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DOI: 10.1590/0103-1104202213320
RESUMO O objetivo deste trabalho foi analisar a produção científica sobre o Movimento da Reforma
Sanitária Brasileira, buscando caracterizar os sujeitos envolvidos e as estratégias adotadas. Para isso, foi
efetuada uma revisão sistemática de artigos indexados no Portal de periódicos da Capes, na SciELO e na
Biblioteca Virtual em Saúde. Os resultados evidenciam a diversidade de olhares acerca dos sujeitos indi-
viduais e coletivos que são considerados como integrantes do ‘movimento sanitário’. O Centro Brasileiro
de Estudos de Saúde (Cebes) é o ator mais analisado, mas algumas produções direcionam atenção espe-
cífica a outras organizações. O protagonismo de cada um desses sujeitos varia em cada artigo e depende
também do momento histórico analisado. No que se refere às estratégias, destacam-se tanto a ocupação
de espaços no aparelho estatal quanto a produção e divulgação de propostas relacionadas com a defesa
do direito universal à saúde e com os diversos aspectos da construção do Sistema Único de Saúde. Além
disso, foi identificada uma lacuna na produção científica analisada, porquanto os autores dedicam pouca
atenção à caracterização dos sujeitos que compõem o ‘movimento’, aspecto essencial para compreender
os conflitos e interesses envolvidos na luta política em torno do processo da reforma sanitária.
ABSTRACT This article aims to analyze the scientific production on the Brazilian Health Sector Reform
Movement, seeking to characterize the actors involved and the strategies adopted. To that end, a systematic
review of articles indexed in the Capes Journal Portal, in SciELO, and in the Virtual Health Library was
carried out. The results show the diversity of views on actors that are considered members of the ‘health
movement’. The Brazilian Center for Health Studies (Cebes) is the most analyzed actor, but some productions
draw specific attention to other organizations. The protagonism of each of these actors varies in each article
and also depends on the historical moment analyzed. In relation to the strategies, both the occupation of
1 UniversidadeFederal da spaces in the state apparatus and the production and dissemination of proposals related to the defense of the
Bahia (UFBA), Instituto universal right to health, and the various aspects of the construction of the Unified Health System stand out.
de Saúde Coletiva (ISC) – In addition, a gap in the analyzed scientific production was identified, as the authors devote little attention
Salvador (BA), Brasil.
jhenrique.av@gmail.com to the characterization of the actors that constitute the ‘movement’, an essential aspect to understand the
conflicts and interests involved in the political struggle around the health reform process.
2 Universidade Federal da
Bahia (UFBA), Instituto
de Humanidades, Artes e KEYWORDS Political activism. Health care reform. Policy, health.
Ciências Professor Milton
Santos (IHAC) – Salvador
(BA), Brasil.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. 133, P. 534-550, abr-jun 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Reforma Sanitária Brasileira: uma revisão sobre os sujeitos políticos e as estratégias de ação 535
delas diz respeito à diversidade de concep- que levou à adoção do projeto universalista
ções acerca do movimento sanitário. Para de direito à saúde [...] foi realizada a partir do
Cohn13(123), “movimento significa processo, aparelho de Estado e não da mobilização da
fenômeno dinâmico e inacabado”. Em outro sociedade civil ou do movimento social.
artigo, mas com abordagem similar, a autora
define o movimento sanitário brasileiro en- Essas diferenças na abordagem do movi-
quanto “processo político e social”33(225). Já mento indicam distintas possibilidades de
Paim19-21,41 opta por distinguir o “processo” caracterização dos sujeitos da reforma, seja
e o “movimento” e afirma que o movimento identificando determinadas categorias pro-
sanitário é “um conjunto articulado de práti- fissionais, como ‘os médicos sanitaristas’, seja
cas”41(33) que teria mobilizado “um bloco de apontando as ‘forças políticas, ideológicas e
forças políticas, ideológicas e sociais”41(291). sociais’, que se organizaram em entidades,
Com outra abordagem, Santos38(236) considera associações e outras, ou, ainda, privilegiando
que o “conjunto de atores sociais e institucio- gestores e técnicos inseridos em instituições
nais [...] ficou denominado como [...] MRSB”. estatais. Dessa maneira, pode-se questionar
Outro aspecto interessante é a divergência se o que caracteriza a maneira como esse
observada quanto ao momento da emergên- movimento é abordado não seria, exatamen-
cia do movimento sanitário. A maioria dos te, a confluência desses diferentes sujeitos,
autores situa o surgimento do movimento em mobilizados em função da dinâmica política,
meados dos anos 1970, com a criação do Centro institucional e societária, em distintas conjun-
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), porém, turas, como trataremos de evidenciar a seguir.
