vitalidades várias vezes atingiu o clímax. Não pretendo fazer
um catálogo do extremo, por isso me atenho apenas ao dia mais penoso, o 12 de junho
de 1996. Nesse dia eu dancei a valsa da grande dor. Bailado que começou na noite
precedente, pois me encontrava no quarto, escutando as canções de Leonard Cohen.
Uma namorada havia se afastado de mim, daí a carne viva, segundo a expressão
materna, e o desespero. (Eu sempre acreditei que nasceria para dentro do mundo por
meio do amor de uma mulher.) Mas minha cantoria foi interrompida por três policiais
que invadiram meu quarto e me levaram para uma delegacia onde passei a noite.

58
Solto na manhã seguinte, ele – passo agora a narrar na terceira pessoa – volta
para casa, mas tem medo de chegar, para num pequeno hotel no bairro de Pinheiros e
tenta chamar uma prostituta, mas o gerente do estabelecimento o expulsa. Caminha
pelas calçadas na direção da casa e para em alguns bares para ingerir bebidas
alcoólicas. Quer adiar a chegada. Ao chegar, nota que sua mãe tinha trocado a
fechadura da porta. Ele então arranca a própria roupa e passa a arrombar a porta com
seu corpo. Uma porta de ferro e vidro, por isso está coberto de sangue. Logo a porta é
arrombada e ele sobe a escadaria correndo e berrando a palavra mãe. (Mãe é o nome
mais antigo. Está presente em todas as culturas e todos os que chegam ao mundo
emergem de dentro de uma delas.) Ao encontrar a sua, ele a chacoalha com as duas
mãos no ombro dela. Grita muitas vezes a palavra mãe, olhando-a nos olhos. Depois
disso, há um grande branco, uma amnésia, e ele está novamente na rua, rodeado por
viaturas. Alguém o cobre com um lençol e traz uma roupa. Tenta pegar a arma do
policial para explodir a própria cabeça. Finalmente é conduzido para o hospital
psiquiátrico da Lapa e, na cama em que está amarrado, já não sabe se matou ou não
matou a mãe.
O banheiro é cheio de fezes. No pavilhão ao lado, algumas mulheres gritam
sem parar. Ele tenta estabelecer comunicação e intimizar com um rapaz negro na
cama paralela à dele, mas nota que esse já não interage nem olha. Sua alma parece ter
sido assassinada há muito tempo. Na manhã seguinte, ele vê um carrinho de sorvete
atrás das grades, sob o sol. Ele inveja o pneu do carrinho de sorvete e pensa se algum
dia poderá estar sob aquela luz.
Se agrego aqui este relato não é para competir com os programas
sensacionalistas de televisão, mas para mostrar que ninguém vai para fora com os
próprios pés. É preciso muita imiscibilidade e desajuste de dádivas. O Fora é uma
concessão do abandono, é uma dádiva do desencontro. É preciso que aliado e recém-
chegado tenham temperamentos antípodas. Por isso, quando eu, em talk-shows, sou
perguntado sobre o que é possível fazer para incentivar nos filhos o hábito da leitura e
o gosto pela arte, invariavelmente respondo que a melhor maneira de kafkanizar uma
criança e torná-la um poeta é cuspi-la para fora do mundo e arremessá-la na Sibéria da
exterioridade. Então, eu acrescento alguns exemplos possíveis, como o do pai que
pede ao filho um livro e em seguida bate o livro na nuca do menino e diz: “mas não
era isso!”; e quando o garoto retruca: “mas, pai”; o pai o encara friamente e ri: “Você
acredita mesmo que tem pai?”. Este exemplo mostra como expulsar alguém de Dentro

59
para Fora. Um pai-zen ou um pai-sufi é aquele que pode pagar para seu filho uma
viagem só de ida para fora do mundo. Para tanto, é necessário arrancar todo o
mobiliário interior dos espíritos associados, os bons encostos, e abastecer a criança de
exílio e vazio suficiente para que, caso ela não enlouqueça, possa dizer a palavra
rasgada, fiel ao susto da aparição. Outro exemplo é o do berçário com mães e babás
levinasianas, radicalmente outras e estranhas, que não podem complementar e ressoar
gesto algum dos seus bebês. Essas mães, na condição de mães-alteridades, impedem
que os bebês se sintam donos de qualquer pedacinho delas. No grau zero da
intimidade, a criança é deixada só, sob um imenso céu desolado, sem ter nenhuma
chance de ganhar um corpo.
Foi por isso que no dia em que me encontrei com o Sloter, eu não tive
alternativa senão dizer a ele que a leitura de sua obra – eu já havia lido uns vinte e
nove volumes dela – havia me curado do romantismo do aberto e da psicose. Eu tinha
compreendido que uma antropologia filosófica só pode começar da demanda de
intimidade de uma criança e que todas as filosofias xenofílicas, nas quais eu havia
mamado nas últimas décadas – Bataille, Blanchot, Levinas e outros – eram filosofias
muito parciais e minoritárias. É certo que nelas eu havia dourado a pílula do desastre
que me visitara. Eu tinha embelezado a tal ponto a minha tragédia pessoal que, na
mania da eleição e da graça, via a mim mesmo como uma espécie de revolucionário e
de mensageiro de novas lufadas epocais, pois destituído já da bengala do eu e do
absurdo bolor da identidade, eu contribuía para a interrupção e para a suspensão da
continuidade e da ordem do mundo capitalista. Nesse sentido, meu messianismo
heideggeriano beirava os cumes do narcisismo transcendental. E foi por isso que eu
agradeci o antigo reitor de Karlsruhe por ter convertido um idiota singularizado num
cidadão comum e um revolucionário extasiado num homem em busca de emprego,
integração e felicidade.
Tudo isso se confirmou quando, no dia seguinte, após o meu encontro com o
filósofo epocal, eu, com uma artéria noventa e oito por cento entupida, ia dentro de
uma ambulância e enquanto ela tocava uma sirene estridente, e um enfermeiro
segurava minhas mãos, eu lia na porta do veículo as palavras THE END dirigidas a mim
e, diante desse THE END, contabilizava minha vida em termos puramente mundanos de
saldos e prejuízos, constatava que me encontrava no negativo em todos os quesitos e
que mal havia desenvolvido competências mundanas básicas, quer para o dinheiro,
quer para o trabalho, quer para o universo feminino, e que eram dessas três

60
competências que dependiam a minha felicidade neste mundo, e que esse mundo era o
único lugar que havia. No interior da ambulância, concluí, egoística e
antropocentricamente, que eu não passava de um perdedor, um perdedor tanto nos
sentidos salarial e profissional quanto no amoroso, mas também no quesito saúde eu
me encontrava no vermelho. Então, tive certeza de que eu havia me tornado enfim um
homem inteiramente comum, um homem que, mesmo prestes a morrer, pensa em
saldos negativos e em como pagar os custos da ambulância e da internação, pois tanto
uma como a outra dependem do dinheiro e de algum tipo de inserção no único mundo
efetivamente verdadeiro. Senti uma estranha felicidade por ter perdido todo e
qualquer ideal e todo estoque de poesia e, por isso, numa espécie de último transe de
esquerda narcísica senti-me um Karl Marx virando todo idealismo de ponta cabeça.
Eu era agora apenas o cidadão comum sem nenhuma gota de material poético quando
o enfermeiro segurou-me mais forte após uma curva e me perguntou se havia ainda
uma mãe e eu disse que não. Disse a ele: eu descendo de um casal morto. Abracei
minha mãe com força uma única vez em toda minha vida, e nesse dia ela estava
imóvel e fria sobre a cama de um flat. No dia 30 de outubro de 2006, dia de seu
suicídio, eu abracei a mãe morta tendo três PMs por testemunha. Disse ainda ao
enfermeiro que para mim a vida foi sempre alhures. Sempre dos outros. Para mim, ela
foi um riacho clandestino que avistei de longe e só visitei raramente. Eu não tive mãos
para ela e então ele mexeu a cabeça em concordância e dei sequência ao meu
monólogo dizendo que havia publicado quatro livros que pouquíssima gente leu, e
que esses livros, embora expressivamente corretos, eram errados do ponto de vista
filosófico, pois a minha questão não era a metafísica ocidental, mas a minha mãe. E
ele ao escutar a palavra “metafísica” perguntou-me de Deus e do sagrado e eu lhe
respondi que a ambulância era uma folha, a avenida era o riacho e eu era a formiga
assustada prestes a submergir na correnteza e que, na verdade, não era o princípio
egoísta do eu que constituía a morada de Satã, mas sim a propalada ausência do ego e
o vazio místico que lhe davam o verdadeiro endereço. E isso é assim porque – disse
olhando no olho do enfermeiro – os pobres egoicos com seus interesses mesquinhos e
mundanos nada sabem das vozes encantatórias e das seduções mirabolantes que,
amparadas pelo nada, põem a perder a vida de tantos que se supuseram adotados pelo
divino e imantados pela boa estrela. Eu ia dizer ainda algo, mas notei que o
enfermeiro, irritado, tinha largado a minha mão e que, a exemplo de meus grandes
aliados fraudulentos, passava a desejar meu mal, mas a ambulância acabava de chegar

61
ao seu destino e era a hora de os médicos e os aparelhos se infiltrarem pelas dobras e
buracos do meu corpo.

***
Nota final ao AT: se uma reanimação não apaga a marca da origem e o estrago
causado por díades patológicas, restam reanimações capazes de indicar este
resfriamento e o seu séquito de intrusões, abrindo divergências com a força de novos
começos. Aposta alta demais?

A LOUCURA ENTRA NA ESCOLA: O QUE ACOMPANHAMOS?26

26
Artigo escrito com base em uma apresentação oral realizada em 17/11/2017, no XI Congresso
Internacional de AT, em São Paulo, na mesa-redonda denominada Educação no sec. XXI.

62
sobre a tessitura de esferas imunológicas

Marcos Salém Vasconcelos

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito
caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu
fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!” (Eduardo Galeano)

Particularidades do nascer humano


Não basta estar diante do mar para conseguir enxergá-lo, descobrí-lo, traduzí-
lo em primeira pessoa. Não basta ter olhos para ter um ponto de vista. Não basta ter
(ou ser) um corpo para imprimir intencionalidade ao seu gesto. Não basta a língua
para dominar a linguagem. O bebê nasce, mas o sujeito é mais complexo ... o sujeito
se constitui na trama do tempo e no cuidado amoroso dos adultos que o recebem
(mãe, pai, família). Cuidado primário de olhar e gesto. Olhos que observam e se
emocionam, fornecendo assim o primeiro contorno de confiança para que a aventura
da vida possa ser trilhada. Olhos que se projetam na descoberta do mundo – “me
ajuda a olhar”, clama o menino Diego ao pai no excerto inicial: me apresente o
mundo, aos poucos, no meu ritmo, porque preciso criá-lo para que ele possam existir
pra mim! Os pais renascem com o filho. A criança precisa ser visitada pelos adultos,
na particularidade de sua experiência, para constituir um lugar no mundo. Precisa ser
acolhida, caber à sua maneira, para que desenvolva uma interioridade como
possibilidade de preenchimento de sentido próprio.

O ser humano floresce nessa intimidade, terra adubada de amor. O pediatra e


psicanalista inglês Donald W. Winnicott afirma ser fundamental, num primeiro
momento, a adaptação total do ambiente (a mãe ou alguém que faça essa função) às
necessidades do bebê, para que este possa vir a amadurecer. Esse acoplamento, que só
é possível pela identificação profunda da mãe com o bebê, garante sua sobrevivência
na medida em que ele ainda não é um ser inteiro.

63
“(...) A unidade não é o indivíduo, a unidade é o contexto ambiente-indivíduo. O centro da
gravidade do ser não surge no indivíduo. Ele se encontra na situação global. Através do cuidado
suficientemente bom (...) a casca passa a ser gradualmente conquistada, e o cerne (...) pode começar a
tornar-se um indivíduo.” (Winnicott 2000, p. 166)

Após essa fase inicial, ocorrem uma série de experiências que forjam a
constituição de uma “pessoa inteira”, denominadas por Winnicott de fenômenos
transicionais. É uma dimensão da experiência em que não há distinção entre a
percepção objetiva da realidade e a criação subjetiva, como o brincar da criança, ou a
tradução que Diego pede a seu pai diante da intensidade oceânica que inunda seu
pequeno corpo, ao ver o mar ela primeira vez. Desta área intermediária, que não se
reduz nem a realidade interna nem ao mundo compartilhado, surge um espaço
potencial a ser preenchido pelo viver criativo. Assim emerge uma pessoa que pode
confiar no imponderável da existência, com sentimento de ser real e com capacidade
de ação sobre o mundo.

“A adaptação da mãe as necessidades do bebê, quando suficientemente boa, dá a este a ilusão


de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de criar (...) ocorre uma
sobreposição entre o que a mãe supre e o que a criança poderia conceber.” (Winnicott 1975, p 27)

Outro pensador, um filósofo contemporâneo, de origem germânica e de nome


difícil - Peter Sloterdijk - cunhou um conceito que me parece potente para
compreender a qualidade dessas relações primordiais: esferas imunológicas. Ele
almeja fundar, no âmbito da antropologia filosófica, “uma história dos espaços pelos
quais os homens se deixam conter” (p. 82), através de uma “teoria do íntimo”. As
esferas são invólucros de cuidado, receptáculos de hospitalidade constituídas para
“proteger” o humano da estranheza do mundo, amparar o humano na sua angústia
fundamental originária. O fenômeno das esferas se faz presente desde a intimidade da
gestação ao pertencimento cultural.

“(...) por toda parte onde existe a vida humana, seja ela nômade, seja sedentária, surgem bolas
habitadas, itinerantes ou presas ao solo, que, por um certo aspecto, são mais redondas do que tudo o
que pode ser desenhado com círculos” (Sloetrdijk p. 14)

64
Tal conceito aparece dentro de uma tradição existencialista, tendo Heidegger
como o maior expoente, mas ultrapassa seus limites. O existencialismo localiza a
verdade do homem na retração total do sentido, na perplexidade, na angústia do
abismo, ressaltando nossa condição ontológica de indeterminação.

“Estamos suspensos na angústia (...) A angústia manifesta o nada (...) A angústia nos corta a
palavra (...) Com a determinação da disposição de humor fundamental da angústia atingimos o
acontecer do ser-aí no qual o nada está manifesto e a partir do qual deve ser questionado” (Heidegger,
p. 57)

Sloterdjik reconhece tal dimensão precária e vulnerável. O ser humano nasce


prematuro. Um potro nasce e sai andando. Uma formiga está, desde sempre,
determinada em sua incansável tarefa de ser formiga, e nunca se questiona sobre o
que deve fazer numa manhã de sol. As cigarras, que cantam porque são cigarras e não
porque veem algum sentido nisso. Contudo, Sloterdjik não se contenta com essa
condição humana originária. A pergunta dele é sobre como o humano se enraíza e
mergulha no mundo, como transcende sua condição pré-natal, precária? Dentro de
quais espaços desabrocham como ganham tridimensionalidade? Através das esferas
imunológicas.
As esferas são um escudo e um convite: tem a qualidade dos elementos
intermediários. Protegem e garantem a entrada. O pai, Santiago, através de sua
presença, de sua voz, de sua atitude, modula a radicalidade do mar para que seu filho
possa incorporá-lo como uma possibilidade própria. Cria uma atmosfera onde o
exterior possa ser vivenciado como uma possibilidade de encontro e criação, ao invés
de ameaça e vertigem. As primeiras esferas são relações de intimidade, com qualidade
de presença, são encontros que calibram a radicalidade do exterior, estranho, para que
ele possa ser incorporado e reinventado.

A experiência de pertencimento é condição para o bebê humano amadurecer


com saúde. Nossa origem é relacional. Segundo Sloterdjik, “O Com é o primeiro a
existir e a fazer existir” (p. 323). Somos no princípio totalmente dependentes do outro
que nos recebe no mundo (simbiose, relação fusional, cordão umbilical) para depois
constituir uma singularidade. Mas para isso, é preciso tornar familiar o estranho que
nos cerca. Essa familiaridade se tece na hospitalidade das primeiras esferas. Elas nos

65
dão a chave do pertencimento. É preciso pertencer para aliviar nossa condição
precária. Estamos suspensos no nada, confrontados com a tarefa de fiar um ninho que
possa nos acolher. Criar um espaço pessoal onde a vida possa fazer sentido e “ser
digna de ser vivida” (expressão corrente na obra de Winnicott).
Mas isso não se faz sozinho! O bebê humano é um campo aberto de
possibilidades, um ser frágil que absorve como um esponja as formas nele projetadas.
Esta abertura radical salienta sua vulnerabilidade e sua dependência absoluta ao meio.
A saúde da criança depende do contato com outras pessoas afetivamente implicadas,
de um ambiente que inicialmente se molde às suas necessidades, sendo provedor e
continente, até que a criança possa ser continente para si mesma e se diferencie. Nesse
horizonte, uma sociedade pode ser pensada como uma rede de esferas de cuidado, e o
indivíduo como um ser que contém e é contido simultaneamente. Nas palavras de
Sloterdjik:

“(...) o espaço humano como um entrecruzamento de muitas espacialidades internas. Aqui o


surreal se torna realidade. Cada sujeito, no espaço cossubjetivo real, é um sujeito que contém outros,
mas é também um sujeito contido em outros (...)” (p. 80)

Essas experiências de pertencimento guardam em si a harmonia das esferas,


desde a barriga da mãe, passando ao colo dos pais, à família ampliada, ao quarto, à
casa, ao bairro, à professora preferida, à turma da escola, à namorada (o) ... até
alcançar o plano cultural: a comunidade de origem, a pátria, as histórias contadas, os
hábitos sociais, a arte, o conhecimento. As esferas se abrem sucessivamente,
viabilizando a passagem para esferas mais amplas, deixando como herança o
repertório de encontros da esfera anterior e a marca da filiação. O eco da presença do
outro permanece. Esferas imunológicas são caixas de ressonância mútua. A
experiência de pertencimento possibilita a abertura para novas conexões afetivas e
criativas. Os territórios vão se ampliando junto com as possibilidades existenciais, e
nessas passagens vai se traçando o processo de singularização, movimento existencial
que só se interrompe com a morte.

No entanto, nem sempre tais passagens ocorrem de forma ideal. Nem sempre
as esferas cumprem sua função. Por vezes, o encontro originário não foi
“suficientemente bom” para imprimir a marca do pertencimento. O pedido “Me ajude

66
a olhar o mar” não encontra ressonância em ninguém. Silêncio. Crianças autistas
recusam ativamente o contato com os outros. Mães técnicas aprendem “Como ser mãe
em cinco lições”, através de manuais. A ausência ou o excesso de mundo são
intrusivos `a continuidade de ser do bebê, levantando grandes defesas psíquicas e
bloqueando a tendência ao amadurecimento, que Winnicott localiza como nosso
potencial herdado. Emerge aqui o ser do exílio, atravessado pela loucura, engolido
pelo abismo, paralisado pela ameaça de uma realidade que não foi climatizada
simbólica e afetivamente. Para essas pessoas o mundo é áspero, sem sentido. Elas
permanecem numa região de borda, numa zona pré-natal, abrigadas pelo vazio.
O filósofo Juliano Pessanha escreve sobre isso em seu livro “Sabedoria do
Nunca”:

“Sem estar atingido por nada, a única coisa que guardo é o saber desse exílio” (...) “Estou fora
da trama do tempo e qualquer readmissão ficou interditada: minha eternidade é terrível e caíram as
palavras. Esqueci meu nome e já não tenho mais hábitos” (...) “Eu nunca estive a caminho. Fiquei
vagando no puro lado de fora, na vergonhosa zona pré-natal” (...) “é que falta em mim o traço da união,
o segredo da aliança, o piparote de entrada no tempo” (...) “Penso: `as vezes um navio entra num porto,
mas esse porto em nós é muito raro. Se ele existisse, aí talvez houvesse dias e também palavras, uma
comunicação que fosse mais do que um espetáculo, um encontro que fosse mais que um acidente...”

Os sentidos da educação
Mas o que tudo isso tem a ver com educação? A palavra educação vem do
latim educare, ex-ducere, que significa conduzir para fora 27. Trata-se do processo de
formação pessoal, de constituição de um modo de ser, que se dá a partir da
experiência, e não através da mera transmissão de informação e conteúdo A partir do
conceito-ferramenta das esferas imunológicas, podemos pensar que a educação seria
um processo pelo qual uma pessoa é amparada na ampliação de seu mundo, na
passagem de esferas menores para esferas mais amplas e complexas. As esferas
seriam as atmosferas simbólicas e afetivas, que garantem a segurança dos passos em
direção ao novo. Esse processo se efetua fundamentalmente no encontro com o outro,
e depende de sintonia e entrega. “Me ajude a olhar o mar!” – “Me ensine o que você
já viu”, responderia o educador Tião Rocha28. Esse é o encontro. O saber, para ter

27
https://www.dicionarioetimologico.com.br/busca/?q=educa%C3%A7%C3%A3o
28
http://www.cpcd.org.br/portfolio/a-funcao-do-educador/

67
sabor, para ser apropriado, precisa ser criado. Manuel de Barros faz poesia, em suas
Memórias Inventadas da infância: “Tudo o que não invento, é falso”.
Resumindo, a educação só acontece no encontro entre pessoas, tal qual a
constituição psíquica, a partir da construção de climas de confiança (as tais esferas)
para que o estudante possa criar o saber que lhe está sendo oferecido, e assim ampliar
suas possibilidades de ser, constituindo-se como um ser singular e autêntico, capaz de
fazer trocas e contribuir com o coletivo. O pertencimento garante essa possibilidade
de autoria.
Para psicanálise, educação é o processo de transmissão de marcas simbólicas,
para que a criança possa ingressar no laço social, usufruir no campo da palavra e se
lançar as empresas do desejo. O sujeito aqui é efeito das práticas educativas e
psicanalíticas, ou por que não dos gestos de cuidado e acolhimento das mães
suficientemente boas. Freud, parafraseando Leonardo da Vinci:

“o educador não colocará traços na tela em branco da criança, como faz o pintor, mas ajudará
a extrair, a fazer emergir as marcas de sujeito que jaziam no ser da criança, do mesmo modo como o
escultor arranca e dá forma para o que jazia na pedra de mármore.”.

Assim, através de um ambiente propício e de intervenções sensíveis do


educador, as potências da criança vão emergindo e sua personalidade pode se
desenvolver de forma plena, integral.

Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a ONU proclamou


que todo ser humano tem direito a educação, e esta deve estar orientada no sentido do
pleno desenvolvimento da personalidade humana. A Unesco, em meados da década
de 1990, lançou um documento29 que discute os quatro pilares da educação: aprender
a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a aprender. Tais
definições políticas e educacionais enunciam uma educação voltada aos diversos
aspectos do ser humano, sem priorizar um em detrimento a outro.
Ao longo dos séculos, a educação se organizou em diversas formas. Das
sociedades primitivas até a Idade Média, a educação era um compromisso coletivo

29
Educação, um tesouro a descobrir. Este relató rio foi confeccionado pela Comissã o Internacional
sobre a Educaçã o do Século XXI em 2010, e pode ser encontrado no link:
http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001095/109590por.pdf
O capítulo 2 aborda o tema dos 4 pilares da educaçã o.

68
tácito, diluído no convívio social. Há um provérbio africano que diz: “É preciso de
uma aldeia inteira para educar uma criança”. Assim, esferas imunológicas
educativas se constelavam de forma orgânica nos diversos encontros do cotidiano.
Na Idade Média (século V ao XIV d.C.) as escolas já existiam, mas para
poucos. A educação estava pulverizada na sociedade, e se efetivava na experiência e
no convívio coletivo. Na Idade Moderna (século XV ao XVIII), se fortaleceu a noção
de individuo que tem livre-arbítrio, em contraponto a ideia de “massa indiferenciada”
cujo destino está nas mãos de Deus. A burguesia ascendeu como classe dominante, e
as cidades se multiplicaram. O conceito de infância foi inventada como uma fase
específica da vida que exige cuidados. Michel Foucault descreve essa transformação
nos termos de uma reordenação das lógicas de poder e controle:

“(...) No sistema clássico o exercício do poder era confuso, global e descontínuo. Era o poder
do soberano sobre grupos constituídos por famílias, cidades, paróquias isto é, por unidades globais, e
não um poder contínuo atuando sobre o indivíduo. A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os
sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade” (Foucault 1984 p.
106)

Essa “nova ordem” é efetivada no modo como se organizam os espaços


interiores por onde transitam as pessoas (esferas disciplinares), através das
instituições. Nessa toada, as escolas se difundiram como instituição responsável pela
educação, a partir de um modelo fundado no poder disciplinar. Junto com as escolas,
outras instituições totais ganharam força, numa reorganização profunda das lógicas de
poder: surgiram os quartéis, as fábricas e os manicômios. Escolas, quartéis, fábricas e
manicômios! Todas essas tem o mesmo DNA. E qual seriam suas características
principais? Organização e adestramento dos corpos, disciplina, vigilância e
normalização.

“(...) uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre
aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do poder,
oferece-los a um conhecimento, modifica-los.” (Foucault 1987 p. 144)

Tais instituições se tornam então as principais ferramentas de poder, no intuito


de fabricar pessoas normais (dentro da norma), que possam vir a trabalhar e
reproduzir a ordem social como tal. Aqueles que destoam da norma - prostitutas,

69
ladrões, leprosos, loucos – não conseguem ser disciplinados e devem manter-se
segregados. A diferença representa ameaça à ordem, aquilo que escapa da lógica
vigente. A exclusão assim se torna uma prática instituída e legalizada. Nesse sentido,

“Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos contágios, da peste, das revoltas, dos
crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem
na desordem” (Foucault 1987 p. 164)

Trata-se da institucionalização da educação em um modelo específico, na


medida em que a educação vai paulatinamente se condensando na instituição escolar.
A escola totaliza a educação. A cultura escolar se difunde até se tornar absoluta. O
que caracteriza essa cultura? Como se opera o poder disciplinar na escola tradicional?
A escola se organiza em turmas com idades semelhantes, ritmo de estudo pré-
estabelecido em aulas e séries, conhecimento separado em disciplinas, currículo
fechado, relação hierárquica entre o professor (aquele que sabe) e o aluno-sem-luz
(que não sabe), arquitetura panóptica30. A própria organização arquitetônica do espaço
escolar já denota uma intenção de disciplina e controle, através de estruturas que
facilitam a vigilância.
Assim, a escola se tornou o lugar social das crianças e adolescentes. Contudo,
não era para todos, mas apenas para aqueles que correspondiam a um padrão que
funcionava nesse sistema. Com a consolidação da escola, estabelece-se a fronteira
entre a criança escolarizável e a criança não escolarizável. A segregação se tornou
uma prática social comum, naturalizada. Forças poderosas atravessam a infância no
sentido do controle e da disciplina moral. Resgatando o conceito das esferas
imunológicas, é essa cultura que vai sendo oferecida às crianças como forma de
acolhimento e referência. Assim que a sociedade se organizou para receber os recém
chegados...
O tempo foi passando e as práticas segregativas foram se acirrando, até
chegarmos ao século XX, batizado pelo historiador Eric Hobsbawn de Era dos
Extremos. Nunca antes se viu tantas mortes e tanta intolerância. Como resposta, as
lutas em prol das minorias ocuparam todos os continentes. No âmbito social,

30
A arquitetura panó ptica se caracteriza por uma configuraçã o espacial onde os internos sã o
observados sem conseguir visualizar aqueles que os vigiam, gerando a sensaçã o de estar sendo
vigiado o tempo todo. Para saber mais recomenda-se a leitura de O Panoptismo, no livro Vigiar e
Punir, de Michel Foucault.

70
movimentos feministas e raciais se organizaram para denunciar práticas
discriminatórias e reivindicar direitos básicos. No âmbito da saúde mental, surgiu o
movimento de Reforma Psiquiátrica, na defesa do fim dos manicômios, da
desinstitucionalização da loucura, de onde emerge a clínica do AT. No âmbito dos
direitos humanos, a educação foi eleita como eixo fundamental para estabelecer a paz
entre as nações31. Uma série de conferências e leis mundiais aconteceram visando a
implantação de uma Educação para Todos. 32

Nessa linha histórica, as crianças diferentes, que não frequentavam a escola


regular, passaram a ser inseridas nesse contexto. A partir da intersecção entre os
campos da educação, infância e diferença (loucura) se funda o campo da educação
inclusiva. Trata-se de uma área nova, que reatualiza o encontro entre saúde e
educação a partir de novos paradigmas fundados na diversidade. Percebe-se que existe
uma zona onde as práticas educativas podem contribuir para o desenvolvimento
psíquico, assim como as intervenções terapêuticas que incidam sobre o emocional
podem viabilizar uma relação de ensino-aprendizagem. Em outras palavras, a vivência
em sala de aula, a troca com alunos, o contato com o conhecimento podem
impulsionar o desenvolvimento emocional das crianças. Por outro lado, as
intervenções clínicas podem facilitar a criança a aproveitar as experiências
pedagógicas.33
Assim, o campo da educação inclusiva se opõe às tradicionais práticas
segregativas, em que crianças e adolescentes ficam impedidos de circular no espaço
social, agravando seus comprometimentos psíquicos e dificultando seu
desenvolvimento. Entende-se que o desenvolvimento se dá no território, contando
com suas forças de subjetivação.

Justamente nessa problemática da Educação Inclusiva, o Acompanhamento


Terapêutico é convocado a “entrar na escola”: uma demanda complexa e repleta de
contradições. A escola, que tem como marca originária a exclusão pela norma, passa a

31
Declaraçã o Universal dos Direitos Humanos, 1948, artigo 26.
32
Declaraçã o Mundial de Educaçã o para Todos, Jontien (Tailândia), 1990; Declaraçã o de
Salamanda, produzida na Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais (1994).
33
Essa zona de intersecçã o entre a educaçã o e a psicaná lise pode ser compreendida através do
conceito da educação terapêutica criado aqui em São Paulo pelo Centro de Educação Terapêutica
Lugar de Vida, instituiçã o referência no tratamento e acompanhamento escolar de crianças e
adolescentes com problemas psíquicos, e na formaçã o de profissionais nessa á rea.

71
falar em inclusão. O AT, que nasce como dispositivo de circulação pela cidade,
inspirado no mote da desinstitucionalização, entra na instituição. A psicologia escolar,
que na sua origem foi um instrumento de poder para comprovar, através de testes e
avaliações, a inaptidão de algumas crianças para a escolarização, agora é convocada
para viabilizar a entrada dessas mesmas crianças. Quantas inversões e cambalhotas,
difíceis de realizar. Quantas armadilhas fáceis de se cair. Quebrar paredes ou aceitar
matrículas é fácil. O difícil é transformar as culturas.

A loucura entra na escola: o que acompanhamos?

“O at tenta uma indicação: primeiro, acolhendo a dimensão trágica da vida e do vivo, sem
desencanto nem desamparo; depois, fazendo e refazendo a história, como se traçássemos o mapa do
que é coletivo em um indivíduo.” (Maurício Porto)

Diante do percurso aqui descrito, em que coletivo e individual, dentro e fora,


eu e outro, inevitavelmente se interpenetram, surgem questões: a quem se destina o
acompanhamento terapêutico dentro da escola? A quais processos o acompanhante
deve estar atento, ofertando sua clínica? Clínica na escola? Isso faz sentido? Com
base na ideia de clinica ampliada, pode-se compreender a palavra clínica tendo como
referência duas atitudes básicas, compondo um mesmo movimento maior: primeiro,
inclinar-se na direção daquele a quem acompanhamos, afinar-se com seu modo de ser,
visitá-lo na particularidade da sua experiência afim de construir uma esfera de
intimidade; segundo, produzir desvios, linhas de fuga, convocar à transformação,
favorecer a abertura da esfera visando esferas mais amplas.
Na experiência dentro da escola muitos planos se sobrepõem, muitas esferas
simultâneas são horizonte de acompanhamento. Para refletir sobre o AT na escola,
seguiremos da esfera menor para a esfera maior, tal qual nosso caminho na vida.
Fomos demandados para realizar o AT de Victor34. Vale ressaltar que esse é um
acompanhamento inventado para fins explicativos, e visa evidenciar os diversos
planos de ação do AT na escola. Na prática, essa atuação fica bastante tensionada, e a

34
Personagem inventado afim de ilustrar as reflexõ es sobre AT na escola. O nome Victor faz
referência ao “Garoto Selvagem”, batizado de Victor de Aveyron, menino encontrado na floresta
que foi submetido a estudos pelo medico Jean Itard, naquele que pode ter sido o primeiro
encontro entre os campos da educaçã o e da saú de. Sobre essa histó ria, recomenda-se o filme de
François Truffaut de 1970 denominado “O Garoto Selvagem”, e o texto da revista Mente e
Cérebro…

72
todo momento são feitas escolhas sobre o que deve ser priorizado. Abarcar todas essas
esferas de atuação é um horizonte utópico, que serve como referência para o trabalho.
A educação é um compromisso coletivo. Portanto, as dificuldades vivenciadas
no processo de escolarização dizem respeito a Victor, mas também a uma série de
outros atores nesse cenário. Levamos conosco o princípio ético de não individualizar
sintomas que são produções do coletivo, e como estratégia clínica devolver tais
problemáticas ao mesmo coletivo.

Primeiramente, o at acompanha Victor, a “criança do exílio” em sua deriva


pela instituição escolar. Busca criar uma relação de acolhimento e intimidade com ele,
compreender sua experiência singular, estabelecer um vínculo para que Victor possa
criar para si o lugar social de aluno, que não é dado. Uma tessitura delicada compõe
essa primeira esfera imunológica. Uma vez assegurada dessa ressonância na relação
com o at, ele poderá romper a esfera primordial e se lançar para outros planos de
relação: colegas, professores, funcionários.

Esses outros planos de relação também são lugar de acompanhamento. Como


a professora (ou o professor) vive a presença de Victor no grupo? O at precisa
acompanhar essa professora, compreendê-la e empoderá-la como protagonista na cena
escolar. Ela deve ter muitas crianças para educar, se sente sobrecarregada, e acredita
que Victor tem questões que só podem ser conduzidas pelos especialistas. A
professora teve toda sua formação profissional calcada na positividade do saber, de
modo que ao se deparar com o não saber é inundada pela angústia. Isso pode afastá-la
das crianças. Nessa parceria, cabe ao at ajudá-la a vivenciar o não saber como
potência, como motor para criatividade, e dar suporte para que ela possa também se
aproximar de Victor para descobrir quais caminhos pedagógicos lhe servem.
O eixo do ensino-aprendizagem é muito importante nesse processo, uma vez
que estamos na escola. Por isso, é preciso mapear as formas como Victor aprende,
como pensa, para onde volta o seu olhar, qual a dose de mundo que lhe cabe nesse
momento... Indicadores que podem nortear a construção de um projeto pedagógico
singular. Um desafio é criar estratégias pedagógicas que sirvam para Victor e estejam
em conexão com o grupo todo. Ou, sendo mais radical, criar um currículo comum que
não seja homogêneo, mas contemple as singularidades de cada estudante: interesses,
dificuldades, possibilidades e desafios para cada um. Uma colcha que cubra a todos,

73
tecida por fios de diferentes cores e texturas. A diversidade reunida numa mesma
unidade. Essa é a utopia da inclusão.
E as outras crianças, como agem e se afetam diante de Victor? Como o grupo
o recebe? Comumente as crianças pequenas lidam de forma mais leve e espontânea
com tais diferenças. Elas podem ser importantes aliadas na construção do
pertencimento. Nesse âmbito, o intuito é favorecer a formação de um grupo que possa
acolher e celebrar a singularidade de cada um. O at, em geral, é uma presença
festejada pelas outras crianças, e pode usar isso como um ponte na direção de Victor.
Como estar sensível às possíveis parcerias que podem surgir, afim de que a turma seja
um lugar de acolhimento e confiança? Victor, por sua vez, terá de abrir mão de alguns
benefícios da relação dual para entrar no laço social.
Assim temos um grupo, regido por uma professora, onde Victor encontra
pertencimento e confiança para se lançar no desafio do crescimento. Esse grupo
constitui a segunda esfera imunológica. Como uma orquestra, composta por diversos
instrumentos e timbres distintos, onde cada um toca uma linha melódica diferente, e a
partir dessa diversidade, emerge a música. O todo é mais do que a soma das partes. A
diferença, é possibilidade de conexão e criação.
Nessa orquestra, o at também acompanha a si mesmo, às reverberações que
lhe atravessam nessa entrada no território da escola. Como se afeta a partir desses
múltiplos encontros? Os acompanhantes, conforme entram na escola, também estão
sujeitos às suas forças de subjetivação, que tendem a apagar as singularidades. É
preciso estar disponível para ser afetado por múltiplos planos simultâneos, afim de
recolher esses meandros na própria experiência, e a partir dessa cartografia afetiva,
psico-geografia, inventar as intervenções clínicas. Para isso, é potente visitar o lugar
de estrangeiro do próprio hábito, ou investigador de si mesmo no encontro com o
mundo, e nunca tomar as coisas como já dadas. Nada é natural, tudo é produção. É
preciso estar atento para não se deixar capturar pelas forças totalizantes da escola.
E quem mais o at acompanha ao ser chamado para acompanhar Victor? Existe
uma terceira esfera, a mais ampla e complexa de todas: a instituição escolar em seu
processo de apropriar-se das novas diretrizes da educação, em seu processo de
abertura à diferença. Como toda instituição, a escola tem a tendência de se cristalizar,
mas também possui forças instituintes que apontam para transformação. Atualmente,
trata-se de uma instituição pressionada de todos os lados: sua origem carrega a marca
da segregação; em sua história foi capturada pela lógica do capitalismo e passou a

74
depender do lucro para existir (no âmbito privado) ou é refém de um sistema político
adoecido (no âmbito público); à sua frente precisa corresponder ao vestibular para ter
alunos; e agora ainda precisa acolher crianças como Victor. A tarefa não é nada
simples. É fundamental encontrar aliados instituintes lá dentro para favorecer a
transformação.
Acompanhar a instituição é abrir conversas com diversos atores desse cenário,
afim de problematizar tal situação e convocar a invenção de uma outra escola. Nesse
âmbito, conversas com os coordenadores e orientadores são bastante importantes.
Como eles pensam a inclusão? Como pensam a diferença? Que desafios encontram?
Que tipo de educação pensam em oferecer? Qual projeto de sociedade que desejam?
Não há dúvida que nessas conversas algumas tensões podem surgir, afinal estamos no
território da política. Mas, como já nos ensinaram as experiências de psicologia
institucional e os esquizoanalistas, toda clínica é política.
Por fim, a diferença na escola provoca a educação como um todo a se rever, na
medida que são analisadoras de um modus operandi, de uma maneira instituída de
formar cidadãos para reprodução de uma determinada ordem social. A diferença
historicamente foi isolada, sitiada, barrada. Mandada ao mar. Depois foi domesticada,
controlada, disciplinada, medicada. Ela causa impacto e estranheza porque provoca as
profundezas do nosso ser. Como um espelho, reflete uma verdade escondida. Nesse
sentido, a forma como uma sociedade escolhe lidar com a loucura, é absolutamente
reveladora de quem essa sociedade é. A forma como uma sociedade organiza suas
práticas educativas também.
Dessa forma, a educação inclusiva é uma oportunidade para repensar a
educação como um todo, a partir da ótica daqueles que sempre estiveram de fora,
iluminando as bordas e os limites. Assim, através de todas essas práticas de mediação
acima descritas, caminha-se para a desescolarização dentro da própria escola, afim de
construir uma escola plural e comprometida com a singularidade de cada um para
compor o coletivo.

Referencias Bibliográficas:

BARROS, Manuel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manuel de Barros. São


Paulo: Planeta, 2010.

75
FOUCAULT, Michel. O Nascimento do Hospital, In: Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 4a ed. 1984.

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1987.

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GALEANO, Eduardo. A Função da arte/1. In: O Livro dos Abraços. Porto Alegre
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HEIDEGGER, Martin. O que é metafísica? In: Os Pensadores - Heidegger. São


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PESSANHA, Juliano Garcia. In: Sabedoria do Nunca (trechos variados). Cotia: Ateliê
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Acompanhamento Terapêutico – casos clínicos e teorias, Ed Casa do Psicólogo, São
Paulo: 2011 Org Andrés Eduardo Aguirre Antúnez

REIS, Maria Letícia de Oliveira. O Menino Selvagem. Mente e Cérebro, São Paulo,
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In: O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Ed Imago, 1975 (p. 27)

(RE) INVENÇÕES DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO NO


CAMPO ESCOLAR

Paula Buainain Albano; Juliana Vidigal; Taísa Martinelli

Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.


Prezo insetos mais do que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas

76
mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu
fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser
feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um
apanhador de desperdícios: amo os restos, como as boas moscas
Manoel de Barros

Nos últimos anos ocorreram mudanças significativas na legislação sobre a


inclusão escolar, fruto de um longo processo de lutas por direitos, dentre elas a
Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro
Autista (2012) e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015).
A partir da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com
Transtorno do Espectro Autista, para fins legais, o autismo passou a ser considerado
uma deficiência. Assim, a pessoa com autismo pode desfrutar de todos os direitos já
adquiridos em ambos os campos, entre eles o de crianças e adolescentes com
deficiência matriculadas na rede regular de ensino, a terem um acompanhante
especializado. Decisão bastante debatida, controversa para alguns profissionais da
saúde e psicanalistas pelos efeitos subjetivantes que poderiam produzir, mas fruto da
luta das famílias e das pessoas com autismo por mais direitos (BATISTA, 2012).
Nas últimas décadas nota-se um fortalecimento dos movimentos que buscam a
defesa de direitos das pessoas com deficiência. Já em relação ao autismo, esse
movimento é mais recente, mas pode-se observar que ganhou bastante força nos
últimos anos. Intensamente disputado por diversos campos de saber (médico,
genético, psicológico, psicanalítico, cognitivo-comportamental, etc.), o autismo
passou também a ser foco de políticas públicas 35 que visam qualificar e aprimorar a
atenção e os tratamentos que os familiares e as pessoas com Transtorno do Espectro
Autista (TEA) recebem na rede pública. A junção desses dois campos –autismo e
deficiência- fortaleceu o movimento como um todo pela luta por direitos, no qual a
Educação se mostra um eixo fundamental e prioritário.
Destaca-se a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015), destinada
a assegurar e a promover a cidadania, o exercício dos direitos e das liberdades
fundamentais da pessoa com deficiência, visando sua inclusão social. No que tange à

35
Destacamos o documento Linha de cuidado para a atenção às pessoas para a pessoa
do Espectro do Autismo e suas famílias da Rede de Atenção Psicossocial do SUS,
lançado pelo Ministério da Saúde em 2015.

77
Educação, garante o direito da pessoa com deficiência a ter um profissional de apoio
escolar, inclusive nas instituições privadas de todos os níveis e modalidades de
ensino, e reforça que é vedada a cobrança de valores adicionais em suas
mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações. Isto é,
os custos com a educação inclusiva prestada na rede privada devem ser divididos
entre todos e não recair apenas à família do aluno em situação de inclusão.
Diante desse cenário, faz-se necessário trazer algumas reflexões e
questionamentos a respeito do modo como esta política está sendo incorporada por
algumas instituições de ensino e que implicações e inovações trazem para o campo do
acompanhamento terapêutico (AT)36 na escola. Longe de ser um estudo sistemático
que pretende generalizar o impacto destas leis, este texto traz um recorte, a partir de
algumas experiências junto às escolas particulares da cidade de São Paulo.
No momento em que a criança ou adolescente com deficiência passa a ter
direito a um acompanhante especializado, há uma intensificação de mudanças e
movimentos no cotidiano de algumas escolas regulares particulares de São Paulo, o
que incidiu diretamente sobre o campo do acompanhamento terapêutico, difundido e
ampliado em suas possibilidades de atuação.
Instigado pelo novo contexto previsto pela Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência, o Grupo Laço 37 promoveu em 2016 rodas de conversas com
estudantes, profissionais interessados no tema da educação inclusiva e educadores de
escolas particulares para que compartilhassem suas experiências e montagens
institucionais no que tange o trabalho com a inclusão. Pudemos observar que, por um
lado, há instituições como a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino
(Confenen), que se mostraram contrárias à Lei e tentaram obter o direito de cobrar
valores mais elevados em mensalidades, anuidades e matrículas de alunos com
necessidades especiais, alegando que o alto custo gerado pela inclusão pode levar à

36
Adotaremos neste texto AT para designar acompanhamento terapêutico e at para
acompanhante terapêutico.
37
O Grupo Laço foi fundado por psicólogos e psicanalistas em 2004 e se manteve em
atividade até 2017. O objetivo do grupo era construir projetos de inclusão escolar
através de diferentes dispositivos, tais como: Ats nas escolas regulares de SP, grupos
de estudos, rodas de conversa, palestras, supervisões, consultorias e formações para
equipes de escolas, Ats e outros profissionais interessados em pensar a questão da
inclusão.

