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UNIVERSIDADE ANHANGUERA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA


DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

EVERALDO FERNANDES BARBOSA

A COMPLEMENTARIDADE ENTRE A GEOMETRIA E A ÁLGEBRA:


UM CAMINHO PARA À BUSCA DE SIGNIFICADOS MATEMÁTICOS

SÃO PAULO
2016
EVERALDO FERNANDES BARBOSA

A COMPLEMENTARIDADE ENTRE A GEOMETRIA E A ÁLGEBRA:


UM CAMINHO PARA À BUSCA DE SIGNIFICADOS MATEMÁTICOS

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação Matemática da
Universidade Anhanguera de São Paulo
como requisito para obtenção do título de
Doutor em Educação Matemática na Área de
Concentração: Educação Matemática, Linha
de Pesquisa: Semiótica, Epistemologia e
Cognição.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Gonzaga Xavier de Barros.

São Paulo – SP
2016
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a minha família: pais e filhos, que a sua maneira,
sempre humilde, me incentivaram para finalizar este trabalho.
AGRADECIMENTOS

A Deus, que nos momentos de angústia sempre foi o meu refúgio.

Ao Professor Doutor Michael Otte que me orientou nessa caminhada.

Ao meu amigo Professor Doutor Luiz Gonzaga, sempre presente nos momentos mais difíceis,
pela paciência e tranquilidade que sempre demonstrou.

Aos professores Doutores, Demilson Benedito do Nascimento, Eduardo Sebastiani, Humberto


de Assis Clímaco, Nielce Meneguelo Lobo da Costa, Ruy César Pietropaolo, Ubiratan
D'Ambrosio, pela colaboração direta ou indiretamente na construção deste trabalho.

Aos meus familiares por entenderem os momentos em que fiquei ausente.


O verdadeiro problema que confronta o ensino
da matemática não é de rigor, mas o problema do
desenvolvimento de “significado”, da
“existência” de objetos matemáticos.

René Thom.
RESUMO

Esta pesquisa concerne à busca de significado para os objetos de ensino da matemática por
meio da complementaridade entre álgebra e geometria. A Educação Matemática encontra-se
na relação entre linguagem, lógica, filosofia e matemática, e têm a tarefa de encontrar
alternativas para o ensino e aprendizagem desta última, bem como, encontrar significado para
os termos matemáticos. Esta pesquisa de cunho teórico-bibliográfica, histórica e
epistemológica, é fundamentada no princípio da complementaridade do pensamento Otteano.
A partir das diferentes ideias que permearam três grandes períodos históricos, cujos
representantes ilustres de cada um desses períodos são Euclides, Descartes e Grassmmann,
podemos chegar à conclusão que a interação da álgebra com a geometria foi decisiva para o
desenvolvimento da Matemática. Essa complementaridade, entre os dois campos
disciplinares, possibilita a “ampliação” dos métodos de ensino.

Palavras-chaves: Educação Matemática. Álgebra. Geometria. Complementaridade.


ABSTRACT

This research concerns the search for meaning for mathematics teaching objects through
complementarity between algebra and geometry. The mathematics education lies in the
relationship between language, logic, philosophy and mathematics, and have the task of
finding alternatives to the teaching and learning of the latter as well, finding meaning for
mathematical terms. This research theoretical and bibliographic nature, historical and
epistemological, is based on the principle of complementarity of thought Otteano. From the
different ideas that permeated three major historical periods, whose distinguished
representatives of each of these periods are Euclid, Descartes and Grassmmann, we can
conclude that the algebra of interaction with the geometry was decisive for the development
of mathematics. This complementarity between the two disciplines, enables the "expansion"
of teaching methods.

Keywords: Mathematics Education. Algebra. Geometry. Complementarity.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1.1: Intensão e Extensão – Baricentro de um Triângulo. .............................................. 24


Figura 1.2: Diagrama geométrico - Prop. I - 35 Euclides......................................................... 28
Figura 1.3: Modelo complementar abstração e aplicação dos conceitos matemáticos. ........... 39
Figura 1.4: Processos de Abstração Reflexiva ........................................................................ 46
Figura 2.1: Proposição I de Os Elementos. As sete Artes Liberais do currículo medieval.....54
Figura 2.2: Euclides I-1. ........................................................................................................... 56
Figura 2.3. Euclides I-35. ......................................................................................................... 57
Figura 2.4: Euclides I-15. ......................................................................................................... 58
Figura 2.5: Euclides I-47.. ........................................................................................................ 61
Figura 2.6: Euclides II-4.. ......................................................................................................... 63
Figura 2.7: Álgebra Geométrica – Fragmento da proposição 5 – livro II. .............................. 65
Figura 2.8: Euclides II-5 ........................................................................................................... 66
Figura 2.9: Construção geométrica da equação ax - x2 = b2. ................................................... 67
Figura 2.10: Construção geométrica da equação x2 – 10x + 9 = 0 ........................................... 68
Figura 2.11: Euclides II-6 ......................................................................................................... 69
Figura 2.12: Euclides II-14 ....................................................................................................... 70
Figura 2.13: Etapa I - quadratura de figuras ............................................................................. 71
Figura 2.14: Construção representativa da proposição II-5 ...................................................... 71
Figura 2.15: Comparação de áreas de quadrados ..................................................................... 72
Figura 2.16: Representação geométrica da proposição I-47..................................................... 73
Figura 2.17: Comparação da área do quadrado com a área do retângulo. ................................ 73
Figura 2.18: Solução geométrica da equação x2 + 8x = 9 ......................................................... 82
Figura 2.19: Diagrama da álgebra de Al-Khwarizmi ............................................................... 83
Figura 2.20: Euclides II-I.......................................................................................................... 84
Figura 2.21: Euclides II-4 ......................................................................................................... 86
Figura 3.1: Aritmética e Geometria estabelecimento da Álgebra........................................97
Figura 3.2: Interpretação geométrica do termo x3 segundo Viète .......................................... 105
Figura 3.3: Interpretação Geométrica do termo x3 segundo Descartes .................................. 105
Figura 3.4: Formas representativas de uma circunferência .................................................... 111
Figura 3. 5: Produtos de dois segmentos ................................................................................ 123
Figura 3.6: Representação geométrica da raiz quadrada ........................................................ 124
Figura 3.7: Interpretação geométrica da 2 . ......................................................................... 124
10

Figura 3.8: Representação geométrica segundo Euclides. ..................................................... 126


Figura 3.9: Representação geométrica da equação ax – x2 = b pelo método grego. .............. 126
Figura 3.10: Representação geométrica de (a + b)2. ............................................................... 127
Figura 3. 11: Construção da solução da equação z2 = az + b2. ............................................... 129
Figura 3.12: Construção da solução da equação z2 = az + b2. ................................................ 129
Figura 3.13: Problema da trissecção do ângulo aplicado a uma equação do terceiro grau. ... 130
Figura 3.14: Solução da equação cúbica ................................................................................ 131
Figura 3.15: Mesolábio ........................................................................................................... 132
Figura 3.16: Curvas construídas pelo compasso MESOLÁBIO ............................................ 134
Figura 3.17: Solução do problema de duplicação do cubo - parábolas. ................................. 136
Figura 3.18: Solução do problema de duplicação do cubo - parábola e hipérbole ................. 137
Figura 3.19: Solução da duplicação do cubo com o compasso MESOLÁBIO ...................... 138
Figura 3.20: Compasso Trissector. ......................................................................................... 138
Figura 3.21: Trissecção de um ângulo qualquer com o compasso trissector. ........................ 140
Figura 3.22: Quadratriz de Hípias. ......................................................................................... 141
Figura 3.23: Construção da quadratriz por pontos. ................................................................ 145
Figura 3.24: Tratado físico sobre o sono, 1727. ..................................................................... 148
Figura 3.25: Mecânica, 1736 .................................................................................................. 149
Figura 3.26: Ensaio da nova teoria musical, 1739. ................................................................. 150
Figura 3.27: Introdução a Análise Infinitesimal, 1748. Cálculo Diferencial, 1755. Cálculo
Integral, 1763 – 1773. ............................................................................................................. 151
Figura 3.28: A teoria do movimento de corpos, 1765 ............................................................ 152
Figura 3.29: Dioptrica ............................................................................................................ 152
Figura 3.30: Álgebra, 1770 ..................................................................................................... 153
Figura 3.31 Complementaridade entre álgebra e geometria ................................................... 158
Figura 3.32: Significado geométrico de equações algébricas................................................. 160
Figura 4.1: Soma de Vetores..............................................................................................165
Figura 4.2 Determinante 2x2 - Área do quadrado de lado 1 .................................................. 171
Figura 4.3: Representação vetorial no plano cartesiano ......................................................... 172
Figura 4.4: Área de um retângulo dado por componentes vetoriais sobre eixos .................... 173
Figura 4.5: Área de um retângulo dado por componentes vetoriais fora dos eixos ............... 174
Figura 4. 6: Produtos de quantidades imaginárias .................................................................. 181
Figura 4.7: Produto Exterior de Grassmann ........................................................................... 188
Figura 4.8: Representação geométrica dos números imaginários segundo Tait..................... 190
11

Figura 4.9: Multiplicação por escalar. .................................................................................... 193


Figura 4.10: Representação das componentes de um vetor .................................................... 193
Figura 4.11: Função Vetorial. ................................................................................................. 194
Figura 4.12: Velocidade vetorial instantânea. ........................................................................ 195
Figura 4.13 Vetor deslizante sobre um eixo ........................................................................... 196
Figura 4.14 Vetor no sistema de referência cartesiano ........................................................... 197
Figura 4.15: Velocidade angular de um fasor......................................................................... 199
Figura 4.16: Representação de ondas. .................................................................................... 200
Figura 4.17: Exemplo de Fotocopiadora de Fisher................................................................. 201
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1

Construção teórica da pesquisa: o princípio da Complementaridade .............................. 19


1.1 Noções de Complementaridade .......................................................................... 20
1.2 Intensão e Extensão ............................................................................................ 24
1.3 Complementaridade na Matemática ................................................................... 30
1.4 Uma questão de significado................................................................................ 35
1.5 Abstração Reflexiva e Pensamento Matemático ................................................ 43

CAPÍTULO 2

As construções em Os Elementos de Euclides ...................................................................... 47


2.1 Estrutura do primeiro e segundo livro ................................................................ 48
2.2 A natureza das proposições em Os Elementos ................................................... 51
2.3 Construção das figuras geométricas euclidianas ................................................ 56
2.4 Álgebra Geométrica ............................................................................................ 62
2.5 Álgebra Geométrica na perspectiva da complementaridade .............................. 74
2.6 Considerações sobre o Capítulo ......................................................................... 88

CAPÍTULO 3

A transformação estrutural da matemática nos séculos XVI e XVII ................................ 92


3.1 Viète: O Prelúdio do Simbolismo Algébrico ...................................................... 95
3.1.1 Viète e a Lógica das Espécies .................................................................. 96
3.1.2 Grandezas Conhecidas e Desconhecidas ................................................. 98
3.1.3 Viète e as Operações .............................................................................. 106
13

3.1.4 A transformação da noção de número: releitura da análise de Klein .... 108


3.2 Descartes: A Transformação da Noção de Construção .................................... 116
3.2.1 A Difusão do Conhecimento no Século XVII........................................... 116
3.2.2 Ideias Gerais de “O Discurso do Método” ................................................ 118
3.2.3 Álgebra dos Segmentos ............................................................................. 122
a) Operações Aritméticas e Geométricas .............................................................. 122
b) As Equações em La Gèomètrie ........................................................................ 125
3.2.4 Instrumentos e Construção de Curvas ....................................................... 127
3.2.5 A Classificação dos Problemas ................................................................. 141
3.2.6 A Origem da Geometria Analítica Moderna ............................................. 147
a) Principais obras ............................................................................................ 148
b) Funções de acordo com Euler ....................................................................... 154
3.3 Explicitando o capítulo do ponto de vista da complementaridade ................... 157

CAPÍTULO 4

Gênese da Análise Vetorial .................................................................................................. 162


4.1 Origem do Conceito de Vetor ........................................................................... 163
4.2 Álgebra Linear e o Pensamento Conceitual ..................................................... 169
4.3 Hamilton e seus Quatérnions ............................................................................ 176
4.4 O Sistema Vetorial de Grassmann .................................................................... 184
4.5 Algumas aplicações da análise vetorial ............................................................ 189
4.6 Interpretação dos vetores sob o ponto de vista da complementaridade ............ 202

Considerações Finais ............................................................................................................ 207

Referências Bibliográficas ................................................................................................... 214


Introdução

Ao longo do processo histórico, duas vertentes se desenvolveram, primeiramente de


forma independente, depois de forma complementar, para que se pudesse criar uma base
sólida para a matemática, o espaço geométrico e a álgebra como ciências de estruturas. O fato
é que, embora os desenvolvimentos ocorram, em primeiro momento, de forma independente,
para que haja de fato, desenvolvimentos significativos, os campos devem estar relacionados
de alguma maneira.
Figuras, equações e teorias, são três etapas na história da matemática em que
podemos dizer que houve desenvolvimento considerável e mudança de concepção no
tratamento da matemática.
O representante ilustre da primeira etapa é Euclides. A sublime obra “Os Elementos”
de Euclides é constituída por construções de figuras geométricas feitas, excepcionalmente, por
meio da régua não graduada e o compasso, instrumentos que ficaram conhecidos por
“ferramentas euclidianas”. Essa obra foi o suficiente para assegurar a imortalidade de
Euclides na História das Ciências e a permanência como modelo na escola, por determinar o
conteúdo da Matemática escolar elementar.
Há mais de dois mil anos depois de Euclides, a leitura de Os Elementos seguem
provocando profunda admiração pela sua engenhosidade incomum, lógica, rigor, didática,
pureza, beleza e elegância. É o tesouro matemático da humanidade, a Bíblia das matemáticas,
a geometria popular de todos os tempos.
As construções geométricas nos livros de Euclides são imagens e semelhanças dos
objetos empíricos. O desenho de um triângulo, por exemplo, possui semelhança com o objeto
designado. O produto geométrico entre dois segmentos, não foi um segmento, mas uma área.
A igualdade poderia significar equivalência entre áreas, identidade numérica, ou congruência.
Quando temos uma igualdade apenas da forma, temos um caso de semelhança. Essas são
algumas das principais características presentes em Os Elementos de Euclides.
A segunda etapa tem como um dos principais representantes René Descartes. Nesse
período as representações deixam de serem imagem e semelhança dos objetos empíricos para
ser tornarem símbolos abstratos que se distancia da realidade física. É o inicio do simbolismo
algébrico. As construções matemáticas deixam de ser apenas figuras geométricas planas e
passam a ser curvas no plano. As curvas possuem relação estreita com as equações dadas pela
álgebra. Os cálculos na matemática são reduzidos à resolução de equações e, estas, por sua
15

vez, estão vinculadas à igualdade, ou seja, identidade e diferença são a base para a
matemática.
Se Euclides se tornou inesquecível por sua obra Os Elementos, Descartes tornou-se
imortal ao elaborar um método de investigação que, segundo ele, seria válido para resolver
problemas em todas as áreas do conhecimento. Esse método foi aplicado à matemática em um
apêndice convenientemente chamado de La geomètrie, como parte do seu trabalho mais
famoso, o Discurso do Método.
Para compreender a relevância histórica e a origem de La geomètrie, é substancial
considerarmos as estruturas da matemática grega que emprega somente álgebra geométrica e
a Arte Analítica de Viète que desenvolve a álgebra simbólica, mas sem usar coordenadas. De
posse de ambos os instrumentos – coordenadas e álgebra – Descartes estabelece a Geometria
Analítica estabelecendo uma ponte para transitar entre geometria e álgebra, a qual nos permite
associar curvas e equações, possibilitando aplicar a análise algébrica de Viète aos problemas
de lugares geométricos gregos, definidos em um sistema de coordenadas, por uma equação
indeterminada em duas incógnitas.
Descartes cria uma nova ferramenta geométrica e revolucionária, que permite unir em
um só ato intelectual o descobrimento e a demonstração, mediante uma metodologia
geométrica e algébrica, que substitui as complexas e engenhosas construções da rígida
“Álgebra Geométrica” dos gregos por sistemas operacionais algébricos, e se converte em um
poderoso instrumento de investigação e exploração, com o qual, resolve, de forma elegante,
rápida e brilhante, numerosos problemas clássicos e modernos, como questões de lugares
geométricos, extremos, tangentes e quadraturas, dentre outros que haviam resistido ao longo
da história, como o famoso Problema de Pappus.
Outro ponto que destacamos, no qual Descartes foi inovador, diz respeito aos
instrumentos utilizados para representar a solução de problemas geométricos. Os gregos
utilizavam apenas régua não graduada e compasso para construção das figuras; Descartes, por
outro lado, utilizou outros instrumentos, entre eles, o compasso mesolábio e o trissector. Esses
instrumentos eram usados para traçar curvas.
Uma das consequências da mudança de natureza da matemática foi, principalmente, a
generalização dos problemas. Na geometria, um triângulo geral poderia ser representado pelas
letras ABC, mas não havia uma maneira de representar uma equação do segundo grau na sua
forma mais geral (ax2 + bx + c = 0). Devemos isso primeiramente a Viète e o aprimoramento
dessas noções por Descartes.
16

A terceira e última etapa do desenvolvimento da matemática é representada por


Hamilton e Grassmann. Desde Viète e Descartes, a álgebra veio acumulando grande prestígio.
A questão que se levantou nessa terceira etapa do desenvolvimento histórico da matemática é
se era possível fazer provas em geometria tão rigorosas quanto os cálculos da álgebra.
Grassmann encontrou a solução criando a teoria dos determinantes.
Os gregos não conseguiram representar objetos geométricos por meio de objetos
algébricos e representar as operações geométricas por meio das operações algébricas. Um dos
motivos do insucesso talvez tenha sido o descobrimento de que nem todo segmento de reta
podia ser representado por números. O problema nessa terceira etapa é como representar
elementos algébricos por elementos geométricos e as operações algébricas por operações
geométricas, ou seja, problemas de álgebra geométrica.
O problema dos gregos da não representatividade dos termos algébricos em termos
geométricos deve-se a concepção errônea de congruência. Para eles [os gregos], dois
segmentos de retas são equivalentes se tivessem os mesmos comprimentos. Mas essa
classificação não é o suficiente. O mesmo erro cometeu Descartes, pois a noção de
congruência de Descartes levava em conta apenas o comprimento.
Leibniz escreveu um ensaio sobre álgebra geométrica denominado, por ele, de uma
álgebra de situs. Esse ensaio ficou perdido por algum tempo, e quando foi redescoberto foi
instituído um prêmio para quem conseguisse interpretá-lo. O único inscrito foi Grassmann.
Ao desenvolver as ideias de Leibniz, Grassmann não adotou a ideia de congruência dos
gregos, ao invés disso, explicitou a ideia de vetores.
Com a necessidade de resolver problemas físicos envolvendo força e velocidade, a
matemática de Descartes se tornou ultrapassada, não sendo suficiente para resolvê-los. Era
preciso considerar, além do comprimento de um segmento, também sua direção. Era isso que
buscavam os matemáticos do século XIX, meios para resolver problemas físicos. Hamilton e
Grassmann foram os principais nomes desse período, que impulsionaram o desenvolvimento
da análise vetorial.
Hamilton buscava um significado geométrico para  1 , acabou enxergando relações
dos números complexos e a representação vetorial no plano. Grassmann partiu do que ele
chamou de “Teoria Geral das Formas”, que consiste em representar os objetos por símbolos e
fazer as relações entre eles. Somando dois vetores que são formas semelhantes, o resultado é
um vetor; a multiplicação de formas produzem outras formas de ordem superior. Grassmann
chegou a elaborar noções de subespaço, independência linear e dimensão. Ele gerou a ideia do
espaço de dimensões infinitas. A partir da teoria das formas, ele explicita as entidades
17

algébricas, que ele chama de “quantidades extensas”. Nessa nova perspectiva, Grassmann
começa a trabalhar com vetores, ao invés de formas como pontos, segmento, etc.
O desenvolvimento histórico dos conceitos matemáticos possui analogia com o
desenvolvimento do pensamento matemático. Ambos os conceitos se desenvolvem por um
processo de abstração reflexiva. Para compreender como é possível o desenvolvimento da
matemática é interessante entender como o ser humano desenvolve as operações cognitivas.
Piaget faz um questionamento de como é possível a matemática pura, e busca resposta
investigando as ações que o sujeito realiza sobre os objetos em seus estágios mais
elementares, e chegou a afirmar que esse comportamento segue em estágios superiores do
pensamento matemático avançado. A partir das observações das ações realizadas pelo sujeito
sobre o objeto, Piaget descreveu tipos de abstrações diferentes. A abstração reflexiva é uma
delas, nesse tipo de abstração o que se considera é o resultado das ações que o sujeito realiza
sobre os objetos. Conclusões obtidas a partir dessas ações permitem ao sujeito avançar no
conhecimento e com isso é possível conceber a matemática em sua forma mais abstrata.
Em vários momentos neste trabalho é possível localizar a noção de
complementaridade. O capítulo que vai tratar desse assunto é fundamental. O filosofo e
matemático Michael Otte utiliza as noções de complementaridade para analisar e explicar o
desenvolvimento da matemática e o desenvolvimento dos aspectos cognitivos dos conceitos
matemáticos. Para Otte (1993, p. 219), “a complementaridade ocorre sob diversas formas e
circunstâncias: entre objeto e meio; entre intencionalidade e comunicação; entre função e
estrutura; entre forma e história”.
Diante disso, a questão norteadora de nossa pesquisa é: como a abordagem
complementar do desenvolvimento da Matemática pode influenciar os processos da Educação
Matemática?
Em cada período histórico citado, no final de cada capítulo referente ao período,
apresentaremos um resumo destacando o papel da complementaridade. Nesse resumo será
evidenciado o par dual que, de alguma forma, impulsionou o desenvolvimento da matemática,
e que possivelmente, será um par que deve ser considerado no ensino e aprendizagem da
matemática, tendo em vista que, quando falamos em desenvolvimento, este, por sua vez,
contém elementos que afetaram uma mente criativa nas suas respectivas épocas histórica,
assim como também possui representatividade no aspecto cognitivo da educação atual.
Nosso material de trabalho são livros, artigos e teses. Todos os livros e artigos citados
na bibliografia foram importantes para o desenvolvimento deste trabalho. No entanto, para a
compreensão da noção de complementaridade, o livro “O Formal, o Social e o Subjetivo” do
18

professor Michael Otte é a referência principal, juntamente com seu artigo “Complementarity,
Sets and Numbers”. Para o primeiro período histórico tratado nesse trabalho, período da
matemática euclidiana, foi consultado o livro “Os Elementos”. No tocante as discussões
filosóficas, o artigo “Análise de Prova e o Desenvolvimento do Pensamento Geométrico”, do
professor Michael Otte, é nossa principal referência. No segundo período histórico, que
compreende o desenvolvimento matemático dos séculos XVI e XVII, o principal livro foi “La
Geomètrie” de René Descartes. O último capítulo, que trata da análise vetorial, nossa
referência principal foi “Lectures on Quaternions” de Hamilton e “The Ideas of Hermann
Grassmann in the Context of the Mathematical and Philosophical Tradition since Leibniz” do
professor Michael Otte. Outro livro importante para este trabalho foi “Crítica da Razão Pura”
de Emmanuel Kant que trata da relação entre intuição e conceito na formação do
conhecimento.
O trabalho foi dividido em quatro capítulos. O primeiro, “A Construção Teórica da
Pesquisa: o princípio da complementaridade”. Nesse capítulo procuramos entender as ideias
do professor Michael Otte apontando os aspectos complementares que permeiam os capítulos
posteriores. Para tentarmos entender como o sujeito é capaz de produzir conhecimento
elaboramos uma seção denominada “Abstração Reflexiva e Pensamento Matemático”. O
segundo capítulo analisa os procedimentos e instrumentos adotados para resolver problemas
geométricos na escola euclidiana. O terceiro capítulo, “A matemática do Século XVI e XVII”,
marca a mudança na forma de tratar o conteúdo matemático mantendo-se seu conteúdo.
Ocorre em uma época de mudança de concepções e pensamento, a Revolução Científica. Esse
capítulo mostra como ocorrem as mudanças no campo da matemática, especificamente, com a
obra La Geomètrie de Descartes. Dando continuidade ao desenvolvimento histórico da
matemática, proporcionado pela interação de conhecimentos matemáticos diferentes,
construímos o capítulo quatro “A Gênese da Análise Vetorial”, que é mais uma mudança na
forma de tratarmos os conteúdos matemáticos. O conjunto marcante desse período é o
desenvolvimento da teoria de vetores e aplicações nas mais diversas áreas do conhecimento.
CAPÍTULO 1

Construção teórica da pesquisa: o princípio da


Complementaridade

Nunca pedir o significado de uma palavra


isoladamente, mas apenas no contexto de uma
proposição. (Frege 1884, p. 72).

O que possui existência no mundo pode chegar à mente humana essencialmente de


duas formas: por meio da visualização direta dos objetos ou por meio das suas representações,
ou seja, por meio de signos. O desenho de um cachimbo, por exemplo, não é um cachimbo,
mas faz referência ao objeto cachimbo. Objetos, diz professor Michael Otte 1, “possui
existência determinada, mas não possui sentido. Signos têm um sentido, mas não têm
existência própria”. Nossa compreensão é de que ambos os contextos são importantes para
nossos pensamentos, mas não existe uma relação de dependência fixa e determinada entre os
objetos e sua representação, pois a escolha de como representá-los não dependem apenas
deles [objetos], mas também de nossos objetivos, das nossas possibilidades e de nossos
instrumentos. Dessa forma, a representação não pode ser escolhida arbitrariamente. Em
termos semióticos, não existe uma relação definitiva entre o objeto e sua representação, ou
seja, entre referência e sentido. Será que é isso que queremos dizer quando falamos de
complementaridade?
Este capítulo é destinado a entendermos as noções de complementaridade e sua
importância metodológica para o ensino da matemática e no desenvolvimento dessa
disciplina. Na matemática, segundo o professor Michael Otte, a complementaridade existe em
termos de intensão e extensão, expressões usadas na semiótica que possuem o mesmo valor
semântico de sentido e referência, respectivamente, usados por Frege em seu artigo “sobre o
sentido e a referência” publicado em 1892. Nesse sentido, torna-se relevante
compreendermos de antemão o que significa os termos intensão e extensão.

1
Aula proferida em 14 de novembro de 2012.
20

1.1 Noções de Complementaridade

Diferentes áreas do conhecimento têm-se utilizados do princípio de


complementaridade, em geral, “para captar aspectos essenciais do desenvolvimento cognitivo
e epistemológico de conceitos científicos e matemáticos” (OTTE, 2003a, p. 203, tradução
nossa).
O princípio da complementaridade foi utilizado na física quântica por Niels Henrik
David Bohr (1885 – 1962), por volta de 1930. Bohr desenvolveu esse princípio para explicar
a interferência da observação quando o campo estudado é o mundo quântico. A partir de
experiências, observou-se que existia interação entre os objetos e os aparelhos de medição,
destacando-se a importância da atividade humana na elaboração do conhecimento. Esse
conjunto [sujeito – objeto] é parte fundamental do fenômeno físico, “é impossível separar o
sujeito de seu objeto, de forma que os aspectos entre sujeito, atividades e o objeto não devem
ser considerados separadamente e sim como um todo prevalecendo o aspecto relacional”
(ARRUDA, 2013, p. 47). Entendemos por “complementares dois conceitos opostos que,
porém, se corrigem reciprocamente e se integram na descrição de um fenômeno”
(ABBAGNANO, 1998, p. 144).
Otte (1993, p. 220) explica o princípio da complementaridade com o seguinte
exemplo: vamos considerar um objeto ainda desconhecido, mas que queremos conhecer. No
primeiro momento o objeto atua sobre nossos pensamentos de maneira espontânea. Cada nova
informação captada a partir da espontaneidade do pensamento é relacionada com os
conhecimentos que já possuímos. Dessa forma, existe uma interação entre o que já sabemos e
o que queremos conhecer, ou seja, esses dois objetos permitem a compreensão do todo. Essa
dinâmica é que chamamos de princípio da complementaridade. O exemplo que Otte apresenta
evidencia a complementaridade entre sujeito e objeto.
A fase em que o sujeito faz relações entre o que ele já conhece com os novos
conhecimentos é o que Piaget chama de segunda fase do processo de abstração reflexiva, a
reflexão. A reflexão, segundo Piaget, é a conexão de um objeto do pensamento às estruturas e
esquemas mentais que o indivíduo já possui. Os conhecimentos prévios, que permitem fazer
relações com os novos conhecimentos, são noções essenciais da teoria piagetiana que se
justifica pela necessidade de haver aspectos complementares entre o sujeito e o objeto.
A situação hipotética que Otte (2003a, p. 212) apresenta sobre o turista e a capivara
representa de maneira simples o que queremos dizer por conhecimentos prévios. Um turista
inglês visitando a Amazônia vê um animal bastante grande, nas margens de um rio, e pergunta
21

ao seu guia: que tipo de animal é aquele? O guia responde que é uma capivara. No entanto,
essa resposta não cria nenhuma relação com que o turista já conhece. Para que ele possa criar
uma imagem com significado a partir de algumas relações o guia diz que o animal é um
“water hog”. Acende-se uma luz para o turista e ele diz: “aha”, realmente acreditando que
havia entendido o que é. O fato é que ele é capaz de criar algo significativo com as palavras
“water” e “hog”, pressupondo um ponto de partida para conhecer o animal. Mas, no entanto,
esse tipo de descrição tem a desvantagem de criar falsas noções. A capivara, ao contrário de
water hog, não é um suíno, mas um roedor, comedor de capim.
“Um nome é, em termos da semiótica, um índice e implica uma afirmação de
existência da coisa indicada” (OTTE et al., 2014, tradução nosssa). “O índice, como o próprio
nome diz, é um signo que como tal funciona porque indica outra coisa com a qual ele está
atualmente ligado” (SANTAELLA, 1983, p. 14). O índice é parte do objeto no qual está
relacionado, existindo uma conexão de fato. O sino que toca ao final de cada aula é um índice
porque indica o término de uma aula. A posição do Sol no céu indica a hora do dia. A pegada
de uma pessoa na sala indica que alguém passou por ali. O tom de voz pode indicar a pessoa.
Enfim, o sino, o Sol, a pegada, a voz, o rastro, etc., são todos índices. Tudo que existe,
portanto, é índice ou pode funcionar como índice. Basta, para tal, que seja constatada a
relação com o objeto de que o índice é parte e com o qual está existencialmente conectado.
O nome “capivara” indica o animal, mas ainda de maneira pouco clara para o turista.
“Quando alguma coisa se apresenta em estado nascente, ela costuma ser frágil e delicada,
campo aberto a muitas possibilidades ainda não inteiramente consumadas e consumidas”
(SANTAELLA, 1983, p. 01). Depois de algum tempo, o turista pode observar algumas
características e hábitos da capivara, em seguida, será capaz de dizer: capivaras são boas
nadadoras e mergulhadoras, comem capim, vivem em grupos, são roedores, etc.. Essas
características são, em termos da semiótica, chamada de ícones. [...] “se o signo aparece como
simples qualidade, na sua relação com o objeto, ele só pode ser um ícone” (SANTAELLA,
1983, p. 13).
Por outro lado, qualidades não representam nada. Por exemplo, as qualidades da
capivara de ser nadadora, ser um roedor, comer capim, etc. não quer dizer nada, “isso porque
qualidades não representam nada” (SANTAELLA, 1983, p. 13). Qualidades apontam para
possibilidades. Então, com essas qualidades não podemos ter um “water hog” é algo diferente,
é outro animal em particular. O nome, juntamente com as características, é que forma o novo.
Não apenas o nome (índice) nem tampouco as características (ícones), mas os dois juntos para
22

criarmos um novo animal. Essa relação justifica o princípio da complementaridade na


semiótica.
Um índice indica os seus objetos sem dar qualquer informação sobre eles. Assim, um
índice é apenas um sinal, apenas com conhecimento contextual podemos fazer o trabalho de
interpretação. Os ícones apresentam características dos objetos. Se estivermos em uma
floresta e vemos subindo fumaça por entre as árvores, sabemos que isso é um índice da
existência de fogo, então está indicando a existência de uma coisa. Se estivermos desenhando
um unicórnio estamos dando características desse unicórnio, mas não há nenhuma informação
sobre sua existência, simplesmente temos uma imagem, uma fantasia. Índices e ícones
possuem papeis opostos, um não fornece as características, mas mostra a existência do objeto;
o outro dá as características sem afirmar que existe o objeto. Dessa forma, índices e ícones
são complementares.

Temos, então, duas coisas para comparar: (1) um nome, que é um símbolo simples,
designando diretamente um indivíduo que é o seu significado, e possui esse
significado em si mesmo, independentemente dos significados de todas as outras
palavras; (2) uma descrição, que consiste de várias palavras, cujos significados já
estão fixos, e da qual resulta a tudo o que quer que deva ser tomado como
significado da descrição (RUSSELL, 2013, p. 216, tradução nossa).

Peirce apresenta várias definições de signo nos seus textos, mas, de modo geral, um
signo tem a intenção de representar um objeto, de tal forma que afete uma mente e de modo
que se represente naquela mente algo que é devido ao objeto. O signo não é o objeto, mas é
signo se puder representar, substituir outra coisa diferente dele. Os símbolos algébricos, por
exemplo, são signos. A letra “A” pode representar um ponto (objeto matemático geométrico)
como também pode representar um número (objeto matemático aritmético).
Um símbolo é o terceiro componente da tríade classificatória de um signo segundo
Pierce. Os dois primeiros, como vimos, são os índices e os ícones. O símbolo não possui,
segundo Peirce, “similaridade ou analogia com o seu objeto e é igualmente independente de
qualquer relação factual” (PEIRCE, 1980, p.28). Um exemplo é o “x” cartesiano, não possui
analogia alguma com o seu objeto, podendo ser um número, um segmento, ou qualquer outra
coisa.
Na matemática, diferentemente da linguagem, existem índices, ou seja, temos
referência a um objeto. Por isso Kant diz que a matemática é intuitiva. Se tivermos um
triângulo, por exemplo, os vértices ou pontos, indicam lugares, posições no plano, porque um
ponto não tem característica, não temos uma identificação descritiva de um ponto, então todos
23

os vértices são índices indicando as partes do triângulo. Há algo (componentes do conceito)


que são adicionadas pela intuição, e não pela descrição de características.
Segundo Otte2, a grande descoberta de Kant foi que a matemática não procede só à
base do raciocínio conceitual. Não raciocinamos por meio dos conceitos de reta, ponto ou
triângulo, falamos de relações, paralelismo entre retas, intersecção, etc.. Então estudamos as
relações entre os pares, não os conceitos, não raciocinamos sobre definições nominais, por
exemplo, “um ponto é um ente matemático que não possui dimensão”, “a reta não possui
largura”, não pensamos nessas particularidades como Euclides fazia.
Quando falamos da capivara, destacamos os atributos e o referencial. Referencial é
simplesmente um índice, atributo é uma maneira de ficarmos atribuindo características a
algum objeto e dessa maneira distinguindo ou identificando esse objeto em relação a outros.
Na matemática os axiomas definem os conceitos teóricos em suas relações, por exemplo, dois
pontos definem uma reta. As definições nominais não respondem a questões o que é um ponto
ou o que é uma reta, mas representam as relações entres esses objetos. Isso se chama
pensamento relacional.
A complementaridade entre objeto e signo (objeto e sua representação) é bem
representada pela análise que Otte faz das equações A = A e A = B, que Frege apresenta no
artigo intitulado “sobre o sentido e a referência” de 1892. Para Frege a diferença entre os
símbolos é entendida como a diferença no modo de apresentação do objeto designado, ou
seja, como diferença de sentido para a mesma referência, ou em termos semióticos de
intensão e extensão, A = B é comumente interpretado como dizendo que A e B são diferentes
intensões da mesma extensão. Ele [Frege] apresenta o seguinte exemplo: Os nomes próprios
“Estrela da Manhã” e “Estrela da Tarde” têm a mesma referência, a saber, o planeta Vênus,
mas se apresentam de modo diferente, isto é, têm sentidos diferentes. Outro exemplo clássico
é dado também por Frege3 pelo baricentro de um triângulo. Ao traçarmos segmentos de reta
que partem de cada um dos três vértices de um triângulo e intercepta o ponto médio do lado
oposto ao vértice, esses segmentos se encontram em um ponto G chamado baricentro do
triângulo. Podemos fazer diferentes representações (diferentes sentidos) para o mesmo ponto
G (referência).

2
Aula proferida no dia 23/08/2012.
3
Veja Michael Friedrich Otte; Luiz Gonzaga Xavier de Barros, 2014, p. 177.
24

Figura 1.1: Intensão e Extensão – Baricentro de um Triângulo. Fonte: Acervo Pessoal

Segundo Frege, a expressão A = B não se refere ao ponto G, mas às maneiras pelos


quais designamos o objeto, ou seja, A e B são nomes, descrições de um determinado ponto.
 A  PP'  QQ'

G  B  PP'  RR '
C  QQ'  RR '

Em termos da semiótica, o ponto G (objeto) seria a extensão e as letras A, B e C


seriam as intensões (descrições). Michael Otte diz que os termos matemáticos são concebidos
segundo os aspectos intensional e extensional, que não devem ser vistos apenas como
dualidade, mas, sim, complementares para seu desenvolvimento.

1.2 Intensão e Extensão

“Os termos Intensional e Extensional foi utilizado pela primeira vez por Leibniz para
expressar a distinção que a lógica de Port-Royal expressara com o par compreensão-extensão”
(ABBAGNANO, 1998, p. 577). Ao analisar um conceito em termos lógicos, devemos
considerar a sua extensão e a sua compreensão. Por exemplo, o conceito homem. A extensão
desse conceito refere-se a todo o conjunto de indivíduos aos quais se possa aplicar a
designação homem.

Exemplos:
Machado de Assis foi um homem.
Beethoven foi um homem.
25

A compreensão do conceito homem refere-se ao conjunto de qualidades que um


indivíduo deve possuir para ser designado pelo termo homem.
Exemplos:
O homem é um animal racional.
O homem é um mamífero.
Portanto, extensão é o conjunto de seres, objetos aos quais os conceitos se aplicam e,
compreensão conjunto de qualidades, propriedades, características ou atributos que definem o
conceito.
Os nomes servem, entre outras coisas, para identificar pessoas, objetos, animais, etc.;
são instituídos referencialmente. O nome “Napoleão Bonaparte” refere-se ao indivíduo
Napoleão Bonaparte. O nome “Ludwing van Beethoven” refere o indivíduo Ludwig van
Beethoven. Quando conversamos com outra pessoa empregando termos específicos,
particulares, deixamos explícito sobre o que estamos nos referindo.
Existem termos que são gerais não permitindo identificar um indivíduo particular, mas
um conjunto de indivíduos ou coisas em particular que possuem uma mesma característica ou
propriedade. Por exemplo, “ser um compositor”, é uma expressão que indica uma
característica do ser humano Beethoven, mas que também é uma característica de muitas
outras pessoas. A expressão “ser um compositor” é chamada de predicado. Nomes e
predicados permitem-nos escrever frases completas.
A frase “Beethoven é compositor” é composta por um termo particular – o nome
“Beethoven” – e por um termo geral – o predicado “ser compositor”. O nome permite
identificar, nesse caso, a pessoa da qual estamos falando e o predicado aponta características
peculiares dessa pessoa. O conjunto de coisas designado por um predicado chama-se a sua
extensão.
Por exemplo, o predicado “é um compositor”. Podemos citar vários nomes que
possuem características por serem compositores:
 Francisco Buarque de Holanda é um compositor;
 Tom Jobim é um compositor;
 Vinícius de Moraes é um compositor.
Poderemos continuar citandos vários outros compositores brasileiros formando o
conjunto de indivíduos que fazem parte da extensão do predicado “ser um compositor”. Os
nomes citados das pessoas que são realmente compositores é um conjunto de pessoas que são
compositores. Todos os componentes desse conjunto compõe a extensão.
26

Podemos falar sobre a palavra mesa, e os diferentes conjuntos de mesas que existem,
isto é, a extensão, enquanto que a intensão, dá as características de uma mesa, características
que compõem o conceito mesa.
A maior ou menor extensão de um conceito corresponde ao seu maior ou menor grau
de generalidade ou à sua maior ou menor proximidade à singularidade. Consideremos, por
exemplo, os seguintes predicados: “é um mamífero” e “é uma baleia”. São dois predicados
diferentes que podem ocasionar em extensões diferentes devido ao fato de que o número de
mamíferos é maior do que o número de baleias, que é uma espécie de mamífero. Portanto a
extensão do predicado “é um mamífero” é maior do que o predicado “é uma baleia”,
ocasionando na diferença entre as extensões.
Mas há exemplos de diferentes predicados com a mesma extensão. Por exemplo,
“criaturas com rins” e “criaturas com coração”. Todos os animais que possuem rins possuem
também coração: este é um fato tipicamente biológico. A característica, ou propriedade
expressa por um predicado chama-se intensão.
Segundo Gabbay e Woods (2004, p. 11, tradução nossa), Leibniz escreve a seguinte
passagem em “novos ensaios sobre o entendimento humano”: “animal compreende mais
indivíduos que homem, mas homem compreende mais ideias e mais formas; um tem mais
exemplos, e outro mais grau de realidade; um tem mais extensão, o outro tem mais intensão”.
Hamilton adotou os termos intensão e extensão. Ele afirma que:

“A Quantidade interna de uma noção, sua intenção ou compreensão, é composta por


diferentes atributos dos quais a soma é o conceito; isto é, a reunião de vários
caracteres conectados pelo próprio conceito em um único conjunto no pensamento.
A Quantidade externa de uma noção, ou a sua extensão é, por outro lado, constituída
pelo número de objetos que se pensa mediatamente por meio do conceito. Por
exemplo, os atributos racionais, sensatos, morais, etc., vão constituir a intenção ou a
quantidade interna do conceito homem. Considerando os atributos europeus,
americanos, filósofo, alfaiate, etc., é um conceito individual desse ou daquele
homem”. (HAMILTON, 1861, p. 142, tradução nossa).

O uso desses dois termos prevalece na lógica contemporânea, que os associou à


distinção estabelecida por Frege entre sentido e significado (referência). Frege, de acordo com
Abbagnano (1998, p. 578) diz que: “ao pensarmos num signo, deveremos ligar a ele duas
coisas distintas: O objeto, que será denominado significado daquele signo, e o sentido, que
denota a maneira como o objeto se apresenta”. Segue que, o objeto é a extensão; o sentido é a
intensão.
Antoine Arnauld (1612 – 1694) diz que “nos conceitos universais (gerais), é
importante distinguir bem duas coisas, a intensão e a extensão. Chamo de intensão do
conceito os atributos que ele inclui em si e que não podem ser retirados sem destruí-lo”
27

(ABBAGNANO, 1998, p. 160); assim, a intensão do conceito de triângulo, por exemplo,


possuem características peculiares que determinam seu conceito. Essas características podem
ser tanto explícitas, como:
O triângulo é uma figura.
O triângulo possui três lados.
O triângulo possui três ângulos.
Ou podem estar implícita no conceito, como:
A soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois retos.
Claro que, esta, diferentemente das outras três citadas, é uma característica que deve
ser demonstrada. Mas, no entanto, características implícitas de um objeto que, por sua vez,
precisam ser demonstradas, não deixam de ser a intensão de um conceito. Dessa forma, se
falarmos: “figura geométrica plana cuja soma dos ângulos internos é igual a dois retos”; o
sujeito que têm familiaridade com a geometria logo vai pensar na extensão “triângulo”.
Na proposição I-35, Euclides usa a palavra igual em três sentidos diferentes:
congruência, identidade numérica e igualdade de áreas. Essa proposição afirma que:

“Os paralelogramos, que estão postos sobre bases iguais, e entre as mesmas paralelas, são
iguais”.

Já no enunciado do problema a palavra igual aparece em dois sentidos diferentes,


como congruência de segmentos e como igualdade de áreas entre os dois paralelogramos. Na
demonstração vamos ver que a palavra igual também aparece como identidade numérica
devido ao fato de uma mesma região pertencer a paralelogramos diferentes. A palavra igual
aparece treze vezes na demonstração, vejamos a demonstração.
Demonstração
Sejam os paralelogramos ABCD, EBCF, sobre a mesma base BC e nas mesmas
paralelas AF, BC; digo que o ABCD é (1) igual ao paralelogramo EBCF.
Pois, como ABCD é um paralelogramo, a AD é (2) igual a BC. Pelas mesmas coisas,
então, também a EF é (3) igual a BC; desse modo, também a AD é (4) igual a EF; e a DE é
comum; portanto, AE todo é (5) igual a DF toda. Mas também a AB é (6) igual à DC; então,
as duas EA, AB são (7) iguais às duas FD, DC, cada uma a cada uma; e o ângulo sob FDC é
(8) igual ao sob EAB, o exterior, ao interior; portanto, a base EB é (9) igual à base FC, e o
triângulo EAB será (10) igual ao triângulo DFC; fique subtraído o DGE comum; portanto, o
trapézio ABGD restante é (11) igual ao trapézio EGCF restante; fique adicionado o triângulo
28

GBC comum; portanto, o paralelogramo ABCD todo é (12) igual ao paralelogramo EBCF
todo. Portanto, os paralelogramos que estão sobre a mesma base e nas mesmas paralelas são
(13) iguais entre si; o que era preciso provar.

Congruência
De segmentos e ângulos: (2), (3), (4), (5), (6), (7), (8) e (9)
(2) AD  BC
  (4) AD  EF
(3) EF  BC
Como DE é comum aos segmentos de reta AD e EF, então podemos escrever:
AD  DE  DE  EF , que é o mesmo que, (5) AE  DF

(6) AB  DC

e como  (7) AE  AB  DF  DC
 AE  DF

(8)FDC  EAB

(9) EB  FC
Identidade Numérica
(1) O diorismo reforça o que realmente se pretende construir, nesse caso, construir
paralelogramos que possuem equivalência de áreas, mas que essa equivalência é dada pela
identidade numérica, já que é adicionado o triângulo GBC comum.
(10) O triângulo DGE é comum a ambos os triângulos EAB e FDC.
(12) a identidade numérica ocorre pelo fato do triângulo GBC fazer parte de dois
paralelogramos diferentes; “portanto, o paralelogramo ABCD todo é igual ao paralelogramo
EBCF todo”.
(13) apenas a conclusão a Sumperasma.
Igualdade de áreas
(11) O trapézio ABGD é igual ao trapézio EGCF.

Figura 1.2: Diagrama geométrico - Prop. I - 35 Euclides. Adaptação de Euclides, 2009, p. 132.
29

Seja A1 a região definida pelo quadrilátero ABCD e A2 a região definida pelo


quadrilátero EBCF. Os termos A1 e A2 referem-se a objetos diferentes, mas representa
numericamente a mesma área. Então dizer que A1 = A2 faz sentido apenas se o contexto se
referir ao conceito de áreas numericamente idênticas. A1 e A2 são diferentes se consideramos
o espaço ocupado pelos paralelogramos mencionados, são objetos diferentes.
Intensão e extensão possuem características aparentemente distintas, mas não as são
totalmente, porém se completam. Essa é a característica do princípio da complementaridade.
Porém, a ideia de complementaridade ocorre de diversas formas: entre sujeito e objeto,
descrições e construção, objeto e método, meio e esquema de ações, etc.. A lógica não possui
objetos, por isso a extensão não é importante, enquanto a matemática possui objetos, fazendo
com que a extensão seja importante. Extensão na matemática é conhecida pela teoria dos
conjuntos.
Na matemática moderna tudo começava com o problema de extensão. Os objetos eram
classificados em termos de extensão de certos conceitos: como vermelho, branco, quadrado,
redondo, pequeno, grande, nesse sentido o conceito foi estritamente ligado com a extensão.
Por exemplo, a cor vermelha; ficamos procurando todas as coisas que existem e que possam
ser classificadas de vermelho, ou seja, procuramos todas as coisas do mundo que formam a
extensão desse conceito. Na lógica, isso se chama teoria descritiva de referência.
A grande desvantagem da teoria descritiva de referência é que o conhecimento das
pessoas é diferente. No exemplo, o nome capivara para o turista não era um conceito, porque
ele não conhecia o animal, o nome nesse caso é simplesmente uma palavra. Quando se
fizeram os primeiros experimentos da física quântica, referiam-se aos átomos como tudo
aquilo que não se podia dividir. Mas o que seriam os pontos brancos vistos no microscópio
eletrônico, e que seriam aquelas partículas que atravessavam o campo magnético? Não se
conheciam ainda as partículas constituintes dos átomos, ou seja, suas divisões: prótons,
elétrons e neutros.
O pensamento relacional é uma preparação para os conceitos de intensão e extensão.
Por exemplo, podemos falar das características de uma pessoa como: cor dos olhos, com da
pele, código genético, alto, baixo, gordo, magro, etc., podemos dar descrições sobre uma
pessoa e enriquecer cada vez mais o conceito adicionando cada vez mais características. Em
contrapartida, enriquecendo o conceito vamos diminuindo a extensão, esta é a chamada lei da
relação inversa entre intensão e extensão de um conceito. Essa lei foi questionada por Kant
no final do século XVIII, porque os números são características de conjuntos, e se
30

aumentássemos as características, ou seja, os números (intensão), a extensão também


aumentaria.
A complementaridade entre sentido e referência, ou intensão e extensão,
respectivamente, são diferentes na lógica ou filosofia da linguagem e na matemática. Por
exemplo, intensão do conceito de cadeira são as características, as componentes que formam a
cadeira, que servem para diferenciar se o que encontramos é uma cadeira ou uma capivara. A
extensão desse conceito é formada por todos os objetos que possuem essas características, que
são denominados ou identificados como cadeira, um objeto real. Já na semiótica que surge da
linguística com Saussurre, de acordo com a sua definição de signo, não existe referência,
porque para ele cadeiras não fazem parte da linguística da linguagem. Os objetos dos
linguistas são a linguagem, como essa é falada ou escrita e como funções no contexto da
comunicação entre as pessoas.
Na matemática, especialmente nas áreas formais como na álgebra e na aritmética, o
conceito de intensão não está fortemente ligado ao conceito de extensão como o exemplo da
cadeira. No exemplo da cadeira a intensão foi simplesmente um indicador de referência, ou
seja, foi usado para descobrir se o objeto que se encontra em determinado recinto é uma
cadeira ou uma capivara, não possui independência autêntica. Mas nas ciências formais a
intensão possui independência. Na álgebra, por exemplo, a intensão pode estar diretamente
ligada ao fato de uma equação ter solução.
Intensão e extensão tomam formas diferentes nas várias áreas do conhecimento
humano. No conhecimento empírico (como a cadeira); no conhecimento formal (matemático
– como na álgebra); etc.. Então o mais importante é a relação, a complementaridade entre
eles, porque muitas vezes não temos condições, por exemplo, de calcular uma equação
simplesmente porque os cálculos envolvidos são complexos. Nesse caso, há necessidade de,
entre outras coisas, construir um modelo e observar como é o comportamento do fenômeno, e
assim, por meio desses resultados, encontrar uma resposta para um determinado problema.

1.3 Complementaridade na Matemática

“A complementaridade dos conceitos matemáticos é um fenômeno histórico” (OTTE,


2003a, p. 214, tradução nossa). O desenvolvimento da matemática deve, em grande parte, ao
pensamento relacional entre coisas que aparentemente são distintas, como é o caso da
aritmética, que trabalha com números, e a geometria, que trabalha com grandezas e figuras.
De acordo com Otte (1993, p. 21 – 22), é possível conceber “a polaridade entre aritmética e
31

geometria como a primeira visualização da ideia de complementaridade na matemática”.