o artigo de Falleti24(353-354) desloca o surgi-
mento do “movimento sanitário reformista” Os sujeitos da reforma sanitária
para a década de 1960, “durante o governo de
inclinação esquerdista do Presidente Goulart”, Até a primeira metade dos anos 1980, a
argumentando que a “criação de departamen- atenção das análises volta-se prioritariamente
tos de medicina preventiva”, local em que para sujeitos como o Cebes e a Associação
“médicos sanitaristas passaram a ensinar”, já Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Nos
evidenciaria um processo de institucionaliza- anos seguintes, apontam-se a criação da
ção desse movimento. Essa divergência reforça Plenária de Entidades de saúde e o protago-
a importância de aprofundar a concepção de nismo do Conselho Nacional de Secretários
movimento, afinal, é possível identificar em de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de
artigos como o de Falleti24 indícios de ações Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
entre o final dos anos 1960 e início de 1970 que Entre os anos 2005 e 2006, há a refundação
contribuíram para desencadear a RSB, ou seja, do Cebes31 e o surgimento do Fórum da RSB
um processo já em curso. Por outro lado, ao (FRSB)19-21, que seria uma nova tentativa de
conceituar movimento enquanto um conjunto formalizar uma articulação entre as entidades
de sujeitos políticos, percebe-se a busca por que defendem o projeto da reforma. No início
identificar o momento de fundação de uma da década seguinte, surge a Frente Nacional
entidade que sistematiza as principais ideias Contra a Privatização da Saúde (FNCPS)
e propostas para promover a RSB. com propósito similar, mas agregando outras
Outra questão diz respeito ao ‘lugar’ de organizações27.
emergência do movimento, pois, para autores Percebe-se, assim, que a composição do mo-
como Escorel14, Fleury22 e Paim20, teria se vimento sanitário se alterou ao longo do tempo,
constituído um movimento social que teve o exigindo que a análise dos artigos levasse em
Estado como um de seus espaços de atuação. conta o momento em que foram elaborados e
Já para Costa29(810), a mobilização política o contexto a que se referiam43. Desse modo,
foi possível identificar uma diversidade de todos os sujeitos atuantes em cada momento
sujeitos coletivos que teriam contribuído para histórico, mas se propõe a demonstrar quais
o processo da RSB (quadro 1). Cabe destacar organizações receberam atenção por parte
que nossa análise não necessariamente revela dos autores em cada período.
Conforme evidenciado no quadro 1, entre o também sido citados com frequência, houve
momento da emergência do MRSB e a década de pouco aprofundamento analítico sobre eles.
1980, os autores priorizam citar a participação de Ao abordar os anos 1970 e 1980, artigos
organizações e instituições que reuniam pesqui- como os de Cohn13,18,33 e Menicucci e Brasil23
sadores, estudantes e profissionais de saúde, em acrescentam a participação de movimentos po-
especial, o Cebes, a Abrasco e os Departamentos pulares, sindicatos e igreja, mas sem apresentar
de Medicina Preventiva (DMP). Merece des- muitos detalhes acerca de sua atuação. No caso
taque o fato de o Cebes ter sido o sujeito mais dos sindicados, tratados como exemplos de
mencionado nos estudos (21) e sobre o qual as sujeitos que contribuíram para o processo da
análises são mais detalhadas. Por outro lado, RSB, houve atenção especial dedicada a eles
apesar de a Abrasco (15) e de os DMP (13) terem nos estudos de Lacaz37 e Santos38.