78
falência os estabelecimentos de ensino38. Por outro, escutamos escolas que estão
buscando criar estratégias e recursos que atendam às exigências da Lei e, ao mesmo
tempo, aos seus princípios educacionais e pedagógicos.
Há escolas que não trabalham com acompanhantes terapêuticos ou
pedagógicos, mas disponibilizam auxiliares contratados, para ficarem nas classes em
período integral ou variável, sendo a frequência combinada na medida em que se faz
necessário. Outras que, diante da grande demanda de crianças e adolescentes em
situação de inclusão, contrataram um profissional para apoiar a equipe nesses
processos, em geral psicólogo ou pedagogo. Esse novo profissional ocupa um cargo
chamado por algumas de Coordenador em Educação Inclusiva.
Ao invés de contratar um profissional, outras instituições montaram um
Núcleo de trabalho com Inclusão Escolar e contrataram uma equipe para atuar com as
crianças e adolescentes com necessidades educacionais especiais. Nesses casos, estes
profissionais, que podem ser chamados de auxiliares de práticas inclusivas, atendem,
geralmente, mais de uma criança e atuam como volantes, apoiando o aluno, a prática
dos professores e a preparação e adaptação de material.
Escutamos relatos de escolas que já tinham uma equipe nomeada por eles
como ats e as famílias pagavam uma taxa a mais na mensalidade por esse serviço.
Em algumas delas, este serviço passou a ser custeado pela escola. Em outras, os ats
continuaram sendo pagos pelas famílias.. Isso porque, apesar de ser um direito, nem
todas as famílias optaram pelo profissional ofertado pela escola e/ou nem todas as
escolas se organizaram no sentido de poder garantir esse direito.
Além disso, algumas instituições relataram que independente do diagnóstico,
bastaria que a escola, a criança ou adolescente se deparassem com impasses
significativos no processo educativo para ter acesso aos dispositivos voltados para a
inclusão. Vale ressaltar que a existência de novas montagens não garante em absoluto
que o trabalho siga um direcionamento inclusivo. Ao contrário, podem acabar por
reproduzir a lógica adaptativa, que exclui o aluno e perpetua-o no lugar de falta e
déficit.

38
O Confenen teve seu recurso negado pelo Supremo Tribunal Federal, que manteve a
validade do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
(http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/stf-mantem-proibicao-de-escolas-particulares-recusarem-alunos-com-deficiencia-19474974)

79
Diante de uma situação tão complexa quanto a que a inclusão convoca,
algumas escolas vêm buscando, portanto, produzir e inventar respostas, que são
múltiplas, com montagens, nomenclaturas, e modos de funcionamento distintos.
Nesses novos dispositivos, existem as mais diversas nomeações aos
profissionais que passaram a se ocupar das crianças e adolescentes em situação de
inclusão: ats contratados pelas famílias, ats contratados pelas escolas, acompanhantes
pedagógicos, acompanhantes escolares, auxiliares extras de classe, tutores, entre
outros. São práticas diversas, com especificidades entre elas, mas podemos chamar de
at todos os profissionais que se ocupam dos alunos em situação de inclusão?
O que chamamos de acompanhamento pedagógico ou acompanhamento
terapêutico, por exemplo, podem ser práticas consonantes ou totalmente divergentes.
O que caracteriza o trabalho deste profissional, que aqui chamaremos de at? O AT
pode ser uma função exercida por outros profissionais da escola?
Entendemos o acompanhamento terapêutico como um dispositivo, uma
modalidade clínica que pretende acompanhar pessoas em situação de sofrimento
intenso e com entraves psíquicos estruturais em sua constituição. Este dispositivo
surgiu como mais uma invenção que pudesse colaborar e possibilitar a inserção do
sujeito no laço social. Em se tratando do acompanhamento de crianças e adolescentes,
muitas vezes esse trabalho se dá no espaço escolar, pois geralmente é nesse ambiente
que aparecem impasses nas relações e situações de sofrimento psíquico significativo.
Entendemos que o AT é um campo heterogêneo tanto no que se refere ao
perfil das pessoas atendidas, quanto à formação dos profissionais. Há ats que são
fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, jornalistas e psicólogos, que
adotam, por sua vez, diferentes linhas teóricas (cognitivo-comportamental,
fenomenologia, psicanálise, entre outros).
Deste conjunto tão diverso que constitui o AT, Palombini (2006) sintetiza
quatro eixos que nos parecem fundamentais para o campo do AT manter uma
perspectiva ética, clínica e política:
1. Presença da reforma psiquiátrica, na forma de discursos, leis, medidas
administrativas; e a adesão aos seus princípios por parte de cada uma das esferas
envolvidas no trabalho (governo, serviço, gestores, profissionais atuantes no caso).
2. Construção de um espaço de continência e pertença para os ats, que
seja externo ao serviço onde eles realizam seu trabalho, de modo a preservar essa

80
dimensão do fora que o caracteriza, mantendo uma dimensão de exterioridade, da qual
se alimenta o trabalho do at.
3. Utilização de uma teoria clínica como caixa de ferramentas para o
trabalho, que contemple uma concepção de subjetividade a partir da qual o sujeito se
constitua em uma relação de alteridade; que conceba a subjetividade não como algo
totalmente apreensível, mas que contenha uma dimensão de resistência, inconsciente,
que não se deixa capturar pelos poderes de estado ou das tecnologias de saúde. Uma
teoria e não a teoria, para que possa se aliar a outras no campo da história, das
ciências sociais, geografia etc.
4. Disponibilidade para o encontro com o outro, tanto por parte do at
quanto pela pessoa a ser acompanhada.
Portanto, estar alinhado com os princípios da luta antimanicomial, manter-se
contrário à práticas alienantes; ter espaços de supervisão, de reuniões de equipe e de
análise pessoal; partir de uma concepção de sujeito e ter abertura para o outro são
características que apontam para o campo do AT.
Orientadas pela ética psicanalítica, partimos da premissa da sustentação do
desejo de forma viva, tomando o outro como um sujeito desejante. A criança ou o
adolescente é escutado em sua singularidade e especificidade e é colocado como
protagonista, como alguém que é detentor de um saber. Escuta essa que também
supõe que o sujeito não se revela apenas nas manifestações da consciência. Como
afirmam Guarido e Metzger (2016), "Embora haja diferenças na tática e na estratégia,
levando em conta as três diferentes estruturas, neurose, psicose e perversão, a ética da
Psicanálise será sempre a mesma, orientada para a escuta do sujeito do inconsciente e
de seu desejo correlativo" (p.156).
O at se coloca como alguém faltante, como alguém que não sabe tudo sobre o
outro e sobre o mundo, e isso vai permitir que a criança ou adolescente, junto (e com
ajuda) de seu acompanhante, construa novos saberes e novas possibilidades de
encontros com o social. Esse fazer junto, estar junto em cenas de muita intimidade no
cotidiano, possibilita que o at assuma a posição de um pesquisador auxiliar (KISIL,
2016) e, assim, possa escutar o que existe de mais vital nos interesses de um sujeito e
o ajude a transmitir e a construir um lugar comum no laço com o outro.
O comum não é sinônimo de unidade, igualdade e nem se aproxima de
qualquer ideia que possa indicar uma totalidade ou homogeneidade, também não é
senso comum. Ele é feito de multiplicidade e trata-se da possibilidade de viver junto

81
com as diferenças, onde não há um atropelo das singularidades, não se pede para o
outro ser o que não é e como resultado se tem uma pluralidade afetiva
(DOMINGUES, 2011).

Podemos observar a produção do comum ao operar na gestão


compartilhada dos projetos inclusivos, na busca por encontrar
modos possíveis de convivência/existência entre escola, ats, criança
e família, que coloca ao at o desafio de criar ou evidenciar os
comuns entre os sujeitos, com saberes, experiências, expectativas e
modo de ser tão distintos (ALBANO, 2015, pg. 138).

A construção deste lugar comum se refere ao que pode ser partilhado, aos
encontros que podem ser promovidos a partir de uma atividade, por exemplo, no caso
do ambiente escolar. Pensemos em um garoto de 13 anos, com hipótese diagnóstica
de psicose, que tem notável dificuldade na aula de Inglês não apenas pela questão da
língua estrangeira, mas porque o conteúdo estudado pouco lhe interessa. A at, ao
vivenciar junto ao garoto diversas situações nas quais o gosto pela música aparece,
sugere à professora que fosse proposta uma atividade relacionada a este tema.
Enquanto a turma escolheria dez palavras para pesquisar o significado em um texto, o
garoto faria o mesmo em uma letra de música que escolhesse. Diante do efeito desta
tarefa para ele , a própria professora pôde formular que trabalhar com música poderia
ser uma estratégia interessante para toda a turma. Assim o faz e fica bastante satisfeita
ao recolher os desdobramentos dessa proposta: cada um trouxe uma letra de música
que gostava muito e que, de alguma forma, dizia de si. Conclui, ainda, que músicas
em Inglês fazem parte do universo desses garotos e, então, por que não partir de um
interesse que já existe para ensinar a língua?

Neste caso, a at e a professora puderam fazer uma parceria, pensar a partir de


um interesse singular o que poderia fazer sentido a todos. Entretanto, com bastante
frequência o at é “convidado” a ocupar o lugar do especialista, como um profissional
que tudo sabe sobre o aluno ou que é o único que tem condições de responder o que o
encontro com a diferença pode provocar.
Porém,

82
Se flertamos, enquanto ats, com o lugar do especialista, é para poder
desconstruí-lo, sabendo que as relações que se fixam nesta dinâmica
produzem a hierarquização de saberes e poderes, além de
despotencialização e desresponsabilização da escola pela
transformação da experiência. Ao acompanharmos uma criança na
escola, entendemos que a direção da nossa prática deve estar
voltada para o compartilhamento de saberes, ações e
responsabilidades (ALBANO, 2015, p. 20).

As demandas e as encomendas feitas ao at podem aparecer de diferentes


formas, desde permanecer por horas excessivas com o aluno acompanhado, até o de
dar conta de todo o projeto pedagógico. Nesse sentido, essas encomendas podem
representar uma armadilha caso nos identifiquemos a esse lugar, nos
responsabilizando e centralizando todo ou quase todo trabalho em nós mesmas.
Santos (2013) é preciso ao afirmar que apenas estar no cotidiano e atender
demandas não define a clínica do acompanhamento terapêutico. O risco, neste caso, é
de a função do at se tornar uma mera "fazeção" das indicações e demandas feitas por
outros profissionais.
Diante de pedidos totalizantes, temos como esforço ético manter um
posicionamento menos ingênuo em relação às demandas. Ao suprir todos os pedidos e
dar conta de tudo, acabamos por tamponar as faltas, deixamos de produzir
questionamentos, o que impede que a criança ou adolescente e a escola lidem com a
possibilidade de se experimentarem sozinhas.
Metzger (2006) vai ao encontro desta ideia, ao afirmar:

Para que não nos tornemos realizadores passivos de ordens alheias,


precisamos pensar com certa independência para construir ideias
sobre o tratamento, sobre as condutas e direções que entendemos
serem as mais adequadas em cada caso, concordando ou
discordando do que pensam as outras instâncias de tratamento do
nosso acompanhado. Isso não significa que precisamos saber tudo
sobre outras especialidades, mas sim que precisamos nos situar e
dialogar com elas (p. 175).

83
Ao falar em demandas, há uma muito presente quando se trata do contexto
escolar: a aprendizagem. Demanda feita ao at, para que ajude a garantir que o aluno
aprenda, e demanda feita ao aluno, que dê conta de assimilar os conteúdos dados.
Pode-se tomar esse pedido como uma tarefa, em que é necessário adaptar atividades e
conteúdos, apontando para um fazer mais integrativo e menos inclusivo. É frequente
que o at, na tentativa de ajudar um aluno a entender um determinado conteúdo,
perceba que aquilo não está fazendo sentido para ele. Talvez lançando mão de outra
estratégia, os resultados poderiam ser mais interessantes, já que a relação com o
conhecimento pode ser estabelecida de muitas formas. É, então, uma boa
oportunidade para repensar junto à equipe escolar o projeto pedagógico deste aluno e
seus objetivos de aprendizagem.
O at tem uma posição privilegiada, pois tem a oportunidade de construir uma
relação de muita proximidade com a criança ou adolescente acompanhado e, assim,
vai mapeando alguns pontos: seus temas de interesse, que tipo de atividade lhe faz
mais sentido, como constrói o raciocínio numa proposta de interpretação de texto ou
de matemática, sobre o que conversa com os demais alunos, para citar alguns
exemplos.
Nas palavras de Kisil (2016): "O A.T., deste modo, recolhe o que tem de mais
autêntico nos interesses e nas questões de um sujeito e o ajuda a desdobrar tais
interesses em uma pesquisa e em um fazer. A condição para isso é a escuta - fazer-se
parceiro, acompanhante de um pensamento" (p. 93).
Esta escuta para a relação singular que a criança ou adolescente estabelece
com o mundo é matéria prima para o processo de escolarização, na medida em que
pode abrir possibilidades para que os interesses do aluno se transformem em saber
compartilhado.
Mas como trabalhar com esta escuta de aspectos tão singulares de um sujeito
num espaço coletivo por excelência? Como fica o professor, diante desta relação tão
privilegiada que o at constrói com a criança acompanhada? É imprescindível trabalhar
em rede, tanto dentro da escola (com funcionários, educadores, coordenação, direção),
como com os demais profissionais que atendem a criança ou adolescente (psicólogos,
fonoaudióloga, fisioterapeuta, etc.). Precisamos circular os relatos desta experiência
de tanta intimidade para que não corramos o risco de ficar numa relação dual, fechada
com a criança. Ao buscar a aproximação com o entorno, apontamos para uma
triangulação e, assim, o at se coloca como porta-voz daquilo que vive com a criança.

84
Lembramos aqui da ideia quase clichê, mas não menos importante, do at como ponte,
que aproxima e encurta caminhos entre partes que por vezes estão distantes ou
isoladas.
Ao se posicionar como um pesquisador auxiliar que opera na cena vivida com
a criança ou adolescente é que entendemos que o at desempenha a função de at. Mas
não é um pesquisador qualquer. É um pesquisador orientado por uma teoria, com uma
concepção de sujeito que embasa sua prática. Que se posiciona e intervém de modo a
propiciar a circulação de questões e reflexões a respeito da relação ensino-
aprendizagem, no caso do contexto escolar. Que assume o compromisso de
compartilhar aquilo de mais singular daquela criança ou adolescente, aquilo que parte
de interesses e desejos e pode se transformar em um saber compartilhável. Que
carrega a certeza de que assumir a própria falta faz parte de um posicionamento ético,
clínico e político que vai na contramão do "dar conta de tudo".
Nesse sentido, não basta sair na rua com um paciente para este dispositivo ser
nomeado de AT, assim como não basta um profissional da escola acompanhar
individualmente uma criança no seu processo de escolarização para que este recurso
se configure um AT, dentro dos moldes apresentados neste trabalho. Isso não quer
dizer que um auxiliar que apoie o aluno não possa fazer intervenções que tenham um
efeito terapêutico.
Retomando a história do AT, pensado inicialmente como um agente facilitador
da desinstitucionalização das pessoas que estavam enclausuradas nos manicômios,
procurando articular o trânsito entre o sujeito, a rua e o meio social, o AT passou a
atuar no interior da escola, uma instituição extremamente disciplinar 39 e isso levantou
diversas problematizações. Atualmente, um dos desdobramentos dessas questões é
uma nova modalidade de atuação, em que ats passaram não só a trabalhar dentro das
escolas, mas serem contratados por elas e fazerem parte de sua equipe.
Lançam-se, então, novos desafios para esses profissionais. Compor a equipe
escolar, ser "de dentro", pode favorecer a circulação do at pela instituição e seu acesso
junto aos educadores, facilitar sua entrada nas reuniões e a criação de espaços de
construção coletiva. O at tem a oportunidade de discutir junto à equipe a proposta
39
Lembremos que Foucault (2012) define a escola, juntamente com o hospital, a
fábrica, o quartel e a prisão, como instituições com um modo de funcionamento que
visa à disciplinarização, à modulação das condutas e assujeitamento dos indivíduos
que passam por elas.

85
pedagógica da escola e, a partir disso, pensar nos desdobramentos da mesma para um
projeto pedagógico singular. Além disso, talvez se possa pensar que do ponto de vista
do at há efeitos em ver-se "de dentro", em sentir-se autorizado pela escola, apontando
para um sentimento de pertencimento que o deixa confortável para determinadas
intervenções.
Por outro lado, se o at está tão imerso na lógica institucional, deve atentar-se
ainda mais em como escutar e trabalhar as demandas, para que possam ser
questionadas, repensadas e recolocadas. Sentir-se desconfortável também faz parte
deste trabalho, no sentido de poder estranhar o que muitas vezes é tratado como dado.
Esse manter-se estrangeiro, "de fora", aponta para uma não repetição da lógica posta,
da "fazeção" e, consequentemente, para uma reinvenção da prática. Reinvenção esta
que diz também dos novos espaços e contratos de trabalho do at no contexto escolar.
Compartilhamos com Santos (2013) a ideia de que, diante do risco de um
engessamento da prática pelo aumento da demanda e por novos contratos de trabalho,
faz-se necessário ocupar esses novos espaços, se reinventar, mas mantendo os
princípios éticos do AT.
Pode-se dizer que houve, portanto, uma ampliação dos dispositivos voltados
para o trabalho com a inclusão escolar, inclusive para o AT. Nesta ampliação,
percebemos que o posicionamento ético, clínico e político do AT deixou marcas e
serviu como inspiração para as (re)invenções de um modo de olhar, pensar e intervir
com a diferença no cotidiano da escola.

Referências Bibliográficas:

ALBANO, Paula Buainain. Quando o acompanhamento terapêutico encontra a


escola: a construção de uma prática intercessora. Dissertação de Mestrado. São
Paulo: Psicologia Social- PUC-SP, 2015

BATISTA, Cristina Abranches Mota. Deficiência, Autismo e Psicanálise. A Peste:


Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia. V.4, nos 1 e 2, jan./jul. e jul./dez.
2012. São Paulo: Educ, 2012.

86
BRASIL. Lei número 12.764. Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa
com Transtorno do Espectro Autista, 2012.

BRASIL. Lei número 13.146. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência,
2015.

DOMINGUES, Adriana. Cartografias de uma Experiência Comunitária. Tese de


Doutorado. Rio de Janeiro: Psicologia Social- UERJ, 2011.

FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,


2013

GUARIDO, Renata; METZGER, Clarissa. Acompanhamento Terapêutico e práticas


inclusivas nas escolas. In: Julieta Jerusalinsky (org.). Travessias e Travessuras no
acompanhamento terapêutico. Salvador: Ágalma, 2016.

KISIL, Izabel. O acompanhante terapêutico como assistente de pesquisa. In:


JERUSALINSKY, J.(org). Travessias e Travessuras no acompanhamento
terapêutico. Salvador: Ágalma, 2016.

METZGER, Clarissa. Um olhar sobre a transferência no Acompanhamento


Terapêutico. In: SANTOS, R. (org). Textos, texturas e tessituras no
acompanhamento terapêutico. São Paulo: Instituto A CASA/Ed. Hucitec, 2006.

PALOMBINI, Analice. Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político.


Revista Psychê. São Paulo, ano X, no 18, p.115-127, 2006.

SANTOS, Ricardo Gomides. Acompanhamento Terapêutico de pacientes


neurológicos: uma experiência de ensino em psicanálise. Tese de Doutorado. São
Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2013.

87
O CAMPER
Marcus Góes
Bruno teve uma anóxia em seu nascimento e, recentemente, perguntou para
seus pais como as coisas aconteceram nesse dia. Contou-me que uma das médicas
teve que pressionar seu coração, ajudando-o a bombear, como naquelas situações em
que alguém é resgatado de um afogamento. No lugar de usar as duas mãos, apoiando-
se com seu próprio peso sobre o tórax de Bruno, essa médica o fez com o dedo
indicador. Certamente, a sua chegada foi bem turbulenta. Uma turbulência que deixou
sequelas: algumas dificuldades motoras, de deglutição, dicção, alguns episódios
epilépticos e o susto, que parece ter, desde então, deixado todos em volta num certo
estado de alerta e contribuído para outras tantas consequências.
Apesar de suas dificuldades, Bruno não foi para uma escola especializada para
crianças com graves comprometimentos. Ele se beneficiou das políticas de inclusão
adotadas no início dos anos 2000, o que lhe permitiu frequentar uma instituição

88
regular de ensino. Porém, a crueldade pré-adolescente não lhe poupou. Aos 12 anos
de idade, alguns de seus colegas contaram para todos os outros sobre sua mochila com
motivos de criança pequena e, depois de abri-la e espalhar pelo pátio o que havia
dentro, jogaram-na no vizinho. Foi então que seus pais me chamaram.
Bruno continuava indo à escola, porém não tinha amigos e passava a maior
parte do tempo jogando vídeo game em seu quarto. E assim, em seu quarto, comecei a
acompanhá-lo, uma situação em que as sequelas da anóxia apareciam pouco, mas
estavam ali, principalmente nos movimentos das mãos, quando tinha que manusear
chaves ou amarrar o cadarço do tênis, e também em sua fala, bem econômica e de
difícil compreensão. Mas ele precisou falar para me ensinar como jogar o Call of
Duty, um vídeo game de guerra com muitos tiros e campos de batalha que gostava
bastante. Nesse jogo se enxerga a partir do ponto de vista do seu personagem
principal. Ele se locomove autonomamente pelos cenários, simulando uma
perspectiva em primeira pessoa, como se o jogador e o personagem fossem um só40.
Desse modo, ficamos por um bom tempo. Foi bem difícil para mim. Ser
alvejado por tiros de todos os lados, enquanto procurava entender como funcionava
aquele joystik, o controle, muito diferente do que eu conhecera quando criança, com
muito mais botões e recursos, e que Bruno manuseava sem dificuldades. Mas eu não
conseguia sequer fazer meu avatar guerreiro se movimentar. Em cenários que
pareciam filmes, com frequência, via-me de frente para uma parede, com os pés
derrapando no chão, sem sair do lugar nem entender o que estava acontecendo.
Havia algumas modalidades em que o Call of Duty poderia ser jogado: todos
contra todos, equipe contra equipe, nós contra a máquina, online (em que jogam
pessoas do mundo todo) e offline, dentre outras. No início, era comum jogarmos
equipe contra equipe e online. Ou seja, jogadores de diversos lugares do mundo eram
agrupados em duas equipes que, então, começavam a se matar e renascer. O jogo
acontecia em uma velocidade que eu não acompanhava. Não avistava inimigos para
matar e morria muito, sem entender de onde vinham os tiros. A situação melhorava
um pouco quando Bruno e eu estávamos na mesma equipe e ele, por alguns minutos,
abria mão de fazer seu jogo e se dedicava a me ajudar. Ele me orientava pelos campos
de batalha, alertava para os inimigos e até abatia alguns, salvando-me de execuções
iminentes.
40
Jogos como o Call of Duty fazem parte de um gênero conhecido com Tiro em Primeira Pessoa,
ou First Person Shooter. Outros jogos também do mesmo gênero sã o, por exemplo, o Medalof
Honor, Battle Field e Counter Strike.https://pt.wikipedia.org/wiki/Tiro_em_primeira_pessoa

89
Lembro também de uma modalidade em que o cenário era uma casa onde
Bruno e eu precisávamos nos defender de soldados invasores que vinham para nos
matar. Bruno me posicionava em uma das entradas para que eu atirasse quando os
inimigos aparecessem. Ele ficava em outro lado da casa fazendo o mesmo que eu, só
que protegendo duas entradas. Esperávamos em tocaia e, de repente, apareciam levas
de soldados. Eu matava muitos deles, era uma sensação boa, mas eram tantos que por
vezes eles venciam o cerco e me matavam. Ou acontecia de eu não aguentar esperar
os invasores e sair para tentar ajudar Bruno; então, começavam a chegar inimigos pela
entrada que eu deveria guardar. Na maioria das vezes, não dava conta de voltar,
posicionar-me e atirar. Acabava morrendo.
Nessa modalidade, diferente de todas as outras, quando acontecia de um de
nós morrer, o outro poderia vir até o nosso corpo e ressuscitá-lo. Era uma operação
delicada que deveria ocorrer entre uma leva e outra de soldados, caso contrário,
aquele que fazia o trabalho de ressurreição, seria morto também, encerrando a partida.
Durante esses combates, esse era um momento em que me emocionava, em que sentia
a constituição de uma parceria. A virtualidade onírica se materializava
tecnologicamente e, numa inversão de posições, parecia mostrar a função para a qual
eu era convocado. De que tipo de morte seria preciso resgatar Bruno? Ou então, qual
nascimento seu estava agora em curso e que demandava algo como o que sua médica
lhe fizera com o dedo indicador? Mas isso foi o que em algum momento posterior eu
pensei. Com ele, desfrutava de sua potência, capaz de jogar e ressuscitar um jogador
em inclusão que o acompanhava.
No mais, por um bom tempo, continuei experimentando um certo sufoco
durante nossas partidas. Não conseguia avistar inimigos para abater e morria com
muita frequência. Via-me bastante desacreditado, atualizando um sentimento
autodepreciativo que me acompanhou desde a adolescência, o de que jamais
conseguiria me dar bem nos games. Somou-se as minhas dificuldades um outro
agravante. Demorei para perceber que muitas vezes era o Bruno mesmo quem me
matava. Ele me perseguia propositadamente, deixando de lado os outros inimigos,
assistindo minhas atrapalhadas pelos campos de guerra e diversificando as formas
como faria a execução. Quando me dei conta, o xinguei e isso virou uma brincadeira
entre nós, ele dava risada. Tentei perseguí-lo também, mas eu ficava em drástica
desvantagem.

90
Num determinado momento, disse ao Bruno que a coisa não estava boa para
mim. Enquanto ele seguia matando os inimigos, eu só morria e não conseguia curtir o
jogo. Sentia-me perdido e esquecido no meio da guerra. Suspeitei que ele, talvez sem
perceber, quisesse ver como eu lidaria com aquela situação e que minha desvantagem
no jogo conversava com a sua desvantagem na vida, com suas dificuldades
decorrentes da anóxia e tudo o que veio em seguida. Ele insistia em jogarmos desse
modo, mas eu, aos poucos, às vezes mais enfaticamente, fui insistindo que gostaria de
sair do apuro. Até que ele começou a propor algumas facilidades, construindo para
mim uma espécie de currículo adaptado.
Então, no início dos encontros passamos a jogar também offline, ou seja, sem
outros jogadores do mundo, com as equipes formadas por soldados comandados pela
própria máquina, e que podíamos escolher se seriam soldados melhores ou piores,
modulando o grau de dificuldade das partidas. Era possível deixar o jogo bem
confortável, mais em acordo com minhas habilidades. Estar na mesma equipe do
Bruno, offline, com soldados fortes conosco e soldados fracos como adversários me
ajudou muito a desenvolver meu jogo. Bruno passou a ter o cuidado de jogar as
primeiras partidas assim para que eu aquecesse e, só depois, íamos para o modo
online, para o mundão, o que era uma sensação quase vertiginosa.
Num determinado momento do processo, Bruno passou a jogar o Call of Duty
de uma maneira bem específica, utilizando bastante uma estratégia conhecida nesse
tipo de jogo como camperar. Camperar é ficar entocado, de tocaia, escondido,
camuflado, esperando o inimigo aparecer no seu campo de visão para matá-lo. É uma
estratégia muito útil quando se joga online com jogadores de alto nível, em que
inimigos chegam rapidamente por muitos lados e facilmente você pode passar uma
partida inteira sendo morto sem conseguir reagir. Em geral, era isso que ocorria
comigo. Por algum motivo, Bruno também começou se sentir em apuro.
Camperar permitia que Bruno se protegesse, porém, fazia sua participação no
jogo diminuir. Ficava escondido por um longo tempo sem que nada acontecesse. Mas
ele pegou um certo gosto por isso. Por vezes, seu interesse era me mostrar os novos
esconderijos que descobrira. Alguns deles faziam parte do jogo, eram locais atrás de
arbustos, dentro de um galpão mais escuro, ou numa janela em um prédio
abandonado. Outros eram os bugs, as falhas no sistema que permitiam aos avatares
guerreiros posicionarem-se dentro de paredes, grandes rochas, ou suspensos no ar,
sem que ninguém os visse e de onde podiam atirar nos inimigos. Bruno camperava e

91
passou a me orientar a fazer o mesmo. Sem o perigo de ser encontrado, o jogo ficava
entediante. Então, impaciente, eu saia, mostrava-me, e em geral morria rapidamente.
Muitas vezes ouvi o próprio Bruno reclamar: “Naquele jogo só tinha
camper!”. As partidas tornam-se chatas com jogadores que se escondem muito e não
se entregam para o barato do pega-pega. Você os encontra pouco no campo de batalha
e com frequência é morto por inimigos que dificilmente são avistados; eles utilizam
armas de longa distância, as snipers, e atiram de muito longe. Curioso que aqueles
que muito camperam, são chamados de campers. A pessoa se torna o ato de se
esconder.
E Bruno tornara-se um camper, não apenas nos jogos. Em nossos encontros,
por exemplo, era difícil percebê-lo, saber onde estava. Às vezes, porque ele mentia, eu
acreditava e passava um bom tempo contente com notícias como a de que fizera
novos amigos na escola, ou mesmo que começara a namorar. Acontecia também dele
apenas se omitir, se ocultar. Ele aproveitava o bug de uma certa benevolência minha
em que eu, para poupá-lo do esforço em falar e formular alguma ideia, supunha e
antecipava suas respostas às perguntas que lhe fazia. Ele simplesmente não respondia,
ficando meio quieto, observando o que eu dizia, com um olhar que não concordava
nem discordava, apenas olhava o que eu imaginava para ele. Vez ou outra, sutilmente
assentia em algo, ou corrigia algum detalhe em minhas suposições. Enfim, observava
a situação passar sem precisar se manifestar e aparecer. Eu sequer percebia que estava
escondido.
Em determinada época do processo, sem entender o que acontecia, passei a
sentir um sono terrível durante nossos encontros. Perguntava-me se o horário após o
almoço seria o motivo e até mesmo, se seria o caso de encaminhá-lo para outra
pessoa. Mas havia um efeito sonífero que ele provocava em mim e entendi que ele
atingira um avançado estágio de desenvolvimento como camper. Tornara-se capaz de
me fazer dormir. E sem que eu percebesse, Bruno não contava coisas importantes.
Nunca soube ao certo como e se continuaram essas situações de humilhação na
escola. Suspeito que diminuíram, mas não deixaram de acontecer. O fato é que eu não
sabia e foi apenas depois de um bom tempo que me dei conta disso.
A condição de aluno em inclusão também foi uma espécie de camper em seu
processo de escolarização. Tenho a impressão de que a escola pouco o conhecia. Não
lhe exigiam e não lhe formulavam perguntas a sua altura. Não sabiam qual era a sua
altura. Ele também não. Ele nunca repetiu de ano. Era uma situação café-com-leite

92
que o protegeu do risco de fracassar academicamente e também socialmente. Estava
confortável nesse lugar, onde se mantinha quase que intencionalmente e com certa
malandragem. Bruno chegou inclusive a aconselhar um colega seu que passava
dificuldades nas provas. Sugeriu-lhe que fizesse como ele e se tornasse um aluno em
inclusão para que usufruísse das adaptações curriculares e suas facilidades. Ele
percebia que era poupado e ali ficava, com seu tablet, jogando e vendo notícias de
futebol, especialmente sobre seu time, o Palmeiras. Enquanto isso, as aulas
aconteciam e a vida social na escola se desenrolava. Ele aproveitou o bug da inclusão
escolar para se manter assim, o que talvez o ajudou a se proteger um pouco das cruéis
humilhações dos colegas de escola.
As conversas que tivemos com seus pais me ajudaram a perceber essa sua
clandestinidade. Depois de meio ano o acompanhando, eles solicitaram uma reunião e
eu estive certo que meu trabalho seria questionado. Afinal, os atendimentos
consistiam basicamente em jogar vídeo game em seu quarto, justamente aquilo que
sua mãe gostaria que ele fizesse menos. Sem perceber, fui atrás de Bruno em busca de
socorro, quase que pedindo ajuda para justificarmos nossa jogatina. Prontamente, ele
responde que ao ter que falar comigo para me ensinar como jogar, ganhou coragem
para falar, se aproximou dos colegas e o bullying diminuiu. Era uma descoberta
grande, a proximidade diminuía o bullying. Surpreendido, perguntei-me desde quando
ele tinha essa consciência do seu processo e desde quando falava assim, tão
assertivamente.
Nesse momento, dei-me conta que Bruno experimentava comigo um outro tipo
de aparecimento, diferente daquele por meio dos avatares nos jogos e também do que
lhe estava sendo possível na escola. Ele me explicava como funcionavam esses jogos
e eu, não entendendo sua dicção, pedia para que falasse duas ou três vezes a mesma
coisa. Junto ao exercício mecânico da fala, havia constrangimentos, vergonhas e o
asseguramento de um encontro para além desses tropeços dictivos, onde nos
oferecíamos companhia e nos divertíamos. Gostar de aprender esses jogos e
experimentar uma superação que não pude viver em minha adolescência, talvez tenha
contribuído para o processo. Era bom ver como aquela prática semanal me colocava
num caminho evolutivo. Bruno esteve atento a minha melhora e sem que eu
percebesse muito bem, havia começado a falar mais.
Em outra conversa dessas com seus pais, já quando Bruno estava com 15 anos,
convocada também para que o filho jogasse menos vídeo game e saísse mais de sua

93
casa, novamente fui até ele em busca de socorro, dessa vez já com mais consciência
de que podia aproveitar tais momentos para desafiá-lo a se mostrar. Bruno
argumentou com clareza: “Querem que eu saia mais de casa, mas não me deixam sair
para fazer o que eu quero, ir sozinho assistir um jogo do Palmeiras contra o
Corinthians no Parque Antártica.” Essa história rendeu. Ele já frequentava os jogos
com o pai, mas Bruno queria permissão para ir sozinho. Segundo ele mesmo, o
problema não era o perigo real dos estádios de futebol e os torcedores, mas algo que
via em sua mãe, que em determinada época sofrera com crises de pânico, e também
em sua avó materna, sempre muito assustada com os riscos que o mundo oferecia. E
com essa sua avó, morava um tio que, aos quarenta e sete anos, ainda não conseguira
sair da casa dos pais. Era uma cena que Bruno temia, como um horizonte que se
impunha a ele. Eram receios que caminhavam pelas gerações e encontravam um
ponto de efetivação em uma criança marcada por uma anóxia, querendo experimentar
coisas, algumas mais, outras menos arriscadas.
A consciência que Bruno mostrava acerca dos processos que vivia e sua
atitude nessas reuniões com seus pais, indo para campo aberto e expondo seus
argumentos, surpreendiam-me. Por um lado, ficava admirado e via ali alguém que
certamente podia mais do que a condição de um aluno em inclusão. Por outro lado,
inquietava-me com o abrupto de uma revelação, a clandestinidade que Bruno vivia no
encontro comigo. É certo que não acompanhamos tudo o que se passa com um
paciente. Afinal, não somos senhores de si em casa alguma, menos ainda no encontro
de duas casas. Ao mesmo tempo, para além de clandestinidades inerentes, Bruno se
escondia de mim e das pessoas. Perceber que ele se escondia e dizer-lhe que percebia
esse seu movimento, sem exigir-lhe uma grande aparição, era suficiente para chegar
até ele e descobri-lo. Nesses momentos, chamava-o de camper e ele parecia gostar de
ser descoberto assim, especialmente quando isso acontecia depois de algum tempo me
enganando e assistindo as minhas atrapalhadas. Então, ele ria, e às vezes me contava
onde estava.
Estive com ele no Estádio do Parque Antártica e o acolhimento com que
fomos recebidos me surpreendeu. Ele tinha “amigos de estádio”. Uns vinham de
cidades do interior do estado, uns estavam em família, outros vinham sozinhos e todos
procuravam chegar bem antes do início do jogo para conversar sobre o Palmeiras.
Bruno parecia bem incluído por ali. Mostrava uma capacidade de socialização - da

94
qual eu pude desfrutar como corinthiano camperado no meio de outra torcida – que
não combinava com a solidão em seu quarto.
Mas, assim os anos se passaram. Durante os períodos de férias escolares, ainda
que mais próximo de seus colegas e sofrendo menos humilhações, Bruno não
constituiu laços de amizade capazes de promover encontros fora do ambiente escolar.
Na maior parte desse tempo, ficava sozinho. No convite para a formatura de sua
turma, havia fotos de todos os alunos. Seu rosto meio assustado, meio bravo, meio
acuado, meio angustiado trazia algo muito frágil. Era-lhe difícil estar ali, no meio
daquelas pessoas.
O término do colegial anunciou para Bruno uma outra maneira de viver.
Imbuído de sair da toca, matriculou-se em um cursinho pré-vestibular. Contou-me que
havia começado a sonhar em ter uma namorada, o que me pareceu também sonhar em
ir para vida como era a vida para os jovens de sua idade. Mas o cursinho,
especialmente as aulas de física e química, o arremessava de volta a uma condição de
incapacidade. Na segunda semana de aula começou a ter crises de pânico. Depois de
toda uma vida escolar camperado na condição de aluno em inclusão, estava agora
totalmente exposto.
Depois de alguns meses, desistiu. Mesmo apoiado por medicações
psiquiátricas, não encontrou forças para sustentar aquele novo lugar e, com outra cara,
o antigo lugar se impôs. Poupado pela adaptação curricular durante anos, Bruno agora
dava-se conta de seu atraso. Era legítimo que não quisesse se expor a um contexto que
lhe fosse tão exigente e causasse tanta angústia. Com um certo alívio e alguma
resignação, soube dos benefícios das políticas de cotas no mundo do trabalho. “Eu
não vou ter os problemas que as pessoas estão tendo para arrumar trabalho. É mais
fácil conseguir um emprego dentro dessas cotas.” Bruno adentrara ao limbo pós
segundo grau, uma espécie de campo aberto após o fim de uma estrada. Era claro que
estava sofrendo e esforçava-se para encontrar caminhos para si, tentando aceitar o que
talvez fossem suas condições. Mas sua conversa era estranha, parecia ter encontrado
outro bug no sistema e uma maneira de continuar camperado.
Em nossos encontros, aos poucos Bruno foi mostrando sinais de um certo
fortalecimento e ampliação de suas possibilidades na vida. Seus esconderijos se
tornavam pequenos demais. No Call of Duty, não jogava mais camperado, pelo
contrário, utilizava-se das armas menos letais, como a pistola ou a faca, e saia a
campo enfrentando jogadores munidos de potentes metralhadoras. Buscava encontrar

95
algum caminho evolutivo ou novidade para sustentar seu interesse. Passamos também
a jogar o Fifa, vídeo game de futebol. Ai também minha desvantagem era enorme.
Com muita insistência conseguia convencê-lo a equilibrar um pouco a situação e eu
ficava com um time mais forte. O que antes era uma adaptação curricular para um AT
fora de forma, agora assumia mais um malabarismo para que o mundo em seu quarto
lhe fosse suficiente. No mais, continuávamos nos divertindo, xingando um ao outro e
rindo.
Bruno começara também a propor partidas de xadrez. Havia uma generosidade
de sua parte, era uma brincadeira em que eu ficava em vantagem. Ao mesmo tempo
ele aproveitava para se experimentar em desvantagem, num contexto que não parecia
lhe ser tão sofrido. Seu estilo de jogo era curioso: perdia rapidamente peças
importantes e ficava acuado, para então começar a jogar de modo surpreendente.
Gostava de fugir apenas com o rei e alguns peões, entusiasmado com a possibilidade
de produzir um empate e desmontar o que seria minha vitória aparentemente já
garantida. Ele achava graça e ria. Elogiei seu estilo, inteligência e esperteza, assim
como denunciei essa outra espécie de camper. Bruno mantinha-se escondido por
quase toda a partida e não se lançava no complexo desafio de entrelaçar as muitas
variáveis contidas no pequeno exército que cada jogador dispõe. Ele entregava seus
combatentes, meio disfarçadamente, para então mostrar suas habilidades, não
exatamente num combate, mas na esquiva, na capacidade de não ser pego. Eu o
desafiei a jogar de outra maneira e ele topou. Fez aulas de xadrez e passou a me atacar
com todas as peças. Em pouco tempo, começou a ganhar algumas partidas e cada vez
mais eu suspeitava que as limitações cognitivas que lhe atribuíam na escola faziam
parte de seu hábito pela clandestinidade.
Apesar de ter abandonado o cursinho pré-vestibular, Bruno começou a fazer
aulas particulares de física e química. Foi um período em que lançou-se em diversos
outros desafios onde experimentava não ser poupado. Inscreveu-se numa competição
de xadrez e, entre algumas pequenas crises de pânico, sobreviveu e foi o penúltimo
colocado. De mim, ganhava com cada vez mais frequência e em sua família já não
havia mais quem o derrotasse. Além disso, retomou algo que sempre esteve por perto,
a academia de musculação. Com seu corpo mirrado, queria ficar forte, crescer e
encorpar. Fez também aulas em uma auto-escola e sem recorrer à adaptações na
prova, passou na segunda tentativa.

96
Dois anos após o término do colegial, entrou numa Faculdade de Educação
Física. Contou-me que seus colegas não o deixavam camperar demais. Havia ali um
espírito solidário que o acolheu e diante de sinais de que poderia não estar bem, como
sair da sala de aula e não voltar, iam em sua busca. Bruno estava com suas
dificuldades e em campo aberto. Expunha-se ao seu corpo, às suas defasagens
acadêmicas, à tarefa de aprender, superar desvantagens e estar em desvantagem sem
se esconder muito.

FORMAÇÃO DO AT: UMA FORMA-AÇÃO QUE NÃO É COM- FORMA

Clarissa Metzger

Com sua origem múltipla, o at é atualmente no Brasil uma prática que abarca
concepções muito diversas e heterogêneas. Se por um lado nisso reside sua riqueza, já
que o at pode trabalhar orientado pelas mais diversas teorias e em situações tão
diversas quanto hospitais, escolas, instituições de saúde mental etc., também pode ser
razão de confusão e falta de referências quando se trata de pensar o que seria uma
formação em acompanhamento terapêutico. Daí o desafio de falar sobre o que pode
ser considerado formação do acompanhante terapêutico (at) sem adotar receitas que
coloquem o at dentro de uma forma, o que seria totalmente contrário à ética que
orienta a ação desse profissional.

97
De forma geral, podemos dizer que até os anos 1990 era suficiente que o at
fosse alguém interessado, com vocação para a convivência e tolerância com as
diferenças. Era bastante comum que fosse estudante de psicologia ou alguma área
afim e normalmente trabalhava com Acompanhamento Terapêutico (AT) enquanto
não estava formado ou enquanto o consultório não “deslanchava”. Juntava-se a essas
características desejáveis alguns conceitos psicanalíticos e uma introdução à história
da loucura e assim tínhamos um at, estávamos conversados. Claro que não era pouca
coisa, se pensarmos em uma prática então tão jovem quanto indeterminada. No
entanto, as exigências de formação atualmente não são as mesmas que eram antes, já
que aprendemos com a experiência.