Desse modo, na geometria de Euclides não encontraremos complementaridade entre
aritmética e geometria (como mostraremos no capítulo II) pelo simples fatos do espaço
euclidiano não ser formado por pontos descritos por coordenadas aritméticas. Apenas com
Descartes podemos dizer que há complementaridade na matemática no sentido aqui exposto.
A complementaridade em matemática ocorre em termos de intensão e extensão de
conceitos matemáticos. Em uma expressão do tipo x2 + y2 = r2, além das relações existentes
entre os termos, existe a relação com o diagrama geométrico, cuja representação ocorre
primeiramente na mente antes de se concretizar por meio de um traçado geométrico no plano.
Como diz Kant: “não podemos contemplar uma reta sem desenhá-la no pensamento; nem
pensar em um círculo sem, no entanto, descrevê-lo” (KANT, 2001, B154), isto é, sem
imaginar uma atividade. “A matemática é uma atividade “objetiva”, uma atividade sobre os
objetos e não um mero cálculo” (OTTE, 2003b, p. 28), como muitas vezes é a lógica. A
extensão, nesse caso, são todas as circunferências cujos centros se encontram na origem de
um sistema de coordenadas. A representação algébrica descrita dessa forma é apenas umas
das possíveis representações do conceito de círculo, ou seja, é a intensão.
A intensão e a extensão são complementares no sentido de possibilitar pensar no
objeto por meio de uma expressão. A situação exige vincular a expressão algébrica com seu
aspecto geométrico. Se não existir esse entendimento, não há conhecimento significativo, a
expressão passa a não ter sentido, pois são apenas ícones, uma qualidade do objeto, e como já
dissemos qualidades pode não representar nada.
Os objetos da matemática possuem natureza dual. Existe a dualidade entre o contínuo
e o discreto, a teoria e as aplicações, a axiomática e a intuição, etc.. “A complementaridade
torna-se distinta da mera dualidade a partir de uma perspectiva genética, que se concentra no
caráter evolutivo do nosso conhecimento. Só a partir dessa perspectiva a relação entre sujeito
e objeto, e não o objeto como tal, entra em foco” (OTTE, 2003a, p. 205, tradução nossa).
O estudo dos objetos da matemática em uma perspectiva de complementaridade requer
considerar os aspectos da dualidade de forma agregada, a exemplo da física quântica, em que
o raio de luz possui um caráter dualístico, podendo ser considerado tanto uma partícula tanto
quanto uma onda, dependendo apenas das circunstâncias. A experiência com a fenda dupla
mostra o que acontece quando um feixe de luz é lançado sobre o anteparo que contém a fenda.
Se o anteparo contiver apenas uma fenda os raios luminosos comportam-se como partículas,
formando uma lista clara em uma parede imediatamente posterior ao anteparo. Se o anteparo
contiver duas fendas os raios luminosos comportam-se como ondas, formando várias listas na
32

parede. Niels Bohr considera essas duas distintas características do mesmo fenômeno como
complementares, estabelecendo duas intensões para a mesma extensão.
Na matemática, Otte (1990) apresenta um ótimo exemplo da importância da
complementaridade para a compreensão de um fenômeno. Ele interpreta o paradoxo de Zenão
de Eléia (490 – 430 a. C.) sobre a corrida de Aquiles com a tartaruga de acordo com a ótica da
complementaridade. Esse paradoxo se estabelece na questão determinística de que o espaço e
o tempo são constituídos por uma pluralidade de partes reais, sendo, portanto, passíveis de
serem divididos sem limites. A situação hipotética é como segue:
Aquiles deveria primeiro chegar ao ponto em que a tartaruga se encontrava na partida,
depois ao ponto em que ela se encontrasse quando ele alcançasse o seu ponto de partida, e
depois ainda ao terceiro ponto no qual ela se encontrasse quando ele tivesse alcançado o
segundo, e assim ao infinito (REALE, 1993, p.119).
Conclui-se que assim Aquiles nunca conseguirá alcançar a tartaruga. Mas, essa
conjectura vai contra o que constatamos na realidade, por isso ela deve ser rejeitada, ou seja, o
espaço e o tempo não são constituídos por uma infinidade de partes reais, não é algo discreto.
Fisicamente o espaço e o tempo são constituídos por funções contínuas. Isso leva a acreditar
que devemos considerar os aspectos contínuos e discretos dependendo das circunstâncias,
assim como fizemos com o experimento de Bohr.
Otte (1990, p. 55, tradução nossa) argumenta a duplicidade do conceito de movimento.
“Por um lado o movimento pode ser caracterizado em partes discretas, como as que permitem
calcular valores individuais quando representado por uma expressão matemática. Por outro
lado, destacam-se os aspectos contínuos quando está representado graficamente como uma
função, que permite a ideia global e qualitativa da função (= movimento)”. Assim, na
perspectiva de Otte, a função é simultaneamente qualitativa e quantitativa; conceptual e
construtiva. O enigma se estabelece na maneira como Zenão apresenta o problema porque ele
considera apenas seu aspecto discreto desprezando a continuidade do movimento e a certeza
de que o mais rápido irá ultrapassar o mais lento.
No entanto, esse problema em linguagem matemática é representado por uma função
linear, que por sua vez possui um caráter duplo: permite calcular pontos particulares e
também pode mostrar o comportamento por meio de uma reta contínua que permite uma ideia
global e qualitativa do movimento. Então não há como considerar apenas um ou outro
aspecto, eles devem ser complementares, dependendo do contexto devemos optar pela
perspectiva qualitativa ou quantitativa da função. Nesses termos as dualidades discreto-
contínuo e quantitativo-qualitativo devem serem percebidos de forma complementar.
33

A matemática como atividade depende do pensamento intuitivo. O conhecimento para


Kant se fundamenta na dualidade entre conceitos e intuições. “Intuição e conceitos
constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento” (KANT, 2001, B75). E
completa dizendo que: “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são
cegas” (KANT, 2001, B76).
Intuição é a capacidade de perceber as representações que permitirão o
reconhecimento do objeto, ou seja, a conceituação do objeto. Então o conhecimento intuitivo
faculta de duas fontes fundamentais do espírito: “primeiro a capacidade de receber as
representações (receptividade das impressões) e a segunda é o poder de conhecer um objeto
por meio destas representações (espontaneidade na produção de conceitos). Pela primeira nos
é dado um objeto; pela segunda é pensado em relação com aquela representação (como
simples determinação do espírito)” (KANT, 2001, B74).
A geometria euclidiana é constituída essencialmente por figuras e suas construções,
subsidiada pelo método axiomático. “Na geometria preocupamo-nos com os significados dos
conceitos como o “triângulo” ou “reta” em geral, apenas a ponto de realizá-los
construtivamente” (OTTE, 2003b, p. 28). Após Kant apresentar suas duas fontes de
conhecimento, a saber, intuição e conceito, que são complementares, a geometria ganhou
outro ingrediente, o espaço. Mas isso acontece somente no decorrer do século XIX, com
Gauss (1777 – 1855), Poncelet (1788 – 1867) e Grassmann (1809 – 1878) firmando-se o
espaço como um objeto da matemática. A geometria euclidiana para Kant é a sua forma de
operar por construção, mas a intuição do espaço torna-se um meio da atividade construtiva.
Kant considerava as proposições da matemática como sendo sintéticas a priori. Isso
significa que não dependem dos sentidos, ou seja, é independente da experiência.

Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; [...]
Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é
com esta que todo o conhecimento tem o seu início. [...] Se, porém, todo o
conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da
experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um
composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa
própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por impressões sensíveis)
produz por si mesma. [...] se haverá um conhecimento assim, independente da
experiência e de todas as impressões dos sentidos. Denomina-se a priori esse
conhecimento e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na
experiência (KANT, 2001, B2).

A geometria era a ciência do espaço e da percepção, portanto não precisava da


experiência para “provar” seus resultados. “Traçar uma reta a partir de todo ponto até todo
34

ponto”4 estava já subentendido a priori. Para Otte, a compreensão desse conceito é


dependente da relação mútua de linha reta e os dois pontos dados que devem ser construídos,
é uma atividade. No entanto, a proposição “a soma dos ângulos internos de um triângulo é
igual a dois retos” não é totalmente verificável pela intuição, é necessária a verificação por
meio de construções auxiliares para determinar a veracidade da afirmação. Nesse sentido,
Kant divide as intuições em duas vertentes, a sensível e a pura. As intuições sensíveis são
advindas do mundo exterior, por meio das atividades empíricas, características de proposições
sintéticas a posteriori. Mas, esse mundo perceptível acontece no espaço e no tempo que são
intuições sintéticas a priori. Conseguimos pegar em um cubo, mas, no entanto, não
conseguimos pegar no espaço.
“As propriedades de objetos matemáticos, como retas, são propriedades relacionais,
como a afirmação de que dois pontos determinam exatamente uma reta, e devem
consequentemente ser construídos na intuição” (OTTE, 2003b, p. 28 – 29). “Não posso ter a
representação de uma linha, por pequena que seja, se não a traçar em pensamento, ou seja,
sem produzir as suas partes, sucessivamente, a partir de um ponto e desse modo retraçar esta
intuição” (KANT, 2001, A163). “A matemática não é uma ciência quase-empírica, que
estabelece os seus métodos por meio das propriedades de seus objetos; em vez disso, os
objetos devem ser construídos simultaneamente com as regras e métodos de raciocínio”
(OTTE, 2003a, p. 222, tradução nossa).
Da imaginação das figuras surge a geometria “com seus axiomas, que exprimem as
condições de intuição sensível a priori. [...] Os axiomas, porém, devem ser proposições
sintéticas a priori” (KANT, 2001, A163). Na geometria euclidiana, os objetos sobre os quais
a teoria fala parecem ser dados pela intuição, e independentes da teoria. “A geometria é
baseada na introspecção, e esta envolve dois procedimentos, análise e sínteses. A síntese
significa a construção e a construção é, como em Euclides, definida em termos dos meios de
construção (régua e compasso como em Euclides ou por meio da proporcionalidade do
compasso de Descartes), e não um algoritmo ou um procedimento precisamente especificado”
(OTTE, 2003b, p. 43).
Cognição matemática, diz Kant (2001, B742), “é a cognição por meio da construção
de conceitos. A construção de conceitos é a apresentação a priori da intuição, que
corresponde ao conceito". O conhecimento é, portanto, para Kant advindo de conceitos e
intuições puras.

4
Veja Irineu Bicudo, 2009, p. 98.
35

Os objetos da matemática, na perspectiva do princípio da complementaridade, são


fundamentais para a produção do conhecimento matemático. Os objetos e os conceitos desses
objetos são relevantes na elaboração do conhecimento. Para a construção desses conceitos, há
necessidade de atividade cognitiva, pois essa é a essência da relação sujeito – objeto. De
acordo com Otte (1990, p. 38, tradução nossa) “todo conhecimento pressupõe um sujeito e um
objeto e as relações entre estes dois (que são estabelecidas pela atividade do sujeito)”.
Na logística speciosa de Viète as relações são acessadas independentemente por meio
da aritmética e da geometria. A matemática cartesiana é fundamentalmente a interação do
número com a visualização geométrica, não é “uma ciência da estrutura pura”, não é algébrica
no sentido moderno.
“A história das ciências pode ser esboçada como uma transição de pensar em objetos
para o pensamento relacional. O pensamento teórico, portanto, não está preocupado com
objetos concretos, nem com as propriedades intrínsecas de tais objetos e termos teóricos, em
particular, não são apenas os nomes dos objetos. Pelo contrário, a ciência se preocupa com as
relações existentes entre os objetos ou fenômenos” (OTTE, 1990, p. 37, tradução nossa).
A relação entre sujeito e objeto matemático (atividade matemática) é um exemplo da
necessidade de meios complementares. Nessa perspectiva o foco está na relação entre o
sujeito e o objeto matemático, e não somente no objeto em si. A compreensão matemática em
uma perspectiva que envolve a gênese do conhecimento nos obriga a abandonar noções que
envolvem objetos ideais, independentes do sujeito, ou verdades separadas das possibilidades
de interpretações ou verificações. “O objeto da Matemática ou o conteúdo da atividade
matemática de forma alguma pode ser definido absolutamente e independente dos meios da
atividade matemática” (OTTE, 1993, p. 226).
Do ponto de vista psicológico de Piaget, as novas construções matemática procedem
por abstração reflexiva, conceito que, segundo ele, explica o surgimento da matemática pura,
e isso acontece, de acordo com Otte (2003b, p. 44) “por definição das etapas da atividade
cognitiva individual permitindo distinguir inteiramente os meios e os objetos dessa atividade,
que são complementares”.

1.4 Uma questão de significado

René Thom, em sua palestra no Congresso Internacional de Exeter em Educação


Matemática em 1972, afirmou que “o verdadeiro problema que confronta o ensino da
36

matemática não é de rigor, mas o problema do desenvolvimento de “significado”, da


“existência” de objetos matemáticos”.
Primeiramente, vamos tratar a questão da palavra significado e, em seguida, como dar
significado aos objetos da matemática. No Dicionário de Filosofia, esse termo é entendido
como “a dimensão semântica do procedimento semiológico, ou seja, a possibilidade de um
signo referir-se a seu objeto” (ABBAGNANO, 1998, p. 890). Na semiótica, podemos
conceber o significado na relação complementar entre intensão e extensão.
Frege buscou distinguir sentido de significado. O objeto designado (extensão) é o
significado do signo; o modo como nos é dado o objeto (nome, conceito ou uma essência –
intensão) é o sentido. Peirce fazia a mesma distinção de Frege, mas com terminologia
diferente. Peirce falava de objeto do signo (extensão) e de interpretante do signo (intensão),
que é o sentido de Frege.
A Educação Matemática deve cumprir o papel de dar significação ao conteúdo
matemático. O objetivo específico da Educação Matemática é estudar os fatores que afetam o
ensino e a aprendizagem da matemática e desenvolver programas para melhorar o ensino
dessa disciplina. Mas, a questão, muitas vezes, não é saber qual a melhor maneira de ensinar
matemática, a questão é saber o que é a matemática. São questões sobre matemática e não de
matemática, as quais não possuem uma resposta ou a resposta; pronta, acabada, mas, antes,
encontra-se em outras disciplinas indicações e possíveis explicações nem sempre
convergentes.
“A Educação Matemática é uma área de pesquisa e ensino muito complexa, pois temos
que construir pontos às “duas culturas” [Matemática e Educação Matemática]. [...] Para não
entrar em desespero, vamos reduzir esta complexidade, dizendo que o segredo da Educação
Matemática encontra-se na relação entre linguagem/lógica/filosofia/matemática5”.
Saber o que é Matemática tem sido uma inquietação que ao longo do tempo
proporcionou diversas tentativas de resposta. Para Ponte et al (1997) “o problema se acentua
quando se pretende identificar os objetos da sua teoria”. A disciplina que reflete sobre a
matemática e o ensino da matemática é a filosofia da matemática, um ramo da filosofia que
não hesita em fazer questionamentos tais como: 1) a Matemática é uma descoberta ou uma
invenção? 2) Quais são os objetos da matemática? 3) Qual é a natureza do conhecimento
matemático? 4) Como aprendemos matemática?

5
Aula proferida no dia 31/10/2013 pelo professor Michael Otte. As duas tias da Educação Matemática.
37

O idealismo e o racionalismo são correntes filosóficas que procuram responder se a


matemática é uma descoberta ou uma invenção.
O idealismo é uma corrente filosófica que acredita que a matemática é uma construção
humana. “[...] toda a realidade matemática é condicionada pelas construções dos matemáticos
que inventam essa realidade. Neste âmbito, os objetos matemáticos são livres invenções do
espírito humano, que não existem autonomamente e que possuem, apenas, as propriedades
que o pensamento puder determinar” (PONTE; BOAVIDA; ABRANTES, 1997, p. 03).
Por outro lado, o realismo afirma que a matemática existe independentemente do
sujeito. “O realismo supõe a realidade de um universo matemático autônomo. Os objetos têm
propriedades próprias que existem independentemente do sujeito. O homem não inventa esta
realidade objetiva que lhe é exterior. Limita-se a descobri-la” (PONTE; BOAVIDA;
ABRANTES, 1997, p. 03). Essa é uma visão clássica da filosofia platônica.
No âmbito da filosofia da matemática é natural considerar os termos realismo e
platonismo como sinônimos. Para Platão o conhecimento se faz por meio das ideias ou
formas, modelos ideais que o sujeito deve atingir. Objetos físicos são cópias imperfeitas dos
objetos ideais. Um, dois, três, etc. são formas da aritmética; e outras, como ponto, reta e
plano, são exemplos de formas geométricas. Quando enunciamos propriedades ou relações
entre esses entes, estamos descrevendo relações entre as Formas. Na concepção das ideias
platônicas, a Matemática é um meio entre o mundo sensível e o inteligível.
O homem, por meio dos sentidos, vê apenas as nuances da realidade, enquanto pela
razão chega à essência.
A afirmação acima aponta para dois pontos de vista diferentes. Se a matemática é uma
invenção, como são inventados seus objetos, apenas pela razão ou por meio de objetos
sensíveis? Se for uma descoberta, como são descobertos seus objetos, pela razão ou pelos
objetos sensíveis? Essas duas correntes ganham nomes específicos de empirismo e
racionalismo.
Racionalismo e empirismo são duas correntes filosóficas opostas que tentam explicar
o processo de aquisição do conhecimento. A solução racionalista considera que só a razão
pode obter conhecimento verdadeiro. Os empiristas, ao contrário, consideram que todos os
nossos conceitos derivam dos sentidos, portanto a experiência é a única fonte do
conhecimento. Um dos significados, portanto, de racionalismo filosófico, é propriamente a
doutrina de Kant ou então a corrente metafísica da filosofia moderna, de Descartes a Kant.
Os grandes pensadores da teoria do conhecimento são bem representados pelos nomes
de Platão, Aristóteles, René Descartes, John Locke, David Hume e Immanuel Kant. Em
38

defesa da teoria racionalista destacam em épocas diferentes, Platão e René Descartes. Pela
teoria empirista, Aristóteles, John Locke e David Hume.
A concepção platonista considera que os objetos da matemática têm uma existência
real, embora não sejam objetos físicos ou materiais, mas possui realidade objetiva em algum
reino ideal. Origina-se com Platão, e pode ser discernido nos escritos dos logicistas Frege e
Russell. Platonistas sustentam que os objetos e estruturas da matemática têm uma existência
real independente da humanidade, existem fora do espaço e do tempo, são imutáveis, não
foram criados e não mudarão nem desaparecerão. Nesse sentido, fazer a matemática é o
processo de descobrir suas relações pré-existentes. De acordo com o platonismo o
conhecimento matemático consiste em descrições desses objetos e as relações e estruturas que
os ligam. Na filosofia platonista a matemática é uma descoberta e não uma invenção humana.
Mas, a questão que levantamos é como explicar o surgimento da expressão

(a + b)2 = a2 + 2ab + b2 (1)

O homem criou a exposição dessa identidade, mesmo que ela possa advir da corrente
realista, essa expressão, tal como é colocada, provém da corrente realista. Para a Educação
Matemática, o importante é dar significado aos termos presente na expressão (1).
Frequentemente, os educadores matemáticos se deparam com essas questões que
surgem naturalmente pelo próprio caráter peculiar desses objetos, que se manifestam, muitas
vezes, por meio dos anseios dos próprios alunos. O professor precisa ser sensível o suficiente
para perceber que os alunos procuram um significado para a disciplina que estudam. É preciso
ver o semblante desses alunos quando são indagados sobre a relevância da expressão (1). Ao
fazermos questionamentos a respeito da expressão (1), como: “para que vocês estão estudando
expressões como essa? Qual o significado dessa expressão?” Pelas questões levantadas é
possível perceber o estímulo evidente estampado no rosto de cada aluno. Parece até que eles
estão dizendo: “aha, agora vou aprender matemática, porque tudo que eu queria era saber a
relevância dessa equação, dessa fórmula, desse resultado”.
Nos trabalhos de casa, alunos se esforçam para encontrar a resposta correta e, muitas
vezes, sentem-se satisfeitos quando chegam à solução, mesmo se eles não entendem
completamente porque sua resposta está correta. Esses trabalhos, normalmente, mostram a
capacidade do aluno para reproduzir uma manipulação numérica ou algébrica que nem
sempre é uma indicação de que ele compreendeu as sutilezas da matemática envolvidas no
problema.
39

Hoje, nenhum aluno quer resolver trinta e cinco equações de um tipo e trinta e cinco
equações de outro tipo, torna-se cansativo e desestimulante. É como aprender uma nova
língua. Se não gostamos do idioma de um país ou, se não estamos interessados na cultura
desse país, seu povo, se nada nos chama a atenção, não vamos aprender o idioma.
O ensino da matemática possui grande influência platonista. As ideias matemáticas se
constituem como fim em si mesma. Terá vantagem quem possuir maior poder de abstração. O
matemático descobre as verdades que serão repassadas ao aluno pelo professor que não
percorre o caminho do matemático, recorrendo aos resultados, teoremas, definições,
demonstrações e axiomas pré-estabelecidos. “O professor ensina a resolver problemas, mas
achamos que temos que ensinar a analisar problemas”6. Há uma desconstrução entre a
atividade matemática e a forma, pois, o professor não privilegia a atividade laboral cognitiva
que foi utilizada pelo matemático para se chegar ao resultado, à ênfase é a forma. “Esta
ruptura entre a atividade matemática e os seus resultados, entre os problemas e os conceitos,
origina um insucesso escolar importante, particularmente em alunos de famílias populares
que, no seu meio, não estão habituados a manipular uma linguagem explícita, formalizada e
codificada” (PONTE; BOAVIDA; ABRANTES, 1997, p. 05).
O platonismo e o idealismo ocupam posições diferentes na filosofia da matemática.
Apesar das extremidades opostas quanto à questão da existência dos objetos matemáticos,
para os professores de matemática, ela deve ser vista como a passagem do concreto ao
abstrato e também é entendida como uma aplicação ao mundo físico.

Aplicação

Objetos da
Mundo Físico
Matemática

Abstração

Figura 1.3: Modelo complementar abstração e aplicação dos conceitos matemáticos.


Fonte: Acervo Pessoal.

6
Aula professor Michael Otte.
40

Para a aprendizagem matemática esse processo dinâmico é fundamental. É nessa


relação que damos significado aos termos matemáticos. O fato essencial é que o ser humano
não consegue se interessar por algo que não tenha significado. Por que um jovem aprende tão
rapidamente questões relacionadas à tecnologia, como por exemplo, criar grupos em redes
sociais ou descobrir as utilidades variadas de um aparelho de telefone celular? Ora, porque de
alguma maneira, esse aprendizado lhe será útil e interessante.
Uma forma de aproximar o sujeito da realidade matemática é relacionar a expressão
do tipo (1) com a forma geométrica de áreas de retângulos e quadrados. De fato, a geometria
nesses termos, torna-se mais palpável do que a álgebra, a geometria euclidiana possui relação
direta com objetos empíricos dados pela intuição, mesmo que os objetos da geometria
euclidiana como pontos, retas e planos não sejam representados por objetos físicos. Afinal, o
que é um ponto ou uma reta na acepção de Euclides? “Ponto é aquilo que de nada é parte”;
“linha é comprimento sem largura” (EUCLIDES, 2009, p. 97). Não existe nada na natureza
que “nada é parte”. Um “ponto” sobre a folha de papel não é necessariamente um ponto de
acordo com os preceitos de Euclides. Isso quer dizer então que a Matemática não é aplicável
ao mundo físico? No entanto, se medirmos os três ângulos internos de um triângulo,
verificamos que a soma dos três é igual a dois retos7. A cada passo vemos confirmadas as
previsões teóricas da geometria euclidiana, cujas aplicações são fundamentais na ciência e na
técnica.
O que é importante para o ensino da matemática, não é ficarmos amputados em
definições de pontos, retas, etc., mas na relação que os entes matemáticos possuem. Um ponto
em nossa mente parece claro, talvez por esse motivo Platão preferisse dizer que os objetos da
matemática não estavam presentes no mundo sensível, mas sim no mundo das ideias, apesar
desse mundo das ideias não ser propriamente a mente do individuo e, além disso, de acordo
com a definição de Euclides não temos ponto na natureza.
O papel intuitivo da geometria euclidiana foi um dos motivos, segundo René Thom, da
geometria ter sido marginalizada perante a álgebra. “O trabalho axiomático, resultante de
Hilbert (Grundlagen der Geometrie) mostrou que o alegado rigoroso dos Elementos de
Euclides é, em grande parte, ilusório; ele é comprometido por apelos frequentes à intuição”
(THOM, 1971, p. 695, tradução nossa). Nesse sentido, o século XIX foi um período histórico
em que foi melhor evitar a geometria euclidiana e desenvolver as ideias da álgebra por
constitui-se uma apresentação rigorosa.

7
Veja proposição 32 de Euclides: “Os Elementos”, p. 122. Tradução de Irineu Bicudo.
41

Em um nível elementar, certamente, o uso da álgebra leva a simplificações maciças.


Na geometria e até mesmo na aritmética, resolver problemas por meio do raciocínio carece de
uma extraordinária destreza da mente, ao passo que a solução algébrica é puramente
mecânica. Aqui a economia do pensamento introduzida pela álgebra é inegável.
Para o desenvolvimento da matemática, o surgimento da álgebra foi decisivo. Para o
processo de justificação e rigor, a álgebra é fundamental. No entanto, pode-se perguntar se há
necessidade de introduzir no ensino da matemática os desenvolvimentos rigorosos que a
álgebra permite construir.
Para René Thom (1971, p. 696, tradução nossa) “a tendência contemporânea para
substituir a geometria pela álgebra é educacionalmente nociva e deve ser revertida. Há uma
razão simples para isso: enquanto há problemas de geometria, não há problemas de álgebra”.
Os chamados problemas de álgebra são exercício simples em que se privilegia a
técnica e a memorização, requerendo a aplicação cega de regras aritméticas e de um
procedimento pré-estabelecido. René Thom diz que:

“Com raras exceções, não se pode pedir a um aluno para provar um teorema de
álgebra; quer a resposta solicitada é quase óbvia e pode ser alcançado pela
substituição direta de definições, ou o problema se enquadra na categoria de álgebra
teórica e sua solução ultrapassa as capacidades de até mesmo o aluno mais talentoso.
Exagerando apenas ligeiramente, pode-se dizer que qualquer questão em álgebra ou
é trivial ou impossível de resolver” (THOM, 1971, p. 696, tradução nossa).

Por outro lado, os problemas clássicos de geometria apresentam uma ampla gama de
desafios e possuem valor educativo significativo. A álgebra permite cálculos mecânicos
aligeirados e sem significado, enquanto a geometria exige tempo, esforço e concentração,
cujos problemas, grande partes dos alunos conseguem resolver. “Seria um grave erro
simplificar a aprendizagem da matemática por meio da substituição da geometria pelas
estruturas algébricas que são amplamente e prematuramente ensinadas sem motivação
adequada” (THOM, 1971, p. 696, tradução nossa).
dsfPara amenizar a retórica pesada e indigesta da geometria de Euclides e os cálculos
sem significado da álgebra, uma possibilidade seria utilizar, parafraseando Descartes, o que há
de melhor na geometria e na álgebra, de forma que para o ensino, a complementaridade desses
dois campos poderia desencadear a compreensão dos conceitos matemáticos. O método de
aplicação de área grego se torna um inconveniente para o ensino da matemática, assim como,
o desenvolvimento da expressão (1). O primeiro por ser tedioso e retrógrado, o segundo por
desenvolver muito mais a técnica do que o raciocínio. Numa equação como x2 – 5x + 6 = 0 o
único significado existente é resolver, ou seja, a intensão. A extensão seria uma aplicação da
42

equação para solucionar problemas da própria matemática ou de outras áreas do


conhecimento, ou seja, a criação de significados. Obviamente, para o ensino da matemática, é
importante tanto a intensão, a técnica de resolução da equação, quanto a extensão e a
aplicação dos conceitos matemáticos.
“Qualquer matemático dotado de um mínimo de honestidade intelectual irá reconhecer
que em cada uma das suas provas, é capaz de dar um significado aos símbolos que usa”
(THOM, 1971, p. 696, tradução nossa).
Rigor ou imprecisão é essencialmente uma propriedade do raciocínio matemático.
Nenhuma estrutura axiomática elaborada ou máquina conceitual refinada é necessária para
julgar a validade de uma linha de raciocínio. Basta ter uma compreensão do significado de
cada símbolo envolvido e uma ideia de como combiná-los.
Na Matemática, a questão do significado reside no fato de perceber os objetos da
matemática como entidades que comunica uma ideia. Conceito e objeto são inseparáveis
nesse aspecto. Para que ocorra significado, ambos as instâncias devem estar, inter-
relacionadas, ou seja, em cooperação mútua. Por esse prisma, a intensão e extensão devem ser
complementares. Principalmente quando tratamos de objetos abstratos como na álgebra, a
intensão, muitas vezes não consegue dar significado ao conteúdo algébrico, sendo necessária
a extensão para que ocorra a significação.
R. Thom, em sua palestra no Congresso Internacional de Exeter em Educação
Matemática em 1972, afirmou que “o verdadeiro problema que confronta o ensino da
matemática não é de rigor, mas o problema do desenvolvimento de “significado”, da
“existência” de objetos matemáticos”. [...] “Talvez mais do que qualquer outra prática, a
prática matemática requer uma abordagem complementarista, se sua dinâmica e significado
deve ser devidamente compreendido” (OTTE, 2003a, p. 203, tradução nossa).
Vamos considerar um aluno que seja capaz de interpretar a igualdade numérica dada
por 2 × (–3) = (–3) × 2. Este aluno pode, no entanto, mostrar a validade dessa igualdade
usando cálculos numéricos obtendo 2 × (–3) = – 6 e (–3) × 2 = – 6, ou seja, temos os mesmos
resultados, a saber – 6. Portanto, 2 × (–3) = (–3) × 2. Um matemático poderia dizer: os
números, munidos das operações de adição e multiplicação, vale a propriedade comutativa da
multiplicação, então 2 × (–3) = (–3) × 2. Ambos produziram significados diferentes, ou
extensões diferentes para a mesma intensão.
Lins (1993, p. 79) mostra um exemplo na tentativa de evidenciar pontos de vistas
epistemologicamente diferentes sobre um objeto matemático, nesse caso, a solução de uma
equação matemática. Vamos simplificar seu exemplo. Segundo o autor, a professora pede que
43

os alunos olhem para a equação 3x + 10 = 100 e ajudem a resolver. Um dos alunos sabe que
pode tirar a mesma “coisa” dos dois lados da equação, então a equação resume-se a 3x = 100,
e segue-se a resolução. No dia seguinte a professora apresenta a equação 3x + 100 = 10. Os
alunos se surpreendem e logo chegam a conclusão que essa equação não é passível de
compreensão.
A professora não entende porque os alunos não conseguem resolver a última equação.
Mas, chega-se a conclusão que o impasse estava na questão de significado dos objetos
matemáticos envolvidos. Para o aluno, o significado da equação seria como uma balança: “se
ponho o mesmo de cada lado, continua equilibrado”. A lógica das operações estava sendo
guiada pelo campo semântico da balança. No caso da segunda equação, essa ideia não poderia
ser aplicada, pois, como pode ser que de um lado da balança tem cem quilos e mais uns pesos
e do outro lado apenas 10?
Resumindo, professores e alunos podem estar vislumbrando significados diferentes
para uma mesma referência. Significado, para esse autor, “é uma relação entre uma crença-
afirmação e uma justificativa para ela”. Em nossa teoria metodológica, seria uma extensão
para uma intensão. Nesse caso, significado, seria, ao mesmo tempo, a relação entre intensão e
extensão.

1.5 Abstração Reflexiva e Pensamento Matemático

O pensamento matemático muitas vezes começa com o processo de abstração, ou seja,


perceber a semelhança entre dois ou mais objetos ou eventos. Aspectos que eles têm em
comum, seja concreto ou hipotético, pode ser representado por símbolos, como números,
letras, marcas em geral, diagramas, construções geométricas, ou mesmo palavras. Números
inteiros são abstrações que representam o tamanho dos conjuntos de coisas e acontecimentos,
ou a ordem das coisas dentro de um conjunto. O círculo como um conceito é uma abstração
derivada de faces humanas, flores, rodas; a letra A pode ser uma abstração para a área de
superfície, para a aceleração de todos os objetos em movimento, ou para todos os objetos que
possuem alguma propriedade especificada; o símbolo (+) representa um processo de adição, e
não leva em conta o que está sendo adicionado se são maçãs ou laranjas, horas ou quilômetros
por hora, etc.. Abstrações são feitas não só a partir de objetos ou processos concretos, elas
podem também ser feitas a partir de outras captações, tais como os tipos de números (números
pares, por exemplo).
44

O objetivo dessa seção é mostrar que o conceito de abstração reflexiva pode ser uma
poderosa ferramenta para entendermos o desenvolvimento histórico da matemática, uma vez
que, segundo Dubinsky (1991), “a história do desenvolvimento da matemática, desde a
antiguidade até os dias atuais, pode ser considerada como um exemplo do processo de
abstração reflexiva”. É importante sabermos a relação do conceito de abstração reflexiva com
o desenvolvimento dos conceitos matemáticos, tendo em vista que, “certos resultados gerais
da matemática são psicologicamente explicáveis com base na atividade do sujeito” (BETH;
PIAGET, 1974, p. 01) os quais são peças fundamentais da abstração reflexiva. Nesse
contexto, na matemática, questões acerca do surgimento de estruturas da matemática pura são
sempre um desafio. Devemos fazer o seguinte questionamento: como é possível a matemática
pura?
Nosso estudo aborda os temas fundamentais da Epistemologia Genética, tomando
como base a obra Mathematical Epistemology and Psychology de Jean Piaget e Evert W.
Beth, que analisa a questão psicológica da matemática pura, ou seja, aponta as etapas
estruturais de formação cognitiva que o sujeito precisa perceber para alcançar um pensamento
puro, abstrato. No entanto, é válido entender o processo de construção do conhecimento
defendido por Piaget, ou seja, compreender que o conhecimento não se origina apenas dos
objetos (empirismo) nem tampouco apenas do sujeito (racionalismo), mas da interação entre
os dois, da complementaridade entre sujeito e objeto.
No intuito de concretizarmos o objetivo, faz-se necessário explicar exatamente o que
queremos dizer por abstração reflexiva e mostrar como essa teoria pode descrever a
epistemologia dos conceitos matemáticos. Começamos explicando a questão da abstração e
suas variantes.
Abstração, por si só, é o processo do pensamento onde as ideias são distanciadas dos
objetos. Quando olhamos uma maçã, por exemplo, podemos destacar a cor vermelha, o talo,
as sementes, que são algumas de suas características primordiais, intensões que permitem a
determinação, não sendo possível, portanto, destacar todas suas propriedades. A abstração, de
uma forma geral, utiliza-se de um processo de simplificação, pois não é possível apresentar
todas as características de um objeto, o indivíduo não “traz” o objeto inteiro, mas apenas
características ou propriedades fundamentais, ou essenciais, para construir uma representação,
o esquema, desse objeto. A observação fenomenológica, por exemplo, permite após análise,
postular propriedades universais de fenômenos e objetos, de onde devem nascer, segundo
Santaella (1983, p. 6), “as categorias universais de toda e qualquer experiência e
pensamento”. Além disso, detalhes concretos são deixados ambíguos, com diferentes
45

interpretações, que na teoria peirceana de signo, decorre do interpretante dinâmico, isto é,


aquilo que o signo efetivamente produz em cada mente singular.
Jean Piaget distinguiu três tipos de abstração, a saber: abstração empírica; abstração
pseudoempírica e; abstração reflexiva.
A abstração empírica consiste em extrair de um objeto ou de uma classe de objetos
suas características comuns, como, por exemplo, a cor ou o peso. Estas propriedades residem
totalmente no objeto. Tirar conclusões pela observação direta dos objetos sem que esses
sofram qualquer interferência do sujeito é classificado de abstração empírica.
Efetuar uma operação com a ajuda do ábaco é, para Piaget, uma abstração
pseudoempírica, pois o resultado não estava no objeto e foi preciso uma reorganização para
que ele aparecesse, ou seja, numa abstração pseudoempírica “as propriedades constatadas são,
na realidade, introduzidas no objeto por atividade do sujeito”. (PIAGET, 1995, p.06).
A abstração reflexiva apoia-se sobre as atividades cognitivas do sujeito. Essas
atividades são percebidas a partir do resultado das ações que o sujeito realiza, podendo chegar
a uma conclusão apoiando-se sobre as ações e não sobre o objeto propriamente dito.
A diferença entre a abstração reflexiva e a abstração empírica refere-se a ação do
sujeito em oposição aos objetos. A abstração reflexiva ocorre quando podemos raciocinar
levando em consideração as ações coordenadas, fato que leva a não mais precisar dos objetos
para entender um determinado processo ou assunto. Por outro lado, a abstração empírica
necessita do objeto físico para que o sujeito elabore um conceito.
Piaget (1995, p. 10) exprime um exemplo que retrata essa diferença. Se formos
construir um muro “tu pegando uma peça e eu uma peça, e se a gente começa e termina ao
mesmo tempo, como serão os muros com todos os tijolos se continuarmos fazendo esse
processo durante um dia inteiro?” Algumas crianças poderão reconhecer a igualdade entre os
muros apenas verificando o comprimento, por comparação, e não saberão dizer se os muros
terão ou não o mesmo comprimento. Esse grupo de crianças raciocina à base da abstração
empírica. Outras crianças, no entanto, não precisam ver o muro construído, abstraindo apenas
pelas ações coordenadas de ambos os sujeitos, podendo responder a questão de forma correta.
O reconhecimento da bijeção dos movimentos leva o sujeito a se distanciar do objeto
físico e pensar apenas nas ações. Este fato caracteriza uma projeção do plano dos objetos
sensíveis para um plano superior onde predomina o raciocínio lógico.
46

Conhecimento que
Conhecimento o sujeito já possui
projetado
Plano (B)

Plano (A) dos objetos sensíveis

Figura 1.4: Processos de Abstração Reflexiva. Fonte: Acervo Pessoal

Enquanto o sujeito tiver que ver o muro construído, esse está operando nos moldes da
abstração empírica, permanecendo no plano (A) dos objetos concretos. A partir do momento
que ele reconhece a bijeção dos movimentos, deixa o plano (A) passando para um plano (B),
que Piaget considera a primeira etapa da abstração reflexiva, denominando-a de reflexo. O
sujeito chegando a conclusão de que os muros serão iguais, depois de um longo período de
tempo de movimentos sucessivos (construção), significa que houve a conexão entre
movimentos repetidos de bijeção com um conhecimento já pré-existente do principio de
continuidade, entre outros conceitos envolvidos. Essa conexão é a segunda etapa da abstração
reflexiva, que Piaget chama de reflexão.
Essa conexão ou incorporação de um objeto do pensamento às estruturas e esquemas
mentais que o indivíduo já possui foi chamada por Piaget de assimilação. Mais uma vez,
detectamos aspectos complementares, agora por meio das experiências realizadas por Piaget.
Existe a complementaridade no plano A quando o sujeito interage com os objetos, um
dependendo do outro para que se consiga alcançar o plano B e, após essa etapa, deve haver
interação com conhecimentos já existente para que novas estruturas sejam formadas, novos
conhecimentos sejam concebidos, semelhante ao exemplo da capivara.
CAPÍTULO 2

As construções em Os Elementos de Euclides

“Somos o que os séculos nos fizeram”


Irineu Bicudo

Os Elementos de Euclides, obra admirada por matemáticos e filósofos pela pureza do


estilo geométrico, contém uma reunião sistemática das proposições geométricas e aritméticas
que se conheciam na Grécia Antiga. Nessa obra são postas as bases da geometria constituída
pelas definições, postulados e axiomas que são utilizados para justificar ou demonstrar as
proposições subsequentes. Proposições demonstradas são utilizadas para demonstrar novas
proposições. Essa forma de apresentar o conteúdo matemático ficou conhecida como método
axiomático.
Adotando a perspectiva de Pierce de que o signo é o desencadeador do conhecimento,
estabelecidos por aspectos complementares da sua divisão tríade, queremos mostrar que a
falta de um simbolismo adequado pode ter atrasado o desenvolvimento da matemática em
pelo menos vinte séculos. Além disso, não havia a necessidade de desenvolver a técnica e a
ciência, questões sociais como o trabalho escravo era à base da economia o que ocasionou
falta de interesse para desenvolver novas técnicas, pois os escravos faziam a maior parte do
trabalho pesado, não se atinava com a necessidade de mecanismos para poupar o trabalho.
As questões religiosas também conta nos fatores que influenciaram o não
desenvolvimento de novas técnicas. A ascensão do cristianismo e sua consolidação como
religião de Estado se opunham às investigações científicas, especialmente quando essas
desafiavam dogmas religiosos.
De cunho tecnológico, a astronomia, a biologia e a geografia haviam atingido um
ponto em que não era quase impossível prosseguir sem o aparato de telescópios, microscópios
e relógios. Era preciso testar teorias e hipóteses e o equipamento necessário para isso ainda
não havia sido inventado.
Depois que terminou a Guerra de Peloponeso, Ptomomeu escolheu a cidade de
Alexandria como capital do Egito e para atrair homens de saber à sua cidade construiu a
Universidade de Alexandria. Homens de talento e capacidade foram escolhidos para
48

desenvolver vários campos de estudo. Euclides foi convidado a ser chefe de departamento de
matemática da universidade.
O mérito de Euclides como matemático reside na elaboração de treze livros que
ficaram conhecidos como Os Elementos.
Vamos apresentar alguns resultados dos livros I e II de Os Elementos de Euclides com
a finalidade de expor seu conteúdo e sua forma. O livro I traz os fundamentos iniciais da
matemática grega e o livro II possui traços da álgebra em forma geométrica, assunto que
merece atenção, tendo em vista que, grande parte das construções geométricas presentes no
livro II são propriedades algébricas ensinadas na escola elementar sem, muitas vezes, o
enfoque geométrico.
Neste capítulo vamos destacar a natureza da matemática presente em Os Elementos de
Euclides por meio desses dois livros, no que concerne aos tipos de problemas que aparecem
nessa obra, o método adotado para resolvê-los e os instrumentos utilizados. Para nosso
objetivo, esses dois livros são o suficiente, porque Euclides resolve problemas matemáticos de
construção de figuras em toda a sua obra. Nesse estudo será possível identificar as limitações
da geometria grega que será superada pela complementaridade da álgebra com a geometria
apenas no final do século XVI e inicio do século XVII, primeiramente com Viète e depois
com Descartes.

2.1 Estrutura do primeiro e segundo livro

Os elementos de Euclides estão escritos em linguagem sintética que ordena as diversas


proposições em um encadeamento lógico, de forma que cada resultado remonta aos
anteriores, sem introduzir qualquer elemento no pensamento antes de haver demonstrado sua
existência por meio de uma construção, ofício que Euclides desenvolve, em geral, com grande
habilidade e sofisticação. Para construção do seu projeto, Euclides utiliza um método de
trabalho que requer assumir certas afirmações previas consideradas evidentes, assim como
certas construções que se supõem conhecidas.
O livro I de Os Elementos de Euclides, como é natural, é a parte da obra mais
conhecida e melhor estudada. Esse livro começa introduzindo as noções preliminares ou
princípios elementares, isto é, princípios primeiros, que são as definições, postulados e
axiomas. As definições são frases breves e precisas nas quais se introduzem os conceitos
matemáticos e dá nomes a diversos elementos geométricos envolvidos nas proposições.
49

D1) ponto é aquilo de que nada é parte;


D2) linha é comprimento sem largura;
D3) extremidades de uma linha são pontos;
[...]
Em uma definição, os objetos matemáticos não são evidentes, mas aceitamos sem
demonstração. A definição de círculo, por exemplo, “um círculo é uma figura geométrica em
que todos os pontos são equidistantes do centro”, é aceita pelos alunos sem questionamentos.
Com base nas definições, Euclides apresenta uma lista de cinco postulados,
selecionados de forma criteriosa para evitar redundâncias e inconsistências lógicas. Os três
primeiros postulados enunciados em Os Elementos fazem referência a retas e círculos.
Euclides (2009, p. 98) descreve da seguinte forma:
P1) Fique postulado traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto.
P2) Também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta.
P3) E com todo centro e distância, descrever um círculo.
[...]
Antes das construções propriamente ditas, Euclides apresenta as noções comuns. A
primeira noção comum é a lei transitiva que poderemos considerar como o silogismo
fundamental da Geometria. As duas seguintes dizem respeito à legitimidade de somar e
subtrair as mesmas coisas.
NC1) coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si.
NC2) caso seja adicionada coisas iguais a coisas iguais, os todos são iguais.
NC3) caso de iguais sejam subtraídas iguais, as restantes são iguais.
[...]
Após as noções comuns vêm às proposições (problemas e teoremas), que são
demonstrados, respectivamente, com o apodítico rigor lógico, com base nos princípios
assumidos (definições, postulados e noções comuns) cuja existência é assegurada por meio de
construções com régua não graduada e compasso.
A estrutura de uma demonstração euclidiana típica segue quase que de maneira
padronizada, podendo ser identificado diversos aspectos. Euclides começa com o eanunciado
[Protasis] da proposição, que diz o que está para ser provado. O próximo passo é a preparação
ou exposição [Ekthesis], onde supõe que uma figura particular foi desenhada satisfazendo a
hipótese da proposição. Para Kant, essaa preparação envolve intuição. Então é dito o que é
preciso fazer [Diorismo], por exemplo, “é preciso, então, construir um quadrado igual à
retilínea A”. A quarta parte crucial da demonstração é onde a figura é completada,
50

construindo certas linhas adicionais, circunferência, pontos, e assim por diante [Kakaskeue].
Euclides prossegue então com a demonstração, ou Apodeixis, que consiste numa série de
inferências relativas à figura completada. Por fim, apresenta a conclusão [Sumperasma]. Essa
é a estrutura das demonstrações que iremos encontrar em Os Elementos, sejam essas
proposições problemas ou teoremas.
Alguns esclarecimentos devem ser feitos sobre as terminologias que achamos
importantes e que são utilizadas em Os Elementos. 1) Euclides usa o termo linha reta ou
simplesmente reta, para especificar tanto o que denominamos hoje por reta quanto ao que
chamamos de segmento de reta. Na proposição II-68, por exemplo, o termo linha reta está
sendo usado no sentido de segmento de reta. 2) Para Euclides, dizer que duas figuras são
iguais pode significar que elas são congruentes ou que elas possuem a mesma área. Otte
complementa dizendo: ou são numericamente idênticas. Na proposição9 I-35 a palavra igual é
usada em três sentidos diferentes sem avisar o leitor. Na proposição II-1410, Euclides compara
a área de uma figura qualquer com a área de um quadrado. Nessa proposição o termo “igual”
refere-se à equivalência de áreas entre as figuras. 3) A palavra retilínea usada por Euclides
está sendo utilizada no sentido de figura. Então, “construir um quadrado igual à retilínea
dada”, significa construir um quadrado cuja área seja equivalente à área da figura dada.
Para tanto, em nosso trabalho, usaremos o termo “igual” no sentido de equivalência
quando o contexto se referir a áreas. Usaremos também “igual” no sentido de congruência,
quando não existir dúvidas quanto ao contexto. Por exemplo, quando dissermos que dois
segmentos são iguais estamos nos referindo ao fato deles possuírem o mesmo comprimento,
ou seja, são congruentes. A linha reta não terá duplicidade de sentido, para tanto, usaremos a
palavra reta e segmento de reta literalmente no sentido que utilizamos hoje. Sempre que nos
referirmos a régua, esta, por sua vez, será a régua no sentido euclidiano, ou seja, sem
marcações.
A primeira proposição diz respeito à construção do triângulo equilátero e termina com
o teorema de Pitágoras e seu inverso. O Teorema de Pitágoras é o mais familiar aos alunos do
ensino fundamental e facilmente absorvidos pelo seu apelo intuitivo.
O livro II inicia com duas definições e logo prossegue com as proposições.
1. Todo paralelogramo retangular é dito ser contido pelas duas retas que contêm o ângulo
reto.

8
Veja EUCLIDES, 2009, p. 140.
9
Veja EUCLIDES, 2009, p. 124.
10
Veja EUCLIDES, 2009, p. 149.
51

2. E, de toda área paralelogrâmica, um dos paralelogramos, qualquer que seja, à volta da


diagonal dela, com os dois complementos, seja chamado um gnômon.
Nas dez primeiras proposições, Euclides estabelece a equivalência geométrica das
principais identidades algébricas muito usadas no âmbito escolar. Além disso, as figuras
geométricas que Euclides utiliza permitem utilizar a Álgebra Geométrica como instrumento
para a resolução de equações quadráticas, mediante o método de Aplicação de Áreas. O livro
II termina com duas proposições equivalentes ao chamado Teorema dos Cossenos e com a
quadratura de figuras poligonais.

2.2 A natureza das proposições em Os Elementos

Em Os Elementos de Euclides as proposições são declarações demonstradas a partir


dos postulados e noções comuns ou de proposições anteriormente demonstradas. Existe uma
discussão filosófica sobre a natureza das proposições. Elas são problemas ou teoremas?
Meneachmus (matemático grego do séc. IV a. C.) pensou que seria correto dizer que
todas as investigações são problemas. Para ele, problema é entendido como uma proposição
problemática que deve anunciar que alguma coisa pode ser feita, achada e construída. O
problema, nesse ponto de vista, não será destruído pela sua solução, a solução será apenas
uma determinação da situação inicial, em que se chega a uma situação unificada em suas
relações e distinções constitutivas.
Nos comentários do primeiro livro de Euclides, Proclus, filósofo neoplatônico do
século V, faz um tratamento minucioso dos princípios elementares (definições, postulados, e
noções comuns) da geometria euclidiana. Conseguinte, inicia a parte que cabe às proposições
do Livro I, distinguindo umas como problemas e outras como teoremas. Proclus diz:

[...] as coisas derivadas dos princípios dividem-se, por sua vez, em problemas e
teoremas. Os primeiros ocupam da generalização de figuras e suas adições,
subtrações, adjunções e, em geral, de todas as condições, enquanto o segundo estuda
os casos particulares de cada figura. [...] Inscrever um triângulo equilátero em um
círculo é um problema, porque também podemos inscrever um triângulo que não é
equilátero; construir um triângulo equilátero sobre uma reta dada também é um
problema, porque podemos construir um triângulo que não seja equilátero; mas
quando dizemos que os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais,
enunciamos um teorema, porque é impossível dizer que os ângulos não são iguais.
[...] Daqui deduzimos que as questões gerais devem chamar teoremas e as questões
particulares, que não se refere absolutamente ao que se propõe, chamamos de
problemas (PROCLUS, 1792, p. 351, apud, VERA, 1970, p. 1162 - 64).

Irineu Bicudo interpreta os comentários de Proclus, a respeito dos problemas e


teoremas, dizendo que “problemas são aquelas proposições que têm por objetivo produzir,
52

trazer à vista, ou construir o que, em algum sentido, não existe, enquanto que os teoremas são
os que visam a ver, identificar e demonstrar a existência ou a não existência de um atributo”
(BICUDO, 2007, p. 211). Por esse prisma, os problemas exigiriam a construção de figuras,
por outro lado, os teoremas teriam a incumbência de ligar, por uma demonstração, os atributos
e propriedade dos objetos que são os conteúdos da geometria.
De forma mais clara podemos dizer que problemas concernem às transformações dos
seres geométricos: construir figuras, seccioná-las, subtraí-las ou adicioná-las umas às outras.
Consistiria em um problema pedirmos para um aluno construir uma reta perpendicular a uma
reta dada, ou um círculo passando por três pontos dados. Já os teoremas enunciam e
demonstram propriedades inerentes aos seres geométricos. No teorema de Pitágoras, por
exemplo, diz-se que em todo triângulo retângulo o quadrado da hipotenusa é sempre igual à
soma dos quadrados dos catetos.
Explicitando ainda as palavras de Proclus, os problemas são construções ou
transformações de figuras geométricas. Inscrever um triângulo retângulo em um círculo
constitui um problema, pois podemos inscrever um triângulo que não seja retângulo, ou
mesmo um quadrado. Logo, ao problema de se inscrever um triângulo em um círculo, não é
passível de reposta única. Mas se dizemos que os ângulos internos de um triângulo somam
180 graus, temos um teorema, pois esta propriedade vale para todo triângulo. Todo enunciado
universal sobre um objeto geométrico é um teorema geométrico.
Outra característica que pode ser reconhecida em Os Elementos é quanto ao modo de
se expressar. Em Euclides a possibilidade de construções geométricas pelo qual é entendida
como problemas, por sua vez, inicia-se sempre com “É requerido construir...” como, por
exemplo: “Construir um triângulo com três linhas retas iguais a três outras dadas, entre as
quais duas, tomadas como se quiser, sejam sempre maiores que a terceira”; e outras
construções indicam que determinadas propriedades se aplicam aos objetos que elas
representam, considerados os teoremas: “Em qualquer triângulo dois lados, tomados de
qualquer modo que se quiser, são maiores que o terceiro”. A apresentação descritiva da
solução ou da demonstração começa sempre com “Eu digo que...”.
Commandino (1944), assim como Proclus (1792), prefere distinguir problemas de
teoremas indicando-os explicitamente conforme segue:
PROP. I. PROBLEMA.
Sobre uma linha reta determinada descrever um triângulo equilátero.
Primeiramente é declarado o que deve ser construído.
53

Seja a linha reta AB de comprimento arbitrário. Deve-se sobre ela descrever (é


requerido construir) um triângulo equilátero.
O primeiro teorema aparece na proposição IV. Commandino (1944, p. 10) escreve:
PROP. IV. TEOREMA.
Se dois triângulos tiverem dois lados iguais a dois lados, cada um a cada um, e os
ângulos, compreendidos por estes lados, forem também iguais; as bases e os triângulos, e os
mais ângulos, que são opostos a lados iguais, serão também iguais.
Da mesma forma que é feito com os problemas, nos teoremas, primeiramente é
declarado o que deve ser demonstrado.
Sejam os dois triângulos ABC, DEF, cujos lados AB, AC, DE, DF são iguais, cada um
a cada um, isto é, AB = DE, e AC = DF; e seja o ângulo BAC = EDF. Digo (eu digo que),
que a base BC é igual à base EF; e que o triângulo ABC é igual ao triângulo DEF; e que os
outros ângulos do primeiro triângulo são iguais aos outros do segundo, cada um a cada um,
segundo ficam opostos a lados iguais; isto é, o ângulo ABC = DEF, e ACB = DFE.
Problemas e teoremas possuem as mesmas partes, ou seja, a estrutura das
demonstrações é constituída pelos mesmos elementos. Proclus refere-se às partes que
compõem ambos, problemas e teoremas, dizendo que:

“[...] todos os problema e teorema, que recebe suas conclusões a partir de suas
próprias partes perfeitas, devem possuir em si todas estas: enunciado, exposição,
determinação, construção, demonstração, conclusão. E dessas, o enunciado nos
informa o que é procurado a partir do que é dado. Pois o enunciado perfeito é de
ambos. E a exposição, recebe o dado essencial, se prepara, a ele mesmo, de antemão,
para a investigação. E a determinação torna bem claro, separadamente, o procurado,
o que enfim é. E a construção adiciona as coisas faltantes ao dado para a ávida
investigação da coisa pretendida. E a demonstração deduz cientificamente o
proposto a partir das coisas acordadas. Mas o epílogo, ou conclusão, retorna de novo
ao enunciado, afirmando o demonstrado. E todas as partes juntas tanto dos
problemas quanto dos teoremas são tais; mas as mais necessárias, existentes em
todos, são enunciado e demonstração e conclusão” (PROCLUS, 1792, p. 20,
tradução nossa).