Eixos Ações
1. Ações preparatórias – ‘constituição do(s) sujeito(s)’22,31
– ‘autolegitimação’14,22,31
– qualificação do movimento28
2. Luta pela democracia e sua pre- – luta pela redemocratização11,14,16,18,19,21,23
servação – aprimoramento das instituições democráticas25
3. Produção de conhecimentos – emergência da saúde coletiva11,19,21,23,28,32
– estudos na área da saúde14,25
– análises sobre o sistema e a situação de saúde18
4. Elaboração de propostas e expe- – formulação de propostas para o sistema de saúde11-14,19,21,23-25,27,29,32
rimentação – projetos experimentais12,13,17,23,29
5. Difusão de ideias – aprofundamento da consciência sanitária11,12,19,22,24,31
– circulação de conhecimentos científicos13,23,30,31,37
– difusão de ideias nas entidades profissionais14
– produção e circulação de documentos políticos19,20,25,27-31
– ações de formação e assessoria junto a organizações populares12,14,25
– participação em eventos e debates25,30,31
– assessoria a parlamentares e difusão de propostas no âmbito do legislati-
vo11,12,14,19,23,24,28,31
– divulgação de experiências exitosas25,29
– atos públicos27,34
6. Articulações e ocupações de – articulação com movimentos sociais e outras organizações popula-
espaço na sociedade civil res11,14,16-18,23,25,30
– conquista da direção de entidades como a AMB em 198123
7. Lutas por dentro do Estado – ocupação de espaços estratégicos no aparelho governamen-
tal11-13,15-19,22-24,28,29,33,35,36
– atuação em conselhos e conferências de saúde16,17,19,24-26,28,31,32
– contribuir para a eleição de deputados, prefeitos e vereadores23
– articulação com parlamentares15,17,19,31
– ações focadas na constituinte e na construção da lei orgânica da saú-
de15,16,18,19,22,23,29,32
– atuação no judiciário27
8. Lutas no âmbito internacional – ocupação de espaços na Opas24
– articulação com grupos internacionais como a Alames e participação em
seus congressos31
– articulação com personalidades internacionais como Giovanni Berlinguer12,13
– convênios de secretarias de saúde com organismos internacionais12
Fonte: elaboração própria.
FRSB e pela FNCPS e comenta sobre atos em de produção capitalista. Nota-se, assim, pouca
defesa da Emenda Constitucional 29 e uma atenção direcionada para examinar ações di-
atuação por parte da Frente com propósito retamente relacionadas ao que seria um eixo
de pressionar o judiciário para evitar a “im- agregador de embates na ‘esfera econômica’40,
plementação das Organizações Sociais como situação que pode evidenciar um direciona-
novo modelo de gestão nos serviços públicos mento estratégico do ‘movimento’ ou uma
de saúde”27(164). lacuna nas análises.
No caso específico do Cebes, após sua ‘refun- Inexistem também elementos que eviden-
dação’, Santos e Teixeira31(139-140) evidenciam ciem o apoio a uma luta voltada para a ‘tomada
ações que remetem ao início da trajetória do de poder’ do Estado ou para seu enfraqueci-
movimento sanitário, tais como: “um processo mento1,6,40. Ao analisar a maneira como são
de fortalecimento da entidade e de reagrupa- apresentadas as estratégias direcionadas ao
mento dos ‘cebianos’, intelectuais e represen- âmbito estatal, são identificadas atuações
tantes de movimentos sociais organizados, por que visam: 1) forçar o Estado a incorporar
meio da realização de uma série de seminários” as demandas dos setores populares a partir
(constituição de sujeitos); a decisão por manter de pressões externas; ou 2) ocupar espaços
a revista Saúde em Debate e de outros meios no aparelho estatal e difundir ideias em suas
para ‘difundir ideias’; e “o retorno às atividades diversas instâncias com objetivo de promover
propriamente políticas [...] com a participação reformas parciais a partir de ações internas,
do Centro no VIII Simpósio sobre Política de ‘pelo alto’.