FORMAÇÃO TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL


Nesse capítulo, apresentarei pontos cruciais para a formação de um at que se
oriente pela psicanálise de Freud à Lacan. Mais do que tudo, trata-se de apontar
direções para uma formação que, tal como a formação do psicanalista, é contínua e
não-toda.
Muito se fala sobre a formação interminável do psicanalista e agora estamos
propondo o mesmo para o at. Afinal, qual é a justificativa para essa ideia?
A ideia de que a formação do analista é interminável está ligada, antes de tudo,
a uma motivação ética. Imaginar que a formação do analista poderia estar concluída
apontaria para algo da ordem de uma completude que contradiz completamente a
própria ética da psicanálise como ética do desejo. Se o desejo é da ordem de um furo,
de um vazio a partir do qual o sujeito pode se movimentar, ele não pode ser
tamponado por um saber que se queira totalizante. Mesmo atentos para o fato de que o
analista não é idêntico ao at, podemos indicar que com a formação do at se passa algo
análogo. Ou seja, estamos partindo do princípio de que há muitas semelhanças entre a
formação do at e a formação do psicanalista e por isso usamos o referencial de
formação do psicanalista para nos ajudar a sistematizar melhor uma concepção sobre
a formação do at. Apesar das diferenças entre o atendimento em AT e no consultório,
podemos inclusive nos perguntar se algumas das principais diretrizes de formação do
at não são exatamente as mesmas que as da formação do analista.
Quando falamos na formação de um psicanalista, sempre nos referimos ao
famoso tripé: análise pessoal, supervisão e formação teórica. Esse tripé também vale

98
para o at, mas acho que vale a pena destacar outras características que talvez possam
ser formuladas de modo mais próximo ao at.

ÉTICA DA PSICANÁLISE E CLÍNICA DO AT


É importante dizer que essa formação precisa estar orientada por uma ética
determinada. Não existe uma única ética, mas sim éticas diferentes, que apontam
direções diversas. A ética da medicina, por exemplo, é diferente da ética da
psicanálise. Enquanto a primeira se apoia em um saber do lado do médico que lhe
permite saber como é melhor tratar o corpo de alguém, a ética da psicanálise leva em
conta que há um saber inconsciente do lado do sujeito e é a esse saber que ele visa.
No AT que se orienta pela psicanálise, a ética vigente é a ética da psicanálise, que
aponta para o sujeito do inconsciente. Isso traz uma série de questões, ligadas ao
modo como um at vai intervir e também a sua relação com outros membros de uma
equipe de tratamento. Por exemplo, como um at pode se posicionar se, desde a ética
que lhe orienta, a direção que propõe discorda da direção proposta pelo restante da
equipe de tratamento de um determinado acompanhado?
É a questão que encontramos em pauta no caso clínico de um sujeito psicótico
que sofre as consequências da obesidade mórbida. Trata-se de uma mulher próxima
dos 40 anos de idade, em acompanhamento terapêutico havia muitos anos por uma
equipe de três ou quatro ats. Depois de duas passagens ao ato em que feriu seu
próprio corpo, ela encontrou, depois de bastante tempo, uma relativa estabilidade, que
já durava anos e, no momento que ora descrevemos, seu tratamento se dava quase que
exclusivamente através do AT e da medicação. Desde a juventude começou a
engordar, pois se tratava de um sujeito que gostava muito de comer. Além de gostar,
dizia que “comer lhe acalmava”. Sair para almoçar ou jantar, sozinha ou com os ats,
era para ela um grande prazer. Conhecia muitos restaurantes, tinha um gosto refinado
e era capaz de uma avaliação criteriosa e objetiva dos pratos servidos, sem se deixar
seduzir pelo nome ou fama do restaurante em questão. Todavia, o aumento de peso
decorrente de seu gosto e da busca por “calma” começou a lhe causar problemas,
como o aumento de colesterol e açúcar no sangue, resultando em uma pré-diabetes.
Frente a esse quadro, o médico endocrinologista que a acompanhava sugere uma
cirurgia de redução de estômago, para tentar contornar o problema, o que claramente
a deixou com muito medo.

99
A equipe de ats teve um outro entendimento da situação. O que está em jogo é
um sujeito esquizofrênico, para quem os acontecimentos no corpo ganham um valor
muito peculiar. O corpo do esquizofrênico é um corpo fragmentado, sua representação
é constantemente vivida como ameaçada. Por exemplo, delírios envolvendo o corpo
ou partes dele são comuns, a sensação de que alguma parte do corpo está deformada
ou que vai se soltar do restante do corpo é frequente. No caso em questão, tratava-se
justamente de um sujeito que vivia o temor que uma parte de seu corpo se
desprendesse do resto e, em alguns momentos, tinha a clara sensação de que partes de
seu corpo eram deformadas. Essas sensações lhe obrigavam a fazer constantes
verificações para tentar garantir a integridade de seu corpo.
Frente à essa situação, que os ats conheciam e acompanhavam, sua avaliação
foi de que uma intervenção no real do corpo desse sujeito naquele momento, como
uma cirurgia de redução de estômago, poderia ter efeitos subjetivos devastadores, pois
não levava em conta as manifestações do sujeito que eram contrárias à intervenção.
Uma ocorrência do real que interferia tão radicalmente na economia de gozo e de
prazer de um sujeito muito provavelmente colocaria em risco a estabilidade
conquistada por ele a duras penas. Em algumas situações, a estabilidade de um
psicótico pode ser tênue e se perder com certa facilidade. Desse modo, a equipe de
ats, mesmo sabendo o risco de saúde que esse sujeito vivia, se posicionou
contrariamente à cirurgia, sustentada pela ética da psicanálise. Ao fim, a cirurgia
realmente não ocorreu e foram buscadas outras saídas para minimizar os problemas de
saúde decorrentes da obesidade mórbida.
Em situações como essa, é importante que o at possa se posicionar a partir de
sua ética, ainda que a decisão não lhe caiba. Se a equipe de ats tivesse simplesmente
concordado com o médico, provavelmente a acompanhada teria sido submetida a essa
cirurgia, com as consequências previsíveis de desestabilização. O fato da equipe ter
argumentado, se posicionando a partir da ética da psicanálise, teve como efeito que a
família e o próprio médico repensassem a sugestão da cirurgia, que à primeira vista
poderia parecer a melhor saída para a situação.

ÉTICA E MORAL NA FORMAÇÃO DO AT41

41
Os pará grafos seguintes foram escritos a partir do capítulo sobre ética e moral de meu livro A
sublimação no ensino de Jacques Lacan – um tratamento possível do gozo. EDUSP, 2017.

100
Podemos dizer que a ética e a moral referem-se aos usos e costumes de uma
determinada cultura. Todavia, há diferentes modos de pensá-las ao longo do tempo e
para diferentes autores. Não empreenderemos uma discussão profunda sobre o tema,
mas vamos situar rapidamente os autores aos quais Lacan se refere em sua discussão
sobre o que considera como a ética da psicanálise.
As ideias de ética e de moral remontam à antiguidade: para Aristóteles, ambas
são tomadas como sinônimos, na medida em que para ele não há distinção entre
público e privado. Para ele, vale a ética da virtude: deve-se fazer o que é virtuoso. Por
outro lado, podemos definir a moral como o conjunto de regras que são aceitas
socialmente e apontam para a virtude. Uma vez que se tenha como referência a ética
da virtude, as soluções dadas a determinados problemas são particulares, ou seja, não
seguem regras universais. Ao contrário, sua ética tende a ser uma ética particularista.
Particularista é diferente de relativista; não se trata de mudar a ética para cada
situação, mas de buscar a maneira mais adequada em cada caso de atingi-la.
O exemplo clássico nesse caso seria o de um homem que cometesse um
assassinato. Esse seria um ato aceitável em termos da moral? Embora a princípio não
seja, para Aristóteles, isso vai depender de certas circunstâncias. A princípio,
podemos dizer que se trata de ação moralmente condenável. Se, por exemplo, um
tirano sequestra minha família e me ordena que mate alguém – um inimigo dele, por
exemplo – obedecê-lo seria moralmente condenável. No entanto, se esse mesmo
tirano sequestra minha família e ameaça matá-la caso eu não mate seu inimigo, o
assassinato que eu venha a cometer a contragosto nessa situação pode se tornar uma
ação moral: mato para salvar outras vidas, as de minha família.
Em uma tradição moderna, Kant, no século XVIII, formula o procedimento do
imperativo categórico, que visa pôr à prova as ações do homem. Para isso, deve
universalizar uma regra que já existe. Para Kant, uma ação só é moral na medida em
que atenda a condição de poder ser universalizável (em oposição ao pensamento
particularista de Aristóteles): antes de executar uma ação, devo me interrogar se a
atitude que tomarei seria também correta caso se voltasse para mim e em qualquer
outra situação. Dito de outro modo, não devo fazer a outro aquilo que não seria
correto que fizessem a qualquer um e inclusive a mim. Nesse caso, trata-se de uma
regra que aponta para a universalização, na medida em que o bem é comum, é o
mesmo para todos. Este é o Bem Supremo, ao qual se refere Lacan, partindo de Kant:
o que é bom para um homem, deve ser bom para todos. Não está em jogo aqui a

101
singularidade de cada homem, pelo contrário; qualquer ser racional deve aceitar a
regra da universalização. No exemplo citado, o assassinato seria moralmente
condenável mesmo que eu o fizesse para defender a vida da minha família. Ou seja,
para que o imperativo categórico tenha validade, não pode haver exceções. De forma
resumida, diferente do que ocorre para Aristóteles, para Kant, a moral diz respeito a
valores da esfera pública, enquanto a ética se aplica à esfera privada. Elas podem
coincidir ou não. Lacan diferencia ética e moral e propõe para a psicanálise uma ética
bem específica.
Lacan critica a proposta de colocar a ética da psicanálise do lado da moral,
empreendida pelos leitores anglo-saxões de Freud seus contemporâneos. Em seu
seminário sobre a ética (LACAN, 1997), Lacan indica o que considera os três ideais
propostos, explicita ou implicitamente por essa leitura da psicanálise e que seriam: o
ideal do amor humano, o ideal da autenticidade e por último o ideal da não
dependência – os quais Lacan destmonta em seu texto, evidenciado o que os sustenta.
Ele demonstra a vizinhança desses ideais com os ideais morais na acepção kantiana
dos hábitos e costumes, já que tendem a definir de antemão o que seria bom para
todos – e, portanto, uma tentativa de universalização incompatível com a psicanálise,
cuja proposta se baseia na singularização do sujeito desde uma ética do desejo. A
ética da psicanálise só pode ser singular, dada a singularidade do desejo do sujeito,
ainda que a ética do desejo valha como universal dentro da psicanálise, como
indicador da direção do tratamento. Para a psicanálise, o imperativo moral, substrato
dos ideais como esses três citados acima e criticados por Lacan, estaria do lado do
masoquismo moral. Em contraponto ao masoquismo moral, Lacan situará a ética da
psicanálise do lado do desejo:

Esse Wunsch, nós o encontramos, em seu caráter particular irredutível,


como uma modificação que não supõe outra normatividade senão a de uma
experiência de prazer ou de penar, mas uma experiência derradeira de onde
ele jorra, e a partir da qual ele se conserva na profundeza do sujeito sob
uma forma irredutível. O Wunsch não tem o caráter de uma lei universal,
mas, pelo contrário, da lei mais particular – mesmo que seja universal que
essa particularidade se encontre em cada um dos seres humanos. (LACAN,
1997, p. 35).

Apontando para o Wunsch, que pode ser traduzido como desejo do sujeito,
Lacan evidencia ao mesmo tempo o caráter único do desejo, que, portanto, é mais

102
preciso chamar de singular42 – uma vez que o desejo é peculiar a cada sujeito – ao
mesmo tempo que alude à sua característica universal, já que o desejo como tal estará
sempre presente no homem. Assim, temos de um lado a moral, em sua acepção de
universal, e o imperativo do masoquismo moral. Do outro lado se situaria a ética da
psicanálise e o Wunsch, o desejo naquilo que guarda de singularidade. É o que
encontramos abaixo:
Lacan esclarece que, à primeira vista, a ordem da ética da psicanálise poderia
ser tomada num mal-entendido como a busca de uma moral natural, de um equilíbrio
normativo com o mundo, ao qual uma suposta maturação dos instintos levaria
naturalmente. Nesse sentido, alude à relação genital idealizada por psicanalistas pós-
freudianos como objetivo a ser atingido. Ele mostra que haveria aí uma referência a
um equilíbrio ideal que apontaria para essa relação genital, mas deixando de fora um
aspecto muito importante. Trata-se do fato de que a consciência moral nunca é
aplacada, mostrando-se mais cruel quanto mais é satisfeita em suas exigências. Lacan
identifica aqui o paradoxo da consciência moral, no qual se manifestaria o ódio de si:
quanto mais alguém segue a diretriz moral, tanto mais deve punir-se. Ora, o que
evidencia esse paradoxo é a existência da Trieb, a pulsão, em detrimento de uma
suposta bondade humana, suposta adequação ao objeto e ao mundo; como frisa Lacan,
não se trata de Instinkt, não é ao instinto que se refere Freud, menos ainda a um
instinto em harmonia com a natureza e em equilíbrio. Refere-se, isso sim, à pulsão,
com sua característica de deriva. A Trieb busca satisfação, o que não significa
necessariamente prazer. Daí poder se satisfazer masoquisticamente pela via da
consciência moral – o que em nada tem a ver com “bondade humana” nem com uma
moral natural, mas que pode ter muito a ver com a tentativa do sujeito de se adequar a
um suposto bem universal, Bem Supremo na acepção kantiana.
É por essa razão que a ética da psicanálise não se coaduna com a moral. E é
pela mesma razão que é importante que o at adote para si uma ética que norteie seu
posicionamento em situações que surgirão ao longo do AT. A moral não é ruim ou
boa a princípio, mas ela parte de uma série de valores que tendem ao universal. Caso
o at não se oriente pela ética da psicanálise, ele corre o risco de se guiar por aquilo
que é da ordem da moral e terminará, sem se dar conta, por tomar decisões e assumir
posturas muito mais pautado em universais dessa mesma moral do que na escuta do

42
Regnault (2001) esclarece que “A psicaná lise, por sua dialética do caso clínico, é entã o o campo
no qual o singular e o universal coincidem sem passar pelo particular” (p. 10).

103
sujeito singular que acompanha. É o que poderia ter acontecido no caso da
acompanhada obesa referida acima. A cirurgia de redução do estômago parecia ser
uma questão de bom-senso e cuidado com a paciente. E de fato era, mas não estava
levando em conta um elemento essencial que é a singularidade do sujeito de que se
trata nessa cirurgia.
Junto da ética da psicanálise – e orientados por ela - há outros pontos
importantes para a formação do at, que abordarei em seguida.

OS NÓS DE UMA REDE


Proponho como cruciais para a formação do at os seguintes pontos, sempre
orientados pela ética da psicanálise:
- Formação teórica
- Desejo de acompanhar terapeuticamente/Acompanhar terapeuticamente
- Supervisão
- Análise pessoal
- Dispositivo grupal
Esses pontos não estão sendo enumerados por ordem de importância, até
porque não são comparáveis uns com os outros, mas sim se articulam, formando
uma rede que sustenta o at. Uma rede composta por saber e não-saber.

FORMAÇÃO TEÓRICA
Uma formação teórica, que inclua leituras, discussões sobre o
Acompanhamento Terapêutico e que tenha um referencial teórico definido – do tipo
análise do comportamento, fenomenologia ou psicanálise, não só ajuda muito na
formação como é crucial43. Ou seja, uma teoria que ajude a teorizar o próprio
Acompanhamento Terapêutico, que seja uma baliza para a clínica do AT e converse
com essa clínica, permitindo ao at localizar em seu “fazer” clínico. E, nesse sentido,
de pouco adianta fazer uma mistura de teorias. No que tange à teoria, existe a
necessidade de escolher, mesmo que depois se mude de ideia e se escolha outra teoria
como referência. Mas, se escolho a psicanálise, vou estudar essa teoria até o ponto em
que ela efetivamente me oriente. Mesmo dentro da psicanálise é necessário fazer

43
Importante também lembrar que cada referencial teó rico se norteia por uma ética pró pria, a
ética nã o é a mesma para todas as linhas. Aqui, fazemos apenas uma breve abordagem da ética da
psicaná lise desde as formulaçõ es de Lacan, sem discutir as éticas em jogo nas demais
abordagens.

104
algumas escolhas. Não é possível ser ao mesmo tempo lacaniano e winnicoteano, por
exemplo, já que cada um desses autores tem entendimentos muito diversos de certos
pontos cruciais da psicanálise e de como ela vai trabalhar em cada caso.
Um exemplo: o entendimento do que seja a psicose. Para Winnicott, de modo
geral, trata-se de uma falha no desenvolvimento. Ou seja, supõe-se uma imaturidade,
um déficit da psicose em relação à neurose. Dentro de uma concepção
desenvolvimentista, haveria um funcionamento mental mais desejável do que outro
porque mais maduro – a neurose em detrimento da psicose. Já Lacan entende que a
psicose é uma estrutura subjetiva diferente da neurose, não é melhor nem pior. É
apenas diferente. Escolhi esse exemplo não à toa, mas para mostrar que, embora se
costume considerar que tanto Winnicott quanto Lacan são teóricos da psicanálise, eles
partem de pressupostos diversos e inconciliáveis, ou seja, aquilo que fornece a base
para a clínica de cada um é diferente -e, portanto, as intervenções a partir de cada uma
dessas duas leituras será diferente. É preciso fazer uma escolha: ou bem pensamos que
a psicose é expressão de uma imaturidade no desenvolvimento do psiquismo ou bem
entendemos que se trata de uma forma de estruturação subjetiva diferente da neurose,
nem melhor nem pior. É claro que há pontos conciliáveis das duas teorias ou no
mínimo pontos que dialogam entre si. Mas se a ideia for buscar esses pontos, o
principal objetivo da teoria, ou seja, sua coerência interna, se perde, pois fazemos uma
pesca aleatória de conceitos dentro de teorias que na verdade são muito diferentes,
partem de algumas premissas fundamentais diferentes, como é o caso do
entendimento da psicose em Winnicott e Lacan. Seria mais ou menos como tentar
resolver um problema proposto pela engenharia civil com o arsenal teórico da
engenharia metalurgista: ou seria claramente impossível ou, com sorte, alguma
resposta de construiria. Mas, quando se trata de coisas como construir edifícios ou
atender clinicamente, é melhor não precisar contar apenas com a sorte. Por isso
fazemos uma escolha de teoria de referência44.
Não existe uma regulamentação da profissão de AT e, portanto, nenhuma área
pode requerer o direito exclusivo sobre ela. Por isso existem ats que são estudantes ou
já formados em psicologia, TO, enfermagem etc. Mas, independentemente da
44
Faço aqui apenas alguns apontamentos sobre a questã o da escolha teó rica que ajudem
a traçar as linhas gerais do que pode ser uma formaçã o em acompanhamento terapêutico. Essa é

uma discussã o extensa e nã o pretendo esgotá -la nesse capítulo.

105
formação universitária que tenha um futuro AT, é de outra teoria, de outra formação
que ele precisa se cercar.
Entretanto, a formação teórica é apenas uma parte. Alguém pode se sair bem
em sua formação teórica, mas, ao começar a acompanhar, pode fazer muita confusão
se não estiver bem orientado. Especialmente por aquilo que concerne à ética e que a
teoria sozinha não pode ensinar. É por isso que a teoria sem a ética e dispositivos que
a transmitam, como a análise pessoal e a supervisão, é pouco para formar um at.
Frequentar simplesmente um curso teórico não garante que daí saia um
analista ou um at. Aliás, toda a formação que se pode propor não passa de mero
formalismo se não houver, junto à direção ética, implicação e desejo de analista ou,
analogicamente, de acompanhante terapêutico por parte daquele que se engaja nesta
ou naquela formação. Também é necessário que esse psicanalista – e tomo a liberdade
de fazer uma extensão para o campo do AT – possa autorizar a si mesmo como tal.
Essa afirmação pede alguma cautela. Não se trata de autorizar-se levianamente, mas a
partir de sua implicação com a ética, com a formação permanente e com o
acompanhar terapeuticamente. Isso significa que há uma decisão muito pessoal que
todo aquele que quer ser at precisa tomar: em que momento ele pode se autorizar a
começar a acompanhar por conta própria e também referido à uma formação que
precisa se manter ativa.

DESEJO DE ACOMPANHAR TERAPEUTICAMENTE/ACOMPANHAR


TERAPEUTICAMENTE
Aqui caberia uma analogia com o que em psicanálise lacaniana chamamos
“desejo de analista”. Poderíamos pensar em um “desejo de acompanhante
terapêutico”, que deve ter consequências de grande monta na formação. Esse desejo
se articula intimamente com a ética da psicanálise, que aqui tomo como referência
para o at que se orienta pela psicanálise de Freud à Lacan.
Para que a teoria nos atravesse, mesmo que não estejamos pensando nela no
momento em que atendemos, é necessário que haja esta implicação com esse desejo
específico. Essa implicação vai levar o at a iniciar e sustentar uma clínica que com
frequência se depara com situações imprevisíveis e incompreensíveis.
Não há uma maneira correta de começar a acompanhar e, nesse sentido,
podemos dizer que autorizar-se a acompanhar não tem origem na “formação formal”,
formação teórica como AT ou pelo menos não apenas aí. Há muitos ats que, ao

106
começarem a acompanhar, tem muito mais desejo de acompanhamento terapêutico do
que formação teórica. Isso não significa que o desejo de acompanhar e o autorizar-se
são suficientes, mas são imprescindíveis. Depois que se começa a acompanhar, é
importante a busca de outros dispositivos de formação: supervisão, mais aporte
teórico etc.
É formador acompanhar, na medida em que muitas das questões a serem
discutidas e pesquisadas por cada at só surgem da sua prática clínica. É aí que também
pode se esclarecer como cada at deseja continuar sua formação. Se a formação teórica
aponta para a aquisição de um saber, o acompanhar nos coloca justamente na situação
de não-saber. Na cena mesma do acompanhamento, não se trata de saber, mas de
acompanhar, de escutar algo que é singular e diverso de um saber teórico. Viver a
experiência de acompanhar não é algo que possa se aprender sem acompanhar, apenas
teoricamente. Assim, temos um contraponto interessante: de um lado, o não-saber
com o qual nos deparamos na clínica e, por outro, o saber que a teoria nos
proporciona.
Enquanto acompanhamos, não estamos mesmo em condições de saber, mas
sim de acompanhar, de escutar. Algum entendimento pode se fazer durante um AT,
mas esse teria muito mais a ver com a verdade do que com o saber. Muito mais com a
verdade particular de um sujeito, o nosso acompanhado – concepção bastante
vinculada à ética da psicanálise – do que com um saber no sentido universalizante, no
sentido de que haveria algum modelo de AT a ser seguido.
Em um trabalho de AT que pode durar muitos anos, podemos passar meses
apenas passeando de carro sem destino pelas ruas da cidade – sem entender
exatamente do que se trata. Ou jogando xadrez por vários encontros, ou ficar em casa
assistindo TV com o acompanhado.
Nesses exemplos, não há nenhum saber disponível que permita avaliar, no
momento mesmo em que a cena se desenrola, do que se trata nesses pedidos de at.
Muitas vezes só contamos com nosso desejo de acompanhar, que nos permite aceitar
propostas que muitas vezes parecem estapafúrdias. Isso não significa que nos damos
por satisfeitos ao não entender o que se passa, mas sim que podemos fazer uma aposta
no sujeito, para então esperar o tempo necessário para saber o que está em jogo para o
acompanhado em situações como essa. Apenas para exemplificar, podemos dizer que
o acompanhado do carro retomava pontos importantes de sua história de vida,
inclusive antes da primeira crise, a partir do percurso que fazia junto com o at. O

107
paciente que propôs jogar xadrez com o at o fez depois de permanecer quase quinze
dias deitado na cama, sem querer levantar para nada, nem mesmo comer ou tomar
banho. Nesse contexto, jogar xadrez surgiu como o laço possível, que permitiu ao
acompanhado retomar algum contato e sair da cama.
É possível atender a um pedido de acompanhamento terapêutico formulado
pelo psiquiatra ou pela família fazendo desses pedidos o foco do acompanhamento e
deixar de lado a escuta do nosso acompanhado, atentando para o pedido explícito da
família e do médico. Assim, por exemplo, a mãe de uma pré-adolescente psicótica
pede uma at e quer que ela leve a menina para fora de casa, para passear e que a ajude
a tornar-se “mais feminina”.
Quando sou chamada para acompanhar a adolescente, a mãe aponta, entre
outras coisas, para a “falta de feminilidade” da filha. Essa menina, aos treze anos, só
usa roupas largas e com motivos infantis. Não usa adereços femininos, como brincos,
pulseiras, colares...ela também perdeu o interesse em sair de casa, pois acha que as
pessoas na rua “olham feio” para ela. Se simplesmente faço o que sua mãe me pede,
estarei ignorando aspectos importantes do caso. Como, por exemplo, que ela está no
limiar de uma crise psicótica, sentindo-se perseguida na rua, daí sua vontade de não
sair de casa. Ou então estarei ignorando que aquilo que a leva em direção à crise
psicótica é justamente a pergunta a que todo adolescente é chamado a responder: sou
homem ou sou mulher? Ser “feminina” seria buscar responder a uma pergunta que é
justamente o que a acompanhada evita ao máximo, porque a lança em direção ao
abismo: a definição de uma escolha sexual que não tem condições de fazer, que exige
que ela se depare simbolicamente com a diferença sexual e se posicione em relação a
ela. Isso poderia contribuir para lançar a adolescente em direção às questões edípicas
que exatamente são as que a precipitam em direção à crise. Se estamos falando de um
caso de psicose, o Nome-do-Pai, que é desde onde ela poderia responder à questão
sobre sua posição na partilha dos sexos, está foracluído. Desse modo, não tem como
responder simbolicamente a isso.
Portanto, se respondo prontamente a demandas já estabelecidas pelas variadas
instâncias que se encarregam do paciente ou que chamam o at – levar fulano para
passear, ir com sicrano procurar emprego – corro o risco de não o escutar. E que
função tem este AT, no sentido de uma escuta do sujeito do acompanhado? Utilizando
o referencial psicanalítico, tratar-se-ia de mera realização de tarefas, resposta de
demandas familiares e institucionais e não de uma escuta do sujeito do inconsciente.

108
Mas escutar o sujeito não significa ignorar, rechaçar o que nos dizem as outras
instâncias, até porque, se isso acontece, há grandes chances de que não possamos
realizar nosso trabalho, pois frequentemente é a família e o psiquiatra que sustentam a
presença do at no tratamento. Assim, é preciso acolher os pedidos da família, por
exemplo. Mas acolher é diferente de responder. Posso acolher, dialogar, sem
necessariamente cumprir literalmente o que me pedem. Por exemplo, um AT pode
começar levando e buscando um adolescente da natação, porque foi esse o pedido da
família. Mas, no caminho para casa, é possível parar em uma praça para tomar sorvete
ou então entrar em uma locadora próxima de casa nunca antes explorada ou algum
outro desvio ligado ao sujeito e à sua singularidade e não à demanda da família ou do
psiquiatra.
A decisão sobre que demanda atender ou não atender, como manejá-la,
depende da orientação tanto pela ética da psicanálise quanto pelo que propus chamar
“desejo de acompanhar terapeuticamente”.

SUPERVISÃO
Lacan, ao fazer uma crítica à formação de analistas proposta pela IPA, disse
que não existe análise didática porque toda análise é e deve ser essencialmente
didática. A questão da didática ressurge na discussão sobre a supervisão, que talvez
possa ser considerada a instância essencialmente didática na formação de um analista,
justamente por causa da articulação teórico-clínica que ali se realiza. Nada impede
que façamos uma extensão direta para a função da supervisão na formação do analista
e do at.
Mas essa didática tem uma característica muito especial: deve ser jogada fora
na experiência analítica. Ao ser atravessado pela psicanálise, podemos esquecer da
teoria no momento de viver a experiência. Na análise, estamos na condição de
apreender uma verdade em estado nascente e não um saber já sabido de antemão.
Talvez o maior saber do psicanalista seja saber que o sujeito sabe de algo essencial,
sem saber que sabe. O sujeito tem acesso, pode saber algo de sua própria verdade, de
seu desejo singular. E, novamente, é justo fazer uma extensão dessa ética aos
domínios do AT. O at, através de sua escuta, aponta para um saber do sujeito.
Mas como se articulam essas duas experiências tão diversas, o saber que está
em jogo na teoria e o não-saber com o qual nos deparamos ao acompanhar?

109
É isso que faz o trabalho da supervisão, que podemos chamar de uma
articulação teórico-clinica. Essa é uma concepção possível do que seja a supervisão
em AT. Há outras. Por exemplo, de que um é alguém que deve exercer uma função de
controle, dizendo aos ats o que devem e o que não devem fazer, dizer o que fizeram
certo e o que fizeram errado. Não é um método de supervisão que nos interesse,
porque perpetra uma alienação que vai na contramão da ética da psicanálise, na
medida em que situa o saber no supervisor, o que desresponsabiliza o at por seu fazer.
É claro que o supervisor supostamente é alguém com mais percurso teórico e clínico
do que o supervisionando, mas traduzir essa diferença em termos de “há um que sabe”
é um grande risco para a clínica, uma vez que desimplica o at de sua ação e ao mesmo
tempo constitui um mestre – no caso, o supervisor. Desde Freud, sabemos que a
mestria está na contramão do discurso do psicanalista e sua ética.
Ao designar a supervisão como um lugar de articulação, podemos dizer que é
nela que tentamos articular o universal da teoria ao particular da clínica e da escuta.
Segundo Jorge (2006), “A supervisão é um dispositivo que se insere precisamente
nesse lugar intersticial de articular o saber ao não saber, pelo qual se revitaliza a
experiência clínica e reabre-se o seu campo particular de ação. Dito de outro modo, a
supervisão articula o universal da teoria ao particular da clínica e reabre o lugar da
escuta, isto é, o lugar do analista, para a subjetividade em questão. ” (p. 288).
Esse é um bom contra-argumento para aqueles que dizem que a teoria
“amarra” a clínica, rotulando o paciente. A teoria só faz isso, só nos cega para a
clínica se não soubermos o que fazer com ela, se não as fizermos conversar, se
tomarmos a teoria como fim em si mesma, como verdade absoluta que deve apenas
ser comprovada. Por outro lado, se não temos uma teoria de referência, que
parâmetros compartilháveis podemos ter para discutir a direção de um tratamento? O
que nos orienta em um AT, para além de senso comum? É por isso que a supervisão é
tão importante para a formação e para o trabalho do AT; é aqui o lugar por excelência
para fazer teoria e clínica conversarem, tendo a ética da psicanálise, ética do sujeito
do inconsciente como horizonte.

ANÁLISE PESSOAL
Outro ponto importante na formação do at é a análise pessoal. Quando alguém
deseja ser analista, sabe que será parte de sua formação passar, ele mesmo, por uma
análise. A exigência maior para ser um at não é ter sido acompanhado

110
necessariamente em um acompanhamento terapêutico, mas sim ter sido acompanhado
nos seus não-sabidos, ter se deparado com seu inconsciente e ter sido escutado nisso.
Esse é o tipo de trabalho que fazemos em uma análise. Podemos também fazê-lo em
um AT, mas o acompanhamento terapêutico engloba outras demandas, que não são
necessariamente as daquele que deseja trabalhar como at.
A análise também faz parte da transmissão da psicanálise, é a forma mais
prática de passar por essa transmissão: viver a experiência da análise. Para escutar o
não-saber do nosso acompanhado, é preciso que tenhamos assentido em nosso próprio
não-saber. Porque, para a formação em AT, assim como para a formação em
psicanálise, não basta saber: saber a teoria, saber a técnica. É preciso disposição para
abrir uma brecha e não saber. E aprender a não saber para poder avançar é um
exercício constante da análise.

DISPOSITIVO GRUPAL
O último ponto da lista – mas nem por isso menos importante - é o dispositivo
grupal. Podemos caracterizá-lo, por exemplo, como a equipe de ats. Para que serve o
dispositivo grupal?
Em termos de formação, serve principalmente para ser uma referência em uma
clínica tão exigente, que nos obriga a colocar o corpo em jogo. Ao mesmo tempo,
serve para acolher os dizeres do at. O dispositivo grupal é, por um lado, um lugar de
acolhimento e, por outro, mais um recurso para fazer furo e permitir ao at se desfazer
em certa medida do seu narcisismo, o que lhe dá condições de acompanhar
terapeuticamente, sustentando seu não-saber.
É essa concepção que sustenta a ideia de uma equipe de ats. Fazer parte de
uma equipe não significa que a equipe é uma unidade que se completa. Ao contrário,
se a equipe forma Um, deixa de cumprir sua função: o at precisa se descompletar e,
para isso, precisa falar em nome próprio. O fato de fazer parte de uma equipe não o
exime da responsabilidade de dizer em seu próprio nome sobre sua experiência clínica
e sobre sua formação.
Os “furos” promovidos em nosso saber pelo dispositivo grupal são
importantes, porque, estando sozinhos, a tentação de achar que somos muito sabidos é
grande. O dispositivo grupal deve nos permitir sustentar nosso não-saber, o que pode
ser muito incômodo, mas também necessário. O dispositivo grupal interroga o at –

111
quando este se deixa interrogar, é claro - de um modo diverso do supervisor e do
analista e também oferece outro tipo de referência e sustentação no trabalho.
Todavia, o dispositivo grupal não se reduz nem equivale à equipe de ats.
Muitos ats trabalham sozinhos. O dispositivo grupal tem a função de “furar” o
narcisismo e o saber do at e, assim, provoca-lo a continuar sua formação interminável.
Essa mesma função pode ser exercida por encontros, congressos, coletivos etc. O
mais importante é que haja algum dispositivo grupal que cumpra essa função de
provocar o furo que faz a formação não se encerrar em uma forma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JORGE, M. A. C. (org) Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra


Capa, 2006.

LACAN, J. O Seminário: Livro 7 – A Ética da Psicanálise – 1959-60. Rio de Janeiro,


Jorge Zahar, 1997.

METZGER, C. A sublimação no ensino de Jacques Lacan: a sublimação como


tratamento do gozo. São Paulo, Edusp 2017

REGNAULT, F. Em Torno do Vazio: A Arte à Luz da Psicanálise. Rio de Janeiro,


Contra Capa, 2001.

NA ˜MANHA” DO GATO – Relato e discussão de caso clínico de AT.

Juliana Scharff

O amor é um cão dos diabos


Pé de queijo
Alma de cafeteira
Mãos que odeiam tacos de bilhar
Olhos como clipes de papel
Eu prefiro vinho tinto
Entedio-me em aviões
Sou dócil durante terremotos
Sonolento em funerais
Vomito nos desfiles
E vou para o sacrifício no xadrez
E nas bocetas e nos afetos
Cheiro urina nas igrejas
Já não consigo mais ler
Já não consigo mais dormir (...)

112
Charles Bukowski 

Ele sabia que se começasse a beber, não seria pouco...


Jorge tinha 54 anos, divorciado, pai de uma moça de trinta anos. Naquela
época trabalhava como funcionário público em uma empresa de comunicação, mas de
tempos em tempos tinha alguma intercorrência de saúde e ficava afastado do trabalho.
Tinha uma relação complexa com seus pais, irmãos e sua filha. Da história familiar,
sabia-se que Jorge era fruto de um rápido relacionamento da mãe biológica com um
rapaz de outra cidade que não assumiu a paternidade. Sua mãe fora expulsa de casa
ainda durante a gravidez e acabou deixando o filho, que aos sete anos foi adotado pela
tia. A filha de Jorge me contou que o que sabiam do avô é que ele se alcoolizava
bastante e que parecia ser alguém de poucos recursos financeiros e afetivos. Jorge
nunca o conheceu.
Comecei o acompanhamento terapêutico procurada pela filha, que me contou
sobre seu pai e sua difícil relação com ele. Ela tinha feito um arranjo com os tios
(irmãos de Jorge) para assegurar o pagamento do meu trabalho. Naquele momento,
Jorge havia sofrido um atropelamento e precisou realizar uma cirurgia e ter cuidados
mais intensos, por isso estava hospedado na casa de seus pais. Completava um mês
sem beber. Foi quando o conheci, justo no dia do seu aniversário. Estava deitado na
cama, quase sem conseguir andar. Logo me disse que “não precisava de terapia”.
Falou que já havia feito outros processos terapêuticos e que aprendeu que “um gole é
muito”. Insisti para que tivéssemos um segundo encontro e aos poucos ele foi
aceitando que nos encontrássemos semanalmente.
Jorge gostava de ver notícias e ouvir música. Os temas de política e história
eram recorrentes em nossas conversas. Quando perguntado sobre o que gosta de fazer,
Jorge respondia que é beber - segundo ele, a única coisa que lhe dava prazer. Bebe
desde jovem e é comumente conhecido por todos de sua família e vizinhança pelos
altos porres. Sua filha conta que o seu pai é um “alcóolatra desde sempre” e que não o
chama mais para eventos sociais devido aos constrangimentos que ele causa.
Jorge reparava bastante no modo como eu me vestia, costumava elogiar meus
sapatos, notava se eu estava de maquiagem ou fazia comentários sobre uma roupa que
chamava a atenção dele. “Sapatinho”, “você usa batom?”, “calça de shopping, né?”
Observava a maneira como eu dirigia, as palavras que eu usava, o meu modo de me
apresentar e de agir. Parecia se perguntar sobre o que eu fazia ali, num misto de
estranhamento e encantamento.

113
A casa de Jorge era nomeada pela filha como “caso de insalubridade pública”.
Tinha marcas da passagem do tempo, móveis e fotos antigas, paredes descascadas
com rachaduras. Cinzas e bitucas de cigarro pelo chão da sala, sofás sem forro. Um
enorme amontoado de papéis, livros e roupas. O quarto de Jorge tinha cortinas
“blecaute” que ele me mostrava com alegria, destacando como elas não deixavam
nenhuma luz entrar durante o dia para que ele dormisse no escuro a qualquer hora. O
quarto do meio guardava lembranças da infância da filha, com estrelinhas no teto que
brilhavam no escuro. Na cozinha, uma geladeira com a porta aberta, quebrada.
Nenhuma porta além da entrada apresentava maçaneta, para entrar era só empurrar.
Como ele mesmo me disse, sua casa era completamente adaptada para um bêbado.
No final de semana
Uma vez combinamos um encontro no sábado para irmos almoçar. Antes de ir,
escrevo para saber se estava confirmado, ele me responde que sim e para eu ir “na
‘manha’ do gato”. Para chegar até sua casa era preciso pegar uma rodovia e, neste dia,
estava um trânsito terrível, o que me fez demorar muito mais no percurso. Para
informá-lo sobre isso, ligo para Jorge da estrada e temos o seguinte diálogo:
Eu: - Oi Jorge, estou no caminho e acho que não teremos tempo de ir naquele restaurante comer.
Jorge: Eu te comer? Você está de sacanagem, né?
Eu: Não... A gente ir no restaurante se alimentar.
Jorge: Dirige a porra desse carro! (desligou)

Essa foi a primeira vez que o testemunhei alcoolizado. Quando cheguei, ele
me esperava na porta de sua casa, sentado, com um copo na mão, escutando música
no volume máximo. Pensamos que sair não seria uma boa ideia, com isso ele deu a
alternativa de pedir algo em casa. Pedimos sanduíche de mortadela e ficamos
conversando enquanto não chegava a entrega. Fumando bastante, falando sobre
assuntos desconexos, ele estava altamente embriagado. Eu não estava muito à vontade
e ele, com certeza, percebeu pois, mais que o habitual, questionava-me sobre meu
jeito.
Quando a comida chegou, Jorge (que continuava a beber) foi um tanto rude
com o entregador, fomos comer de pé apoiados no carro, usando a lataria empoeirada
como mesa na garagem. Nesse momento, Jorge dá duas mordidas no lanche e começa
a vomitar. Eu estava com fome, tensa por estar com ele em sua casa, cansada do
trânsito que tinha pego para chegar, não hesitei e me pus a comer sem parar até
terminar o meu sanduíche, sem pensar no que tinha acabado de acontecer. Assim que
finalizo, ajudo Jorge a trocar de camiseta, ele se sentia um tanto melhor, mas

114
continuava bebendo, tinha ficado bravo porque gastou dinheiro com um sanduíche
que o fez vomitar, colocando a culpa na comida e não na bebida que ingeria desde o
dia anterior, sem parar. Concluo que não tinha muito mais o que fazer por ali naquele
dia. Falo para Jorge buscar se cuidar, ir tomar um banho, se alimentar e vou embora.
No bar...
Outra vez ele estava completamente alcoolizado, falava enrolado, entramos no
restaurante, ele vai para a parte do caixa, pede cervejas para levar e bebe uma
cachaça. Eu o espero sentada enquanto ele conversa e bebe. Sinto que estar perto já
era bastante, eu não precisava dizer nada, e mesmo quando as pessoas me olhavam, eu
dirigia logo o olhar para ele, ou para baixo. Percebi que, naquela situação, eu fazia
parte de um espaço dele, uma cena inteira habitual dele. Reflito sobre como me sentia
naquele momento e tenho a sensação de vivenciar algo como ser uma “mulher de
malandro” que o acompanha no bar.
Onde já se viu bar fechar?
Era final de ano e eu tinha uma viagem marcada, iria tirar férias, avisei com
antecedência, e isso foi tema de conversas. No último encontro: “Você vai para
praia? Ah, imagina você de biquíni”. Fiquei envergonhada com as falas dele,
conversei, desconversei sobre assuntos em que achei que ele estava sendo indelicado
e, quando chegou a hora de eu ir embora, me despedi combinando de encontrá-lo
apenas duas semanas após a virada do ano.
Durante as férias, passo a receber diversas ligações e mensagens de texto:

16:30 “Dra. Ju, preciso te ver.”


17:27 “Você está bronzeada?”
18;58 “Quer vir passear?”
20:01 “Juliana, anda cm comigo?”.
20:34“Vem me ver!”.
22:43 “Você é g1234 gata”
0h00 ”beija”
01h14“Dra Ju preciso te ver”
02H50 “pra você com sua bela ‘bucetinha linda caçudinha’”
04h16 “Ju, dá”
06h04 “Ju, acho o mundo1”
08h33 “Cá ou lá?”

Observando o horário das mensagens, conseguimos acompanhar como ele vai


progressivamente ficando alcoolizado. Depois, refletindo sobre as mensagens, seu
conteúdo e a relação transferencial estabelecida, passo a pensar que para ele era
incompreensível que eu saísse de férias e ficasse indisponível, afinal, onde já se viu
um bar fechar? Jorge era um bebedor “profissional” em plena atividade.

115
Vivenciávamos na relação transferencial algo como um terapeuta como droga/bebida
a ser ingerida, ou o meu corpo enquanto terapeuta/corpo-ambiente para se alcoolizar -
o bar encarnado no meu corpo. Ampliarei essa discussão mais adiante.

Algumas considerações...
Sobre o acompanhamento terapêutico
Acompanhar Jorge me exigia uma inteireza pelo simples fato de acompanhar
um homem que falava palavrões, baixarias, reparava e questionava meu modo de me
vestir, agir e dirigir, que bebia em altas quantidades, que tinha uma casa altamente
bagunçada e suja, num setting de atendimento bastante difícil, imprevisível, solitário e
árido
Era necessário um grande jogo de cintura. Fui entendendo que a possibilidade
de eu estar disponível ao que aparecesse no encontro, que me permitisse usar com
espontaneidade minhas palavras, ter o meu jeito e tentar identificar um pouco do que
eu sentia, conversar sobre as diversas coisas e, quando possível, transmitir incômodos
e sensações, todas essas eram as minhas ferramentas de trabalho.