“Enunciado, demonstração e conclusão são as três partes que Proclus enfatiza, mas, no
entanto, parece ser a construção o cerne das proposições. É a partir dela, e tendo-a sempre sob
a vista, que a demonstração se faz” (BICUDO, 2007, p. 212, tradução nossa).
Proclus enfatiza a superioridade dos teoremas sobre os problemas, ou seja, da lógica
sobre a intuição, quando afirma que “teoremas diferem de problemas, porque estes últimos
lidam com construções, ao passo que os teoremas procuram demonstrar propriedades
inerentes aos seres geométricos” (PROCLUS, 1792, p. 21, tradução nossa). Teoremas, de
acordo com Proclus, enunciam a parte ideal dos seres geométricos que pertencem ao mundo
54

das ideias, e os problemas constituem um modo pedagógico de se chegar aos teoremas.


Portanto, de acordo com essa concepção, problemas pertencem ao mundo sensível e teoremas
pertencem ao mundo inteligível.
Os problemas em Os Elementos oferecem apelo intuitivo evidente. As construções
geométricas fazem referência objetiva ao objeto, não há desapego intuitivo. A figura abaixo
representa a primeira proposição do livro I de Euclides. Nela podemos perceber o objeto
empírico ligado diretamente ao problema. Cada mente pode relacioná-la a uma realidade ou a
um objeto empírico. Podemos, por exemplo, pensar duas pessoas segurando um bambolê sem
nenhuma dificuldade, ou que, duas pessoas estão a segurar um disco no qual a figura é
desenhada. Pode ser qualquer objeto, depende do sujeito que a interpreta. Mas, a intuição,
nesse caso, decorre da relação entre retas e círculos e não está claramente explícito que o
circulo deveria coexistir para a solução do problema.

Figura 2.1: Euclides e a Geometria representando a figura da proposição I de Os Elementos. Ela pertence a uma
coleção de telas que representam as sete Artes Liberais do currículo medieval. Fonte: URBANEJA, 2003, p.
36.
55

Os Elementos é mais uma sistematização do conhecimento geométrico da


Antiguidade, não um sistema formal como os de Hilbert e Peacock, não há preocupação em
distinguir nitidamente entre problemas e teoremas. Para a Educação Matemática, essa
preocupação na distinção também não possui valor, o que realmente importa é saber que
problemas (considerados próximo ao intuitivo) e teoremas (quando usamos a lógica para
mostrar determinadas propriedades) são elementos fundamentais para o ensino e a
aprendizagem da matemática. Intuição oferece os meios, a lógica a certeza.
Pappus de Alexandria (c.290 – c.350), matemático do século IV, utiliza outra ideia
para classificar problemas. Ele classificou as proposições dos livros de Euclides de acordo
com os meios de construção. Chamou de problemas planos, àqueles cuja construção exigia
apenas régua e compasso e, problemas sólidos os que utilizavam uma ou mais secções de um
cone, ou seja, para sua construção é necessário usar superfícies de figuras sólidas,
nomeadamente, superfícies cônicas. A terceira classe de problemas dado por Pappus,
chamados de problemas lineares, são os que ficam impossibilitados de serem resolvidos para
além dos artifícios mencionados, cujas linhas utilizadas na construção são mais complexas.
Os três problemas famosos de construção da Antiguidade pertencem à segunda classe,
resolvidos com o traçado de curvas originárias da superfície de um cone, não sendo, portanto,
possível de resolvê-los com régua e compasso.
Os problemas de construção mais famosos de toda a história da matemática são: a
quadratura do círculo, a duplicação do cubo e a trissecção do ângulo. Esses três problemas
desempenharam um papel importante no desenvolvimento da matemática pelo fato de terem
causado interesse e dedicação dos filósofos e, principalmente, dos matemáticos, em busca da
solução. “Como resultado, vários novos métodos e mesmo novas teorias são elaboradas e
novas perguntas, profundas e abrangentes, são formuladas” (RAIGORODSKI, 2004). As
secções cônicas, muitas curvas cúbicas e quárticas e várias curvas transcendentes foram
descobertas a partir das investigações desses três clássicos da matemática.
Quadrar o círculo significa encontrar um quadrado com área igual ao de um círculo
dado. A duplicação do cubo resume-se em encontrar a aresta de um cubo cujo volume é o
dobro do cubo inicialmente dado. O problema da trissecção do ângulo consiste em dividir um
ângulo arbitrário em três partes iguais.
Com relação à quadratura do círculo, ninguém negava que pudesse existir um
quadrado de área igual ao de um dado círculo, além de ambos pertencerem a mesma espécie
de magnitude [ou seja, ambos são área], “havia claramente um quadrado menor do que o
círculo dado e outro maior, sendo assim, deve haver também um quadrado cuja área é igual ao
56

do referido círculo” (BOS, 2001, p. 26). Mas o fato é que não era suficiente saber que existia,
ou provar que existia o quadrado, ele tinha que ser construído de alguma forma
geometricamente aceitável. Esse fato destaca o papel da intuição e da prova em Matemática
como elementos complementares. Esse foi o método adotado em Os Elementos, ou seja,
resolver um problema significava construir uma figura geométrica plana que desse respaldo à
argumentação expressa por meio da linguagem. Essa característica é que passamos a mostrar
na próxima seção.

2.3 Construção das figuras geométricas euclidianas

Em Os Elementos a solução dos problemas possuía características peculiares de


construção de figuras geométricas como: construir um triângulo equilátero sobre a reta
limitada dada (Prop. I – 1) ou construir um quadrado igual a uma figura dada (Prop. II – 14).
A primeira construção geométrica em Os Elementos, dada pela proposição I, pede para
construir um triângulo equilátero sobre um segmento de reta.
A construção dá-se como segue:
a) Considerando um segmento de reta AB, com centro em A e raio AB construímos o
círculo C1.
b) Com centro em B e raio BA construímos o círculo C2.
c) O ponto de intersecção C entre os círculos produzem segmentos de retas congruentes,
devido cada um deles serem raios de círculos idênticos (círculos com mesmo raio).

Figura 2. 2: Euclides I - 1. Fonte: Irineu Bicudo, p. 99.

No entanto, os círculos utilizados não possuem relação com a essência de triângulo. O


mais razoável a pensar é em relações que existem apenas entre os conceitos evolvidos, nesse
57

caso, no conceito de triângulos e de segmentos. Para Aristóteles, uma prova deve sair dos
conceitos envolvidos, nesse sentido, para ele [Aristóteles] esse enunciado não pode ser um
teorema, como de fato não é, o que existe é um problema de construção. E, nesse problema,
assim como grande parte das proposições em Os Elementos, o mais importante é o
reconhecimento das relações, é o processo de construção, e não a figura concluída.
Por isso que Otte diz que o meio é “pobre”, o que é mais interessante é o processo de
construção, é a complementaridade, porque sem essa complementaridade não teríamos um
triângulo equilátero quase preciso. Falamos em quase preciso porque somente na ideia
estabelecemos um triângulo ideal.
Para que o processo de construção seja feito de maneira satisfatória, cujo resultado
seja um triângulo equilátero, devemos intuir, de antemão, que são necessários círculos, porque
com círculos podemos construir segmentos de retas congruentes. Por isso Kant diz que a
matemática euclidiana é intuitiva, porque devemos extrapolar as fronteiras do enunciado, em
muitos casos, em busca da solução para o problema.
Kant cita, como exemplo, a última parte da proposição I-35 de Os Elementos.

Dê-se a um filósofo o conceito de um triângulo e o encargo de investigar, à sua


maneira, como pode ser a relação da soma dos ângulos desse triângulo com o
ângulo reto. Nada possui a não ser o conceito de uma figura que está limitada por
três linhas retas e nessa figura o conceito de igual número de ângulos. Pode então
refletir tanto quanto quiser sobre esse conceito, que, a partir dele, nada produzirá
de novo. Pode analisar e tornar claro o conceito de linha reta ou de ângulo ou do
número três, mas não chegará a outras propriedades que não estejam contidas
nestes conceitos. Mas que o geômetra tome esta questão. Começa imediatamente a
construir um triângulo. Porque sabe que dois ângulos retos valem juntamente tanto
como todos os ângulos adjacentes que podem traçar-se de um ponto tomado numa
linha reta, prolonga um lado do seu triângulo e obtém dois ângulos adjacentes que,
conjuntamente, são iguais a dois retos. Divide em seguida o ângulo externo,
traçando uma linha paralela ao lado oposto do triângulo e vê que daí resulta um
ângulo adjacente que é igual a um ângulo interno, etc. Consegue desta maneira,
graças a uma cadeia de raciocínios, guiado sempre pela intuição, a solução
perfeitamente clara e ao mesmo tempo universal do problema (KANT, 2001, A717
– B745).

A proposição I-35 diz que: “Em qualquer triângulo, os três ângulos interiores são
iguais a dois ângulos retos”, cuja demonstração é baseada na figura que segue.

Figura 2. 3. Euclides I – 35. Fonte: Euclides, 2009.


58

Resumindo o texto da citação de Kant e a estrutura demonstrativa de Euclides em Os


Elementos, temos a seguinte prova desse teorema:
BAC  ECA
AB // CE  
ABC  ECD
Adicionando o ângulo ACB comum, temos:
ECD  ECA  ACB  180 o
Fazendo as substituições adequadas levando em consideração (I) chegamos à
conclusão que:
ABC  BAC  ACB  180 o
Ou seja, a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é igual a dois retos.
A proposição I-15 afirma que: “caso duas retas se cortem, fazem os ângulos no vértice
iguais entre si” (EUCLIDES, 2009, p. 109). Euclides apresenta uma extensa parte
argumentativa que pode ser simplificada e melhor entendida se pudermos expor da seguinte
forma:
Queremos mostrar que  = . O procedimento pode ser melhor verificado exposto da
forma:
    180 0   180 0  
   
    180 0   180 0  

Figura 2.4: Euclides I-15. Fonte: Euclides, 2009

Nessa perspectiva, a interatividade com a figura geométrica é mais intensa do que pelo
método apresentado por Euclides. O uso de signos altera a maneira em que os objetos
conceptuais nos são dado aos nossos sentidos. Para desenvolvermos a parte algébrica é quase
uma obrigatoriedade a percepção geométrica para podermos detectar as relações. Com o
59

simbolismo adequado, a relação algébrica com a geométrica fica evidente. Mas, Em Euclides
não existe signo como em Viète e Descartes, apenas a figura com a argumentação retórica.
A representação é um meio, é um instrumento, tem uma função, nesse caso serve para
construir mentalmente as partes constitutivas da figura, assim como uma faca tem sua função,
é um meio utilizado para cortar.
A matemática euclidiana é relacional. Para a Educação Matemática, o importante é
que o professor valorize esses processos de construção, enfatizando o conteúdo relacional
presente no processo de justificação da proposição. Softwares de geometria dinâmica, como o
Cabri Geometry e o Geogebra, são bons aliados dos professores por ressaltar as etapas de
construção e a utilização da régua e compasso na construção de figuras planas.
O método utilizado para justificar uma construção ou provar um teorema, possui duas
partes que se completam: uma parte argumentativa por meio de uma linguagem textual e,
outra parte, a construção geométrica, um diagrama, o desenho da figura correspondente de
acordo com o enunciado proposto.
Segundo Otte, as descrições de construção antecede a construção propriamente dita.
Porém, as descrições e o processo de construção ocorrem simultaneamente de forma
complementar, ambos os métodos fazem parte da solução do problema ou teorema. Então a
geometria de Euclides não é um pensamento diagramático, é um pensamento algoritmo
sintético, são os algoritmos, mas que não são representados em termos de números, mas de
palavras, de construções.
Fechamos nossa apresentação do livro I como o Teorema de Pitágoras. Talvez, esse
teorema, seja a relação mais importante, mais conhecida, mais nobre e que mais provas têm
recebido, ocupando o primeiro lugar no decorrer dos tempos escolares. Isso se deve ao seu
valor prático, teórico e didático. Dentre as relações métricas que aparecem na geometria, o
Teorema de Pitágoras está entre os mais relevantes, senão o principal, pelo seu caráter
peculiar das aplicações fora do contexto escolar.
A magnífica grandeza do Teorema de Pitágoras começou uma mudança decisiva
intelectual entre a prática empírica e indutiva do raciocínio dedutivo-demonstrativo e, tanto no
desenvolvimento histórico quanto no espaço escolar da Educação Matemática.
De acordo com Proclus, Pitágoras é um marco na história da matemática, porque ele
transformou o conhecimento geométrico em disciplina puramente teórica, investigando os
teoremas de forma abstrata, sem ferramentas ou materiais de medições, sem referência a
materiais específicos, apenas por meio da intuição, das ideias e do discurso mental. O
60

Teorema de Pitágoras é, por um lado especulativo e dedutivo e, por outro lado empírico e
indutivo.
A maior contribuição original é, essencialmente, o valor de generalidade universal,
independentemente dos valores particulares dos lados do triângulo. A demonstração, aporte
fundamental da Matemática dos Pitagóricos, vai muito além das contribuições concretas da
ciência, sendo considerada, portanto, a demonstração como elemento essencial na cultura
grega. A demonstração vai muito além da mera persuasão da retórica em que os gregos eram
grandes mestres, pois, é possível com argumentação convincente ascender o falso ao
verdadeiro, portanto, as censuras de Sócrates aos sofistas. A demonstração convence por
argumento incontestável e alcança algo legítimo enquanto não pôr em causa as leis da lógica.
Assim, a partir de Pitágoras a Matemática é universalmente considerada como uma fonte
primária de verdade objetiva.
O Teorema de Pitágoras marca o primeiro salto intelectual que caracteriza a passagem
das especulações empíricas aos domínios do pensamento dedutivo. A prova desse teorema
pode ter sido a primeira demonstração verdadeiramente matemática na história. É, talvez,
nesse momento, que podemos dizer ou caracterizar a matemática com respeito às demais
ciências, pois, o que diferencia a matemática de outros campos do conhecimento é,
principalmente, o modo como prova suas verdades.
Euclides enuncia e demonstra o Teorema de Pitágoras na proposição I-47 de Os
Elementos. A demonstração necessita de conhecimentos geométricos dados em proposições
anteriores, mais precisamente da proposição I-36 (“os que estão sobre bases iguais e nas
mesmas paralelas são iguais entre si”) e a proposição I-41(“caso um paralelogramo tenha
tanto a mesma base que um triângulo quanto esteja nas mesmas paralelas, o paralelogramo é o
dobro do triângulo”). Euclides apresenta esse teorema antes da teoria das proporções de
Eudoxo, que aparece apenas no livro V. Por esse motivo, utiliza apenas relações entre
paralelogramos e triângulos com a mesma base e situados entre as mesmas paralelas.
A demonstração de Euclides do Teorema de Pitágoras é uma prova muito elegante que
se desenvolve da seguinte maneira:
BD  BC

FBC  ABD  FB  AB
FBC  ABC

A área do quadrado ABFG é o dobro da área do triângulo FBC já que estão sobre a
mesma base e situados entre as mesmas paralelas (Proposição I-41).
De modo que se verifica:
61

Re t( BDLI )  2ABD  2FBC  Quad( ABFG )


Raciocinando de forma análoga, temos:
Re t( ILEC )  2ALE  2BCK  Quad( ACKH )
De onde resulta que:
Quad( ABFG )  Quad( ACKH )  Re t( BDLI )  Re t( ILEC )  Quad( BDEC )
A demonstração euclidiana do Teorema de Pitágoras é de natureza estritamente
geométrica, que desempenha um papel fundamental, uma figura que procede de uma
sequência de construções que mediante certas congruências de triângulos vai se
transformando nos quadrados sobre os catetos para “caber” no quadrado da hipotenusa.

Figura 2.5: Euclides I-47. Adaptado de Euclides, 2009.

A prova desse teorema relaciona áreas de triângulos com áreas de retângulos. Esse
método, chamado de método de aplicação de áreas, é muito utilizado para justificar
proposições. A área de figuras talvez seja uma das aplicações mais simples da matemática e
que pode dar significado as expressões algébricas, funcionando como uma ótima ferramenta
para a compreensão de conceitos matemáticos.
62

2.4 Álgebra Geométrica

O livro II de Euclides tem foco na aplicação de áreas realizando, de forma puramente


geométrica, operações elementares de soma, subtração, multiplicação, divisão e
exponenciação, levando muitas vezes ser também chamado de “álgebra geométrica”.
O método de aplicação de áreas é adotado por Euclides, mas sem o recurso algébrico,
porém, podemos justificar várias expressões algébricas muito usadas no âmbito escolar, tais
como a expressão (a + b)2 = a2 + 2ab + b, nomeadamente conhecida pelo quadrado da soma.
A proposição 4 do livro II dá origem ao binômio que costuma ser apresentado nos livros
didáticos e reproduzidos pelos alunos sob a seguinte frase: “o quadrado da soma de dois
termos é igual ao quadrado do primeiro termo, mais duas vezes o produto do primeiro termo
pelo segundo, mais o quadrado do segundo termo”. Na maioria das vezes, está é a única
forma de o professor explorar a igualdade, de maneira puramente algébrica como evidencia a
frase, optando apenas pelo lado intensional da matemática. Vamos aborda na íntegra a
demonstração dessa proposição para que possamos comparar o método geométrico de
Euclides com o artifício algébrico, antecipando as discussões do capítulo III por ser este um
momento oportuno para começarmos a delinear o principal objetivo do nosso trabalho que é
apresentar as noções de complementaridade entre álgebra e geometria que, por um lado,
proporcionou o desenvolvimento da matemática e, por outro lado, facilitou o ensino dessa
disciplina. Euclides enuncia da seguinte forma.

Proposição 411: Caso uma linha reta seja cortada, ao acaso, o quadrado sobre a reta
toda é igual aos quadrados sobre os segmentos e também duas vezes o retângulo contido
pelos segmentos.

Fique, pois, cortada a linha reta AB, ao acaso, no C; digo que o quadrado sobre a AB é
igual aos quadrados sobre as AC, CB e também duas vezes o retângulo contido pelas AC, CB.
Fique, pois, descrito, sobre a AB, o quadrado ADEB, e fique ligada a BD, e, por um
lado, pelo C, fique traçada a CF paralela a qualquer uma das AD, EB, e, por outro lado, pelo
G, fique traçada a HK paralela a qualquer uma das AB, DE. E, como CF é paralela à AD, e a
BD caiu sobre elas, o ângulo sob CGB, exterior, é igual ao sob ADB, interior e oposto. Mas o
sob ADB é igual ao sob ABD, porque também o lado BA é igual ao AD; portanto, também o
ângulo sob CGB é igual ao sob GBC; de modo que também o lado BC é igual ao lado CG;

11
Os Elementos, 2009. p. 137-138. Trad. Irineu Bicudo
63

mas, por um lado, a CB é igual à GK, e, por outro lado, a CG, à KB; portanto, também a GK é
igual à KB; portanto, o CGKB é equilátero. Digo, então, que também é retangular. Pois, como
a CG é paralela à BK [e a reta CB caiu sobre elas], portanto, os ângulos sob KBC, GCB são
iguais a dois retos. Mas o sob KBC é reto; portanto, também o sob BCG é reto; desse modo,
também os sob CGK, GKB, opostos, são retos. Portanto, o CGKB é retangular; mas foi
provado também equilátero; portanto, é quadrado; e é sobre a CB. Pelas mesmas coisas,
então, também o HF é um quadrado; e é sobre a HG, isto é, [sobre] a AC; portanto, os
quadrados HF, KC são sobre as AC, CB. E, como o AG é igual ao GE, e o AG é o pelas AC,
CB; pois, a GC é igual à CB; portanto, também o GE é igual ao pelas AC, CB; portanto, os
AG, GE são iguais a duas vezes o pelas AC, CB. Mas também os quadrados HF, CK são
sobre as AC, CB; portanto, os quatros HF, CK, AG, GE são iguais aos quadrados sobre as
AC, CB e também duas vezes o retângulo contido pelas AC, CB. Mas os HF, CK, AG, GE é o
ADEB todo, que é o quadrado sobre a AB; portanto, o quadrado sobre AB é igual aos
quadrados sobre as AC, CB e também duas vezes o retângulo contido pelas AC, CB.
Portanto, caso uma linha reta seja cortada, ao acaso, o quadrado sobre a reta toda é
igual aos quadrados sobre os segmentos e também duas vezes o retângulo contido pelos
segmentos, o que era preciso provar.

Figura 2.6: Euclides II-4. Fonte: Adaptado Euclides, 2009, p. 137.

O inconveniente geométrico desse método fica explícito nos dias atuais. Podemos até
dizer que nenhum professor do ensino fundamental e médio, no decurso normal de uma aula,
vai explorar essa demonstração assim como está no livro de Euclides. O que defendemos
metodologicamente é representar cada um dos segmentos por uma letra e mostrar a
complementaridade da álgebra com a geometria.
Nomeando os segmentos de reta AB = a + b; AC = a; e CB = b, a Figura 2.6 sugere
que tenhamos (a + b)2 = a2 + 2ab + b2.
64

Podemos olhar esse procedimento a partir da álgebra, ou seja, podemos pensar


primeiramente na expressão a + b que, em termos geométricos, representa a soma de dois
segmentos. Construímos mentalmente essa soma e em seguida pensamos em (a + b)2,
consequentemente, somos capazes de gerar um quadrado sobre esse segmento soma que pode
ser divididos como na Figura 2.6. Então voltamo-nos a figura e completamos a expressão
algébrica (a + b)2 = a2 + 2ab + b2.
Essa relação entre a álgebra e a geometria, ao mesmo tempo em que parece ser tão
distante, são tão próximas que imprimi um sentimento de cumplicidade, uma não podendo
existir sem a outra. Qual o significado de (a + b)2 se não tivermos em mente a figura
geométrica implícita dividida em suas partes? Notadamente, para aqueles que não percebem
essa relação podem cai no erro de fazer (a + b)2 = a2 + b2 como são frequentemente
constatados nos desenvolvimentos feitos por alunos na escola elementar.
A complementaridade da álgebra com a geometria é um componente metodológico de
suma importância para o desenvolvimento da Matemática e para a Educação Matemática. A
real mudança no campo da Matemática só foi possível a partir da interação desses dois ramos
do saber, como veremos nos capítulos seguintes. Quanto ao ensino e aprendizagem da
matemática, não resta dúvidas que a complementaridade entre álgebra e geometria facilita a
compreensão dos conceitos.
Diante da importância dessa interação para a Educação Matemática, passaremos a
apresentar a proposição 5 de Os Elementos, mostrando o inconveniente método euclidiano
para os dias atuais em comparação com os métodos algébricos.

Proposição 512: Caso uma linha reta seja cortada em iguais e desiguais, o retângulo contido
pelos segmentos desiguais da reta toda, com o quadrado sobre entre as seções, é igual ao
quadrado sobre a metade.

Fique, pois, cortada alguma reta, a AB, por um lado, em iguais no C, e, por outro lado,
em desiguais no D; digo que o retângulo contido pelas AD, DB com o quadrado sobre CD, é
igual ao quadrado sobre a CB.

12
Os Elementos, 2009. p. 139. Trad. Irineu Bicudo.
65

Figura 2.7: Álgebra Geométrica – Fragmento da proposição 5 – livro II. Fonte: Brolezzi

Fique, pois, descrito, sobre a CB, o quadrado CEFB, e fique ligada a BE, e, por um
lado, pelo D, fique traçada a DG paralela a qualquer uma das CE, BF, e, por outro lado, de
novo, pelo H, fique traçada a KM paralela a qualquer uma das AB, EF, e, de novo, pelo A,
fique traçada a AK paralela a qualquer uma das CL, BM. E, como o complemento CH é igual
ao complemento HF, fique adicionado o DM comum; portanto, o CM todo é igual ao DF
todo. Mas o CM é igual ao AL, porque também a AC é igual à CB; portanto, também o AL é
igual ao DF. Fique adicionado o CH comum; portanto, o AH todo é igual ao gnômon PNQ.
Mas o AH é o pelas AD, DB; pois, a DH é igual à DB; portanto, o gnômon PNQ é igual ao
pela AD, DB. Fique adicionado LG comum, que é igual ao sobre a CD; portanto, o gnômon
PNQ e o LG são iguais ao retângulo contido pelas AD, DB e o quadrado sobre a CD. Mas o
gnômon PNQ e o LG, como um todo, são o quadrado CEFB, que é o sobre a CB; portanto, o
retângulo contido pelas AD, DB, com o quadrado sobre CD, é igual ao quadrado sobre CB.
Portanto, caso a Linha reta seja cortada em iguais e desiguais, o retângulo contido
pelos segmentos desiguais da reta toda, com o quadrado sobre a entre as seções, é igual ao
quadrado sobre a metade; o que era preciso provar.
66

Figura 2. 8: Euclides II-5. Fonte: Adaptado de Euclides, 2009, p. 139.

Analisando do ponto de vista algébrico, fazendo AD = x e DB = y na Figura 2. 8,


temos que:

 x y  x y
2 2

   xy   
 2   2 
Ou seja,

x y x y
2 2

xy     
 2   2 
Se x = a + b e y = a – b, podemos escrever:
(a  b) (a  b)  a 2  b2
Suponhamos agora AB = a e DB = x. Então, ax – x2 é igual à área do retângulo
AKHD, a qual é por sua vez igual à soma das áreas dos retângulos CLHD, DHMB e HGFM.
Se chamarmos a soma das áreas de CLHD, DHMB e HGFM de b2, então, o problema
de resolver a equação ax – x2 = b2 se transforma, em linguagem geométrica, em construir
sobre um segmento de reta de comprimento a um retângulo cuja área menos a área de um
quadrado seja igual à área de um quadrado dado (b2). Como resolver essa equação utilizando-
se de áreas?
A solução é dada como segue:
Dado um segmento de reta AB = a e um quadrado de lado b (Figura 2.9). Buscamos
encontra o x, lado do quadrado procurado, da seguinte forma.
1) Encontrar o ponto médio do segmento de reta AB; seja M o ponto médio.
2) Com centro em M e raio igual a b, traçamos uma circunferência (pontilhada).
67

3) Por M traçamos uma perpendicular ao lado AB. Seja “O” o ponto de intersecção da
circunferência (pontilhada) com a reta perpendicular.
4) Com centro O e raio MB traçamos a circunferência que corta AB no ponto F.
FB = x é o segmento de reta procurado.

Figura 2.9: Construção geométrica da equação ax - x2 = b2. Fonte: Acervo Pessoal.

Nesse caso tivemos que tirar um quadrado de lado x do retângulo sobre AB. Os gregos
chamavam essa construção de uma construção elíptica. Esse assunto será tratado adiante na
seção sobre a terminologia das cônicas.
Tomemos um exemplo particular. Vejamos como resolver a equação x2 – 10x + 9 = 0.
1) Construir um segmento de reta com 10 unidades.
2) Dividir o segmento de reta ao meio obtendo o ponto M.
3) Com centro em M e raio 3, traçar um círculo.
4) Construir uma perpendicular passando pelo ponto M que intercepta o círculo de raio 3 no
ponto O.
5) Com centro em O e raio MB = 5 ou, a metade do segmento AB, construir o circulo e
marcar o ponto F de intersecção com o segmento de reta AB.
68

Figura 2.10: Construção geométrica da equação x2 – 10x + 9 = 0. Fonte: Acervo Pessoal.

Com régua, compasso e Teorema de Pitágoras achamos a solução.


10
Temos na construção AM   OF e, aplicando o Teorema de Pitágoras no
2
2
 10 
triângulo MOF chegamos ao valor de MF     32  4 . Utilizando os valores que estão
2
na equação, temos que:

 
2
10  10  2
AM  MF      9 9
2 2
Portanto, um dos valores que satisfaz a equação é 9, o outro valor é o que falta para
completarmos o segmento AB, ou seja, 1 unidade.

Proposição 6. Caso uma linha reta seja cortada em duas, e seja adicionada a ela alguma
reta sobre uma reta, o retângulo contido pela reta toda junto com a adicionada e pela
adicionada, com o quadrado sobre a metade, é igual ao quadrado sobre a composta tanto da
metade quanto da adicionada.

Fique, pois, cortada alguma reta, a AB, em duas no ponto C, e fique adicionada a ela
alguma reta, a BD, sobre uma reta; digo que o retângulo contido pelas AD, DB, com o
quadrado sobre a CB, é igual ao quadrado sobre a CD.
Fique, pois, descrito sobre a CD o quadrado CEFD, e fique ligada a DE, e, por um
lado, pelo ponto B, fique traçada a BG paralela a qualquer uma das EC, DF, e, por outro lado,
69

pelo ponto H, fique traçada a KM paralela a qualquer uma das AB, EF, e ainda, pelo ponto A,
fique traçada a AK paralela a qualquer uma das CL, DM.
Como, de fato, AC é igual à CB, também o AL é igual ao CH. Mas o CH é igual ao
HF. Portanto, também o AL é igual ao HF. Fique adicionado o CM comum; portanto, o AM
todo é igual ao gnômon NQO. Mas o AM é o pelas AD, DB; pois, a DM é igual à DB. Fique
adicionado o LG comum, que é o quadrado sobre BC; portanto, o retângulo contido pelas AD,
DB, com o quadrado sobre a CB, é igual ao gnômon NQO e o LG. Mas o gnômon NQO e o
LG, como um todo, são o quadrado CEFD, que é sobre a CD; portanto, o retângulo contido
pelas AD, DB, com o quadrado sobre a CB, é igual ao quadrado sobre a CD.
Portanto, caso uma linha reta seja cortada em duas, e seja adicionada a ela alguma reta
sobre uma reta, o retângulo contido pela reta toda junto com a adicionada e pela adicionada,
com o quadrado sobre a metade, é igual ao quadrado sobre a composta tanto da metade quanto
da adicionada; o que era preciso provar.

Figura 2.11: Euclides II-6. Fonte: Euclides, 2009, p. 140.

Do ponto de vista algébrico, fazendo AC = x e DB = y, Figura 2.11, temos que:


(2x + y)y + x2 = (x + y)2
Se tomarmos x = a e y = b – a, temos o seguinte resultado:
(2a + b – a) (b – a) + a2 = (a + b – a)2
(a + b) (b – a) + a2 = b2
(a + b) (b – a) = b2 – a2

Proposição II-14: Construir um quadrado igual à retilínea dada.

A demonstração é como segue:


70

Fique, pois, construído o paralelogramo retangular BCDE igual à retilínea dada A; (Pr.
I-45). Se, por um lado, de fato, BE é igual à ED, estará feito o que se pede, porque BD será
um quadrado igual à retilínea A. Mas, se não, uma das BE, ED é maior. Seja maior a BE e
fique prolongada até o F, de maneira que EF seja igual à ED, e fique cortada a BF em duas
partes iguais no ponto G, e com centro em G, tomando a distância GB ou GF, fique descrito o
semicírculo BHF, e fique prolongada a DE até o H, e fique ligada a GH.
Como, de fato, a reta BF foi dividida em duas partes iguais no ponto G, e em duas
desiguais no ponto E, portanto, o retângulo contido pelas retas BE, EF, juntamente com o
quadrado sobre EG é igual ao quadrado sobre GF (Pr. II-5). Mas a GF é igual à GH. Logo, o
retângulo das retas BE, EF, juntamente com o quadrado de GE, será igual ao quadrado GH.
Mas os quadrados de HE, EG são iguais ao quadrado de GH (Pr. I-47). Portanto, o retângulo
de BE, EF, juntamente com o quadrado de EG, será igual aos quadrados de HE, EG. Logo,
tirando o quadrado comum de GE, ficará o retângulo sobre BE, EF igual ao quadrado de EH.
Mas o retângulo sobre BE, EF é o mesmo retângulo BD, por ser EF igual à ED. Logo, será
BD igual ao quadrado sobre EH. Mas temos construído o paralelogramo BD igual à retilínea
dada A. Logo, a retilínea A será igual ao quadrado que será descrito sobre a EH.

Figura 2.12: Euclides II-14. Fonte: Adaptado de Euclides, 2009, p. 149.

Euclides parte do pressuposto de que a figura de área A já tenha sido transformada no


retângulo de área A pela proposição I-45. Em seguida pede para prolongar o segmento de reta
BE até F de forma que EF = ED e encontrar o ponto G, médio de BF (Figura 2.13).
71

Figura 2.13: Etapa I - quadratura de figuras

Primeiras etapas de construção de um quadrado cuja área será igual ao de um retângulo dado. A figura mostra
que foi construído o segmento EF = ED e o ponto médio do segmento BF.
Fonte: Acervo pessoal

Com centro em G e raio GF traçar o arco BHF, onde H é a intersecção do arco com a
perpendicular à BF passando por E. Traçar GH (Figura 2.14).

Figura 2.14: Construção representativa da proposição II-5. Fonte: Acervo pessoal.

Essa é a representação geométrica da proposição II-5. Essa proposição afirma que a


área do retângulo sobre BE (BEDC) somada com a área do quadrado sobre GE (JDIK) é igual
a área do quadrado sobre GF (GFLK).
Isto é,
BEDC + JDIK = GFLK (1)
De fato, o diagrama que Euclides usa para mostrar essa afirmação perpassa por vários
teoremas onde pode ser visto que:
BEDC + JDIK = (BGJC +GEDJ) + JDIK
= (GFTJ + DTLI) + JDIK
72

= GFLK
Devemos lembrar que queremos encontrar um quadrado cuja área seja igual à área do
retângulo BEDC.
Da Figura 2.14, temos que:
GF = GH (ambos são raios do arco BHF), então o quadrado GFLK tem a mesma área do
quadrado SRHG.
Ou seja,
GFLK = SRHG (2)

Figura 2.15: Construção que representa a comparação de áreas de quadrados. Fonte: Acervo Pessoal.

1) Pela proposição I – 47 (Teorema de Pitágoras), o quadrado JDIK mais o quadrado HQPE


é igual ao quadrado SRHG (Figura 2. 16).
Isto é,
HQPE + JDIK = GSRH (3)
73

Figura 2. 16: Representação geométrica da proposição I-47. Fonte: Acervo Pessoal.

De (1) BEDC + JDIK = GFLK


(2) GFLK = GSRH
(3) GSRH = HQPE + JDIK
temos a igualdade de áreas:
BEDC + JDIK = HQPE + JDIK
Tirando o quadrado comum sobre GE (JDIK), ficamos com:
BEDC = EHQP
Como queríamos, ou seja, a área do retângulo BEDC é igual a área do quadrado
EHQP (Figura 2.17).

Figura 2.17: Comparação da área do quadrado com a área do retângulo. Fonte: Acervo Pessoal.

.
74

O segmento desconhecido nessa construção é o segmento de reta FP, assim, basta


construirmos. Esse segmento pode ser traduzido como o valor desconhecido x em uma
equação do segundo grau do tipo ax – x2 = b2.
Nessa seção, ficamos com a apresentação da proposição II-14 como exemplo, mas que
o método de aplicação de áreas é utilizado em proposições de diferentes livros de os
Elementos: I-45, I-47, II-5, II-14 e VI-29, entre outros. Esperamos que, assim, tenhamos
exemplificado a natureza da resolução de problema e a demonstração de teoremas contido em
Euclides, cujo resultado é a construção geométrica de figuras planas com a finalidade de
comparar áreas sem associá-las aos números.

2.5 Álgebra Geométrica na perspectiva da complementaridade

Durante muito tempo OS Elementos de Euclides foi geralmente considerado


representações que se reporta ao aspecto matemático relacionado à aritmética e à geometria.
A partir do início do século XIX, gradualmente, emergiu a possibilidade de existência de uma
álgebra implícita nas construções geométricas contidas nos livros, em particular no Livro II.
Os primeiros indícios dessa conjectura aparecem com François Peyrard (1760 – 1822)
bibliotecário da E’cole Polytechnique. Ele produziu edições e traduções de vários
matemáticos gregos, escrevendo vários resultados na linguagem algébrica e foi amplamente
elogiado pelo que fez por vários contemporâneos, especialmente Joseph Louis Lagrange
(1736 – 1813), que defendia a conversão das teorias da matemática em formas algébricas
como princípio geral.
A partir de meados do século XIX essa linha de pensamento evoluiu e grande parte da
matemática grega foi considerada como se fosse álgebra disfarçada de métodos geométricos.
“Georg Edelmann escreveu um volume em 1847 com o título “a álgebra dos gregos”. Esta
tese tomou forma ainda mais específica na década de 1880, especificamente a partir de Paul
Tannery em 1882 e Hioronymus Zeuthen quatro anos depois. Eles interpretaram grande parte
da matemática contida em Os Elementos como “álgebra”, à maneira de Descartes, como
sendo variáveis” (GRATTAN-GUINNESS, 1996, p. 356, tradução nossa).
A interpretação da geometria vista como uma álgebra implícita foi denominada por
Zeuthen de “Álgebra Geométrica”. Apesar do caráter essencialmente geométrico de Os
Elementos de Euclides, além de H. Zeuthen, outro matemático e também historiador B. L. van
der Waerden, ambos, postularam que as proposições do livro II seriam, na verdade,
75

propriedades algébricas enunciadas sob uma roupagem geométrica, ou seja, formulações


geométricas de regras algébricas, como as que permitem resolver uma equação do segundo
grau.
Alguns livros de matemática modernos apontam para a existência de álgebra nos
Elementos. Dentre eles, encontramos Burton dizendo que: “na época de Euclides, a “álgebra
geométrica grega” havia atingido um estágio de desenvolvimento em que ela poderia ser
usada para resolver equações simples que envolvem quantidades desconhecidas. As equações
foram agraciadas com uma interpretação geométrica e resolvidas por métodos construtivos; as
respostas a estas construções eram segmentos de linha, cujos comprimentos correspondem aos
valores desconhecidos (BURTON, 2011, p. 160, tradução nossa)”. De acordo com esse autor,
“o livro II de Os Elementos poderia ser chamado de um tratado sobre a álgebra geométrica,
porque é algébrico em substância, mas geométrico em tratamento (BURTON, 2011, p. 159,
tradução nossa)”.
Urbaneja também fala da presença da álgebra geométrica: “a álgebra geométrica era
um poderoso instrumento para resolução de equações, mediante o método de aplicação de
áreas, teoria que segundo Proclo13 seria de ascendência pitagórica” (URBANEJA, 2003, p. 23,
tradução nossa).
Do ponto de vista de Eves (2002, p. 107), “os gregos idealizaram processos
“algébricos” engenhosos para efetuar operações algébricas”. Esses processos algébricos nos
quais o autor se refere são construções geométricas em que é utilizado o método de aplicações
de áreas, cuja finalidade é a comparação de áreas entre figuras geométricas planas. Para Eves,
“o Livro II de Os Elementos contém várias proposições que em realidade são identidades
algébricas envolvidas numa terminologia geométrica”.
Roque (2012, p. 185) questiona que a intenção de Euclides tenha sido resolver
equações algébricas por meio de construções geométricas. A autora cita Sabetai Unguru, que
escreveu um artigo atacando os defensores da tese da “álgebra geométrica” e ressaltando que
quem ler os textos gregos com a matemática moderna em mente pode nos fazer esquecer que
aqueles se baseavam em pressupostos próprios. A autora ainda enfatiza que “seria inadequado
considerar que os livros sobre números, (especificamente os livros VII: aritmética básica e
VIII: números em proporção contínua) de Os Elementos de Euclides contivessem uma
álgebra”. Uma das razões é o fato de que não era usado nenhum tipo de notação algébrica, que
implica empregar um mesmo símbolo para designar coisas diferentes. Roque finaliza sua

13
Proclo Licio Diadoco (410 – 487). Filósofo neoplatônico do século V.
76

discussão dizendo que não há evidências, e parece improvável, que um pensamento algébrico
estivesse em jogo nos argumentos apresentados por Euclides. “[...] suas demonstrações
utilizam propriedades particulares das figuras em questão. As transformações de áreas
operadas em Os Elementos podem ser associadas às operações de adição, multiplicação e
extração de raiz quadrada, mas nada indica que tais operações pudessem ser abstraídas das
formas geométricas propriamente ditas (ROQUE, 2012, p. 188)”.
O historiador das ciências neerlandês Eduard Jan Dijksterhuis, em 1929-1930, evitou,
em sua apresentação dos Elementos, o tratamento algébrico. Em meados da década de 1930,
em um artigo importante sobre “logística grega e as origens da álgebra”, Jacob Klein não
apresentou relação entre álgebra e geometria nos Elementos, precisamente porque depois de
comparados e constatadas a matemática grega com a álgebra simbólica do renascimento
europeu não encontrou indícios de que as intenções de Euclides fossem representar álgebra
por meio de figuras. Heath encontrou limitações para ver Os Elementos de Euclides como
álgebra geométrica. A crítica mais direta foi a de Sabetai Unguru, que escreveu um artigo
polêmico em 1975. Ele recebeu respostas de três matemáticos: van der Waerder em 1976,
Hans Freudenthal em 1977 e André Weil em 1978. Unguru respondeu aos três em outro artigo
de 1979.
No último quarto do século XIX as vozes críticas contra a álgebra geométrica foram
ouvidas e respondidas pelos seus defensores. Freudenthal (1977, p. 189, tradução nossa)
começa dizendo que “quem começa a ler a matemática grega percebe que grande parte é, de
fato, de natureza algébrica camuflada pelo tratamento geométrico”. Para ele isso foi um
enigma que perdurou até o século XIX quando os matemáticos enfrentaram os mesmos
problemas de maneira diferente. Por exemplo, o texto grego,
[...] como A está para B, então deixe C está para D
e, como C está para D, por isso, E está para F.
Eu digo, que, A está para B, como E está para F.

Pode ser escrito algebricamente como:


a:b = c:d
e
c:d = e:f
então
a:b = e:f
77

Para Freudenthal (1977, p. 190, tradução nossa) o tratamento dos objetos matemáticos
depende do contexto em que estão inseridos. “Sem dúvida esta é admissível, mas seria
absolutamente inadmissível no mesmo contexto substituir proposições como a:b = c:d por
seus análogos mais moderno ad = bc”.
Segundo Waerden, a opinião de Unguru sobre os livros I e II é que a “Álgebra
Geométrica Grega nada mais é do que álgebra babilônica com vestuários geométricos”.
“Depois de ter resumido nossas opiniões”, diz Waerden, Unguru começa sua discussão
apresentando os traços característicos do pensamento algébrico. Para ele [Unguru] o
simbolismo algébrico é representado pelas três características abaixo.
a) simbolismo operacional;
b) a preocupação com as relações;
c) abstração.
Waerden argumenta que se esse posicionamento for levado em consideração realmente
não havia álgebra nos Elementos, mas ele diz que as construções em Euclides não são vistas
por esse prisma, as álgebras babilônica, grega e árabe são interpretadas no sentido da álgebra
escolar atual.
Na escola aprendemos como fazer manipulações de expressões como (a + b)2
explicitando o seu desenvolvimento, ou seja,
(a + b)2 = a2 + 2ab + b2
Ocorre que nem sempre o professor faz a relação com o conceito de área. Mas, lidar
com esse tipo de expressão, assim como resolver um sistema linear ou uma equação do
segundo grau é considerado, na escola atual, álgebra.

O que é álgebra? Não há Supremo Tribunal para decidir tais questões. No entanto,
“álgebra” tem um significado na linguagem cotidiana, assim como “cadeira” e
“mesa”. Por exemplo, na escola álgebra é a resolução de equações lineares e
quadráticas. É o tipo de álgebra que os babilônios começaram. Era a sua álgebra não
álgebra, porque seu simbolismo não era bom o suficiente? São “comprimento” e
“largura” muito pior do que “x” e “y” se você pode dar receitas claras para resolver
equações de segundo grau em tais condições? [...] Esta capacidade de descrever
relações e procedimentos para resolvê-las, e as técnicas envolvidas de uma maneira
geral, é, em minha opinião, característica de álgebra, uma característica tão
importante de pensamento algébrico que eu estou disposto a estender o nome de
“álgebra”, desde que nenhum outro nome é proposto, e na medida em que não
conheço nenhum outro nome que já tenha sido colocado. Mas o que está em um
nome? (FREUDENTHAL, 1977, pp. 193 – 194, tradução nossa).

Unguru questiona esse posicionamento porque não aparece explicitamente o


simbolismo algébrico como, por exemplo x2 + bx = c, nos livros de Euclides, apenas figuras
comentadas. Para ele, pensar dessa forma é praticar o pensamento platônico de que as formas
78

matemáticas são eternas, imutáveis, em que as entidades envolvidas residem no mundo das
ideias onde elas esperam pacientemente para serem descobertas.
A conclusão de Unguru é que, não há evidência de simbolismo algébrico. Não
podemos “empregar conceitos ou operações para as quais não há nenhuma evidência genuína
ou em seu tempo ou nas obras de seus antecessores [...] Ele não poderia ter utilizado
dispositivos e procedimentos matemáticos que foram inventados muitas centenas de anos
depois de sua morte” (UNGURU, 1979, p. 556, tradução nossa).
Mas para Waerden o que está em questão não é o simbolismo algébrico propriamente
dito, mas a ideia que pode ser representada por meio do simbolismo ou por uma linguagem
corrente. É exatamente nesse ponto, ou seja, é exatamente sobre as ideias implícitas que deve
ser o foco das reflexões. Unguru pensa que o conhecimento depende dos meios de
representação do signo, mas na verdade, o conhecimento surge das ideias. G. H. Hardy (1887
– 1947) publicou um livro autobiográfico, cujo título é “em defesa de um matemático” no
qual dizia que “a matemática é como a poesia ou arte, ela constrói padrões não de formas, mas
de ideias”.
Segundo Otte, num certo sentido, essa é uma ideia platônica. Teeteto e Sócrates
quando discutem o que é conhecimento, não chegam a uma conclusão, porque para Platão, o
conhecimento surge diretamente dos objetos, mas os únicos objetos que podemos conhecer
diretamente são as ideias, pois as ideias fazem parte da alma humana. De acordo com Otte14,
“o homem possui dois lados: corpo e alma. Essa concepção surge da teoria das ideias, mas os
filósofos analíticos e lógicos, que são contra essa noção, dizem que não é possível existir
problemas sobre a natureza da razão sem apontar estados de coisas particulares”. Ou seja, se
não tivéssemos construídos teorias, conceitos, não teríamos problemas.
Mas a poesia fala do homem, do nascimento e da morte como tais, e não das
particularidades. Por exemplo, não se fala que Sócrates é bom, fala-se da bondade de
Sócrates. Então, uma proposição com sujeito e predicado se transforma em uma relação
(Sócrates = bondade). Isso é fundamental, porque todo pensamento matemático é pensamento
relacional, todo pensamento teórico é um pensamento relacional. Movimento e temperatura
são dois fenômenos diferentes, mas que de certa forma estão conectados. Para produzir a
temperatura é necessário que as partículas se agitem, tanto maior é o grau de agitação maior
será a temperatura. A sensação de calor surge como uma ideia abstrata que conecta esse dois

14
Aula proferida em 09 de maio de 2014.
79

fenômenos. Se não tivéssemos esses universais o mundo seria um conjunto de coisas


particulares.
Platão coloca Sócrates dialogando com o estudante Mênon, o qual pretende que
Sócrates lhe explique o que é conhecimento. O problema que surge nesse diálogo é quanto a
duplicação do quadrado. Como encontrar um quadrado de área dupla. Mênon consegue
resolver o problema porque a solução já lhe pertencia, Sócrates fez o papel apenas de
orientador, de questionador, foi um mero mediador do conhecimento. Então as ideias básicas
para resolver um problema que provoca um teorema já estão implícitas no sujeito. Se
fossemos uma máquina não poderíamos perceber as ideias, não poderíamos construir teorias,
e não poderíamos construir a matemática, uma estrutura formada por ideias.
Para os matemáticos não importa a representação, o símbolo é apenas um indumento,
são as ideias que devem ser destacadas. Mas, por outro lado, não existe pensamento sem
signo, essa é o axioma principal de Pierce. Nesse contexto que o conceito de
complementaridade se apresenta: símbolos e ideias são dependentes um do outro, são
complementares.
Waerden tenta mostrar que está interessado nas ideias das representações apresentando
a analogia entre a expressão
(a + b)2 = a2 + 2ab + b2
com sua representação em linguagem retórica.
“O quadrado de uma soma é a soma dos quadrados dos termos e duas vezes o seu
produto”. Ambos os matemáticos, Waerden e Freudenthal, utilizam-se dos mesmos artifícios,
representando uma mesma ideia de formas diferentes.
Freudenthal (1977, p. 194, tradução nossa) pergunta: “quais são os significados que
estão ausentes na matemática grega, seria dizer que (a + b)2 = a2 + 2ab + b2 não é uma
equação se for formulada por palavras?” É possível que exista uma concepção generalizada de
que a álgebra (e a matemática como um todo) é composta por símbolos, ou seja, letras, sinais
e operação”. Mas Freudenthal (1977, p. 192, tradução nossa) entende que “símbolos não são
os objetos da matemática, como Unguru sugere, mas sim que eles são parte da linguagem pela
qual os objetos matemáticos são representados. Símbolos têm sido usados para fazer e para
comunicar a matemática, desde os tempos babilônicos até hoje”.
A eficiência do simbolismo é determinada pela facilidade com que o utilizador pode
mover-se no seu interior, pela autonomia algorítmica que ele proporciona. O simbolismo se
torna forte a medida que deixamos de nos preocupar com a identificação dos objetos e o
80

significado simbólico e passamos a nos preocupar nas relações entre símbolos. Na verdade, é
mais fácil lidar com a expressão:
(a + b)2 = a2 + 2ab + b2
do que com a retórica
“O quadrado de AB é igual aos quadrados de AC mais BC juntamente com o dobro do
retângulo sobre AC, BC”.
A declaração em palavras diz exatamente a mesma coisa que a fórmula. Em vez de
“produto” pode-se também dizer “área” (de um retângulo), como os babilônios fizeram.
Semelhantemente Euler interpreta as afirmações abaixo sem distinção.
5 ovos + 7 ovos = 12 ovos
5 casas + 7 casas = 12 casas
5 gatos + 7 gatos = 12 gatos
5 x + 7x = 12x
Para ele [Euler] todas essas grandezas são variáveis, a forma de todas essas
proposições é igual. A matemática foi uma teoria de grandezas. Na época de Euclides não
existia uma diferença entre aritmética e álgebra. O simbolismo é um instrumento, é um meio.
Não podemos dar ênfase simplesmente aos meios, para compreendermos os problemas da
natureza e da matemática devemos privilegiar também os objetos. Complementaridade é
exatamente isso, a relação entre meios e objetos. Em termos semióticos falamos da
complementaridade entre sentido e referência, referência a um objeto, a um problema. Por
isso falamos de complementaridade, para dar ênfase a ambos os lados.
Claro que existe uma diferença entre as expressões acima, mas essa diferença é
minimizada, ou até mesmo não existe, porque a ideia é a mesma, todas as declarações acima
dizem exatamente a mesma coisa, ou seja, somar 5 coisas com 7 coisas o resultado são 12
coisas. Agora, a representação é extremamente necessária para que a ideia seja sugerida.
Se pensarmos em complementaridade então devemos entender que ambos, Unguru e
Waerden tem razão em seus pontos de vista. Por um lado Unguru tem razão em dizer que não
existe simbolismo algébrico patente como conhecemos hoje, a primeira vista o que há nos
Elementos são construções geométricas seguida de descrições em que são feitas relações entre
figuras. Por outro lado, Waerden tem razão em dizer que existe a ideia implícita da álgebra,
pois, são as ideias juntamente com os signos que possibilitam o conhecimento.
São as ideias que importa para um matemático, ou seja, são as estruturas constituídas
por ideias e representadas por meio do simbolismo. Sem signo não conseguimos expressar as
81

ideias, mas não existe o signo sem objetos. Não existe a fumaça sem o fogo. Mas sem ideias,
somente com signos, também não desenvolvemos nossos conhecimentos.
Unguru insistia que abrindo os livros de Euclides (principalmente os livros I e II) não
encontrava nenhum simbolismo algébrico e continuava negando a existência de álgebra
babilônica. Em vez disso, ele fala, de “um estágio aritmético (matemática egípcia e
babilônica), em que o raciocínio é, em grande parte, da aritmética elementar ou com base em
regras empíricas paradigmáticas derivadas das tentativas bem sucedidas tomadas como um
protótipo” (WAERDEN, 1976, p. 200, tradução nossa). De fato, Unguru diz que “não existe
álgebra na babilônia, nem em fontes matemáticas gregas e pré-diofantinas” (UNGURU, 1979,
p. 557, tradução nossa). Mas os matemáticos continuavam a questionar Unguru, porque a
matemática é constituída por ideias, não sobre fórmulas, não sobre tipos de representação.
O primeiro documento conhecido que traz um enunciado que pode ser interpretado
como uma equação do segundo grau data de 1700 a.C. aproximadamente, feito numa tabula
de argila e expresso por meio de palavras. Os mesopotâmios enunciavam da seguinte forma:
“Qual é o lado de um quadrado em que a área menos o lado dá 870?” Veja que podemos
escrever esse problema sem nenhuma dificuldade pela expressão: x2 – x = 870. A solução e
dada usando regras aritméticas da seguinte forma:
Tome a metade de 1 (coeficiente de x) e multiplique por ela mesma, (0,5 × 0,5 = 0,25).
Some o resultado a 870 (termo independente). Obtém-se um quadrado (870,25 = 29,52) cujo
lado somado à metade de 1 vai dar (30) o lado do quadrado procurado.
Na Índia se destacou Bhaskara de Akaria, no século XII, apresentando uma solução
que mais se assemelha à utilizada atualmente e que originou na fórmula bem conhecida no
Brasil que leva o seu nome, Bhaskara. A solução é dada a um problema de matemática
financeira. Transcrito em linguagem atual, o problema dizia o seguinte:
Um capital de 100 foi emprestado a uma certa taxa de juro ao ano. Após 1 ano, o
capital foi retirado e o juro obtido aplicado durante mais 1 ano. Se o juro total foi de 75, qual
foi a taxa ao ano?
Sendo a taxa x%, tem-se que o juro no primeiro ano será de x e no segundo ano será de
x . x/100, ou seja, a equação em linguagem algébrica hoje seria: x + x . x/100 = 75 ou x2 +
100x – 7500 = 0.
A solução era apresentada de forma verbalizada, com palavras, o que seria na
linguagem atual, algo como:
82

Eleve a metade do capital (coeficiente de x) ao quadrado, acrescente o resultado ao


produto dos juros totais (termo independente) pelo capital, extraia a raiz quadrada e diminua
a metade do capital, o que leva à solução procurada.
Na Arábia, Mohamed ibn-Musa al-Khowarizmi escreveu a obra Hisab al-jabr
wa’lmuzabalah em 825, obra de grande potencial didático, traduzida como Ciência das
Equações. Nessa obra, Al-Khowarizmi mostra o método de completar quadrados para resolver
equações do segundo grau, método geométrico distinto daquele utilizado pelos gregos. Para
deixar claro, vejamos como se justifica geometricamente, por exemplo, a solução positiva de
x2 + 8x = 9, que algebricamente é 1.