Saúde da Câmara dos Deputados, ocorrido em Cabe destacar que a atuação nos conselhos
junho de 2005”31(139-140) e as lutas para ampliar e conferências de saúde também tem como
o orçamento federal da saúde (atuação com principal propósito intervir sobre as políti-
parlamentares). cas setoriais. Foram instâncias criadas para
Ao considerar as estratégias explicitadas agregar as organizações populares na luta
ao longo de toda a trajetória do ‘movimento no interior do Estado, sem necessariamente
sanitário’, merece destaque o fato de não terem questionar sua existência. Além disso, elas
sido mencionadas ações focadas em inter- estão instituídas sob as regras e lógicas estatais,
vir diretamente sobre o modo de produção tendo seu foco direcionado para acompanhar
(base econômica) em uma perspectiva que e propor políticas públicas. O sucesso desses
extrapolasse o setor saúde40. Essa dimensão espaços de ‘controle social’ depende ainda do
apareceu na construção do marco teórico de comprometimento de quem está na gestão
alguns artigos, mas não como parte prioritária dos serviços de saúde com a materialização
da atuação do movimento. Foi possível iden- daquilo que é decidido nos conselhos e nas
tificar alguns autores – entre eles, Paim20(629) conferências de saúde.
– que apontam a necessidade de caminhar em Em seu artigo de 1989, Cohn13(134) já ques-
direção ao socialismo diante da impossibilida- tionava as possíveis implicações de priorizar a
de de “compatibilizar a plena cidadania polí- ocupação de espaços no aparelho estatal já que
tica e social com o capitalismo”. Contudo, não o sucesso dessa estratégia estaria submetido “às
aparecem ações protagonizadas pelos sujeitos flutuações da conjuntura política”. Em artigo
da RSB voltadas, por exemplo, para estimular mais recente, a autora defende que houve um
ou promover a socialização radical dos meios esgotamento dessa proposta, apontando para
de produção. Segundo Pereira15, teria apenas o fato de os “reformistas sanitários terem sido
sido lançada a proposta de “estatização pro- alijados dos postos estratégicos de mando do
gressiva do sistema”, mas limitada aos serviços Ministério da Saúde e de seus similares nos
de saúde e sem ser abordada como uma ação níveis estadual e municipal”33(234). Essa visão
que poderia contribuir para superar o modo leva a autora a indicar que há necessidade de o
MRSB direcionar mais esforços para mobilizar pelos autores ao longo da trajetória do ‘mo-
a sociedade. Além dela, Dantas36(153) afirma vimento sanitário’, nos artigos, são citadas
ser “tarefa do movimento sanitário sair em apenas algumas possíveis novas configurações
busca da classe que sugere ‘ausente’ fora do adotadas no intuito de promover a articulação
estreito campo da saúde e da institucionalida- daqueles que defendem o projeto da RSB. Hoje,
de do Estado e da academia”. Assim também existem, por exemplo, o FRSB e a FNCPS, e
o faz Santos38(244), ao defender “que as lutas ambos podem ter surgido como uma tentativa
extrapolem as fronteiras do setor saúde”, e de dar coesão aos sujeitos coletivos que lutam
Lacaz37(128), que propõe “reestabelecer uma pelo projeto da RSB. No entanto, mesmo alguns
articulação mais ampla na sociedade civil or- artigos evidenciando o fato de a formação do
ganizada” e “encetar uma luta anticapitalista, ‘Fórum’ e da ‘Frente’ ter se dado por meio
para além da democracia liberal”. da aproximação de sujeitos coletivos sem es-
Percebe-se, portanto, que, à exceção das tabelecer relações de hierarquia entre eles,
citações que indicam atuação do ‘movimen- características das ‘organizações federadas’,
to sanitário’ nas lutas pela redemocratização não aparecem elementos que evidenciem a
(1970-1980), não foram elencadas outras ações maneira como eles interagem e se relacio-
que extrapolam o âmbito setorial. Da maneira nam. Não são analisadas, portanto, as maneiras
como o ‘movimento da RSB’ é analisado, per- como os atores envolvidos com o processo
cebe-se um claro direcionamento para uma da RSB se subdividem organizacionalmente,
transformação limitada à dimensão da ‘ma- como são tomadas as decisões estratégicas ou
cropolítica de saúde’ (reforma do sistema de como são definidas as funções de cada sujeito
saúde). Nessa situação, o objetivo é setorial e individual e coletivo.