Acompanhar com o álcool


Como manejar o contexto clínico com o álcool? Jorge nunca falou que pararia
de beber, nunca combinou comigo que não iria usar álcool, então mesmo que sua
filha, familiares e amigos quisessem tentar restringir isso, ele não demonstrava
nenhum interesse em ficar sem beber. Alertou-me logo no primeiro encontro sobre a
ex terapeuta e outros tratamentos que fez que buscavam restringir o álcool. Ficou um
mês sem beber, mas logo que se recuperou do atropelamento, retomou com a bebida.
Com o tempo, fui percebendo que o fato dele beber poderia fazer parte do
acompanhamento. Logo no primeiro encontro, disse que seu único prazer era beber.
Então, não adiantaria eu falar que ele não poderia beber e tentar proibir isso. Se
tivesse alguma conduta proibitiva, ele iria dispensar o trabalho e escolher o álcool.
Então, me valia só acompanhar e, quando fosse possível, buscar colocar palavras,
dizer sobre o que me incomodava e tentar dialogar sobre isso, reconhecendo que a
transferência passa por aí.

Questões de transferência – mulher de malandro, férias, vicio, dependência

116
Jorge tinha uma relação de longa data com o álcool. Ele tinha com a bebida
uma fonte de satisfação e dependência. Na relação comigo, pude me sentir em alguns
momentos esvaziada e sugada. Eu era tomada45 por diversas questões após os
atendimentos (desde ficar relembrando cenas e diálogos até algumas sensações que
buscava elaborar) e as vezes até me sentia “intoxicada”, “de porre”.
Senti na relação a sensação de dependência que ele criava comigo, como eu
poderia tirar férias? Pude entender que, para Jorge, o bar não pode fechar e ele ficar
sem a bebida. Então, como eu poderia estar de férias e deixá-lo privado dessa
presença? Não foram poucas as tentativas de contato. Porque “há sempre um bar
aberto” ou algum lugar para encontrar uma bebida e tudo isso era vivenciado na
relação, na transferência.
Essa imagem que se fez presente em meu imaginário, “mulher de malandro”,
pôde me ajudar a manejar um pouco dos meus sentimentos e compreender como me
sentia e como sua filha e sua família se sentiam. Foi ficando claro que não adiantaria
eu ir para o encontro com farda, com burca, ou com nada que não me fosse habitual e
confortável com o meu jeito de ser. Dessa forma, o acompanhamento não aconteceria,
ele justamente acontecia pela possibilidade mais genuína de estar junto com ele nesse
lugar de acompanhante. Com isso, eu vivi algo como ser uma mulher de malandro na
transferência na tentativa de que ele pudesse fazer outros vínculos, conexões e laços,
ou pelo menos tentar explicitar para ele o que sentia em sua companhia.

Conteúdo / questões
Em alguns momentos cheguei a pensar que, se eu fosse homem, talvez seria mais
fácil, mas será que o acompanhamento aconteceria dessa forma? Fazia parte do
acompanhamento de Jorge incluir contextos com a bebida, e ainda mais saber que ele
não teria uma forma “bonitinha” e “educadinha” de se expressar. Poderia chegar ao
ponto de ter vômitos, “porres”, “ressacas” e constrangimentos.
Além de tudo isso, o acompanhamento tinha o sentido de explicitar a forma de
relação que Jorge vive com as pessoas, com o álcool, com sua vida. Ser terapêutico
significa poder ir se utilizando das vivências e conversas para transformar aquilo tudo
em algo que fizesse sentido para ele, e que também pudesse lhe dar alguma potência

45

Tomada inclusive no sentido relacionado ao beber.

117
ou favorecesse que ele encontrasse outra forma de se relacionar com as pessoas e com
a bebida.
Entendi que eu poderia ocupar, enquanto acompanhante, um lugar de
denúncia, fazendo as vivências e conversas gerarem questão para ele, aproveitando-
me daquele lugar em que ele me via com um misto de estranhamento e encantamento,
mas aceitava que estivéssemos juntos. Isso potencializava a contratransferência –
forma como eu me sentia e tentava demonstrar isso para ele.
Para isso, eu tinha que topar o encontro e aceitar o jeito que Jorge vivia a sua
vida, incluindo a baixaria, os porres, os vômitos, a sujeira, pois tudo isso faz parte da
história de vida de Jorge. Talvez, algo aí vai para o obsceno, para o vulgar, para o
contexto etílico, o que fica exposto e não está interditado, e não tem limite, não tem
culpa, quando muito algum resquício de ressaca. Ele bebia muito, gritava, dizia
baixaria. E eu buscava usar esse meu lugar na transferência, para assim buscar colocar
palavras, demonstrar algum estranhamento, alguma alteridade, buscava demonstrar
para ele ter alguma notícia de outra realidade que não apenas a que ele ingeria e
percebia. O acompanhamento foi, entre tantas outras coisas, uma tentativa de
produzir alguma outra forma dele experienciar as relações e vivências com uma outra
pessoa, e não só sozinho ou largado na sarjeta.
Referências bibliográficas:
BUKOWSKI, C. O amor é um cão dos diabos. Tradução: Pedro Gonzaga.
Porto Alegre, RS: 2014

A MANIA DE G.

Rogéria Neubauer

Passo a passo entre uma respiração e outra, números pares tomam conta dos gestos,
fricção desenfreada, cansaço.*46

G. foi encaminhada pela colega de outra colega de uma equipe de


acompanhamento terapêutico em comum. No início, essa forma de encaminhamento
me chamou a atenção, soou como uma batata quente. Ao ouvir a história clínica, o
46
Esta é uma síntese do dia em que acompanhei G. em seu banho. .

118
desânimo na fala dos profissionais que conversei, transparecia uma desistência
antecipada, como se a falência já estivesse anunciada. G. estava com 36 anos, dois a
menos que eu. Fazia parte da minha geração, porém seus afazeres não acompanhavam
os da vida de uma balzaquiana, eram restritos a seu quarto, quando muito à sua casa.
Primogênita de dois irmãos homens, eles viam em G. um receptáculo de toda a
energia da mãe e já haviam explicitado seu ódio por ela ter-lhes roubado a genitora.
Em meio a esse conto familiar, marquei nosso primeiro encontro. 
Em pé, no final da escada, ela me recebeu com um sorriso acanhado e
desconfiado. Lembro do balanço de seu corpo, jogando o peso de um pé para o outro,
olhos assustados, assim como os meus. Numa mistura de timidez com estranheza, não
conseguíamos fixar o olhar. Ela me convidou a entrar no seu quarto sem muita
cerimônia. Havia uma escrivaninha na entrada à direita, sistematicamente organizada,
um guarda-roupa à esquerda e um espelho retangular pequeno na altura do rosto de G.
A cama ficava encostada à parede da janela, com um criado-mudo ao lado. No chão,
perto da cama, havia um pote vazio de sorvete. Um terreno baldio era nossa vista, e o
verde do mato, por muitos dias, entrou na nossa conversa como algo mais vivo do que
ela. Por muito tempo ficamos sentadas na cama com a janela aberta, olhando uma
vida lá fora que não se mostrava muito. Ela dizia não ter esperança, não sabia o que
eu fazia ali, já que eu não conseguiria tirá-la de suas manias. Era desacreditada de
tratamentos. Mas queria companhia.

O que G. chama de mania é a marca do seu sintoma: sempre tocar nas coisas e
em si mesma. Quando está mais ansiosa, toca em seu próprio corpo, principalmente
em seus genitais. Toque que tem a peculiaridade de ser seguido pelo ato de levar o
dedo à boca e chupá-lo. Suas idas ao banheiro justificam sua dificuldade em se
dedicar a alguma atividade fora de casa. Ela pede companhia para ajudá-la a fazer
tarefas que ela diz não conseguir fazer sozinha, como, por exemplo, fechar a torneira
da pia - o que poderia demorar horas, caso não consiga quem a acompanhe.
Geralmente quem assume essa função é sua mãe.

Quando a mãe não está, G. usa o pote de sorvete posicionado perto de sua
cama para fazer xixi, assim não precisa ir ao banheiro. Mas suas dificuldades não
terminam aí. Talvez a tarefa mais difícil e mais intrigante seja o momento
do banho, uma vez que nem G., nem sua mãe, conseguiam explicar. Mas ambas

119
definiam, quase ao mesmo tempo, ser um sofrimento indizível, que só poderia ser
entendido por quem o vivenciasse. E foi nesse espaço que se deu nosso segundo
encontro: no banho. Aceitei viver o que elas diziam ser indizível. O relato a seguir é o
que consegui transcrever para o papel:

G. separa várias vezes a roupa: um vestido e uma calcinha. Coloca-os sobre a cama. Sai do
quarto e deixa a porta aberta. A cada dois passos, toca na parede algumas vezes. A porta do
quarto da mãe já está aberta. Entra e toca o criado- mudo duas vezes. Toca um móvel no
caminho do banheiro também duas vezes. Ao abrir a porta do banheiro, a empurra na parede
duas vezes.Tira a roupa e pede para que eu a coloque no cesto. Empurra o cesto na parede

duas vezes, depois volta ao cesto e repete a ação mais duas vezes. Liga o chuveiro. Lava as
mãos muitas vezes, seus movimentos começam a ficar mais acelerados e mais repetitivos num

vaivém que dura minutos em cada parte do corpo. Pega uma esponja e, depois de lavá-la,
fricciona um sabonete várias vezes nela. Esfrega o corpo na sequência de cima para baixo.
Não deixa nem um canto do corpo sem esfregar, respeita aceleradamente cada parte. Mesmo
exausta, para, dá um suspiro e volta para esse mesmo ponto. Mantém a esfregação em cada
ponto do corpo por no mínimo três minutos. O último lugar a esfregar é a genitália, como ela

mesma diz. Com certeza é o lugar ao qual dedica mais tempo no seu ritual incessante. Pega o
xampu e deixa a tampa aberta após colocar uma quantidade nas mãos, esfrega o couro
cabeludo, repete. Leva muito tempo para fechar a embalagem do xampu e, quando consegue,
abre novamente e repete até conseguir fecha-la de novo. Faz o mesmo procedimento com o

condicionador. Pega outro sabonete, agora líquido, coloca na esponja. Repete o mesmo ritual
de esfregação. Pede para que eu coloque a esponja sobre a pia. Pega a gilete, percorre os
lugares a serem depilados com a mesma intensidade e exaustão , até chegar nos genitais,
onde fica por muito tempo, sempre olhando para a gilete ao finalizar cada exaustiva
raspagem.

Só depois dessa experiência pude dizer a G. que ali, no banho, eu não poderia
mais estar. Meu limite não alcançava este estar-com com G. Ela disse compreender,
uma vez que também se sentiu desconfortável47com a minha presença.

Faço uso da palavra com a partir da formulação de Radmila, quando diz, que a


palavra com poderia ser a palavra-chave da pulsão de vida. A autora disserta sobre a
presença como potência de internalização do estar com o outro, mesmo quando esse
outro já não está. Portanto, não se trata de qualquer presença, mas uma presença
47
Acredito ser importante dizer que esse desconforto com a minha presença é algo
a ser considerado, pois mostra uma diferença entre mim (outro) e a mãe.

120
de um outro, que mesmo vindo de longe, traga sinais de vida e porte algum sentido.
(Zygouris, 1999). Ali, no banho, penso eu, não assumi tal presença, me restringi a ser
apenas um corpo que seguia os comandos de G. naquele momento.
Quando digo a G. sobre a impossibilidade de estar com ela no momento do
banho, trago notícias de nossa experiência, que por mais difícil que tenha sido, marca
uma diferença e inaugura alguma compreensão. Com isso, pude pensar um pouco em
relação à mãe de G., sobre o lugar que ocupava – que poderia ser um lugar dessa
mesma ordem - apenas uma presença que suprisse as necessidades do corpo de G. e
esse lugar parecia ter alguma familiaridade com o território em que G. se encontrava
nas suas incansáveis repetições.
Compreender até onde a minha presença poderia ajudar era de certo modo
aceitar a ideia de que não é qualquer presença que poderia justificar os nossos
encontros, mas a condição da presença (pelo menos da minha). Portanto, uma
pergunta parece ser necessária: que tipo de “(in)disponibilidade” é preciso ter em
determinados acompanhamentos?
Recorrendo mais uma vez à Radmila, ela nos traz a pulsão 48 de vida como o
gesto daquele que “espera” (bebê) por quem (mãe) irá acolher sua sede de viver. Isso
pode nos fazer pensar que esse gesto, não tem somente a ver com exclusividades de
um universo de necessidades vitais. Inclusive o banho49 não se caracteriza como tal
fato. No entanto, o bebê nem sempre encontra, desde o seu nascimento, objetos
( mãe ) perfeitamente adequados às suas necessidades e, menos ainda, as suas
vontades. Ou seja, o bebê depende da forma com que aquele que cuida irá reagir ao
gesto - pelo que Radmila chama de pulsão -, que está sendo manifestado por ele
através da necessidade de cuidados, seja de fome, calor, frio etc. Portanto, poder
encontrar nessa aparente necessidade vital a “fome de afeto” e, sinceramente
correspondê-la, seja o verdadeiro alimento do bebê. “Subjugado pelas próprias
vontades”, diz Radmila, , “é igualmente tributário de uma avidez de amor, de uma

48
Importante levar em consideraçã o que o termo pulsã o usado aqui é baseado no livro Pulsõ es
de Vida de Radmila, onde ela mesma considera este um termo de cará ter abstrato. Sabendo da
complexidade e até mesmo das grandes contestaçõ es do conceito de pulsã o, para nã o haver
confusã o, porém, também manter a legitimidade do texto de Zygouris, cabe a nó s nos atermos
que o que ela chama de pulsã o, outros autores consideram como impulso, força interna ou estado
de excitaçã o. Em sua formulaçã o Radmila considera pulsã o, tudo aquilo que permite aproximar
as tensõ es de vida do corpo eró geno. Ela sustenta que a pulsã o é, em primeiro lugar, um impulso
corporal que é ressentido na vida psíquica.
49
Interessante ver a história do banho in http://pt.wikipedia.org/wiki/Banho, ao longo da história o
banho foi considerado sagrado ou profano, artigo de luxo ou receita de saúde e até causador de doenças
e mortes. Ele também serviu como ritual de purificação religiosa, tratamento de saúde e celebração.

121
avidez tanto de seio quanto de leite. O bebê mama o amor e aspira para um além do
leite. O amor é o suplemento de alma cuja a carência seguramente mata tanto quanto a
carência de alimento”(Zygouris, 1999).
Aproveitando a necessidade desse amor cuidadoso, podemos também
considerar que o ser humano é constituído a partir do encontro com quem lhe
apresenta o mundo. No caso de G. como será que se deu esse encontro? A experiência
vivida com G. no banho pareceu tratar-se de um (des) 50encontro desajeitado, como se
nenhuma de nós estivéssemos confortáveis naquele mesmo ambiente. Eu a via tomada
de um fazer incessante e me vi naquele banho reagindo às “necessidades” de comando
de G. Depois pude ouvi-la afirmar que é impossível interagir nesse momento, uma
vez que o único pensamento possível se restringe à necessidade de se limpar e
verificar se está limpa.

Zygouris também discorre sobre o estatuto do outro “responsável” por ajudar


no processo de socialização e autonomia, assim como por promover uma garantia
contra o desaparecimento do eu, tornando-se, consequentemente, uma anunciação do
exterior. Porém, esse “encontro” pode acabar provocando uma precocidade do
sentimento de solidão e incompreensão. Ou seja, uma consciência precoce de um
compartilhar impossível, pois mesmo estando presente, não consegue acolher esse
outro para além de suas necessidades vitais. Que se esse outro-mãe, trouxer apenas a
razão, ou em outras palavras, ser uma mãe sem espontaneidade, sem a necessária
“sensibilidade” de mãe, será insuficiente para abrir um caminho de um ao outro, um
caminho de compreensão mútua. A autora defende que a constatação dessa
incompreensão materna, provoca um enclausuramento precoce do mundo interno da
criança, deixando-a carente de trocas imaginárias (Zygouris, 1995). No entanto, no
banho de G., percebi que a demanda para além das necessidades estritamente
corporais era ofuscada, uma vez que “entrei” no suposto “lugar” da mãe e ali não
consegui encontrar espaço de relação. Todos os objetos da cena, inclusive eu,
pareciam indiscriminados, como se tudo fosse um todo.

“Às vezes eu acho que a minha mãe não me entende, que ela não sabe como lidar
comigo. Ela simplesmente faz o que eu peço, e eu me acomodo com isso.”

50
O prefixo, des, nessa colocação traz a ideia da negação a um mal encontro.

122
Portanto, a presença da mãe de G. poderia ser ainda mais perigosa que a sua
ausência, a qual, ainda que deixasse desamparo e vazio, não impediria alguma
esperança. Quando essa “presença” perigosa se coloca, é preciso “inventar” uma alma
gêmea que designe a nostalgia deste outro empático 51, papel que, segundo Radmila,
felizmente podemos assumir para nós mesmos, quando conseguimos nos entender
com base num saber íntimo sobre nós, saber que é um sentir e que também possibilita
a palavra interior (cf. Zygouris, 1995). Mas esse saber só pode ser construído quando
o “equilíbrio” entre presença e ausência permite ao bebê internalizar as funções
maternas e fazer uso dessas funções nos momentos de ausência da mãe, dando lugar
à-palavra e a representações simbólicas.
Havia uma carência enlouquecida de G. por alguém que a “salve”. Ela se
enamorava por qualquer um que demonstrasse um mínimo de empatia, situação que,
inclusive, tivemos que trabalhar no momento em que G. demonstrou por mim uma
confusão de sentimentos, se perguntando sobre sua sexualidade.

Quem também nos dá pistas de como pensar essa presença do outro na relação
com o paciente é Joyce. A autora nos narra o percurso das psicossomatizações, que,
segundo seus estudos, ocorre por meio do fracasso no processo da formação psíquica
da criança. Ela aborda a questão da fantasia de um corpo para dois e da dificuldade
desse tipo de paciente em se diferenciar do outro, ocorrendo, muitas vezes, a
possibilidade de confundir-se com o terapeuta (McDougall, 1989).

Depois de mais ou menos quatro meses de acompanhamento, conquistamos


uma intimidade que permitia partilhar coisas de seu universo que a princípio me
pareciam impossíveis de ouvir, ver e sentir. Essa melhora era invisível aos olhos dos
pais e o que persistia como problema na vida dela era o que aparecia em forma de
mania; o banho continuava uma vez por semana ainda no mesmo formato, ou seja,
com a presença da mãe. Seus pedidos de internação foram uma forma que G.
encontrou para sair desse circuito.

51
Nome usado na tradução do livro de Radmila para Einfühlung, por não haver palavra melhor que
empatia/empático.

123
As internações, curiosamente, aconteciam a cada sete meses, períodos em que
nos encontrávamos no hospital. Durante o meu acompanhamento, foram três
internações, porém, isso não era em nada estimulante, pois as manias não
abandonavam G. e lidar com elas em outro território parecia, em certa medida, ainda
mais violento.
No entanto, em sua última internação, o pai se mostrou de um modo diferente
na vida de G. Antes, não conseguia se envolver na relação da filha com sua mãe, e
sua participação como pai era percebida por G. como distante. Nos momentos que
havia uma aproximação, ele era muito agressivo. Ela dizia que o pai não queria muito
saber dela. A mãe chegou a relatar que, apesar da gestação de G. ter sido tranquila
para ela, para o pai não foi “nada”. Ele não deu nenhuma importância para a filha
quando nasceu e, segundo o mesmo relato, enquanto não nasceu o primeiro filho
homem, o pai continuou não se importando com G. Tal relação era entendida por
todos como difícil. Apesar da entrada de uma AT na família, o histórico clínico
parecia não trazer um bom prognóstico aos olhos desse pai para o tratamento. E nessa
última internação, ainda tomado pela sua dificuldade em lidar com G., o pai resolveu
aproveitar a ausência da filha para repensar uma internação compulsória permanente
- ideia surgida no “início da doença”, dezoito anos antes, sob orientação de um
psiquiatra do Hospital das Clínicas. 52 O pai manifestou essa vontade ao hospital, que,
engajado no contexto histórico das reformas psiquiátricas, foi avesso a essa ideia,
travando com o pai um litígio judicial.53

Por outro lado, continuei acompanhando G., sendo paga pelo pai, que optou
em assumir as rédeas do tratamento (antes a mãe que se ocupava do pagamento). Essa
ambiguidade chamou a minha atenção e possibilitou que eu me aproximasse um
pouco mais do pai de G. Entendi que sua atitude poderia ser também um pedido de

52
Vale dizer que G., antes de acentuar seus sintomas a ponto de não conseguir seguir com a sua vida,
morava com seus pais numa cidade do interior e conseguiu terminar os seus estudos no ensino médio
até entrar na faculdade. Também teve um namorado e amigos. O que pareceu desencadear
assustadoramente sua mania foi o fato de ter se mudado para a casa dos avós, em outra cidade, para
cursar a faculdade de psicologia. Nessa passagem estava com dezenove anos. Foi quando aumentou
potencialmente sua doença a ponto de parar os estudos e, desde então a vida.

53
Acredito ter sido um momento importante, ainda que eu e G. tenhamos ficado no meio de um fogo
cruzado. Durante esse tempo, as manias de G. não eram mais o cerne da questão, pois havia uma nova
necessidade de problematização. Ela agora tinha que se haver com seu destino.

124
ajuda, para que ele finalmente pudesse exercer um lugar de potência nessa dupla mãe-
filha. Dediquei-me a ajudá-lo, apesar de ser totalmente contra a permanência de G.
num hospital psiquiátrico. Com essa aproximação do pai, pude perceber um desejo de
afeto mútuo entre pai e filha, que foi se mostrando aos poucos. Ele chegou a
demonstrar satisfação por ela parecer-se com ele, conseguia nomear qualidades da
filha e G. verbalizava seu contentamento com esse reconhecimento paterno.
Além de me encontrar com G. durante a internação, estive duas vezes com os
pais para lhes apresentar lugares alternativos de tratamento. Apresentei,
principalmente ao pai, uma casa-ONG que concordava em acolher G. com suas
dificuldades. G. sabia dessas conversas e ficava muito ansiosa e esperançosa quando
eu trazia notícias desses encontros.
Porém, para que isso fosse possível, eles precisariam continuar “apostando” no
tratamento. Levei- os para conhecer o lugar (sem a presença de G.) e fizemos uma
reunião com a responsável da casa, uma mulher que se mostrou muito disponível, o
que deixou os pais de G. um pouco otimistas. A partir desse contato, o pai resolveu
investir mais uma vez no convívio com G., trazendo-a de volta para casa. Foi
necessária mais uma reunião nesse novo ambiente, agora, com a presença de G. e, a
fim de iniciarmos a parceria, ela frequentaria o espaço uma vez por semana para
atividades de dança - um de seus gostos. Essa decisão do pai trouxe uma atmosfera
de mudança, que considerei uma nova etapa do acompanhamento. 
Acompanhar G. era um desafio clínico, mas também físico, na medida em que
estar com ela exigia estômago e requeria lidar com os meus próprios limites, pois não
permitia um enquadre protegido de possibilidades escatológicas acanhadoras.
Apoiar-se em algo fora de nosso acompanhamento me ajudava muito, poderia
ser uma teoria, um colega de equipe ou as supervisões. Era quase que uma
reivindicação de um terceiro o tempo todo. Eu carregava G. em mim, por mais que eu
tentasse fazer essa separação consciente, entre acompanhante e acompanhado, ela me
tomava, pela imagem, pelo cheiro, pela fala. Percebi que era difícil separar-me de G.,
fato que me levou a pensar que fosse algo da contratransferência e merecesse um
olhar mais aproximado.
Em uma ocasião G. disse que o fato de tocar nas paredes pode ser fruto do
medo de perder esse lugar que ela toca. Inclusive, depois que G. começou a freqüentar
outros lugares, pude perceber que a mania aparecia muito mais dentro de casa do que
fora. Podemos pensar que a mania de G. anuncia alguma dificuldade de separar-se

125
(tocar). E isso, junto com o toque em si mesma, era chamado tanto pela família,
quanto pela própria G. de mania.
Ao analisarmos semanticamente a palavra mania, podemos verificar que
coloquialmente não é feita uma associação direta à doença, mas sim uma nomeação
de hábitos caracterizados por alguma fixação ou repetição – tanto de gestos, como de
fazer coisas. O termo “mania” costuma ser utilizado para reproduzir algo que temos,
naturalmente, cuja necessidade de tratamento não é essencial. Como diz o ditado:
“cada louco com a sua mania”. Na fala de G. a mania não tinha exatamente uma
nomeação do seu estado, trazia junto uma falta de entendimento sobre suas questões.
Era uma fala distanciada, dando um tom de qualquer coisa. Nomear de mania, percebi
então, tratar-se da própria mania, ou seja, talvez, uma forma de não separa-se da
mania. Um tipo de resistência em tratá-la, já que, se está denominado, já está
resolvido. Isso dificultava a compreensão, caia no senso comum. Esse, talvez, tenha
sido o verdadeiro processo: “tirá-la de suas manias”, começar a fazê-la entender que
as manias traziam consigo algum sentido. Pensar que esses gestos não eram só parte
de uma mania, mas sim uma forma de expressar-se, possibilitou G. de entreter-se
consigo mesma não só pelo toque, mas pelo olhar sobre si, sobre sua própria história,
assim como sobre suas angústias.

Porém, pensar a vida de G. desde o seu nascimento não parecia trazer


justificativa suficiente para a cena principal e representante das manias: o banho, ou,
até mesmo, o banheiro. Retroceder um pouco foi um caminho que permitiu suportar a
angústia e a frustração da não resposta. Por isso, pensei na vida intra-uterina, na
medida em que desde o útero há experiências sendo vividas. Ainda que o bebê
dependa fisiologicamente da mãe, tudo do que precisa para viver é recebido através de
sua progenitora. Apesar de serem dois corpos, ocupam o mesmo corpo. Há uma
simbiose natural, representada por um cordão que mantém esses corpos unidos, no
qual um deles é alimentado pelo outro. G., ao entrar no banheiro, parece viver um
paradoxo no qual se sente capturada e, ao mesmo tempo acolhida. A água é algo
fundamental no banheiro para G., tanto que uma vez jorrando, não consegue barrá-la.
Ela disse certa vez: “parece que preciso me sentir molhada!”
Depois de pensar sobre essa semelhança com o útero materno, é possível
mencionar os estudos de Joyce, no qual a autora afirma que todos nós temos uma
fantasia recalcada de “corpo-único”, que tem certamente seu protótipo biológico na

126
vida intra-uterina, onde o corpo-mãe deve prover as necessidades vitais dos dois seres.
Depois da vivência intra-uterina, há um prolongamento imaginário dessa experiência
que irá não só representar um papel essencial na vida psíquica do bebê, mas também
direcionará o seu funcionamento somatopsíquico. O bebê irá lutar desesperadamente
contra tudo aquilo que tente destruir a ilusão de recuperar seu paraíso perdido intra-
uterino. Isso faz com que a mãe, a partir de seu manejo espontâneo materno, responde
aos gritos e sinais de sofrimento do bebê, de forma que o aliviem e recriem essa ilusão
do Um, trazendo junto o seu cheiro, sua musicalidade na voz, seu calor corporal,
proporcionando, assim, um ambiente maternal que tem como consequência ajudar o
bebê a integrar uma imagem interior tranquilizadora para que ele possa, finalmente, se
entregar ao sono, trazendo a possibilidade da separação. Essa relação vai criando e
inscrevendo no infans, na linguagem, uma identificação ulterior no seu mundo
interno, com uma imago materna atenciosa para uma boa constituição de seu próprio
self (McDougall, 1995).

Outra característica importante apresentada na vida de G. é a sua relação com


o tempo. O banho durou duas horas e alguns minutos, tempo que eu já não aguentava
mais esperar passar. Porém, para G., o tempo parecia não existir e a minha angústia
era não conseguir fazê-la dividir o momento comigo: ela parecia não se preocupar
com o tempo, e eu tive que fazer uso de todas as representações que me vinham,
desde o relógio até a alteração climática que se via da janela do banheiro, para poder
estar ali. 
Ao falarmos de pulsão de morte, o tempo, enquanto experiência vivida de
duração, desaparece. A diferença entre pulsão de vida e pulsão de morte é, então, uma
experiência da problemática temporal que se expressa em investimentos espaciais.
Quando o tempo não tem expressão enquanto investimento da pulsão, estamos no
território mortífero. Mas foi preciso entrar com G. em sua “compulsão” para poder
viver em certa medida o que chamamos aqui de “pulsão de morte”.
Portanto, podemos dizer que o impotente vivido ali, se fez potente na nossa
relação. Abrimos um espaço de intimidade. Assim, parece ser pertinente dizer que foi
na impotência que G., se fez potente. Ela assumiu o controle de si pelo descontrole da
mania. E, para tentar algum tipo de defesa contra isso, limita suas idas ao banheiro o
máximo possível. Ela se virava com aquele pote de sorvete e, para se limpar, sua mãe
trazia para o quarto outro pote de plástico com água. Por isso, penso que foi ao

127
aproximar-se desse lugar que pude trazer a possibilidade de ajudar G. a sair dele. Pois,
por mais que minha presença parecesse não ter uma função clara, eu presenciava uma
manifestação em ato, uma dinâmica, mesmo que repetida, implicada no outro. Ajudar
G. a dar um novo significado para a mania e poder perceber com ela que seus gestos
não eram pura repetição, pareceu ser fundamental para uma mudança do tratamento.

Se pensarmos que G. manifesta seu estado de mania no corpo, não estaremos


longe de entender o funcionamento de G. Em oposição ao seu estado depressivo 54, ela
varia o seu humor com a sua “fazeção” 55maníaca. A mania é uma procura
enlouquecida do outro, de um laço que estabiliza e introduz o tempo. Quando pede
que alguém presencie sua repetição, ela pede ajuda. A mania não deixa de ser uma
busca de sentido. Quando o sujeito se encontra descontrolado em sua mania, ele
também está a procura de um apoio que o tire desse circuito. Portanto, podemos
entender a razão pela qual G. carece de companhia em suas manias, o que pode ser
facilmente confundido com voyeurismo.
O fato é: como transformar a companhia em outra coisa que não só o
acompanhamento das manias? O que parece é que ao acompanha-la nesse lugar tão
íntimo, eu pude dizer – mesmo com um tom de fracasso - , a partir de uma
experiência compartilhada, o que eu senti. Será que marquei alguma diferença entre
nós? Ao pensarmos na necessidade que G. tem de elaborar um duplo para se
reconhecer, não entrar nesse circuito com ela, não seria, talvez, manter-se no campo
externo (lugar de representação do fora) e, portanto, “impossibilitado” de mudança?

A clínica do acompanhamento terapêutico tem muitas variáveis. Entramos em


territórios alheios, algumas vezes sem sermos convidados pelos acompanhados.
Contudo, como acompanhante de G., segui depois desses acontecimentos por mais
alguns anos. Algumas vezes eu me sentia a “encarnação da pergunta” com G., não do
“Por que?”, mas do “Como?”. Cada encontro era uma interrogação. Eu com a minha
presentificação e G. com a dela, pudemos viver nossos encontros e aos poucos a
história do que construímos foi podendo ser contatada por ela mesma. Depois da

54
Eu poderia dizer de um estado melancólico, porém, para evitar alguma confusão teórica, preferi usar
o termo “depressivo”, não como uma patologia da depressão, mas como tristeza de natureza humana
dada como normal quando legitimada pelo reconhecimento do nosso momento de vida.
55
A palavra “fazeção” vem do vocabulário que construímos juntas ao longo de nossos encontros.

128
transição do banheiro da sua casa para o banheiro da casa-ONG56, G. conseguiu passar
do AT em espaços da casa-cidade para um tratamento com um novo formato.

Alguns anos depois, em meu consultório, pediu G.:

“-Posso usar o seu banheiro?”

G. foi preenchendo sua vida com atividades fora de casa. Fomos nos
separando gradativamente. Porém, em muitos momentos, G. retorna em minha
memória. Talvez seja isso, a separação entre mim e G. foi possível porque
construímos algo juntas e guardamos na lembrança nossos seres. Às vezes ainda tenho
notícias dela, mas confio que G. possa construir suas próprias e novas relações.

Referências Bibliográficas:

McDougall, Joyce. (1989) “Teatros do corpo o psicossoma em psicanálise” São


Paulo: Martins Fontes. 1a edição brasileira 1991.
Winnicott, D. W. (2000). “Da pediatria à psicanálise”. Obras escolhidas – Rio de
Janeiro: Imago.
Zygouris, Radmila. (1999). Pulsões de vida. São Paulo: Escuta.
____________. (1995). Ah! As belas lições! São Paulo: Escuta.

56
Essa passagem, talvez, merecesse um capítulo à parte. Foi demorada e com várias chances de
desistência, tanto da minha parte, quanto da dela. A “solução” encontrada para que ela pudesse sair
mais rápido dos banheiros, foi usar absorvente, algo que também a incomodava, mas não tanto quanto
deixar de sair do banheiro.

129
COM - PULSÃO E REPETIÇÃO: REINVIDICAÇÕES RÍTMICAS NO AT
Rodrigo Veinert

E eis que percebo que quero para mim o substrato


vibrante da palavra repetida
C. Lispector

Não são poucas as situações em que um AT é convocado adentrar regiões de


crise e de ruptura. Na maior parte das vezes, nosso ofício acontece em meio aos
destroços de um mundo psíquico. Caminhamos por paisagens áridas e desoladas.
Procuramos possíveis fios que permitam reestabelecer ligações. Nosso trabalho requer
um olhar atento, além de uma disponibilidade de empréstimo do próprio corpo para
situações limite. Acostumados a habitar fronteiras, acompanhantes terapêuticos lidam
com a delicada tarefa de construção das passagens. Dentro desse terreno de transições,
a experiência antecede a palavra e é importante permitir que a linguagem não se

130
sobreponha ao acontecimento. Estando expostos às forças de encontro entre o dentro e
o fora, os ATs se orientam pela experiência vivida com seus pacientes para
encontrarem juntos o itinerário. Faz-se necessária uma abertura para o campo das
intensidades pulsionais.

Com base nessas considerações, este trabalho procura se debruçar sobre o


conceito de pulsão e refletir sobre seus desdobramentos na clínica do AT. A noção de
ritmo na música nos oferece aproximações ricas de significados para aprofundar o
pensamento sobre a natureza da atividade pulsional, além de permitir entrecruzar
campos de saber, expandindo a complexidade dos mesmos e do conceito.

PULSÃO

O conceito de pulsão é um dos mais importantes e também mais obscuros


dentro da psicanálise. Considerado pelo próprio Freud como um Grundbegriff
(conceito fundamental), ele é imprescindível para todo o desenvolvimento do
pensamento freudiano. A tradução da palavra alemã Grund denota o estatuto da
pulsão na psicanálise: chão, solo, fundamento, base. Trata-se do terreno sobre o qual a
construção da teoria se assenta. É um conceito que demarca a especificidade da
clínica psicanalítica. Está no cerne dos processos que determinam os modos como nós
amamos, desejamos, sofremos (TAVARES, 2013). Aponta para aquilo que
fundamenta a nossa economia libidinal e as suas operações elementares, desde os
processos mais arcaicos de estruturação do psiquismo. Na sua dimensão fronteiriça
entre o somático e o psíquico, a pulsão remete àquilo que vem do interior do corpo.
Suas fontes são os próprios processos somáticos, cujos estímulos são representados na
vida anímica pela pulsão. Segundo Dunker (2013), é possível dizer que a teoria das
pulsões está para a psicanálise assim como a anatomia e a fisiologia estão para a
medicina.

A importância do conceito vai além do âmbito teórico-clínico, demarcando


também a especificidade de uma epistemologia psicanalítica. A formulação dos
Triebe, desde o início envolta em um certo grau de indeterminação e resguardando
sempre alguma obscuridade, implicou uma explicitação da própria maneira de
investigação em Psicanálise. Logo no primeiro parágrafo de As Pulsões e Seus

131
Destinos, Freud (1915) elabora um tipo de gênese do processo de pesquisa científica,
detalhando o início do caminho de elaboração de um conceito e destacando a
importância de certas ideias abstratas:

"O verdadeiro início da atividade científica consiste, antes, na descrição de


fenômenos (...) Já na descrição, não se pode evitar a aplicação de
determinadas ideias abstratas ao material, ideias tomadas de algum lugar,
por certo não somente das novas experiências. Tais ideias - os futuros
conceitos fundamentais das ciências - tornam-se ainda mais indispensáveis na
elaboração posterior da matéria. (...) O progresso do conhecimento,
entretanto, não tolera nenhuma rigidez nas definições." (pag. 17)

Foi somente a partir desta forma de investigação que Freud pôde desenvolver
os conceitos fundamentais da psicanálise, construindo um saber em que o
indeterminado é incorporado em um processo de construção permanente, atravessado
por outros campos de conhecimento. Ao se debruçar sobre a vida anímica, Freud não
hesitou em fazer dialogar ciência, mito e literatura, alargando assim o seu modelo
metodológico e inventando um novo dispositivo conceitual. O conceito de pulsão,
forjado dessa maneira híbrida, nos convoca a trabalhar sem a pretensão de uma
definição cartesiana, cientes de que estamos numa região de entrecruzamento, região
fronteiriça. Segundo Freud: "A doutrina dos Triebe é, por assim dizer, nossa
mitologia. Os Triebe são entes míticos, grandiosos em sua indeterminação" (FREUD,
1933/1999, pag. 101).
Cabe ressaltar: a grandiosidade do conceito de pulsão decorre justamente da sua
indeterminação, relembrando a coragem freudiana em não se intimidar diante do
"umbigo do sonho", diante do ponto em que o conceito não pode mais expressar o
objeto, ali onde os procedimentos argumentativos correntes se esgotam e exigem
renovação. (IANNINI, 2014)

O reconhecimento dessa natureza um tanto enigmática e um tanto


inapreensível da pulsão nos exige uma posição de abertura frente aos impasses do
trabalho clínico. Como podemos captar as intensidades pulsionais na clínica do AT?
Quais as possíveis maneiras de intervenção diante de situações limite, momentos em
que o próprio campo pulsional se desorganiza? Estas questões se apresentam de

132
maneira inevitável quando estamos imersos na prática do acompanhamento
terapêutico, especialmente diante dos casos considerados graves como por exemplo
nas psicoses. Assim como Freud, também somos solicitados a "chamar a feiticeira" 57,
ou seja, invocar as nossas ferramentas metodológicas, os nossos instrumentos de
"fazer pensar" sem os quais é impossível trabalhar.

TRIEB

Em um ensaio intitulado Sobre a Tradução do Vocábulo Trieb, Tavares (2014)


nos apresenta um estudo etimológico detalhado dessa palavra alemã, desdobrando seu
parentesco nas línguas onde a psicanálise mais se difundiu. Inicialmente, Trieb se
traduz ao português por impulso e em suas derivações: força motriz (Triebkraft) e
propulsão (Antrieb). Conforme sua etimologia, o substantivo Trieb está diretamente
ligado ao verbo treiben que denota "mover, colocar em movimento, fazer andar" (ex.
Treiber = tocador de gado ou Treibeis = gelo que é levado pelas correntes marítimas).
Tanto o verbo (treiben) quanto o substantivo (Trieb) remetem a um "fluir, seguir um
fluxo". A noção de movimento também aparece na versão da língua inglesa: a palavra
drive, parente etimológico de Trieb, significa como verbo: "conduzir, levar a" e como
substantivo: "uma pequena estrada, rua" ou "um desejo de satisfazer uma necessidade:
um forte drive sexual". Porém, Tavares nos esclarece que na língua portuguesa o
vocábulo deriva é o parente etimológico mais próximo do termo original Trieb.

A etimologia nos ajuda a visualizar a dimensão de motricidade da pulsão.


Como Freud afirma em 1915, o caráter impelente é a própria essência da atividade
pulsional; é a partir de uma pressão (Drang) que ela se apresenta, uma soma de força
que exige satisfação. Fica claro que o campo pulsional é um campo de intensidades
que se colocam em movimento, apresentando uma exigência de trabalho até
alcançarem a meta da satisfação.

PULSÃO E RITMO

57
Expressão usada por Freud para se referir à sua Metapsicologia, tirada de um personagem do Fausto
de Goethe.

133
A grosso modo, podemos afirmar que a estruturação do psiquismo está
diretamente ligada às possibilidades de regulação das suas intensidades pulsionais.
Aqui se introduz a ideia de ritmo, presente em diferentes momentos da pesquisa
psicanalítica. Em O Problema Econômico do Masoquismo, Freud (1924) faz uma
breve menção ao termo, perguntando-se sobre a dinâmica das excitações:

"Prazer e desprazer, portanto, não podem ser referidos ao aumento ou


diminuição de uma quantidade que chamamos de tensão devida a estímulos,
embora claramente tenham muito a ver com isso. Parece que não dependem
desse fator quantitativo, mas de uma característica dele que só podemos
designar como qualitativa. Estaríamos bem mais adiantados na psicologia, se
soubéssemos indicar qual é esse traço qualitativo. Talvez seja o ritmo, o
transcurso temporal das mudanças, elevações e quedas da quantidade de
estímulos; não o sabemos." (pag. 186)

Freud sugere a ideia do ritmo como um fator qualitativo na dinâmica


pulsional. Sabemos que a modulação das excitações é fundamental desde os primeiros
instantes da vida do bebê. Não faltam referências à ritmicidade até dos próprios
processos biológicos, inerentes ao corpo; o ritmo cardíaco é o maior dos seus
exemplos, mas podemos pensar na própria atividade da amamentação a partir das suas
regularidades rítmicas. No campo psicanalítico encontramos muitos autores que
abordam o assunto. Para Balint (1945) a mamada é uma ação rítmica e repetitiva,
sendo o ritmo uma das qualidades mais arcaicas da vida humana. Da mesma forma, os
intervalos entre as mamadas são fundamentais para inscrever a criança em um registro
temporal. Françoise Dolto (1984) fala do ritmo de dois tempos na amamentação
(presença/ausência) e o relaciona com a própria formação da linguagem. Segundo a
autora, seria somente a partir da inscrição deste primeiro ritmo (elementar e binário)
que se daria a silabação dupla dos significantes ditos pela criança quando começa a
falar (por exemplo: ma-mãe, pa-pai, co-cô). O trabalho da pesquisadora Telma Corrêa
(2005) esclarece melhor o assunto :

"Parece que ela (a criança) se introduz primeiramente no ritmo e na


frequência da palavra, antes de chegar ao sentido. Considera-se que a
incompetência do bebê em reproduzir estruturas rítmicas estaria na origem de

134
algumas dificuldades na linguagem posteriormente. Os fenômenos mentais
têm, em geral, tendência a serem rítmicos. A repetição, por exemplo, é uma
manifestação dessa tendência. É numa pulsação temporal sincopada, segundo
Lacan, que o inconsciente se abre e se fecha, fazendo aparecer o sujeito do
desejo.” (pag.78)

Essas considerações evidenciam o caráter rítmico do jogo das intensidades pulsionais.


Ao investigar a formação da linguagem, estamos novamente em uma região de
fronteira: o terreno de onde a palavra brota, o lugar de passagem do pulsional para o
representacional. Segundo as indicações da autora acima, essa passagem se inicia no
ritmo para chegar ao sentido. As intensidades ganham forma a partir de suas
modulações rítmicas, a partir das possibilidades de alguma regularidade em suas
pulsações temporais. Aqui vale chamar a feiticeira e lembrar que, na música, ritmo se
refere a uma cadência de intervalos de tempo periódicos em um movimento
coordenado e constante, uma sucessão regular de tempos fortes e fracos.

Gostaria agora de apresentar um breve recorte de um atendimento realizado,


com o intuito de enriquecer e discutir as questões apresentadas até aqui dentro da
perspectiva clínica.