Figura 2.18: Solução geométrica da equação x2 + 8x = 9. Fonte: Acervo Pessoal.

Tomemos um quadrado de lado x para representar o termo x2, e quatro retângulos de


comprimento x e largura 2, para representarem o termo 8x, conforme figura 1.3. Dessa forma
obtemos uma figura cuja área é 9, tendo em vista que x2 – 8x = 9. Para completamos o
quadrado devemos adicionar mais quatro quadrados de lado 2, obtendo assim um quadrado de
área 25, pois, 9 + 16 = 25. O lado do quadrado maior (de área 25) é 5, portando o valor de x é
5 – 2 (2) = 1.
Waerden (1976, p. 201, tradução nossa) diz que essa foi a primeira prova de
Khowarizmi, “depois ele apresenta um diagrama simplificado (ver Figura 1.4), que se parece
com o diagrama que acompanha proposição II-4 de Euclides”.
83

Figura 2.19: Diagrama da álgebra de Al-Khwarizmi. Fonte: Waerden, 1976.

“O diagrama algébrico em Khowarizmi é típico de uma tendência geral que podemos


observar na aritmética grega, bem como, na álgebra babilônica e árabe, ou seja, uma
tendência para ilustrar conceitos e métodos algébricos por meio de diagramas” (WAERDEN,
1976, p. 201). Unguru é extremamente contra essa afirmação positivista de Waerden e dá um
exemplo: “é como se propuséssemos para Euclides pensar na linguagem sânscrita, mas por
causa da sua ignorância do alfabeto sânscrito, teve que usar o grego” (UNGURU, 1979,
p.556, tradução nossa). Ele chega a chamar B. L. van der Waerden e Hans Freudenthal de
irresponsáveis por admitir essas ideias. Para Unguru, o fato dos matemáticos modernos
interpretarem a matemática grega algebricamente é uma coisa, agora, a conclusão de que a
linha de pensamentos dos matemáticos gregos era algébrica é um assunto completamente
diferente. Para Unguru o que existe é uma criação imaginativa do contexto, [...] “há uma
imaginação matemática e uma imaginação histórica, e são normalmente executadas em
diferentes faixas” (UNGURU, 1979, p. 557, tradução nossa).
Aqueles que percebem uma subestrutura algébrica na matemática grega afirmam que
os gregos começaram com problemas algébricos, mas, então, traduzido em um formato
geométrico. Membro desse grupo, Waerden alega que em problemas com duas incógnitas,
estes são muitas vezes chamados de comprimento e largura, e o produto à sua área. Em
problemas com três incógnitas, estes são chamados às vezes de comprimento; largura e altura,
e seu produto de volume. Na aritmética grega o produto de um número por si só é sempre
chamado seu quadrado. Números da forma n2(n ± 1) foram interpretados como volumes de
paralelepípedo retangulares. Waerden salienta que há tabelas babilônicas dos números n2(n ±
1), e que essas tabelas já foram utilizadas para resolver equações cúbicas da forma:
x2(x ± a)=b
84

Assim, na concepção de Waerden, existe a tendência para traduzir noções algébricas


ou aritméticas em terminologia geométrica, fato comum entre os babilônios, gregos e árabes.
Para Waerden e seus adeptos, as construções geométricas são resultados de problemas
algébricos e afirma que não encontrou evidências que as proposições como as II 1 – 4 de Os
Elementos surjam de problemas geométricos porque eles não são interessantes o bastante para
dar origem a essas proposições. Por outro lado, o aparecimento dessas proposições seria
melhor justificado se fosse por meio de cunho algébrico.
Unguru questiona: “como Waerden sabe que não existia nenhum problema geométrico
interessante que levassem a essas proposições?” E o que é um problema geométrico
interessante? Segundo Unguru (1979, p. 557, tradução nossa), Waerden teria dito que um
problema geométrico interessante é aquele que “funcionava bem”. O debate se prolongou com
perguntas e respostas circulares, mas o que significa “funcionar bem?” Waerden, nas palavras
de Unguru, teria dito que seria ver claramente o significado de algo e remover dificuldades
permitindo encontrar e simplificar raízes. Por fim, na concepção de Waerden, conclui Unguru
(1979, p. 558, tradução nossa), “os gregos começaram com problemas algébricos e os
traduziram para linguagem geométrica”.
Para Waerden, qual seria a necessidade de existir a proposição I do livro II? Essa
proposição, nas palavras de Euclides (2009, p. 135) diz que: “caso existam duas retas, e uma
delas seja cortada em segmentos, quantos quer que sejam, o retângulo contido pelas duas retas
é igual aos retângulos contidos tanto pela não cortada quanto por cada um dos segmentos”.

Figura 2. 20: Euclides II-I. Fonte: Euclides, 2009, p. 135.

Waerden argumenta que Euclides não faz uso dessa proposição nos próximos quatro
livros, enquanto que se pensarmos em aritmética a regra que gera essa construção segue a lei
distributiva, ou seja, multiplicar os termos de uma soma por um valor a. Dessa forma,
Waerden se convence que essa regra de cálculo é traduzida para a linguagem geométrica. Em
85

outras palavras, a proposição II-1 fornece uma prova geométrica de uma regra algébrica de
cálculo. As proposições II-2 e II-3 são apenas casos especiais de II-1. Mais uma vez, diz
Waerden (1976, p. 204, tradução nossa), a partir do ponto de vista da geometria não há
nenhuma razão para formular essas trivialidades como teoremas.
Na geometria o pensamento relacional ocorre por meio de partes que são semelhantes
entre si e que se correspondem termo a termo. Descartes fez a aritmética se relacionar com a
geometria ao atribuir a unidade ao segmento de reta. Viète estabeleceu relações entre
grandezas conhecidas e desconhecidas. A álgebra lida com objetos desconhecidos como se
fossem conhecidos a base de relações entre eles. A essa relação chamamos de análise, isto é, a
análise é baseada no pensamento relacional, daí a importância desse pensamento para a
matemática. Na figura 1.5 podemos fazer relações entre partes que são semelhantes entre si,
nesse caso podemos comparar as áreas de cada retângulo, permitindo, então, escrever a
expressão:
A(ABCD) = A(ABEF) + A(FEGH) + A(HGCD)
Em que A(ABCD) representa a área do retângulo ABCD; A(ABEF) representa a área do
retângulo ABEF; e assim sucessivamente.
AB  AD = (AB  AF) + (AB  FH) + (AB  HD)
Fazendo AB = a e AD = b + c + d, temos:
a(b + c + d + ...) = (a  b) + (a  c) + (a  d) + ...
que é a lei distributiva da multiplicação em relação à adição.
De acordo com Otte (1989) o pensamento relacional é evidenciado no pensamento
algébrico porque lida com as relações entre os objetos e não com os objetos em si. Otte (1990)
diz que “a história das ciências pode ser esboçada como uma transição de pensar em objetos
para o pensamento relacional. [...] a ciência se preocupa com as relações existentes entre os
objetos ou fenômenos”. No artigo de 2003, Otte diz que o raciocínio operatório foi necessário
na transição do primeiro período (matemática grega) para o segundo período (matemática
moderna) que segundo o autor começa com Descartes.
Para a proposição II-4, Waerden justifica dizendo que se pensarmos em fins
puramente geométricos, não é possível entender a linha de pensamento de Euclides. Essa
proposição se justifica apenas se levarmos em conta o pensamento algébrico cuja origem se
dá na Arábia com al-Khowarizmi.
Como vimos, o mesmo diagrama de um quadrado dividido em dois quadrados e dois
retângulos (sem a diagonal, o que não é necessário) também aparece no tratado de al-
Khowarizmi. Aqui ocorre em seu lugar natural: O autor precisa dele para justificar o seu
86

método de resolução de equações do segundo grau. Neste caso, podemos ver porque al-
Khowarizmi inseriu o diagrama (WAERDEN, 1976, p. 205, tradução nosssa).

Figura 2. 21: Euclides II-4. Fonte: Waerden, p. 205.

O tratado sobre números amigos de Thabit Ibn Qurra, contemporâneo de al-


Khowarizmi, mostra que ele estava totalmente familiarizado com a obra de Euclides. “Thabit
apontou a solução dos três tipos de equações do segundo grau de acordo com “as classes
inferiores da Álgebra” equivalente à “Aplicação de áreas com excesso ou falta”, como
apresentado por Euclides” (WAERDEN, 1976, p. 205, tradução nossa). De acordo com esse
autor, o exemplo de Thabit mostra que UNGURU é completamente errado em pensar que
matemáticos como Zeuthen chegou a suas opiniões sobre álgebra geométrica grega só porque
eles traduziram as proposições de Euclides no moderno simbolismo algébrico. Waerden ainda
afirma que é verdade que Zeuthen era capaz de usar o simbolismo moderno, mas Thabit não
era, e ainda chegou à mesma conclusão que Zeuthen, ou seja, que a solução de al-Khowarizmi
das equações do segundo grau é equivalente ao procedimento de Euclides.
Por outro lado, Unguru também apresenta exemplos dos livros de Euclides que,
segundo ele, não é álgebra, tomando como exemplo os livros V e VII. O livro V aborda a
teoria geral das proporções de Eudoxo, enquanto o livro VII trata dos números. Vejamos na
tradução de Irineu Bicudo15 como são apresentadas algumas das definições dos dois livros.

Livro V
Def. 1) Uma magnitude é uma parte de uma magnitude, a menor da maior, quando meça
exatamente a maior.
Def. 2) E a maior é um múltiplo da menor, quando seja medida exatamente pela menor.

15
Veja Euclides 2009, p. 205 e 269.
87

Def. 3) Uma razão é a relação de certo tipo concernente ao tamanho de duas magnitudes de
mesmo gênero.
Def. 4) Magnitudes são ditas ter uma razão entre si, aquelas que multiplicadas podem exceder
uma a outra.

Livro VII
Def. 1) Unidade é aquilo segundo o qual cada uma das coisas existentes é dita uma.
Def. 2) E número é a quantidade composta por unidade.
Def. 3) Um número é uma parte de um número, o menor, do maior, quando meça exatamente
o maior.
Def. 4) E partes quando não meça exatamente.

Para Unguru, assuntos tratados no livro V no âmbito das grandezas contínuas são
repetidos e aplicados no livro VII especificamente no tratamento com números. A razão para
isso é que os números para os gregos não são instâncias de um conceito de magnitude geral.
Na visão grega “a aritmética é uma organização independente, não um derivado, geometria e
aritmética são de diferentes gêneros, que têm seus próprios domínios, dispondo de suas
próprias técnicas de demonstração, e lida com o seu próprio conteúdo” (UNGURU, 1979, p.
559 – 560, tradução nossa).
Freudenthal argumenta que se tivesse tido acesso a existência de Dados de Euclides
nunca teria alegado que não havia equações na geometria. Mas Unguru diz que Dados não é
um livro sobre resolução de equações, mas um tratado apresentando outra abordagem para a
geometria elementar.
Ambos Freudenthal e van der Waerden construíram definições operacionais idênticas
de álgebra, criando problemas significativos em suas análises da geometria grega. Mas, o fato
é que, para Unguru, falta ao matemático babilônico justamente a capacidade para descrever
relações e procedimentos para a solução e as técnicas envolvidas de uma maneira geral que
justifica sua desqualificação como algebrista. O que falta é justamente a capacidade de
dispensar números específicos, definidos, e é essa deficiência que dita a forma particular de
sua abordagem. O que ele pode produzir são receitas, não fórmulas gerais.
Com relação ao matemático grego (geômetra), por outro lado, embora seja legítimo
ver sua abordagem como uma abordagem geral (o chamado teorema de Pitágoras é verdade
para qualquer triângulo retângulo, etc.), a linguagem que eles usam é a linguagem geométrica
e a generalidade envolvida é uma consequência natural de lidar com a geometria e não com
88

entidades algébricas. Consequentemente, por critérios próprios de Freudenthal de


“pensamento algébrico”, matemática babilônica e grega não é algébrica (UNGURU, 1979, p.
561).
“O uso da palavra “álgebra” como um termo descritivo da Matemática babilônica e
grega é abusivo. A palavra “álgebra” é usada de maneira descuidada; seu uso está enganado,
uma vez que leva a uma tradução de textos matemáticos antigos em uma linguagem
historicamente inadequada; e, se “álgebra” tem o seu significado próprio, o uso do termo é
inadequado ao assunto” (UNGURU, 1979, p. 562).
Após apresentarmos os argumentos de ambos os lados sobre o assunto, ou a questão
relacionada a matemática de Euclides, se é ou não álgebra geométrica, concluímos que
Unguru não percebeu a importância da ideia para o conhecimento matemático. A geometria
de Euclides não é um pensamento diagramático, é um pensamento algoritmo sintético, não é
um algoritmo representado em termos de números, mas de palavras, de construções. Nesse
sentido, Unguru tem razão em dizer que nos Elementos de Euclides não existe o simbolismo
algébrico. Por outro lado, Waerden também tem razão em afirmar que existe a ideia de um
simbolismo algébrico, porque o conhecimento não é determinado pelo objeto, mas pelas
relações entre os objetos, e se falamos em relações logo pensamos em símbolos que é o
exemplo mais clássico da matemática como os que permitem escrever uma equação. Em
resumo, o princípio de complementaridade na definição de signo relativiza intrinsecamente o
posicionamento de ambos os lados da discussão sobre à álgebra geométrica presente em Os
Elementos de Euclides.

2.6 Considerações sobre o Capítulo

No inicio desse capítulo falamos que a organização dos livros de Euclides é


constituída pelas definições, postulados e axiomas, entes fundamentais para justificar as
subsequentes proposições e, essas, por sua vez, usadas para justificar outras proposições.
A organização e o método de resolver problemas geométricos em Os Elementos
chamam atenção para três aspectos fundamentais independentes e dependentes ao mesmo
tempo. Primeiro a relação entre o objeto construído, ou seja, a figura, a representação
geométrica e a descrição dos passos construtivos, com a finalidade de mostrar as verdades
geométricas. A segunda relação aparece entre a intuição e a lógica, inseparáveis, tendo em
vista que, para a construção de grande parte das verdades geométricas é necessário apelo
intuitivo. O último aspecto refere-se ao conceito e a aplicação do conceito.
89

Iniciamos nossa interpretação sobre o capítulo falando sobre o primeiro aspecto:


objeto construído e as descrições.
O cerne das proposições é sempre uma construção plana. Os diagramas geométricos
possuem especial relevância para as demonstrações, devendo ser considerado como parte do
sistema e não apenas como auxiliar do que foi demonstrado. Embora as demonstrações se
refiram a verdades geométricas, e não a construções particulares, estas, por sua vez, são
indispensáveis para se chegar às verdades. O objeto construído constitui uma referência para o
sistema descritivo euclidiano.
As descrições, ou sequências lógicas, ou ainda, argumentos lógicos, são comparáveis
ao simbolismo algébrico, não no sentido de símbolo, mas no sentido de realizar o mesmo
papel, ou seja, encadear ideias, permitir a dedução. Nesse sentido, argumentação lógica e
figura são complementares na construção da ideia e prova das proposições.
O segundo aspecto que destacamos é a relação da intuição com a lógica. Em Euclides,
para que a construção fosse possível, a intuição e a lógica eram elementos fundamentais. Por
exemplo, a demonstração da proposição 35 do livro I, não estava relacionada de maneira
essencial com o objeto, mas a intuição dos geômetras gregos constituía-se uma forma de
realizar construções auxiliares para que a solução fosse contemplada.
Esse método intuitivo foi criticado pelos modernos que queriam uma forma de
demonstração independente dos diagramas geométricos, cuja concepção se sustentasse numa
demonstração que fornecesse a causa do resultado demonstrado.
Analisando o decurso histórico de Euclides a Viète, não houve um desenvolvimento
espetacular. Os comentaristas da obra de Euclides, como Proclus e Pappus, se limitaram a
esclarecer fatos ambíguos da geometria euclidiana, mas que não podem ser visto como
desenvolvimento propriamente dito no sentido de desenvolver novas técnicas de cálculo. O
surgimento de novos métodos em geometria apareceu somente no inicio da era moderna com
o advento do simbolismo algébrico. Até esse período a matemática ficou estagnada, seu
desenvolvimento se voltou apenas a algumas melhorias realizadas por críticos da obra
euclidiana.
A primeira construção do livro I de Euclides sofreu objeções. A crítica surgiu porque
não se poderia assegurar que os dois círculos iriam se tocar, como sugere nossa construção,
pois não existia um princípio de continuidade que garantisse os pontos em comum. Esse é o
risco que corremos se formos levados apenas pela intuição na solução de problemas
geométricos. Nesse sentido, a organização estrutural da matemática, a formalização dos
conceitos e a criação de teorias no século XIX, buscam superar as deficiências dos antigos
90

gregos e do período moderno. A intuição é fundamental para o pensamento matemático, mas


não é determinante.
A última observação epistemológica da obra euclidiana é quanto à relação do conceito
com a aplicação do conceito. O problema 1 do livro I pode ser visto nessa ótica. Construir um
triângulo equilátero a partir de um segmento de reta é possível a partir do conceito de
circunferência. Em termos de intensão e extensão de objetos matemáticos, a aplicação de
círculos para a construção do triângulo equilátero é a extensão, enquanto que o conceito de
círculo é a intensão, entendendo intensão como sendo o conceito propriamente dito e a
extensão o campo de aplicação desse conceito. É nesse sentido que ocorre a
complementaridade entre intensão e extensão dos conceitos matemáticos na geometria grega.
A complementaridade entre conceito (intensão) e aplicação (extensão), fica mais
evidente no século XIX, porque extrapola o campo da aplicação geométrica, e pode ser
utilizada nas mais diversas ciências, como a física, a economia, a estatística etc.. A
matemática desse período, como veremos no último capitulo, é estrutural, é conceitual,
possuidora de fundamentos e baseada em teorias. É assim que surge a álgebra linear.
Para o ensino da matemática atual, talvez não seja interessante utilizar os argumentos
lógicos da forma descritiva como eram feitos em Euclides, porque temos o simbolismo
algébrico que facilita a exposição dos resultados e a compreensão da matemática. Por outro
lado, não é de todo o certo que o simbolismo resulta em compreensão. Temos dois aspectos
que devemos considerar. O primeiro se refere à simplificação da escrita, a exposição dos
termos de forma que facilite a apreensão do objeto de estudo, nesse sentido o pensamento
algébrico é eficiente. O segundo aspecto é a valorização da álgebra sem a relação geométrica
fundamental; nesse sentido, a álgebra pode desencadear uma série de calculações sem sentido.
A proposição II – 1 (seção 2.6) mostra a lei distributiva em termos de representação de figuras
no plano.
Professores preferem mostrar a lei distributiva da álgebra sob a forma: “2 e 3 são
números, tais que 2 × (2 + 3) = 2 × 2 + 2 × 3” em vez do argumento “geral” por meio de
formas geométricas de representação gráfica, como em Euclides.
No entanto, o objeto construído, que dá significado a intuição, é fundamentalmente
importante. Nesse sentido, não podemos afirmar que o método que os professores preferem é
o melhor ou se o método euclidiano é melhor, mas podemos dizer que, para a compreensão e
significado dos objetos da matemática, o que mais vale são as maneiras distintas de se chegar
ao mesmo resultado. Essas formas diferentes de se chegar aos resultados são, no entanto,
complementares. É nessa relação entre objeto e representação que criamos o significado dos
91

objetos matemáticos. Por fim, para completar o significado para quem estuda a matemática, a
construção e aplicação do conceito são essenciais. Portanto, objeto matemático, conceito e
aplicação devem ser amplamente explorados.
CAPÍTULO 3

A transformação estrutural da matemática nos séculos


XVI e XVII

Do infinito ao zero há só um passo: o que leva à álgebra,


já que o nulo é o inverso do ilimitado.

Georges Ifrah.

As influências das interações algébricas e geométricas do legado cartesiano permitem


substituir as complexas construções geométricas da Álgebra Geométrica dos gregos por um
cálculo operacional, mediante o método analítico-sintético de resolução de problemas, que
possibilita não só reconstruir a geometria clássica com clareza, elegância e destreza, mas
também, criar uma geometria que pudesse resolver, de forma admirável, problemas
geométricos novos e antigos.
A mudança na forma de representar os objetos matemáticos está intimamente ligada a
tecnologia, um dos componentes da matemática ao lado da lógica. Nos séculos XVI e XVII,
época de Galileu, Viète, Descartes, etc., houve uma mudança significativa com a chegada da
álgebra simbólica e uma mudança no modo de construção.
O cenário naquela época não era mais apenas construir figuras geométricas planas,
mas curvas, leis da natureza. O compasso de Descartes foi um instrumento para construir
curvas com exatidão que os gregos não admitiam, porque, para eles, o compasso e a régua
eram os únicos instrumentos de construção exata. Os três famosos problemas gregos não são
passíveis de solução com apenas compasso e régua, devem ser admitidas outras construções
além do círculo e da reta. Essas mudanças nos meios de construção elevaram o status das
mecânicas de arte para ciência.
O desenvolvimento da matemática durante o Renascimento foi devido, em grande
parte, ao uso produtivo de máquinas. Máquinas eram conhecidas no Oriente e na antiguidade
clássica; elas haviam inspirado o gênio de Arquimedes. No entanto, a existência de escravidão
e a ausência de vida urbana economicamente progressiva frustrou o uso de máquinas nessas
formas mais antigas de sociedade.
93

Na Idade Média as máquinas foram utilizadas em pequena fábrica, em obras públicas,


e na mineração. As guerras e a navegação também estimulou o aperfeiçoamento de
ferramentas que posteriormente seriam substituídas por máquinas.
A invenção de armas de fogo e de impressão, a construção de moinhos de vento e
canais, a construção de navios, eram habilidade de engenharias necessárias e fez surgir
pessoas tecnicamente conscientes.
A perfeição de relógios, útil para a astronomia e navegação e muitas vezes instalados
em locais públicos, trouxeram admiração para o público; a regularidade de seu movimento e a
possibilidade que eles ofereceram de indicar o tempo com exatidão causou uma profunda
impressão na mente filosófica. Durante os séculos o relógio foi tomado como modelo do
universo. Este foi um fator importante no desenvolvimento da concepção mecânica do
mundo.
As máquinas levaram à mecânica teórica e ao estudo científico do movimento e da
mudança em geral. Livros sobre as máquinas apareceram muito antes da invenção da
imprensa, as primeiras descrições empíricas (Kyeser, no início do século XV), depois os mais
teóricas, como o livro de Leon Battista Alberti sobre arquitetura (c. 1450) e os escritos de
Leonardo Da Vinci (c. 1500). Os manuscritos de Leonardo contêm o início de uma teoria
mecanicista definitiva da natureza. Tartaglia em seu “Nuova scienzia” (1537) discutiu a
construção de relógios e da órbita de projéteis, mas ainda não tinha encontrado a órbita
parabólica, descoberto pela primeira vez por Galileu.
A vontade de abandonar os métodos gregos foi devido à incapacidade de fornecer
rápidos resultados. Além disso, a revolução na astronomia, conectada com os nomes de
Copérnico, Tycho Brahe e Kepler, abriram inteiramente novas visões do lugar do homem no
universo e ao poder do homem para explicar os fenômenos da astronomia de uma forma
racionalista. A possibilidade de uma mecânica celeste para completar mecânica terrestre
aumentou a ousadia dos homens.
René Descartes trouxe o campo da geometria clássica para um âmbito algébrico. La
Gèomètrie foi publicada como apêndice do “Discours de La Méthode”, no qual o autor
explica sua abordagem racionalista para o estudo da natureza.
Descartes publicou sua “Gèomètrie” como uma aplicação de seu método geral de
unificação da álgebra e geometria. Nesse trabalho não são expostos os “eixos cartesianos” e
não há equações de linhas retas e de secções cônicas, apesar de existir uma equação do
segundo grau ser interpretada como denotando uma cônica. Grande parte d o livro consiste em
94

uma teoria das equações algébricas contendo regra para determinar o número de raízes
positivas e negativas.
A contribuição de Descartes para a matemática é representativa, principalmente, no
que se refere à relação de curvas no plano com o aspecto algébrico. Ele vai tratar desse
assunto com destreza utilizando um instrumento que chamou de Mesolábio. A partir desse
instrumento foi possível chegar a equações gerais utilizando a proporcionalidade que permite
ser estabelecida por meio dele.

Não creio, por exemplo, que haja algum modo mais fácil de encontrar quaisquer
meios proporcionais que se desejem, nem cuja demonstração seja mais evidente, que
empregar as linhas curvas que se traçam com o instrumento XYZ (Mesolábio). Pois
querendo encontrar dois meios proporcionais entre YA e YE, basta traçar um círculo
cujo diâmetro seja YE; e como este círculo encontra a curva AD no ponto D, YD é
um dos meios proporcionais procurados (DESCARTES, 2001, pp. 99 – 101. grifo
nosso).

A citação refere-se à utilização do instrumento mesolábio usado para traçar curvas e


encontrar suas respectivas equações. Nesse capítulo iremos mostrar com mais detalhes como
se constrói o mesolábio, como traçar curvas e como se chegar às equações.
A superação da dependência de instrumentos mecânicos veio com a introdução do
conceito de função na matemática. Euler apresentou a teoria geral das curvas baseado no
conceito de função. Vamos dedicar uma seção para falar dos trabalhos de Euler, e não de
Leibniz ou qualquer outro matemático, porque ele foi quem apresentou a primeira definição
explícita de função. Além disso, iniciou uma discussão sobre a continuidade e
descontinuidade de funções.
A transição da álgebra sincopada para a álgebra simbólica é marcada pela mudança na
forma de pensar os objetos da matemática. Os dois ilustres representantes dessa mudança
atendem pelo nome de Diofanto e Viète, respectivamente. Nesse sentido, faz-se necessário,
mesmo que de forma abreviada, descrever as mudanças que abriram caminho para o
desenvolvimento da álgebra simbólica e, consequentemente da matemática. Vamos analisar as
produções desses dois matemáticos no que diz respeito às formas de representar as grandezas
da matemática, como eles tratavam as operações e como eram interpretadas as entidades
geométricas.
Basicamente esses assuntos compõem a divisão desse capítulo. Começamos com o
inicio do simbolismo algébrico, marcado pela transição da álgebra sincopada para a álgebra
simbólica, o mecanicismo de Descartes e, finalmente, o conceito de função de Euler.
95

Assim como fizemos no capítulo 2, nesse capítulo dedicamos a última seção para
destacar os pontos implícitos referentes à noção de complementaridade e suas implicações
para a Educação Matemática.

3.1 Viète: O Prelúdio do Simbolismo Algébrico

A crescente atividade comercial na Europa Ocidental, a necessidade de aprimorar as


navegações e o interesse pela astronomia, a partir do século XV, ocasionaram a urgência de
novas ferramentas para o cálculo e resolução de problemas. Além disso, a busca pela solução
de equações do terceiro e quarto grau impulsionou a matemática nesse período. O foco
voltou-se a problemas que envolviam equações que os gregos já haviam estudado, mas
resolveram apenas alguns casos numéricos.
O desenvolvimento dos meios de representação da escrita da matemática foi marcado
por três fases distintas, a saber, a fase em que os enunciados dos problemas matemáticos eram
dados por meio da língua materna, em que todas as expressões e equações eram escritas na
linguagem comum, denominada de álgebra retórica; a segunda fase foi caracterizada pela
simplificação da escrita por meio das abreviações das palavras, a chamada álgebra sincopada;
e a terceira fase a álgebra simbólica.
Scipio del Ferro (1465 – 1526) foi um dos últimos representantes da álgebra retórica.
Álgebra retórica são argumentos da resolução de problemas escritos em prosa pura, sem
abreviações ou símbolos específicos. Esse estágio da álgebra é bem representado por Al-
Karismi, em seu livro, Kitab al-jbr wa al-muqabalah, já que o autor não usa simbolismo e
descreve precisamente o que deve ser feito.
Ao interpretar um problema matemático em linguagem vulgar e ao transformá-lo em
linguagem matemática, estamos fazendo a transição da matemática retórica para a matemática
simbólica. “Não tem como aprender matemática sem aprender a fazer a transição da álgebra
retórica para a álgebra simbólica” (MOURA; SOUSA, 2004, p. 16).
A retórica como linguagem é definida como a “arte de persuadir com o uso de
instrumentos linguísticos” (ABBAGNANO, 1998, p. 856). A retórica na matemática pode ser
definida como a linguagem comum a serviço da matemática. “O matemático, ao elaborar suas
demonstrações lógicas e formais nos diversos teoremas que estuda, faz uso da retórica. As
frases que usa para nos convencer de que está certo não constituem a prova do teorema”
(MOURA; SOUSA, 2004, p. 17), elas são a retórica a serviço da prova.
96

A álgebra sincopada começa a aparecer no trabalho do francês Nicolas Chuquet (1445


– 1500) e do italiano Luca Pacioli (1445 – 1517). Outros que continuaram com o uso de letras
e abreviaturas para operações e relações foram: Nicolò Tartaglia (1506 – 1557), Girolamo
Cardano (1501 – 1576) e Rafael Bombelli (1526 – 1572). Diofanto de Alexandria,
matemático grego cuja data de nascimento está entre 201 e 214 e falecimento entre 284 e 298,
foi talvez o principal representante dessa fase da matemática em que as quantidades eram
representadas por meio de números específicos e abreviatura. Ele introduziu abreviaturas
estenográficas16 para os desconhecidos e suas potências sucessivas até o sexto grau. A obra de
Diofanto possuía características próprias da matemática grega, utilizando figuras e imagens
que auxiliam o pensamento na resolução de equações.
Os símbolos utilizados não tinham a intenção de serem usados no sentido de
coeficientes ou incógnitas de uma equação, mas apenas no sentido de simplificar a escrita. De
acordo com Boyer (2012, p. 212) “não poderia haver grande progresso na teoria da álgebra
enquanto a preocupação principal fosse a de encontrar a “coisa” em uma equação com
coeficientes numéricos específicos”.
O pensamento algébrico de Viète é diferente da álgebra pensada por Diofanto. Este
último pensa em casos numéricos particulares, enquanto Viète pensa em espécies, algo que
engloba números e geometria. “Foi o simbolismo pensado por Viète que possibilitou a escrita
de expressões de equações e suas propriedades, a partir de fórmulas gerais. Os objetos das
operações matemáticas passaram a ser não problemas numéricos e sim as próprias expressões
algébricas” (MOURA; SOUSA, 2004, p. 22). Esse será o assunto dessa seção.

3.1.1 Viète e a Lógica das Espécies

O francês François Viète (1540 – 1603), frequentemente conhecido por Vieta, não era
matemático de formação, formou-se em direito, e tinha as atividades matemática como forma
de lazer (EVES, 2002, p.308). No entanto, contribuiu para o desenvolvimento de vários
campos da matemática, principalmente no campo algébrico, chegando próximo do tratamento
algébrico moderno. Apesar de não ser um matemático de formação, para Boyer (2004, p. 59,
tradução nossa) e Eves (2002, p. 308), “Viète foi o maior matemático do século XVI”,
considerado o precursor do simbolismo algébrico.

16
Processo de escrita formado de sinais abreviativos convencionais que permitem transcrever as palavras quase
tão rapidamente quanto são pronunciadas. O mesmo que taquigrafia.
97

Em seu simbolismo algébrico tratou com indiferença as entidades aritméticas e


geométricas, mesmo mantendo os dois campos distintos. “Viète percebeu que a quantidade
desconhecida não precisava ser nem número nem segmento de reta, a álgebra raciocina sobre
“tipos” ou espécies” (BOYER, 2012, p. 213). “Viète não viu a álgebra como uma técnica a
respeito de números, mas um método de cálculo simbólico sobre grandezas abstratas” (BOS,
2001, p. 147, tradução nossa). Esse tratamento algébrico que relacionava a aritmética com a
geometria ele chamou de “nova álgebra” ou “logística especiosa”, a lógica das espécies. Os
números e as entidades geométricas eram considerados como grandezas puramente abstratas,
sem relação com o objeto, manuseados de forma indistinta sem a preocupação com sua
origem. “Em sua “nova álgebra” entes matemáticos, como números, segmentos de linha,
figuras, etc. se conhecidos, desconhecidos ou indeterminados, foram considerados apenas em
seu aspecto de ser uma grandeza, captada a partir da sua própria natureza” (BOS, 2001, p
147).
A logística especiosa no trabalho de Viète é a interação entre a Aritmética e a
Geometria simbolizadas por meio de grandezas abstratas representadas por letras.
Nossos pensamentos induzem a dizer que a álgebra está um patamar acima da
aritmética e da geometria, como se pegássemos a essência desses dois ramos e refletíssemos a
um plano superior (Figura 3.1), assim como ocorre na teoria de abstração reflexiva formulada
por Jean Piaget. A álgebra é um conteúdo matemático que se distancia do objeto que a gerou,
a saber, a aritmética e a geometria. Essa é a característica da abstração, distanciar-se cada vez
do objeto que fornece o conteúdo.

Operações
Dimensões

Álgebra Escalas

Geometria

Aritmética

Figura 3.1: Representação simbólica da interação entre a Aritmética e


Geometria resultando no estabelecimento da Álgebra. Fonte: Acervo Pessoal.
98

A álgebra em seu patamar superior relaciona-se com premissas básicas como: axiomas
relativos às operações, noção de dimensão e escalas, homogeneidade, relações, etc.. “Assim, a
parte “ilusória” de sua nova álgebra era de fato um sistema formal totalmente abstrato
implicitamente definido por essas premissas” (BOS, 2001, p. 149).
O século XVI foi um período em que resurgiram interesses pelos problemas clássicos
da Antiguidade, em um momento em que as simplificações nos processos aritméticos e
avanços na álgebra foram marcantes. O resultado foi a busca de um caminho real para a
geometria por meio de técnicas numéricas (BOYER, 2004, p. 62, tradução nossa). Vogais
substituíram linhas geométricas desconhecidas, e consoantes substituíram linhas conhecidas, e
estas letras foram submetidas às operações algébricas apropriadas. A novidade de Viète está
na aplicação do simbolismo literal aos problemas geométricos seguidos por métodos
mecânicos de cálculo. Isso significa a tradução de um problema a partir do campo da
geometria para a álgebra.
Viète antecipou Descartes no que tange a demonstrar que a álgebra poderia ser usada
para organizar questões de construtibilidade, e que, por outro lado, poderia ser dado
significado geométrico à solução de equações algébricas determinadas construindo suas
raízes. Mas Viète, não viu a relação entre a geometria e a álgebra assumindo a forma de uma
representação gráfica de equações com plotagem em um sistema de coordenadas. Ele
visualizou a construção de sólidos na representação de equações cúbicas. Voltaremos a essa
ideia de representação esteriométrica após discutirmos como eram representadas as grandezas
conhecidas e as grandezas desconhecidas fazendo um paralelo com a álgebra sincopada de
Diofanto para percebermos o quanto Viète foi inovador.

3.1.2 Grandezas Conhecidas e Desconhecidas

A álgebra antes de Viète estava, em geral, preocupada com determinadas equações


numéricas, como a cúbica “cubus p. 6 rebus aequalis 20”, ou seja, x3 + 6x = 20, expressão
originária de Cardano (BOYER, 2004, p. 59). No Egito e na mesopotâmia, os elementos de
aritmética e geometria eram essencialmente exercícios de aplicação de processos aritméticos a
problemas específicos (BOYER, 2012, p. 56). Cada equação, como 3x + 2 = 0 ou 6x2 + 5x +
1 = 0, tinha individualidade própria.
Com a descoberta das soluções gerais das equações cúbicas, obtidas por meio de
cálculo algébrico em vez de intersecção de cônicas, surgiu certa confiança no uso das
99

operações algébricas para a resolução de problemas, independente do seu significado


geométrico, o que originou o consequente desenvolvimento de uma teoria elementar das
equações (BOYER, 2004, p. 57).
“A melhoria dos meios de expressar a matemática era uma necessidade para a
transição de antigas concepções para às modernas concepções” (BURTON, 2011, p.345). A
representação das grandezas por meio de letras, dizia Leibniz, “poupa o espírito e a
imaginação cujo uso é preciso economizar. Ela nos permite obter mais com menos raciocínio,
ao usar caracteres em lugar das coisas para desembaraçar a imaginação” (IFRAH, 2005, p.
398).
Segundo Burton (2011, p. 345) “Novos resultados, muitas vezes, tornam-se possíveis
somente por causa de um modo diferente de escrever”. Nesse sentido, queremos mostrar que
Viète contribuiu significativamente para o desenvolvimento da matemática de seu tempo,
diferenciando, principalmente, grandezas conhecidas das grandezas desconhecidas.
Alguns algebristas como Rafael Bombelli (1526 – 1572) representavam quantidades
(no sentido de números conhecidos e desconhecidos) por letras, mas não se distinguia
quantidades conhecidas das quantidades desconhecidas, ou seja, não se diferenciavam
coeficientes de incógnitas. Esse é um dos pontos em que Viète foi inovador. Bombelli, um
século antes de Viète, escrevia a equação 4x3 – 6x2 = 2x + 3 por:
4Cm. 6Q aeqtur 2R p.3
Exemplo clássico de álgebra sincopada em que a letra p e m são abreviações para a
adição (plus) e subtração (minus), respectivamente. Cada potência é representada por seu
símbolo, o desconhecido denotado por R, seu quadrado de Q, e seu cubo C (BURTON, 2011,
p. 348).
Cardano, que não aceitou coeficientes negativos, provavelmente teria escrito a
equação em questão como
4 cubus aequantur 6 quadratus & 2 res & 3
(notação moderna: 4x3 = 6x2 + 2x + 3). Para o "desconhecido", Cardano usou o termo em
latin res. literalmente "coisa"; & ou a palavra et, significando adição (BURTON, 2011, p.
348).
Aproximadamente entre os anos de 250 a 350 d.C, encontramos o maior algebrista
grego, Diofanto de Alexandria. A maior contribuição de Diofanto diz respeito à forma de
representar o valor desconhecido em um problema, chamando-o de arithmos (ἀριθμός), de
onde vem o nome “aritmética”, representando-o com a letra  (digama ou stigma). O
quadrado do desconhecido ele representava por Y, as duas primeiras letras da palavra grega
100

dunamis (ΔΥΝΑΜΙΣ) que significa potência. O termo cúbico era denotado por KY que
corresponde as duas primeiras letras da palavra kubos (KYBO) que significa “cubo”
(BURTON, 2011, p. 219; ROQUE, 2012, p. 232; EVES, 2002, p. 209).
Para potências mais altas, ele usou a abreviação dos seguintes símbolos:
Y (para quadrado-quadrado) indicando x4,
KY (para quadrado-cubo) indicando x5,
KKY (par cubo-cubo) indicando x6.

Diofanto não foi além da sexta potência, uma vez que ele não tinha pretensão de usar
uma potência maior na resolução de qualquer um dos seus problemas (BURTON, 2011, p.
219).
A adição de unidades era dada pela letra M, uma abreviação da palavra grega monades
que significa unidades. Não existia o sinal de adição entre os termos, denotando a operação
por simples justaposição. O atual sinal de menos era desconhecido de Diofanto, por esse
motivo ele separa os temos positivo e negativo por meio do símbolo “” (iota) que
representava a igualdade (BURTON, 2011, p. 219), ficando de um lado os termos positivos e
do outro os negativos.
Com essa simbologia abreviada, Diofanto escrevia uma equação como 35x3 – 5x2 + 8x
– 2 da seguinte forma:
KY 8  Y M
A escrita dos números era feitas em grego (quadro 1). Assim, o número 35 é dado por
, de modo que, 35x3 era representado por KY.
101

Quadro 1: Alfabeto grego antigo que incluía três letras adicionais arcaicas – digama; kopa; san.

Fonte: BOYER, 2012, p. 62.

Os símbolos eram apenas uma forma de abreviar a escrita, não existia uma relação
clara entre o termo  e Y assim como existe entre x e x2.
Antes de Diofanto, a álgebra era retórica, isto é, os resultados foram alcançados pelo
argumento verbal, sem recorrer a símbolos ou abreviaturas de qualquer tipo. Uma das
principais contribuições de Diofanto foi a "síncope" da álgebra. "Álgebra Sincopada", como é
chamada, é mais um caso de taquigrafia para exprimir as grandezas e operações mais
utilizadas do que um simbolismo abstrato em nosso sentido. Diofanto introduziu abreviaturas
estenográficas para os desconhecidos e suas potências sucessivas até o sexto grau, a
igualdade, subtração e recíprocos (BURTON, 2011, p. 219).
O caráter algébrico atribuído à Aritmética de Diofanto baseia-se na utilização de
diversos signos e abreviaturas que se referem especialmente às incógnitas das equações e que
foram comumente interpretadas como um simbolismo algébrico.
No livro I da Aritmética, o problema 27, muito conhecido pelos gregos e resolvido por
meio de construções geométricas, é um exemplo de como Diofanto aplicava as quantidades
desconhecidas na resolução.

Problema I – 27. Encontrar dois números com soma e produto dados.


Descrição da solução: Diofanto considera ser 20 a soma e, o produto 96. Vamos aplicar a
simbologia de Diofanto na resolução, mas utilizando os símbolos atuais para as operações. Se
os números fossem iguais cada um deles seriam 10. Suponhamos que a diferença entre eles
fossem dois arithmos, ou seja, 2. Assim, os dois números procurados serão encontrados
102

retirando  de um dos 10 e adicionando  ao outro. Devemos obter a igualdade (10 – ) + (10


+ ) = 20. O produto deve ser 96, logo, podemos escrever (10 – ) (10 + ) = 96. Dessa
igualdade temos que 102 – Y = 102 – 2 = 96, e concluímos que o valor de  deve ser 2. Logo,
os números procurados 10 –  e 10 +  são respectivamente, 8 e 12. (ROQUE, 2012, p. 233).
A proposição II-5 dos Elementos (ver capítulo 2, seção 2.5), permite resolver, por
meio de uma construção geométrica, o problema de encontrar dois segmentos com soma e
produto dados, que é a representação algébrica para o problema I – 27 de Diofanto. De fato, o
problema pode ser descrito algebricamente como:
x  y  a  y  a  x
  ou seja, x(a  x)  A, onde, ax  x 2  A
 xy  A  xy  A
O método de resolução de Diofanto não envolve nenhuma construção geométrica.
Além disso, em sua resolução, opera-se com quantidades desconhecidas e conhecidas do
mesmo modo, ou seja, sem distinção. Por outro lado, Viète foi o primeiro a fazer distinção
entre essas quantidades diferenciando-as com vogais e consoantes.
De acordo com Bos (2001, p. 146) Viète foi inspirado por Diofanto e, segundo Piaget
& Garcia (2011, p. 201), “o ponto que separa Diofanto de Viète fundamenta-se na diferença
da utilização dos símbolos algébricos”. Viète admitiu a passagem do conceito de aritmos ao
dos símbolos gerais, o que lhe permitiu constituir a álgebra como uma nova disciplina. Para
ele, “a álgebra foi o método adequado para a análise de problemas tanto na geometria quanto
na teoria dos números” (BOS, 2001, p. 146).
O tratamento algébrico dado por Diofanto atendia casos particulares resolvendo
equações com coeficientes numéricos específicos em que a preocupação principal era
encontrar o elemento desconhecido, ou seja, a incógnita. A incorporação de consoantes feita
por Viète para representar quantidades conhecidas (parâmetros) e vogais para identificar
quantidades desconhecidas (incógnitas) possibilitou a resolução de problemas na sua forma
mais geral.
As potências das quantidades desconhecidas eram indicadas por latus ou radiz,
quadratum, cubum, quadrado-quadratum, ..., cubo-cubo-cubum, que na linguagem atual
correspondem aos temos x, x2, x3, x4, ... , x9, que ele escrevia como, A, A quadratum, A cubum,
A quadrado-quadratum, ..., A cubo-cubo-cubum; respectivamente. Mais tarde alguns
escritores abreviaram essa notação para A, A q, A c, A qq, ..., A ccc (EVES, 2002, p. 309).
Os coeficientes das equações, representadas por consoantes, ele chamava de
quantidade conhecida. Essas quantidades tinham ligação também com ideias geométricas,
103

latitudo ou longitudo, planum, solidum, plano-planum, ..., sólido-sólido-sólidum, que são


respectivamente, em notação moderna, a, a2, a3, a4, ..., a9.
“Antes de Viète era comum se usarem letras ou símbolos diferentes para várias
potências de uma quantidade” (EVES, 2002, p.309). Viète usava a mesma letra,
adequadamente qualificada.
Empregando essa regra, uma equação do tipo 5x2 – 2x + x3 = 1 era representada por
Viète como:
“B5 in A quadratum – C planum 2 in A + A cubum aequatur D sólidum”.
Os coeficientes C e D são qualificados de modo a tornar cada termo da equação
tridimensional (EVES, 2002, p. 310).
Uma pergunta que surge é por que Viète tinha a preocupação de manter as equações
homogêneas? A logística especiosa tratava grandezas abstratas simbolicamente representadas
por letras e, dentro de uma escala de grandezas apenas aquelas com o mesmo grau pode ser
comparada, adicionadas ou subtraídas. Isto constitui a “lei da homogeneidade” que Viète
considerou fundamental para sua nova álgebra. A lei da homogeneidade leva em consideração
as ideias da geometria grega, ligadas ao pensamento estereométrico, em que as operações são
passíveis de serem realizadas se consideradas as dimensões geométricas. Um sólido, por
exemplo, só poderia ser operado com outro sólido, daí a necessidade de completar as
potências. Está regra foi estendida a potências de ordem superiores.
O quadro 2 mostra as principais diferenças de notação da incógnita entre Diofanto e
Viète. Podemos observar que em Diofanto não há relação entre os termos, a incógnita e seu
quadrado são representados por símbolos diferentes. Isso não ocorre com Viète, pois ele usa a
mesma vogal para a incógnita e suas potências.

Quadro 2. Diferença da simbologia de Diofanto para Viète


Símbolos Diofantinos Descrição Símbolos Vietianos Descrição
 Arithmos A Incógnita
Y Dynamis A quadratum Quadrado
KY Kybos A cubum Cubo
Y Dynamis-Dynamis A quadrado-quadratum Quarta potência
KY Dynamis-Kybos A cubo-quadratum Quinta potência
KYK Kybos-Kybos A cubo-cubum Sexta potência
Fonte: Acervo pessoal
104

O tipo de notação é fundamental para agilizarmos os cálculos e expressarmos nossos


pensamentos de forma simplificada. Por simples que seja empregar letras para quantidades
conhecidas e para quantidades desconhecida, “teve consequências enormes na libertação dos
exemplos particulares envolvendo os coeficientes numéricos específicos” (BURTON, 2011,
p. 347).
Os conceitos de parâmetro e incógnitas foram fundamentais para a distinção de três
tipos de grandezas: parâmetro, incógnitas e variáveis. “Contudo, Viète não falou de
parâmetros ou variáveis e a sua notação vogal/consoante tinha como objetivo a distinção entre
o que era tomado como desconhecido e o que era dado como conhecido, e não a distinção
entre grandezas variáveis e fixas” (BOYER, 2004, p. 59 – 60).
A transição de incógnita para variável foi, mais tarde, muito bem realizada por
Descartes. Esta concepção foi fundamental para o desenvolvimento da matemática e o
estabelecimento da geometria cartesiana, como Boyer (2004, p. 60, tradução nossa) afirmou
que “foi a notação algébrica de Viète que deu uma língua para a geometria analítica de
Descartes”. Viète restringiu as equações a um único fator desconhecido, sem tomar ciência de
que esse desconhecido poderia ser ora incógnita ora variável. Por essa razão não pode ser
considerado o mentor da geometria analítica, mas desempenhou um papel preparatório nessa
direção que vai além do desenvolvimento das ideias algébricas.
A notação vogal-consoante de Viète teve curta existência. Depois de meio século da
sua morte, apareceu a Geometria de Descartes. Neste trabalho, letras do inicio do alfabeto
como a, b, c, ..., foram usadas para grandezas conhecidas, enquanto letras do final do alfabeto,
especialmente o x, foram usadas para grandezas desconhecidas. Essa regra foi rapidamente
assimilada durante o século XVII e tem sobrevivido até os tempos modernos. Viète escrevia
A quadratus, A cubus, etc. para diferentes potências de uma quantidade desconhecida A. A
ideia imensamente conveniente de usar expoentes para indicar potências para uma quantidade
desconhecida foi outra contribuição importante de Descartes e ocorreu pela primeira vez no
seu trabalho Discours de la Méthode, publicado em 1637. As potências sucessivas de x foram
indicadas, assim como ainda é feito, por x, xx, x3, x4, ..., . “Por alguma razão estranha, no
entanto, Descartes escreveu invariavelmente a expressão xx no lugar de x2” (BURTON, 2011,
p 347). Este uso de uma letra repetida para a segunda potência continuou por muitos anos,
alguns escritores preferem xx em razão que “ocupava menos espaços” que x2.
Vemos na terminologia de Viète para quantidades conhecidas e desconhecidas uma
estreita ligação da álgebra com a geometria. No entanto, como já citamos, essa ligação tinha
foco estereométrico, ou seja, as ideias estavam ligadas a medida de sólidos, o que obscurecia
105

a visualização de coordenadas. Viète via uma quantidade de terceiro grau como algo
representado por um sólido como na Figura 3.2 abaixo, enquanto Descartes via uma curva
Figura 3.3.