não se direciona para uma proposta de grande O silêncio sobre essas dimensões é um dos
transformação. Já a partir da década de 1990, o fatores que limita a possibilidade de construir
foco volta-se para a institucionalização do SUS convergências acerca daqueles que podem ser
e para as ‘micropolíticas setoriais’ (políticas considerados como protagonistas no ‘movi-
específicas de saúde), situação que confirmaria mento sanitário’. Isso leva a uma situação em
a ausência de um enfrentamento mais amplo. que cada autor pode analisar um ‘movimento’
Ou seja, as ações privilegiadas pelos artigos diferente, mas utilizando a mesma nomenclatu-
não apontam que o movimento teria se voltado ra (MRSB). Ou seja, seriam diferentes ‘objetos’
para o macrossocial, tendo sua atuação se di- de estudo sob análise, condição que interfere na
recionado ao microssetorial. comparação dos resultados dos artigos.
Em termos organizacionais, destacam-se
Breves comentários sobre os basicamente os comentários de Escorel14(55)
aspectos organizacionais acerca dos núcleos do Cebes, já que ela cita
o fato de ser priorizada a articulação com
Nenhum dos artigos aprofunda elementos sindicatos no caso de São Paulo, enquanto
relacionados com a forma de organização do o grupo de Brasília teria se ‘especializado’
‘movimento sanitário’ ou dos sujeitos que o em uma atuação no Legislativo, de maneira a
compõem. Alguns autores comentam sobre prestar “assessoria [...] a parlamentares pro-
sua origem ter se dado a partir da atuação de gressistas membros da Comissão de Saúde”.
sujeitos provenientes das instituições acadê- Isso evidencia um formato organizacional com
micas ou apontam elementos que evidenciam subdivisão de núcleos com atuações distin-
a influência partidária na maneira de se orga- tas, integrando um mesmo sujeito coletivo.
nizar e nas estratégias adotadas. A autora não deixa claro se essas diferenças
Apesar dos diferentes formatos de orga- decorrem da autonomia de cada núcleo ou
nização dos sujeitos políticos examinados se era uma diretriz da diretoria da entidade a
definição dessas prioridades. Isso coloca em anarquistas6, essa estratégia é incoerente com o
questão se o Cebes, tomado como exemplo, é propósito de construir uma sociedade livre da
uma organização em que a diretoria representa opressão e da exploração. Afinal, assumiria a
uma ‘vanguarda’ em relação aos núcleos ou se posição de que é preciso ter o controle do Estado
esses núcleos assumem um caráter autôno- para impor aos demais aquilo que se percebe
mo de modo a se aproximar mais da lógica de como ‘adequado’ pelas ‘forças políticas’ que o
uma ‘organização federada’, sem centralizar o ‘ocupam’. Ou seja, a obtenção da ‘hegemonia’
poder de decisão. A exposição desse aspecto no âmbito estatal coloca o sujeito na condição
contribuiria para o avanço nas análises tanto de opressor com pleno poder sobre todo seu
em relação à disposição organizacional quanto aparato coercitivo, que pode ser usado em qual-
ao processo decisório. quer situação para garantir a implementação do
Além desses elementos apresentados, co- projeto político defendido. Para alguns autores
mentários sobre a forma de organização apa- que se apoiam no marxismo, não há incoerência
recem de maneira secundarizada, em especial, nesse caso, e mudanças graduais poderiam ser
em momentos que os autores citam a relação construídas por meio da ‘guerra de trincheiras’
do MRSB com os partidos ou delimitam quem no interior do Estado se a organização não se
faz parte de determinados grupos, mas não limitar ao reformismo1,40.