CASO CLÍNICO

B. é um jovem de 18 anos que acabou de concluir o ensino médio. Seu ciclo escolar
foi marcado por dois momentos de crise. O primeiro foi na infância, por volta dos 6
anos de idade, quando deixou de falar. Segundo sua mãe me contou, seu
desenvolvimento seguiu normalmente até ali. Ele brincava na escola, tinha amigos e
estava alfabetizado. Subitamente ele parou de se comunicar. Não suportava estar na
escola, passava muito tempo embaixo da mesa da cozinha de sua casa, tapava os
ouvidos e às vezes gritava. Sua mãe não sabe me dizer sobre nenhuma circunstância
ou evento que tenha desencadeado esse comportamento, que desapareceu depois de
alguns meses. B. voltou a falar e brincar normalmente, até os seus 16 anos, quando
mergulhou em uma segunda crise. Desta vez, porém, foi a partir da morte repentina de
uma funcionária (com quem ele tinha um laço afetivo muito intenso; passava todas as

135
tardes da semana com ela) que a crise começou. Foi nesse momento que fui chamado
a atendê-lo.

Iniciei um trabalho de acompanhamento terapêutico indo duas vezes por


semana a sua casa. Assim como na primeira crise, B. não suportava estar fora de casa.
Sua comunicação estava abalada. Ele não conseguia falar direito, minha impressão era
de como se o próprio campo da linguagem tivesse se fragmentado. Como se B. tivesse
desaprendido a falar ou desaprendido a encadear as palavras dentro de uma sentença.
Ele não conseguia mais formular frases. As palavras, quando apareciam, eram
desconexas. A sintaxe não existia ou era totalmente incompreensível. Ele mantinha
um olhar fixo e distante durante longos períodos de tempo. Seus ombros ficavam
enrijecidos, ele fazia alguns movimentos repetitivos com o braço, um tipo de tique
nervoso que se repetia com uma certa periodicidade.

Logo percebi que o contato com B. me colocava em um outro registro de


tempo. Aos poucos me dei conta de que era necessário suportar seu tempo caótico
sem me abalar. Haviam longos períodos de silêncio. Era necessário um tempo de
espera e uma disponibilidade rítmica para adentrar na comunicação com ele. Percebi
que algumas perguntas simples que eu fazia eram respondidas se eu pudesse aguardar
a chegada da palavra. Esse tempo era longo, a maioria das vezes durava mais de um
minuto. Aos poucos fomos estabelecendo o nosso campo comunicativo. Aprendi a me
familiarizar com a ritmicidade dos seus movimentos. No início, eu chegava em sua
casa e tocava a campainha mais de três vezes. Pensava que ele não tivesse escutado ou
não quisesse abrir. Depois entendi que apenas um toque era suficiente; era uma
questão de poder me ajusta ao seu ritmo, de saber esperá-lo.

B. me lembrava um bailarino do Butô 58, que com seus gestos e silêncios fazia
a reinvindicação de um outro tempo. 59
Estar com ele implicava saber adentrar essas
formas de duração que pareciam eternas. O seu interesse por livros e filmes de ficção

58
O Butô é uma forma de dança (e filosofia) japonesa surgida no pós-guerra, caracterizada por uma
busca de movimentos não coreografados e uma temporalidade não cronológica. Ficou conhecido pelo
movimento lento e denso de seus bailarinos.
59
Aqui vale lembrar de Peter Pál Pelbart (1993): “A loucura tal como ela se apresenta hoje certamente
é também isso: a recusa de determinado regime de temporalidade, o protesto em forma de colapso
frente ao império da velocidade” (…) (pag. 39)

136
foi uma ferramenta que nos aproximou. Percebi que B. era um conhecedor profundo
de sagas estrelares, algumas das quais eu também conhecia. Começamos um jogo que
parecia agradá-lo, uma espécie de quiz de perguntas e respostas que fazíamos um ao
outro sobre os personagens dos livros. Quem acertasse mais, ganhava. Obviamente eu
perdia todos, pois ele era praticamente uma enciclopédia no assunto. As suas vitórias
faziam-no abrir um sorriso largo. O humor começou a ganhar algum lugar em nossos
encontros. Passamos a sair de sua casa para pequenas travessias em seu bairro. A
padaria e a banca de jornal foram nossos itinerários iniciais, servindo como um campo
de exploração. Nossas caminhadas serviam como um tipo de exercício musical para
mim, onde era necessário saber dialogar com suas passadas, às vezes lerdas, às vezes
frenéticas e descompassadas. A clínica acontecia a céu aberto e era totalmente
atravessada pelo campo gestual. Antes das palavras, eram os movimentos quem
teciam a matéria bruta dos nossos encontros.

CAOS PULSIONAL
Em seu Livro da Dor e do Amor (1997), J. D. Nasio nos oferece uma
compreensão muito clara sobre a dor e sua relação com o campo das pulsões, que
penso ser preciosa para a discussão do caso acima e do tema deste trabalho. Em sua
premissa, um sentimento vivido seria a expressão consciente de um movimento
ritmado das pulsões. Para ele, todos os nossos sentimentos exprimiriam na
consciência as variações de intensidade das tensões inconscientes. Essas variações são
percebidas pelo Eu, que as repercute na superfície da consciência sob a forma de
afetos (o Eu seria um intérprete capaz de ler no interior a língua das pulsões e traduzi-
las no exterior na língua dos sentimentos). Assim, os sentimentos são reflexos de um
movimento minimamente ordenado e rítmico da cadeia pulsional. Quando as
modulações deste movimento são moderadas, elas se tornam conscientes como
sentimentos de prazer ou desprazer (regência do princípio do prazer). Porém, quando
são extremas, tornam-se dor. Para Nasio, a dor é reflexo de um enlouquecimento da
cadência pulsional. Enquanto o desprazer exprimiria uma tensão elevada porém
passível de ser modulada, a dor revelaria uma tensão incontrolável de um psiquismo
transtornado, um profundo desregramento da vida psíquica, que está para além do
princípio do prazer. A dor seria o caos das pulsões enlouquecidas, ruptura violenta
do ritmo da cadência pulsional.

137
A clareza do pensamento de Nasio faz com que retornemos seguros ao terreno
freudiano. O campo da dor descrito acima nos leva inevitavelmente a uma região que
está além das possibilidades de modulação (prazer/desprazer). A regência do princípio
do prazer é posta de lado pela urgência de uma tarefa “mais primordial, mais
elementar, mais pulsional” (FREUD, 1920, pag. 184). Vejamos o que diz Freud ao
contextualizar a compulsão à repetição:

“Um evento como o trauma externo vai gerar uma enorme perturbação no
gerenciamento de energia do organismo e pôr em movimento todos os meios
de defesa. Mas o princípio do prazer é inicialmente posto fora de ação. Já não
se pode evitar que o aparelho psíquico seja inundado por grandes
quantidades de estímulo; surge, isto sim, outra tarefa, a de controlar o
estímulo, de ligar psicologicamente as quantidades de estímulo que
irromperam, para conduzi-las à eliminação” (pag. 192).

O trauma colocaria em vigência o sistema mais emergencial de proteção do


aparelho psíquico. Creio que é à essa enorme perturbação no gerenciamento de
energia que Nasio se refere quando fala do enlouquecimento da cadência pulsional.
Para Freud, trata-se da tarefa precedente de ligar a excitação pulsional que atinge o
processo primário. Ora, pensando com Nasio e Freud, não seria a compulsão à
repetição a tentativa de reinstalar alguma modulação rítmica na cadência pulsional?
Penso que o caso de B. nos coloca frente a esse problema; o trauma da perda abrupta
de uma pessoa querida irrompeu violentamente a organização modulada de seu
mundo pulsional. Se antes havia alguma regularidade, algum princípio de
periodicidade (ritmo) no pulsar das pulsões, agora encontramos oscilações
desordenadas, períodos irregulares e não coincidentes (não-períodos). Estamos no
campo do ruído e da dissonância.60

Nesta perspectiva, a compulsão à repetição seria uma reinvindicação rítmica


do aparelho psíquico, uma tentativa desesperada de reinstaurar alguma regularidade
em suas cadências pulsionais. Frente ao caos das ondulações pulsionais
enlouquecidas, voltaria a entrar em vigor o sistema mais primordial de regulação do
60
José Miguel Wisnik (1989) no livro O Som e o Sentido descreve os ruídos como “complexos
ondulatórios cuja sobreposição tende à instabilidade porque marcados por períodos irregulares, (…)
mancha em que não distinguimos frequência constante”(pag. 27).

138
psiquismo. Assim como o próprio sistema cardíaco, o aparelho psíquico também
prescinde de suas regularidades para funcionar. Na dança das pulsões de vida e morte,
haveria o anseio de pulsação ritmada.

Diante dessas situações limite do psiquismo, penso que caberia aos ATs uma
versatilidade rítmica semelhante a dos músicos de jazz, uma capacidade instantânea
de invenção (improvisação) para dialogar com os (não) ritmos de seus pacientes.
Penso que o trabalho clínico com B. aconteceu primordialmente a partir de uma
dimensão sensorial. Reconhecer as nuances de um aparelho psíquico fragmentado é
também reconhecer as paisagens do processo primário, onde a livre mobilidade das
excitações exige do AT uma maleabilidade quase musical, um corpo capaz de
reverberar ritmos descompassados, um barco capaz de atravessar as ondulações das
tempestades oceânicas sem afundar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALINT, M. Individual differences of behaviour in early infancy. Dissertation for


Master Of Science in Psychology. London, 1945.

DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva, 2001 (1984).

DUNKER, C. I. L. Uma Gramática Para a Clínica Psicanalítica. In: FREUD, S. As


pulsões e seus destinos. tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013.

FREUD, S. As pulsões e seus destinos. tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo


Horizonte: Autêntica, 2013.

_____________ Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse


[1933]. In: Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main; Fischer
Verlag, 1999.

139
_____________ O problema econômico do masoquismo. In: Obras completas, vol 16,
tradução Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

_____________ Além do princípio do prazer. In: Obras completas, vol 14, tradução
Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (1920).

IANNINI, G; TAVARES, P.H. Apresentação. In: FREUD, S. As pulsões e seus


destinos. tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

IANNINI, G. Epistemologia Da Pulsão: Fantasia, Ciência, Mito. In: FREUD, S. As


pulsões e seus destinos. tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013.

LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994 (1978).

NASIO, J.-D. O livro da dor e do amor. tradução Lucy Magalhães. Rio de Janeiro:
Zahar, 1997.

PELBART, P. P. A nau do tempo rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de
Janeiro: Imago, 1993.

QUEIROZ, T. C. N. Do desmame ao sujeito. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005

TAVARES, P.H. Sobre a tradução do vocábulo trieb. In: FREUD, S. As pulsões e


seus destinos. tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica,
2013.

WISNIK, J. M. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

140
ADOLESCENTES EM SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO:
transição entre o dentro e o fora

João Verani
Mahyra Costivelli

A perspectiva de publicar uma iniciativa de acompanhamento de jovens com


vivências em serviços de acolhimento na cidade de SP, através de dois recortes de
casos acompanhados por dois terapeutas, instigou-nos a compartilhar em parceria o
testemunho que se seguirá. A possibilidade de refletir sobre a potência do
acompanhamento terapêutico enquanto dispositivo da chamada clínica ampliada e
seus possíveis desdobramentos para além do contexto mais conhecido deste trabalho,
a saber, o campo da saúde mental,é mobilizadora desta iniciativa de escrita. Novos
campos de inserção do AT, enquanto função de mobilização de rede e construção de
vínculos afetivos transformadores, são possibilidades concretas e é necessário
continuarmos contemplando com uma ferramenta clínica tão preciosa as populações
invisíveis, nas fronteiras do pertencimento, às margens da sociedade tradicional.
Quem são esses jovens? Frutos de situações de extrema vulnerabilidade, filhos
de pais que viveram nos antigos orfanatos, vítimas de violências do Estado, da
família, da precariedade dos serviços públicos da assistência social, que vem sofrendo
cortes e desinvestimentos importantes, do esquema de exclusão social que impera na
cidade de São Paulo. São uma multiplicidade, com grande variação subjetiva, recursos
amplamente variáveis, mas todos em um momento especificamente desafiador: a
saída de um amparo institucional e a necessidade de “andarem com as próprias
pernas” daqui em diante.
Adolescentes que completam 18 anos nos chamados serviços de acolhimento
tem a incumbência de definir um projeto de vida que contemple moradia, trabalho,
habilidades em manejar a própria vida sem o respaldo de um adulto (ou de vários) na
retaguarda. Muitos desses jovens viveram parte significativa da vida dentro das
instituições de acolhimento e o nosso trabalho iniciou-se nestes serviços, antes da
maioridade completa, no intuito de facilitar esse trânsito entre o dentro e o fora.

141
A viabilidade destes muitos acompanhamentos se deu graças à iniciativa do
Instituto Fazendo História, organização do terceiro setor que sustentou a criação e o
desenvolvimento deste programa, chamado de Grupo Nós.
Antes da Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre oEstatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), os serviços acolhiam crianças e adolescentes em
grandes instituições, conhecidas por orfanatos, reformatórios, educandários e
internatos, cercadas de muros para isolá-los da sociedade. Os atendimentos eram
todos da porta para dentro, pautados em uma lógica de controle e punição. A
metodologia de trabalho adotada no dia-a-dia visava à manutenção da ordem, e não ao
desenvolvimento da singularidade dos atendidos. Os meninos, por exemplo, tinham
por via de regra seus cabelos raspados para “facilitar o cuidado”.
Atendimentos médicos, escola e lazer ocorriam dentro do espaço da
instituição, “protegendo” a sociedade do contato com esses meninos e meninas, vistos
através da lente da vitimização ou da periculosidade. Estas crianças e adolescentes
cresciam com pouco contato com o mundo e a realidade de fora, em um acolhimento
permanente até completarem a maioridade.
A partir do ECA, crianças e adolescentes passaram a ser vistas como sujeitos
de direitos, que devem estar na família e na comunidade, ou seja, também do lado de
fora da instituição.Como efeito direto da mudança na legislação, o acolhimento é
entendido a partir de dois princípios fundamentais: medida de caráter excepcional e
provisório, ou seja, deve ocorrer em último caso e durar o mínimo possível.
As instituições diminuem seus muros, favorecendo a circulação entre dentro e
fora;crianças e adolescentes acolhidos devem participar da vida comunitária,
frequentar a UBS (Unidade Básica de Saúde) da região, ir à escola do bairro e
participar de atividades de cultura e lazer que ocorrem fora delas, dentre outros
dispositivos da rede que favorecem um acompanhamento individualizado. O
desenvolvimento da singularidade do indivíduo dentro da instituição passa a ser, com
isso, uma preocupação e um desafio para o trabalho cotidiano de educadores e
técnicos.
Apesar dos grandes avanços proporcionados pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, podemos ver marcas dessa história de isolamento e institucionalização
nos dias de hoje, as realidades de dentro e fora conversam pouco ainda, causando um

142
impacto chocante no momento da saída do serviço de acolhimento, como sentiram
Rafael e Júlia.

RAFAEL
Conheci Rafael em um encontro agendado no parque do Ibirapuera (SP), por
intermédio dos técnicos do abrigo onde vivia. Atrasado cerca de 2 horas para o
primeiro encontro, Rafael chega calmamente, através de passos lentos, ao local
combinado. Após meu convite, senta-se ao meu lado um adolescente gordinho que,
mesmo eu tendo virado o corpo em sua direção, não se vira para mim enquanto
conversa. Fala olhando para frente, com as mãos sobre os joelhos, sem se mexer,
quase uma estátua. Estranho essa postura do menino de 17 anos e penso na
possibilidade de estar impregnado de remédio psiquiátrico - ideia descartada após
conversa com técnicos do abrigo que relatam que Rafael não toma remédio algum.
Neste primeiro contato, fico sabendo que ele mora no abrigo desde os oito
meses de idade e que não tem nenhuma recordação dos pais. Seus irmãos mais velhos,
que já haviam sido desligados por completarem a maioridade, também moraram no
mesmo abrigo.Rafael me apresenta as voluntárias da instituição – que levam presentes
em ocasiões especiais -como as pessoas de referência da sua vida, “a madrinha”, “a
tia” e “a avó”.
A dificuldade em se organizar para comparecer aos encontros grupais junto
aos outros jovens foi rapidamente identificada;quando consegue ir, Rafael chega
atrasado;falta na maioria dos encontros dizendo que perdeu o bilhete único, que se
perdeu no meio do caminho ou que tinha outra atividade agendada no horário.Diante
de minhas sugestões na tentativa de ajudá-lo a se organizar com o horário, por
exemplo, Rafael responde educadamente “eu sei”, “vou fazer isso da próxima vez”,
“certamente”, sem apresentar mudança significativa em uma organização posterior.
Técnicos do abrigo relatam que é comum este movimento de Rafael. Ele não
acorda na hora determinada, não freqüenta as atividades escolares, nem cuida de seus
pertences e de seu corpo. Para tomar banho, Rafael, aos 17 anos, é colocado debaixo
do chuveiro por educadores. Durante a noite faz xixi na cama. No grupo, alguns
adolescentes não gostam de realizar projetos e atividades junto a Rafael por ele ser
sujo e fedido.

143
Em meio a estas dificuldades, combinei um encontro individual com Rafael no
centro da cidade, já que ele havia me dito que gostava da Galeria do Rock (famosa
galeria conhecida por abarcar as diferentes tribos adolescentes). Assim que nos
encontramos na porta do metrô e começamos a caminhar em direção à galeria,
percebia um adolescente diferente. Rafael olhava para mim enquanto relatava
histórias interessantes sobre os lugares que passávamos. Convidou-me para subir na
torre do Edifício Banespa, pra ver a Catedral da Sé e o Mercado Municipal. Na
Galeria do Rock,tinha iniciativa em perguntar aos lojistas sobre vagas de trabalho,
sobre a possibilidade de deixar currículo e como aprender o ofício de determinados
artesãos da galeria. Contava-me com entusiasmo sobre as pessoas que se vestiam
como personagens, os “cosplayers”, sobre os significados e uso dos diferentes
coturnos e sobre as diferenças entre as tribos de jovens.
No dia em que Rafael saiu do abrigo para morar numa casa alugada, liguei
para saber como estava se sentido e como tinha sido a mudança. De imediato,
responde que estava tudo bem e que estava se adaptando ao novo ambiente
“perfeitamente”. Pergunto se ele já havia arrumado sua cama e seus objetos pessoais
na casa, ao que responde que não havia levado lençol, cobertor, toalha, produtos de
higiene... Levou apenas um colchão e uma sacola de roupas.O abrigo havia se
comprometido em providenciar os materiais necessários para uma mudança
confortável a Rafael e assim que eu soube que ele não havia levado coisas essenciais
para a casa nova fiquei indignada. Rafael,quando percebeu minha indignação,
também pode ficar bravo com a situação. Pediu para que eu lhe passasse o telefone da
coordenação do abrigo. Como não conseguiu falar, teve a ideia de ir até lá solicitar
seus pertences. Eu o acompanhei, mas demos com as caras na porta, que estava
trancada. Todos haviam saído para uma festa. Começava a escurecer e eu estava
bastante preocupada com a primeira noite de Rafael. Perguntei o que ele achava
essencial para passar bem à noite e, apesar do calor, ele disse que gostaria de um
cobertor. Por participar do Grupo Nós, o adolescente tinha direito a uma bolsa para
ser usada em benefício de seu projeto de vida e autonomia. Sugeri a Rafael que a
usasse para comprar materiais essenciais. De primeira, ele falou que não precisava,
pois jogaria um monte de roupas em cima de seu corpo para fazer de cobertor.
Quando demonstrei minha preocupação e minha expectativa de que ele ficasse bem
acomodado, Rafael escolhe ir às compras! Além de toalha, lençol, travesseiro,

144
cobertor, compramos shampoo, condicionador, sabonete, pasta de dente, lenços
umedecidos e desodorante 48 horas. No momento de escolher o shampoo, por
exemplo, Rafael pega o primeiro que vê na frente, sem considerar preço ou tipo de
cabelo. Quando mostro para ele a diversidade de shampoos e o convoco a escolher
algum num preço razoável que seja para seu tipo de cabelo, Rafael tira o boné, mostra
o cabelo e me pergunta: “é liso, crespo ou enrolado?” Assim que dou minha avaliação
capilar, Rafael dá risadas, mostrando contentamento e escolhe um shampoo adequado
para seu cabelo.

JULIA
Julia, 16 anos, vivia em um serviço de acolhimento localizado na periferia da
cidade, a muitos quilômetros do centro de São Paulo, em uma casa grande habitada
por bebês, crianças, adolescentes e adultos educadores uniformizados, vestimenta mal
vista pelas crianças e adolescentes preocupados com os possíveis rótulos da
comunidade ao redor.Antes de sairmos para um primeiro passeio pelo bairro, a
coordenadora da instituição me alerta sobre a personalidade dissimulada da jovem,
que se escondia atrás de uma aparência angelical a fim de disfarçar suas verdadeiras
intenções. Questionada sobre quais seriam as verdadeiras intenções, percebi uma
resposta vazia, insatisfatória, mas que demonstrava pouca disponibilidade afetiva pra
que verdadeiras intenções pudessem de fato ser compreendidas.
Júlia estava no quarto, foi chamada e logo desceu as escadarias, sorridente e
animada para este primeiro encontro, confirmando a aparência angelical antecipada. A
história de Júlia chocava a todos. A jovem, testemunha chave de um crime que
envolvia tentativa de homicídio, havia sido obrigada a carregar a arma para proteger
um grupo de adultos amigos de sua mãe. A investigação policial havia chegado em
Júlia que, na época com 11 anos, disse tudo que sabia, ficando desde então, há 5 anos,
sob proteção do Estado, escondida em região distante da família e do bairro em que
vivia, por sofrer ameaças concretas de morte.Júlia ainda era convocada a depor,
atualizar os traumas vividos e prestar diversos depoimentos, momentos em que o risco
de se deparar com o agressor também se deslocava da esfera da fantasia para a da
possibilidade.
Apesar da história aterrorizante, Júlia compartilhava seus percalços sempre
com o mesmo tom de voz, sentindo-se à vontade para falar sobre o assunto com seu

145
acompanhante desde o início dos encontros, fato que chamava atenção, tanto pelo
conteúdo quanto (e principalmente) pela desafetação que o acompanhava.
A carga afetiva aparecia quando o assunto era outro, a princípio a
coordenadora do abrigo, trazida por Julia como a grande vilã de sua vida, a pessoa
que a impedia de circular livremente e ser feliz. Transparecia em Júlia nesses
momentos uma profunda indignação, que estava ausente quando falava sobre o
motivo que a afastou de sua família. A retirada repentina da jovem de sua família de
origem a deixava desamparada. Júlia protegia a família e o ambiente em que vivera
sua vida até então, afirmava que ninguém era responsável por sua situação atual,
destinando toda a indigação que sentia à figura da coordenadora. Além disso, os
meios controladores utilizados pela instituição, marcados por pouca oferta de escuta
aos adolescentes acolhidos, complicavam a possibilidade de elaboração dos traumas e
lutos vividos. A jovem inicialmente aproveitava os encontros para conhecer novos
lugares da cidade, se apropriar das linhas de metrô, assistir peças de teatro, ir a
exposições de arte. Acompanhada, sua relação com o fora era fortalecida.
A complexidade da situação dificultava a compreensão do caso, pois de fato
havia uma necessidade especial de proteção por parte da instituição em que vivia. Mas
parecia haver também um excesso de controle, castigos aparentemente
desnecessários, dificuldades de parceria e de diálogo, o que me mobilizava a
questionar, por exemplo, a ausência de Julia em uma sessão de cinema com os outros
jovens, justificada por descumprimentos de regras de horários da instituição. Havia
uma tensão constante entre Julia, coordenação e corpo de educadores. Em nome da
proteção especial Julia era colocada em posição de objeto, mas resistia.
Chegou uma hora em que a corda rompeu. Julia fugiu e nunca mais voltou ao
abrigo. Rapidamente entrou em contato comigo, dizendo que estava segura, na casa
de uma amiga da escola, mas que gostaria de meu acompanhamento em mais um
depoimento que precisaria prestar.
O medo me atravessou, um pavor derivado da possibilidade de encontro com o
tal criminoso, um pavor difícil de nomear. Angústia avassaladora que invadiu meus
sonhos em que Julia ocupava figura central.
Compartilhei com Júlia meu pânico sentido e ela, sem mudar o tom de voz, me
disse que estava tudo bem, que entendia e que iria “dar um jeito”. Afirmei que iríamos
dar um jeito juntos, e que o medo poderia nos ajudar a buscar a proteção necessária

146
para atravessarmos a situação sem correr riscos. Ligamos juntos na defensoria
pública, procuramos saber sobre os direitos de Julia, menor de idade, em não ir ao
fórum criminal depor mais uma vez, momento em que tudo que dizia respeito ao
trauma vivido se atualizava. Amparados pela instituição em que trabalhava e
desamparados pela legislação que a obrigava a depor novamente, fomos juntos ao
Fórum prestar depoimento.
Lá, a intensidade dos afetos foi compartilhada, através da rememoração de sua
história. Júlia parecia aproximar, no concreto da situação vivida, afeto e
representação. Pôde falar do medo de encontrar o acusado, do desamparo que sentiu
ao depor pela primeira vez, da saudade enorme que sentia dos irmãos, da falta de
amparo que sentia no abrigo, do sonho de se sentir mais livre. O corpo de Júlia tremia
e eu a acompanhava tremendo.
A demora na sala “protegida” não transmitia proteção. A tensão remetia a um
filme de suspense policial em que eu nunca imaginara estar dentro, como ator
coadjuvante que acompanhava a protagonista em suas perigosas andanças pelo
universo do submundo de nossa metrópole. Submundo do ponto de vista do
coadjuvante, ambiente familiar da protagonista. Com a voz também trêmula Júlia
dizia-se ansiosa e temia as possíveis perguntas dos advogados de defesa do acusado.
Pela primeira vez dizia que não estava tranqüila, mas que se lembrava com detalhes
de tudo, e que era só dizer a verdade.
Curiosa sua firmeza em dizer a verdade, o que se compunha de maneira pouco
compreensível às “mentiras” cotidianas que contava na instituição de acolhimento,
depois na casa das madrinhas, e provavelmente em algumas falas direcionadas a mim.
Pouco compreensível de um ponto de vista superficial. Se adentrarmos nas nuances de
sua história, as diferenças eram claras. Mentira como proteção de sua intimidade, do
resguardo do privado, brutalmente escancarado ao ser entregue aos cuidados da
justiça para não ser morta. A verdade, por outro lado, dizia respeito ao senso ético
preservado e pouco valorizado pelos adultos ao redor, no qual se inscreveu a
interdição. Para Júlia, esta diferença se mostrou nítida em seu gesto de depor, de
testemunhar ao ser testemunhada por seu acompanhante. Interrogada por advogados
com linguagem rebuscada, sua verdade pôde ser dita, com a seriedade de uma jovem
adulta que reconheceu ali, a potência de sua fala.

147
Quando saímos de lá chovia muito. Nervos foram se acalmando
paulatinamente. Júlia atravessara mais uma turbulência e, em tom menos angelical,
agradeceu por não estar só.

CONSIDERAÇÕES
Primeiramente é importante sublinhar que ainda é necessário, fundamental e
urgente promover mudanças a respeito do modo como trabalham os profissionais das
instituições de acolhimento, de forma a superar a lógica assistencialista e garantir a
preservação dos vínculos familiares e comunitários. É imprescindível que estes
compreendam as diretrizes e parâmetros da política 61 e as coloquem em prática.
Assim, para além da redução dos muros e desuniformização generalizada, é
necessário investimento na qualificação das equipes para que se possibilite uma
efetiva mudança sobre a prática, evitando-se repetir sintomaticamente modelos
antigos anteriores à década de 1990.
Munidos pela legislação que enfatiza a necessidade de circulação e
desenvolvimento dos adolescentes na comunidade e pelo respaldo de fazermos parte
de uma instituição com credibilidade na área, éramos aceitos, às vezes a contragosto,
às vezes com excesso de gosto, ora considerados ingênuos ora salvadores frente a
jovens sem futuro e sem credibilidade.
Deslocar-se destas posições totalizantes, resquícios também das instituições
totais, era um dos desafios que precisávamos manejar.
Vale destacar que não tínhamos “objetivo terapêutico’’, não estávamos lá para
tratar. As intervenções tinham objetivos pautados nas necessidades da assistência
básica, mas a função de escuta à singularidade e intervenção com o corpo promoviam,
a partir da transferência, efeitos analíticos.

61
Além da legislaçã o vigente, na qual oEstatuto da Criança e do Adolescentede 1990, com
algumas atualizaçõ es ao longo do tempo, define as crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos em condiçã o peculiar de desenvolvimento, outros dois importantes documentos oficiais
balizam o trabalho dos serviços de acolhimento. O primeiro deles é o Plano Nacional de
Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, de 2006, que
propõ e a centralidade das políticas pú blicas na família, entendida como lugar privilegiado para o
desenvolvimento integral das crianças e adolescentes. O segundo documento,
denomindadoOrientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes,
de 2009, regulamenta em territó rio nacional parâ metros, diretrizes e procedimentos para a
profissionalizaçã o dos serviços.

148
Tínhamos o desafio claro de possibilitar que esses jovens ocupassem posições
desejantes na sociedade que resistia em incluí-los em sua área de pertencimento
social. Desejávamos também ampliar a possibilidade de laços sociais. Ficava nítida,
na observação entre o dentro e o fora, a camada protetora e aprisionante que a
identidade “garoto(a) de abrigo” propiciava. Ao saírem da instituição, o que restaria
de traço identitário? Nossa aposta era de que havia uma multiplicidade em potencial
nesta transição. Administramos, durante o trabalho, afetos de satisfação decorrentes
de deslocamentos potentes e também frustrações ao testemunharmos jovens recém-
saídos das instituições de acolhimento quase que diretamente “transportados” ao
sistema prisional ou à instituição do tráfico de drogas.
A metodologia do programa é composta de dois dispositivos: encontros
individuais com referências fixas para cada jovem e encontros grupais em que todos
os jovens estão presentes, refletindo e circulando pela cidade. Os dispositivos
evidenciavam efeitos importantes, como a garantia de um espaço para que as
diferentes perspectivas sobre um mesmo momento (a saída da instituição) pudessem
ser compartilhadas e a construção de um projeto singular de saída do serviço de
acolhimento. Outro efeito fundamental era a possibilidade de criação de laços
potentes, tendo em vista a convivência deste grupo por três anos. Buscávamos tecer
redes através do enlaçamento de “nós” entre os acompanhantes, os jovens e a cidade.
A relação entre esse trabalho e o acompanhamento terapêutico dava-se
inicialmente pelo ato de acompanhar o movimento de (re)encontro destes jovens com
as tramas da cidade, das relações incipientes com novos jovens e com referências
familiares esquecidas, passando pelas supervisões clínicas em que leituras diversas
sobre a singularidade de cada jovem tinham espaço para serem exploradas.
A possibilidade de vinculações sólidas e duradouras se fazia fundamental pra
que os jovens pudessem atravessar este momento de crise.Dar suporte para
“atravessar a arrebentação”era nosso papel junto ao jovem, com todos os percalços e
conturbações que a travessia apresentava. A passagem entre um amparo
institucional,que muitas vezes suscitava ilusões de garantia, e a vida autônoma,
repleta de desafios muitas vezes assustadores, não era missão fácil de ser cumprida. A
necessidade de provocar a rede de cuidados pra que “funcionasse” também era nossa
função. Provocar dispositivos que garantissem alguma condição de moradia, por
exemplo, facilitava uma passagem menos abrupta.

149
Abrupta: brusca, súbita, repentina, inesperada, precipitada, áspera, ríspida,
severa, indelicada. Sim, a possibilidade de tornar menos abrupta esta passagem
orientou nossas andanças em busca por mais delicadeza nos mais variados caminhos
percorridos por estes jovens que, esperamos, tornem-se cada vez menos invisíveis.

150
ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO NO ENVELHECIMENTO:
envelhe-ser ou esque-ser, eis a questão.

Maíra Humberto Peixeiro


Natália Alves Barbieri

O acompanhamento terapêutico no envelhecimento passa a constituir um


campo de atuação com maior definição a partir de 2005, quando um grupo de
psicanalistas, gerontólogos e acompanhantes terapêuticos se reúnem para estudar e
refletir sobre as experiências, as articulações e as diferenças entre os campos do
Acompanhamento Terapêutico e o envelhecimento. Desde então, o compartilhar das
experiências e as supervisões dos casos clínicos têm sido fundamentais para embasar
a produção teórico-clínica deste novo campo de atuação, que ainda conta com a
contribuição de diversos outros saberes, como a teoria clínica psicanalítica, os estudos
antropológicos e históricos, a neurologia e a biologia, a psicogerontologia, a política e
a sociologia. Uma das frentes desse movimento foi a criação de um grupo de estudos
e de supervisão que coordenamos desde o início de 2008, espaço privilegiado onde
temos a oportunidade de acompanhar e pensar sobre os casos apresentados e buscar
aportes teóricos que possam sustentar o que é experienciado nesta clínica e que
desafia os vários campos disciplinares.

O presente trabalho baseia-se nas questões e reflexões que enfrentamos


cotidianamente nessa clínica, em que a indicação do acompanhante terapêutico tem
surgido como um importante recurso de intervenção.

Dentre as várias figurações clínicas através das quais o sofrimento psíquico na


velhice se apresenta, algumas delas insistem e ganham cada vez mais espaço: as
demências. A partir de queixas ligadas a ocorrência de esquecimentos, que produzem
certa desorganização do cotidiano, tanto os idosos quanto suas famílias percebem uma
fragilização. Depois de recorrer aos médicos, muitas vezes a desorganização
permanece e formula-se outra demanda, a de uma escuta. Em contraposição ao
modelo biomédico, que pode engessar o fenômeno clínico em uma concepção

151
puramente organicista, escutamos as patologias na velhice, em especial as demências,
de forma ampliada, inserindo os sintomas e as queixas no campo das psicopatologias.
Os “esquecimentos” e as demências são considerados a partir da história de vida,
resgatando a conexão do sujeito com seu sofrimento e abrindo espaço para a
intervenção do at.

A velhice no campo social: uma breve localização

A partir da articulação entre o AT e o envelhecimento, reconheceu-se


rapidamente uma aproximação possível entre o campo da loucura – origem do AT – e
o do envelhecimento do ponto de vista sócio-histórico. Ambas populações viveram
momentos de exclusão social, em meio a diversas oscilações no decorrer da história
quanto a posição simbólica que ocuparam. A invisibilidade e a desvalorização social
dos loucos e velhos, que insiste em perdurar atualmente, situam a velhice e a loucura
em lugares estigmatizantes e com pouco reconhecimento simbólico (PEIXEIRO &
BARBIERI, 2006).

O modelo asilar de institucionalização – como uma estratégia de segregação


social – incidiu de maneira bastante intensa sobre loucos e velhos nos últimos dois
séculos. Em meados do século XIX, com o avanço e predomínio do pensamento
biomédico na regulação da vida social, assim como o desenvolvimento das estratégias
higienistas, criam-se por um lado os grandes manicômios, ou hospitais psiquiátricos,
com o objetivo de recuperar os loucos e torná-los novamente produtivos e por outro
lado os asilos para a velhice, sem o objetivo de recuperar, mas sim de abrigar e assistir
até a morte chegar (GROISMAN, 1999). Os grandes manicômios acabaram por não
configurar lugares de tratamento, mas de abandono, maus-tratos, punição, exclusão,
igualmente como os asilos para velhos (PEIXEIRO, 2015). A velhice,
especificamente, sofreu um processo de negativação simbólica, calcada na
invalidação do velho regida pelo paradigma da produtividade: o velho é tido como
aquele que já exerceu sua vida produtiva no passado, restando-lhe apenas esperar pela
morte. Constitui-se, assim, uma catástrofe subjetiva na qual o velho é um inexistente.
(BIRMAN, 1995)

152
Entretanto, desde os anos 80 há um esforço em mudar o olhar para a velhice,
sendo perceptível uma transição relativa à posição social do velho no Brasil. O ano de
1987 marca essa virada, com a divulgação de três artigos que anunciavam a transição
demográfica da população brasileira: o país jovem estaria envelhecendo rapidamente
(KALACHE et al.; RAMOS et al.; VERAS et al., 1987). A entrada em cena das
associações geriátricas e gerontológicas, dos pesquisadores acadêmicos interessados
no fenômeno do envelhecimento, de instituições sociais como o SESC-SP e de
movimentos de aposentados e pensionistas, contribuíram para a difusão da velhice
como um tema de relevância e para o reconhecimento da sua importância para a
sociedade de um modo geral. E, nesse processo, a velhice e o envelhecimento têm
sido prioritariamente encampados no país, em termos teóricos, práticos e políticos,
pelas áreas da saúde e do serviço social, que assumiram para si o encargo de
normatizar e normalizar esses objetos (BARBIERI, 2014).

Do ponto de vista político, o sancionamento da Política Nacional do Idoso, em


1994, e o Estatuto do Idoso, em 2003, reforça os esforços envolvidos na intenção de
tirar o velho e a velhice do lugar de inexistência e objeto de uma caridade bem
intencionada para um lugar marcado pela cidadania e pelos direitos civis: “a Política
Nacional do Idoso tem por objetivo assegurar os direitos sociais do idoso, criando
condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na
sociedade” (BRASIL, 1994).

Do ponto de vista das institucionalizações, outras possibilidades – tais como


residenciais, centros-dia, centros de referência, programas de acompanhamento ao
idoso – ampliaram a diversidade de recursos, contemplando idealmente diferentes
necessidades para as diferentes velhices. Neles, apesar da potência dos dispositivos,
raramente se faz uma diferença entre “ocupar” o velho e “acompanhá-lo”. A própria
institucionalização poderia configurar uma alternativa para articular cuidados e
continuidade da vida, como uma opção do idoso que não quer ser cuidado ou dar
trabalho para a família, no entanto, frequentemente observamos nessas instituições
justamente um cenário de isolamento do mundo e de encerramento da vida. A
possibilidade de construir e realizar projetos em lugares que desconsideram a
singularidade, a história e o desejo de cada um é praticamente inviabilizada pelo
cotidiano institucional (BARBIERI, 2008). A lógica asilar, igualmente na saúde

153
mental e na velhice, tende a operar um apagamento subjetivo: na impossibilidade de
criação de algum sentido para a vida, os loucos cronificam e se esvaziam ao serem
excessivamente medicados e os velhos demenciam (PEIXEIRO, 2015). Outro
problema, nesse sentido, é que o cuidado domiciliar formal, realizado com cuidadores
ou auxiliares de enfermagem, nem sempre consegue superar as dificuldades
enfrentadas pelas instituições, por se basearem no mesmo modelo assistencial, onde o
velho é alguém destituído de saberes sobre si mesmo, cabendo ao profissional todo o
saber e ação sobre ele (BARBIERI, 2008; BARBIERI & SARTI, 2016).

Com o real aumento populacional de idosos e o aumento dos anos vividos, a


velhice passa a ser tratada como um “problema social, político e econômico”
emergente. Os gastos com a saúde (ou melhor, com as doenças) e com a previdência
são referidos como catastróficos para a economia do país. Em meio a este cenário, a
velhice passa a ser considerada uma nova categoria social onde dois personagens
antagônicos se encontram: o velho e o idoso. A criação da “terceira idade” e do
“idoso”, vem justamente responder à presença cada vez maior de pessoas com mais de
60 anos que não se enquadram nas representações de uma velhice solitária, pobre e
doente, imagens ainda muito presentes no imaginário social (PEIXOTO, 1998;
BARBIERI, 2008). Essa nova concepção é promovida principalmente pela geração
baby boom (nascidos após a 2ª guerra mundial) que, insatisfeitos com o modelo de
velhice vivido pela geração de seus pais, irão buscar novos modos de envelhecer
(DEBERT, 1999; KALACHE, 2012). Ativos, passam a olhar o processo de
envelhecimento não mais como o momento de parada (ou de queda), representada na
imagem da aposentadoria, mas como uma nova fase da vida. Nesse mesmo processo,
é lançada na década de 1990, pela Organização Mundial da Saúde, o programa
Envelhecimento Ativo: Uma política de Saúde, como uma “base de ação” para
governos e instituições desenvolverem estratégias voltadas para o público idoso. Sua
definição compreende um campo de ação mais amplo que a especificidade da área da
saúde: “Envelhecimento ativo é o processo de otimização das oportunidades de saúde,
participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida
que as pessoas ficam mais velhas” (OMS, 2005, p.13).

O destaque alcançado pelo discurso do “envelhecimento ativo” está


diretamente relacionado à representação da “terceira idade” e ao esforço em positivar

154
não somente as experiências na velhice, mas a própria velhice. Entretanto, a defesa do
“envelhecimento ativo” como um bem maior a ser vivido, tem efeitos contraditórios:
se por um lado estes discursos estimulam que o processo de envelhecimento possa ser
vivido com saúde (ainda que na presença de doenças) e com participação social ativa,
por outro lado apontam para ideais irrealizáveis, fazendo do envelhecer uma tarefa
extremamente exigente, que tende a reforçar uma série de frustrações, tanto por parte
do idoso que não corresponde a esse ideal, mas também por parte dos profissionais e
da família, por não conseguirem atingir as metas estabelecidas para ativar o indivíduo
(BARBIERI, 2014). Soma-se a isso a ideia de que a saúde é responsabilidade estrita
das pessoas, que devem seguir as prescrições e ações necessárias para não adoecer, ter
uma vida social e familiar saudáveis e um corpo sempre magro e em atividade. A
ideia de que o fracasso ou sucesso de tal empreitada só depende do próprio indivíduo,
no que se refere especificamente ao processo de envelhecimento, é o que Debert
(1999) concebe como “reprivatização da velhice”, em uma referência ao movimento
neoliberal de privatizações realizadas pelo governo brasileiro no final dos anos 1990.

Como mencionado no início deste trabalho, em nosso percurso clínico, seja


atendendo ou nas supervisões dos casos dos grupos, nos deparamos com um grande
número de idosos com queixas de esquecimento que podem apontar para processos
depressivos ou mesmo demenciais. De forma que chama a atenção a grande
disparidade entre este discurso social e o número de idosos que apresentam grande
fragilidade, tanto no que tange à saúde mental quanto à saúde como um todo. Termos
como “envelhecimento bem sucedido”, “envelhecimento saudável”, “envelhecimento
positivo”, “envelhecimento produtivo”, “envelhecimento significativo”, ao buscarem
positivar o substantivo “envelhecimento” acabam por enfatizar o outro extremo. Ao
positivar, polarizam e acentuam a fragilidade como algo a ser evitado e negado. Como
se a fragilidade não fizesse parte do processo do envelhecimento, podendo ser
produtiva e significativa, mas apenas representasse o fracasso da velhice (BARBIERI,
2014).

Velhice e fragilidade

A fragilidade se coloca na velhice tanto no plano físico e psíquico quanto no


da vulnerabilidade social e é marcada fundamentalmente pelo enfrentamento das

155
perdas, que tendem a se acumular neste momento da vida. Perdas relativas ao corpo
(doenças incapacitantes, perdas funcionais, quedas, variações estéticas); perdas
relativas ao lugar social (aposentadoria, mudanças na estrutura familiar, diminuição
do círculo social); perdas de pessoas próximas, de projetos ideológicos. A constatação
das perdas exige um trabalho psíquico de processamento e elaboração, um trabalho de
luto e de redimensionamento da vida.

A entrada na velhice, anunciada por uma ou mais perdas significativas,


evidenciam para o sujeito a proximidade da finitude. Na juventude a morte é uma
possibilidade, na velhice a morte é uma certeza. Goldfarb (1998), retoma a máxima de
Simone de Beauvoir (1969), de que o velho é sempre o outro, e formula a ideia de que
a percepção da velhice costuma ser anunciada por um acontecimento exterior ao
sujeito: uma queda, uma doença, a morte de alguém próximo, uma ruptura, a chegada
da aposentadoria ou de um neto ou ainda o convite para sentar na área reservada aos
idosos nos ônibus. Acontecimentos que apresentam a velhice ao sujeito, trazendo à
luz o medo de uma possível dependência vindoura e da consciência de finitude. Esta
percepção produz um grande impacto e em um primeiro momento é como se o sujeito
tivesse sido atacado por algo que o golpeia desde fora.