Figura 3.2: Interpretação geométrica do termo x3 segundo Viète. Fonte: Acervo Pessoal

Figura 3.3: Interpretação Geométrica do termo x3 segundo Descartes. Fonte: Acervo Pessoal.

A forma de representação dos termos algébricos ganha importância no ensino da


matemática no sentido de significar as expressões algébricas. O que significa o termo x2 ou o
termo x3? Quando começamos a introduzir esses termos no ensino fundamental a tendência é
que façamos relação com a geometria euclidiana, dizendo que x2 representa a área de um
quadrado de lado x. Essa é a primeira ideia de significado do termo x2, bem como, x3
106

representa o volume de um cubo de aresta x. Só depois, em outro contexto, essas letras


passam a expressar um conjunto de pontos no plano.

3.1.3 Viète e as Operações

Do ponto de vista de Diofanto, a álgebra ganha significado em conexão com a


quantidade numérica e, do ponto de vista euclidiano significa relacioná-la com grandezas
geométricas, a imagem, a figura. Enquanto para Viète, significa pensar a álgebra a partir da
propriedade dos números e das grandezas geométricas, permite-nos pensar em espécies e não
mais em entes ou coisas. “As espécies contêm o número, a geometria e a numerosidade do
número, as propriedades do número. A natureza do pensamento de Viète é bem diferente da
natureza do pensamento de Diofanto” (MOURA; SOUZA, 2005).
A álgebra de Viète, por tratar de espécie, e não apenas de números, como faz
Diofanto, ou da geometria, como faz a escola euclidiana, permite que diversas áreas do
conhecimento façam dela uma ferramenta. É a partir de Viète, segundo Piaget e García (2011,
p. 139), que podemos pensar no “formalismo simbólico”.
O trabalho matemático de Viète é frequentemente chamado de “especioso”, devido a
não existir referência a objetos matemáticos externos como números ou grandezas
geométricas, mas referências próprias, na operação com espécies. “O cálculo de Viète se
precede pela aritmética, a qual opera com números: logística numérica. O cálculo com letras
recebe o nome de logística especiosa, da palavra espécies que é o termo de uma expressão
matemática” (MOURA; SOUZA, 2005).
A notação literal possibilitou que os raciocínios pudessem ser abreviados e
sistematizados, facilitando o acesso ao mundo cada vez mais abstrato da matemática.
Dessa forma, as operações precisaram ser definidas, ou levavam em consideração as
operações, como feitas na aritmética, ou seguiam os padrões geométricos euclidianos. Se
pensarmos em termos de operações, elas são tratadas diferentemente nos dois ramos da
matemática, aritmética e geometria. Quando operamos com números o resultado dessa
operação é um número, entretanto quando operamos com linhas a luz da geometria euclidiana,
o produto, por exemplo, não é uma linha e sim uma área.
No entanto, Viète escolheu ser inspirado pela geometria. Multiplicação geométrica
envolve uma mudança de dimensão, o produto de dois segmentos de linhas é um retângulo,
ou seja, uma grandeza de um tipo diferente dos segmentos de linhas originais. Mas, na
107

geometria, a mais alta dimensão para grandezas é a dimensão do próprio espaço, produtos
com mais de três segmentos de linhas eram um desafio para a interpretação da mente humana.
A nova álgebra de Viète superou esse obstáculo. Em sua concepção, qualquer espécie
de grandeza deveria ser acompanhada por uma escala de sucessivas espécies de dimensões
superiores de grandezas, constituídas em analogia às três primeiras grandezas geométricas
tridimensionais – retas, áreas, espaços – continuando infinitamente. Ele usou o termo
“degrau” para espécies com dimensões superiores a três. A multiplicação era ligada aos
degraus como sugerida pela geometria: produto de duas magnitudes de primeiro degrau dava
origem a uma magnitude de segundo degrau; o produto de uma grandeza de primeiro degrau
com uma grandeza de segundo degrau resultava em uma do terceiro degrau; e assim por
diante, gerando sucessivamente magnitudes de dimensões superiores, induzindo uma
numeração das dimensões por graus sucessivos. Essa era uma das premissas básicas nos quais
a nova álgebra estava alicerçada.
A adição, a subtração, a multiplicação, a divisão e a extração de raízes quadradas, bem
como, as relações formadas, eram os axiomas relativos às operações. A logística especiosa era
definida pelas operações, dimensões e escalas (graus).
A dimensão de uma multiplicação é a soma das dimensões dos fatores e o quociente a
diferença entre as dimensões. A interação entre a adição e a multiplicação acontece
distributivamente. A razão é uma relação entre duas grandezas com respeito ao seu tamanho e
não o resultado de uma divisão, evitando assim, o tratamento com números.
As operações eram executadas de forma abstrata, sem relação com objetos e de forma
introspectiva, isto é, o cálculo pelo cálculo. Viète usava “mais” ou “+”, “negativo” ou “–”,
para a adição e subtração, respectivamente. “Esses sinais aparecem pela primeira vez na obra
de Widmann’s, Mercantile Aritmética de 1498, em que elas não se referem à adição e
subtração, ou a números positivos ou negativos, mas a superávits e déficits de problemas
financeiros” (BURTON, 2011, p. 345, tradução nossa).
Viète não tinha nenhum símbolo para a igualdade, apesar de já existir o símbolo (=).
Segundo Burton (2011, p. 345) o matemático inglês Hobert Recorde, no mais antigo tratado
inglês sobre álgebra, publicado sob o título The Whetstone of Witte de 1557, introduziu o
símbolo =, mas com linhas mais longas que, segundo ele [Recorde], “não existe duas coisas
mais iguais” do que duas linhas retas paralelas.
“Símbolos para a multiplicação foram desenvolvidos muito mais lentamente do que os
símbolos para adição e subtração” (BURTON, 2011, p. 345, tradução nossa). Para
multiplicação Viète usou a palavra “in”, somente William Oughtred em seu trabalho Chaves
108

da Matemática de 1631 usou o sinal ×. A divisão foi indicada pela barra horizontal nos
trabalhos de Viète e, “em Rahn's Teutsche Algebra, publicado em 1659, o símbolo ÷ para a
divisão foi encontrado impresso pela primeira vez” (BURTON, 2011, p. 346, tradução nossa).
Suas equações, muitas vezes, se aproximavam mais de frases do que uma fórmula
propriamente dita. A equação da trissecção do ângulo, por exemplo, era escrita por: “x ao
quadrado vezes três vezes E menos E in cubos será igual a x ao quadrado vezes B”. Esta é a
equação para a trissecção de um ângulo, dentro de um círculo de raio x, E é o termo
desconhecido, subentendendo um terço do determinado ângulo, cuja corda é B. Em notação
moderna a equação é a seguinte:
3x2E – E3 = x2B
Onde E é desconhecido.

3.1.4 A transformação da noção de número: releitura da análise de Klein

A revolução científica no século XVII foi um capítulo fundamental na história da


humanidade. Foi um momento de ruptura com o velho mundo grego e visões escolásticas do
mundo, e o estabelecimento de um novo mundo científico. Foi o alvorecer da ciência
moderna. Esse período é objeto de numerosos estudos históricos, tanto por parte de
disciplinas específicas como: física, filosofia, matemática, etc., quanto por destaque a
protagonistas como: Galileu, Descartes, Newton, entre outros.
“A matemática até o Renascimento foi dominada pelo platonismo, porém, nos séculos
XVI e XVII, o platonismo surgiu na forma instrumental no sentido de interpretar fenômenos
naturais” (ARRUDA, 2014, p. 69). Uma ciência voltada para o controle dos fenômenos
naturais iniciou-se após ruptura com a tradição científica aristotélica, estabelecendo uma
moderna ciência em que para conhecer é preciso agir sobre a natureza e controlá-la. Galileu,
em seus estudos de física, não se contentou com a observação dos corpos em queda livre,
eram necessários meios, por exemplo, para julgar se um corpo mais pesado cairia mais
rapidamente do que um menos pesado. Contudo, era importante medir em termos de
quantidade o tempo e a distância dos movimentos de forma controlada e sistemática.
Nessa perspectiva, era necessária uma ferramenta de representação adequada na
matemática. Essa representação foi marcada pelo simbolismo algébrico, que foi um dos
componentes da revolução científica, uma verdadeira revolução nos padrões do pensamento, e
que instituiu uma ferramenta poderosa para a criação dos objetos matemáticos, sem
109

equivalentes em linguagem natural. O simbolismo algébrico viria a ser uma ferramenta


fundamental para interpretar e fazer cálculos.
Quem estudou com profundidade o simbolismo algébrico foi Jacob Klein (1899 –
1978). Klein conclui sua tese de pós-doutorado em 1933 com o título “Die Griechische
Logistik und die Entustehung der Algebra” (A Logística Grega e a Origem da Álgebra). Esse
trabalho foi publicado em alemão em um periódico cujo editor era Otto Neugebauer. A
abordagem histórica de Klein antecipa Sabetai Unguru sobre a necessidade de desvendar as
intenções originais dos autores de textos clássicos da matemática grega. Klein escreve no
inicio do seu livro:
[...] a maior parte dos padrões históricos tentam entender a matemática grega em si,
com a ajuda do simbolismo moderno, como se tratasse de uma "forma"
completamente externa, que pode ser adaptada para qualquer "conteúdo" desejável.
E mesmo no caso de investigações e intenções em cima de uma verdadeira
compreensão da ciência grega, descobre-se que a investigação começa a partir de um
nível conceptual que é, desde o início, precisamente no que diz respeito aos
conceitos fundamentais, determinado por modos modernos de pensamentos.
Devemos ter a preocupação de nos soltar, tanto quanto possível, desses modos
(KLEIN, 1968, p. 5, tradução nossa).

Klein tratou, em termos históricos, sobre o impacto da simbolização. Ele


compartilhava as ideias filosóficas de Husserl e Heidegger no que se refere ao sentido do
simbolismo que não é apenas uma “vestimenta” simples. Para Husserl a reformulação da
filosofia foi fundamentada na mudança de significado estabelecida principalmente pela
matemática por meio da teoria abstrata formal dos números e magnitudes, mediante a
definição da técnica baseada na manipulação de sistemas de signos, sem considerar o
conteúdo correspondente.
Klein não demonstra apenas interesse historiográfico, sua metodologia procura o
entendimento da concepção grega que pode ser útil para resolver dificuldades conceituais da
matemática moderna. “Problemas fundamentais da matemática que comumente parecem
difícil entender podem ser representados e compreendidos a partir de uma perspectiva
semiótica. Pensar não é simplesmente um ato mental, mas é realizado por meio da atividade
semiótica” (OTTE, 2005, p. 9). Os objetos da matemática não são dados de forma imediata,
eles são sempre objetos da atividade matemática. Por outro lado, “a matemática, na medida
em que é entendida como uma atividade, de fato, possuem objetos próprios” (OTTE, 2005, p.
9).
O aspecto da matemática como atividade é essencial para a lógica da matemática
simbólica. É importante entender que o novo sistema aritmético-algébrico de Viète, é
principalmente novas artes, novas práticas, novos métodos e técnicas para lidar com os
110

problemas, não apenas problemas da “matemática pura”, mas também da cosmologia, física e
astronomia. “O conceito moderno de número simbólico é um conceito essencialmente novo,
um conceito em uma nova dimensão conceptual, e que foi possível articular apenas em
conjunto com a invenção do simbolismo algébrico, no século XVII” (STENLUND, 2014, p.
17, tradução nossa).
As fórmulas ou expressões algébricas de Viète são representações de “espécies” ou
“formas” que faz alusão aos “eidos” da filosofia grega, mas é importante entender a mudança
de sentido na “Arte Analítica” de Viète. Klein explica essa diferença:

[...] O “ser” das espécies em Viète, ou seja, o “ser” dos objetos da “analítica geral”,
não é para ser entendido como independente do sentido Pitagórico ou Platônico nem
tão afetado "por abstração" [...] no sentido aristotélico, mas como simbólica. As
espécies são em si mesmas formações simbólicas - [...] Elas são, portanto,
compreensível apenas dentro da linguagem do formalismo simbólico. [...] Com isso
a ferramenta mais importante da ciência natural matemática, a "fórmula", se torna a
primeira possível, mas acima de tudo, uma nova forma de "entendimento",
inacessível a antiga episteme (KLEIN, 1968, p.175, tradução nossa).

Importante no trabalho de Klein foi seu pensamento reflexivo e crítico sobre os


fundamentos do conhecimento matemático, especificamente, o desenvolvimento do
pensamento algébrico, fundamentado nas obras de Diofanto, Viète, Steven e Descartes,
procurando compreender a Mathesis Universalis moderna.
Por meio das transformações do conceito de número, Jacob caracteriza uma relação de
simetria e assimetria entre símbolos e objetos que, por sua vez, pode ser compreendida por
meio dos conceitos de intensão e extensão.
Klein, baseado em estudos históricos, investigou o impacto da simbolização algébrica
no desenvolvimento das Ciências. A partir de seus estudos, foi possível perceber que o
conceito de número está no centro de todo o pensamento matemático. Para os gregos antigos,
de acordo com a perspectiva de Klein, todo pensamento estava relacionado aos números, e a
geometria é um elemento que induziu a ampliação do conceito de número. Na geometria é
possível representar a diagonal de um quadrado de lado medindo 1 (uma) unidade de
comprimento, isso desencadeia uma tensão entre o objeto e a sua representação, ou seja,
objeto e símbolo. Diante disso, deveria existir, então, um número que representasse a diagonal
de um quadrado.
A transformação conceitual da concepção de números abriram novos horizontes para a
compreensão e sistematização das Ciências Naturais a partir do século XVI. Antes desse
período, os métodos utilizados eram insuficientes para resolver problemas matemáticos
111

devido à dependência do objeto, era necessário ter o objeto para construir a solução. Essa
dificuldade se fazia presente porque não era conhecido um método algébrico autêntico que
teve inicio com Viète.
A Álgebra mostra-se prática na resolução de grande variedade de problemas, é uma
“maquina” de produzir conhecimentos no sentido de que o cálculo produz novos resultados. A
preocupação dos matemáticos entre os séculos XVI e inicio do século XVII foi com o
progresso e não com a fundamentação filosófica do conhecimento. Cardano, Bombeli e Euler
não se preocuparam com fundamentos. Havia calculações com séries sem a preocupação com
a convergência, por exemplo.
A simbolização algébrica possibilita novos conhecimentos com maior fluidez. Quando
Descartes multiplica dois segmentos, cujo resultado é outro segmento, podemos pensar na
multiplicação de números simbólicos, visto que o resultado obtido, no caso a linha, é
representada por letras. “As figuras da Geometria Analítica de Descartes são representações
gerais simbólicas perspicazes que indicam relações entre magnitudes. Essas relações são
economicamente representadas por equações” (ARRUDA, 2014, p. 84). Um bom exemplo
dado por Arruda refere-se a equação da circunferência da forma x2 + y2 = r2.

Figura 3.4: Formas representativas de uma circunferência. Fonte: Acervo Pessoal.

Subentende-se que a x2 + y2 = r2 seja a representação da circunferência no espaço


bidimensional, mais não a representa diretamente. Contudo, na geometria euclidiana, a
circunferência desenhada com o compasso é uma representação direta, indicando um objeto
específico, ou seja, uma imagem.
A circunferência descrita pela equação x2 + y2 = r2 representa a ideia de um número na
sua forma mais geral, que para Husserl, é um objeto simbólico real. O traçado da curva pelo
compasso descreve um objeto autêntico e particular, denominado por Husserl de
representação autêntica do número. Klein compartilha as ideias de Husserl, “tendo como
112

hipótese de que realmente essa distinção marca uma distinção de época histórica, ou seja, os
gregos conhecem os números como ideias (números autênticos) e os modernos (Stevin, Viète
e Descartes) conhecem números como símbolos em geral” (ARRUDA, 2014, p. 85).
Arruda (2014, p. 86) diz que de acordo com a concepção de Klein a respeito da
operabilidade e instrumentalização, perdemos com a revolução científica do século XVI e
XVII no aspecto do número como ideia, ficando apenas com o número como um sistema
operativo. Nesse sentido, o homem se transforma numa máquina de calcular no estudo da
Aritmética e da Álgebra. O próprio Klein, segundo Stenlund (2014, p. 17, tradução nossa)
justifica seu método histórico “intencional” afirmando que “a invenção do simbolismo
algébrico foi uma transformação essencial no sentido de que novas técnicas e práticas
operacionais foram criadas como base para as novas concepções. Mas um efeito desta
transformação conceitual foi que o entendimento original grego de números foi perdido”.
A transformação na interpretação dos significados do conceito de número surgiu da
interação entre números autênticos e números simbólicos. No desenvolvimento da matemática
sempre existe a interação entre campos de diferentes segmentos, um bom exemplo é a
interação entre a aritmética e a geometria. Existem momentos na história em que a ênfase está
na geometria e outros em que a ênfase é na aritmética ou na álgebra, mas o que é importante
ressaltar é que a todo instante histórico a interação está presente nos momentos de
transformação.
Para criar seu método, Descartes admitiu o que há de melhor na geometria e na
aritmética, sem colocar em choque as teorias, fazendo com que a geometria analítica fosse
possível. “Se Descartes tivesse polarizado apenas na linguagem algébrica ou geométrica, não
teria, talvez, capturado a interação analógica complementar de sua Mathesis Universalis”
(ARRUDA, 2014, p. 87). Tomando as especificidades nas diferentes áreas e/ou disciplinas é
possível desenvolver outras áreas ou até mesmo criar uma nova disciplina ou área.
O valor da obra de Klein é que ela mostra, ao longo da História, que a transformação e
o desenvolvimento do conceito de número deram-se nessa interação entre números autênticos
e números simbólicos, a partir de Husserl. “É óbvio que, com a Álgebra dos séculos XVI e
XVII, surgem muito mais números do que na época grega antiga” (ARRUDA, 2014, p. 88).
A transformação do conceito de número abordada por Jacob Klein foi fundamental
para desabrochar o simbolismo algébrico moderno. Antes da geometria analítica de Descartes,
filósofos e matemáticos como Petrus Ramus (1515 – 1572), Viète (1540 – 1603), Stevin
(1548 – 1620), Bacon (1561 – 1626) e Galileu (1564 – 1642) davam atenção especial ao
tratamento da aritmética, não no sentido de arithmos, mas no sentido de símbolo geral.
113

Concomitantemente a essa mudança, percebe-se a importância do método como


procedimento.
A interpretação de números e figuras surge nas intencionalidades de Viète no
tratamento da matemática como espécies, preocupado com método, regras e procedimentos.
Essa mesma ideia Descartes corrobora. O objetivo é a matematização da natureza,
expressando seus fenômenos por meio de leis gerais. Na matemática antiga, havia uma forte
relação com o mundo sensível, seja do ponto de vista das figuras ou dos números.
Uma vez que a linguagem natural das coisas transforma-se em linguagem algébrica da
matemática, por meios da simbologia, é possível que todo o processo torne-se
incompreensível, privilegiando o método sem referência.

A roupagem de ideias da ‘Matemática e Ciência Matemática da Natureza’, ou a


roupagem dos símbolos, das teorias simbólico-Matemáticas, abrange tudo aquilo
que, para os cientistas, assim como os homens instruídos, substitui o mundo da vida
e o mascara, como a Natureza ‘objetivamente efetiva e verdadeira’. [...] a roupagem
das ideias faz com que o sentido próprio do método, das fórmulas, das teorias
permaneçam incompreendido, e que, no surgimento ingênuo do método, não seja
jamais compreendido (HUSSERL, 2012, p. 41 apud ARRUDA, 2014, p. 95).

Klein observa que a simbolização dos fenômenos físicos acontece com o tratamento de
números como espécie dado por Viète e do “espaço simbólico” na Geometria Analítica de
Descartes. Alguns autores, como Arruda, preferem dizer que a “Geometria Analítica de
Descartes é a interação da geometria com a álgebra do ponto de vista simbólico”, mas
preferimos dizer que é a interação entre a geometria e aritmética, tendo em vista que o ícone
A pode fazer referencia a um ponto no espaço ou a um valor numérico.
O conceito de número é objeto de estudo de Jacob Klein. Estudando a matemática
grega, Klein chega à conclusão de que, para os matemáticos gregos antigos, um número é
sempre uma coleção definida de unidades contáveis de um tipo específico. Para os
matemáticos modernos como Viète, um número é essencialmente uma entidade simbólica
definida por meio de suas relações com outros números num cálculo simbólico. Para
Descartes, um número é um valor que pode ser atribuído a uma variável algébrica. Na
concepção de Klein, a partir da analise dos trabalhos de Stevin, Viète e Descartes, o conceito
de número se transforma em aspectos operativos. O simbolismo algébrico de Diofanto é
apenas no sentido de reduzir a escrita, em Viète é estabelecido um conceito geral de número.
Por exemplo, o número 2 pode indicar uma quantidade específica de objetos como pode
indicar uma duplicidade geral de objetos.
114

A representação de números por meio dos símbolos algébricos possibilitou a


realização de operações que, na matemática grega, eram consideradas impossíveis de efetuar.
Depois de Descartes, o produto na aritmética foi facilmente aceito porque o simbolismo
descarta objetos sensíveis. Os gregos não admitiam uma expressão como 32 + 43 porque não
era possível o cálculo com diferentes dimensões. Além disso, os gregos interpretavam os
produtos em termos de grandezas até a terceira dimensão, pois o espaço possui apenas três
dimensões.
Se a matemática não fosse capaz de se libertar dos objetos sensíveis, como poderíamos
entender o resultado de x2 = – 1? A abstração reflexiva de Jean Piaget nos ajudar a entender
como isso é possível. Piaget fala de atividades que o sujeito realiza sobre objetos, tanto
atividades empíricas quanto de atividades cognitivas, uma esta relacionada a outra, de forma
que haja interação com o objetivo final que é a compreensão do objeto estudado. O
pensamento deve agir como uma atividade relacional e não como uma simples percepção de
fatos.
A expressão acima não pode estar relacionada diretamente com a vida cotidiana, é
nesse sentido que a abstração reflexiva nos ajuda a entender a importância das propriedades
estruturais dos cálculos algébricos. Na fase de reflexão da abstração reflexiva é possível
encontrar relações internas que permitam a compreensão dos fundamentos mais abstratos da
matemática, como é o caso do simbolismo operacional. A álgebra simbólica oferece algo a
mais do que a intuição baseada nos objetos do mundo, importante para compreender intuição
assim como se apresenta em Husserl na perspectiva de Jacob Klein.
Para Klein, o acesso ao objeto não é diminuído com a operacionalização dos objetos
desconhecidos por meio da simbolização, porque os cálculos facilitam a compreensão do
objeto. A base para o trabalho de Klein é a filosofia de Husserl e Heidegger, mas ele abordou
a transformação do conceito de número da perspectiva natural para uma interpretação
simbólica. “O pensamento simbólico resolve problemas, mas não oferece explicações
intuitivas dos fenômenos” (ARRUDA, 2014, p. 100).
Jacob Klein tem como base de suas pesquisas o trabalho de Diofanto, Viète, Steven e
Descartes, procurando compreender a Mathesis Universalis moderna, por meio de sua
característica principal que é encontrar verdade a partir de um procedimento metodológico.
Mas, no entanto, é difícil entender a matemática simbólica sem uma perspectiva
historicamente sensível sobre a transformação da matemática grega antiga. O que Klein quis
dizer por uma perspectiva "historicamente sensível" é, principalmente, que não podemos ler
115

textos matemáticos clássicos com a matemática moderna em mente. Ele expressa essa
característica de sua abordagem histórica da seguinte forma:

[...] a maior parte das histórias tentam entender a matemática grega em si, com a
ajuda do simbolismo moderno, como se tratasse de uma “forma” completamente
externa, que pode ser adaptado para qualquer “conteúdo” desejável. E mesmo no
caso de investigações, intenção em cima de uma verdadeira compreensão da ciência
grega, descobre-se que a investigação começa a partir de um nível conceptual que é,
desde o início, e precisamente no que diz respeito aos conceitos fundamentais,
determinada por modos modernos de pensamento. Desprender, tanto quanto possível
desses novos modos, deve ser a primeira preocupação (KLEIN, 1968, p. 5, tradução
nossa).

Klein argumenta convincentemente que é apenas no contexto de uma compreensão


dos aspectos cruciais da matemática grega que essa transformação da matemática se torna
claramente visível. Isso porque a influência estabelecida do ponto de vista da matemática
moderna bloqueou nossa compreensão do pensamento matemático grego. Nós somos
tendenciados a ver o conceito moderno de número ou magnitude, por exemplo, como o
resultado de um desenvolvimento histórico quase contínuo das noções gregas de número e
magnitude até os mais modernos.
A transformação conceitual proposta por Klein está inserida na relação entre
Matemática e Filosofia, no sentido de suas formações básicas pertencentes aos conceitos da
Ciência grega antiga e da Ciência Matemática moderna Europeia (ARRUDA, 2014, p. 107).
Husserl e Heidegger não fizeram esse retrocesso histórico para expressar suas conclusões a
respeito do simbolismo matemático. Klein, por outro lado, para apresentar a transformação
ocorrida com o conceito de número buscou aporte na filosofia da matemática antiga e na
filosofia da matemática moderna. Dessa forma, Klein buscou responder questionamentos
feitos por Husserl sobre os problemas do Ser e do ente numa perspectiva de transformação do
conceito de arithmo grego antigo para o conceito de número moderno.
Husserl e Heidegger afirmam que o simbolismo transforma a matemática em um
pensamento instrumental. Klein, pesquisando sobre o assunto, diz que não é totalmente
verdadeira as conclusões de Husserl e Heidegger, pois, a intuição também é transformada na
manipulação de símbolos matemáticos e dá como exemplo a Geometria Analítica de
Descartes e os números imaginários.
Acreditamos que o desenvolvimento científico está sempre em completo devir, existe
uma continuação conceitual na ciência em todos os tempos. Devemos olhar para as
similitudes e diferenças no processo histórico do desenvolvimento. O símbolo mostrou-se
mais eficaz para a operacionalização do conhecimento, evitando assim, as ambiguidades que
116

as palavras poderiam trazer. Diante dessa constante transformação do conhecimento, “a


álgebra não teria conhecido tal avanço se a generalização do número não tivesse sido
acompanhada pelas ideias de François Viète em 1591, e aperfeiçoada em 1637 por René
Descartes: a notação simbólica literal” (IFRAH, 2005, p. 237).

3.2 Descartes: A Transformação da Noção de Construção

As matemáticas romperam uma tradição multissecular que as havia encerrado no


âmbito da geometria, e estava construindo um simbolismo cada vez mais fácil de manejar e
seguro, capaz de funcionar de uma maneira, por assim dizer, mecânica e automática.
O fundamento do método cartesiano era a unidade: a busca do elemento último
constitutivo do objeto. A partir dessa unidade última pretendia chegar à intuição das coisas
mais simples, estabelecer a enunciação e o encadeamento dedutivo e, por fim, quantificar as
grandezas, operação essa indispensável ao pensamento matemático.
A ideia de Descartes era construir um método universal (Mathesis universalis). Em La
Gèomètrie, seu único tratado matemático, mostra como esse método pode se aplicado. Para
ele, a matemática não deveria ser dividida em uma parte numérica e outra geométrica, mas
deveria ser uma ciência universal que relacionasse ambos os campos, para que depois pudesse
ser aplicada a outros campos do conhecimento. Descartes se propõe a tomar o que há de
melhor na Análise Geométrica e na Álgebra, corrigindo seus defeitos.

3.2.1 A Difusão do Conhecimento no Século XVII

O Renascimento, que por volta do século XVI estava bem encaminhado na Itália, logo
se espalhou para o norte e oeste, primeiro na Alemanha, depois na França e nos Países Baixos,
e, finalmente, na Inglaterra. Ao final de 1600, cientistas, tecnólogos e economistas focaram
em direção dos Ingleses. No começo, o renascimento foi principalmente literário, mas aos
poucos os estudiosos começaram a prestar menos atenção ao que estava escrito nos livros
antigos e colocaram mais confiança em suas próprias observações. Esse período foi
caracterizado por uma vontade de experimentar e, sobretudo, para determinar como as coisas
acontecem. Para Burton (2011, p. 337), a ciência do século XVII pode ter começado com
William Gilbert com a publicação em 1600 de De Magnete, Magneticisque Corporibus, et de
Magno Magnete Tellure De Magnete (Sobre os ímãs, os corpos magnéticos e o grande imã
117

terrestre), um primeiro tratado sobre a ciência física cujo conteúdo foi inteiramente baseado
em experimentação, o culminar teria sido a Óptica de Isaac Newton em 1704.
Entre o De Magnete e os Óptica vieram às contribuições de Johannes Kepler, que
estava convencido de que os corpos planetários não se moviam em círculos “ideais” como
afirmava Aristóteles, mas em órbitas elípticas, e ele, assim, formulou as leis do movimento
terrestre (1619). Também houve manifestações por William Harvey (1628) da rota
circulatória do sangue no coração por meio das artérias e veias mediante os pulmões. Em seu
Sceptical Chymist (1661), Robert Boyle estabelece os princípios da química moderna e a
publicação de Micrographia de Robert Hooke (1665), marca o primeiro trabalho em grande
escala sobre a observação microscópica da estrutura celular.
Na matemática, o século XVII marcou o retorno de discussões clássicas em bases
inteiramente novas. Foram tão intensas as mudanças metodológicas que os historiadores
consideram o período compreendido entre 1637 e 1687 como a fonte da matemática moderna.
A primeira data é alusiva à publicação do livro de Descartes La Gèomètrie e a segunda data é
da publicação do livro de Newton Principia Mathematica.
A Matemática da Renascença tinha acrescentado pouco à geometria dos gregos
antigos, mas 1600 marcou o início de um inesperado renascimento no assunto. Em 1637 a
comunidade matemática francesa testemunhou umas das estranhas coincidências, que se
pensava rara, mas que a história da ciência tem se mostrado frequente. Dois homens, Pierre de
Fermat e René Descartes, simultaneamente, relacionavam a álgebra à geometria, para
produzir uma inovação notável, a Geometria Analítica. O mesmo viria a acontecer com
Leibniz e Newton com a “invenção do cálculo”.
Embora normalmente atribui a invenção do cálculo aos dois contemporâneos
brilhantes, Isaac Newton (1642 – 1727) e Gottfried Leibniz (1646 – 1716), grandes avanços
na matemática raramente são o trabalho de um único indivíduo. Cavalieri, Torricelli, Barrow,
Descartes, Fermat e Wallis, todos havia pavimentado o caminho para o limiar, mas hesitaram
quando chegaram a atravessá-lo. Em uma declaração bem conhecida de Newton para Hooke,
“Se vi mais longe do que outros, é porque eu estava sobre os ombros de gigantes”, mostra sua
apreciação desse crescimento cumulativo e progressivo da matemática.
A nova álgebra de Viète constituiu o primeiro grande desenvolvimento na principal
dinâmica de resolução de problemas geométricos moderno: a introdução de métodos
algébricos de análise. Mas “Descartes é geralmente reconhecido por ser aquele que lançou as
bases para o crescimento da matemática nos tempos modernos” (BURTON, 2011, p. 362).
118

René Descartes deve ser certamente incluído entre os principais impulsionadores da


revolução científica do século XVII. Com a publicação de La Gèomètrie, foi possível tornar
conhecida a geometria analítica para seus contemporâneos. “Este foi realmente o primeiro
grande avanço para além das técnicas conhecidas pelos antigos, que levou a mudar a face da
matemática, e possibilitou dentro de uma geração, o desenvolvimento do cálculo por Newton
e Leibniz” (BURTON, 2011, p. 362). Não é demais dizer que a carreira de Descartes marca o
ponto de viragem entre as matemáticas medievais e modernas.
O ano de 1637 viu a publicação da obra que é considerada a mais importante dos
escritos de Descartes: Discours de La Méthode pour bien conduire sa Raison et chercher la
Vérité dans les Sciences (Discurso sobre o método para bem conduzir a razão em busca da
verdade nas ciências), com seus apêndices científicos La Dioptrique, Les Météores, e La
Gèomètrie.
O Discurso não é, como geralmente se supõe, um tratado filosófico formal, mas um
resumo autobiográfico do progresso de Descartes para chegar a seu método. Sua primeira
edição teve 78 páginas, cerca de um sexto de toda a obra. Para entendermos os objetivos de
Descartes, faz-se necessário um breve estudo sobre as principais ideias contidas nessa obra.
Passaremos a visitá-la nesse momento.

3.2.2 Ideias Gerais de “O Discurso do Método”

Contrariando as ideias escolásticas de que a ciência deveria ser compartimentalizada,


ou seja, para cada ciência um discurso, Descartes irá propor um único método capaz de
aplicar-se a todos os ramos científicos. Pôs-se então a escrever um tratado filosófico sobre a
ciência universal sob o título de Discours de la Méthode pour Bien Conduire sa Raison
etchercher la Vérité dans les Sciences (Discurso do Método para Bem Conduzir a Razão e
Procurar a Verdade nas Ciências).
Descartes percebia, por um lado, a inconsistência nas ciências produzida por muitos,
e, por outro lado, existiam ramos do conhecimento que eram de difícil compreensão ou
obscuro. Suas ideias seguem no sentido de aproveitar o melhor da filosofia e da matemática
que estudara desde cedo. Da filosofia estudou a lógica e na matemática a geometria e a
álgebra. Para Descartes, a lógica serviria muito mais para explicar o que já se sabe do que
para descobrir novos conhecimentos; a geometria, baseada apenas nas figuras causa esforço
mental a ponto de cansaço e fadiga do pensamento; e quanto à álgebra, presa a regras e sinais,
tornava-se confusa e obscura que embaraça o espírito, ao invés de uma ciência que cultive.
119

Diante da fragilidade dos três ramos (lógica, geometria, álgebra), procurou-se um método em
que pudesse aproveitar o que há de melhor em cada um dos ramos.
Da lógica, Descartes tomou quatro preceitos básicos, que segundo ele, não
precisamos de muitas leis, mas poucas que devem ser bem aplicadas. “[...] em vez de um
grande número de preceitos de que a lógica é composta, acreditei que me bastariam as quatro
seguintes, contanto que as tomasse firme e constante resolução de não deixar uma única vez
de observá-los” (DESCARTES, 2001, p. 22).
1) Nunca aceitar algo verdadeiro;
2) Dividir o problema em partes;
3) Começar por objetos mais simples;
4) Concluir sem que se possa nada omitir.
Toda a filosofia da “dúvida sistemática” é dominada pela busca da certeza. A certeza
da matemática consiste em começar com os elementos mais simples cuja verdade é
reconhecida, e então passa pelo processo de dedução a partir de uma proposição evidente para
outra. Matemática deve, portanto, ser um modelo para outros ramos de estudo.

E não tive muita dificuldade em concluir por quais eram necessários começar, pois
já sabia que era pelas mais simples e mais fáceis de conhecer; e, considerando que
entre todos aqueles que até agora procuraram a verdade nas ciências, só os
matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões
certas e evidentes, não duvidei de que deveria começar pelas mesmas coisas que eles
examinaram (DESCARTES, 2001, p. 24)

Descartes, portanto, ampara-se no método dedutivo dos gregos. “Essas longas cadeias
de razões, tão simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas
mais difíceis demonstrações, levaram-me a imaginar que todas as coisas que podem cair sob o
conhecimento dos homens encadeiam-se da mesma maneira” (DESCARTES, 2001, p. 23).

Depois, tento atentado que, para conhecê-las, eu precisaria às vezes considerar cada
uma em particular, e outras vezes somente decorá-las ou compreender várias ao
mesmo tempo, pensei que, para melhor considerá-las em particular, teria de supô-las
como linhas, porque não encontrava nada mais simples nem que pudesse representar
mais distintamente à minha imaginação aos meus sentidos; mas, para reter e
compreender várias ao mesmo tempo, eu precisava explicá-las por alguns sinais, os
mais curtos possíveis, e que, deste modo, aproveitaria o melhor da análise
geométrica e da álgebra e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra
(DESCARTES, 2001, p. 24 – 25).

Descartes começa pela matemática definindo a linha reta como o objeto geométrico
fundamental. O melhor da álgebra foi a sutileza de poder representar objetos por símbolos
adequados podendo, dessa forma, serem generalizados. De acordo com essa premissa,
esperava-se que a interação entre esses dois campos da matemática pudessem superar as
120

dificuldades de compreender essa ciência, bem como, propiciar novos desenvolvimentos, não
só para a matemática em particular, mas para toda a ciência, ou seja, a análise geométrica
atuará concomitante com a Álgebra deixando de atuar somente sobre objetos geométricos
específicos, mas generalizando-se, passando a ser uma ferramenta que transformará esse
campo investigativo a outros. Assim, uma complementaria a outra, obtendo-se, no fim, um
ideal científico capaz de superar muitas dificuldades ainda tidas como obstáculos
intransponíveis.
De acordo com Boyer (2012, p. 240) “o método encontrado em La Gèomètrie
consiste, então, em partir de um problema geométrico, traduzi-lo em linguagem de equação
algébrica, e depois, tendo simplificado ao máximo a equação, resolvê-la geometricamente”.
Entendemos agora que existe uma complementaridade entre os processos algébricos
e geométricos que segundo Boyer (2012, p. 240) “por processos algébricos, libertar a
geometria de diagramas e, por outro lado, através da interpretação geométrica dar significado
as operações algébricas”.
Descartes ainda diz que pelo fato de conseguir algumas regras, que ele chama de
preceitos, e fazer essa interação entre geometria e álgebra conseguiu avançar com facilidade e
resolver questões que até então julgara difíceis.

De fato, ouso dizer que a exata observação desses poucos preceitos que escolhera
deu-me tamanha facilidade para destrinçar todas as questões abrangidas por essas
duas ciências que, nos dois ou três meses que empreguei em examiná-las, tendo
começado pelas mais simples e mais gerais, e sendo cada verdade que encontrava
uma regra que me servia depois para encontrar outras, não só consegui resolver
muitas que outrora julgara muito difícil, mas também pareceu-me, mais ao final, que
podia determinar, mesmo naquelas que ignorava, por meios e até onde era possível
resolvê-las (DESCARTES, 2001, p. 25).

Descartes dizia que o que mais o contentava nesse método era que poderia usar a
razão da melhor forma possível. Com isso, ele poderia avançar na compreensão dos objetos e
aplicar esse conhecimento adquirido para resolver problemas da ciência em geral. Seu
trabalho procurava reformar o corpo das ciências para esclarecer suas próprias dúvidas,
aparentemente, não estava preocupado em convencer outros das suas ideias: “nunca meu
propósito foi mais do que procurar reformar meus próprios pensamentos e construir um
terreno que é todo meu” (Descartes, 2001, p. 19). Percebemos que não havia a intenção de
construir um sistema matemático regido por leis matemáticas ou criar um método matemático
específico. Sua intenção era buscar um método que possibilitasse chegar ao conhecimento de
todas as coisas.
121

O Método possuía três apêndices: La diptrique, Les météores e La Gèomètrie. A


contribuição de Descartes à matemática propriamente dita aparece no último apêndice La
Gèomètrie. O trabalho foi traduzido do francês para o latim por F. van Schooten, que o
publicou com notas e por F. de Beaune, ambos em 1649 (MANCOSU, 1996, p. 65). O
trabalho está dividido em três livros: Problemas cuja construção requer apenas linhas retas e
círculos; Sobre a natureza de linhas curvas; e Sobre a construção de problemas sólidos e mais
que sólidos.
O primeiro livro contém uma interpretação geométrica do cálculo aritmético; mostra
como empregar letras para resolver problemas geométricos por meio da formulação de
equações algébricas; constrói, com régua e compasso, a solução do problema de Pappus para
quatro linhas, dando inicio aos primeiros passos para o que conhecemos hoje por “Geometria
Analítica”.
O segundo livro pode ser dividido em quatro principais seções. O primeiro tem a ver
com uma nova classificação de curvas; expõe as fronteiras epistemológicas e ontológicas da
Géométrie. A segunda seção contém uma análise completa das curvas necessárias para
resolver o problema de Pappus para quatro linhas, e um caso especial do problema de Pappus
para cinco linhas, dando continuidade da explicação do problema de Pappus dado no livro
precedente. A terceira seção apresenta o método das tangentes (ou melhor, das normais), e a
quarta mostra um resumo das aplicações geométricas em “ovais”, uma classe de curvas
extremamente útil para resolver os problemas em dióptrica.
O terceiro livro contém uma análise algébrica das raízes de equações. Aqui
encontramos, entre outras coisas: a regra de sinais de Descartes; a construção de todos os
problemas do terceiro e quarto grau a partir da intersecção de um círculo e uma parábola;
redução de problemas por meio da redução da equação; maneiras de dividir um ângulo em
três; meios proporcionais.
Vamos nos concentrar em algumas partes do trabalho matemático de Descartes em La
Gèomètrie: operações aritméticas e geométricas; resolução de equações; construção de
curvas; classificação de problemas.
122

3.2.3 Álgebra dos Segmentos

a) Operações Aritméticas e Geométricas

O primeiro livro do apêndice La Gèomètrie é aberto com a seguinte afirmação: "Todos


os problemas da Geometria podem ser facilmente reduzidos a termos tais que é desnecessário
conhecer de antemão mais do que o comprimento de algumas linhas retas para construí-los”
(Descartes, 2001, p. 5). Comprimento de linhas refere-se ao segmento de reta e é com esse
sentido que Descartes aplica a expressão linha reta.
Ele exemplifica como os problemas de geometria ordinária (ou seja, aqueles passíveis
de construção por régua e compasso) podem ser construídos. Em particular, a construção de
qualquer problema desse tipo vai passar a ser equivalente à construção da raiz de uma
equação de segundo grau. Para mostrar como isso pode ser alcançado, Descartes passa a
explicar “como o cálculo aritmético está relacionado com as operações geométricas”, de tal
modo que a operabilidade com segmentos seja semelhante à de números. Descartes sentiu
necessidade de introduzir uma nova magnitude, que ele chamou de unidade, permitindo
assim, transpor as operações com números para o campo das grandezas geométricas, como
vamos perceber no tratamento das operações a seguir.
As operações aritméticas são adição, subtração, multiplicação, divisão e extração de
raiz. Deixe a e b segmentos de linha. Adição e subtração de segmentos de linha não são
problemáticas. Para explicar a multiplicação, divisão e extração de raízes, Descartes faz uso

da teoria da proporção introduzindo um segmento de linha unitário. Então a  b , a / b e a


são segmentos de linhas que satisfazem, respectivamente, as seguintes proporções:
1 b

a ab
a/b a

1 b
1 a

a a
A construção de ab é como se segue. Descartes toma duas semirretas com mesma
origem B e marca em uma delas o segmento unitário AB (Figura 3. 5). Em seguida, marca
nessa mesma semirreta um segmento BD (denotado por a) e, na outra semirreta, o segmento
BC (denotado por b). Traça um segmento de A até C e, em seguida, partindo de D, traça-se
outro segmento paralelo a AC que encontra a outra semirreta em E, determinando o segmento
123

DE. Usando a semelhança de triângulos ou o Teorema de Tales conclui-se BE = BD . BC =


ab.

Figura 3. 5: Produtos de dois segmentos. Acervo Pessoal.

De fato, usando o Teorema de Thales na figura acima (um feixe de retas paralelas
determina, em duas transversais, segmentos correspondentes proporcionais), obtemos as
seguintes proporções:
AB BC

BD BE
ou seja,
BE = BD x BC
O ponto principal da interpretação geométrica das operações aritméticas é o de
ultrapassar o problema de dimensionalidade, que limita em grande medida, o trabalho da
geometria ordinária. Com efeito, na geometria antiga, bem como em Viète, a multiplicação de
duas linhas é interpretada como uma área, e a multiplicação das três linhas dá origem a um
volume. Mas não há nenhuma interpretação correspondente para o produto de mais de três
linhas.
Para extrair a raiz quadrada, constrói-se um segmento qualquer GH e prolonga-se em
linha reta um segmento unitário FG. Determina a circunferência cujo centro é o ponto médio
K do segmento FH, (Figura 3.6).
Em seguida, constrói o triângulo retângulo levantando uma altura a partir do ponto G
até I, ponto que está sobre a circunferência do círculo construído. O triângulo inscrito na
semicircunferência é retângulo, podendo utilizar-se a propriedade: a altura é meio
proporcional entre os segmentos em que os seus pés dividem a hipotenusa. Dessa forma,
temos a relação,
GI2= GH x FG
Como FG = 1, obtém-se a raiz quadrada,
124

GI  GH

Figura 3.6: Representação geométrica da raiz quadrada

Em nota, Smith enfatiza que “enquanto em aritmética só podem obter-se raízes exatas
de potências perfeitas, em geometria pode encontrar-se uma linha cujo comprimento
represente exatamente a raiz quadrada de uma linha dada” (SMITH; LATHAM, 1954, p. 5).
A solução de muitos problemas era dada utilizando-se das médias proporcionais de
segmentos. Assim, uma representação geométrica da raiz de 2 pode ser dada considerando a
proporcionalidade entre os lados de triângulos semelhantes .

Figura 3.7: Interpretação geométrica da 2 utilizando-se da proporcionalidade de segmentos. Fonte: Acervo


Pessoal.

Na Figura 3.7, os triângulos ABC, ADC e AED são semelhantes, assim seus lados
são proporcionais. Dessa forma, considerando os triângulos ADC e ADE, temos que:
 AC  AD

ADC  ADE   AD  AE
CD  ED

Assim,
AE AD

AD AC
Fazendo AE a unidade, AD = x e AC = 2, temos:
125

1 x

x 2
Ou seja,
x2 = 2
resultando em:
x 2

b) As Equações em La Gèomètrie

Antes de concluir as regras padrão de construção na última parte do terceiro livro,


Descartes, apresentou a teoria necessária das equações em um desconhecido. No presente
capítulo, vamos apresentar um breve resumo de seus resultados.
Para Descartes, os padrões de construções requer que as equações sejam geométricas e
mais simples possíveis. Estes requisitos geométricos induziram às álgebras: O problema teve
de ser reduzido a uma equação que (1) foi irredutível e (2) tinham uma certa forma padrão.
Assim, para evitar o erro duplo de qualquer construção com meios muito complicados ou
tentando construir com meios muito simples, o geômetra precisava de uma teoria geral das
equações e de certo número de técnicas para realizar as transformações e reduções
necessárias.
As equações servem como meios para resolver problemas aritméticos e geométricos.
Para se chegar às equações o primeiro passo é considerar, de antemão, o problema já
resolvido, nomeando os segmentos de linha por letras, supondo que as letras é o resultado
buscado. Encontramos essa metodologia em Platão, aparecendo também na obra de Pappus,
como aponta Smith: “supomos em análise ter já sido obtido o resultado que se pretende e,
considerando as suas ligações e antecedentes, recuamos até encontrar quer algum resultado já
conhecido (dado na hipótese) que algum princípio fundamental (axioma ou postulado) da
matemática” (SMITH; LATHAM, 1954, p. 5, tradução nossa). Essa metodologia de resolver
problemas é o que entendemos por método de análise, em contraponto a síntese, e será usada
por Descartes, como mostra os exemplos abaixo.
Na seção 1.1 (Método de Aplicação de Áreas) vimos como transformar a área de uma
figura poligonal plana qualquer na área de um quadrado aplicando, para isso, a proposição 5
do livro II de Euclides.
A proposição 5 de Euclides diz que: dado um segmento de reta AB, cortando-o em
parte iguais em C e desiguais em D, o retângulo contido pelos segmentos desiguais sobre AB
126

(ADHK), juntamente com o quadrado entre as seções (LHGE) é igual ao quadrado sobre a
metade de AB (CBFE).
O problema resume-se a encontrar o ponto D sobre AB de modo que a área do
retângulo contido pelos segmentos desiguais seja igual a área de um quadrado dado.

Figura 3.8: Representação geométrica segundo Euclides.

Da Figura 3.8, temos que:


ADHK + DBMH = CBFE (proposição 5 – livro II de Euclides)
e
CBFE = CDHL + LHGE + HMFG + DBMH
Tirando o quadrado DBMH de ambas as construções, chegamos a:
ADHK = CDHL + LHGE + HMFG
Nomeando os segmentos DB = x, AB = a e a área ADHK = b2 (Figura 3.9), temos
que:
ax – x2 = b2
Agora, para achar o ponto D basta resolver a equação do segundo grau acima.

Figura 3.9: Representação geométrica da equação ax – x2 = b pelo método grego.

Veremos na próxima seção que não basta encontrar o valor de x na equação, esse deve
ser geometricamente construído.
127

Vamos apresentar mais um exemplo de nomeação, mostrando uma identidade


fundamental que é muito utilizada no nível escolar básico, a proposição IV do livro de
Euclides. Ela pôde, a partir de Descartes, serem escritas como:

(a + b)2 = a2 + 2ab + b2

Figura 3.10: Representação geométrica de (a + b)2.

A expressão (a + b)2 não ganha sentido por si só. É relevante pensarmos em


segmentos. Por exemplo, a + b pode ser pensado em soma de segmentos. Portanto, a + b é a
soma de um segmento de comprimento a e b, respectivamente. Quando elevamos essa soma
ao expoente 2 somos levados a pensar em um quadrado, cujo lados são a + b. Construído e
dividindo o quadrado adequadamente como na Figura 3.10, temos a possibilidade de
representar a área da figura por (a + b)2 ou, simplesmente , por suas partes, a2 + 2ab + b2.
Dessa forma, por meio de um pensamento relacional, chegamos a expressão.
(a + b)2 = a2 + 2ab + b2
A expressão (a + b)2 ganha significado quando relacionamos com construções
geométricas. Essa prática evita que possamos escrever (a + b)2 = a2 + b2, como ocorre
frequentemente nos níveis escolares elementares.

3.2.4 Instrumentos e Construção de Curvas

Durante o século XVI e XVII o status de construções geométricas foi impulsionado


pelos problemas clássicos pelo fato que não podiam ser construídos por meio de linhas retas e
círculos. Essa impossibilidade, que foi formalmente provada somente no século XIX, foi
aceita pelos matemáticos gregos sem a necessidade de prova, levando em consideração apenas
128

a experiência. No entanto, durante o século XVI várias discussões a respeito da resolubilidade


desses problemas e sobre a aceitabilidade dos meios utilizados para resolvê-los vieram à tona.
O que vamos apresentar agora é nada menos que a estratégia geral para a solução de
problemas geométricos segundo a filosofia de Descartes. Ele pode ser dividido em três etapas:
nomear, equacionar e construir.
Nomear. Supõe-se o problema em questão já está resolvido, e que dê nomes a todas as
linhas que parecem ser necessárias para resolver o problema.
Equacionar. Ignorando a diferença entre as linhas conhecidas e desconhecidas,
analisa-se o problema encontrando a relação que existe entre as linhas. Chega-se, então, a uma
equação (ou várias equações), ou seja, uma expressão em que a mesma quantidade é expressa
em dois modos diferentes.
Construir. A equação deve ser construída: suas raízes devem ser encontradas
(geometricamente).
Se considerarmos apenas os problemas que podem ser construídos com régua e
compasso, então, segundo Descartes, levará a uma equação de segundo grau, e tudo o que
resta a fazer é construir as raízes de tal equação. Problemas que podem ser resolvidos
utilizando-se linhas retas e círculos são denominados por Descartes de problemas planos,
traçados sobre uma superfície plana. Essa é uma classificação advinda de Pappus, na qual ele
classifica os problemas em planos, sólidos e lineares. Veremos na próxima seção a
classificação de curvas dada por Descartes em contraponto com a classificação feita por
Pappus.
Problemas cujas soluções podem ser apresentadas com o traçado de curvas produzidas
pelas ferramentas régua e compasso reduz-se a uma expressão da forma z2 – az = ± b2, ou
seja, do segundo grau. Vejamos o método resolutivo apresentado por Descartes (2001, p. 11)
da construção da raiz positiva da equação z2 = az + b2 com a e b quantidades positivas.
Devemos salientar que ele não considerava as raízes negativas dessas equações. Essas raízes
eram classificadas de falsas.
129

Figura 3. 11: Construção da solução da equação z2 = az + b2.

Consideremos, por exemplo, a construção da raiz positiva na equação z2 = az + b2 com


a e b quantidades positivas. Para construir z consideramos o triângulo retângulo NLM com
LM = b e LN = a/2 (veja Figura 3. 11). Agora vamos prolongar MN até O, tal que NO = LN.
Então OM é a raiz z que procuramos. De fato, pelo teorema de Pitágoras, MN2 – NL2 = LM2,
e já que MN = MO – NL, por substituição (OM – NL)2 – NL2 = LM2, isto é, OM (OM – 2NL)
= LM2. Mas 2NL = a e LM2 = b2. Assim, deixando z = OM, temos z (z – a) = b2, ou z2 = az +
b2.
Em seguida, Descartes resolve a equação da forma z2 = az – b2. Para isso, traça uma
a
circunferência de raio , como ilustra a figura 3.8.
2

Figura 3.12: Construção da solução da equação z2 = az + b2.


130

Do ponto A da circunferência traça-se o segmento de reta tangente AB = b.


a
Suponhamos agora o segmento BC = z, então, NC   z , e dado que o triângulo ONC é
2
retângulo e, além disso, AB = ON = b, temos:
2 2
a  a
OC 2    z   b 2   
2  2
Resolvendo a equação anterior, temos que:

a aa
z   bb
2 4
a a
Se, de acordo com a Figura 3.12, tomarmos BD = z, então ND  z  , OD  e do
2 2
triângulo retângulo ONC, temos que:
2 2
 a a
OD   z    b 2   
2

 2 2
a
Para que os casos anteriores tenha sentido deveremos ter  b ; caso contrário, as
2
soluções das equações teriam raízes imaginárias, das quais careciam de representação
geométrica que, nesse momento, ainda não eram conhecidas. Para Descartes, se o círculo que
tem seu centro em O e passa pelo ponto A não toca nem corta a linha BCD, não existe
nenhuma raiz da equação, de maneira que podemos assegura que a construção do problema
proposto é impossível.

Figura 3.13: Problema da trissecção do ângulo aplicado a uma equação do terceiro grau.

No livro III Descartes se propõe a solucionar o problema da trissecção do ângulo. Para


isso, ele desenha um ângulo qualquer NOP (Figura 3.13) em uma circunferência de raio 1,
131

obtendo assim NO = 1 e NP = q para a corda subtensa ao arco dado, NQ = z para a corda


desconhecida que é a terça parte deste arco. De acordo com a construção temos,  ONQ ~ 
NQR ~  QSR. Dessa semelhança resulta
NO NQ QR
 
NQ QR RS
Sendo NO = 1 e NQ = z, podemos escrever:
1 z z2
 
z z2 z3
Obtendo assim: QR = z2 e RS = z3. Além disso, da figura, NP=NR + RU + UP;
NP = NR + SU – RS + NR, pois, SU = RS + RU, de modo que NP + RS = 3NR. Como
NR = NQ, obtemos NP + RS = 3NQ, ou seja, q + z3 = 3z.
Para a solução da equação cúbica, Descartes procedeu com intersecções de parábolas,
círculos e sólidos. Faremos aqui o caso particular para a trissecção de um ângulo de 45º pela
intersecção da parábola y = x2 com um círculo, de acordo com a construção sugerida por
Descartes.

Figura 3.14: Solução da equação cúbica mediante a intersecção de uma circunferência com uma parábola.

Construída a parábola y = x2, constrói-se o ponto C distando 3/2 da origem O. Por C e


paralelo ao eixo horizontal, traça-se o segmento de reta CF cujo comprimento é a metade de
BB’ = q. Com centro em F e raio FO traça-se a circunferência que intercepta a parábola y = x2
132

nos pontos J, H e K, além do ponto “O” origem do sistema. As distâncias desses pontos até o
eixo vertical medem, respectivamente, 1.59, 0.26 e 1.85, como mostra a Figura 3.14. Com
auxilio do geogebra, construímos a curva da equação cúbica x3 – 3x + q = 0, cujas distâncias
dos pontos de intersecção com a origem do sistema coincide com as distâncias dos pontos J,
H e K ao eixo vertical.
A construção por meio de apenas régua não graduada e compasso é uma característica
da geometria grega. Descartes solucionava os problemas traçando curvas, especificamente,
pela intersecção entre elas. Ele diz: “não é necessário mais do que traçar linhas curvas, senão
que duas ou mais linhas podem ser cortadas umas pelas outras, e que as suas intersecções
geram outras” (DESCARTES, 2001, p. 28 – 29).
Um instrumento bastante utilizado por Descartes para traçar curvas é o “mesolábio”.
Essa ferramenta servia para resolver problemas sólidos, ou seja, aqueles nos quais não podem
ser resolvidos por meio de linhas retas e círculos.
O mesolábio que pode ser pensado como uma máquina, consiste de diversas réguas
dispostas em conjunto, como mostra a Figura 3.15 a seguir. No segundo livro, Descartes
explica como é construído o compasso e como ele funciona:
Sejam as linhas AB, AD, AF, semelhantes, que supomos descritas com ajuda do
instrumento YZ, composto de várias réguas unidas de tal modo que aplicada a régua YZ sobre
a linha AN se pode abrir ou fechar o ângulo XYZ, que estando todo fechado aos pontos B, C,
D, E, F, G, H, coincidem com o ponto A; mas à medida que ele se abre, a régua BC, que faz
ângulo reto com XY no ponto B, empurra para Z a régua CD que corre sobre YZ, formando
sempre com ela ângulos retos; e CD empurra DE que corre sobre YX, mantendo-se paralela a
BC; DE empurra EF; EF empurra FG; esta, GH; e podem imaginar-se uma infinidade de
outras que se empurram sucessivamente do mesmo modo, umas formam sempre os mesmos
ângulos com YX, e as outras com YZ (DESCARTES, 2001, p. 31).

H X

Y Z
A C E G N

Figura 3.15: Mesolábio. Fonte: Adaptado de Descartes, 2001, p. 31.


133

A partir do compasso mesolábio podemos, através de semelhança de triângulos, obter


as seguintes proporções:
YB YC YD YE YF YG
      ...
YC YD YE YF YG YH
Fazendo YA = YB = 1 e, YC = x, obtemos a proporção:
1 x x 2 x3 x 4
     ...
x x 2 x3 x 4 x5
Em nota, Smith mostra como as curvas podem ser obtidas do compasso. Vejamos
alguns exemplos (Figura 3.16) .
x2
a) Seja YA = YB = a, YC = x, CD = y, YD = z; então z : x = x : a, donde z  . Podemos
a
também obter z2 = x2 + y2; pelo que a equação de AD é x4 = a2(x2 + y2).
x2
b) Seja YA = YB = a, YE = x, EF = y, YF = z. Então, z : x = x : YD, donde YD  .
z
x4 x3
Também x : YD = YD : YC, e portanto YC  : x  . Mas YD : YC = YC : a, e então
z2 z2
2
ax2  x 3  x4
  2  , ou z  3 . Também z2 = x2 + y2. Temos então a equação de AF:
z z  a

x8
2
 x 2  y 2 ou x8 = a2(x2+y2)3.
a
Do mesmo modo pode provar-se que a equação de AH é x12 = a2(x2 + y2)5 (SMITH
& LATHAM, 1954, p. 47) .
134

Figura 3.16: Curvas construídas pelo compasso MESOLÁBIO. Fonte: Acervo Pessoal

O compasso proporcional de Descartes tinha dois braços ligados por suportes


móveis, de tal forma que, quando se abria, a distância entre os braços estavam sempre na
mesma proporção. Com essa ferramenta tornava-se possível que se realizasse operações
geométricas, tais como a trissecção de ângulos, e operações aritmética, como o cálculo de
juros (BROUGHTON; CARRIERO, 2011, p. 22). Numa famosa carta a Beeckman, datada de
26 de março de 1619, Descartes indica como esses compassos foram assumindo uma posição
teórico fundamental em seu pensamento. Essas descobertas que foram surgindo
proporcionaram toda uma nova visão para o avanço matemático. Vejamos um trecho da carta.

Descobri quatro demonstrações admiráveis e completamente novas, A primeira


refere-ser ao famoso problema de dividir um ângulo em um números qualquer de
partes iguais. As outras três dizem respeito a três tipos de equações cúbicas: a
primeira classe com um número inteiro, raízes e cubos [x3 =  a  bx]; a segunda,
com um número inteiro, quadrados e cubos [x3 =  a  bx2]; e a terceira, com com
inteiro, raízes, quadrados e cubos [x3 =  a  bx  cx2]. [...] Com esses recursos, será
possível resolver um número quatro vezes maior de problemas, e muito mais
difíceis, do que se consegue com Álgebra comum.

Como se resolvia equações cúbicas com essa ferramenta? No livro Cogitationes


Privatae Descartes apresenta uma solução para a equação cúbica x3 = x + 2. Da Figura 3.15
obtemos as seguintes proporções:
135

YB YC YD
 
YC YD YE
Dessas proporções podemos tirar as seguintes relações:
YD 2
YE  (1)
YC
e,
YC 2
YD  (2)
YB
De (1) e (2), temos:
2
 YC 2 
 
 YB  YC 4 1 YC 3
YE   2. 
YC YB YC YB 2
ou seja,
YC 3
YE 
YB 2
Como YE = YA + AC + CE e, fazendo YA = YB = 1 e YC = x, temos:
1  ( x 1)  CE  x3
Assim,
x3 = x + CE
Diante disso, o que precisamos fazer para resolver a equação cúbica x3 = x + 2 é
apenas abrir o compasso de tal modo que CE seja igual a 2 fazendo com que YC nos dará uma
raiz real positiva.
Os problemas famosos da antiguidade, mencionados na seção 1.3 são resolvidos por
interseção dessas curvas. A solução para o problema da duplicação do cubo dar-se-á mediante
a intersecção de duas cônicas. Inserindo dois meios proporcionais entre os extremos A e B de
um segmento, temos a seguinte relação:
a x y
 
x y b
Se b = 2a, e fazendo a = 1, temos:
1 x y
 
x y 2
Dessas proporções podemos estabelecer as seguintes relações:
1) y = x2
2) y2 = 2x
136

3) xy = 2

Figura 3.17: Solução do problema de duplicação do cubo por meio da intersecção de duas parábolas. Fonte:
Acervo pessoal

Da equação 1) e 2) temos duas parábolas cujo ponto de intersecção diferente de zero é


o ponto A (Figura 3.17). A distância do eixo y ao ponto de intersecção A é o comprimento da
aresta do cubo duplicado a partir do cubo de aresta unitária. Se tomarmos a equação 1) e 3)
temos que o ponto A será a intersecção de uma parábola com a hipérbole (Figura 3.18).
137

Figura 3.18: Solução do problema de duplicação do cubo pela intersecção de uma parábola com a hipérbole.
Fonte: Acervo pessoal

Para a duplicação do cubo, utilizando como ferramenta o mesolábio, podemos seguir


os seguintes procedimentos: YC será o comprimento da aresta do cubo duplicado. Partimos,
então, de um cubo de aresta 1 do qual deveremos duplicar o seu volume.
Da semelhança de triângulo dada pelo instrumento podemos escrever as seguintes
relações de proporcionalidade:
YB YC YD
 
YC YD YE
Fazendo YB = 1 e YC = x e YD = y e ainda YE = 2 devido ser um problema de
duplicar YB (que é a aresta do cubo original), temos:
1 x y
 
x y 2
(1) 2 x  y 2 e (2) xy  2

De (1) e (2) temos a seguinte relação:


x3  2
YB YC YD 1 x x2 1 x y
Ou ainda, comparando as proporções:   ;   ;   ,
YC YD YE x x 2 x3 x y 2
temos que x3 = 2.
138

Bastando, para tanto, considerar YE = 2 para obtermos o valor x = 1,26 no instrumento


(Figura 3.19).

Figura 3.19: Solução da duplicação do cubo com o compasso MESOLÁBIO. Fonte: Acervo pessoal

Para a trissecção do ângulo, Descartes utilizou uma ferramenta chamada por ele de
trissector. A construção é como segue:
Quatro réguas (Figura 3. 20) AO, OB, OC, e OD, são conectadas em um ponto O em
torno do qual cada uma delas pode girar. Quatro hastes iguais EI, FJ, GI, HJ, com
comprimentos a, pode girar em tornos dos pontos E, F, G, H, que estão sobre os quatro braços
de distância a, a partir de O. As hastes formam pares, que são unidas por dobradiças, em I e
outra em J.

Figura 3. 20: Compasso Trissector.

As dobradiças podem mover-se livremente ao longo de OB e OC. Vê-se facilmente


que por este arranjo, os dois braços AO e OD pode formar qualquer ângulo, sendo suficiente
139

formar ângulos dentro do intervalo de 0 a 90. Nesse intervalo os três ângulos internos AOB,
BOC e COD serão sempre iguais, daí o aparelho pode servir para trissecar um ângulo
qualquer.
Como já fomos enfáticos, Descartes não estava interessado apenas na solução do
problema, o que ele buscava era a solução geral do problema. Para isso, a curva era essencial
para o seu propósito. A curva KLJM, indicada na Figura 3. 20, é traçada pelo ponto J quando
o ângulo DOA aumenta de 0 para 90. Trata-se de uma curva do sexto grau. Note que, se um
ponto J’ sobre uma curva dada, e a posição do instrumento (isto é, a posição dos braços) para
o qual a dobradiça J coincide com J’ podem ser construídos com régua e compasso [J (=J’)],
assim OC é dada também, OC pode ser encontrada traçando a bissetriz do ângulo COA, etc.
Assim a curva KLJM em certo sentido inclui todas as posições possíveis do instrumento.
Descartes não previa trissecar ângulos aplicando seu instrumento diretamente, ao
contrário, ele pretendia usar o instrumento para traçar a curva KLJM e usá-la para trissecar
qualquer ângulo. O procedimento foi como se segue:

Dado um ângulo D’OA’ (veja Figura 3. 21): este ângulo é o que queremos trissectar.

Construção:

1. Aplicar o instrumento com o braço OA ao longo do eixo AO’, mover o braço OD para
a posição de OA; fixando em J traçar a curva K LM.
2. Marcar OH’ = a sobre OD’; desenhar o círculo em torno de H’ com raio a; a
intersecção à curva KLM ocorre em J’.
3. Traçar OJ’, então o ângulo D’OJ’ = 1/3D’OA'. De modo que o ângulo é
trissectado.
[Prova: imediata pela construção do instrumento].
140

Figura 3. 21: Resolução da trissecção de um ângulo qualquer com o compasso trissector.

Havia curvas, que segundo Descartes, eram mais compostas que as construídas pelos
compassos. Eram curvas que necessitavam de mais de um movimento que não se
correspondiam. Voltaremos a esse assunto na próxima seção. Por hora, vamos mostrar como
eram construídas a quadratriz e a espiral que são consideradas curvas mecânicas.
A quadratriz (Figura 3.22) é uma curva gerada pela interseção de dois segmentos, um
com movimento retilíneo uniforme e o outro com movimento circular uniforme. Seja ABCD
um quadrado, e BED o quadrante de um círculo com centro em A. Deixemos AB girar
uniformemente no sentido dos ponteiros do relógio AD, e BC deslocarem com movimento
retilíneo uniforme em direção a AD, mantendo paralelo ao AD, de tal maneira que as duas
linhas AB e BC comecem a se mover ao mesmo tempo e terminam o seu movimento
coincidindo com AD simultaneamente. O lugar geométrico dos pontos descritos pela
intersecção dos dois segmentos móveis é a quadratriz.
141

Figura 3.22: Quadratriz de Hípias.

Às vezes empregada para trissecção do ângulo, a quadratriz foi utilizada


principalmente na tentativa de quadratura do círculo, mas isso foi severamente criticado,
mesmo em tempos antigos. Pappus aprova as objeções Sporus, no que diz respeito ao ajuste
necessário da velocidade dos movimentos dos dois segmentos, de modo a determinar o ponto
G na quadratriz, que resolva o problema da quadratura do círculo. E Pappus conclui
consignando a construção de mecânica.

3.2.5 A Classificação dos Problemas

O trabalho de Descartes em La Gèomètrie abre caminho para a introdução


sistemática de novas curvas mediante equações. O livro II desse trabalho versa sobre a
natureza das linhas curvas, onde vai tratar, dentre outros, problemas que não são resolvidos
utilizando-se apenas régua e compasso. Descartes começa dizendo que

Os antigos também observaram que, entre os problemas de geometria, alguns são


planos, outros sólidos e outros lineares, isto é, que alguns podem ser construídos
traçando-se apenas as linhas retas e círculos, enquanto que outros só podem ser
construídos utilizando-se, pelo menos, alguma secção cônica e, finalmente, outros só
usando alguma outra linha mais composta (DESCARTES, 1886. Tradução nossa).

Descartes leva em consideração a distinção que Pappus e os antigos geômetras fazem


entre classes de problemas denominados planos, sólidos e lineares. Nas palavras de Mancosu
(1996, p. 71), “problemas planos são aqueles que podem ser construídos por meio de linhas
142

retas e círculos; problemas sólidos aqueles que podem ser construídos fazendo uso das
cônicas, e problemas lineares aqueles que requerem linhas mais compostas”.
Bos (2001, p. 231) faz uma análise no mínimo interessante das cartas que Descartes
escreveu a Issac Beeckman no início de 1619. Na já mencionada carta datada de 26 de março
de 1619, ele faz uma classificação de problemas, não apenas dos problemas geométricos
relacionados a construção, mas também de problemas aritméticos. Além disso, Bos (2001, p.
233) chama a atenção para a segunda classe de problemas, os sólidos, que não é apenas como
Pappus delimitou colocando problemas planos e sólidos de um lado e outros tipos de linha, do
outro lado. Descartes mudou a linha de delimitação. Em Descartes e Pappus a classificação da
primeira classe eram a mesma, que consistia nos problemas “planos”, que deveriam ser
construídos por linhas retas e círculos. Mas a segunda classe Descartes foi mais longe que
Pappus, dizendo que todos os problemas não-planos eram solucionáveis pela interseção das
curvas que podem ser traçadas por um único movimento. Descartes se refere, em particular, as
curvas traçadas pelos instrumentos que ele chamou de “novos compassos” o mesolábio e o
trissector.
Vejamos a classificação dos problemas usando as palavras do próprio Descartes (1886,
tradução nossa).

[...] na aritmética, algumas questões são resolvidas pelos números racionais, outras
apenas por números irracionais e, finalmente outros podem ser imaginados, mas não
resolvidos. Assim, espero poder demonstrar que alguns problemas envolvendo
quantidades contínuas podem ser resolvidos por meio de curvas produzidas por um
único movimento, como as curvas que podem ser traçadas com os novos compassos
(penso que estas são tão exatas e geométricas quanto aquelas que são traçadas com
compasso ordinários), e outros ainda que podem ser resolvidos somente por curvas
geradas por movimentos distintos e idependentes, os quais, certamente, são apenas
imaginários, como a notória curva quadrática (quadratriz).

Ao formular a classificação de problemas relativos à grandezas discretas, Descartes


restringiu-se à aritmética, evidentemente assumindo que todas as questões sobre grandezas
discretas poderiam ser reduzidas a problemas aritméticos. Ele distinguiu três classes de
problemas: aqueles cujas soluções são números racionais, aqueles cujas soluções são números
“irracionais”, isto é, raízes irracionais de números racionais e, finalmente, problemas que
poderiam ser imaginados, mas que não tinham soluções. Aparentemente, as duas primeiras
classes eram equações algébricas desconhecidas, com raízes positivas que podem ser racional
ou irracional. Assim, podemos supor que a terceira classe restante também se referia a
equações, mas agora sem raízes positivas, racional ou irracional, sendo, muito provavelmente
143

equações com raízes complexas, já que, segundo Bos (2001, p. 233) as raízes negativas eram
desconsideradas.
Como podemos ver na carta, Descartes incorporou as secções cônicas as curvas
traçadas por movimento contínuo, ampliando a segunda classe em mais problemas do que os
problemas “sólidos” de Pappus. As curvas geradas pelo compasso habitual ou pelo “novo
compasso” eram traçadas por um único movimento e, portanto, elas eram aceitáveis. Se, no
entanto, a solução de um problema somente fosse possível por meio de curvas que fossem
traçadas por vários movimentos que não fossem mutuamente subordinados, então o problema
pertencia à terceira classe e o processo não era considerado geométrico. Descartes classificava
essas curvas de “imaginárias”, como exemplo temos a quadratriz.
Descartes considerou os problemas da segunda classe, e suas soluções, não menos
geométricas do que os planos. Para ele, a demarcação essencial estava entre estes problemas e
outros que ele não podia aceitar como certos e geométricos. A diferença essencial entre os
dois tipos de problemas em causa era a geração de curvas utilizadas para a sua construção.
As palavras de Descartes sugerem que a classificação para a grandeza contínua é
análoga ao de grandeza discreta. As classificações, de fato, correspondem no sentido de que
ambos estavam em tripartites, que em ambos os casos, a primeira classe continha os
problemas elementares, a segunda classe problemas mais avançados, e a terceira classe os
problemas cuja solução envolvia dificuldades conceituais indicadas pelo termo “imaginário”.

Classificação
Sobre Sobre
dos
Grandezas Discretas Grandezas Contínuas
Problemas
Problemas (equações numéricas), Problemas planos solucionáveis
Primeira Classe
cujas soluções são números racionais. por linhas retas e círculos.
Problemas (equações numéricas), Problemas não planos
cujas soluções são números solucionáveis por curvas que
Segunda Classe
irracionais. podem ser traçadas por um único
movimento.
Problemas (equações numéricas) que Problemas solucionáveis apenas
podem ser imaginárias, mas que não por certas curvas especiais que
Terceira Classe
tem solução (real). não podem ser traçadas por um
único movimento.
144

Mas a representação do quadro acima não quer dizer que os problemas aritméticos e
geométricos se correspondem. Por exemplo, a solução de um problema geométrico plano
pode muito bem envolver irracionalidade quadrada de modo que do ponto de vista geométrico
o problema pertence a segunda classe. Para a terceira classe de problemas aritméticos a
dificuldade tinha a ver com as raízes de números negativos, enquanto que para a terceira
classe de problemas geométricos a dificuldade consiste nos movimentos pelos quais as curvas
eram traçadas.
Os tipos de movimentos contínuos regulados que Descartes têm em mente são
ilustrados através da geração de curvas fornecidas pelo instrumento mostrado na Figura 3.15
que é constituído de várias réguas unidas. Por fim, para serem consideradas geométricas estas
curvas deveriam ter uma equação algébrica, que são, na verdade, uma característica de todas
as curvas geradas por tais instrumentos.
Descartes, então, utiliza o termo “mecânica” para designar uma curva que não pode
ser expressa por uma equação algébrica que, posteriormente, Leibniz e outros a classificaram
como transcedentais. Por geométricas deveriam se entendidas curvas geradas por movimentos
contínuos, ou seja, as curvas a serem admitidas na geometria são estabelecidas por um critério
que apela a movimentos regulares (SERFATI, 2008). Essas curvas são suceptível de equações
algébricas.
Isto permite a Descartes classificar as curvas pelo grau da equação. Ele classifica
curvas por gênero, de modo que, curvas de gênero 1 são os círculo e as cônicas, curvas de
gênero 2 são as que possuem equações de grau 3 ou 4, curvas de gênero 3 tem equações de
grau 5 ou 6, e assim por diante. Descartes não disse explicitamente que todas as equações
algébricas definem uma curva geométrica, embora, como Bos (2001) argumentou, “ele
implicitamente assumiu isso”.
Já dissemos que curvas geométricas são geradas por movimentos contínuos, no
entanto, nem todas as curvas geradas por movimentos regulares são geométricas. Vamos
começar com curvas geradas por movimentos inaceitáveis. Já citamos uma passagem em que
Descartes afirma que a quadratriz e a espiral deve ser rejeitada porque elas são geradas por
dois movimentos diferentes “entre os quais não há relação que pode ser medida com
exatidão”. Esta é exatamente a mesma crítica que foi levantada, de acordo com Pappus, por
Sporus (século III d. C.) contra o uso do quadratriz na quadratura do círculo.
Uma possível saída para a situação poderia ter sido tentar uma construção da
quadratriz que não exigia movimentos independentes e que poderia ser considerada mais
geométrica. Esta tentativa foi feita por Clavius em seu Commentaria in Euclidis Elementa.
145

Nele Clavius propõe uma construção pontual da quadratriz semelhantes às dadas para as
seções cônicas, que, portanto, Clavius afirma ser geométrica.
No livro VI de seu Commentaria in Euclidis Elementa, Clavius apresenta uma
construção da quadratriz por pontos (Figura 3.23), não exigindo movimentos independentes e
que poderia ser considerada geométrica. Dessa forma, a quadratura do círculo poderia ser
obtida geometricamente como consequência de ser a curva [quadratriz] geométrica. No
entanto, Clavius construiu apenas um subconjunto de pontos da curva. Descartes afirma que
esses pontos podem ser determinados por um processo mais simples do que aquele requerido
para a composição da curva. Nesse sentido, ele rejeita a afirmação de Clavius de que esse
teria produzido uma construção geométrica da quadratriz.
A construção dada por Clavius pode ser resumida como segue. Divida o arco DB e os
lados AD e BC em 2n partes iguais para n tão grande quanto quisermos (quanto maior o n
mais precisa é a descrição). A Figura xx mostra a situação de n = 3 Assim, temos sete pontos
em DB, AD e BC. Ligue por linhas tracejadas os pontos correspondentes em AD e BC, e o
ponto A com o oitavo ponto sobre o arco DB.

Figura 3.23: Construção da quadratriz por pontos.

Os pontos de intersecção são pontos na quadratriz. Ao aumentar o número de pontos


nas laterais e sobre o arco, Clavius afirma aproximar cada vez mais precisamente da
quadratriz. Além disso, ele assume implicitamente que será capaz, com a única exceção do
ponto E, obter desta forma todos os pontos da quadratriz. Ele diz que o ponto E não pode ser
encontrado dessa forma (isto é, geometricamente), pois, quando os dois movimentos são
146

concluídos, os dois segmentos já não se cruzam. Para resolver esse problema, ele recorre a um
truque.
Considere o segmento AF sobre AD, e bifurcá-lo continuamente até chegar uma parte
muito pequena dele, o segmento AG. Do mesmo modo, bisseca o arco BI no mesmo número
de partes, obtendo o arco BK. Agora, traçar BL, BN, AM igual a AG. Ligue G e L, M e N, e
A e K por linhas tracejadas. O segmento AK intercepta GL em H. Se o MP for tomado igual a
GH, a quadratriz é aumentada uniformemente até P, então a curva deve passar por E. Na
verdade, Clavius argumenta que basta "espremer" E entre H e P para um grau de precisão
arbitrária.
Clavius também oferece uma construção diferente, na qual a aproximação não requer
o aumento da curva para além do lado AB, em que todas as linhas na construção encontram
em ângulos retos (enquanto que na construção anterior, os raios provenientes de A intersecta
os segmentos originário de AD em ângulos diferentes).
Clavius não percebe que há infinitos pontos (e não apenas E) que só podem ser
aproximados, já que sua construção irá produzir um número contável de pontos, um conjunto
denso de pontos, mas não todos os pontos da quadratriz. No entanto, Clavius acredita ter dado
uma construção geométrica que produz de maneira uniforme todos os pontos da curva.
Clavius afirma que sua construção por pontos é geométrica: “[...] este é, portanto, a
descrição da quadratriz, que em certo sentido pode ser chamada de geométrica”.
(MANCOSU, 1996, p. 75, tradução nossa). Clavius afirma que ela seja mais geométrica do
que a construção das cônicas por pontos, que é mais sujeita a erros do que a sua construção;
aponta semelhanças entre a sua construção e a conchoide de Nicomedes; e rejeita a construção
com um duplo movimento como mecânico, e que por defender a natureza geométrica das
construções que envolvem seções cônicas ele inconscientemente reconhece que o ponto possa
ser contestado. Isso está em linha com a rejeição de Descartes da quadratriz e suas dúvidas
quanto ao fato de os antigos terem aceitado como geométrica as soluções obtidas por meio de
secções cônicas.
Se considerarmos a construção por pontos geométrica e semelhante a construção da
conchoide, como afirma Clavius, num certo sentido, a quadratura do círculo pode ser efetuada
geometricamente. Devemos lembrar que a quadratriz e a espiral são curvas consideradas
mecânicas por serem produzidas por dois tipos de movimento independentes (circular e reto),
enquanto que a conchoide e a cissoide são produzidas por um único movimento, sendo
consideradas geométricas. Descartes não aceitou a semelhança que Clavius menciona.
Descartes afirma que há diferenças entre a construção de curvas por meio de pontos e curvas
147

semelhantes a espiral e a quadratriz. Apenas os pontos especiais podem ser construídos nas
últimas curvas,

É digno de nota que há uma grande diferença entre este método em que a curva é
traçada por encontrar vários pontos sobre ela, e que é utilizado para a espiral e
curvas semelhantes. Neste último não qualquer ponto da curva é necessária pode ser
encontrada em prazer, mas apenas os pontos onde pode ser determinado por um
processo mais simples do que a necessária para a composição da curva. Portanto, a
rigor, não encontramos qualquer um dos seus pontos, ou seja, não qualquer um dos
que são tão peculiarmente pontos desta curva que não pode ser encontrada, exceto
por meio dela. Por outro lado, não existe um ponto em que estas curvas fornece uma
solução para o problema proposto, que não pode ser determinado pelo método de
dei. E uma vez que esta forma de traçar uma linha curva, determinando vários de
seus pontos ao acaso, só se aplica a essas curvas que também pode ser descrita por
um movimento regular e contínuo, não devemos rejeitá-la inteiramente de
geométrica (DESCARTES, 1952, p. 339 – 340 apud BROUGHTON; CARRIERO,
2011, p. 125).

Assim Descartes aceita que as cônicas são curvas geométricas, mas rejeita que a
construção de pontos particulares é o suficiente para afirmar que a união desses pontos por
segmentos curvos gerem uma curva geométrica. Consequentemente, rejeita a interposição de
Clavius que afirma que essas curvas produzidas por meio de pontos sejam mais geométricas
do que as cônicas. Descartes não concorda também com Clavius que há semelhanças com a
conchoide.
Descartes mantém a equivalência extensional das três classes de curvas seguintes: (1)
curvas geradas por movimentos contínuos regulamentados; (2) as curvas geradas por
construção ponto a ponto; e (3) as curvas dadas por uma equação algébrica. No entanto,
algumas das implicações são apenas implícitas em La Gèomètrie.

3.2.6 A Origem da Geometria Analítica Moderna

O livro didático de matemática mais influente dos tempos antigos é facilmente


identificado pelo nome de Os Elementos de Euclides. Na era medieval poderíamos citar o
livro Al-Kitāb al-muḫtaṣar fī ḥisāb al-jabr wa-l-muqābala de Al-Khowarizmi. No período
moderno destacam-se La Gèomètrie de Descartes e Philosophiae Naturalis Principia
Mathematica de Newton. No entanto, no significado pedagógico, esses livros ficaram aquém
da obra de Leonhard Euler (1707 – 1783) intitulado de Introductio in Analysin Infinitorum
(Introdução à análise infinitesimal) publicado em 1748.
148

Boyer17 dedica um capítulo inteiro para falar das contribuições de Euler para a
matemática e para a ciência de uma forma geral. “Pode ser dito, com justiça, que Euler fez
pela análise de Newton e Leibniz o que Euclides fizera pela geometria de Eudoxo e Teaetetus,
ou o que Viète fizera pela álgebra de al-Khowarizmi e Cardano”.
Para mostramos o seu trabalho e seu impacto sobre a ciência moderna, algumas das
contribuições memoráveis de Euler serão selecionadas e apresentadas em ordem cronológica.

a) Principais obras

Na Basileia, Euler publicou dois trabalhos na Acta Eruditorum (Leipzig), um sobre


curvas isócronas, o outro chamado curvas recíprocas, ambos influenciados por Johann
Bernoulli (GAUTSCHI, 2008, p. 09). Mas, o maior trabalho durante o curto espaço de tempo
que esteve na Basileia foi Dissertatio physica de sono, que apresentou na seleção para cadeira
de física na Universidade da Basileia. Nele, Euler discute a natureza e a propagação do som,
em particular, a velocidade do som e também a geração do som em instrumentos musicais.

Figura 3.24: Tratado físico sobre o sono, 1727. Fonte: Gautschi, 2008.

No primeiro período em que ficou em St. Petersburg “houve produções na mecânica,


teoria musical e arquitetura naval, com uma grande variedade de tópicos que vão desde a
análise e teoria dos números aos problemas concretos da física, mecânica e astronomia”
17
BOYER, 2012, p. 303 – 313.
149

(GAUTSCHI, 2008, p. 11). O maior trabalho desse período foi intitulado de Mechanica, uma
produção abrangente em dois volumes, distribuída em 98 seções, que trata de assuntos de
mecânica dos corpos rígidos, flexíveis e elásticos, assim como mecânica do fluídos e
mecânica celeste.

Figura 3.25: Mecânica, 1736. Fonte: Gautschi, 2008.

A novidade da mecânica de Euler consiste na utilização sistemática do cálculo


diferencial e integral, incluindo equações diferenciais, apresentando o primeiro tratado sobre
mecânica analítica ou racional. A forma de tratar o conteúdo ganhou elogio de muitos entre os
principais cientistas da época, dos quais, Johann Bernoulli que faz referência a “genialidade e
perspicácia de Euler”. Também Lagrange, que em 1788 escreveu sua própria Mécanique
analytique, “reconhece que a mecânica de Euler foi a primeira grande obra onde a análises é
aplicada à ciência do movimento” (GAUTSCHI, 2008, p. 12).
Ainda durante sua primeira estada em St. Petersburg, deu origem a Tentamen novae
theoriae musicae. O trabalho começa com uma discussão sobre a natureza do som como
vibrações de partículas de ar, incluindo a propagação do som, a fisiologia da percepção
auditiva e a geração do som por instrumentos de corda e sopro.
150

Figura 3.26: Ensaio da nova teoria musical, 1739. Fonte: Gautschi, 2008.

O segundo marco no desenvolvimento da mecânica analítica aparece com a obra


Scientia navalis. “Nesse trabalho ele estabelce os princípios da hidrostática e desenvolve uma
teoria do equilíbio e oscilações sobre o equilibrio de corpos submersos na água. Esse contém
os princípios dos corpos rígidos que mais tarde vai cuminar com a Theoria motus corporum
solidorum seu rigidorum, o terceiro tratado sobre mecânica” (GAUTSCHI, 2008, p. 12).
Os dois volumes de Introductio em analysin infinitorum, 1748; juntamente com
Differentialis institutiones calculi, 1755; e os três volumes de Integralis calculi, 1768 – 1770,
é uma “trilogia magnífica, que estabelece a análise como uma disciplina independente,
autônoma, representando um importante precursor da análise tal como a conhecemos hoje”
(GAUTSCHI, 2008, p. 18).
151

Figura 3.27: Introdução a Análise Infinitesimal, 1748. Cálculo Diferencial, 1755. Cálculo Integral, 1763 –
1773. Fonte: Gautschi, 2008.

No primeiro volume da Introdução, após um tratamento de funções elementares, Euler


resume suas muitas descobertas nas áreas de séries infinitas, produtos infinitos, partição de
números e frações contínuas. Nesse ensaio, ele desenvolve um conceitos claro de função real.
O segundo volume é dedicado a geometria analítica.
Cálculo diferencial também tem duas partes, sendo a primeira dedicada ao cálculo das
diferenças e a segunda a teoria das séries de potência e somatórios.
Os três volumes de Cálculo integral é uma incursão no reino das equações diferenciais
e quadraturas. No primeiro volume, Euler trata da quadratura (integração indefinida) de
funções elementares. No segundo volume apresenta, entre outras coisas, uma teoria
detalhadas das equações diferenciais lineares de segunda ordem, e no terceiro volume das
equações diferenciais parciais.
Continuando no estudos das mecânicas, Euler abordou o problema de movimento de
sólidos conhecido hoje como mecânica de Newton. Este assunto ocasionou na produção de
mais um livro, cujo título foi Theoria motus corporum solidorum seu rigidorum, que ficou
conhecido como “segunda Mecânica”, um resumo do trabalho mecânico de Euler até o
momento. Nesse trabalho é introduzido a ideia original de empregar dois sistemas de
coordenadas – uma fixa e outra móvel – nos quais deram origem ao agora chamado ângulos
de Euler.
152

Figura 3.28: A teoria do movimento de corpos, 1765. Fonte: GAUTSCHI, 2008.

Ao longo de seus anos em Berlim, Euler manteve-se ocupado com óptica geométrica.
Suas memórias e livros sobre o tema renderam três volumes do chamado Dioptrics. O tema
central motivacional desse trabalho foi o aperfeiçoamento de instrumentos ópticos como
telescópios e microscópios, nomeadamente formas de eliminar a aberração cromática e
esférica por meio de sistemas intrincados de lentes e fluídos.

Figura 3.29: Dioptrica. Fonte: GAUTSCHI, 2008.


153

Mais de 200 cartas entre 1760 e 1762 foram escritas em francês para um príncipe
alemão e publicado mais tarde em 1768 e 1772. Essas cartas, traduzidas para os principais
idiomas, eram escritas com clareza que permitiam pessoas leigas de ciência entender.
O segundo período em St. Petersburg rendeu mais de 400 trabalhos, não apenas em
cada um dos temas já mencionados, mas também sobre geometria, teoria da probabilidade e
estatística, cartografia, fundos de pensão, agricultura, etc.. Nesse corpo enorme de trabalho
figuram três tratados sobre álgebra com o título Vollständige Anleitung zur Algebra, ou
abreviadamente, álgebra. Euler escreveu esta obra de 500 páginas para apresentar aos
iniciantes o domínio da álgebra. Esse trabalho foi dedicado a um jovem – aprendiz de alfaiate
– que veio com ele de Berlim e que tinha facilidade com os cálculos, mas não tinha noção
sobre matemática, considerado entre as mentes medíocres da disciplina. No entanto, depois do
término do trabalho, ele era capaz de resolver problemas algébricos com facilidade.

Figura 3.30: Álgebra, 1770. Fonte GAUTSCHI, 2008

O que é marcante nas obras de Euler é exatamente a maneira de expor o conteúdo,


demonstrando qualidade didática e aplicação. Os títulos evidenciam o contexto das obras,
(artilaria, ciência naval, teoria musical, tratado físico sobre o sono) são obras que traz a
matemática dentro de um contexto, aplicações da matemática, que acabam por determinar o
significado dessa disciplina em vários contextos. Na verdade,
154

É realmente um prazer, testemunhar, nesse magnífico trabalho, a habilidade didática


de Euler, vê-lo progredir em pequenos passos, a partir dos princípios básicos da
aritmética para a álgebra (até a quártica) equações e, finalmente, para a bela arte da
análise diofantina. Igualmente delicioso, é para ver como a teoria é ilustrada por
numerosos exemplos bem escolhidos, muitos deles tirados da vida quotidiana
(GAUTSCHI, 2008, p. 21. Tradução nossa).

Os textos de Euler têm marcas de um excelente expositor como a clareza e a


simplicidade. Eves (2002, p. 474) diz que “Euler foi um escritor magistral, caracterizando-se
seus livros pela grande clareza, riqueza de detalhes e abrangência. [...] Os livros de Euler
alcançaram pronunciada e longa popularidade e ainda hoje são uma leitura muito agradável e
proveitosa”.
Uma das características é partir de exemplos simples para os cada vez mais
complicados antes de revelar a teoria subjacente em todo o seu esplendor. Gautschi (2008, p.
31) cita Mikhailov (1985, p. 67), “ele tinha um olho para o que é essencial e unificador. Na
mecânica escreve: Euler possuía um dom raro de sistematizar e generalizar as ideias
científicas, o que lhe permitiu apresentar grande parte da mecânica de uma forma
relativamente definitiva”.

b) Funções de acordo com Euler

A geometria cartesiana tratava de assuntos meramente geométricos, empregando


métodos geométricos para resolver problemas, a álgebra era uma coadjuvante no assunto. O
objeto central de estudo de Euler, (principalmente nos trabalhos: Introdução à análise
infinitesimal – Tratado de cálculo diferencial – Tratado de cálculo integral) foram às funções,
e não quantidades geométricas; os argumentos são analíticos, e não geométricos.
No final do século XVI e inicio do século XVII as expressões analíticas começam a se
destacar em detrimento a geometria ordinária e a álgebra retórica. A classe de funções
analíticas, geralmente expressas por somas de séries infinitas, e impulsionadas pelos
paradoxos de Zeno, passa a ser de primeira importância.
Descartes apresenta um método analítico que permite introduzir a relação de
dependência funcional entre quantidades variáveis, no sentido de que, conhecendo uma delas
é possível determinar a outra. Esta forma analítica tornou-se cada vez mais eficiente, tornando
a noção de função central nas ciências.
Leibniz usou pela primeira vez o termo função para referir-se a quantidades
geométricas variáveis relacionadas a uma curva. Com ele, a função foi usada para representar
155

leis da natureza. Em um texto sobre continuidade de 1687, Leibniz conceitua continuidade de


uma função dizendo que:
Se numa série de quantidades dadas [conhecidas] dois casos continuamente se
aproximam um ao outro com o efeito que no final eles ficam um só, então,
necessariamente a mesma coisa deveria acontecer na série de quantidades
dependentes, que são procuradas.

Tudo isso depende do seguinte princípio, que é mais geral ainda: uma ordem no
dado corresponde uma ordem no procurado. (LEIBNIZ apud CASSIRER, 1966, p.
129, tradução nossa).

No entanto, a corrente analítica tornou-se dominante apenas no século XVIII, mais


especificamente a partir dos trabalhos de Euler, de forma que os três títulos acima citados se
tornaram obras de referência. Seu professor, Johann Bernoulli (1667 – 1748), publica um
artigo que apresenta a primeira definição explícita de função como sendo uma fórmula
envolvendo uma quantidade variável e constantes. Ele chamou “função de uma grandeza
variável, é uma quantidade composta de qualquer maneira desta grandeza variável e de
constantes” (RÜTHING, 1984, p. 73).
Leonhard Euler apresentou uma definição geral de função que se torna aceita em
Análise Matemática. De acordo com o autor, “uma função de uma ou mais variáveis é uma
expressão analítica composta com os signos da álgebra mediante uma ou mais quantidades
numéricas variáveis e quantidades numéricas constantes” (LORIA, 1982, p. 704). Euler faz a
distinção entre funções contínuas e funções descontínuas, levando em consideração a lei de
formação de cada função. Mas, sua distinção entre os dois tipos de função dizia respeito ao
aspecto analítico, marcado pela expressão matemática. Se a expressão fosse única era
considerada contínua, já as formadas por mais de uma expressão analítica eram descontínuas,
mesmo o gráfico constituído por uma única curva.
Cauchy (1798 – 1857) apresenta a função
 x se x  0
y  f ( x)  
 x se x  0
Na visão de Euler esta função seria descontínua. Para Cauchy, essa função pode ser

escrita como f ( x)  x 2 , para – ∞ < x < ∞, sendo, portanto, uma função contínua.
Contudo, uma função não pode ser atribuída o aspecto de continuidade ou
descontinuidade levando em consideração apenas uma de suas representações, mas devemos
permitir que sejam interpretadas como uma classe de equivalência. Otte diz que “uma função
no sentido de Cauchy e Dirichlet pode assim ser entendida como uma classe de expressões
156

analíticas ou fórmulas equivalentes, na qual a relação de equivalência é baseada no axioma da


extensionalidade.” (OTTE, 2003a, p. 42).
No tratado sobre análise infinitesimal, “Euler aperfeiçoa o método cartesiano
mostrando como devemos estudar curvas representadas por equações, às vezes definidas
parametricamente” (LORIA, 1982, p. 711, tradução nossa), de modo que excluía a
determinação de ângulos e distância como casos particulares, resultando em adquirir plena
generalidade das fórmulas estabelecidas. Ângulos e distância agora são partes integrantes de
qualquer tratado de geometria analítica. Os sinais das coordenadas cartesianas são expostos
com precisão e clareza. Esses são alguns pontos que devem ser considerados aproximando,
definitivamente, do que entendemos hoje por geometria analítica.
De acordo com Loria (1982, p. 711) foi apenas com Euler que “a duas coordenadas de
um ponto foram consideradas da mesma espécie, e que as linhas do plano são representativas
de equações lineares”. Estes fatos, ainda segundo Loria, não tinham sido observados por
Descartes e seus seguidores imediatos. A partir desse momento, a matemática ganha o
significado geométrico, o grau das equações, classificando uma curva algébrica de acordo
com sua ordem.
Euler mostra com eficácia os desenvolvimentos da geometria analítica em três
dimensões. Apresentou equações gerais para o cilindro, cones e superfícies de revolução.
“Percebeu que a equação de um cone, com vértice na origem, é necessariamente homogênea”
(BOYER, 2012, p. 311). Nesse segundo volume, fica marcado o grau de generalidade
imposta. “Esse livro fez mais do que qualquer outro para tornar o uso de coordenadas, tanto
de duas quanto em três dimensões, a base para o estudo sistemático das curvas e superfícies”
(BOYER, 2012, p. 311).
Euler apresentou a teoria geral de curvas baseada no conceito de função, assunto
fundamental do primeiro livro. Com Euler as funções trigonométricas tornam-se parte da
geometria analítica. Além das coordenadas retangulares, na Introductio aparecem duas
exposições das coordenadas polares. Classes completas de curvas são consideradas; pela
primeira vez, as equações para as transformações de coordenadas polares para retangulares
são dadas em forma trigonométrica estritamente moderna. “Além disso, Euler fez uso do
ângulo vetorial geral e de valores negativos para o raio vetor, de modo que a espiral de
Arquimedes, por exemplo, aparecia em sua forma dual, simétrica com relação ao eixo a 90º”
(BOYER, 2012, p. 312). As equações paramétricas das curvas devem-se também a Euler.
Para a cicloide, por exemplo, Euler usou a forma
157

z
x  b  b cos
a
z
y  b  bsen
a
No apêndice da Introductio aparece sistematizada a geometria analítica no espaço. São
consideradas as superfícies algébricas e transcendentes subdivididas em categorias. Partindo
da equação quadrática geral, “Euler observa que a coleção dos termos de segundo grau,
quando igualada a zero, dá a equação do cone assintótico, real ou imaginário” (BOYER,
2012, p. 312). Translações e rotações foram usadas para reduzir a equação de uma superfície
quádrica. Boyer finaliza dizendo que “a obra de Euler está mais próxima dos textos modernos
que qualquer outro livro anterior à Revolução Francesa”. Deve-se a ele a implantação das
seguintes notações18:
f(x) para funções,
e para a base dos logaritmos naturais,
a, b, c para os lados de um triângulo ABC,
s para o semiperímetro do triângulo ABC,
r para o inraio do triângulo ABC,
R para o circunraio do triângulo ABC,
 para somatório,

i para a unidade imaginária, 1 .

Também se deve a ele a fórmula


eix  cos x  i senx

3.3 Explicitando o capítulo do ponto de vista da complementaridade

Do ponto de vista de Diofanto, a álgebra está relacionada ao conceito de número. Se


olharmos do ponto de vista de Euclides, álgebra está conectada aos aspectos geométricos, a
imagem e a figura. Pensar a álgebra a partir de ambos, aspectos numéricos e geométricos, é
pensar sobre entes, sobre espécies. As espécies contêm o número, a geometria e a
numerosidade do número, as propriedades do número.
O maior exemplo de complementaridade na matemática ocorre entre a álgebra e a
geometria. A álgebra possui aspectos complementares, como por exemplo, por meio dela é
18
Veja Eves, 2002, p. 472 – 473.
158

possível prescindir processos geométricos, por outro lado, por meio da interpretação
geométrica dar significado às expressões algébricas.
A área do quadrado de lado a + b pode ser expresso de várias maneiras diferentes.
Vamos tomar duas representações diferentes para a mesma área.

Figura 3.31 Complementaridade entre álgebra e geometria. Fonte: Acervo Pessoal.

(a + b)2 = a2 + 2ab + b2
(a + b)2 = c2 + 2ab
Desse ponto em diante, sem o auxílio da figura, vamos pensar em termos de relações
para se chegar às expressões:
a2 + 2ab + b2 = c2 + 2ab
a2 + b2 = c2
que é o famoso Teorema de Pitágoras. Em comparação com a demonstração euclidiana, temos
que admitir a economia de pensamento que a álgebra proporciona. Essa economia de
pensamento não pode se constituir na mecanização e automatização da matemática, mas deve
proporcionar a agilidade nos cálculos para que o sujeito adquira liberdade para utilizar seu
pensamento no que é produtivo.
Com Viète, os procedimentos algébricos possui uma característica ainda figural no
sentido grego. As representações possuem características esteriométricas. Isso significa dizer
que o termo x3, por exemplo, possui apenas o significado geométrico sensível de um cubo
cuja aresta vale x.
Uma expressão álgebra como x3, para Descartes, poderia assumir outros significados
diferentes dos apresentados por Viète e os gregos. Ele criou equações a partir de relações
proporcionais advindas do seu instrumento mesolábio. As curvas, elemento fundamental do
método cartesiano, ganha sentido relacionado com a sua expressão algébrica correspondente,
159

e a expressão algébrica, ganha significado a partir de sua representação geométrica. Por isso
falamos em complementaridade entre álgebra e geometria. Com equações e curvas foi
possível resolver, por exemplo, o problema da duplicação do cubo. Por meio da
proporcionalidade de seu compasso, chegou a equações que correspondem, por exemplo, à
parábola e hipérbole, cujo traçado de curvas no plano, levando-se em conta a continuidade das
curvas, foi possível determinar o ponto de intersecção entre elas permitindo encontrar a aresta
que resultava na construção de um novo cubo, cujo volume seria o dobro de um cubo
inicialmente dado.
Descartes pretendia, por meio da álgebra, libertar a geometria das figuras e, por meio
da geometria, dar significado a álgebra.
Então essa é a questão. Utilizar álgebra, mas no sentido da sua utilidade, não
enfatizando o seu lado mecânico e, uma das maneiras possíveis, e que se encontra em mãos
do professor de matemática, é explorar a complementaridade entre a álgebra e a geometria,
cujo resultado, a própria história nos mostra. No próximo capítulo, o significado da álgebra
estará principalmente na generalização de suas aplicações. Em Descartes, o papel da álgebra
ainda estava muito limitado à resolução de antigos problemas geométricos, como a trissecção
do ângulo, e o problema de Pappus.
Euler optou por um tratamento analítico em vez de relacionar as expressões algébricas
com seu referente geométrico ligado aos métodos proporcionais. É nesse momento histórico
que é dado o conceito explícito de função. A revolução principal foi representar curvas por
grandezas algébricas explicitamente analíticas, desvinculada da ideia de proporção. Nesse
momento começa a surgir o conceito de função relacionada a ideia de movimento.
O conceito de função foi importante para resolver problemas, como por exemplo, o
paradoxo de Zeno sobre o movimento. A resolução desse paradoxo depende exclusivamente
da complementaridade do contínuo e do discreto. Uma função representa tanto o contínuo
quanto o discreto.
Existe uma enorme diferença epistemológica em pedir para um aluno resolver, por
exemplo, o sistema de equação
20 x  y  140

25 x  y  110
e interpretar o resultado encontrado.
Utilizando as técnicas operativas, o aluno pode ser capaz de chegar aos valores
correspondentes de x = 6 e y = 260. Mas qual o significado desse resultado? Com apenas a
intensão (cálculo algébrico), não temos à nossa disposição, mecanismos que propicie um
160

significado real para o sujeito. Poderíamos evocar o significado geométrico apresentando o


ponto de intersecção entre as retas dadas pelas equações do sistema como na figura. No
entanto, poderíamos apresentar um significado além do significado matemático. Vamos
apresentar o seguinte contexto:
Uma pessoa vai escolher um plano de saúde entre duas opções: A e B.
Condições dos planos:
Plano A: cobra um valor fixo mensal de R$ 140,00 e R$ 20,00 por consulta num certo
período.
Plano B: cobra um valor fixo mensal de R$ 110,00 e R$ 25,00 por consulta num certo
período.
Temos que o gasto total de cada plano é dado em função do número de consultas x
dentro do período pré – estabelecido.
Em qual situação o plano A é mais econômico; o plano B é mais econômico; os dois
se equivalem.

Figura 3.32: Significado geométrico de equações algébricas.

O significado desse desenvolvimento matemático seria, então, a interpretação de qual


plano é mais vantajoso para o sujeito.
161

É nesse contexto de resolução de problemas que a matemática se desenvolveu até o


período moderno. O significado de encontrar o ponto de intersecção da parábola com a
hipérbole no problema da duplicação do cubo era exatamente ver o cubo duplicado
construído, ou pelos menos saber que essa interação da geometria com a álgebra resolvia esse
problema.
A Matemática do período moderno estava preocupada com a resolução de problemas.
Depois desse período, a álgebra continua seu desenvolvimento tornando-se uma disciplina
formal e abstrata. A ênfase desse período é estruturar a matemática para que suas verdades
sejam demonstradas sem apelo intuitivo. Surge, então, um novo campo do conhecimento
chamado de álgebra linear que vai privilegiar a complementaridade entre conceito e aplicação.
CAPÍTULO IV

Gênese da Análise Vetorial

A Revolução Francesa criou condições favoráveis para o crescimento da matemática.