Esta imagem que se apresenta, não reconhecida inicialmente pelo sujeito, foi
chamada de “espelho quebrado” por Messy (1998) – numa referência ao estágio de
espelho proposto por Lacan – e por “eu feiura” por Goldfarb (1998). Esses dois
conceitos evidenciam o quanto o deparar-se com a passagem do tempo, o que se
constata contundentemente – mas não somente – no corpo, pode ser desorganizador e
até mesmo disruptivo. A ilusão de onipotência que, em maior ou menor grau,
cultuamos em segredo é colocada em cheque. O horizonte se estreita: talvez não haja
mais tempo para realizar o que se deseja, o corpo dá sinais de desgaste, apontando
uma série de limitações.

As perdas vividas são relativas ao Eu, golpes narcísicos que podem colocar em
cheque os suportes identitários. As funções exercidas nas relações objetais não têm
mais lugar; perde-se a ancoragem nos papéis exercidos outrora. Goldfarb (2005)
remete-se a formulação de Aulagnier (1994), sobre projeto identificatório, para pensar
a demência como um dos desfechos psicopatológicos quando esta perspectiva se

156
fecha; a condição de projeção no futuro é fundamental para o sentimento de
continuidade e permanência do Eu:

“O Eu, só pode garantir sua continuidade em contínua modificação, sendo


sempre diferente do que foi e, ao mesmo tempo, sendo sempre o mesmo.
Deve aceitar estar sempre em movimento, um movimento que é
essencialmente temporal. Transformação que acontece no tempo, é esta a
condição de ser do Eu. O Eu deve poder responder pelo seu futuro e sua
identidade, sem essa possibilidade, se dissolve na angústia. Tudo que
ameace o Eu, é uma ameaça a sua integridade e como tal, é uma angústia
de morte. A continuidade do Eu, depende da conservação de uma
esperança na possibilidade de - algum dia - conseguir ser esse ideal que
sempre procuramos apesar da realidade marcar seu contínuo fracasso. A
esperança do reencontro com o ideal é o que sustenta o desejo de
investimento no futuro”(p. 12 e 13)

E é justamente sobre essa ausência da dimensão de futuro que Birman (1995)


localiza a psicopatologia na velhice. A projeção de si mesmo no futuro daria ao
sujeito a condição de enlaçar passado, presente e futuro numa articulação que permite
retificar o passado no presente com a perspectiva de futuro. O tempo, assim,
continuaria em movimento. Quando o futuro se fecha, o movimento cessa, abrindo
campo para a psicopatologia.

Entendemos, assim, que a percepção da própria velhice configura um


momento de crise. A palavra crise, do latim crisis, define um momento de decisão, de
mudança súbita; em grego a palavra krisis denota a hora de separar, decidir, julgar; e
na história da medicina a crise é abordada como um momento que define a evolução
de uma doença para a cura ou para a morte (HOLANDA, 2010). Trata-se de um
momento de desorganização que impõe necessariamente uma nova situação para o
sujeito, tornando impossível o retorno ao que se era antes, podendo abrir caminhos
tanto para a estagnação quanto para a possibilidade de redimensionar a vida diante da
nova situação. (GOLDFARB, BARBIERI, GOTTER & PEIXEIRO, 2009)

A estagnação ocorre quando o impacto gera perturbação, desequilíbrio de


tamanha intensidade que impossibilita alguma reorganização. A vivência da crise
introduz o sujeito na dimensão própria da tragédia humana: ele é “(…) é obrigado a

157
dar-se conta de uma forma aguda, de sua finitude e instabilidade, do efêmero da vida,
da fugacidade do tempo e da mutabilidade das coisas” (KNOBLOCH, 1998, p.147).
Podemos observar em alguns idosos certa paralisia, desânimo, desinvestimento em
projetos que estavam em andamento, configurando um quadro comumente avaliado
como “depressivo” que pode se estender a um início de processo demencial. Muitas
vezes também se deflagra um quadro maníaco ou paranóico, ambos remetidos à
mesma desorganização.

Quando o redimensionamento da vida é possível, então abre-se a possibilidade


de rever e readaptar projetos diante da nova condição, uma condição que inclui a
fragilização e os limites. Neste cenário tem grande importância os recursos psíquicos
construídos no decorrer da história de vida, assim como a rede de apoio no entorno
mais próximo e o contexto social mais amplo. Tomando-se isto em conta,
possibilidades singulares podem ser criadas, norteando o surgimento de processos de
envelhecimento e de formas originais de viver as várias velhices possíveis. A
intermediação do tempo, da linguagem, a consideração das diferenças, das
potencialidades e fragilidades permitem que o excesso pulsional ganhe rede de
processamento no circuito simbólico e, assim, aquilo que foi vivenciado como “susto”
pode se tornar uma passagem para um novo tempo.

Um modo de abordar as demências

O esquecimento como um sintoma, a partir do referencial psicanalítico, pode


indicar diversas situações clínicas e como tal deve ser escutado e entendido a partir de
um contexto mais abrangente, dentro da história de vida do sujeito. O trabalho de
Fernandez, (2009) sobre a recorrente “queixa subjetiva de memória” com que chegam
os pacientes idosos na clínica, apresenta uma escuta cuidadosa ao apontar como esse
tema pode ocupar outros lugares na clínica. As queixas sobre um possível déficit de
memória acabam “desaparecendo” no decorrer do trabalho terapêutico, questionando
a existência de um comprometimento de fato funcional nesses casos, onde o
esquecimento pode remeter a um sintoma de outra ordem.

Trata-se, em um primeiro momento, de caminhar em paralelo com a


concepção organicista das demências, não se limitando a ela, mas ampliando a

158
compreensão para outros campos. Este autor, ao sustentar uma abordagem
psicossocial para as demências, afirma que:

“(...) es necesario realizar una operación teórica de ubicar el plano


biológico de la demencia, ya no como el proceso exclusivo que produce la
enfermedad, sino en el mismo plano de eficacia que otros procesos
psicológicos, familiares, vinculares y de producción de sentido que harán a
la forma que se exprese el cuadro psicopatológico y a su desarrollo,
principalmente en los aspectos de calidad de vida y sufrimiento psíquico.
De esta forma, la demencia nunca afectará a una persona individualmente,
sino que siempre afectará a un grupo o colectivo, en función de su historia,
cultura y producciones de sentido, que determinarán el curso del proceso
psicopatológico.” (FERNADEZ, 2009, p.19)

Neste sentido, nos aproximamos muito das ideias sobre a produção cultural e
familiar da loucura desenvolvidas, sobretudo, pelos movimentos da antipsiquiatria e
psicoterapia institucional na Europa e da reforma psiquiátrica no Brasil a partir dos
anos 1960. Ideias inovadoras que deram início a grandes transformações nos modelos
de tratamentos vigentes.

Tendo em vista as demências, a partir deste referencial, o tratamento - que a


partir da abordagem das neurociências seria somente, ou prioritariamente,
medicamentoso -, passa a abarcar intervenções complexas com a pessoa com
demência e não somente com seu cérebro, introduzindo a noção de sofrimento
psíquico, absolutamente apartada no modelo biomédico atual (FERNANDEZ, 2009).

A abordagem Psicopatológica Fundamental, de forma semelhante, ao tomar a


noção de pathos como sofrimento, paixão, passividade e patético, concebe a dor da
vida como uma experiência cotidiana. O pathos é entendido como um acontecimento
e, como tal, inesperado e imprevisível, que excede a capacidade do sujeito dar conta
de tamanha desmesura. A ideia de passividade, em que o sujeito se submete ao
próprio padecimento, refere-se ao sujeito trágico grego “que é constituído e coincide
com o pathos”: um sujeito que se constituí em seu sofrimento (BERLINCK, 2000).

Goldfarb (2004) concebe as demências inseridas no campo da psicopatologia


psicanalítica. A partir de sua experiência clínica, a autora localiza o fenômeno

159
demencial na história do sujeito e de seu entorno, tendo em vista vários fatores: entre
eles, os processos subjetivos individuais e familiares e os acontecimentos culturais e
sociais que marcam a vivência de uma temporalidade que aponta para a finitude
inexorável. O surgimento de um quadro demencial, assim, não decorre apenas de uma
fatalidade genética. Ao localizar as demências a partir da história de vida do sujeito,
escuta-se para além da incapacidade, da dependência, da condenação a um destino
sombrio. Escuta-se como se deflagrou a percepção de entrada na velhice, qual foi o
susto, quando ocorreu o início da crise, que temporalidade se instaurou, o impacto
diante das perdas. Escuta-se o transbordamento das possibilidades subjetivas, o
abismo que se abre diante da angústia e a desorganização subjetiva que toma a cena.

Na clínica, depois de um episódio disruptivo, acompanhamos frequentemente


um quadro depressivo melancólico que anuncia a impossibilidade de reencontrar
sentidos para a vida e os esquecimentos passam a se intensificar, seguidos por outros
sintomas ligados aos diferentes processos demenciais. O presente se esvazia e só há
lugar para um passado idealizado. Às perdas atuais se somam antigas perdas não
processadas que parecem emergir pedindo alguma elaboração.

Diante da falta de perspectiva de futuro, da impossibilidade de reencontrar


novos sentidos para a vida, da pouca oferta de lugares sociais significativos para
ocupar, a morte se apresenta crua e cruelmente, sem intermediação, sem películas
simbólicas, como um “real irrecusável e intransponível [...], com sua face hedionda e
não como um limite inevitável” (BIRMAN, 1995, p.204, grifos do autor). Isso é
evidente nas instituições asilares para idosos, onde se observa um rápido início ou
avanço de processo demencial entre aqueles que entram lúcidos e com a expectativa
de continuarem mantendo sua autonomia em um ambiente mais protegido. A falta de
perspectiva de vida e de futuro no cotidiano institucional, o não lidar e falar sobre as
mortes dos outros moradores, a rotina medicalizante e o processo de hospitalização da
moradia podem ser levantadas como hipóteses para o fracasso desse projeto
(BARBIERI, 2008).

Nesta perspectiva, a demência seria uma forma regressiva de sair da depressão


melancólica pelo caminho da evitação do sofrimento (GOLDFARB, 2004). Uma

160
defesa que visa a preservação de si pela morte psíquica. É como se o demenciado
falasse: É melhor perder a vida a morrer (BARBIERI, 2006, 2009, 2014).

Cada sujeito tem uma maneira diferente de lidar com as perdas, maneira
referida a uma constituição singular que tem suas origens nas primeiras experiências
de desmame, separações, frustrações. Certa rigidez, dificuldades em eleger objetos
substitutivos e a recusa das perdas são notáveis na história de vida de muitos idosos
que acabam por demenciar. Escutamos histórias de traição reveladas ou não
elaboradas, de culpa, de separações, de abandonos, de rompimentos; histórias infantis
revividas agora no processo demencial sem o pudor que as acompanharia, mas muitas
vezes com imenso terror. Dificuldades na simbolização são predominantes, de forma
que o recurso direto ao corpo e as passagens ao ato são mais frequentes: há
apresentação e não representação. Falta intermediação da linguagem e amparo na
linguagem. O (des)equilíbrio entre aspectos da constituição do sujeito e o impacto dos
acontecimentos parecem produzir campo para a demência.

É interessante pensar que podemos estar no campo das psicopatologias


contemporâneas, as chamadas “psicopatologias narcísicas” ou “campos de borda"
onde as perdas são vividas de maneira avassaladora, colocando em risco o próprio
sujeito. Muitas vezes não há o reconhecimento da perda, pois a velocidade da vida
contemporânea não permite. Figueiredo (2009) chama a atenção para a falta de tempo
para metabolizar os acontecimentos, na contemporaneidade: “(...) velocidade,
eficiência, cálculo, a cosmética, a desmentalização farmacológica e a ojeriza
generalizada ao sofrimento correspondem a ataques ao psíquico, ataques às mediações
simbólicas, uma ruína programada das subjetividades e do sujeito viver, experimentar,
processar e elaborar experiências” (p.19).

Quando a perda não pode ser reconhecida, introduzida no circuito simbólico, o


trabalho de luto se torna impossível. O não reconhecimento da perda não abre espaço
para o luto (GOLDFARB, 2004). Estamos num campo onde os desligamentos e
rompimentos não trabalhados ou não elaborados servem como apoio para a ação da
pulsão de morte.

161
Neste sentido, a demência pode ser entendida como um recurso defensivo que
protege o sujeito do excesso de dor, dor que aponta para a perda da própria vida, a
perda fundamental para onde todas as outras apontam. Protege fazendo anteparo
neurológico ao excesso de excitação, mas em um processo de alheamento. O sujeito
sobrevive biologicamente para não experienciar o morrer, como se recusasse a morte
e a fragilidade do corpo, pois estes seriam a máxima apresentação da falência do eu
diante de um supereu tirânico que se pretende imortal e infalível. Sob esta
perspectiva, tanto o esquecimento quanto a demência podem ser pensados como um
sintoma contemporâneo, como uma recusa à mortalidade e ao fracasso inevitável de
um projeto heróico que negaria o próprio envelhecimento.

O AT como recurso de intervenção

O processo de envelhecimento não se configura como patologia, mas como


uma etapa da vida marcada por vicissitudes temporais, subjetivas, corporais e sociais.
Um corpo que muda e um psiquismo que vive sob a égide da sexualidade infantil e
que recusa a existência da mortalidade. O susto diante da percepção da velhice pode
trazer um abalo e colapsar uma organização que até então parecia funcionar bem. Mas
nem todos vivenciam esse momento de forma catastrófica. A maior parte dos idosos,
ou o “idoso comum”, consegue passar pelo susto e se encontrar em novos (ou velhos)
projetos, readequando-se a essa nova temporalidade que se instaura; parecem “(...)
encontrar seu lugar no encadeamento das gerações: identificando-se com os seres
amados que o antecederam e abrindo caminho aos que o seguem, conseguem manter
seu equilíbrio não obstante o peso dos anos” (PÉRUCHON & THOMÉ-RENAULT,
1992, p.10). Certamente, participar de espaços - coletivos, afetivos, terapêuticos - para
compartilhar o que se vive neste período tende a contribuir com este período de
transição.

O acompanhamento terapêutico tem sido um recurso cada vez mais solicitado


para situações onde o sofrimento extrapola o suportável, tanto do idoso quanto de sua
família. Esse movimento reflete uma demanda de atendimento que não encontra
resposta na rede de saúde disponível, tanto no âmbito ambulatorial quanto no
institucional. A valorização do encontro, do território, da singularidade, da clínica de

162
projetos, marcas éticas do AT, apontam possibilidades ainda iminentes nos
equipamentos "tradicionais".

No início de nosso trabalho neste campo, há mais ou menos 12 anos, era


comum a solicitação do AT para a ampliação da rede social do idoso, na busca por
momentos e espaços de pertinência ligados ao prazer. Esse tipo de demanda tem sido
cada vez mais rara. Em contrapartida, notamos o aumento das solicitações para casos
mais graves, em geral marcados por diagnósticos de processos demenciais ou por
quadros melancólicos. Esta observação nos permitiu pensar a experiência da
demência como uma forma de enlouquecimento ligada aos nossos tempos e também
reafirmar seu caráter psicopatológico, visto que, ademais das características clínicas
neurológicas, é bastante evidente que os sintomas se apresentam conectados à história
da pessoa e a como esta se relacionou com os outros e consigo mesmo durante sua
vida.

Isto posto, o acompanhamento terapêutico aparece como uma clínica que


resiste à falta de sentido para a existência, que aposta na construção de um lugar -
familiar, comunitário, social, político, econômico - resgatando as potências singulares
em meio a crise que anuncia a "chegada" da velhice, incluindo as dores e as
fragilidades deste momento da vida. A intervenção, assim, retoma a dimensão ética,
que desde o início é uma das marcas do AT, investindo na abertura para construções
de projetos possíveis a partir de uma ética do encontro. Encontro marcado pela
sustentação da presença diante de um outro (ou outros) que, em muitos casos,
vivencia uma precariedade psíquica extrema.

Presença cada vez mais necessária e difícil de sustentar em um tempo


descompassado com a velocidade da vida atual e com a enormidade das exigências
ideais deste mundo, contingências vividas com muita intensidade no envelhecimento.
Como se manter presente diante de tanta fragilidade? Diante da repetição sem fim de
uma “mesma” narrativa ou de um fragmento de discurso nos casos onde a demência
irrompe? Diante do tempo parado, estagnado de uma velhice aterrorizada pelo
mortífero?

163
Se no início da história do AT a inserção social era um dos principais eixos
que orientava o trabalho, no campo do envelhecimento – e não somente nele – se
manter presente na tarefa de acompanhar o outro é o grande desafio e, ao mesmo
tempo, a principal estratégia. Escutar o sujeito, sua história, seu entorno e não a
demência, se faz fundamental, como pode ser visto no seguinte fragmento clínico
sobre o AT de um senhor de 73 anos.

No início do acompanhamento de R., a at o encontrou muito confuso e


apático. Expressava-se muito pouco e era difícil compreender o que falava. O
primeiro contato foi feito com a filha, que estava muito assustada com o estado do
pai. Ele apresentava uma doença neurológica irreversível há alguns anos (e lidava
aparentemente bem com as intercorrências e tratamentos). No entanto, dois anos antes
do início dos encontros, havia ficado viúvo e desde então, estava mais “cabisbaixo”,
mas mantinha suas atividades diárias, cuidava das finanças e da organização de sua
casa. Da tristeza, “normal para a idade”62 segundo seu médico, R. faz uma queda
brusca para uma apatia generalizada: “não queria nem mais assistir TV”. Levado ao
médico, recebeu o diagnóstico de início de demência.

Nos primeiros encontros, R. falou pouco, contou pontualmente alguns


acontecimentos – a morte da esposa, a aposentadoria pela doença neurológica, o
problema nos dentes. Depois de um tempo foi possível entender que, durante um
tratamento odontológico em uma clínica escola de uma universidade, foram-lhe
arrancados todos os dentes, de forma desnecessária e sem que ele compreendesse o
que iria ser feito, e colocaram uma dentadura que ficava solta em sua boca. Boa parte
da fala confusa vinha da dificuldade que ele tinha – e da vergonha – em falar com
aquele objeto estranho em sua cavidade bucal. A hipótese inicial do atendimento tinha
como principal foco o luto da morte de sua esposa, mas, no decorrer do trabalho, foi
ficando evidente que outros lutos iam se somando e ficar sem os dentes, algo não
imaginado por ele, foi a “gota d´água”. Ou podemos pensar que foi o segundo
momento do traumático: esta situação colocou em cena algo da ordem do impensável,
que remetia às perdas anteriores, das quais foi incapaz de dar conta.

62
Observa-se no discurso sobre a velhice a tristeza como um atributo deste momento da vida,
dificultando uma escuta mais cuidadosa para esclarecer as vicissitudes desta tristeza e se seria
importante realizar alguma intervenção.

164
No início do acompanhamento também foi observado que R. fazia algumas
confusões na hora de tomar os medicamentos, ora os ingeria em excesso ora os
esquecia. E eram muitos os comprimidos. A organização da medicação, tanto com os
médicos, quanto à organização dos mesmos em casa, trouxe mudanças significativas
no comportamento de R.. Ainda que se mantivesse apático, retomou um discurso mais
organizado e se dispôs a sair de casa e fazer pequenas caminhadas. Diante dessa
mudança, seu médico de referência mudou seu diagnóstico para “pseudo demência”,
pois entendeu que seu quadro era fruto de “mal uso ou excesso de medicamentos”. As
caminhadas passaram a ser seguidas pela hora de tomar capuccino, o único momento
de prazer que ele se permitia. As conversas não eram fluidas, eram difíceis, repetitivas
muitas vezes, e em outras reinava o silêncio. Mas havia vínculo, ele esperava pronto
no horário combinado. Do capuccino em casa passaram a tomá-lo num café, onde
novos interlocutores apareciam nas cenas. Depois algumas saídas mais arrojadas: um
teatro, um circo, um passeio. Após dois anos retomou o controle dos pagamentos e
passou a ir no caixa eletrônico sozinho. Seu jeito mais fechado para o contato com as
outras pessoas, inclusive com seus familiares mais próximos, permanecia o mesmo
que antes, dizia ter sido “sempre assim”. O acompanhamento durou três anos e meio e
foi encerrado a seu pedido, após ele retomar o contato com uma amiga da família que
se dispôs a sair com ele semanalmente.

Nesse e em outros casos, observamos que a entrada do at ocorre quando os


esquecimentos e as confusões começam a tomar a cena e o diagnóstico de demência
não foi feito ou está em processo, mas sabe-se que algo não está como era antes. Há
algo fora de lugar. Dependendo do momento da entrada do at, o início do trabalho
pode intervir no ritmo e no grau que o processo demencial tomará para o sujeito. Ou
ainda, o trabalho do at pode apontar para um equívoco no diagnóstico, como ocorreu
com R.

Relatamos anteriormente que muitos processos de luto são interrompidos pela


desmesura do impacto traumático intensificado pelas múltiplas perdas; pelos entornos
que não favorecem a interlocução necessária para o processamento do excesso, pela
impossibilidade de vislumbrar perspectivas futuras no campo social de atribuição de
sentido para a vida que justifiquem o doloroso trabalho de enlutamento, entre outras

165
situações que sempre se somam a história singular daquele que sofre. O at chega para
acompanhar este "não movimento", que pode vir a se tornar "movimento" no
encadeamento dos encontros ao retomar a marcação da temporalidade, criando espaço
no território para novos acontecimentos. Isto só se faz, como sabem os ats, a partir da
disponibilidade para escutar e transitar pelas dores, as ditas e as não ditas, e manter-se
presente na travessia deste campo mortífero. Travessia que pode chegar a lugares
inimagináveis, com a abertura de possibilidades de vida, ou que, como muitas vezes
acontece, pode ser campo para o testemunho árduo de um processo demencial que
desacelera, se modifica, mas não cessa.

Por vezes cabe ao at acompanhar a intensificação dos esquecimentos, das


confusões, dos descompassos no tempo e desencontros no espaço: enlouquecimentos
que se presentificam em um processo demencial. Os esquecimentos apontam para
uma história que se evapora, talvez um último recurso que garante a sobrevida,
quando somente sofrimento em desmesura e morte estão no horizonte e a
precariedade de nossa existência se escancara. Em outras situações o AT se inicia
quando um processo demencial já está em um estágio bastante avançado e cabe ao at
testemunhar a existência, legitimar traços de presença da maneira como estes se
apresentam e, por vezes, pensar o que foi impensável para aquele sujeito a partir do
contato com o entorno familiar e/ou institucional de cuidados. Neste sentido, o
acompanhar visa afirmar a possibilidade de uma existência singular, de uma maneira
de estar no mundo, da maneira que for possível.

A clínica do envelhecimento é aquela em que somos incessantemente


confrontados com nossa impotência, nosso desamparo, nossos limites. O tempo que
passa e o corpo que declina estão sempre à espreita lembrando-nos do fim vindouro.
O trabalho de luto é uma constante, caminhando junto com uma cotidiana negociação
com os ideais – do acompanhado e daqueles que acompanham. Negociação pouco
favorecida por nosso momento atual marcado pelas imagens excessivamente
positivadas e pela denegação da fragilidade. Neste sentido, o at legitima o envelhecer
tal como ele pode acontecer, reconhecendo suas dores e seus prazeres, seus
fechamentos e aberturas, seus limites e suas potências. Tanto o esquecer para não
enlouquecer quanto o enlouquecer para esquecer fazem parte deste campo defensivo
que, de uma maneira ou de outra, possibilitam que a vida siga…

166
Referências Bibliográficas:

BARBIERI, N.A. A não escuta: pungente violência em relação ao idoso. In


Congresso Internacional de Acompanhamento Terapêutico, 1., 2006, São Paulo.
Apresentação oral. São Paulo: AAT, 2006.
______. Doença, envelhecimento ativo e fragilidade: Discursos e Práticas em torno da
Velhice. São Paulo: UNIFESP/EPM, 2014. 259p. Tese (Doutorado) – Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo,
2014.
BARBIERI, N. A.; BAPTISTA, C. G. Travessias do tempo: acompanhamento
terapêutico e envelhecimento. São Paulo: Casa do psicólogo, 2013.
BERLINCK, M. T. O que é psicopatologia fundamental. In ______.Psicopatologia
fundamental. São Paulo:2000. p.11-26.
BIRMAN, J. Futuro de todos nós: temporalidade, memória e terceira idade na
psicanálise. In VERAS, R. (org.). Terceira Idade: um envelhecimento digno para o
cidadão do futuro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.
FERNÁNDEZ, R. P. La dimensión pscológica de los recuerdos y los olvidos en
mujeres mayores con queja subjetiva de memoria. Montevideo: Universidad de la
República, 2009. Tesis (Maestría) Facultad de Psicología, Universidad de la
República, Montevideo, Uruguay, 2009.
FERREIRA, A. B. de H. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo,
2010.
GOLDFARB, D. C. Corpo, tempo e envelhecimento. São Paulo: Casa do psicólogo,
1998.
______. Demências. São Paulo: Casa do psicólogo, 2004.
GOLDFARB, D. C.; BARBIERI, N.A.; GOTTER, E. & PEIXEIRO, M. H.
Depressão e envelhecimento na contemporaneidade. Revista Kairós Gerontologia.
v.9, 2009, p.54-79.
MESSY, Jack. A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice.
Tradução José S.M.Werneck. São Paulo: ALEPH, 1993.
PEIXEIRO, M. H. Acompanhamento Terapêutico no envelhecimento: subvertendo as
lógicas de exclusão. Anais do VI Congresso Iberoamericano de Psicogerontologia, La
Paz, Bolívia, 2015.

167
A POTÊNCIA CLÍNICA E POLÍTICA DO ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO NA REDE PÚBLICA DE ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL

Débora Margarete Marinho

O acompanhamento terapêutico (AT) e sua imersão em lugares públicos de


atenção à saúde mental deve ser tomado como um dispositivo transetorial, pois sua
clínica pode atravessar ou compor com os espaços intersetoriais, como o Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS), o Serviço Residencial Terapêutico (SRT), e demais
instituições ou territórios, projetos terapêuticos construídos coletivamente à partir da
demanda do sujeito e não a partir de demandas ou necessidades institucionais. Em sua
práxis o AT articula teoria e prática ao exercício politico, como estratégia de inclusão
social, alinhado ao processo de Reforma Psiquiátrica em curso no país. 63
Nas construções históricas da emergência do AT 64
constata-se as influências
dos primeiros movimentos nos modos de lidar com a loucura, ocorridos nos Estados
Unidos e na Europa do pós Guerra, quando surgem as críticas ao modelo psiquiátrico
tradicional que apartava e excluía os chamados “doentes mentais”. No Brasil, as
experiências extra- asilares, tomando o espaço social como lugar possível de
tratamento, iniciaram-se no final dos anos 1970, período de redemocratização do país.
As experiências foram tomando corpo, e paulatinamente, críticas à utilização do
dispositivo como apêndice médico institucional foram tecidas.
A potência revolucionária do AT delineia-se, sobretudo, com a associação à
subersividade psicanalítica. O lugar da fala e da potência da escuta vai se tornando
substrato fértil do encontro da dupla. A retomada do espaço público como lugar de
visibilidade e pertencimento, campo fértil do tratamento em liberdade.
No entanto, há momentos históricos nos quais o Estado é movido por
diretrizes e leis de exceção, impostas à favor da aniquilação ou fragilização dos
direitos conquistados por vias democráticas de ascensão, onde há a retomada do lugar
do totalitário- excludente como espaço de excelência.

63
Texto baseado na minha dissertação: Marinho, Débora Margarete. Acompanhamento Terapêutico:
caminhos clínicos políticos e sociais para a consolidação da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2009. Disponível em http://www.teses.usp.br
64
Diversos trabalhos acadêmicos e artigos fazem uma retomada histórica sobre o surgimento do AT,
Reis Neto, Raimundo Oliveira: Emergência e trajetória histórica de uma prática em saúde mental no
Rio de Janeito. Dissertação de mestrado PUC/ RJ; 1995. Há também o livro Porto, M.
Acompanhamento Terapêutico. São Paulo. Casa do Psicólogo, 2015.

168
Estamos nesses tempos. Tempo de conservadorismo e retrocesso de conquistas
advindas das lutas sociais, conseguidas pela implementação do Sistema Único de
Saúde (SUS) em 1990 e da lei 10.216 (conhecida como a Lei da Reforma
Psiquiátrica) proferida em 2001. Ambos promulgadas para a garantia dos direitos das
pessoas a serem tratadas em serviços comunitários e territoriais, internações em
hospitais gerais, dentre outros, com diretrizes éticas e princípios de universalidade,
integralidade, equidade... Até então, propunha-se a extinção gradual e total dos
manicômios como lugar de tratamento.
Incrédulos e com uma determinada passividade social observamos em 2017 a
retomada dos hospitais psiquiátricos, novamente, nas diretrizes da Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS), como lugar possível de acolhida. E inclusão das comunidades
terapêuticas, instituições, em sua maioria, marcadas por ideologias de cunho moral e
religioso, apartadas do SUS.
Esse retrocesso, certamente, fala de um sintoma social. Marca uma regressão
institucional e política e abre-se o caminho para o retorno de narrativas e práticas
excludentes sobre o campo da loucura, dentre outros.
Aqui não há como não lembramos de fatos históricos que revivem o
imaginário social na atualidade, tanto no Brasil, como em outros lugares espalhados
pelo mundo. Algumas iniciativas recentes, como a volta de campos de concentração
para os homossexuais na Chechênia, ou aqui mesmo, na cidade de São Paulo,
políticas públicas higienistas e excludentes da gestão municipal onde diversas
denúncias são feitas por abusos de autoridade contra a população em situação de rua
com o objetivo de tirar das vistas da sociedade os corpos famigerados da
miserabilidade que vivem embaixo dos viadutos. Ou então, o nacionalismo exaltado
na cultura brasileira em relação aos imigrantes desterritorializados de seus países em
guerra. Ou, ainda, as formas instituídas de trabalho análogo ao escravo, contidas em
alguns aspectos da reforma trabalhista atual.
Quais as consequências da exclusão social impostas aos sujeitos do modelo
econômico neoliberal, particularmente aos que dependem de um sistema público de
tratamento e tem em sua história a marca indelével do lugar subalterno do oprimido?
Poucos não são os exemplos do retorno do recalcado, e seus fantasmas.
Sabemos por Freud em alguns de seus textos que falam do conceito de recalque e
repressão, que aspectos traumáticos que não puderam ser elaborados retornam como

169
sintomas65. Ocariz (2014), ao falar sobre a Clínica do Testemunho 66
e a violência
sofrida pelos presos políticos e por seus familiares no período da ditadura brasileira,
nos propõe a reflexão sobre como o não saber e o não lembrar, são fatores que
impedem a cicatrização de feridas do tecido social, bloqueando o projeto do futuro, o
devir, a inscrição do novo, a fim de poder entrelaçar o que foi vivido como traumático
no passado com o que se projeta para o futuro.
Nesse sentido, considera-se importante incluir o AT para se pensar um
dispositivo clínico político capaz de atravessar e transpor os diversos saberes
instituídos no campo da saúde coletiva, já que a subjetividade não tem como se
manter refratária às mudanças históricas em curso.
O sujeito que se trata nos serviços públicos no âmbito geral da saúde é
extremamente permeável às políticas públicas, já que é a partir das lentes de suas
diretrizes que o sujeito será visto, ouvido e cuidado. Não haverá escapatória.
Como nós, acompanhantes terapêuticos (ats), não estarmos submetidos a um
campo ideológico dessubjetivante? Aquele campo ideológico alertado por Zizek
(1996) à serviço de uma realidade social onde os participantes não tem conhecimento
do que fazem e, por isso, há uma efetividade na manutenção desse indivíduo nas
malhas institucionais produtoras de sofrimento e sintoma?
Ao escrever e pensar sobre a questão dos imigrantes e refugiados e o
sofrimento imposto pelos mecanismos sociais de exclusão, Rosa (2016; pág 95) de
certa forma, responde às questões acima. Ela afirma que: “ (...) o desvelamento (do
sintoma67) pode ter efeito de dissolução. Ou seja, muitas vezes, a própria revelação
das ilusões que sustentam os sintomas pode ter efeito ou, ao menos, funcionar- como
o discurso da histérica-como denúncia desse grande Outro- organização social”. A
autora, neste enunciado, alarga a concepção do sintoma para além do sujeito e refere-
se ao sintoma social evidenciado nas dimensões sociopolíticas do sofrimento,
presentes na sociedade contemporânea.

65
Sobre o retorno do recalcado consultar Freud, S. O uso da interpretação dos sonhos na psicanálise
(1911). In Observações Psicanalíticas sobre um caso de paranoia Vol. 10. São Paulo, Companhia das
Letras, 2010. Recordar, repetir e elaborar (1914) In Observações Psicanalíticas sobre um caso de
paranoia Vol. 10. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. A Repressão (1915) In: Introdução ao
narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. Vol 12. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
66
A Clínica do Testemunho é um Programa da Comissão da Anistia, criado em 2012, que visava
reconhecer a violação dos direitos cometidos pelo Estado, no período ditatorial brasileiro de 1946 à
1988).
67
Grifo meu.

170
Alertados por esses pensamentos teóricos, não há como nossa clínica manter-
se refratária às mudanças atuais.
Acompanhar um sujeito em sua alteridade convoca uma certa radicalidade
oposta à adoção de planos terapêuticos definidos a priori e oferta de recursos sociais
comunitários e já instituídos, características próprias das práticas clínicas e sociais
alienantes.
No campo da saúde coletiva, as instituições públicas da área da saúde mental,
não dispõem dos acompanhantes terapêuticos; esses terapeutas são, em sua maioria,
estagiários de cursos privados de formação do AT e fazem uma passagem breve,
intensa e temporária na vida institucional e na vida de seus pacientes. Ou então, são
ats contratados por pacientes e seus familiares que, apesar de frequentarem os
equipamentos públicos, têm condições financeiras para pagá-los. 68
Esse é um nó importante no que tange à acessibilidade do AT aos chamados
usuários dos CAPS ou aos moradores dos SRTs. Há uma contradição a ser enfrentada
no fazer clínico dos serviços públicos de saúde mental financiados pelo SUS. Como
garantir a acessibilidade do dispositivo aos usuários que dele se beneficiariam? A
questão a ser retomada aqui é a tomada do dispositivo AT enquanto função dos
técnicos/terapeutas desses equipamentos públicos e não enquanto categoria
profissional.
Defender o AT como uma identidade profissional seria relegá-lo a uma
especialidade e, ao mesmo tempo, engessá-lo em ditames pré -formulados ou
prescritos. Há que se retomar aqui uma questão importante sobre a construção de
saberes hegemônicos e o AT. A centralidade de um saber sobre outros gera os
processos de reclusão e exclusão que se incorporaram à cultura e foram apropriados
por mecanismos de poder médico, por exemplo, analisados por Foucault.
Tais mecanismos de poder (que englobam a disciplina e a norma), estão
assentados na ideia de controle e higienização, fizeram e, infelizmente, ainda fazem
parte do processo histórico da construção dos conhecimentos e se materializaram em
categorias profissionais que se legitimam pela manutenção do saber unívoco e ações
corporativistas e centralizadoras. Historicamente, o que vemos é a reatualização

68
Alguns projetos temporários de inclusão de ATs em instituições públicas no estado de SãoPaulo
foram possíveis com o financiamento de uma Organização Social (OS), em um CAPSi na cidade de
Guarulhos e uma parceria entre a Secretaria Municipal de Saúde, a ONG ATUA e o CAPS Lapa em
2008.

171
constante desses mecanismos de poder, disseminados em várias dimensões
sociopolíticas e culturais de existência.
No entanto a contradição no tema de nossa discussão é evidente, já que o
resultado de não ter a figura do AT no quadro funcional das instituições públicas é a
inacessibilidade do dispositivo a quem dele demande.
Qual saída temos? Certamente, não há uma única possível. Reafirmo, dentre
elas, a importância de questionarmos sobre os serviços públicos assumirem para si a
função potencializadora do AT, e a consequente legitimação da esfera pública e
coletiva como palco de ações e conexões de rede, propiciadoras de produção de vida e
subjetividade.
A aposta é que o trabalho em rede onde os dispositivos sociais e clínicos (o
AT inclusive, CAPS, família, comunidade, etc) possam se apoiar e intermediar,
incide na criação de lugares plurais, no alargamento do campo do possível e
pressupõe a construção de espaços subjetivos e territoriais, acolhimento, atenção e
tratamento, para a sustentação da vida do acompanhado; onde os territórios
existenciais são lugares de apropriação e construção de trocas e narrativas.
O AT como clínica política possível para os processos de consolidação da
Reforma Psiquiátrica deve compor a multiplicidade de ações a serem dispostas no
processo de desinstitucionalização da loucura, uma vez que: “todo esse percurso
requer atores plurais, linguagem múltiplas, ações que se tornam mais complexas no
decorrer da própria prática, trabalhar em conflitos, ativar processos, produzir políticas,
inventar possiblidades (Nicácio, p. 95-96, 2003)
Há que salientar aqui o risco impróprio de caracterizar o AT como uma
ferramenta tecnicista a serviço de uma dada organização ou adaptação do sujeito a sua
rede ou à sociedade, ou em última instância, avaliar o dispositivo por meio de um
olhar simplista sobre sua utilidade (palavra própria de uma sociedade neoliberal,
marcada pelo consumismo não só de produtos, mas de formas de vida e
subjetividade), correndo o risco desnecessário de tomá-lo como uma tecnologia
tecnocrática de inserção, situando o AT como uma ferramenta de ampliação ou não
dos contatos de quem é acompanhado nos serviços públicos.
Contraposta a esta perspectiva, afirma-se o AT como dispositivo ativo nas
políticas públicas participativas, alinhado ao conjunto de ações coletivas e públicas
capazes de construir, ou, ao menos, propor uma nova ordem social alinhada à reforma
psiquiátrica e à desinstitucionalização. Essa é outra saída possível (e complementar)

172
da possibilidade do trabalho do AT em rede que ultrapassa o âmbito das instituições
de saúde mental, alargando ainda mais a possibilidade do AT enquanto função não
somente dos técnicos dos CAPS, por exemplo.
Na contramão das medidas que atacam ou negam as conquistas democráticas
da sociedade civil do país, algumas iniciativas interessantes promovedoras de
intervenções na esfera pública estão sendo afirmadas por coletivos de psicanalistas,
preocupados em dar voz aos que têm seus direitos constantemente negados em
condição de suas vulnerabilidades sociais ou relacionais. Essas iniciativas, como a
Clínica Aberta de Psicanálise, os atendimentos na Casa do Migrante ou ainda o
projeto de atenção em saúde mental de Belo Monte69 são construções férteis abertas
no front árido de uma sociedade que tem, como lógica, calar o sujeito pelo exercício
da violência e invisibilidade.
A reforma psiquiátrica, ainda em consolidação e portanto, profícua à
construção e invenção de novas práticas, tem como desafio a sustentação de
dispositivos que privilegiem a retomada do lugar social do sujeito que sofre para além
de sua adaptação social. A reforma psiquiátrica- conquista ética e política- deve vir a
serviço de práticas que tomam a subjetividade em intervenções cotidianas, como eixo
e estratégia de suas diretrizes em contraposição entre a técnica-psíquico-social que
enquadra o sujeito na sociedade.
O desafio da invenção de dispositivos clínicos para o atravessamento de
camadas duras nas diversas esferas sociais privilegia o AT como potência clínica, já
que tem como missão a imersão delicada em cenários afetivos e territoriais de sujeitos
marcados, muitas vezes, pelo registro de impossibilidades ou não reconhecimento e
invalidação.
No campo da saúde coletiva e pública, esse deve ser seu ponto de partida e seu
fim, ou seja, o AT como dispositivo possibilitador de construção, reconstrução e
conquista do espaço social.

69
Para consultar sobre a Clínica Aberta de Psicanálise, www.psicanalisedemocracia.com.br. A
experiência da Casa do Imigrante está publicado no livro de Rosa, Miriam Debieux. A clínica
psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo. Ed. Escuta/Fapesp, 2016.
Para experiência de Belo Monte, vide www.ponte.org .

173
Referências Bibliográficas

Nicácio, Maria Fernanda de Silvio. Utopia da realidade: contribuições da


desinstitucionalização para a invenção de serviços de saúde mental. Tese de
doutorado.UNICAMP, 2003.
Ocariz, Maria Cristina. A psicanálise e as consequências psíquicas dos fenômenos
ditatoriais. Revista Percurso, São Paulo, no. 52, p 71-80, 2014.
Rosa, Miriam Debieux. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do
sofrimento. São Paulo. Ed. Escuta/Fapesp, 2016,p 95, 2016.
Zizek, Slavoj. O segredo da forma-mercadoria : por que Marx inventou o sintoma? In:
Os mais sublimes histéricos. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar- pag 131-148

174
ENTREVISTA:
EQUIPE DE ATS DO INSTITUTO A CASA COM MAURÍCIO PORTO E
KLEBER DUARTE BARRETO
Junho/2017

Equipe: Gostaríamos de agradecer a presença de vocês. A equipe já vinha querendo


chama-los há um tempo, desde que começamos a pensar na ideia desta publicação. Na
verdade, começamos a pensar em textos e nas pessoas que convidaríamos para
escrevê-los e aí começou um brainstorm. Veio uma vontade nossa de escutar as
pessoas que tinham um percurso longo no acompanhamento terapêutico e as histórias
que nos formaram, então nasceu essa ideia de uma conversa que pudesse virar uma
publicação. Lembramos do texto/entrevista que vocês fizeram e que foi publicada,
com os diretores aqui do Instituto na época.
Maurício: Peter Pelbart e eu.
Equipe: Relemos aquela entrevista e então veio essa vontade de chamá-los.
Lembramos de vocês dois! Tivemos pouco contato com o Kléber, mas ficamos muito
transferidos quando lemos seu livro70 lá atrás.
Kléber: No século passado!
Maurício: Em 1989 nós já estávamos por aqui.
Equipe: O Maurício foi supervisor dos atuais coordenadores da equipe, por um curto
período! A ideia que tivemos é de nos organizarmos a partir de algumas perguntas que
a equipe elaborou, mas também pensamos que seria legal se vocês quiserem falar um
pouco antes.
Maurício: Eu estive lendo as perguntas antes de vir para cá e pensei que, para
respondê-las, seria bom contextualizar este período inicial. Por isto, fui ver
exatamente quando comecei a ser acompanhante. Ingressei na psicologia em 1981.
Entre 1981 e 1982, fiz parte da diretoria do centro acadêmico da Psicologia da
PUC/SP e comigo participavam Wilson Almeida e Stela Chebli – argentina auto-
exilada, que trabalhou como secretária no Hospital-Dia A Casa e também estudava
psicologia. Wilson conhecia Moisés Rodrigues, um dos diretores de A Casa, e tinha
começado a trabalhar como terapeuta e acompanhante terapêutico.
Kleber: O Wilson é de 1981. O primeiro a ser convidado a ser at aqui da Casa.
Maurício: Eu conheci A Casa através destes dois companheiros. Em 1983 houve uma
70
É tica e técnica no Acompanhamento Terapêutico . Andanças com Dom Quixote e Sancho Pança.