O caminho estava aberto para a Revolução Industrial no continente europeu. A revolução
estimulou o cultivo das ciências físicas, criou novas classes sociais com uma nova perspectiva
sobre a vida, interessada em ciência e no ensino técnico. As ideias democráticas invadiram a
vida acadêmica; críticas se levantaram contra formas antiquadas de pensar; escolas e
universidades tiveram de ser reformadas.
A produtividade matemática é devida aos problemas técnicos levantados pelas novas
indústrias, mas não de forma definitiva. Na Inglaterra, por exemplo, o coração da revolução
industrial, manteve-se matematicamente estéril por várias décadas. A matemática progrediu
mais saudavelmente na França e mais tarde na Alemanha, países em que a ruptura ideológica
com o passado foi mais fortemente sentida e onde foram feitas mudanças radicais, ou tinha
que ser feita, para preparar o terreno para a nova estrutura econômica, política e capitalista.
A conexão com a prática nunca foi totalmente quebrada, mas que muitas vezes se
tornou obscurecida. A divisão entre matemática “pura” e “aplicada” acompanhou o
crescimento da especialização.
Descartes deu contribuições importantes à matemática. Em La Gèomètrie, sua
moderna notação e o tratamento algébrico das operações permitiram avançar
significativamente em muitos campos da matemática. A nova simbologia algébrica
possibilitou escrever os problemas matemáticos de forma clara e eficiente. No entanto, a
Geometria Analítica enunciada por Descartes não foi capaz de resolver muitos dos problemas
da física.
A necessidade de resolver problemas mecânicos “estimulou a criação de uma mais
estendida e modificada noção de coordenadas” (NASCIMENTO, 2013, p. 63). A utilização
dos novos métodos analíticos possibilitou a criação da maioria das ferramentas da álgebra de
matrizes por meio da substituição linear, ou seja, mudanças de coordenadas. As influências
para a mudança de concepção da geometria analítica teveram inicio com William Hamilton,
Hermann Grassamann, Josiah Willard Gibbs e Peter Güthrie Tait, que desencadearam no
aparecimento da teoria vetorial. Mas, o que possibilitou o aparecimento dessa teoria foi o
163

conhecimento relacional, com as necessidades de se construir correspondências entre


conceitos e aplicações.
“Durante todo o século XVII e XVIII, por exemplo, a matemática era entendida como
a ciência da quantidade. À medida que os novos fenômenos da eletricidade e magnetismo
foram matematizados no século XIX, tornou-se necessário estender o conceito de quantidade
à grandeza vetorial (quantidade dirigida) e generalizar as operações de quantidade
correspondente (por exemplo, a introdução de um produto vetorial não-comutativo). Como
regra geral, não se pode derivar os axiomas da “substância” (a partir do significado dos
conceitos deste último). Todo o conhecimento objetivo é, de fato, o conhecimento relacional.
O mesmo fixa alguns pressupostos ou formas e procura delinear as suas consequências.
Cálculo vetorial, por exemplo, resultou da matematização dos fenômenos elétricos” (OTTE,
2003a, pp. 223 – 224, tradução nossa).

4.1 Origem do Conceito de Vetor

Certas grandezas ficam determinadas apenas por um número real, acompanhado pela
unidade correspondente. Por exemplo: 5kg de massa, 10m2 de área, 12cm de largura, etc..
Tais grandezas são chamadas de escalares. Outras grandezas necessitam além do número real,
também de uma direção e de um sentido. Por exemplo: a velocidade, a aceleração, o
momento, o peso, o campo magnético, a força, etc., são grandezas vetoriais.
Representar os objetos geométricos por meio de objetos algébricos e as operações
geométricas por meio de operações algébricas demonstrou sempre um desafio que motivou
muitos estudos no decorrer da história da matemática. Os gregos abandonaram essa linha de
pensamento porque nem todos os segmentos de reta podiam ser representados por números
(no sentido grego do termo). Um exemplo frequentemente utilizado é a diagonal do quadrado
de lado unitário, cujo valor numérico resulta na raiz quadrada de 2, não conhecida pelos
gregos. Além disso, os gregos não podiam representar algebricamente produtos além da
terceira dimensão.
O problema das dimensões foi superado por Descartes ao introduzir o segmento
unitário, fazendo com que o produto de dois segmentos resultasse em um segmento, de três
segmentos resultassem, também, em um segmento, e assim por diante. O problema que
permaneceu com Descartes foi à noção de congruência que os gregos tinham. O problema
consiste em definir quando dois segmentos de reta podem ser considerados como
equivalentes. Para os gregos e para Descartes bastava que eles tivessem o mesmo
164

comprimento. O segundo problema que a Geometria Analítica de Descartes não respondeu diz
respeito à física. Por exemplo, quando um objeto sofre um deslocamento de uma posição A
para uma posição B há a necessidade de especificar a direção e o sentido do deslocamento,
não sendo suficiente, portanto, dizer que o objeto deslocou 20 ou 30 metros. A variação de
posição é representada por um segmento de reta AB orientado ligando a posição inicial à
posição final do objeto.
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 – 1716) estudou o problema desenvolvendo uma
geometria de situs, ou geometria de posição. Leibniz escreveu um ensaio sobre o assunto que
ficou esquecido por muito tempo, sendo publicado somente por volta de 1833. Ele sentiu a
necessidade de implementar a concepção de álgebra de forma mais geral, que permitiria
descrever as quantidades geométricas simbolicamente. Isto é, a álgebra como estava
constituída não dava conta de todas as propriedade e característica de uma figura nem de suas
construções geométricas (por exemplo, era incapaz de descreve uma posição, um movimento
ou uma rotação), em síntese buscava um sistema que serviria como um método prático para
analisar, interpretar e modelar a natureza, o qual permitiria expressar ângulos e movimentos.
Leibniz sugeriu uma álgebra para representar quantidades geométricas na qual os símbolos
pudessem ser operados para se deduzir certas conclusões.
A Análise Vetorial surgiu apenas no período após 1831, mas a construção histórica da
noção de vetor aponta para três aspectos fundamentais fortemente inter-relacionados: (1)
Processo evolutivo do conceito de número e sua representação, o nascimento de um novo
ramo da matemática no século XVII, a álgebra. Desta forma, se empenham a construir
expressões que permitem descrever as figuras e o movimentos, tal como propõe Leibniz em
sua geometria de posição. (2) a descoberta e representação geométrica dos números
complexos, abordada primeiramente por John Wallis, em seguida por Caspar Wessel, por
Gauss e Argand dentre outros, no entanto, a ampliação para um sistema maior que a dimensão
dois foi tratada com mais vigor por Hamilton. (3) ao tentar representar fenômenos físicos por
meio de leis da matemática sugiram conceitos tais como o paralelogramo de forças e
velocidades.
Em um famoso livro, Considerações e Demonstrações Matemáticas sobre Duas
Novas Ciências, Galileu Galilei (1564 – 1642), já havia utilizado repetidamente diagramas de
velocidades. No entanto, o matemático holandês Simon Stevin (1548 – 1620) foi quem
formulou explicitamente o princípio do paralelogramo de forças.
165

Galileu percebeu que em um movimento parabólico duas forças atuavam: uma


horizontal e outra na vertical e para descrever era necessário combiná-las, mediante uma nova
operação de “soma”, na qual não podiam se relacionar por métodos convencionais.
Isaac Newton (1687) publica seu Principia Mathematica, em que ele expõe sua versão
da ideia de um paralelogramo de forças. Ele afirmava que: “duas forças que atuam
simultaneamente sobre um corpo, irá descrever a diagonal de um paralelogramo ao mesmo
tempo em que descreve seus lados por essas forças separadamente”

Figura 4.1: Soma de Vetores.

Na figura, duas forças “componentes”, F1 e F2 se somam conforme a lei do


paralelogramo, dando uma força resultante FR que forma a diagonal do paralelogramo.
Newton não tinha a ideia de um vetor, mas tinha a ideia de que uma força aplicada a um
objeto deveria ter uma intensidade, uma direção e um sentido e, além disso, duas forças
combinadas, ou adicionadas, produziriam uma nova força.
O movimento, para ser entendido, necessita de grandeza vetorial. Um corpo em
repouso entra em movimento a partir da aplicação de uma ou mais força sobre ele. A força é
uma grandeza vetorial, ou seja, possui intensidade, sentido e direção.
Para Aristóteles, existiam dois tipos de corpos, os que estavam acima da Lua,
possuidores de movimentos circulares perfeitos e eternos; e os que estavam abaixo da Lua que
possuíam apenas movimentos retilíneos. Os corpos terrestres eram classificados de acordo
com sua natureza, a saber: terra, água, ar e fogo, sendo a terra o elemento mais pesado e o
fogo o mais leve. Dessa forma, a terra possuía um movimento retilíneo voltado para baixo,
por ser pesada, enquanto o fogo possuía o movimento voltado para cima, por ser leve. O
espaço que estava acima da Lua, supralunar, era um quinto elemento chamado de éter. Para
Aristóteles, o mesmo peso e um mesmo corpo movem-se mais rapidamente por duas causas:
1) o meio é diferente (por exemplo, água e ar); 2) diferem-se por excesso de peso ou leveza.
Dessa forma, utilizando os modernos símbolos algébricos, podemos estabelecer a relação
166

entre o meio (atrito) e o peso, ou seja, a velocidade de um objeto em queda livre pela seguinte
fórmula:
v = k . (P/)
onde v é a velocidade de queda do corpo, P é o seu peso,  é a densidade ou resistência do
meio aonde acontece a queda e k é uma constante de proporcionalidade. Essa equação
descreve, de acordo com Neves (2000, p. 545) características tais como:
i) a natureza do corpo (sua quantidade de peso ou de leveza) determina a sua
velocidade;
ii) as velocidades dos corpos são sempre constante, não havendo nenhuma espécie
de variação temporal;
iii) é impossível o movimento no vácuo (densidade no vácuo é zero;  = 0).

Um corpo, na concepção de Aristóteles é movido sempre pela ação constante de um


agente, cessada a causa, cessa o efeito. As ideias de Aristóteles permaneceram sendo
consideradas por muito tempo, pois permitiam descrever razoavelmente muitos fenômenos da
natureza. No entanto, Aristóteles não vislumbra a possibilidade de descrever um fenômeno
físico por fórmulas matemáticas, negando a possibilidade de uma física matemática.
Matemáticos do século XVII perceberam a necessidade de haver mudança de
perspectiva. Galileu justificava a queda dos corpos utilizando a noção de peso específico
(peso por unidade de volume). Para ele, corpos com pesos diferentes deveriam cair com
velocidades iguais no pleno e no vácuo. O peso efetivo de um objeto era determinado pela
diferença do peso específico e o meio onde caía. Assim, a velocidade era determinada pela
diferença entre os pesos específicos.
Influenciados por Galileu, estudioso da universidade de Oxford desenvolveram
conceitos importantes da física, como por exemplo: a distinção entre a dinâmica e a
cinemática, distinguindo as causas do movimento e os seus efeitos; definição de velocidade
instantânea; definição do movimento uniformemente acelerado.
Um fato curioso na obra de Galileu faz referência aos movimentos de rotação e
translação produzindo, segundo ele, efeitos sob as marés. Sem esses movimentos as marés
seriam impossíveis. Galileu não aceitava a tese do padre jesuíta Marcantonio de Dominis, que
supunha, acertadamente, que as águas dos mares eram atraídas pela Lua. Para Galileu, as
marés eram ocasionadas pelo movimento da Terra que, ora se aceleram, ora se retardam
periodicamente, fazendo com que a água se mova em relação ao continente. Desse modo,
167

Galileu, finalmente, justifica o fenômeno das marés como uma prova empírica do sistema
copernicano.
Sobre a persistência do movimento, Descartes supunha dois fenômenos fundamentais:
a lei da conservação da quantidade de movimento e a sua teoria dos vórtices de éter girante,
onde os planetas eram arrastados como se formassem redemoinhos cujo centro estava o Sol.
Com Descartes, o conceito de força era dado pelo produto m.v – massa e velocidade, um
conceito ainda não vetorial.
Por outro lado, Isaac Newton (1642 – 1727) publicou o famoso tratado intitulado
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural)
composto por três livros. No primeiro livro ele trata dos tipos de movimento (elíptico,
parabólico e hiperbólico) e formulou as três leis de movimento: 1) Lei da inércia; 2) Lei da
força; 3) Lei da ação e reação. A Lei da Gravitação Universal foi apresentada no terceiro
livro. A Lei 2) mostra que quando aplicamos uma força a um móvel seu movimento é
proporcional e na mesma direção que a força aplicada. Em sínteses, o que podemos resaltar, é
a maneira como Newton trata de matematizar o movimento, mediante a utilização de linhas
retas e uma direção. É claro que Newton não tinha consciência da noção de vetor, no entanto,
vemos aqui uma ideia aproximada quando utiliza o conceito de força.
Newton descreve a atuação de duas forças aplicadas a um corpo da seguinte forma: “se
sobre um corpo atuam duas forças simultâneas, a força resultante é descrita por uma diagonal
de um paralelogramo; ao mesmo tempo seus lados, descrevem as forças separadamente”
(NEWTON, 1993, p. 42). Essa ideia foi fundamental para formalizar a soma de vetores por
meio do que conhecemos hoje como “paralelogramo de forças”.
Newton é herdeiro de uma tradição científica iniciada no Renascimento, quando se
tentava destruir concepções aristotélicas. Assim como Galileu, ele evidenciou a necessidade
de encontrar um método geral para descrever formalmente um fenômeno físico em suas
diferentes bases. Ele desejava entender os processos físicos a partir de modelos matemáticos,
deixando de lado exigências ontológicas.
O conceito de vetor apareceu na obra Estática e Hidrostática do holandês Simon
Stevin em 1586, ao enunciar empiricamente a soma de duas forças aplicada ao mesmo ponto.
Esta regra é conhecida hoje como regra do paralelogramo. Os vetores reaparecem na obra de
Gaspar Wessel, matemático dinamarquês, em 1797, na obra Ensaio Sobre a Representação da
Direção. Mas, o estudo e uso sistemático de vetores constituem um fenômeno do século XIX
e inicio do século XX com os trabalhos do irlandês William Hamilton (1805 – 1865), do
alemão Hermann Grassamann(1809 – 1877) e do físico norte-amereicano Josiah Willard
168

Gibbs (1839 – 1903) (VENTURI, 1949, p 64). Acrescentamos nesse cenário Peter Güthrie
Tait (1831 – 1901).
Grassmann se encarregou de desvendar as ideias contidas no ensaio de Wessel e
apresentou uma noção de congruência diferente dos seus antecessores, levando em
consideração não apenas o comprimento do segmento, mas também uma orientação e uma
direção, conceitos que conhecemos hoje relacionados à noção de vetor. Hamilton em 1833
apresentou um artigo à Academia Irlandesa em que introduziu uma álgebra formal de pares de
números reais cujas regras de combinação são precisamente as que hoje são dadas para o
produto dos números complexos.
O que podemos afirmar depois de analisar alguns dos resultados da modelagem
matemática a fenômenos físicos é que alguns conceitos da matemática e da física
influenciaram de maneira decisiva para o aparecimento e desenvolvimento dos métodos
vetoriais.
No tocante as geometrias, a de Euclides carecia de generalidade e a geometria
cartesiana carecia de intuição. As coordenadas cartesianas eram arbitrárias, e era motivo de
preocupação. A esse respeito, segundo Otte, Grassmann teria dito que

O cálculo em si, diz ele, é apenas a expressão simbólica de um argumento conceitual


e, em conjunto com esse cálculo, a introdução de coordenadas arbitrárias, que não
têm, essencialmente, nada a ver com a questão geométrica em questão, escondendo
completamente as ideias, o próprio cálculo se tornando um negócio chato e
mecânico que não oferece nada de bom para a mente (GRASSMANN, 1844, p. 9,
apud, OTTE, 1989, p. 13, tradução nossa).

Grassmann se concentra, particularmente, na relação entre desenvolvimento conceitual


e do desenvolvimento de fórmulas. Assim, além de tomar, como base, a intuição empírica,
precisou usar a intuição pura no sentido de Kant, em que a construção do pensamento é
expressa pela tríade “conceito/símbolo/objeto”. Grassmann não acreditava que a construção
do conhecimento podia ser complemente reduzida na combinação de conceitos que começa
em elementos mais simples.
Para Descartes, a geometria era a arte de resolver problemas geométricos, em especial,
problemas de construção. Grassmann estava preocupado com os fundamentos constituídos
por meio da construção conceitual e o crescimento da teoria.
Os fundamentos da matemática sofreram transformações no inicio do século XIX com
o advento da matemática pura implicada por conceitos cada vez mais abstratos, dando inicio à
compreensão da matemática somente com o pensamento conceitual.
169

4.2 Álgebra Linear e o Pensamento Conceitual

É possível responder uma questão como: “qual a diferença entre a geometria analítica
e a álgebra linear?” “Não é possível responder de forma definitiva a pergunta sobre a natureza
dos objetos matemáticos e muito menos limitar as interpretações possíveis dos conceitos
matemáticos” (OTTE at al, 2014, p. 137). No entanto, é possível estimular um entendimento
conceitual dos objetos da matemática.
J. Dieudonné (1906 – 1992) reconheceu que não dominava assuntos de álgebra quando
teve contato com o trabalho de B. van der Waerden, intitulado de “Álgebra Moderna”.
Analisando esse trabalho ele teria dito: “É absolutamente intolerável usar Geometria Analítica
para Álgebra Linear com coordenadas, ainda chamado de Geometria Analítica nos livros
elementares. Geometria analítica nesse sentido nunca existiu (DIEUDONNÉ, 1970, p. 140,
apud OTTE, 2014, p. 139, tradução nossa.)”.
De acordo com Otte (2014, p. 139, tradução nossa) “a geometria analítica é uma
invenção da Educação Matemática”, cujo principal objetivo é propiciar a melhor didática para
o ensino e aprendizagem da matemática. A álgebra linear, ao contrário da geometria analítica,
traz uma abordagem livre de coordenadas, o que deixa essa disciplina longe do conhecimento
empírico.
Como exemplo de representar objetos geométricos por meio de objetos algébricos e
operações geométricas por meio de operações algébricas e, considerando a teoria de espaço
vetorial, vamos considerar a seguinte propriedade: u + v = u + w  v = w; onde u, v e w são
vetores em R2.

Utilizando a geometria de coordenadas, podemos justificar a igualdade da seguinte


forma:
Sejam u = (x1,y1), v = (x2,y2) e w = (x3,y3)  R2. Então,
u + v = u + w  (x1,y1) + (x2,y2) = (x1,y1) + (x3,y3) 
 (x1 + x2, y1 + y2) = (x1 + x3, y1 + y3) 

 x1  x2  x1  x3  x 2  x3
  
 y1  y 2  y1  y3  y 2  y3
 (x2,y2) = (x3,y3)  v = w.

Porém, podemos justificar a igualdade da seguinte maneira:


170

Sejam u, v e w  R2. Então,

u + v = u + w  ((-u) + u) + v = ((-u) + u) + w  0 + v = 0 + w  v = w.

Esta última maneira utiliza uma forma de pensar que implica não se preocupar com o
objeto em si, mas somente com suas propriedades. Isto tem a grande vantagem de simplificar
a escrita e, além disso, a demonstração teve um desenvolvimento inteiramente análogo a um
caso familiar de propriedade dos números reais.
Esta relação pode ser estendida para o Rn. No ensino e aprendizagem da matemática,
em especial a teoria de matrizes e determinantes, é comum a inserção de argumentações que
podem ser estendidas para dimensões maiores. O professor apresenta definições de termos
básicos acerca de determinantes dois por dois, escreve fórmulas e propriedades, mostra a sua
aplicação na solução de sistemas lineares, e em seguida estende a abordagem a determinantes
três por três e generaliza a ideia para determinantes n por n.
Diante disso, vamos mostrar uma abordagem em que é levado em consideração o
pensamento relacional e, ao mesmo tempo, mostrar como a geometria analítica e a álgebra
linear abordam o mesmo conteúdo. Nessa proposta, o estudante é o autor do seu próprio
conhecimento, sendo ele e suas atividades o foco principal, enquanto o professor apenas
facilita o processo de aprendizagem. Com essa abordagem, em que o aluno aprende fazendo,
há a possibilidade deles perceberem que algo já aprendido pode ser implementado na
construção de novos conhecimentos ou outras teorias.
Partindo de conhecimentos básicos da geometria, como por exemplo, o cálculo com
áreas, podemos orientar os alunos a construir, eles mesmos, os conceitos de matrizes e
determinantes.
Passamos a apresentar um procedimento encadeado de passos para criarmos as
primeiras noções de matrizes e determinantes.
Considerando sabido que a área de um quadrado de lado unitário é igual a uma
unidade quadrada, podemos representá-la por um determinante 2x2 da seguinte maneira:
1 0
A=1=1–0=1.1–0.0=
0 1
Assim, um determinante pode ser definido como um número, que nesse caso citado, é
igual à área do quadrado unitário, ou seja, 1.
171

Figura 4.2 Determinante 2x2 - Área do quadrado de lado 1. Fonte: Acervo Pessoal

Esse também é um momento muito conveniente para definir a matriz identidade I 2x2,
como um esquema quadrado constituído de números 1 (elementos na diagonal principal) e
zeros (os dois restantes elementos), ou seja,
1 0
I 2x2   
0 1
A relação entre a matriz identidade e o seu determinante é dada pela seguinte
expressão:
1 0 1 0
det I 2 x 2  det   1
0 1 0 1
Agora, vamos colocar o quadrado ABCD no plano de coordenadas, de tal forma que
seu vértice A fique na origem e os vértices B e C sobre os eixos x e y, respectivamente.
Assim, as coordenadas dos vértices do quadrado ABCD são: A(0, 0), B(1, 0), C(0, 1) e D(1,
1). As coordenadas dos pontos B e C são de especial interesse, porque as suas coordenadas
são, na verdade, os elementos das duas colunas na matriz I2x2. Assim, podemos definir os
vetores unitários bidimensionais como se segue:
1 0 
i  e j 
0 1
Com essa metodologia, o conhecimento geométrico ganha um novo significado, o
significado algébrico.
172

Figura 4.3: Representação vetorial no plano cartesiano - Componentes de uma matriz 2x2. Fonte: Acervo
Pessoal.

Generalizando, um quadrado de lado a possui área igual a2 que pode ser representada
por:
a 0
AABCD  a 2  a 2  0  a.a  0.0 
0 a
Podendo ser escrito como um esquema de quadrado consistindo de dois números reais
na diagonal principal e a outra diagonal (diagonal secundária) os dois elementos restantes.
Isso leva ao conceito de matriz 22:
a 0 
M 2x2   
0 a 
Cujo determinante é:
a 0  a 0
det M 2 x 2  det     a2
0 a  0 a
Para qualquer figura retangular com os lados a e b podemos alterar as coordenadas do
ponto B, e C, ao longo dos eixos, de tal modo que os lados diferem em comprimento, ou seja,
B (a, 0) e C (0, b). A área desta superfície retangular é:
173

 a 0
AABCD  ab  a.b  0  a.b  0.0     a.b
0 b
A matriz correspondente pode ser escrita como:
 a 0
M 2x2   
0 b
E o determinante pode ser calculado pela fórmula:
 a 0 a 0
det M 2 x 2  det    ab
0 b 0 b

Figura 4.4: Área de um retângulo dado por componentes vetoriais sobre os eixos cartesianos. Fonte: Acervo
Pessoal.

Os softwares de geometria dinâmica possibilitam a manipulação e visualização


relacional entre a álgebra e a representação geométrica. Arrastando os pontos B e C, o aluno
pode ver, simultaneamente, como os elementos das matrizes mudam. Ao mesmo tempo em
que a área do quadrado muda (ou as alterações retangulares), o valor do determinante
correspondente, também muda.
Uma propriedade muito útil do GeoGebra é que ele calcula a área de qualquer
polígono. Aplicando esta propriedade, particularmente para o cálculo da área de um
paralelogramo (embora possa ser feito facilmente, como mostrado no Applet 2), o professor
pode poupar algum tempo durante a aula. Esta é uma vantagem significativa, especialmente
quando o cálculo da área de regiões poligonais não é o foco principal da aula, mas ensinar
álgebra linear.
174

Voltando ao nosso objetivo, que é, usando a área do paralelogramo, obter o termo para
qualquer matriz bidimensional, podemos lançar a seguinte pergunta: “O que acontece se os
pontos B e C não são arrastados ao longo dos eixos, mas em qualquer lugar no plano de
coordenadas?” Assim, uma das coordenadas destes dois pontos não será mais 0, mas qualquer
outro número real. Vamos denotar estas coordenadas como: B (a, b) e C (c, d). O vértice A
permanece na origem A (0,0). As coordenadas do vértice D podem ser encontradas como
adição de dois vetores, pelo estabelecimento de um paralelogramo. Assim, as suas
coordenadas são D (a + c, b + d). Esta apresentação geométrica e a área do paralelogramo
ABCD (Figura 4.5) têm a sua própria interpretação algébrica, que é:
ab cd a b
AABCD  (a  c).(b  d )  2bc  2  2  ad  bc 
2 2 c d

Figura 4.5: Área de um retângulo dado por componentes vetoriais cujos vetores não pertencem aos eixos
cartesianos. Fonte: Acervo Pessoal.

Pela sequência que foi proposta nessa seção, podemos perceber claramente o papel de
cada disciplina e a sua importância no desenvolvimento dos conceitos matemáticos. A álgebra
linear apresenta resultados que a geometria analítica por si só não dá conta. Como vimos, a
área de um quadrado pode facilmente ser representada por um determinante, abrindo as portas
para realizar as operações. A geometria analítica representa o quadrado em um plano, por
meio dos seus pares ordenados representando seus vértices, mas não diz nada sobre a área.
175

Para que possamos avançar no desenvolvimento dos conceitos matemáticos, faz-se


necessário elaborar o pensamento conceitual, ou seja, pensar sobre os novos conceitos
advindos de conceitos. Otte (2014) afirma que Ernest Cassirer (1874 – 1945) “sempre
enfatizou que todo progresso na lógica e na matemática depende de novos “conceitos do
conceito” e que, em contrapartida, a matemática ganha importância para a epistemologia e
para a cultura em geral por causa de suas inovações na área do pensamento conceitual”. O
surgimento da álgebra linear permite avançarmos no pensamento sobre conceitos.
O movimento de constituição da álgebra linear principiou aproximadamente no século
XVIII quando Leibniz sentiu a necessidade de uma linguagem geométrica que possibilitasse
modos de expressar, além de magnitudes e números indeterminados, ângulos, posição e
direção de movimentos a partir de representações que não fossem geométricas. Ele criticou os
métodos analíticos de Descartes e tentou elaborar um cálculo geométrico que permitiria
calcular diretamente dos objetos geométricos.

Existe uma maneira de fazer avançar na álgebra muito além daquilo que Viète e
Descartes nos deixaram assim como eles levaram para além dos antigos ...
Precisamos de outra análise que seja distinta da geométrica e que expresse a posição
(situs), diretamente da forma que a álgebra expressa magnitude. (Leibniz, 1969, p.
248 – 249).

Leibniz não alcançou seu objetivo, mas abriu uma nova linha de pesquisa. O crédito
de Leibniz está em perceber que era necessária uma nova álgebra e que a principal
característica dessa álgebra devia ser que se possa representar as entidades geométrica
simbolicamente e se pode operar diretamente com estes símbolos.
A álgebra é uma característica de números indeterminados ou somente magnitudes,
não expressa posição, ângulos ou direção de movimento. Além disso, é difícil analisar as
propriedades de uma figura por meio de cálculos, e também conseguir construções e
demonstrações geométricas convenientes, mesmo após realizar os cálculos. Essa nova
estrutura deverá apresentar a solução, a demonstração e a construção geométrica, tudo ao
mesmo tempo, e de um modo natural em uma análise. Mas o que permite toda essa interação é
o raciocínio, o pensamento conceitual, a partir das operações com símbolos, que muitas vezes,
não podem ser representadas por figuras e ainda menos por modelos.
Em meados do século XIX, o matemático e alemão H. Grassmann estabeleceu uma
teoria chamada de “teoria da extensão”, na qual incluía uma lista de propriedades
fundamentais de certos sistemas, que foi um claro antecedente do conceito moderno de espaço
176

vetorial. Nas próximas seções vamos apresentar os trabalhos de Hamilton e Grassmann que
culminaram no surgimento da álgebra linear.

4.3 Hamilton e seus Quatérnions

No inicio do século XIX, os matemáticos utilizavam com liberdades os números reais


e complexos, mas sem uma definição rigorosa. Simplesmente, considerava-se como corpos
teóricos que cumpria certas leis básicas que ditavam a álgebra simbólica. Não se conheciam
as propriedades específicas de cada campo, pois necessitava de um estudo das estruturas de
diversos tipos de números. Apenas no final do século XIX, com Richard Dedekind (1831 –
1916) e Georg Cantor (1845 – 1918) que se resolve caracterizar rigorosamente o conjunto dos
números reais. Durante muitos anos predominou a álgebra simbólica: uma estrutura na qual as
operações entre símbolos obedeciam às propriedades básicas de fechamento e da
comutatividade.
Por muito tempo reinava um mistério a respeito da natureza de quantidades negativas
e imaginárias. A busca por um significado geométrico para tais números vislumbrou interesse
de vários matemáticos. Girard (1590 – 1635) representou um número negativo como o
comprimento de um segmento localizado no lado oposto àquele no qual se representam os
positivos.
Os números complexos podem ser representados como pontos no plano e indicados
por um segmento de reta orientado que parte da origem dos eixos até esse ponto. O ponto
representado dessa forma contém informação quanto ao comprimento (distância da origem até
o ponto) um sentido e uma direção. Mas, a questão era como incorporar a direção no cálculo
com números?
A representação geométrica de números reais como pontos numa reta orientada,
associando-se a cada número um segmento com origem no zero e extremidade no ponto que o
representa, permite a descrição de rotações de 180°. Multiplicar um número real por –1, por
exemplo, representa uma inversão da posição do mesmo na reta numerada, o que equivale a
girar de meia circunferência o segmento que o representa (DION; PACCA; MACHADO,
1995).
Com números reais foi possível conferir apenas rotações de 180. A vantagem dos
números complexos foi poder descrever uma rotação qualquer no plano.
Por exemplo, consideremos o número complexo z = 2 + i. Se multiplicarmos pelo
complexo z1 = –i, temos uma rotação de 90 no sentido horário. Se multiplicarmos por z2 = i,
177

temos uma rotação de 90 no sentido anti-horário. Se multiplicarmos por –1 a rotação pode
ser entendida como sendo de 180. Associando-se a números complexos quaisquer pontos no
plano, é possível associar a diferentes números, diferentes direções; a partir daí, multiplicar
dois números conduz a um terceiro perfeitamente definido, tanto em módulo como em
direção, sendo possível, dessa forma, atribuir ao produto o significado de uma rotação no
plano.
Embora ainda restrita a duas dimensões, essa nova forma de representação é a maior
contribuição para a evolução do conceito de vetor. O problema a ser resolvido dizia respeito a
encontrar uma álgebra que pudesse fazer o mesmo que um complexo fazia em duas
dimensões, ou seja, encontrar uma álgebra capaz de fazer girar também em três dimensões.
Esse foi o objetivo principal de Hamilton.
As ideias de Hamilton aparecem numa época em que os objetos da álgebra são mais
fortemente ligados às propriedades e as leis de combinação entre os elementos. É nesse
contexto de mudança que a noção de vetor vem se estabelecer definitivamente, tornando-se,
na Matemática, o índice e o instrumento de um estilo.

Um exame dos traços que, segundo Granger, caracterizam o estilo vetorial, revela
completa inversão com relação ao modo matemático de pensar, que partia da
realidade empírica para a construção de seus objetos: objetos matemáticos são agora
constituídos por feixes de relações. A partir dessa perspectiva, o que determina a
natureza de um elemento são as regras de combinação daqueles tomados como base
de construção. E, tendo natureza simbólica, a intuição matemática liberta-se um
pouco mais da realidade empírica; segundo Granger (1974), “a intuição certamente
continua a desempenhar um papel na manipulação efetiva dos seres matemáticos,
mas é, a partir daí, dissociada de seu elemento métrico” (DION; PACCA;
MACHADO, 1995).

O matemático e físico irlandês William Rowan Hamilton (1805 – 1865) dedicou-se a


estudar a álgebra dos quatérnions. No prefácio do “tratado sobre quatérnions”, ele dirige as
seguintes palavras aos leitores:

O volume que apresento ao público é concebido como uma ajuda para as pessoas
que possam estar dispostas a estudar e empregar um método matemático novo, que
ocupou minha atenção por alguns anos e para o qual eu me aventurei a propor o
método ou cálculo dos Quatérnions. [...] As dificuldades que muitos sentiram com as
quantidades negativas e imaginárias em Álgebra obrigou-me mesmos dispor muito
tempo da minha atenção (HAMILTON, 1853, p. 01. Tradução nossa).

Apesar de concordar com aqueles que haviam alegado que negativos e imaginários
não eram adequadamente quantidades, Hamilton ainda sentia-se insatisfeito e buscou uma
interpretação e leitura para as raízes quadradas de negativos.
178

Hamilton foi levado a considerar a álgebra como a ciência do tempo, e a geometria a


ciência do espaço. Se as letras A e B forem empregadas como datas, para denotar qualquer
dois momentos de tempo, o que, segundo Hamilton (1853, p. 3) “pode ou não ser diferente o
caso da coincidência ou identidade desses dois momentos, ou da equivalência destas duas
datas”, que foi indicada pela equação,
A=B
de maneira que a afirmação simbólica fosse interpretada como não envolvendo qualquer
referência original à quantidade, mas à concepção de simultaneidade ou sincronismo; ou, em
palavras mais simples, que representava o pensamento do tempo presente. E, da mesma
forma, usou B > A e B < A interpretados sem referência a quantidade, correspondendo apenas
a diferença de tempos futuros e tempos passados, onde B é concebido posterior a A na
primeira desigualdade e B anterior a A na segunda desigualdade sem ainda introduzir
qualquer concepção de medida.
Os primeiros significados de medida vieram depois, utilizando os símbolos =, < e >,
bem como o sinal B – A para denotar a diferença entre dois momentos, ou a relação ordinal
do momento A até o momento B, introduzindo a concepção de duração, como quantidade de
tempo. Esse mesmo símbolo pode também ser usado, segundo Ramilton, para responder a
pergunta: em que posição está situado o ponto B em relação ao ponto A; ou por qual caminho
B pode ser alcançado partindo de A? Em seu aspecto sintético, então, Hamilton afirma que o
símbolo B – A pode denotar “a medida de A para B”. Para comparar as relações entre dois
intervalos de tempo, ele usou a notação D – C = B – A, o momento D está relacionado com o
momento C assim como o momento B está relacionado com o momento A.
Hamilton ainda diz que “usou o sinal + combinando com a letra a minúscula e a letra
A maiúscula, para a medida concebida, a fim de formar o complexo a + A, registrando a
comparação de transição”. Assim, para alcançar um momento B deve-se ter transcorrido um
tempo passado a chegando a expressão B = a + A, denotando a concepção de que um
momento B pode ser alcançado, ou mentalmente gerado, permitindo escrever B – A = a.
As operações com números algébricos foi pensada por Hamilton como operações para
comparar momentos e seguem as mesmas leis da álgebra, por exemplo, o “0” (zero) como
símbolo de um número nulo, assim como de medida nula; a multiplicação de dois números
negativos, cujo resultado é um número positivo, na perspectiva de Hamilton seria duas
reversões sucessivas para restaurar a direção de uma medida. O “impasse” estava em
considerar potências e raízes, como Hamilton mesmo fala:
179

[...] atualmente, sobretudo é importante observar que, uma vez que, pela razão já
atribuída, o quadrado de cada número é sempre positivo, pois nenhum número, seja
positivo ou negativo, poderia ser resultado de uma raiz quadrada de um número
negativo. [...] eu pensei uma maneira de sair da mesma classe geral de
interpretações, e, especialmente, sem deixar de referir a noção de tempo, poderíamos
conceber e comparar pares de momentos; e assim obter uma concepção de pares de
medidas (no tempo), em que poderia ser fundada uma teoria de pares de números,
em que nenhuma dificuldade deve se apresentar (Hamilton, 1853, p.08. Tradução
nossa).

Dessa forma, Hamilton escreve a expressão,


(B1, B2) – (A1, A2) = (B1 – A1, B2 – A2)
como um sistema de relações dos dois pares de momentos, onde o primeiro momento B1 deve
ser comparado ao primeiro momento A1 e o segundo momento B2 comparado ao segundo
momento A2. As operações foram facilmente estendidas, de igual modo, para o tratamento
correspondente de relações complexas, e de medidas complexas, assim não houve dificuldade
de interpretação, neste plano, de tais fórmulas de multiplicação e divisão, como:
a  (a1, a2) = (aa1, aa2) , (aa1, aa2)  (a1, a2) = a
onde os símbolos a1 e a2 denota quaisquer duas medidas no tempo, e a qualquer número,
positivo ou negativo. Mas a questão tornou-se menos fácil, quando foi obrigado a interpretar
um símbolo da forma
(b1, b2)  (a1, a2)
onde b1, b2 denotam duas medidas, que não poderiam ser obtidas a partir das duas medidas
a1, a2, mas multiplicando-as por meio de qualquer número, como a. Hamilton foi levado a
considerar cada par de números individualmente, escrevendo
(a1, a2) = (a1, 0) + (0, a2)
cujo produto, considerando cada número, que compõe o par, único, fica expresso por:
(a1, 0) (a1, a2) = (a1a1, a1a2)
A dificuldade foi de realizar a multiplicação de (0, a2) por (0, a2). Para tal produto,
Hamilton chegou a conclusão que deveria ter (0, a2) (0, a2) = (1a2a2, 2a2a2); os
coeficientes 1 e 2 são dois números constantes, independentemente de a2 e a2,
denominados de constantes da multiplicação. Essas constantes podem variar, mas nessa
situação, elas deverão ter os seguintes valores:
1 = - 1; 2 = 0
Desta forma, a lei necessária para a operação entre dois pares de números, foi
encontrada, com a escolha das constantes, para ser expressas pela fórmula:
(a1, a2) (a1, a2) = (a1a1 – a2a2, a2a1 + a2a2)
180

Hamilton interpretou esse produto como sendo uma rotação. A partir disso, o conceito
de número complexo foi explicitado como pares de números reais permitindo a representação
de forças no plano. Essa regra foi publicada em meados de 1833, em um artigo intitulado
como Conjugate Functions ando n Algebra as the Sciencie of Pure Time.
Mediante essa regra é possível escrever
(0, 1)2 = (-1, 0) = -1
Dessa forma, Hamilton chegou a conclusão de que
(0, 1) = (-1,0)1/2 = (-1)1/2 = 1
que ele afirma ser sem nada de obscuro, impossível, ou imaginário.
A regra do produto de pares ordenados estabelecida por Hamilton é convenientemente
expressada por,
(a + bi) (c + di) = ac +adi +bci +bdi2 = (ac – bd) + (ad + bc)i, tendo em vista que, i2 = -1.
Muitos matemáticos começaram a transitar da álgebra básica dos números reais a uma
“álgebra dupla” dos números complexos, no entanto, pensava-se que essas seriam as únicas
álgebras existentes, não sendo possível se chegar a uma álgebra tripla ou quádrupla.
De conseguinte, Hamilton tentou generalizar essa ideia para três dimensões, passando
do número complexo binário a + bi às triplas ordenadas a + bi +cj, utilizando-se dos
preceitos acima descritos.

Com tais preparações como eu descrevi, retomei (em 1843) o esforço para adaptar a
concepção geral de trigêmeos para a multiplicação de linhas no espaço, a resolução
para manter o princípio distributivo, no qual na conjectura alguns sistemas anteriores
tinham sido inconsistente, e no primeiro supondo que eu poderia preservar também
o princípio comutativo dos fatores. [...] eu escrevi 1, i, j; de modo que um trio
numérico tomou a forma x + iy + jz, onde propus interpretar x, y, z como três
coordenadas retangulares, e o próprio trio como denotando uma linha no espaço. A
partir da analogia dos pares, eu assumi i2 = - 1; e assumi também j2 = - 1, que eu
interpreto como uma rotação através de dois ângulos retos no plano da xz, e i2 = - 1
correspondendo uma rotação no plano xy (HAMILTON, 1853, pp. 43 – 44, tradução
nossa).

Hamilton tentou provar a possibilidade de um complexo ser tridimensional por vários


anos, mas não logrou êxito. Como todos seus antecessores ele estava procurando triplas com
uma adição e uma multiplicação. Após várias tentativas percebeu que não era possível
exprimir um número complexo no lócus de dimensão três. Diante dessa dificuldade
apareceram os quatérnions, que é uma álgebra de dimensão quatro sobre o corpo dos números
reais, possuindo todas as propriedades de um corpo, exceto a comutatividade da
multiplicação. Surgia a primeira álgebra não-comutativa da história. No item [47] no prefácio
de “o tratado sobre quatérnions”, Hamilton escreve:
181

Isso me levou a imaginar que talvez em vez de procurar limitar-nos a trigêmeos, tais
como a + ib + jc ou (a, b, c), devemos considerá-las como únicas formas
imperfeitas de quatérnions, tais como a + ib + jc + kd, ou (a, b, c, d), o símbolo k
denota algum novo tipo de unidade de operador: e que, portanto, a minha velha
concepção deve receber uma nova e útil aplicação. Mas era necessário, para operar
definitivamente com tais quatérnions, fixar o valor do quadrado k2, deste novo
símbolo k, e também os valores dos produtos, ik, jk, ki, kj. Parecia natural, depois de
assumir como acima que i2 = j2 = - 1, e que ij = k, ji = - k, para assumir também que
ki = - ik = - i2 j = + j, e kj = -jk = j2 i = - i (HAMILTON, 1853, p. 46, tradução
nossa).

De acordo com Boyer (2012, p. 376) “já estava mais ou menos claro que quádruplas
de números a + bi + cj + dk se deveria tomar i2 = j2 = k2 = -1; agora Hamilton viu que
deveria tomar ij = k, mas ji = -k, e, de modo semelhante, jk = i = -kj e ki = j = -ik. No resto,
as leis das operações são as da álgebra ordinária”. Esses produtos podem melhor visualizados
pelo seguinte quadro:

Figura 4. 6: Produtos de quantidades imaginárias. Fonte: Hamilton, 1853.

O programa Matemático de Hamilton descreve uma das mais fortes tradições que
exerceram grande influência no surgimento da análise vetorial moderna. Precisamente, o
descobrimento dos quatérnions acabou com a velha tradição algébrica, instaurando o
nascimento de uma álgebra moderna que transcendia as velhas leis operativas. Hamilton, em
1843 fundamentou a definição de números complexos e suas operações adaptando-os a
representação geométrica como pontos de um segmento de reta orientado no plano.
A primeira noção de vetores expressa por Hamilton aparece no item [50] do seu
tratado:

Deixe, então, o produto de duas linhas, ou de dois vetores de uma origem comum,
ser concebido para ser algo que tem uma quantidade, no sentido de que ele é
dobrado, triplicado, etc. por duplicar, triplicar, etc. qualquer um dos fatores deixá-lo
182

também ser concebido para ter em certo sentido, a qualidade análoga à direção, que
é, de algum modo definitivamente ligado com as direções das duas linhas dos
fatores. (HAMILTON, 1853, p. 48, tradução nossa).

Hamilton (1853, p. 143) afirma no primeiro capítulo que, “[...] em seu aspecto
sintético, então, considero o símbolo B – A como denotando “a medida de A para B”; [...]
Esta medida também pode, em minha opinião, ser adequadamente chamada de vetor”. Os
quatérnions exerciam a forma mais adequada de representar vetores no espaço. “Um vetor é
assim uma espécie de tripla (sugerida pela geometria) e, consequentemente, veremos que
quatérnions oferecem um modo fácil de simbolicamente representar cada vetor por um
trinômio (ix + jy + kz)” (HAMILTON, 1853, p. 145, tradução nossa).
As palavras vetores e escalar aparecem no tratado sobre quatérnions da seguinte
forma:

“Por conseguinte, podemos falar definitivamente da parte escalar, e da parte do


vetor, ou de forma mais concisa podemos falar de escalar e vetorial, de qualquer
quatérnio proposto. [...] tenho por um bom tempo me acostumado a empregar, como
entre os principais elementos da notação de quatérnio as duas letras

SeV

Características como duas das principais operações, do que chamo de,


respectivamente, termo escalar, termo vetorial, de um quatérnio. Mais plenamente,
eu denotar separadamente, pelos símbolos,

Sq e Vq

a parte escalar e a parte vetorial de qualquer quatérnio Proposto, q. (HAMILTON,


1853, p. 392).

Os quatérnions podiam, então, ser decomposto em duas partes: uma escalar e outra
vetorial:
q = Sq + Vq
Hamilton recebe críticas a essa representação dos quatérnions porque a parte escalar
apresentava dificuldades de representar geometricamente. Já a parte vetorial foi facilmente
abordada: de acordo com Hamilton (1853, p. 537) “a interpretação geométrica da parte
vetorial do trinômio, ix + jy + kz, denotava uma linha reta direcionada no espaço”. Com o
objetivo de justificar a importância de seu trabalho, ele realiza o produto de dois quatérnions q
e q’ supondo a parte real igual à zero:
q = ix + jy + kz, q’ = ix’ + jy’ + kz’
cujo resultado é:
183

q” = ix” +jy” ¨+ kz”


Decompondo os termos obtemos:
Sq = – (xx’ + yy’ + zz’)
Vq = (yz’ – zy’)i + (zx’ – z’x)j + (y’x – yx’)k

Os quartérnions são números algébricos que permitem uma representação geométrica


no espaço. Suponhamos dois vetores AO e OB. Um pode ser expresso por um escalar
multiplicado pelo outro. O escalar era obtido pela razão entre os comprimentos dos dois
vetores e seu sinal depende do sentido dos vetores: positivo se tiverem o mesmo sentido e
negativo se possuírem sentidos opostos.
Caso os vetores não sejam paralelos, além de encontrar a razão entre seus respectivos
comprimentos, devemos realizar transformações de forma que consigamos colocá-los
paralelos. Então, vamos supor que um vetor AO possa ser transformado em outro vetor OB. A
primeira parte da transformação é obter a congruência modular, aumentando ou diminuindo o
comprimento do vetor AO. Para tanto, é preciso determinar a razão entre os comprimentos.
Seja denotada a razão por um número real . Em seguida, AO deve ser girado em torno de um
eixo perpendicular que passa por O até que sua direção coincida com a de OB. Para
determinar essa transformação são necessários dois ângulos para determinar o plano em que
ocorre a rotação e um terceiro para determinar o ângulo AOB.
As quatro grandezas usadas para completar essa transformação não são da mesma
natureza. É preciso um número para determinar o comprimento, dois ângulos para determinar
o plano que contém os dois vetores e um terceiro ângulo para levar AO até OB, ficando
estabelecidas quatro grandezas para que a transformação fosse possível, levando o nome de
“quatérnion”.
Podemos concluir que as contribuições de Hamilton foram imprescindíveis para o
desenvolvimento posterior da matemática. Não podemos negar que ele percebeu os princípios
modernos de análise vetorial e foi um dos pioneiros de uma concepção de álgebra ampliada.
No entanto, não foi o único que buscava um sistema formal de descrição de entes geométricos
no espaço em meados do século XIX. Pelo menos outras seis pessoas de quatro países
diferentes estavam desenvolvendo sistemas semelhantes ao cálculo vetorial, embora
diferentes do formalismo atual. São eles, August Ferdinand Mobiüs (1790-1868), Giusto
Bellavitis (1803-1880), Hermann Günther Grassmann (1809-1877), Adhémar Barré, Conde
de Saint-Venant (1797-1886) Augustin-Louis Cauchy (1789-1857) e o reverendo Mathew
184

O‟Brien (1814-1855). O mais importante de todos esses foi Grassmann, cujo sistema foi
publicado em sua obra Ausdehnungslehre de 1844.

4.4 O Sistema Vetorial de Grassmann

A análise vetorial de Grassmann aparece em uma primeira versão de um livro


publicado em 1844 com o título: Die Lineale Ausdehnungslehre, ein neuer Zweig der
Mathematik (A Teoria das Extensões lineares, um novo ramo da matemática), no mesmo ano
em que Hamilton publica seu primeiro artigo sobre os quatérnions. Ausdehnungslehre aparece
“como a primeira parte de uma teoria geral, que nunca foi concluída até sua morte”
(DORIER, 1995, p. 241, tradução nossa). Este trabalho foi muito original para o seu tempo e
permanece até hoje. As raízes de Ausdehnungslehre são variadas, tanto do ponto de vista
matemático quanto do ponto de vista filosófico, mas a natureza geométrica do espaço
representa importantes fontes de reflexão de Grassmann.
Crowe (1985, p. 47, tradução nossa) faz um comentário a respeito dos trabalhos de
Hamilton e Grassmann, dizendo que: “a criação desse último sobrepassa a do primeiro em
profundidade e perfeição”. Grassmann estudou teologia e filosofia, foi um matemático
autodidata e influenciado, principalmente, pelo trabalho de seu pai, Justus Grassmann
(DORIER, 1995, p. 241, tradução nossa). Em 1840, a fim de concorrer a uma cadeira como
professor na escola secundária, escreveu um longo ensaio (mais de 200 páginas) sobre a teoria
das marés, que foi publicado postumamente. Neste trabalho, ele lançou as bases da álgebra
geométrica e deu soluções substancialmente simplificadas em Mecânica Analítica de
Lagrange e Mecânica Celeste de Laplace (DORIER, 1995, p. 241, tradução nossa).
Grassmann desenvolve suas ideias sobre análise vetorial durante o período de 1832 a
1864. No prefácio de Ausdehnungslehre ele explica como foi formalizada as operações
básicas de vetores. Nas palavras de Crowe Grassmann teria escrito:

O primeiro impulso veio das considerações de negativos na geometria; fui me


acostumando a ver as distâncias AB e BA como grandezas opostas. Neste sentido,
cheguei à conclusão que se A, B, C, são pontos de uma mesma linha reta, então em
todos os casos AB + BC = AC, isto é certo quando AB e BC possui a mesma direção
ou direções oposta (quando C está entre A e B). Não considero somente os
comprimentos de AB e BC, mas também suas direções, pois podem estar em
direções opostas. Nessa perspectiva, há uma distinção entre a soma de
comprimentos e a soma de distâncias, as quais têm fixado uma direção. Desde
resultado há a necessidade de estabelecer um conceito de soma, não somente quando
as distâncias estão direcionadas na mesma direção, mas também em direções
opostas. Em essência isto poderia realizar-se de forma mais simples, posto que a lei
185

AB + BC = AC, é também valida quando A, B, C não estão na mesma linha reta


(CROWE, 1985, p. 56 – 57, tradução nossa).

Grassmann alegou ter criado uma nova teoria que, embora pudesse ser aplicada à
geometria, mecânica, e vários outros campos científicos, era independente deles. Nascimento
(2013) diz que Grassmann “na exposição de uma nova ciência é absolutamente
imprescindível, para que se reconheça sua posição e seu significado, mostrar suas aplicações e
sua relação com temas análogos” (GRASSMANN, 1947, p. 18 apud NASCIMENTO, 2013,
p. 17). Na verdade, Grassmann pensou que a geometria não deveria fazer parte da
matemática, uma vez que refere-se a realidade que valida alguns de seus processos: “é uma
ciência fora da matemática e, a teoria da extensão, é um modelo matemático a ser aplicado à
geometria” (DORIER, 1995, p. 242, tradução nossa).
A forma como Grassmann apresentou seu trabalho tornou-se um obstáculo para os
matemáticos da sua época, a falta de clareza estava presente pelo fato de misturar resultados
matemáticos com considerações filosóficas que, segundo Burton (2011, p. 645), “na verdade,
era quase ilegível”. Outro fato que dificultava a compreensão, que muitos criticavam, deve-se
as aplicações serem apresentadas após resultados gerais, o que fez, segundo Dorier (1995, p.
243), “suas ideias ficarem muito difíceis”. Este autor cita uma carta de Ernst Friedrich Apelt à
Möbius, escrita em 03 de setembro de 1845, onde perguntava,

Você já leu o estranho Ausdehnungslehre de Grassmann? [...] parece-me que reside


em sua fundamentação uma falsa filosofia da matemática. O caráter essencial do
conhecimento matemático, a sua intuição [Anschaulichkeit], parece ter sido
eliminada do trabalho. Uma tal teoria abstrata de extensão que ele buscava, só
poderia ser desenvolvida a partir de conceitos. Mas a fonte do conhecimento
matemático não está em conceitos, mas na intuição (GRASSMANN, 1972 apud
DORIER, 1993, p. 243, tradução nossa).