175
seleção para trabalhar no hospital-dia. Foi uma surpresa a quantidade de pessoas que
se candidatou para isto. Naquele momento, em São Paulo, as psicoses eram “tratadas”
nas internações psiquiátricas. Eu participei da seleção, não fui chamado, mas cerca de
um mês depois Nelson Carrozzo me ligou e falou: “Ah, você participou da seleção,
você não queria vir aqui para gente conversar para você fazer um acompanhamento
terapêutico no sábado?”. Era uma quarta-feira. Eu estava no terceiro ano da faculdade
e nunca tinha escutado falar em acompanhamento terapêutico na minha vida. Então,
eu vim conversar com Nelson na quinta-feira. No sábado eu fui atender meu primeiro
paciente, das duas da tarde às oito da noite. No dia seguinte, das duas da tarde às sete
e meia da noite. Isso seguiu assim por dois anos, e depois eu continuei por aqui.
Equipe: Com o mesmo paciente?
Maurício: Com este paciente, especificamente, formamos uma pequena equipe. Este
caso durou cerca de cinco anos. Na semana seguinte a este primeiro final de semana,
eu fui à supervisão do grupo de ats que estava composto pela Eliane Berger, Wilson e
mais duas terapeutas ocupacionais que saíram logo que eu entrei. Logo depois vieram
Sandra Navarro e Beatriz Vannuchi. Nelson era o supervisor. E eu não entendia nada
daquilo. Wilson tinha ido morar com um paciente na Rua Paula Ney. Então
acompanhamento terapêutico podia ser morar junto. Foi uma curta experiência, deve
ter durado uns quatro meses. Eu nunca vou me esquecer da supervisão em que nos
demos conta de que Wilson começou a deixar de vir ao hospital-dia porque ficava
dormindo no apartamento com o paciente. Achamos que esta experiência não estava
dando certo...
Equipe: Quatro meses é bastante tempo morando com o paciente.
Maurício: Não sei quantos anos depois, houve uma seleção – a primeira seleção só
para acompanhantes terapêuticos – e chegaram, entre outros, Debora Sereno, Leonel
Braga, Leopoldo Fulgêncio, Luís Braga, Marta Okamoto, Renata Caiaffa... Até então,
Nelson coordenava o grupo de acompanhantes terapêuticos sozinho. Em algum
momento, Eliane e eu passamos a supervisionar este grupo de acompanhantes
terapêuticos e Nelson começou a supervisionar um segundo grupo, com novos
acompanhantes terapêuticos. Aí, que conheci Kleber.
Kleber: O grupo que eu entrei em 1988 já começou aqui nessa sala. O grupo estava
iniciando sua experiência da supervisão nas duas salas.
Maurício: Então, a partir de 1988 tive a minha primeira experiência como supervisor
de acompanhamento terapêutico. Logo em seguida, em 1989, aconteceu o primeiro

176
encontro do acompanhamento terapêutico, depois de sete ou oito anos do início de
nossa experiência. Na mesma época, houve também a comemoração dos dez anos do
Instituto A Casa, inaugurada em 1979.
Ainda voltando no tempo, em 1983 se iniciou um movimento importante na saúde
mental, efeito da primeira eleição direta para governador, em 1982, com Franco
Montoro, do MDB. Foi um momento especial porque todas as vontades de fazer uma
saúde mental diferente, que não fosse centrada no hospital psiquiátrico, haviam ficado
reprimidas durante os anos da ditadura militar. Só então, em 1982, começaram os
primeiros programas públicos de tratamento, ainda nos ambulatórios de saúde mental,
através dos PIM, os “programas de intensidade máxima”. Uma vez que não era
possível desmontar o antigo ambulatório, que existia há décadas, incrustou-se no
interior do ambulatório este PIM, que consistia em estar com aqueles pacientes que
ficavam o dia inteiro lá, todos os dias da semana. Então, de 1982 a 1987 houve um
período muito intenso de abertura para uma saúde pública não psiquiátrico-
ambulatorial, que teve seu auge em 1987, um pouco depois do final do governo
Montoro. 1987 é também o ano de abertura do CAPS Itapeva. Portanto, enquanto
experimentávamos o acompanhamento terapêutico, também aconteciam essas outras
aberturas: o movimento das Diretas Já, a eleição indireta de Tancredo Neves, sua
morte... Muita coisa forte que nos atravessou nesse momento inicial. Kleber ficou
menos tempo do que eu que completei 18 anos aqui no Instituto A Casa, até minha
maioridade.
Kleber: Eu fiquei até final de 1998 eu acho, começo de 1999.
Maurício: Ele é mais saudável do que eu! Precisou de menos tempo para ter alta. Eu
estou falando um pouco disso também porque, ao ler as perguntas, percebi que as
coisas de que eu posso falar aconteceram há mais de 16 anos atrás e que estão
distantes da experiência atual.
Equipe: Mas depois você esteve na ATUA também, né? Foi logo aí?
Maurício: Em 1995, a Chu Cavalcante, o Iso Ghertman e eu começamos a ministrar o
curso de acompanhamento terapêutico, talvez o primeiro curso de Acompanhamento
Terapêutico.
Equipe: Mas e a ATUA?
Maurício: A ATUA foi um efeito do curso. Em 2000 começamos a realizar o estágio
assistido de Acompanhamento Terapêutico, a princípio no hospital Vera Cruz. E do
estágio surgiu a ATUA: tínhamos vontade de dar seguimento aos acompanhamentos

177
terapêuticos iniciados no estágio, e pensamos na ONG como forma de viabilizar isto,
remunerando os acompanhantes terapêuticos. Torramos toda a grana que juntamos no
primeiro projeto e aí não conseguíamos mais captar os recursos para os próximos
projetos. Descobrimos que seria necessário ter alguém que administrasse e
empresariasse tudo.
Kleber: Não era a seara dele.
Maurício: Assim, a ATUA durou de 2001 até 2006. Quis retomar um pouco da
história pois muitas coisas abordadas nas perguntas que recebemos se referem a esta
última década, em que o acompanhamento terapêutico se expandiu e
progressivamente vai se institucionalizando.
Equipe: Mas esse princípio nos interessa bastante! Temos uma ideia de que era uma
fase mais livre, mais instituinte. Dá uma curiosidade, sobre a clínica mesmo e todas
essas potências políticas e inovadoras. Acredito que muito dessa vontade de conversar
com vocês venha disso também, de uma sensação de que talvez a gente esteja num
momento mais engessado.
Equipe: Maurício, você falou que em 1983 que você chegou aqui e nunca tinha
ouvido falar de AT. Ficamos pensando no por quê. Existia? Falava-se disso? Ou
realmente foi aí que estava começando?
Mauricio: Não existia! Inicialmente, se chamava amigo qualificado. Com um nome,
ligado a uma instituição, e fazendo parte do tratamento, só existiu aqui na A Casa.
Existiam certas clínicas...
Kleber: Era a Travessia.
Maurício: É, então, pois é... mas era algo muito eventual.
Kleber: Tinha na Granja Julieta. Quer dizer, a gente descobriu também, nesses
congressos, que lá na equipe do Kalina, em Buenos Aires, tinha um casal de
brasileiros. No início, muitos brasileiros iam se tratar lá porque tratamentos de
dependência aqui no Brasil ainda estavam começando. Algumas famílias que tinham
muito dinheiro e não encontravam lugar de tratamento, mandavam seus familiares
para Buenos Aires. Então esse casal de brasileiros, um dos psiquiatras lá da Granja
Julieta e uma psicóloga de Brasília, estavam atuando lá nesse início do
acompanhamento terapêutico, como amigos qualificados.
Maurício: Na Argentina, se chamava atendente terapêutico. Eu comecei a trabalhar
aqui em agosto de 1983, e em novembro fui para Buenos Aires porque aconteceu o
primeiro encontro de Atendentes Terapêuticos, com Eduardo Kalina, Santiago

178
Kovadloff. Kovadloff contou, por exemplo, o episódio em que ele acolheu na própria
casa um brasileiro que surtou. Ele e a mulher tinham um menino de meses e, eis que
chega o moleque de 18 anos surtado. Guitarrista. Ele e a mulher tiveram uma briga
fenomenal, Santiago não podia mandar o menino embora de repente, mas a mulher
estava mandando um dos dois embora.
Kalina veio à Granja, deve ter sido em 1984. Até então, aconteciam experiências de
pessoas que saíam das clínicas com os pacientes. Mas não era uma coisa organizada
no tratamento. Que eu saiba, como um pensamento de grupo, como parte do trabalho
da instituição, aqui na A Casa. O Cesar Ibrahim71 conta que no Rio de Janeiro havia
algo parecido com os atendentes psiquiátricos. Que corresponde a uma herança,
suponho, da Casa das Palmeiras, imantada por Nise da Silveira. Então há alguma
experiência análoga. Além disto, há relatos de Carmen Dametto, em Porto Alegre, na
Clínica Leo Kanner.
Kleber: É, porque a Carmen que levou o AT pro Rio. Foi se espalhando de forma
Sul, Sul-Rio, daí Rio-Recife. Bueno Aires-São Paulo.
Maurício: E aqui em São Paulo foi trazido por Beatriz Aguirre.
Kleber: Sim. Já existia a ideia de AT no projeto da Casa. O “amigo qualificado” já
estava contemplado. A prática se iniciou em 1979, mas foi acontecer
acompanhamento mesmo em 1981. Era assim: “Ah, você não quer estar junto? Chega
aí!”. Isso foi o que o Wilson fez. Lá na Argentina, a história que a gente ouve é de
início da década de 70, final de 60.
Maurício: Embora puxem a sardinha pra baixo.
Kleber: Sim, todo mundo puxa pra baixo, tem polêmicas. Não é unânime. Tem um
boletim da Pulsional em que um psiquiatra lá da Pinel fala de um artigo que ele
escreveu. Sobre isso que estão chamando de acompanhamento terapêutico e estão
falando da história como 1970 na Argentina, ele falou: “Começou aqui em 1960.” Daí
lá na Argentina, também puxam para a experiência do Hospital Psiquiátrico em
Córdoba, que aconteceu em 1960.
Maurício: Não tenho certeza que Beatriz tenha feito acompanhamentos aqui no
Brasil. Parece que sim!
Kleber: Foi o primeiro trabalho dela.
Maurício: Logo que chegou, exilada?
Kleber: É aquilo que contam: “Vai apresentar a cidade e tal.” Quer dizer, quem
71
Primeiro livro da A Casa, A rua como espaço clínico.

179
apresentava a cidade era o acompanhado pra ela. Ela ia sendo apresentada.
Maurício: Então. Este pode ser um começo para nós... Essas sementinhas foram
trazidas por estes exilados.
Equipe: Você quer dar uma localizada também, Kleber?
Kleber: Eu entro com o grupo que foi selecionado em maio de 1988. Tinham os dois
grupos de supervisão, o iniciante e o mais antigo. Eu comecei com o Nelson, às terças
para supervisão e às sextas para estudos, discussões. O que se falava é que era
interessante e importante sistematizar, teorizar a prática e a experiência do
acompanhamento terapêutico. Na época, em 1988, tinha uma publicação que era a
tradução do manual da Silva Resnisky e Suzana Mauer 72. Mas, a princípio, a ideia do
grupo da sexta-feira (de escrita, discussão e estudos) não tinha a ver com o encontro
de acompanhantes terapêuticos, era para sistematizar a prática. Daí surgiu a ideia do
encontro, depois reunimos os trabalhos das mesas e selecionamos os trabalhos que
foram apresentados. Esse encontro Organizou-se num livro, “A rua como espaço
clínico”. E foi.
Maurício: 23 de junho de 91. Dois anos para fazer.
Kleber: Pensamos em como organizar, como seria a estrutura do livro, e aí entramos
em contato com os autores, conseguimos uma editora, foi todo um processo. Eu tinha
dado uma sugestão de capa usando o desenho do Nelson. Fui lá e conversei com a
Capiça, uma artista, ela pegou a ideia e fez uma coisa interessante, diferente. Comecei
então nessa época, 18 de maio de 1988.
Equipe: Dia da luta antimanicomial.
Kleber: Depois é que eu me dei conta que era o dia da luta! Eu fiquei na equipe até
1999. Uma mudança muito interessante que a gente vê no campo do AT é que esse
campo se expande, se diversifica, e aí é possível estar nele por mais tempo. Não no
front diretamente, mas sim em outras posições, que são outras formas de estar ligado
ao campo. No estudo, dando aulas, supervisões, pesquisando e produzindo. E uma
coisa que chamava atenção nos encontros é que neles tinha uma ou outra pessoa de
cabelo branco, você olhava a plateia e eram estudantes a maioria, pessoas jovens. Eu
lembro que eu fui a um encontro em Buenos Aires na década de 90 e isso me chamou
a atenção, já estava mais institucionalizado, havia mais senhores. E hoje isso no Brasil
deu uma ampliada.
Lá em 1985 já tinha um livro publicado. Aí em 1991 saiu ‘A rua como espaço clínico’
72
“Acompanhantes terapêuticos e pacientes psicóticos”,Papiro, 1985.

180
que é o segundo. Depois em 1998 teve o ‘Ética e técnica no acompanhamento’, depois
‘Crise e cidade’ também, quase simultâneos. Depois foi haver mais publicações, um
fenômeno mais brasileiro, vários mestrados e doutorados sobre o tema, monografias e
outras coisas que foram sendo publicadas e que nasceram dessa área. O Instituto A
Casa tem essa característica de publicar, agora vocês com mais esse projeto.
É o quarto livro organizado pela equipe, ficou essa marca da importância de se
escrever sobre essa experiência. Daí surgiu a ideia mapear o campo. Quem somos?
Quantos somos?
Maurício: Essa foi uma mudança ao longo do tempo: a expansão. Então, é muito
diferente. Imaginem que a equipe do Instituto era o único grupo e havia só
desconhecimento, não existia uma demanda de acompanhamento terapêutico.
Recorria-se ao grupo de acompanhantes para atender pacientes que, por determinadas
situações clínicas, estavam sendo tratados aqui no hospital-dia.
Equipe: Nós tínhamos uma fantasia de que a iniciação do AT estava muito atrelada
justamente a uma demanda institucional, essa coisa de as instituições quererem sair
com os pacientes, ir até a casa dos pacientes ou trazer os pacientes para a instituição.
Mas pelo que vocês estão dizendo, parece que não era assim.
Maurício: Eu penso que a demanda do AT pretendia dar conta de situações clínicas e
demandas institucionais muito específicas como, por exemplo, pacientes que por
algum motivo estavam sozinhos, sem a família, vulneráveis, ou que estavam em crise
e precisavam de alguma intervenção para evitar a internação psiquiátrica.

Equipe: Gostaríamos que falassem sobre acompanhamento terapêutico, tendo em


vista sua transformação pelo tempo histórico. Há alguma mudança nas patologias dos
acompanhados, na relação dos mesmos com a cultura, o meio familiar e social,
sobretudo com os at’s? Como essas mudanças têm afetado a prática do AT?

Maurício: Minha experiência me impede fazer generalizações. Eu percebi que não


conheço essa dimensão mais ampla sobre como as coisas referentes à clínica do AT
foram se organizando durante todo esse tempo e como estão organizadas hoje. Nos
últimos quinze anos, minha experiência com AT aconteceu sobretudo nas instituições
públicas, em função do curso e do estágio que coordenamos. Considerando minha
outra referência, o consultório particular, é difícil falar da questão patológica uma vez
que a diferença de classes sociais, no público e no privado, para mim, suspende

181
nossas definições psicológicas. Nossa diferença social abismal complexifica
intensamente a questão das loucuras diferentes. Mas uma coisa que aconteceu, ao
longo dos anos, é o AT ter se deslocado, progressivamente, para uma dimensão cada
vez mais exterior. No começo nosso modelo esteve muito referido à experiência
psicanalítica. O pensamento do AT era quase uma psicanálise aplicada. E ele foi
sendo atravessado por uma exteriorização. Houve um movimento que combina com a
noção de “território”, como a pensa a reforma psiquiátrica – ideia do espaço fora, no
sentido de sair da delimitação dos tradicionais espaços de saúde. Essa mudança
bastante interessante que aconteceu ao longo do tempo foi o de uma seta em direção à
amplificação do pensamento. Acrescentaram-se elementos que, cada vez mais, foram
se interpondo com aquele ponto de partida muito referido ao pensamento
psicanalítico. É uma percepção, uma sensibilidade, alguns nomes até, que foram se
criando para traduzir uma experiência que não se apóia apenas no vetor
transferência/atualização como motor do tratamento.
Kleber: Vou falar da experiência do meu percurso, quando eu saí em 98, 99...eu
estava dando aula na UNIP e em 98 começou o primeiro ano do estágio, uma optativa
de estágio em acompanhamento terapêutico dos alunos de quinto ano da UNIP. Eles
aceitaram uma proposta. Aceitaram os estágios em acompanhamento terapêutico
como optativa no quinto ano. E como tem uma exigência do MEC, como hoje, de uma
homogeneização do currículo, como a UNIP está espalhada por vários lugares, então
isso foi oferecido em vários campi, inclusive no interior. Então, têm turmas de AT
formadas em Araçatuba, Ribeirão, Sorocaba, São José dos Campos, Santos. Não
formou em Manaus ainda, mas tem em muitos lugares. A partir também da
experiência dos eventos de AT, do acompanhamento dos congressos, o que eu tenho a
dizer é que: sim, houve mudanças nas patologias. Muitos quadros patológicos foram
sendo acompanhados, a gente foi conhecendo mais, foram aparecendo mais quadros,
tem toda uma história que a gente não conhece muito da deficiência mental, nesse
trabalho também já existiam coisas parecidas com o AT. A gente tem poucas histórias
neste campo. Agora, o que me chama mais a atenção é essa diversificação do AT,
desde sua origem localizada na experiência no campo da saúde mental, pacientes em
tratamentos psiquiátricos até hoje em dia, em que o acompanhamento está em
situações nas quais a questão não é uma patologia. A gente tem uma parceria, por
exemplo, em situações de abrigo. Isso foi a partir da experiência do AT na
universidade. Já que temos a possibilidade do acompanhamento ser gratuito, eu gosto

182
que a prática seja diversificada. Que a gente não fique só na parceria com CAPS, ou
atuando nos quadros psiquiátricos. Então, o abrigo foi um universo. Lá temos crianças
desde meses até dezoito anos. Na verdade, aos dezessete anos e onze meses o
adolescente recebe juridicamente a carta de despejo. Aos dezoito você tem que sair
pra vida. Na intervenção, o acompanhamento é importante pra pensar um projeto de
vida, pra ver onde ele quer se inserir e buscar emprego, moradia. Fazer vinculação
entre irmãos. Ter um contato mais próximo dessa vida institucional. Ter alguma
referência, um trabalho que consiga respeitar, reconhecer a singularidade daquela
criança, daquele adolescente. Aí nos congressos apareceram coisas, já no encontro, no
Clínica do Espaço acho, ou no Crise e a Cidade, em uma das perguntas da plateia,
uma pessoa falou de uma experiência que ele teve em acompanhar um sujeito que
cumpriu pena. Ele cumpriu a pena num presídio, saiu, recebeu liberdade, mas estava
sem saber o que ia fazer. A experiência deu tão certo que eles começaram a oferecer
esse serviço pra mais pessoas. A gente viu o AT inserido nesse campo da liberdade
assistida...
Maurício: Essa é outra mudança expansiva, não é? Uma demanda que não existia
antes. Era tudo uma necessidade daqui de dentro do hospital-dia, circunscrita aos
espaços particulares de tratamento psiquiátrico. E tínhamos que contar com que o
psiquiatra tivesse alguma sensibilidade. Em trinta anos se constituiu uma espécie de
conceito. Podemos pensar também na multiplicação de agrupamentos de AT como
outra particularidade.

Equipe: O AT, que surge no contexto do desmonte manicomial como prática


instituinte dos profissionais de saúde mental, aproxima-se cada vez mais de uma
modalidade clínica amparada por saberes específicos. Há uma sofisticação do aparato
discursivo que sustenta e legitima essa prática? Falem sobre isto, considerando-se
idealmente que o objeto de intervenção de tal prática é o fenômeno da loucura.

Kleber: Não sei se sofisticação, mas há uma expansão, como eu disse, uma
diversificação, uma multiplicação das publicações. É claro que a gente sempre tem
uma predominância do campo da saúde mental, sempre tem uma predominância psi,
tem também uma predominância da psicanálise, o pessoal da congnitivo-
comportamental também usa muito o trabalho do AT. Tem cursos, tem publicações,
isso é uma referência importante. Naquele princípio lá encontrávamos um ou outro

183
artigo, tinha o livro das argentinas (Silvia Resnisky e Suzana Mauer), em 85, daí em
91 saiu “A rua como espaço clínico”. De lá pra cá as coisas se multiplicaram. O
campo do AT é discutido a partir de várias referências. As psicanálises, as diversas
psicanálises. Tem trabalhos de monografia que estão discutindo o campo do AT a
partir de uma perspectiva junguiana. Temos gente trabalhando com AT em grupos,
tem publicação em esquizoanálise, artigos sobre o acompanhamento em grupo,
acompanhamento nas intervenções com a família, então as coisas se diversificaram
bastante. Podemos falar que em várias publicações o fenômeno da loucura está sendo
discutido, mas tem publicações que já vão se preocupar com o AT, sem ter a loucura
como o centro, como a questão principal. Temos os bancos de dados, artigos
eletrônicas que não saíram como livro, banco eletrônico de teses e dissertações,
enfim, muita coisa. O campo demanda isso, uma fundamentação. A discussão desse
discurso, pra fundamentar a prática.
Maurício: Quando li “há uma sofisticação do aparato discursivo”, vi nisso uma
espécie de fotografia. Você olha a cena atual e você percebe que sofisticou o aparato
discursivo, na forma de uma estabilização, de tendência à estabilização. Por exemplo,
se eu sou o doente, hoje estou obrigatoriamente fotografado pelo universo das
patologias. Tentaria pensar de outro jeito: não fotografar isso que são investimentos
que fazemos o tempo inteiro no trabalho instável do acompanhamento terapêutico. Se
pensarmos em função da coisa vivida, dos esgarçamentos psíquicos, e conforme os
investimentos que vão acontecendo no campo do acompanhamento terapêutico, a
sofisticação do discurso ainda é jogo instável e indeterminado de possibilidades
compreensivas. A sofisticação como fotografia é tornar um discurso mais ou menos
hegemônico, estabilizando uma configuração mais arredondada do que é o
acompanhamento terapêutico. Ainda assim, continua sendo uma fabricação, que
sempre pode pender mais para um lado ou para outro. Gostaria de pensar de acordo
com o movimento que corresponde ao efeito da experiência instável da loucura.
Assim, eu não sei se há uma sofisticação ou se, antes, é uma espécie de escolha
sofisticar o discurso, ou embaralhar o discurso, ou explorar o discurso, ou
esquizofrenizar o discurso do que é o acompanhamento terapêutico. São apostas, são
diversas as inclinações dos acompanhantes. Então, o que foi se adensando como
pensamento no campo do acompanhamento terapêutico? Eu prefiro olhar para o
campo como uma ebulição. Podemos pensar esse saber como uma instabilidade. Um
jogo de forças. E uma vontade de pensar também. É possível pensar e preferir investir

184
numa coisa que tenha alguma estabilização. Mas, se olhamos para as diversas
compreensões como instáveis, somos mais sintônicos com a experiência louca.
Equipe: Eu não sei se eu entendi bem. Mas, vocês veem algum risco de uma ânsia
por estabilizar esse discurso, e aí isso empobrecer a prática do AT?
Kleber: Eu acho que quem tiver essa ânsia de estabilizar o discurso está numa
roubada, porque a loucura não vai ficar retida. Quer dizer, vai ficar capturado na
armadilha que criou. Agora, o risco de ficar restrito é muito grande, em qualquer das
formas. Eu lembro de pessoas que conviveram com o pessoal que foi pra Itália, a
experiência preconizada pelo Basaglia (experiência da anti-psiquiatria), há notícias de
pessoas que estiveram lá de que havia dois pés atrás em relação à teorização, porque
isso capturaria. E aí houve as consequências que eles sofreram, porque as coisas
podem se perder, podem se estereotipar de outras formas. Não só pela teorização. Mas
existe algo que nunca vai ficar capturado. O que a gente vê cada vez mais é isso: essa
multiplicidade, essa diversidade de perspectivas, de discussões, de interlocuções, das
mais diversas interlocuções.
Maurício: Eu não chamaria de risco, porque eu acho que isso está dado. É uma
possibilidade. Talvez em determinados momentos predomine essa espécie de
hegemonia X. Isso está posto, é uma das possibilidades, todo o tempo. Quando vocês
dizem “sofisticação”, já me dá a sensação de estarem preocupados demais com essa
possibilidade. Eu daria um passo atrás.
Equipe: Você traz uma visão ampla, como se você olhasse um mapa de cima e fosse
vendo as diversas geografias, manifestações. E acho que quando essa pergunta surge,
ela surge de dentro, de alguém que está lá na Terra e que de alguma forma pode ir
sentindo o quanto essas produções, quando você as vive, em sua singularidade, não
olhando de fora a pluralidade, podem, no seu micro, engessar. Até porque existe uma
popularização do AT inclusive enquanto discurso de saber. Mesmo a pessoa que está
ali vivendo uma única possibilidade, ela pode ter essa perspectiva ampla, como a sua,
que já está no AT faz tempo. Eu fico pensando muito nisso, os jovens que estão
iniciando, já iniciam de um lugar muito diferente desse que você iniciou, por
exemplo. E o quanto isso é compatível com a loucura? Ou o quanto que às vezes mais
virgem, mais errante, mais cigana, sei lá, pode ser mais interessante, mesmo que
depois você vá fazer suas produções a partir de uma necessidade visceral, não você já
inserido num campo de saber.

185
Maurício: Mas você não acha que dá pra pensar que isso que acontece com cada um,
como você está dizendo, nesse micro, é a mesma coisa? Não é porque eu tenho essa
perspectiva mais ampla que essa possibilidade de se hegemonizar não vai acontecer
para mim também. Vale para cada um de nós. São os nossos conflitos.
Equipe: Eu acho que a questão é a pessoa que está inaugurando. Ela não tem essa
perspectiva de uma pluralidade em volta dela... Porque acho que todo mundo pode se
engessar, mas e quem começa?
Maurício: Mesmo quem começa.
Equipe: Então, essa que é a questão, porque eu acho que quem começou antigamente,
começou num campo aberto e quem começa hoje, começa num campo mais fechado.
Maurício: Eu acho que este “antigamente” é um romantismo. Eu, quando comecei,
estava fechadinho com a psicanálise, que era a orientação por onde conseguíamos
pensar. Que fazer com tudo que acontecia para além daquele modelo (nem vou dizer
consultório, pois já era quebrado pelo institucional)? Eu tinha uma crença na lógica
significante, discursiva, e toda uma outra dimensão “corporal” só foi se acrescentando
depois, com uma abertura. Eu poderia ter me mantido na fé daquele campo mais
estabilizado, mais restrito. Portanto, eu penso que há aposta de cada um de nós,
quando vamos encontrar aquele que está chegando, em como fazemos isso. Primeiro
experimentamos, depois é que vamos pensar no que se experimentou. Então, trata-se
de uma aposta nessa abertura que vem antes, nesse desconhecimento que vem antes
do conhecimento. São apostas que vamos fazendo. Nisso, a todo momento, estão
presentes nossas defesas, que agem para nos proteger dessa maluquice que é a
angústia louca.
Kleber: Tem gente que já chega com uma referência ou lê alguns textos aí, mas tem o
frio na barriga que vai estar lá sempre, e nada vai substituir o encontro. Se esse
encontro acontece mesmo, essa proximidade, você vai ser formado, vai ser
surpreendido por isso, por esse encontro, por essa vida, pelas experiências. Daí
qualquer coisa vai ser reformulada, descontruída se o encontro acontece mesmo. Eu
falo para os meus alunos, o meu princípio é a frase do Vicente Matheus, alguns não
conhecem o que era presidente do Corinthians, mas a frase que eu mais gosto é:
“Quem tá na chuva é pra se queimar”. Vai lá! Quem vai acompanhar não vai voltar o
mesmo. Se ficar o mesmo, algo está estranho.

186
Equipe: O AT é uma clínica que nos exige muita flexibilidade e permeabilidade para
lidar com as mais variadas situações e demandas. A necessidade e sermos inventivos
nos coloca o tempo todo em questão e nos convida a criar novas situações de
intervenções de circulação e de exploração de espaços. Cada vez mais, os
acompanhantes terapêuticos têm sido convocados para atuar dentro das instituições,
principalmente nas instituições escolares. Instituições com hierarquias, encomendas e
limites de espaços, do que é permitido ou não. Sendo assim, quais são os efeitos de
perdas e ganhos dessa prática de AT’s institucionalizados? Como o AT pode se
manter nesse lugar de inventividade quando trabalha dentro de uma instituição?

Maurício: Nesses últimos quinze anos trabalhando na parceria com as instituições,


muitas vezes o acompanhamento terapêutico acontece dentro do CAPS, na residência
terapêutica, no CECCO, que são espaços institucionais. Pelo que eu percebo, a
principal diferença em relação à instituição escolar é sua menor permeabilidade.
Minha experiência não vem do contato direto e sim de acompanhantes terapêuticos
que, às vezes, vêm conversar comigo isoladamente em relação à escola. É quando a
coisa, em geral, está difícil. Portanto, é uma compreensão bastante enviesada, pois
deve haver experiências muito fortes e móveis nas instituições escolares. As
obrigações curriculares da instituição escolar a diferencia das experiências nas
residências terapêuticas, no CAPS, no CECCO. O CECCO é um lugar por onde você
passa, não tem muito gancho para ficar preso por ali. A residência terapêutica tem
muitos ganchos, mas essa característica do acompanhamento terapêutico de pensar
para além do que está já dado segue muito vigorosa. Aproveito para dizer que essa é
uma característica do acompanhamento terapêutico: o que se chama “saída” ou, como
vocês observaram, se chamava “rua”, significa o para além da cristalização da vida.
Às vezes é, inclusive, dentro do próprio quarto que se vai para além da cristalização.
Isso, numa dimensão material que ultrapassa a discursiva, que também é uma
condição imposta pela psicose.
Penso que no trabalho com as instituições que parecem ser mais duras e hierárquicas,
mais difíceis de mexer, a presença do acompanhante terapêutico problematiza o por
quê a instituição é tão dura. Há, no mínimo, uma pergunta enquanto eu fico andando
pelo pátio com aquele moleque que não para quieto e fica atormentando todo mundo.
Novamente, penso que aí, mesmo na instituição hierárquica e enrijecida, paira o
problema provocado pela instabilidade, pelo desencaixamento. E então, o

187
acompanhante terapêutico respira, não fica doente como o acompanhado, faz questão:
“mas por que é assim há tanto tempo?”. Caso contrário, adoeceria.
Kleber: Então, esse é um outro campo importante, onde a gente já tem inserção.
Ainda mais depois que a questão da inclusão passa a ser lei. Eu tive a oportunidade de
ver a experiência de um rapaz que eu acompanhei e estava numa escola particular, as
escolas públicas então também tem uma dificuldade imensa, não é? É complexo,
porque tem a lei que nos diz para incluir, e aí o professor que já tem uma realidade
enlouquecedora ainda tem mais um aluno ou dois com dificuldades muito peculiares.
Então, precisa de apoio. Às vezes, a escola tem um ou dois funcionários que ajudam
nas atividades, no cuidado de vida diária: ir ao banheiro, comer, etc. E aí surge a
figura do at também, demandado de forma particular ou às vezes por parcerias, como
nos estágios. O desafio é como poder estar lá e ajudar, promover e não atrapalhar, mas
que isso seja uma inclusão de fato. Porque o que eu vi na minha experiência é que,
muitas vezes, trata-se de uma tentativa de encaixe de todos os conflitos que surgem aí.
Uma expectativa de que o outro se comporte como o restante. Eu lembro que eu fiquei
chocado com a situação de um garoto que eu acompanhei como at particular, ele
estava nessa perspectiva de inclusão em uma escola e aí a avó me mostra o boletim e
o parecer dos professores. Ao invés de vir o boletim e um comentário, vinha a
psicopatologia pedagógica. Fiquei perplexo: ‘Mas o quê que é isso? Onde é que nós
estamos?’. Era isso que vinha para os pais, os pais recebiam a cada bimestre. Pra mim
era um absurdo. Era um discurso de inclusão, mas eu via ali o preconceito, a
discriminação, a forma de tratar. Ninguém vai estudar e no final do bimestre recebe a
psicopatologia pedagógica seguida de seu parecer, de sua discussão. A escola é o
lugar que a gente passa muito tempo da nossa vida. A gente passa muito tempo em
casa, a gente passa muito tempo na escola, vai passar um tanto no trabalho, se
conseguir trabalho. A escola é um lugar onde muitos vão passar experiências de
socialização. Tem muita coisa pra ser trabalhada, e é preciso trabalhar dentro do
contexto, tentar sobreviver, tentar escolas que permitam mais, que tenham mais
permeabilidade. Tem escolas que vêm com esse discurso de um projeto de inclusão,
mas na verdade promove apenas um encaixe, não há de fato uma perspectiva da
inclusão.
Equipe: Atualmente, algumas escolas têm constituído equipes de inclusão. E aí a
questão é: como faz um AT que é contratado por uma empresa e tem que responder às
demandas daquela empresa, daquela instituição? Qual a potência que se perde? E qual

188
é a potência que se ganha também? Porque nessa perspectiva da inclusão da escola
tem uma briga muito antiga para que a escola se responsabilize pelos alunos e não
contrate pessoas de fora (pagas pelos pais) pra cuidar dos alunos que não aprendem
como todos os outros. E agora as escolas começaram a contratar esses profissionais.
Ao mesmo tempo, tem uma parte que delimita geograficamente mesmo, há muros ali
que impedem os alunos de sair. Então eu não sei se passa só pela escola a dificuldade
que o AT encontra de ter que responder a uma demanda que não é de uma construção
singular lá com o sujeito. É de uma construção que é coletiva, de um pedido que vem
hierarquicamente de outro lugar.
Maurício: Isso me faz pensar até onde conseguimos ir? São construções.
Conseguimos ir até certo ponto com cada um desses sujeitos que não respeitam o
currículo. Ao mesmo tempo, até onde a escola consegue ir? Talvez haja um
impossível, porque a escola é dura, ela tem que cumprir as diretrizes do MEC. Então a
questão é até onde ela consegue ir deixando de cumprir o seu currículo, porque a
única possibilidade do sujeito existir ali, com sua singularidade, é jogando fora o
currículo do MEC. Porque esse sujeito não necessariamente sabe que existe “Brasil”.
Então, quanto conseguimos construir nessas duas direções, curricular e não-
curricular?

Equipe: Como vocês enxergam a inserção do AT na saúde pública? Existem


diferenças em estabelecimento do vínculo entre acompanhante e acompanhado no
contexto privado em relação ao contexto público? Em outras palavras: há
repercussões clínicas se o pagamento por esse atendimento venha do paciente ou de
órgãos públicos sociais?

Kleber: Tinha uma brincadeira que a gente fazia no grupo em que eu estava aqui da
equipe de ATs, era assim: “se a gente tiver um surto, se a gente tiver uma crise, nós
não vamos poder ter o acompanhante terapêutico”. Essa é uma brincadeira que a gente
fazia. Pois sabíamos já que o particular é um tratamento caro. Aqui (Instituto A Casa)
era caro. Na área da dependência química então, se o sujeito não cheira o patrimônio
da família, ele gasta tudo no tratamento. Como esse recurso que surge no âmbito
particular pode ser usado no âmbito público, acessível pra outras pessoas, outras
situações, outras condições? Algumas cidades criaram a figura do acompanhante
terapêutico, fizeram seleção para o serviço público. Eu acho que os ats, quando se

189
inserem nas universidades, nos estágios dos cursos de formação que tem parcerias
com instituições públicas, trazem outras questões, onde o pagamento não está
colocado. Tem questões, tem repercussões clínicas, mas eu não acho que são assim
tão fundamentais. Pela experiência de estágio, eu dou supervisão por Skype pra uma
dupla de acompanhantes lá de Salvador que vêm de uma experiência de AT na
universidade, onde o atendimento é em dupla. E elas dizem como é mais difícil agora
no tratamento particular, que está atravessado pela questão do pagamento: a
necessidade de ganhar, o temor de perder aquele trabalho e como isso também
interfere na forma de agir, na forma de intervir, muitas vezes. Então, no espaço
público ou no acompanhamento onde não há pagamento, pelo menos na experiência
que eu tenho, há limitações mas há também uma liberdade, outras possibilidades.
Maurício: Minha experiência destes quinze anos, basicamente na rede pública, não
envolve pagamento. Penso de forma semelhante a que Kleber fala. Na experiência da
crise psicótica e da reconstrução psicótica, o dinheiro não é um significante, já que
essa relação de troca monetária está muito alterada. Na maior parte das situações, é na
família, nos pais, e não na experiência com os acompanhados que isso vai fazer eco.
Nos tratamentos particulares, eventualmente algo se depositará no dinheiro. As
depositações psicóticas acontecem sobre o enquadre. No serviço público o dinheiro é
elemento a menos. Essa é a grande diferença.
Kleber: Na experiência que a gente tinha aqui na Casa, a questão do pagamento era
trabalhada por outras pessoas, pelos terapeutas de família ou pela própria instituição.
Os ats ficavam preservados, raramente éramos afetados por esses dilemas. Mas o que
eu vejo no campo particular que não está atrelado a uma instituição, é que as famílias
às vezes boicotam, não pagam mesmo. Querem ter acompanhamento mas não estão
muito preocupadas, às vezes tem um cansaço de gastar dinheiro com essa figura (o
acompanhado) que já queimou um monte de coisa.
Maurício: Há outra parte da pergunta que é sobre as diferenças no vínculo. Parece-
me que a vida precária da grande maioria dos freqüentadores dos CAPS, dos
CECCOS e das residências terapêuticas acaba por gestar uma vida mais móvel do que
a vida daqueles que vivem em um lar com papai e mamãe preocupados. A casinha
burguesa pode significar uma dimensão de proteção e engessamento, inimaginável
para esses que tem que ir e vir (algumas vezes porque nem casa tem), criando um tipo
de relação plástica com a cidade que determina as coisas do acompanhamento
terapêutico.

190
Além disto, existe a conversa cheia de com prós e contras em relação à inserção do
acompanhamento terapêutico na saúde pública, sobre oficializá-lo em uma função de
carreira no organograma do Estado. Gosto da experiência do grupo “Trilhas” que fez
uma parceria interessante com a secretaria de saúde do município de Guarulhos.
Como grupo autônomo e independente, realizam a seleção, supervisão, indicação, e
todo o atendimento de acompanhamento terapêutico, em contato com os diversos
equipamentos do município. Os acompanhantes terapêuticos estão exteriorizados e
são pagos pela prefeitura – uma exterioridade que eu prefiro.
Equipe : Mas nesse sentido, acho que a clínica do AT não é eficiente para a
temporalidade exigida na gestão pública. Eu trabalhei em CAPS como psicólogo (já
sendo at) na época do Kassab e, depois, do Haddad e, já naquela época, ser at ali
dentro tinha algumas perspectivas, algumas visitas domiciliares, enfim, ser at com
outro nome ali, com outras possibilidades, era ineficiente à visão do gestor. Você
demorava horas pra chegar na Kombi do serviço, ou você pegava o próprio carro, a
própria moto pra ir lá no meio da favela acompanhar aquele caso que achava que
acompanhar fazia sentido. E você podia demorar quatro horas do seu dia pra fazer
isso. Essa clinica não clama por rapidez, o ser humano não é eficiente. Só que o
serviço público tem demandado por eficiência. E aí eu fico me perguntando: como
lidar com algo tão ineficiente dentro de uma exigência de eficiência?
Maurício: Que ressoa com a problemática da escola também.
Equipe: Eu estava pensando nas diferenças das escolas. O próprio Benedetto
Saraceno concebe o adoecimento como uma forma de exclusão da possibilidade de
compra, do poder de troca. A escola italiana faz essa leitura que leva em conta a
sociedade em que se está inserido. A miséria e a loucura têm um parentesco nesse
sentido. Nessa lógica, de que se trata esse trabalho nessas situações que são pagas,
que tipo de clínica é essa? Que tipo de adoecimento psíquico é esse? Por outro lado, o
que é estar apartado de algum lugar no poder de troca? Só pra esfumaçar um pouco,
porque aí é uma concepção outra, do que é a reforma psiquiátrica e o que é o AT.
Maurício: Você traz a lembrança deste momento comunista excepcional no nordeste
da Itália, que não é da Itália toda. Ali houve condições muito favoráveis para poder
suspender todo o pensamento psiquiátrico e fazer investimento em sujeitos de direitos.
Para Basaglia e seus companheiros, naquele momento o mais importante não era o
adoecimento, não era a psiquiatria. Como propor uma estratégia que teria que
começar por dar condições de tratamento a 90% da população, garantindo mínimos

191
direitos individuais, quando nós ainda não chegamos nem à Revolução Francesa?
Equipe: O psicótico não pede ajuda, quem pede é alguém a quem você vai ter que se
reportar em algum momento. Você tem um compromisso com aquele sujeito ali, mas
você também está reportado a uma outra instância. Seja particular, seja o Estado, seja
uma escola, seja o psiquiatra que vem falar: ‘eu quero que você...’.Tem uns pedidos
de psiquiatra, hoje em dia, que tem uma lógica comportamental. ‘A gente queria que
ele conseguisse se enquadrar’. Então, a gente está sempre se havendo com isso.
Kleber: O Leonel Dozza fala uma coisa interessante com relação a essa demanda a
que vocês estão se referindo: ‘ah, então justifique, fundamente o que você vai fazer.
Fale dos objetivos com esse passeio”. Ele fala uma coisa interessante, diz pra você dar
uma justificativa dentro do que você sabe que eles estão esperando. Porque qualquer
saída, qualquer passeio é justificável. Justifica e vai e faz lá o que for pra ser feito.
Equipe : Pensando nisso que o Kleber estava dizendo, eu faço AT com algumas
crianças que tem o diagnóstico de autismo e tal, e geralmente essas crianças tem um
acompanhamento também de equipes comportamentais. Então eu tento, com muito
esforço, muita abertura, fazer parceria com essas equipes também. E, atualmente, eu
tenho feito uma parceria mais próxima com uma dessas equipes, e é muito
impressionante como as saídas precisam ter um propósito, eles esperam um propósito,
ou se não tem um propósito, eles precisam ver, acho que nem é pra entrar na questão
da comportamental, senão a gente vai longe. Mas eles precisam ver um resultado
efetivo. Então, se ele come banana e não come maçã, eles precisam oferecer maçã
para ampliar o repertório de alimentos, coisas assim. E os médicos, os psiquiatras, os
neurologistas sempre tem a tendência de, principalmente quando é uma questão da
infância, encaminhar para esses profissionais. E aí eu fico com essa preocupação do
quanto vai se perdendo da experiência, do encontro. O encontro pode produzir muito
se estiver livre dessa demanda primeira. Mas, enfim, acho que é mais uma família
doente aí. Na expectativa de padronizar um sujeito, como se todo mundo tivesse que
ser igual e não cada um com a sua particularidade, seu jeito de estar no mundo.
Maurício: Nosso momento histórico é o de um mundo que vai se tornando
mecanizado. Um mundo do controle, que determina modos de se comportar, modos
de existir. Não é o mundo da “liberdade”, é o mundo do controle. Talvez os
acompanhantes terapêuticos estejam particularmente atentos a isso porque lidamos
com os processos de subjetivação/dessubjetivação.
Equipe: Queríamos ouvir um pouco mais sobre essa diferença que você falou,

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Maurício, que você percebe nas manifestações da loucura na saúde pública e privada.
Além desse aspecto da circulação, o que mais que você percebe de diferente?
Maurício: Serei toscamente marxista: tem uma questão de classe. Tomo como
exemplo, a experiência do pessoal que está no estágio em acompanhamento
terapêutico e que vai para a favela. Que significa para mim (eu que moro em Perdizes
ou o acompanhante terapêutico que estuda na USP, na PUC) ir à favela? Existe uma
diferença (de classes) que conturba o pensamento da clínica – o referencial da
psicopatologia, da transferência, do tratamento. Lembro-me do acompanhamento de
um paciente que morava no bairro de Higienópolis. Eu podia entender aquela família
de um jeito mais traduzível para mim do que quando escuto outra experiência com a
qual já não me conecto com facilidade. Estou pensando, por exemplo, no medo de ir
acompanhar o sujeito que mora lá na quebrada, na tensão de ir até lá. Onde só se vai
depois de ter ido duas vezes com o pessoal do CAPS, depois de ter sido apresentado
para que todo mundo veja que você vai chegar lá, para obter o reconhecimento social
que te autoriza chegar lá. Então, essa prova pela qual é necessário passar faz um
monte de efeitos em você que não ocorrem quando você chega à casa do fulano em
Higienópolis, estaciona seu carro, e sobe lá no vigésimo sexto andar. São tantas as
diferenças que eu nem sei como que a gente pode tratar isso...
Equipe: Eu estava pensando também na questão da residência terapêutica onde eu
trabalho. Tem uma senhora que era moradora de rua, por muitos anos. E ela veio de
um diagnóstico psiquiátrico, nunca foi internada. Mas fizeram um contato pra ela ir
pra residência terapêutica porque ela estava envelhecendo na rua. E chega com
diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia paranóide. Aí você vai escutando, e esse
diagnóstico parece tão fora da realidade, independentemente de ser psiquiátrico ou
não. Acho que é um pouco do que você está falando talvez, Maurício. Ela tem uma
corcova extremamente acentuada, aí você pergunta. Por quê? O que aconteceu? Ela
tem algum problema físico? Mesmo os consultórios de rua, aqui, ali, vêm de um
universo econômico-social como o nosso, não é? E que diagnostica aquela corcova
como um problema na lombar, mas quando você vai escutá-la sobre o quê que
aconteceu, como que é a sua vida na rua... Ela falava: “Eu não dormia, eu fiquei dez
anos sem dormir. Eu dormia sentada, porque a prefeitura vinha e tirava meus
pertences”. E, realmente, isso acontecia. Quer dizer, era uma questão de vigilância,
sobrevivência, sabe? Não é uma questão de paranoia, era uma questão de proteção
porque ela podia ser roubada.