Ernst Eduard Kummer, que foi convidado para avaliar o trabalho de Grassmann,
escreveu de forma similar em 12 junho de 1847:

No que diz respeito, em primeiro lugar, a preocupação com a forma ou a apresentação


do tratado, é preciso admitir, em geral, que é um fracasso; mesmo que o estilo é bom e
cheio de espírito, ela não tem em todos os lugares uma organização adequada do seu
conteúdo nos quais os pontos essenciais podem ser claramente distinguidos das coisas
de menor importância.

Grassmann adotava contrastes que podem ser listados em pares, como: igual –
diferente; discreto – contínuo; geral – particular; real – formal; etc.. Seu trabalho matemático
não podia e ainda não pode ser totalmente apreciado, se não se fizer um esforço para
compreender a filosofia em que se baseia. Nascimento (2013, p. 32) imprime em seu trabalho
186

uma carta de Möbius direcionada a Grassmann na qual explicita as dificuldades de entender o


conteúdo de seu trabalho:

O elemento filosófico presente em seu excelente trabalho, que está na base do


elemento matemático, não estou preparado para apreciá-lo corretamente ou mesmo
para entendê-lo apropriadamente. Disso eu tenho me tornado suficientemente
consciente no decurso de numerosas tentativas para estudar o seu trabalho sem
interrupções; em cada caso, porém, tenho parado devido à grande generalidade
filosófica (A. F. Möbius à H.G. Grassmann, 2 de fevereiro 1845).

Em 1862, Grassmann publicou uma versão completamente revisada do


Ausdehnungslehre, “que teve três centenas de exemplares impressos, à sua própria custa, na
loja de seu irmão” (BURTON, 2011, p. 646, tradução nossa) a partir do qual a maior parte das
considerações filosóficas tinha sido eliminada, e ele também adotou uma apresentação
matemática mais clássica. No entanto, esta versão não ocasionou mais sucesso do que a
primeira, e seguiu ao esquecimento temporário, como ocorreu com a publicação anterior.
Certamente, o desaparecimento de qualquer fundo filosófico fez com que o conteúdo
matemático se tornasse aquém do esperado, de modo que, o ponto forte do trabalho era
justamente a complementaridade dos dois diferentes ramos do conhecimento, a saber, a
matemática e a filosofia. Mas, há de considerar que o trabalho de Grassmann introduziu
conceitos elementares de álgebra linear, como: dependência linear, base e dimensão. Além
disso, o conteúdo matemático desse autor serviu de inspiração para teorias recentes como a
álgebra exterior de Lie, ou mais recentemente, cálculo umbral de Gian-Carlo Rota.
Passaremos, agora, a descrever algumas ideias chaves do pensamento matemático de
Grassmann.
No capítulo introdutório de Ausdehnungslehre, após uma introdução filosófica longa,
Grassmann apresenta a “teoria geral das formas” que se apresenta semelhantemente ao
sistema formal moderno, partindo do universo das formas, ou seja, símbolos que representam
objetos e estabelece certas relações entre eles. Um exemplo seria,
Se a e b simbolizam duas formas, então o símbolo de conexão  permite definir uma
nova forma a  b, obedecendo a seguinte igualdade
ab=ba
(a  b)  c = a  (b  c) = a  b  c
Nesse sentido, para Grassmann as formas similares (de mesma ordem: dois pontos,
dois vetores), quando estão relacionados por outra conexão, dá como resultado formas de
mesma ordem. Modernamente, o que Grassmann diz é: quando somamos dois vetores o
187

resultado é outro vetor. Enquanto a multiplicação de formas iguais ou diferentes, em geral


produzem formas de ordem superior. Esta ideia mostra a maneira como Grassmann estabelece
as bases de seu sistema partindo do particular para o geral.
Sua entidade algébrica básica, que ele chamou de uma quantidade extensa, foi uma

soma finita formal  e em que k são números reais e ek era um “sistema de unidades de
k k

primeiro grau”. A soma e diferença de quantidades extensa foram dadas por,

 e    k ek   ( k   k )ek
k k

e a multiplicação das quantidades extensivas por um número real foi dada por,
  k ek    (k ek )
Em linguagem corrente, as quantidades extensivas de Grassmann formou um espaço
vetorial n-dimensional sobre os números reais com base e1, e2, e3 ... en. Guiado pela intuição
geométrica, Grassmann passou a desenvolver, essencialmente, como é feito hoje, tais noções
elementares como subespaço, independência linear, e dimensão.
Grassmann introduz dois tipos de produtos: produto exterior e produto interior. O
produto exterior é designado como produto geométrico, enquanto o produto interior é
chamado de produto linear. O produto exterior de duas quantidades pode ser dado
algebricamente pela expressão
 e    e     [e e ]
k k j j k k k j

onde os parênteses indicam o produto de unidades, chamado de um sistema de segunda


ordem. Estes produtos de unidades foram para estar em conformidade com as regras
[ek e j ]  [e j ek ]  ek e j 1 k  j  n

[ek ek ]  0 1 k  n
A respeito dos resultados geométricos do produto exterior, Grassmann declara:

Deveríamos iniciar com a geometria em certa ordem para assegura uma analogia
com a ciência abstrata. Neste sentido, obter uma ideia mais clara que nos guie pelos
caminhos árduos e desconhecidos dos procedimentos abstrato. [...] por um lado, a
área de uma superfície produzida nesse sentido tem a forma de um paralelogramo.
Enquanto que, duas áreas de superfícies iguais pertencem ao mesmo paralelogramo
são designadas iguais se a direção do vetor movido é apoiada em ambos os casos
sobre o mesmo lado (por exemplo, sobre o lado esquerdo) do vetor produzido por
um movimento. Quando em um dos dois casos o vetor correspondente se apoia
sobre o lado oposto, então as áreas das superfícies são diferentes. Assim, obtemos
uma lei geral: si em um plano um vetor se move sucessivamente ao longo de
qualquer série de vetores, então a área de tal superfície produzida deste modo (desde
que os sinais dos elementos das superfícies individuais sejam colocados da mesma
188

maneira) é a área do qual desejamos que seja produzida se o vetor for movido ao
longo da soma desses vetores (CROWE, 1985, p. 71, tradução nossa).

Sua entidade algébrica básica, que ele chamou de uma quantidade extensa, segue da
teoria geral das formas. Ao tratar dessas quantidades, Grassmann muda sua perspectiva,
passando de formas dos objetos (ponto, segmento, etc.) para universo de vetores. Para ilustrar
a citação acima. Grassmann considerou três linhas paralelas coplanares cd, ef e ab, nas quais
eram cortadas por três pares de linhas paralelas: ec // fd, ea // fb, ca // db (Figura 4.7).

Figura 4.7: Produto Exterior de Grassmann

Suponhamos ab um vetor que move-se paralelamente ao logo de ac, para coincidir


com cd, formando um paralelogramo abdc. Agora, se ab move-se da mesma maneira ao longo
de ae, para coincidir com ef, forma um paralelogramo aefb e se ab move-se ao longo de ec
para chegar a cd, forma-se o paralelogramo efdc. Pela geometria elementar temos que:
Área abcd = área aefb + área efdc
Em poucas palavras, Grassmann mostrou que o movimento de ab ao longo de ac para
cd, dá como resultado a mesma área que quando move ab ao longo de ae e ec para chegar a
cd. Estas operações, segundo a teoria de formas, se comporta como um produto.
Em muitos aspectos, a teoria de Grassmann continua a ser uma singularidade. Dorier
(1995, p. 246, tradução nossa) conclui dizendo que, “devido à sua abordagem original, a
versão de 1844 continua a ser único e oferece uma alternativa à teoria do espaço do vetor, o
que dá uma rica análise das relações entre os conceitos formais da álgebra linear e intuição
geométrica que não podem ser encontrados em outros lugares”.
189

4.5 Algumas aplicações da análise vetorial

O desenvolvimento da álgebra de vetores e da análise vetorial como à conhecemos


hoje foi revelado pela primeira vez em um conjunto de notas feitas por J. Willard Gibbs (1839
– 1903) para seus alunos na Universidade de Yale que culminou nos Elementos de Análise
Vetorial em 1901. O matemático escocês Peter Güthrie Tait (1831 – 1857) escreveu seu
Tratado Elementar sobre os Quatérnions em 1867.
Gibbs foi apresentado aos quatérnions quando leu o tratado Treatise on Electricity and
Magnetism de Maxwell, ele também estudou Ausdehnungslehre de Grassmann, e concluiu
que vetores forneceriam uma ferramenta mais eficiente para seu trabalho em física. Assim, a
partir de 1881, Gibbs imprimiu por conta própria notas sobre análise vetorial para seus alunos,
que foram amplamente distribuídas para os estudiosos nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e
Europa.
O primeiro livro que trata da moderna análise vetorial surgiu em 1901 sob o nome de
Elementos de Análise Vetorial. Nesse livro estão reunidas as notas das aulas de Gibbs feitas
por Edwin B Wilson (1879 – 1964), um de seus últimos alunos de pós-graduação. As aulas de
Gibbs eram uma mescla entre os métodos de Hamilton e Grassmann.
O interesse de Tait era estabelecer aplicações dos quatérnions a física. Decidiu, então,
estudar com profundidade o trabalho de Hamilton sobre os quatérnions, chegando a conclusão
de que eram ferramentas de grande ajuda para os geômetras e o físicos. Tait é considerado um
dos precursores da Análise Vetorial, com indubitável importância histórica pelo fato de
divulgar e expor os desenvolvimentos de Hamilton em linguagem mais acessível, organizando
conceitos e estabelecendo relações de causalidade.
Um segundo ponto das contribuições de Tait é a visão do moderno sistema de análise
vetorial no qual sua exposição está próxima do que temos hoje. O livro Tratado sobre
quatérnions contém os princípios fundamentais da análise vetorial e álgebra linear atual. Os
primeiros capítulos instaura o vetor como objeto matemático, implicando na definição de
vetor como a conhecemos hoje.
Crowe (1985, p. 122) afirma que o primeiro capítulo poderia ser perfeitamente um
primeiro capítulo de qualquer texto moderno de análise vetorial. Nesse capítulo (os vetores e
sua composição) Tait incorpora a noção de vetor, definindo suas operações de soma e
multiplicação de um vetor por um escalar. Além disso, apresenta vários exemplos de
aplicações geométricas e físicas. O segundo capítulo ele denomina “produtos e quocientes de
vetores” centrados nos estudos sobre os quatérnions de Hamilton. Ele mostra que o produto
190

de dois vetores é um quartérnion; a parte negativa é o produto escalar e a positiva é o produto


vetorial.
Vamos descrever um pouco mais sobre os capítulos I e II que mostra os princípios
básicos sobre a teoria dos vetores. O primeiro capítulo desenvolve algumas noções básicas
que permiti introduzir noções de vetores. Depois de aceitar as quantidades negativas e
imaginárias, Tait vê a necessidade de representá-las geometricamente. Uma possível solução
para representação desses números é a partir da Geometria Analítica de Descartes. Ele
representa as quantidades negativas mediante a utilização do conceito de segmento orientado,
para o caso de quantidades imaginárias, utiliza o plano cartesiano.
As quantidades imaginárias eram representadas no eixo vertical Y e a quantidade real
no eixo horizontal X, como mostra a Figura 4.8.

Figura 4.8: Representação geométrica dos números imaginários segundo Tait.

Tait interpreta  1 como um operador rotacional sobre as retas. Se rotacionarmos o


segmento OP no sentido contrário aos ponteiros do relógio em torno do ponto O, um ângulo
de 90º, passaremos do ponto P para o ponto Q. Em geral a quantidade a + b  1 pode ser
representada no plano por meio do par M = (a , b). O segmento OM é originado ao
rotacionarmos, em torno do ponto O, o segmento OP cujo ângulo possui medida . O
comprimento do segmento OM é dado por
191

OM  r  (a, b)  a 2  b2
e sua direção com o eixo X, estaria determinada pelo ângulo
  arctag(b / a)

Tait mostra que, em geral se operarmos com cos   1sen sobre uma reta qualquer no
plano, resulta numa rotação dependente do ângulo , assim:
cos   
 1sen a   1b  a cos  bsen   1(asen  b cos )
Tait conclui dizendo que o comprimento é mantido após a rotação e que a direção é
dada por
 b 
 tg  
 asen  b cos  a     tg  b 
arctg    arctg 
 a cos  bsen   1  b tg  a
 
 a 
Para a representação no espaço, Tait adota os desenvolvimentos feitos pelo
matemático francês Françõis Joseph Servois (1768 – 1847) que teria antecipado Hamilton no
tratamento com os quatérnions. Para Servois, a generalização da expressão a  b  1 do
plano para o espaço, tornando-se
p cos  + q cos + r cos 
correspondendo a representação de um vetor unitário, cuja direção é dada pelos ângulos ,  e
 em relação aos três eixos, p, q e r seria quantidades imaginárias redutíveis a forma
A  B 1 .
Tait reconhece que Hamilton foi o descobridor da função que tinha  1 , como
operador básico para representar direções no campo da geometria.
Tait define vetor no espaço como objeto matemático levando em consideração apenas
os três componentes que compõe o ponto, para ele, um vetor é como se fosse um veículo que
transporta um ponto de A para B sem relação com eixos. De conseguinte, ele diz que “todas
as retas iguais e paralelas são susceptíveis de serem representadas por um mesmo símbolo, e
este símbolo dependerá de três elementos numéricos”. A esta relação é o que se denomina
vetor (TAIT, 1873, p. 8 – 9). Tait considerava o segmento de reta assim como em Euclides,
sem diferenciá-los.
O vetor como uma classe de equivalência é definido por Tait como: “se
representarmos AB por  (ao qual dependerá de três valores), e se CD é igual ao
comprimento de AB e paralelo a AB, então AB = CD = ” (TAIT, 1873, p. 9).
192

A definição algébrica para a adição de vetores é dada pela expressão AB + BC = AC.


Geometricamente representada pela Figura 4.9 com base na composição de velocidades
simultâneas, tanto para a intensidade como para a direção da velocidade resultante. Quando a
posição C coincide com a posição A, temos:
A = C então AB + BC = AB + BA = 0
Dessa forma, BA = - AB, significa que o sinal (-) é utilizado para indicar mudança de
direção.
Seguindo a interpretação física e atendendo as regras comuns de composição da
velocidade e força, Tait estabelece que se ABC é um triângulo qualquer, teremos que:
AB + BC + CA = 0
No caso de um polígono qualquer teremos:
AB + BC + CD + ... + YZ + ZA = 0
Em geral, a regra geométrica para a soma de vetores consiste em fazer coincidir o
extremo final do primeiro vetor com a origem do segundo vetor e assim sucesivamente.
A multiplicação escalar é definida como: “se tivermos um número qualquer de vetores
paralelos entre si, o resultado será um múltiplo de um deles por um número abstrato” (TAIT,
1873, p. 9).
Suponhamos os pontos A, B, C situados sobre a mesma reta, como mostra a Figura
4.9. Tait, escreve, tal como fazemos hoje, BC = x AB, onde x é um fator numérico, de forma
que x será positivo quando B está entre A e C, e negativo nos outros casos.
193

Figura 4.9: Multiplicação por escalar.

As componentes de um vetor são representadas por Tait utilizando-se da seguinte


figura:

Figura 4.10: Representação das componentes de um vetor

Suponhamos OA, OB, OC três vetores fixos e OP um vetor qualquer. Tomando PD


paralelo a OC e DE paralelo a BO, temos:
OP = OE + ED + DP
194

De forma que:
OP = x AO + y OB + z OC
Tait chama a atenção para o caso de três vetores unitários, utilizando a denominação
de Hamilton para eles, ou seja, i, j, k. Assim chegamos a descrição de um vetor qualquer no
espaço:
 = xi + yj + zk
Geometricamente a componente dos vetores pode ser observada formando um
paralelepípedo, como mostra a Erro! Fonte de referência não encontrada..
Para Tait, o cálculo vetorial era fundamental para descrever movimentos. Combinando
vetores com funções escalares ele escreveu:  : I  R  R3, onde  (t) = (x1 (t), x2 (t), x3 (t)),
expressão que conhecemos hoje como equação paramétrica de uma curva.
A partir da equação da curva, desenvolve questões de cálculo diferencial, em
delineamento com o cálculo das fluxões de Newton. Se o ponto O é a origem das coordenadas
no espaço, e P um ponto sobre uma curva, como mostra a Figura 4.11, então, OP =  (t). Para
outro ponto, denominado Q, sobre a curva, temos:
PQ =  (t +  t) - (t)

Figura 4.11: Função Vetorial.


195

Aplicando o limite em PQ, temos:


 (t  t )   (t )
 ' (t )  lim
 (t )0  (t )
que associa a cada ponto t um vetor posição.
Em seguida, Tait descreve a velocidade instantânea em cada ponto sobre a curva,
supondo a variação de tempo t quando o passa de um ponto a outro, como mostra a Figura
4.12.

Figura 4.12: Velocidade vetorial instantânea.

No tempo t o ponto P sobre a curva está representado pelo vetor posição


OP =  ( t ),
logo, no tempo t +  ( t ), a nova posição é Q1 dada por
OQ1 =  (t1) =  (t +  t),
donde  t representa o intervalo infinitamente pequeno.
O vetor deslocamento a partir do ponto P durante este intervalo de tempo é:
PQ1 = OQ1 – OP
1
Suponhamos o ponto Q2 sobre a curva ocupado por um móvel no tempo t   (t )
2
 1 
está representado pelo vetor posição OQ2    t   t  e seu deslocamento é dado por
 2 
196

 1 
PQ2  OQ2  OP    t   t    (t )
 2 
Grandezas vetoriais mostram a utilização dos vetores na física. Essas grandezas são
associadas às variedades matemáticas denominadas vetores, que são geometricamente
representados por segmentos orientados (setas). Na concepção de Grassmann o conceito de
vetor esta vinculado à ideia de transportar, pois é tratado como um operador que transporta
um ponto A até um ponto B ao longo da reta que os une, numa direção e num sentido
definido.
v = AB = B – A
Em termos de coordenadas, o módulo fica determinado por:
v  v  AB  OB  OA  B  A  xB  x A

Figura 4.13 Vetor deslizante sobre um eixo

Os elementos do conjunto R2 com enfoque vetorial são os mesmos caracterizados pela


geometria analítica cartesiana, no entanto, a interpretação é outra. Com o enfoque vetorial,
deixamos de falar especificamente em pontos no plano, e passamos a falar em vetores e
escalares.
De modo mais geral, a definição pode ser estendida para o espaço, por meio da adoção
de um sistema de referência cartesiano. Admitindo o ponto inicial do vetor v com coordenadas
A  ( x A , y A , z A ) e o extremo final por B  ( xB , yB , z B ) , o módulo fica definido por:

v  ( xB  x A ) 2  ( y B  y A ) 2  ( z B  z A ) 2
197

Figura 4.14 Vetor no sistema de referência cartesiano

Com a introdução do sistema referencial cartesiano tem-se uma abordagem mais


ampla do estudo dos vetores, e o seu comportamento pode ser estudado usando-se os diversos
tipos de sistemas referenciais, o que permite exprimi-los em termos algébricos.
A generalização para um número maior de dimensões foi uma necessidade para
resolver os problemas da geometria e da física.
O espaço com quatro dimensões, onde se tem as três coordenadas ordinárias do espaço
euclidiano de três dimensões mais a variável tempo, que é a quarta coordenada, é o
fundamento da teoria da Relatividade, onde se define o conceito de espaço-tempo.
Os fenômenos físicos foram caracterizados por meio de observações e, a partir delas,
abstrações foram estabelecidas por elaborações conceituais, apresentadas matematicamente
para explicar tais fenômenos físicos. A Matemática influi nas ideias experimentais de tal
modo que possibilita a fundamentação científica.
A Primeira Lei de Newton afirma que se um corpo estiver em repouso, ele permanece
em repouso. Se ele estive em movimento, continuará em movimento e com a mesma
velocidade (mesmo módulo, mesma direção e sentido), a menos que o corpo sofra influência
de alguma força externa.
A força é uma entidade que precisa ser definida matematicamente. A força resultante
sobre um corpo é igual ao produto da massa do corpo pela aceleração do corpo, podendo ser
198

 
expressa em linguagem matemática pela equação F  m.a . Essa é a chamada Segunda Lei de
Newton19.
A Terceira Lei de Newton fica definida pela interação entre dois corpos, quando a
força provocada por um dos corpos sobre o outro é sempre igual em módulo e possui a
mesma direção e sentido contrário à força que o outro corpo exerce sobre ele.
Também podemos encontrar aplicações vetoriais nos estudos de Ondas e Partículas,
ressaltando as características da mecânica newtoniana nessas aplicações.
As propriedades de uma onda podem ser representadas vetorialmente com um fasor
que, essencialmente, é um vetor possuindo intensidade igual a amplitude da onda, e que gira
ao redor de uma origem.
Para uma onda senoidal transversal, temos a seguinte equação:
y( x, t )  ym sen(kx  wt)
Onde,
y(x , t): deslocamento da onda;
ym: amplitude da onda;
sen(kx – wt): termo oscilatório;
kx – wt: fase
k: número de onda
x: posição
w: frequência
t: tempo
Tomemos duas ondas que se propagam ao longo da mesma corda no mesmo sentido:
y1 ( x, t )  ym1sen(kx  wt) (i)

y2 ( x, t )  ym2 sen(kx  wt   ) (ii)


Os fasores das respectivas ondas estão representadas na Figura 4.15.

19
O leitor poderá verificar a aplicação dessa lei no livro de Halliday (2002, vol. 01, p. 76). Neste material
podemos encontrar a representação das propriedades vetoriais aplicadas a física.
199

Figura 4.15: Um segundo fasor com velocidade angular w, mas com intensidade ym2 e girando a um ângulo
constante  do primeiro fasor, representa uma segunda onda, como uma constante de fase .

A onda (ii) está defasada da primeira por uma constante de fase . Como as ondas y1 e
y2 possuem o mesmo número de onda k e a mesma frequência angular w, podemos estabelecer
a resultante da forma
y ' ( x, t )  y 'm sen(kx  wt   )
onde y’m é a amplitude da onda e  a constante de fase.
Para calcularmos esses valores, somamos vetorialmente os dois fasores em qualquer
instante durante a sua rotação. Para isso, o fasor ym2 é deslocado para a extremidade do fasor
ym1. A intensidade da soma vetorial é igual a amplitude y’m. O ângulo entre o vetor soma e o
fasor é igual a constante de fase .
Está é uma aplicação vetorial para combinarmos ondas, mesmo que elas possuam
amplitudes diferentes. Diante disso, procuramos aplicar os conceitos de vetores na construção
e representatividade da parte angular com a projeção e deslocamento de vetor.
200

Figura 4.16: A onda resultante das duas ondas é representada pela soma vetorial y’m dos dois fasores. A
projeção y’ sobre o eixo vertical representa o deslocamento de um ponto quando essa onda resultante por ele.

Vetores são aplicados no estudo de aerodinâmica20. A introdução de carregamentos em


modelos aerodinâmicos requer uma análise da orientação e localização dos vetores
velocidades, força e momento. As forças e momentos aerodinâmicos terão como referência o
sistema de coordenadas aerodinâmico e, portanto, serão funções do vetor velocidade. O vetor

velocidade aerodinâmico V Aeq é calculado considerando-se o vetor velocidade de translação do

veículo em relação a pista e a velocidade de vento incidente.



Assim, para o cálculo de V Aeq , o primeiro passo é a obtenção do vetor velocidade de

translação do veículo. Para efeito de cálculos dos carregamentos aerodinâmico atuantes no


veículo, o efeito do vento incidente é equivalente à adição de um vetor velocidade com a
magnitude do vento incidente e direção contrária a este.
Outra aplicação louvável é no estudo de fractais. Imagens digitais demandam aumento
da capacidade de armazenamento e de velocidade de transmissão. A Engenharia e a
Matemática tem se dedicado à busca de novos métodos ou melhorias das já existentes.
A codificação fractal de imagens consiste em representar os blocos de imagens por
coeficiente de transformação contrativa. Assim, ao invés de armazenar/transmitir blocos de
imagens como uma coleção de pixels, somente são enviados/armazenados os coeficientes
dessas transformações.
O tempo de compressão fractal é a principal barreira. Tentativas recentes usam vetores
para dirimir o problema. Uma copiadora que reduz a imagem ao ser copiada e a reproduz três

20
Para melhores esclarecimentos sobre efeitos aerodinâmicos consultar BRAND, 2010.
201

vezes na cópia saída, consiste na ideia de tomar a distância entre dois pontos quaisquer da
imagem de saída (após transformação) que deve ser menor do que a distância entre os pontos
correspondentes na imagem de entrada.

Figura 4. 17: Exemplo de Fotocopiadora de Fisher. Fonte: CRUZ, 2008, p. 15.

Na prática, essas transformações permitem gerar uma grande variedade de


interessantes atratores. Essas transformações afins polinomiais de primeira ordem podem
torcer, deslizar, rotacionar, escalar ou deslocar a imagem de entrada, dependendo dos valores
dos coeficientes.
 x  a bi   x   ei 
wi     i  
 y   ci d i   y   f i 

Assim, matematicamente, um sistema de funções iterativas (IFS) em R² consiste de


uma coleção de transformações contrativas {wi : R2 →R2| i=1,...n} que mapeiam o plano R²
para si mesmo em cada iteração21.
Em quase todas as áreas do conhecimento existem aplicações vetoriais, e as artes
gráficas não fica fora desse contexto. A maior vantagem ao trabalhar com vetores em artes
gráficas é a sua excelente capacidade de expansão. Quando falamos em vetores podemos nos
referir a coordenadas que a figura assume ao se compor, e não do desenho e sua linha em si.
Vetores são largamente usados em quase todos os programas de composição: Photoshop,
After Effects, Flash, etc..
Poderíamos apresentar outras aplicações da análise vetorial, no entanto, para a
Educação Matemática, as aplicações servem para significar os conceitos matemáticos. Talvez
a maior grandiosidade dessa época em que trata esse capítulo foi o desenvolvimento estrutural

21
Abordagens mais detalhadas podem ser encontradas em CRUZ at al., 2008.
202

e formal da matemática, chegando a uma teoria geral que possibilitou aplicações nas mais
diversas áreas do conhecimento.

4.6 Interpretação dos vetores sob o ponto de vista da complementaridade

Representar elementos geométricos por elementos algébricos e elementos algébricos


por elementos geométricos é uma discussão que perdura desde os antigos gregos. Esse é o
problema que denominamos de álgebra geométrica.
Os gregos não tiveram êxito nessa busca porque a noção de congruência que eles
desenvolveram era apenas com relação ao módulo de um segmento. Dois segmentos de reta
seriam congruentes se tivessem o mesmo comprimento. Descartes também não logrou êxito
por pensar, nesse sentido, da mesma forma que os gregos. Grassmann teve mais sucesso
porque não admitiu apenas congruência como algo relativo à ideia de comprimento, mas
também a direção e sentido desse segmento, o que nos dias atuais se chama de vetor.
Sempre o que foi buscado foi um significado para os objetos matemáticos. Um
significado, portanto, encontrava consistência na relação estreita entre a álgebra (discreto) e a
geometria (contínuo). Em Euclides essa relação existia apenas como ideia, não podendo ser
representada concretamente devido ao fato de não haver um simbolismo algébrico adequado.
Com Viète, e posteriormente com Descartes, surge a relação da álgebra com a geometria.
Com Hamilton e Grassmann efetuou-se uma mudança radical na maneira de se encarar
a matemática, que fez com que ela ganhasse muito em abstração e aprofundasse sua separação
das ciências naturais. Com Grassmann é criada a geometria de um número qualquer de
dimensões. Essa geometria desenvolveu-se de forma abstrata, podendo tornar-se independente
da geometria física, que é a ciência que estuda o espaço físico.
Por outro lado, os quaternions são números algébricos que permitem uma
representação no espaço. A multiplicação representa, ao mesmo tempo, o produto escalar e o
produto vetorial. (DORIER, 1995, p.237).
O trabalho de Hamilton, que continha ideias sobre a multiplicação de números
complexos, coincide cronologicamente com a primeira edição do Ausdehnungslehre de
Grassmann em que foram abordados também produtos de vetores. Mas são trabalhos
independentes, na medida em que o primeiro expande de certa maneira as ideias e conceitos já
203

trabalhados por Buée, Möbius e Bellavitis22, e o segundo cria um sistema totalmente original
a partir de uma concepção filosófica da ciência e da matemática.
No prefácio do seu Lectures on Quaternions, de 1853, Hamilton reconhece a
importância e a independência da obra de Grassmann:

É conveniente afirmar aqui que uma espécie de multiplicação não comutativa para
linhas inclinadas (aüssere Multiplikation) aparece num trabalho notável e muito
original do Prof. H. Grassmann (Ausdehnungslehre, Leipzig, 1844) [...], e que
apesar de algumas coincidências, o sistema do Prof. Grassmann e o meu parecem ser
perfeitamente distintos e independentes um do outro em suas concepções, métodos e
resultados. Pelo menos, no tempo de sua publicação, o profundo e filosófico autor de
Ausdehnungslehre não teve em sua posse a teoria dos quaternions, a qual tinha
aparecido no ano anterior (1843). [...] (CROWE, 1994, p.87)

Ainda assim, os autores reconhecem que as obras possuem semelhanças semânticas. E,


numa carta de 2 de Fevereiro de 1853 a De Morgan, Hamilton diz:

[...] Seu produto externo (aüssere) eu penso ter entendido; [...] E mesmo seu produto
interno, publicado subseqüentemente ao externo (em 1847), eu posso aceitar
razoavelmente bem. De fato, o “produto interno” de Grassmann tem muita analogia
com a minha “parte escalar” de um quaternion, e o seu “produto externo” com a
minha “parte vetorial”. [...] (CROWE, 1994, p.86)

Grassmann faz a interpretação dos quaternions por meio da sua Teoria da Extensão,
num trabalho de 1877 cujo título é The Position of Hamiltonian Quaternions in Extension
Theory.

Os quaternions Hamiltonianos surgem a partir de uma das multiplicações que


apresentei no artigo Sur les diffèrents genres de multiplication no Crelle’s Journal
49, 136ff., e que estão associadas com os três grupos de equações: (1) e res = eser, (2)
eres + esser = 0, e12 = e22 = ... = en2 = 0, com e1, e2, ... , en denotando unidades
independentes, e er e es denotando quaisquer duas diferentes dessas unidades; de fato
os quaternions são conectados com o caso n = 3, cujas equações confinam-se ao
médio desses três grupos. Chamarei este tipo de multiplicação de multiplicação
central. [...] (GRASSMANN, 1995, p.525, apud, TÁBOAS, 2010, p. 34).

Em dois aspectos consideráveis podem se distinguir os trabalhos de Hamilton e


Grassmann: 1) a visão de espaço físico de Grassmann é mais completa, porque ele não se
limita à terceira dimensão, e; 2) a discussão filosófica que Grassmann imprime no seu
trabalho da matemática e de toda a ciência.
A filosofia de Grassmann é similar à filosofia de Kant no que diz respeito à
complementaridade entre intuição e conceito. Com relação a geometria do espaço, ele
escreve:
22
Veja, Táboas.
204

A posição da geometria relativamente à teoria das formas depende da relação entre a


percepção do espaço e o pensamento puro. Apesar de apenas agora dizermos que a
percepção se confronta com o pensamento acerca de alguma coisa
independentemente dada, não é, portanto, certo que a percepção do espaço emirja
somente da consideração dos objetos sólidos, ao contrário, a percepção fundamental
é transmitida a nós pela abertura dos nossos sentidos ao mundo sensível, o qual
adere a nós como o corpo à alma. (GRASSMANN, 1995, p.24-5, apud, TÁBOAS,
2010, p. 10).

Os axiomas abstratos da ciência geral das formas são meios para a investigação das
possibilidades de pensamento matemático conectado com a ideia de espaço. Essa ideia se
transformou em um método de interpretação do pensamento matemático.
A obra de Grassmann possibilita a aplicação da matemática nas mais diferentes áreas.
A intensionalidade está presente nos objetos matemáticos grasmanianos. Por exemplo, um
vetor é um objeto matemático que possui comprimento, direção e sentido. Até esse ponto tudo
bem, mas o que podemos tirar de proveito de uma definição como essa? Para responder a essa
questão devemos falar em extensionalidade. Extensionalidade é a interpretação do objeto e a
sua aplicação. Com a nova teoria, os conceitos deixaram de ser aplicados apenas a problemas
geométricos e passaram a sê-lo a problemas da física, dentre outras áreas, criando um campo
de atuação que reconhecemos como sendo a extensão do conceito. A complementaridade do
conceito com sua aplicação é, sem dúvida, o que facilita a geração de significado. A aplicação
nos diferentes ramos foi possível por meio apenas da realização da associação adequada entre
os elementos da teoria abstrata e os elementos do ramo escolhido.
A Matemática lida com objetos, mas esses objetos pertencem a algum modelo
existente no mundo físico, a um universo limitado de discurso, que muda de acordo com as
necessidades e interesses. E essa relação faz com que as intensões e extensões de termos
matemáticos tenham a mesma importância. Uma teoria matemática torna-se uma forma de
dupla construção, que consiste num sistema de axiomas, que representa a sintaxe da teoria, e
um conjunto de aplicações pretendidas ou modelos.
Uma teoria axiomatizada descreve classes de objetos, ao invés de objetos particulares;
por isso uma teoria formal possui várias aplicações. Nesse sentido a matemática torna-se a
propulsora de conhecimentos em outras áreas, ou seja, o desenvolvimento do conhecimento
matemático acarreta o desenvolvimento da ciência como um todo. Isso significa que o
desenvolvimento da matemática e das ciências naturais caminha lado a lado, e a matemática
torna-se a base da epistemologia, é uma ferramenta para gerar conhecimento nas mais
diferentes áreas. É a aplicação dos conceitos matemáticos em benefício da ciência.
205

“Pela ciência geral das formas (Formenlehre) entendemos um corpo de verdades que
se aplicam igualmente a todos os ramos da matemática, e que pressupõem apenas os conceitos
universais de igualdade e diferença, e de conexão e disjunção” (OTTE, 1989, p. 3).
A igualdade e a diferença são a base para a interpretação filosófica de Grassmann. O
igual está diretamente relacionado ao termo intensão. “A magnitude intensiva resulta, pois da
geração do igual” (GRASSMMANN, 1995, p. 27). Quando Otte chama atenção para a
igualdade A = B embutida entre ternos e sapatos, está se referindo a igualdade entre os
valores comerciais desses objetos, não a quantidade de objetos. No número existe a
uniformidade (o valor é o mesmo); é na sua igualdade que constitui a magnitude intensiva.
A extensão, por outro lado, surge do diferente. No exemplo, ternos e sapados são
elementos que formam o conjunto dos objetos que possuem o mesmo valor comercial. Assim,
diz Grassmmann (1947, p. 27 apud, Nascimento, 2013, p. 148), “magnitudes extensivas ou
extensão surge do distinto”. Grassmmann considera o segmento de reta um exemplo de
grandeza extensiva, porque os elementos que constitui o segmento inteiro são pontos, que
estão separados ou unidos, coisa que só a mente humana é capaz de imprimir sem, no entanto,
pensar nos pontos, mas na continuidade da linha. Um exemplo de grandeza intensiva que ele
aponta é um ponto possuidor de uma força; nesse caso, a força é o elemento, o objeto em
questão, não possui elemento separador, o que há é a intensidade, existe apenas a propriedade.

Na teoria do espaço, o ponto aparece como um elemento, o lugar de evolução ou


movimento como sua evolução contínua, e as várias posições do ponto no espaço
como seus diferentes estados. [... Ainda] Na teoria do espaço, a uniformidade de
direção é uma lei singular que governa as evoluções individuais; assim, o
deslocamento representa uma extensão elementar na teoria do espaço e a linha reta o
sistema todo. (GRASSMANN, 1995, p.29)

No caso da reta, aparecem elementos distintos representados por símbolos distintos,


por exemplo, ponto A, ponto B, etc.. Cada ponto recebe um nome em específico,
características de magnitudes extensivas. No caso da magnitude intensiva, os símbolos
representam toda a sua essência, por exemplo, força pode ser representada por um único
símbolo “F”.
Mas o caráter complementar aparece no seguinte trecho:

Também é claro que toda magnitude real pode ser considerada de ambas as
maneiras, como magnitude intensiva ou extensiva; também a reta é considerada
magnitude intensiva se não tomarmos em conta a maneira como estão dispostos seus
elementos e somente considerarmos a quantidade deles; analogamente se pode
pensar o ponto dotado de uma força como uma magnitude extensiva, para o qual é
suficiente imaginar a força abaixo da forma de uma reta. (GRASSMMANN, 1947,
p. 27, apud, NASCIMENTO, 2013, p. 148).
206

Grassmann, ao contrário de Descartes, se preocupa com o pensamento teórico, e


pensamento teórico se distancia de objetos sensíveis. Esse é mais um salto de
desenvolvimento ou de pensamento que há na história da matemática no sentido de Piaget.
No que diz a maneira como Hamilton e Grassmann chegaram ao conceito de vetor.
Ambos chegaram ao conceito de vetor por maneiras diferentes. Dizer a mesma coisa de
maneira diferente não é a mesma coisa no sentido psicológico. Não é a mesma coisa porque,
primeiramente, podemos gostar ou não de uma abordagem em relação a outra; em segundo
lugar, elas são amplamente incompatíveis psicologicamente quando queremos descobrir
novas leis.
Considerações Finais

A obra Os elementos de Euclides é constituída por definições, postulados, noções


comuns e proposições. As proposições são declarações que são justificadas por meio de uma
argumentação lógica e coerente, explicitada em linguagem retórica.
Para “provar” a veracidade de cada uma das proposições, Euclides tomou como ponto
de partida cinco postulados, definidos em termos de ideias que eram consideradas “óbvias”.
Os postulados estão intimamente relacionados com instrumentos que se utilizavam para
construir as figuras geométricas, a saber, régua e compasso.
A régua é um instrumento utilizado, essencialmente, para traçar retas, enquanto que o
compasso é usado para desenhar circunferências, fazendo com que a geometria euclidiana
seja, necessariamente, uma geometria de construção de figuras.
A maioria das proposições dos livros de Euclides faz apelo à intuição. Um dos nossos
exemplos faz referência à proposição I do livro I, que pede para “Construir um triângulo
equilátero, dado um segmento de reta”. Para sua solução, além do conceito de triângulo, é
necessário o conceito de círculo que possui características diferentes do conceito de triângulo,
exigindo do sujeito apelo intuitivo.
É exatamente nesse cenário, de conceitos e intuições, que a geometria euclidiana está
inserida. A complementaridade em Os Elementos existe entre intuições e conceitos, não
havendo complementaridade entre os campos da matemática. Aritmética e geometria eram
considerados campos matemáticos distintos e sem relação. Quanto à álgebra, não havia
complementaridade com os campos já citados porque não existia um simbolismo algébrico
apropriado que pudesse representar elementos geométricos e aritméticos e suas relações.
A única forma de representar uma reta, na época de Euclides, era por meio do
desenho. O objeto matemático, nessa conjectura, tinha relação estreita com os objetos da
realidade física e a ação de representar essa realidade significava, de antemão, desenhá-la em
pensamento.
O desenho fazia parte da construção da solução do problema, porque era um
mecanismo que auxiliava na organização do pensamento, e não apenas a solução
propriamente dita. Esse papel é atualmente atribuído à Álgebra. Nesse aspecto, o processo de
construção da figura é importante, não apenas a figura construída.
208

As descrições, ou sequências lógicas, ou ainda, argumentos lógicos, são comparáveis


ao simbolismo algébrico, não no sentido de símbolo, mas no sentido de realizar o mesmo
papel, ou seja, transmitir uma ideia. Esse entendimento proporcionou vários debates entre
matemáticos e não matemáticos, como é o caso de Unguru e Waerden. O primeiro
defendendo a ideia de que não existe simbolismo algébrico em Os Elementos de Euclides e o
segundo afirmando que, principalmente o segundo livro, era constituído por um simbolismo
algébrico implícito.
A argumentação lógica e a figura são complementares na construção da ideia e prova
das proposições. São as formas de representações que existiam na época, e essas formas
diferentes de representações formam o que facilita o entendimento.
Para construir o triângulo equilátero da proposição I de Os Elementos somos levados à
aplicação do conceito de círculo. Se tomarmos a extensão como a classe de objetos em que
um conceito pode ser aplicado, podemos afirmar que existe complementaridade entre intensão
(conceito) e extensão (aplicação) na obra de Euclides.
O princípio da complementaridade nos chama atenção para o aspecto relacional entre
conceitos e pensamentos. Apenas os conceitos de círculo e reta, aliado ao aspecto intuitivo,
não foram suficiente para resolver partes dos problemas geométricos da antiguidade. A
duplicação do cubo, por exemplo, não era passível de solução com as ferramentas até então
existentes, era preciso criar novos meios, novos instrumentos, novas complementaridades para
que se pudesse expressar uma resposta plausível. Esta resposta veio com o surgimento do
simbolismo algébrico, primeiramente com Viète e depois com Descartes.
Para o desenvolvimento da matemática, a interação da álgebra com a geometria foi de
fundamental importância, pois possibilitou o surgimento de novos métodos de solução de
problemas e novos instrumentos foram utilizados. Problemas geométricos antigos, como a
duplicação do cubo, foram transformados em linguagem algébrica, por meio do compasso
proporcional de Descartes. O compasso permitia a inserção de meio proporcionais
ocasionando o surgimento de equações que correspondiam às curvas geradas pelo
instrumento. A interação entre esses dois campos do conhecimento matemático é, talvez, o
melhor exemplo de complementaridade na matemática.
A geometria de Euclides constrói figuras geométricas planas, a geometria de Descartes
constrói curvas no plano. Em Descartes, a intersecção das curvas dava a solução de problemas
geométricos, como é o caso da duplicação do cubo. Essa é uma das principais diferenças entre
a geometria euclidiana e cartesiana.
209

O simbolismo algébrico permitiu o desenvolvimento da geometria. A álgebra


possibilitou representar leis da natureza por meio de fórmulas, transformando a mecânica em
uma ciência. A relação entre o objeto e sua representação em linguagem matemática, por
meio do simbolismo algébrico, expressa uma mudança de concepção, em que o objeto e o
símbolo não são apenas uma dualidade; nos séculos XVI e XVII, com Viète e Descartes,
estava presente a atividade, a sintaxe (no sentido de combinar signos com bases em regras
determináveis) e a semântica (que analisa o nexo entre símbolo e seu significado), cujas
relações acontecem de forma dinâmica e complementar.
“A matemática cartesiana não é algébrica em nosso sentido, não é ‘uma ciência da
estrutura pura’, mas é baseada em uma interação do número com a visualização geométrica.
Essa dualidade é, em nossa visão, a base de uma compreensão apropriada do aspecto
complementar da álgebra” (OTTE, 2003b, p. 43).
A matemática de Descartes era subordinada aos apelos dos compassos proporcionais.
O conceito fundamental da matemática, o conceito funcional, aparece de forma
explicitamente analítica com Euler. O conceito de função resolve o paradoxo de Zenão
justamente porque ele comporta o aspecto discreto e o contínuo. Uma função, ao mesmo
tempo em que indica um resultado particular, aporta a generalidade, a continuidade. Por meio
da complementaridade entre contínuo e discreto surgiram respostas para vários enigmas da
matemática, como foi o caso do paradoxo de Zenão.
No século XIX, Hamilton e Grassmann consolidam o conceito de vetor. Hamilton dá
significado geométrico aos números complexos expandindo o conceito de vetores até a
terceira dimensão. Grassmann estende esse conceito para n dimensões, ampliando as
possibilidades de aplicação. Aplicação e conceito foram um dos principais aspectos
complementares dessa época.
O conceito geométrico de vetores é uma classe de segmentos de reta orientados, que
possuem a mesma intensidade, mesma direção e mesmo sentido. Entretanto, a ideia vetorial
está implícita em diversos setores do conhecimento, principalmente aos relacionados aos
fenômenos físicos, como força, velocidades, campo elétrico, etc..
Grassmann acreditava ter encontrado uma forma universal que permitia à geometria
ser tratada da mesma forma como a álgebra. Nesse sentido, dois tipos de geometria surgiram:
a geometria do espaço e a geometria estritamente formal. Esta última tinha características de
se libertar da ideia de espaço tridimensional que estava intrínseca na geometria euclidiana.
210

Grassmann imprimiu generalidade à geometria euclidiana sem, no entanto, utilizar a


representação simbólica de Descartes. Ele pretendia com isso ampliar os limites do
desenvolvimento das ideias matemáticas.
A teoria das formas era um ramo da matemática, cuja aplicação se dava no espaço
euclidiano tridimensional. No entanto, a característica de sua obra possuía aspecto n-
dimensional.
Com a ampla aplicação da teoria vetorial, o significado matemático se inverte. Na
geometria euclidiana, o significado dos objetos matemáticos era a construção de conceitos,
mas, com o surgimento da teoria vetorial o significado passou a ser a aplicação desses
conceitos.
A separação da matemática pura de suas aplicações mostra como esses dois aspectos
dependem um do outro. A estrutura teórica representada pela matemática pura fornece as
condições necessárias para a utilização de conceitos na resolução de um problema. Nesses
termos, teoria e prática possui uma relação complementar.
Em seu aspecto histórico, cada época lidou com o que há de melhor em ferramentas
matemáticas disponíveis. Na geometria euclidiana, o havia eram a régua e compasso para
resolver problemas. Nessa época a intuição e os conceitos são os pilares do desenvolvimento
matemático. Na época de Descartes, os instrumentos de construção são reinventados e a
intuição é ofuscada pelo estabelecimento da álgebra. Entretanto, foi a complementaridade da
álgebra com a geometria que possibilitou novos avanços na matemática, no século XIX,
quando a construção de teorias gerais foi determinante, permitindo que a matemática pudesse
ser usada para resolver problemas nas mais diversas áreas do conhecimento. Este século foi
marcado pela complementaridade entre os conceitos matemáticos e suas aplicações.
Essas fases de desenvolvimento histórico da matemática faz-nos refletir sobre as
questões relativas à Educação Matemática. Primeiramente com relação à intuição.
A intuição é uma característica psicológica de grande valor para o ensino e
aprendizagem da matemática. Devemos elaborar atividades que estimulem o pensamento, que
desafiem o aluno, de modo que ele perceba os aspectos relacionais entre os objetos da
matemática. Essa relação marca a complementaridade entre sujeito e objeto. Para que um
conceito seja instituído, a relação entre sujeito e objeto, mediada pela sua representação, é
estabelecida pela atividade do sujeito, cujo significado, levando em consideração a
perspectiva de Pierce, é o seu interpretante.
Para Kant, intuição e conceito são a base de todo o conhecimento. “Intuição e
conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem
211

conceitos sem intuição que de qualquer modo lhes corresponda, nem uma intuição sem
conceitos podem dar um conhecimento” (KANT, 2001, B75).
O conhecimento matemático é proporcionado pela relação que o sujeito possui com o
objeto matemático, e esse processo é mediado pelas atividades mentais. Pressupõe-se que as
peças fundamentais do conhecimento são: o sujeito, o objeto e as relações entre eles,
estabelecidas pela atividade do sujeito.
Nesse sentido, o pensamento de Otte coaduna com a teoria de abstração reflexiva de
Jean Piaget que afirma que o conhecimento é dado por meio da relação entre o sujeito e o
objeto dado pelas ações do sujeito sobre os objetos, não dos objetos propriamente ditos. O
conceito de abstração reflexiva de Piaget mostra que o conhecimento é dado por meio da
relação entre sujeito e objeto intermediado pela atividade e afirma que: “certos resultados
gerais da matemática são psicologicamente explicáveis com base na atividade do sujeito”
(BETH; PIAGET, 1974, p. 01). Ou seja, o pensamento puro, a intuição, são particularidades
que podem justificar a descoberta e a aprendizagem de conceitos matemáticos.
Em Os Elementos não há abstração reflexiva no sentido de Piaget. A geometria era
vista como algo sensível ou pelo menos tinha similitude com os objetos sensíveis. Havia um
obstáculo epistemológico e metodológico caracterizado pela restrição a régua e ao compasso,
fazendo com que a geometria permanecesse em um plano inferior. Em termos da teoria de
Piaget, podemos dizer que a metodologia utilizada por Viète e Descartes para resolver
problemas geométricos está em um plano superior, onde reina o aspecto algébrico. Isso não
quer dizer que a álgebra seja mais importante do que a geometria, mas dizer que está em um
plano superior significa permitir realizar novas relações, na maioria das vezes, relações
abstratas sem referência ao objeto que a gerou.
Essa característica do desenvolvimento histórico reflete no âmbito da Educação
Matemática. É necessário, para o avanço do conhecimento, que o sujeito abandone a
experiência física e comece a atuar no campo da experiência lógico-matemática, fazendo
relações entre os elementos da própria matemática. Essa é uma condição necessária para que o
sujeito avance no desenvolvimento do conhecimento matemático.
De Euclides a Descartes passaram-se mais de vinte séculos, um tempo considerável
para diminuir o apego ao objeto e pensar nas relações entre os objetos. A geometria euclidiana
é tangível, enquanto a álgebra se distancia do objeto que a produz.
Esse aspecto ocorre de forma similar no campo do saber. Os primeiros conceitos
matemáticos ocorrem naturalmente a partir de elementos promovidos pela experiência
212

empírica. Só a partir de certo estágio de amadurecimento cognitivo é possível adquirir um


pensamento lógico matemático, resultado de vários processos de abstração reflexiva.
A transição da experiência empírica para a experiência lógico-matemática é um
momento esmero, porque é nesse instante que ocorre a inserção do pensamento algébrico no
ensino da matemática e assim surgem questões como: qual o significado dos termos
algébricos? O que significa a expressão x2?
Esse é um momento que deve ser tratado com muita atenção. O grande espaço de
tempo de Euclides a Descartes nos mostra a sutileza que é passar das representações
geométricas e aritméticas para a representação algébrica.
O estudo semiótico nos ajuda a entender essa transição, tendo em vista que a mente
pode ser afetada pela visualização direta dos objetos ou por meio das suas representações, ou
seja, por meio de signos, e os objetos da matemática são definidos pelas suas representações.
Entretanto, a forma de representá-los depende de nossos objetivos.
Nesse sentido, é importante e necessária a complementaridade da geometria com a
álgebra e é nessa interação que ocorre o significado dos termos algébricos.
No contexto da geometria euclidiana, a expressão x2 é interpretada como sendo a área
de um quadrado de lado x. Essa relação é capaz de transmitir segurança e significado dos
objetos algébricos ao aluno. A relação da geometria com a álgebra permite que o aluno se
convença do desenvolvimento de (a + b)2. Por que o desenvolvimento da expressão (a + b)2
não pode ser apenas a2 + b2, como é costumeiro encontrar nos desenvolvimentos feitos por
alunos do ensino fundamental? A resposta a essa questão pode ser encontrada com o auxílio
da representação geométrica.
Não é suficiente introduzir a álgebra como determinante de termos desconhecidos. O x
cartesiano não possui apenas o significado aritmético, no sentido de ocupar o lugar de um
valor numérico. O x cartesiano pode significar o comprimento de um segmento de reta, do
ponto de vista da geometria ordinária. O ensino de matemática é tendencioso à explorar
apenas o aspecto aritmético, deixando a desejar o aspecto geométrico, desconsiderando que a
matemática foi, por um grande período de tempo, essencialmente geométrica.
Na Matemática a complementaridade está substancialmente ligada à intensão e à
extensão dos objetos matemáticos. No século XIX o significado desses termos passou a ser
definido pelo conceito e pela aplicação desse conceito. No ensino, encontramos significado
para os estudos formais dos conceitos matemáticos a partir do momento em que esses se
tornam úteis.
213

A teoria de Análise Vetorial é exemplo de aplicação. Desde uma simples aplicação de


rotação de um vetor a aplicações mais elaboradas, como as do princípio de aerodinâmica,
justificam o estudo da teoria. Uma questão recorrente no ensino da matemática é “o porquê
tenho que estudar determinado conteúdo?”. Uma resposta que a maioria dos alunos gostaria
de ouvir é que devo aprender o conceito para resolver algum tipo de problema, ou seja, para
aplicar tal conceito.
Dessa forma, nossos estudos apontaram para as seguintes complementaridades
fundamentais para o ensino da matemática: intuição e conceitos – geometria e álgebra –
conceitos e aplicações. Essas complementaridades são essenciais para a Educação
Matemática.
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