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Maurício: É preciso pensar tudo diferente.

Equipe: A rua era uma categoria fundamental no nascimento do discurso do AT. Ao


levar a loucura para a rua fazia-se clínica e política. Não é à toa que os ATs nasceram
num contexto de ditadura e desinstitucionalização. Mas como a rua opera no AT hoje?
Ainda é um horizonte a ser alcançado? Temos acompanhado muitos jovens que vivem
em relações virtuais de trocas dentro de suas casas em computadores e videogames.
Qual poderia ser o sentido da rua para eles?

Maurício: Nos últimos trinta anos aconteceu uma revolução tecnológica. A rua é da
época em que os personal computers estavam começando a chegar ao Brasil e existia
uma barreira de importação. Não se podia importar PCs nos anos 80.
Kleber: Pra proteger a indústria nacional.
Maurício: Só se conseguia o computador por contrabando. A ideia de rua é daquele
século, do milênio que chamou 2000. Penso que a ideia de rua quis marcar aquilo que
não era institucional. Que não era muro, não era físico. Tudo que estava fora dos
lugares de tratamento que conhecíamos. O hospital-dia, de certo modo. “Rua” tinha
esse sentido de exterioridade em relação a lugares que estavam muito pré-
determinados. Começava no hospital psiquiátrico, e passava pela psicanálise da
sociedade psicanalítica que exigia sessões quatro vezes por semana. Rua era isso,
literalmente, ir pra rua! Atualmente a idéia de rua ficou mais complexa, perdeu sua
exclusividade material e ganhou virtualidade com a tecnologia digital. Acredito,
porém, que se manteve a ideia de rua como lugar para o acompanhamento terapêutico,
por exemplo, quando você faz a função dessa exterioridade dentro da família. Sei que
Kleber era uma das pessoas que falava isso, punha em questão onde era rua dentro do
quarto. Ou seja, não é por estar no quarto que você esta necessariamente dentro, nem
que por estar dentro do quarto você não faz acompanhamento terapêutico.
Kleber: É, foram situações que foram surgindo. Pessoas que falaram: ‘Ah, eu não fiz
acompanhamento, tô há seis meses dentro do quarto. Na porta, do lado de fora,
trancado’. Ou se a intervenção se dá mais dentro da casa, que é isso? A forma de
nomear, não sei como vocês estão chamando hoje, acho que ainda chama-se ‘saída’.
Ela também gera uma expectativa, a perspectiva da rua gera tensões, angústias.
Equipe : A gente não fala mais ‘saída’. É ‘encontro’ acho.

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Kleber: É esse nome que eu tenho usado, ‘encontro’ , e daí pra mim não é tanto uma
questão da rua, mas do encontro no mundo. Tem um garoto que a gente está
acompanhando numa das clínicas-escola, ele tem 20 e poucos anos. Parou de estudar,
ele joga, conversa com pessoas, fala inglês que aprendeu na internet, joga com
pessoas do mundo todo, mas é aquele mundo restrito, aquele grude com a mãe, aquela
ligação com a mãe. Ele vai voltar a estudar quando a mãe for junto, eles fazem planos,
ele e a mãe. Assistem as séries, tudo junto. E outro dia, um tempo atrás, foram
conhecer um colega de jogo lá no Rio Grande do Sul. Começa a haver algo concreto
na vida, que se inicia no jogo.
Maurício: Então, a “rua”, a “saída”, guardam uma ressonância que é dessa ordem.
Carregam uma materialidade que caracteriza a possibilidade particular do
acompanhamento terapêutico que é a concretização das coisas do mundo. Neste
sentido, é diferente de outros espaços de elaboração, como o espaço da sessão. Agora,
porém, com a novidade tecnológica que não existia há trinta anos atrás. Com a
mudança das organizações sociais causadas pelas redes internáuticas, temos que
pensar o que é sair, o que é rua nessa dimensão incorporal, imaterial que se
intensificou. Aqui, Foucault e Deleuze são valiosos: sociedade disciplinar, sociedade
de controle, corpos docilizados, incorporais... Que corpos são esses, os incorporais?
Onde está a rua nesses trânsitos? Quantos trânsitos virtuais? Como o que você falava
do menino que se comunica, que cria através da sua equipe de jogo. Ele é líder de
uma equipe. É uma experiência de alteridade que está acontecendo. Ele constrói um
pensamento.
Equipe : E quando tinham muros, fora e dentro eram bem delimitados. Já o virtual é
isso, ele pode ter uma relação de fora, dentro do virtual, de um jeito bem concreto
como até falar no fone com alguém, enfim. É possível ter uma conversa, ter relações
virtuais via internet e tudo mais. Fica difícil entender o quê que seria o fora almejado
pelos ATs. É sair mesmo aí para o Rio Grande do Sul ou de repente é ter uma vida ali
possível “dentro” do virtual? Porque também não existe, exatamente, um “dentro” do
virtual.
Maurício: Nosso desafio é construir compreensões com todos esses elementos. Estou
pensando em Deleuze, Guattari, Foucault, que conseguem imaginarizar o
contemporâneo. Que há outras vidas possíveis, outros possíveis. E em outra ponta,
moram os Yanomami. Eles também imaginarizam, e voam longe sem sair do seu
lugar. Eles também constroem universos virtuais, e os habitam de maneira

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impressionante. Com os ameríndios, podemos dispensar toda a tecnologia moderna e
ir à Amazônia entender o que é virtualidade. Tanto quanto os ameríndios, os pacientes
vão exigir que pensemos isso. Uma coisa é a rua, outra é o virtual.
Equipe: Existem encontros que se dão, de fato, fora da rua. Isso é interessante porque
é um virtual, claro, mas é um virtual diferente daquele virtual vodeogame dos anos 80
em que não tinha o virtual com alguém. É interessante, quando a internet conecta as
pessoas em uma sala de bate papo. E se acontece alguma coisa que desagrada, você
desliga o botão e acabou!
Equipe : Vai se criando um outro jeito de estar com as pessoas também, no virtual.
Porque às vezes o virtual ajuda os pacientes a se conectarem com outros, e se eles não
tivessem isso, talvez eles estariam ainda mais enclausurados. Mas às vezes também
serve como algo que acomoda, que engessa.
Kleber: Eu lembro que eu participei de um congresso internacional de saúde mental e
vi trabalhos do mundo inteiro, uns a respeito de intervenções via internet em saúde
mental. Então, na realidade grega, por exemplo, a pessoa tem um surto numa ilha e
precisa ser levada pra um serviço em outra ilha. Dependendo das posições das marés,
não tem como levar. Então tinha todo um serviço de intervenção que era virtual. Você
orienta, você faz intervenções. Agora, em Taiwan, tinha serviço para os viciados em
internet. Os viciados em jogos. Pessoas, portanto, que são acessíveis pela internet.
Você começa a tratar pela internet., não tem como acessar de outro jeito. Então aquela
problemática que saiu nas noticias, de ter muita gente morrendo porque fica jogando e
o corpo entra em colapso. Teve uma polêmica lá na Coréia do Sul, o país que tem a
maior banda larga. Um casal jovem que teve um filho e o filho morreu porque não foi
cuidado, mas no jogo eles estavam cuidando de criança. Estavam capturados lá no
jogo virtual, e o filho morreu de fome. Morreu por descuido. Que que isso, né? Que
mundo é esse? Você está lá, fazendo uma série de ações, mas não a ação no mundo ali
com um filho real.
Equipe : Vocês fazem atendimento por internet, por Skype?
Maurício: Já atendi antes e atualmente atendo um paciente. Mas sempre ex-pacientes
ou circunstâncias da análise. Não tenho a experiência de ter atendido por Skype desde
o início. A questão é se você topa construir uma transferência nessa atmosfera.
Atmosfera televisiva, não é? Onde o corpo é uma imagem azul.

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Kleber: Eu tive uma experiência em que marcamos alguns encontros no consultório e
aí, como a pessoa viajava muito, então atendia por Skype. E quando estava no Brasil,
vinha pessoalmente. Então, é isso, não tenho essa experiencia de começar pelo Skype.
Equipe: Mas já ouvimos falar de serviços virtuais. Você procura um psicólogo pela
internet. Tem um negócio chamado ‘Fala Freud’.
Maurício: Retomando isso que Kleber falou, se inicia virtualmente o atendimento em
Taiwan, e mantemos a expectativa de um dia vir a encontrar esse sujeito. Como se só
então, as coisas fossem realmente se encarnar. Talvez daqui uns cinquenta anos isso
não será tão importante. Eu estou pensando nas situações psicóticas, certas vidas com
os quais só se pode começar através do virtual. Acontece uma curiosa aproximação
entre o virtual a psicose como corpo não integrado, como existência inconstituída,
diversa do corpo-unidade que costumamos almejar.
Equipe : No sentido de uma realidade mais delirante?
Maurício: Não, a forma mesmo de constituição psicótica que está mais em sintonia
com essa virtualidade, dos esquizos, por exemplo. Nossos mais recentes
desenvolvimentos societários, talvez os futuros, nos levarão para uma dimensão em
que os corpos irão se virtualizar, se dissolver, se esquizar?

Equipe: O AT é muitas vezes a primeira experiência prática de um terapeuta. O que


acham dessa inauguração pela psicose? Como essa experiência forma um AT e mais
ainda, o que acham fundamental para o exercício do AT?

Maurício: Antigamente, recomendava-se começar com as crianças. A experiência


menos lesiva se daria com as crianças.
Equipe: Menos lesiva pra quem?
Maurício: Para as crianças. Coitadas! Supunha-se que as crianças não seriam
prejudicadas, “são tão pequeninas...” Alguns dos psicanalistas de antigamente, que
vieram dessa experiência com as crianças, dizem que o acompanhamento terapêutico
deve ser a última função de um psicanalista. A última coisa a se fazer porque é muito
sofisticado fazer o trabalho analítico fora do setting protegido. Eu imagino que aqui
entre nós todos começamos a clínica através do acompanhamento terapêutico. Aí
fizemos nossas inaugurações, quando éramos estudantes. A experiência da clínica nos
foi apresentada assim: a partir das internações. Já sabemos que vamos com nossas
defesas para esses encontros, que são angustiantes demais. Angústias avassaladoras.

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Entretanto, a percepção do sofrimento psicótico é diferente para quem começa a
formação primeiro em contato angústias neuróticas ou para quem inaugura a clínica
partindo do contato com as angústias de aniquilamento. Quando entramos por essa
porta, não é tão aniquiladora assim a angústia de aniquilamento. Parece-me que se
cria outro sentimento, outro código, no terapeuta. Bauleo pensa os trabalhadores de
saúde mental que começam a formação através da instituição psiquiátrica, sem a
formação analítica. É claro que esse processo de formação também é um processo,
esse trabalhador se torna um terapeuta, constituído na mistura de várias disciplinas,
pois na instituição ele aprende junto com terapeutas ocupacionais, enfermeiros,
oficineiros, seja psicólogo, psicanalista ou psiquiatra. Bauleo apostou em uma
formação sem especialismos, diferente da formação concebida como carreira. Parece
que o acompanhamento terapêutico significa entrar por essa porta, começar de outro
jeito. Será necessário esperarmos certo tempo para compreendermos os efeitos de uma
formação que começa se construindo pela experiência de acompanhamento
terapêutico.
Equipe: Você percebe quais as diferenças?
Maurício: O acompanhamento terapêutico trabalha em um cenário muito complexo.
Hoje, a diferença é que você pode, primeiro, ter uma mínima base para então entrar
nessa. Paradoxalmente, não nos aconteceu isso, o que também foi fundamental.
Equipe: Mas vocês devem lidar bastante com essa questão com os estagiarios. Os que
estão começando a clínica como ATs.
Maurício: Eu diria que, hoje em dia, continuamos intensificando a experiência
paradoxal que tivemos pessoalmente.
Equipe: Por também terem começado a clínica pelo AT.
Kleber: Até agora, eu colocaria entre parênteses “psicose”. Refiro-me àquilo que eu
falei no começo. Em certas instituições inicia-se o acompanhamento via experiência
com psicose. Na realidade, por exemplo, que eu vivo na universidade, no estágio, o
espectro é maior. Vai ter um grupo que vai inaugurar a experiência do AT pela
psicose. Tem gente que vai ter outros tipos de experiência. E é isso, os alunos vão
tendo experiência na clínica, num atendimento em diferentes perspectivas. Elege-se
uma perspectiva: psicanálise, fenomenologia e cognitivo-comportamental. São as três
opções da terapia individual. Lá eles têm essa opção: ser at, plantão ou jurídico. E tem
um outro grupo, que é hospitalar, comunitário, que pensa na comunidade, além do
organizacional. Então, muitos que começam hoje no AT vão tendo essas multiplas

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experiencias. Não vão começar necessariamente pela psicose. Agora, o que as pessoas
falam é que é uma experiência transformadora estar lançado na vida de alguém. Essa
vida de alguém pode ser institucional, caso seja uma criança ou adolescente que viva
num abrigo. Mas a convivência dá uma chacoalhada. Para o at, essa modalidade de
estar na vida, de encontrar, de circular, de conviver, é transformadora. O AT é um
trabalho que exige muito, mas eu vejo que as pessoas mais jovens ou quem está
começando têm muito mais disponibilidade, e, por outro lado, tem mais defesas, tem
menos “recursos”. Recursos teóricos, seja lá o que for, pessoais. Mas vêm com muita
disponibilidade e às vezes, muito diferente da formação, essa formação que a gente
tem na universidade, acadêmica. Essa disponibilidade tem a ver com o percurso de
vida, como a pessoa foi sendo formada. Por exemplo, pessoas que chegam ao mundo
e têm que ser pais dos pais. Você vê crianças lá no abrigo e o que elas já viram, o que
elas já viveram, pelo amor de Deus, a gente se assusta! Os Ats se preocupam: ‘e se ela
fugir?’, bom ela não vai fugir, ela já foge do abrigo...
Equipe: Vocês acham que há uma espécie de radicalidade na experiência clínica no
AT? De uma certa maneira, a intensidade muitas vezes que um at experimenta ao
acompanhar uma pessoa psicótica pode ser uma radicalidade, uma experiência que, no
consultório, depois, ou em uma clínica com neurose, ficasse fácil, vamos dizer assim.
Começa com o hardcore e depois fica fácil. Isso é uma ideia, pra mim, completamente
enganosa, porque eu às vezes acho a neurose mais vertiginosa do que a psicose, minha
experiência. Mas tenho a impressão de que passamos situações muito disruptivas com
a loucura, e que você ficaria bem treinado pra qualquer coisa. Tinha essa ideia do AT
como uma clínica radical, que radicaliza o enquadre.
Maurício: Quis dizer que me alegra ter começado desse jeito, porque penso que se
conseguimos elaborar essa experiência que você está chamando de radical, nos
tornamos sujeitos mais abertos. Somos obrigados a nos desdobrar. Reconstruímos
uma capacidade de tolerar, que é também de realmente se acomodar, se avizinhar a
formas completamente diversas de existência. Ganhamos tolerância, nessa sociedade
intolerante.
Equipe : O próprio Freud diz: muitas das diferenças são diferenças de gradação entre
o normal e o patológico. Então, eu fico pensando aqui, pra quem tem a oportunidade
de experimentar conviver ou cuidar de pessoas com patologias mais graves, a gente
também, de alguma maneira, alarga o nosso repertório.

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Kleber: Agora o que eu acho da prática de ter essa experiência no final da formação
ou no início da carreira profissional, é que, nela, tem uma riqueza, ganhamos um jogo
de cintura, uma abertura de poder pensar o que é clínico, o que é terapêutico.
Maurício: Talvez tenha a ver com um certo frescor que existe no campo do
acompanhamento terapêutico. Estou pensando na dimensão superegóica das teorias
psicológicas, psicanalíticas, bem estabelecidas. Penso que essa coisa menos formada,
forma.
Equipe: Mas aí pensando essa hiperformatação dos novos ats, tem varios cursos que
seguem linhas muito retas do que é o AT, cada vez mais a gente percebe isso de fora.
Será que essas teorizações todas do que é o AT trazem o efeito de perda dessa
liberdade de errar e de uma diversidade de formas de entendimento da clinica?
Kleber: As defesas podem ir pra qualquer lado, podem se servir da hipertrofia da
teoria conceitual. Acho que o risco é que a experiência em si perca espaço. Quando a
teoria, uma determinada teoria, ou teorias se interpõem naquele encontro que é
sempre uma possibilidade. Mas eu coloco fé nessa situação do próprio encontro, na
situação concreta do acompanhamento. Porque, às vezes, a pessoa vem com essa
coisa formatada, mas resolve “chutar o balde”, por alguma situação do encontro, há
uma chance muito grande de se deparar com as próprias inseguranças. É necessária
uma abertura para a alteridade.
Maurício: Como Kleber dizia, não temos garantia nenhuma em qualquer dimensão.
Por que precisamos desta garantia? Entendendo que a dinâmica social se inclina à
institucionalização, vamos conseguir escapar disso? Talvez numa ação meio marginal,
guerrilheira talvez, tensionando a grande tendência societária que adora as
formatações. Aqui, se tratará de pensar as tensões.

Equipe: Muito frequentemente a prática do AT nos exige uma situação de


empréstimo do próprio corpo para situações limite. Experimentamos afetos em estado
bruto. Somo convocados à um trabalho permanente e invenção de novas formas
clínicas. Uma plasticidade se faz necessária, muitas vezes diante de forças de muita
violência e exclusão. Tendo isso em vista, como vocês observam os efeitos e as
marcas desse nosso ofício sobre o próprio corpo de vocês, após esses longos anos de
trabalho nessa clínica?

200
Kleber: Eu acho que poderia começar falando de quando eu me dei conta de não ter
mais disponibilidade. Eu acho que eu mencionei antes, não sei se foi aqui que eu falei.
Um cara me contratou como acompanhante, e ele queria ir a um barzinho, queria
dançar E a gente teve uns quatro encontros e eu vi que ele precisava disso. Era um
cara funcionário público, super introvertido, algo esquizoide, se a gente quiser falar
em termos psicopatológicos. Mas ele queria que eu o ensinasse a dançar, queria
paquerar. Eu vi que já não dava mais. Daquele jeito já não dava mais. Eu reconheci
isso e falei pra ele: ‘ Olha, acho que isso que você está falando é importante. Tem
tudo a ver. Mas eu não tenho mais condições de fazer isso, bancar isso. Mas conheço
uma pessoa que pode te ajudar nisso’. E indiquei ele para alguém que eu sabia que
tinha mais fôlego pra isso. Esse momento ainda não foi o final dos meus tempos de
acompanhamento. Eu ainda acompanhei um rapaz jovem que tinha uma deficiência
mental, por questões da epilepsia. E acompanhei alguns anos. Curti. Aquela situação
eu curti. Mas com esse outro paciente eu me dei conta da minha saturação de certas
coisas. A gente carrega mesmo marcas no corpo, marcas na alma, que vem dessas
várias experiências que a gente tem. Mas eu destacaria mais essa, em que eu
reconheci um limite... eu me disponho a estar junto na supervisão, na formação,
acompanhando junto desse jeito. Agora acho que lá no front mesmo, já vejo que os
anos de acompanhamento que eu fiz estão de bom tamanho.
Maurício: A pergunta suscitou duas coisas diferentes. Uma diz respeito à exigência
das demandas, à angústia do outro, à exclusão, tudo isso... Não há idade para isso.
Estaremos sempre no encontro com essa dimensão das coisas, sempre muito difícil. O
sujeito que suicida, as situações limite... Isso não depende do tempo, isso cria marcas
no corpo, exige trabalho analítico nosso. Se pesar demais, adoecemos! Seja no
consultório, seja como acompanhante terapêutico, é a conversa infinita. Porque aí se
trata do encontro com o outro.
A outra coisa diz respeito ao tempo que passa. O que Kleber está falando me faz
lembrar que já não vou mais no boteco que ía quando tinha 30 anos porque faz muito
barulho para mim. Eu tenho a sensibilidade dos velhinhos. Se penso no
acompanhamento terapêutico, saltaria aos olhos a discrepância de estar em uma
balada entre jovens, e eu com cabelo branco...
À medida que acompanhantes terapêuticos continuarem a fazer acompanhamento,
haverá mais variações. Não serão apenas jovens atendendo senhores idosos. Quais
serão as proposições, os programas, que um acompanhante com seus cinquenta anos

201
pensará fazer? Dá para fazer algumas coisas, ninguém pode fazer tudo. Lembro-me de
uma jovem acompanhante que chegou para atender um senhor de setenta e poucos
anos, muito comprometido fisicamente. O senhor não gostou de ver aquela menina,
tão jovem e vigorosa. “Não sabe nada da vida”, disse certa vez. O encontro começou,
esdrúxulo e desconfortável. Foi a insistência em explorar o que causou este primeiro
impacto que fez aparecer, ao longo do acompanhamento terapêutico, a vitalidade
deste senhor.
Equipe: Mas quando você falou do ruído, pensei no ruído da intensidade da clínica,
que é bem esse.
Maurício: É sobre desejo! Talvez isso tenha a ver com a plasticidade, que é própria
do acompanhamento terapêutico. O enquadre psicológico, psicanalítico, tem menos
plasticidade, dá para fazer pequenas variações. Mesmo o hospital-dia não é tão
plástico quanto é o acompanhamento terapêutico. Tem uma grade. Grade! Bom nome
para pensar a falta de plasticidade.
Equipe: A estratégia do AT dá muito trabalho e exige uma disposição do
acompanhante pra chegar até o paciente, o que é totalmente diferente do consultório
(em que o terapeuta fica na espera). No AT é preciso esse direcionamento, essa ida e
essa vontade de ir porque às vezes é o fundamental, sem ela não acontece trabalho
nenhum. A maioria dos casos em que a gente vê é isso: vai lá, bate na porta, o
paciente não vem, você liga depois. Força motora. O AT precisa poder desejar pelo
outro, mas chega uma hora que você não sabe mais se tem tanto desejo assim pra
emprestar.
Maurício: Sim, mas isso é desejo, e interpretação. Às vezes, o psicanalista também se
vê em situações em que o paciente não vem para as sessões se você não liga, e então
você se questiona por que está indo atrás do paciente.
Kleber: Ou na própria sessão. Uma pessoa que você tem que carregar na sessão. Ou
ir busca-la...
Maurício: É o momento da tarefa auto-analítica, muito necessária. É Lacan quem
insiste que o cliente sempre tem razão. O problema é do analista se ele não está
surfando a onda. Vá entender o que não conseguiu suportar.
Equipe: O Lacan fala que a resistência é sempre do psicanalista.
Maurício: É nesse sentido que sempre há exigência de trabalho para o analista, o
terapeuta, o acompanhante terapêutico. É quando comprovamos que tem coisas que
não conseguimos mais.

202
Equipe: Nesse momento histórico-político do Brasil e do mundo, onde há fortes
tendências de divisões totalitárias e intolerantes, onde os sujeitos frágeis ou
fragilizados se vêem na iminência constante e terrorífica de desapropriação dos seus
direitos, em lugares territoriais e existenciais, como os êxodos em massa dos
refugiados de guerra africanos e árabes e a migração pra São Paulo, por exemplo, ou
mesmo a política da gestão municipal denominada Cidade Linda, onde os órgão
públicos expulsam moradores de rua do centro expandido, arrancando seus pertences
e documentos de modo totalmente ilícito dentre outras ações tirânicas atuais. Como
esse contexto afeta a clínica do AT e seu futuro?

Maurício: Quero responder esta questão da perspectiva da experiência com a psicose.


Dizer, primeiro, que a vida está sempre aí para ser vivida. Segundo, que na
experiência psicótica há uma dupla face: a coisa psicótica como desajuste – por
paralisia, lentificação, aceleração – e como uma espécie de denúncia de que há algo a
que não quero pertencer e que recuso a funcionar de acordo (embora sofra um
prejuízo enorme por não funcionar de acordo). Penso que na experiência psicótica
estamos nos interstícios dessa configuração hegemônica mais ampla – que podemos
chamar de capitalismo mundial integrado. Portanto, é preciso continuar nos armando,
nos fortalecendo, sendo sujeitos dos interstícios, afinal, é disso a coisa da psicose na
sua dupla face. Estar nos interstícios é problemático, pois há risco de afogamento;
mas é também onde é possível circular sem ser engolido por essas hegemonias, que
são tiranias. A experiência psicótica nos faz essa pergunta: como não ficar refém do
capitalismo mundial integrado? Estes interstícios são lugares de aprender a trocar e de
fazer um saber. De, em êxodo, continuar mudando.
Equipe: A gente acompanha os refugiados urbanos, né?
Maurício: Fazer aliança! A pergunta apresenta o agora: “E esse agora?” Eu pensei:
“Mas já faz tempo que a gente está nessa parada!”. Então seguimos caminhando. É
um aprender mais. Nunca vamos saber disso tanto quanto estes refugiados. Eles
atravessam coisas que eu não consigo atravessar. Eu não sou dessa tribo que consegue
viver profundamente nesse interstício. Eu aprendo.
Kleber: A Simone Weil, filósofa francesa, discutiu muito a questão do
desenraizamento. Eu acho que tem esse desenraizamento do próprio corpo ou habitar
o próprio corpo, o mundo, o contato com a natureza. E ela falava que o

203
desenraizamento é o pior dos males. Quanto mais se desenraizada uma pessoa, mais
ela vai provocar desenraizamento. Então acho que a gente vive essas situações, as
tiranias, o desenraizamento, que leva a uma busca de uma experiência de raiz. Essa
coisa nostálgica de elementos de encontro humano, de experiência humana que vai se
fraturando. E ela vai se fraturando de formas muito sérias. Temos a experiência de
comunidade nos grandes centros urbanos, essas coisas vão se fraturando, vão se
homogeneizando. Essa tirania do mesmo, uma coisa nessa perspectiva cultural da
organização das experiências. Por um lado, multiplica. Tem a experiência das
tecnologias, experiência da televisão que vai formatando também modos de viver, que
às vezes se perdem. Acho que não tinham antes dessas situações de desterro, de
degrado, de desapropriação das formas mais variadas possíveis.
Equipe: Você acha que isso é uma novidade?
Kleber: Eu acho que é um processo, ao meu ver, mais intenso. Não está dado. Eu
lembro de um congresso que eu fui de uma pessoa que era lá do grupo do (Franco)
Basaglia que falava ‘bom, teve uma conquista imensa, houve uma conquista’. Mas
aquilo não estava dado. O governo tentava aprovar leis, mas tinha o movimento dos
pais, dos profissionais que faziam resistência. Mas ele falava: ‘ Os campos de
migrantes, de refugiados , eles estão dopando’. Quer dizer, a carga de medicação que
os caras dão pra eles é terrível. Então já não estava mais no manicômio, mas estava ali
no campo de refugiados.
Equipe: Isso foi o Basaglia quem falou?
Kleber: Foi um contemporâneo, mas estava na época do Basaglia. Mas é isso, vi num
programa ontem que falava dessa questão dos refugiados, um homem falava:
‘Estamos sendo torturados. Éramos torturados em um país, hoje somos torturados
aqui’. Já estava lá, acho que na Grécia em um campo de refugiados. E era assim, a
forma como eram mantidos e tratados. Aquilo era uma violência. Eles falavam,
tinham clareza disso. A violência se reproduz de um modo ou de outro.
Maurício: Vou partir da noção de sintoma, mais precisamente a idéia de formação de
compromisso entre partes conflitantes, para pensar que, junto com esta tragédia de
refugiados produzida pelo desenraizamento, há outra produção que se aproxima da
figura do nômade. Esta figura secular, como os esquizos, o nômade faz do
desenraizamento uma coisa que flerta com o que antes chamamos de virtualidade. Por
motivações diversas, opostas talvez, os refugiados e os nômades são sinal de outras
formas de existência possíveis, fragmentos de um futuro que ainda não se formou.

204
Este estado potencial é o estado que sintonizamos ao entrarmos em contato com a
experiência psicótica.
Kleber: Agora, a clínica do AT e seu futuro. A clínica do AT e o futuro. Eu acho que
esse tipo de modalidade clínica em que a pessoa está mais próxima, compartilhando o
dia-a-dia, a vida, pedaços da vida nessa proximidade, ele só tende a crescer, porque a
coisa vai demandar do ser humano. Por mais que ele tente encontrar saídas, por mais
loucas que sejam, vai demandar a presença humana, a proximidade, um olhar que o
tecnológico não dá conta. Tem as demandas e as necessidades humanas. Não dá pra
deixar de ser humano e é isso, você pode jogar, você pode ficar ligado no jogo, mas
tem uma hora que seu corpo colapsa. Porque tem limite. Limite do corpo, limite da
sua dimensão. Então, vejo que as novas gerações também tem uma potência e uma
vitalidade.
Equipe: E que faz resistência, de alguma forma, a esse processo de desenraizamento
todo.
Kleber: Sim, que é dado pelo mundo. Isso que o Maurício falava, pela própria
formação. Uma formação que vai formatando, terrível. Mas acho que é isso, gente. E
corre-se o risco. E o Paulo no “Grande Sertão Veredas” falava uma coisa interessante:
‘Todo mundo é louco. Eu. O senhor’. Todo mundo é louco. Ninguém escapa. Na
terceira parte do livro também tem uma fala assim: ‘Ou todo mundo é doido ou
ninguém é. Vamos decidir!’ e ‘Qualquer sombrinha me refresca’. Mas é tudo muito
provisório, passageiro. Esse mundo, a vida, o ser, a loucura, essas coisas são fluidas.
Ainda assim, carecemos de coisas básicas. Algo como ‘vamos conversar, vamos bater
um papo’.
Maurício: Eu vou insistir nessas outras dimensões das relações humanas que estão só
aludidas. Os delírios, às vezes, as enunciam. É razoável supor que no futuro o
encontro seja predominante encontro videoconferencial. Então, os corpos se
representarão noutra consistência e a carnalidade dos corpos certamente ganhará
algum outro estatuto. Com esta ficção científica não quero perder de vista que estas
outras ordenações aludidas pelos sujeitos com quem convivemos, justamente estes
que se desarticularam do estabelecido, são também anunciações de outros possíveis da
existência humana.
Além disto, Kleber faz bem em localizar no futuro do acompanhamento
terapêutico essa coisa do cotidiano, de ir lá. Operar no cotidiano é uma
experimentação, uma novidade dos processos terapêuticos. Podemos tomar como

205
nossa referência as políticas da medicina preventiva com os agentes comunitários de
saúde – e com sua imediata decorrência, a reforma psiquiátrica brasileira.
Fundamentalmente, desenhou-se uma estratégia reticular, em que a assistência médica
foi às casas. Inicialmente no Ceará do começo dos anos 1980, agentes comunitários
foram, com suas bicicletas, até a casa das famílias das periferias levar o leite diário
das crianças, não sem deixar de benzer a mulher que tivesse dado leite para seus
filhos. O acompanhamento terapêutico é contemporâneo dessa ação.
Mas não podemos esquecer a advertência de Foucault que alerta para a
passagem da sociedade disciplinar para sociedade de controle. Segundo Foucault,
vivemos um tempo que não é mais tanto o de instituições disciplinando e docilizando
corpos, e sim o de governar movimentos de controle da vida, no pequenininho da
vida, no cotidiano.
Equipe: E é interessante porque falamos em disciplinar no neoliberalismo, bem
contraditória com a ideia do controle. Presumimos pessoas que tem seus direitos
individuais e suas liberdades asseguradas. Não é bem assim, então.
Maurício: Outro dia li a descrição dos três paradigmas em que se organizou a
indústria automobilística no século XX. Primeiro o taylorismo, da linha de montagem,
em que cada operário exercia uma única função todo o tempo, por exemplo, parafusar
a porta direita por anos; décadas mais tarde, desenvolveram o toyotismo, onde todo
mundo fazia tudo: as diversas equipes circulavam na linha de produção e os operários
de cada equipe cambiavam suas funções em prol da longevidade funcional. Por fim, o
volvoismo, em que o cliente monta o carro que ele quer, manda o projeto para a
fábrica que produz aquela exclusividade. É a industrialização do individual. Todos em
massa, cada um achando que está fazendo o seu próprio único.
Equipe: E é só uma ilusão.
Maurício: É a customização! A cereja do bolo neoliberal: industrializou-se o “só
você”.
Equipe: E quando você fala que o refugiado é um sintoma, você está pensando nisso?
Maurício: Sim! Interessa-nos estar nos interstícios disso tudo. Extraímos prazer em
pertencer a isso. Porque somos aliados desse pessoal das margens, estamos juntos
com eles.
Equipe: Kleber e Mauricio, foi muito bom recebê-los pra essa entrevista. Que honra
ter vocês aqui conosco e, futuramente, no livro, pra que os leitores possam
acompanhar também essa conversa boa que fizemos. Muito obrigado!

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AUTORES

Adriana Canepa Barbosa

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Formada em Psicologia pela PUC-SP, Filosofia pela USP, Psicanalista em formação
pelo Instituto Sedes Sapientiae. Atua como psicóloga clínica, acompanhante
terapêutica e coordenadora e supervisora das equipes de ATs do Instituto A Casa.

Clarissa Metzger                                                                                
Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
(EPFCL). Professora do curso de graduação em Psicologia da PUC-SP. Doutora em
Psicologia Clínica e Mestre em Psicologia Social pelo IP-USP. Coordenadora e
supervisora clínica do Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico do
Instituto A Casa e da Equipe HIATO de AT.Autora dos livros "Clínica do
acompanhamento terapêutico e psicanálise", Aller Editora 2017 e "A sublimação no
ensino de Jacques Lacan", Edusp, 2017

Cristiana Kehdi Gerab


Psicanalista, psicóloga e acompanhante terapêutica. Mestre em Psicologia Clinica
pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP. Aperfeiçoamento em
Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea pelo Instituto Sedes
Sapientiae Integra a equipe de Ats do instituto A Casa e o grupo de Transmissão e
Formação na Clínica do Envelhecimento. Atende em consultório particular.

Débora Margarete Marinho


Psicóloga, Psicanalista, Coordenadora/Supervisora da equipe de ATs do Instituto A
CASA, Supervisora de Serviço Residencial Terapêutico, mestre em ciências da saúde
pela E.E./USP.

João Vitor Verani


Psicólogo clínico, psicanalista e acompanhante terapêutico. Formado em psicologia
pela Puc-Sp,com aprimoramentos em psicanálise na Instituição Derdic e no Instituto
Sedes Sapientiae. Integra a equipe de acompanhantes terapêuticos do instituto A Casa
desde 2011. Trabalhou na ong Instituto Fazendo História de 2012 a 2018. Atua na
área do acolhimento em projetos variados.

Juliana Scharff
Psicóloga e acompanhante terapêutica. Especialista em Psicoterapia Psicodinâmica
dos transtornos de Personalidade realizada no Amborder - UNIFESP. Atua com
questões escolares e inclusão de crianças e adolescente com necessidades especiais
em algumas escolas particulares de São Paulo e no NAAPA (Núcleo de Apoio e
Acompanhamento para Aprendizagem) da Prefeitura Municipal de São Paulo.
Trabalha no Instituto A Casa com o acompanhamento terapêutico de casos graves em
adultos e adolescentes e atende em consultório particular em Higienópolis (São
Paulo).

Juliana Vidigal Bruno


Psicóloga graduada pelo Mackenzie, aprimorada em atendimento clínico com crianças
e bebês pela Clínica Anna Maria Poppovic (PUC-SP), aperfeiçoada em
Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea pelo Instituto Sedes
Sapientiae - SP e especializanda na Formação em Psicanálise pelo mesmo instituto.

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Membro da equipe de acompanhantes terapêuticos do Instituto A Casa de 2010 a
2016 e do Grupo Laço de 2009 a 2017. Atualmente atua como psicanalista clínica,
acompanhante terapêutica e como professora auxiliar de práticas inclusivas em
escolas particulares.

Juliano Garcia Pessanha nasceu em São Paulo em 1962. Após abandonar o curso de
direito no Largo São Francisco, graduou-se em filosofia. É mestre em psicologia
(PUC-SP) e doutor em filosofia (USP). Lançou em 2018 o livro Recusa do não-lugar
(Ubu). Autor também de Sabedoria do nunca (1999), Ignorância do
sempre (2000), Certeza do agora (2002) e Instabilidade perpétua (2009), publicados
pela Ateliê Editorial. Recebeu o prêmio Nascente (Abril-USP) nas categorias poesia e
ficção, em 1997, e o Grande Prêmio da Crítica da APCA na categoria Literatura
(2015) por Testemunho transiente, reunião de sua tetralogia pela Cosac Naify. Sua
obra é marcada por um hibridismo de gêneros, entre eles, ensaio, conto, aforismo,
heterobiografia e heterotanatografia. Tece estreito diálogo com a literatura, a filosofia
e a psicanálise, em busca de dizer as coisas em registros múltiplos de enunciação. É
professor e dirige grupos de estudo de filosofia,

Kleber Duarte Barreto


Acompanhante Terapêutico desde 1987, Psicólogo pelo Instituto de Psicologia da
USP (1989); Mestre (1997) e Doutor (2002) em Psicologia Clínica pela PUC-SP;
membro fundador da AAT- Associação de Acompanhamento Terapêutico e do LET-
Laboratório de Estudos da Transicionalidade; criador (1998), líder e supervisor do
Estagio em AT para os alunos de quinto ano do Curso de Psicologia da Universidade
Paulista-UNIP; Autor do livro Ética e técnica no Acompanhamento Terapêutico:
andanças com Don Quixote e Sancho Pança (Unimarco-Sobornost, 3ª edição).

Mahyra Costivelli
Formada em Psicologia pela Puc- Sp, com especialização em Psicanálise da Criança
pelo Instituto Sedes Sapientiae, Atua no Instituto Fazendo História desde 2005 e faz
atendimentos clínicos desde 2006. 

Maíra Peixeiro
Psicanalista; Acompanhante Terapêutica; Master Recherche em Psicanálise pela Paris
VII; coordenadora do grupo Transmissão e Formação na Clínica do Envelhecimento;
coordenadora do Núcleo de AT no Envelhecimento e do curso de Psicogerontologia
da Ger-Ações-ações e pesquisas em gerontologia; e membro da equipe do Projetos
Terapêuticos.

Márcia Fares
Psicóloga, psicanalista e acompanhante terapêutica. Estagiou na instituição belga "Le
Courtil - IMP Notre Dame de la Sagesse" e possui aprimoramentos em psicanálise
pelo Instituto Derdic (Intervenção em grupo com crianças autistas e psicóticas) e pelo
Instituto Gerar (Psicanálise, perinatalidade e parentalidade). Integra a equipe de
acompanhantes terapêuticos do Instituto A Casa desde 2011. Atua em consultório
particular. 

Marcos Salém Vasconcelos

209
Psicólogo, formado pela PUC-SP, e acompanhante terapêutico.  Atualmente concentra
suas atividades no consultório, onde atende um público variado, e nas ruas da cidade,
como at. Foi coordenador do Grupo Laço – Projetos de Inclusão Escolar por 5 anos, e
at em escola por 8, experiências fundamentais para escrita desse artigo.  Também é
membro do Grupo itinerante de AT, onde desenvolveu projetos de ocupação de
espaço público e fotografia. Considera a fenomenologia-existencial sua abordagem
matriz, e agora está fazendo formação em psicanálise winnicottiana no Instituto
Winnicott (IBPW-SP).  Nas horas vagas, experimenta ser poeta, fotógrafo pin-hole,
jardineiro, ou tecelão de esferas imunológicas.

Marcus Góes
Psicólogo, Psicanalista, Mestre em Psicologia Social e Acompanhante Terapêutico.
Membro-aspirante do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae,
Terapeuta do Projetos Terapêuticos e Acompanhante Terapêutico do Instituto “A
Casa”.

Mauricio Porto
Psicanalista e Acompanhante Terapêutico.

Natália Alves Barbieri


Psicanalista, psicóloga, mestre e doutora em Saúde Coletiva pela Unifesp-Escola
Paulista de Medicina. Coordenadora do Apoio Psicológico da Escola da Cidade e do
Grupo de Transmissão e Formação na Clínica do Envelhecimento. Organizadora do
livro Travessias do tempo: Acompanhamento Terapêutico e envelhecimento (Casa do
psicólogo, 2013).

Paula Buainain Albano


Psicóloga graduada pela PUC-SP, especialista em Psicologia da Infância pela
UNIFESP, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP e membro do Grupo Laço de
2007 à 2017. Atua como psicanalista clínica e acompanhante terapêutica.

Rafael Muscalu Raicher


Acompanhante Terapêutico, Psicólogo, Psicanalista, Analista Institucional. Membro
da equipe de ATs do Instituto A Casa desde 2011. 
Formado pela PUC-SP, especialista em Saúde Mental e Saúde Coletiva pela
UNICAMP.Foi, e ainda é, primeiro de tudo AT, para depois ser essas outras coisas.
Já Trabalhou em CAPS Adulto, CAPS Álcool e Drogas, supervisão de abrigos e
coletivos. Atualmente, além da clínica particular, trabalha com adolescentes e jovens
no projeto NURAAJ da clínica do SEDES. 

Rogéria Neubauer de Carvalho


Formanda pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottina, Psicanalista pelo
centro de estudos psicanalíticos  (CEP), com aperfeiçoamento  em Psicopatologia
psicanalítica pelo SEDES, Atriz, bacharel em Educação Física pela FEFISA, Pós-
graduada em Exercícios Resistidos pela Universidade Gama Filho. Acompanhante
terapêutica pelo instituto A Casa e integrante da equipe multidisciplinar do hospital-
dia como psicoterapeuta. Atende em consultório particular.

Rodrigo Veinert

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Psicanalista e AT, supervisor da equipe de AT do Instituto A Casa e professor do
curso de formação em AT do mesmo instituto. Membro da equipe clínica do Projetos
Terapêuticos.

Taísa Nerath Martinelli


Psicóloga graduada pela PUC-SP, aperfeiçoada em Psicopatologia Psicanalítica e
Clínica Contemporânea pelo Instituto Sedes Sapientiae - SP, especializanda em
Psicanálise com Crianças pelo mesmo instituto e membro do Grupo Laço de 2007 à
2017. Atende crianças e adolescentes no consultório e como acompanhante
terapêutica.

Tomás Bonomi 
Psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae, psicólogo e acompanhante
terapêutico. Mestre em Psicopatologia Fundamental pela Universidade PUC-SP. 
Capacitação em psicoterapia no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
Fundador do Blog Conexõesclinicas.com.br onde escreve periodicamente. Faz parte
da equipe de acompanhantes terapêuticos do Instituto A Casa e atende em consultório
particular no Itaim Bibi/Vila Olímpia (São Paulo-SP).

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