existem menções sobre como se dava a inte- Essas diferenças impactam na possibilidade
ração entre os sujeitos explicitados. de construção de articulações mais amplas que
não dependem apenas da existência de propó-
sitos similares. A questão central aqui é que,
Discussão e conclusões mesmo para grupos com propósito aparente-
mente convergente, é possível que as análises
A partir dessa sistematização, identifica-se que de cada sujeito indiquem que determinados
os fatos privilegiados pelos autores e os prota- modos de agir e de se organizar não contri-
gonistas da RSB, mesmo em períodos similares, buam para alcançar o objetivo pretendido.
não são os mesmos, o que impacta nas inter- Ao contrário, podem impedir que isso ocorra.
pretações do processo. Em comum nos artigos, Além disso, sem necessariamente divergir
percebe-se a pouca atenção para examinar as de algumas de suas referências marxistas44,45,
dinâmicas organizacionais do ‘movimento’. o ‘movimento sanitário’ contribuiu para for-
Diante disso, é importante questionar tanto talecer âmbitos que centralizavam as decisões
os limites dos quadros teóricos adotados para sobre a saúde, atuando, inclusive, para unifi-
estudá-lo quanto o silenciamento a respeito car as ações controladas pelos Ministérios da
de dimensões que poderiam contribuir para Previdência e da Saúde15. Assim, não atuou
aprofundar elementos pouco abordados acerca no sentido de descentralização do poder de
do(s) sujeito(s) pesquisado(s). decisão na lógica autogestionária6,40, seu foco
A respeito do âmbito estratégico, as análises foi centralizar a gestão da saúde no Estado, já
foram construídas com base em diferentes pers- que, mesmo ao considerar o processo de muni-
pectivas, e isso repercute em como é examinada cipalização e o ‘controle social’, essas dinâmicas
a coerência entre os métodos adotados pelos se constituíram dentro dos limites estabelecidos
diversos sujeitos e seus propósitos. Se tomamos pelas instituições estatais, restringindo a possi-
dois referenciais teóricos distintos para analisar bilidade de a população exercer sua autonomia
uma das ações prioritárias do movimento sani- sobre seu processo de cuidado.
tário, que é a ocupação de espaços no Estado Consideramos também que, pelas divergên-
com o propósito de promover amplas transfor- cias apresentadas nos artigos, a depender da
mações políticas ‘pelo alto’, podemos eviden- maneira como se estude o ‘movimento sanitá-
ciar as seguintes divergências. Para abordagens rio’, ele, dialeticamente, foi e não foi um sujeito
coeso e que existiu e não existiu um sujeito cada estudo. O fato de a expressão ‘movimento’
central da reforma mais importante que os ter aparecido como sinônimo de processo em
demais. O que seria da reforma sem contar com alguns momentos pode também ter impactado
membros de partidos que ocuparam cargos em nas análises que se voltaram prioritariamente
posições estratégicas? Sem a atuação no âmbito para as ações em curso e pouco examinaram
local, desenvolvida por diversas organizações os sujeitos e seus aspectos organizacionais.
populares com apoio de movimentos sociais, Ao tratar exclusivamente do Cebes, foi pos-
das comunidades eclesiais de base, associações sível identificar elementos que evidenciam a
de moradores, movimentos rurais, sindicatos, busca por coesão organizacional no momento
entre outros? Sem a academia e outros que co- de sua fundação e nas tentativas de superação
locaram ideias em prática na forma de projetos de suas crises14. Porém, a busca por respostas
experimentais e que, a partir da análise dos mais precisas sobre essa dimensão demanda
resultados, puderam propor um sistema com estudos aprofundados para analisar sua forma
evidências de que seria viável e mais efetivo? de organização ou se ele possui as caracterís-
Sem os mais diversos sujeitos individuais que ticas, por exemplo, de um ‘movimento social’,
contribuíram para viabilizar as estratégias uma ‘comunidade epistêmica’ e/ou um ‘partido
aqui evidenciadas, mesmo sem fazer parte de sanitário’40. Contudo, nenhum autor afirma
qualquer organização? que o Cebes é, sozinho, ‘o movimento sanitá-
Observamos, no entanto, que os artigos e rio’ nem aprofunda análises sobre sua forma
os livros consultados sobre o tema trazem de organização. Nos estudos que tratam do
poucas contribuições para esclarecer aspectos ‘MRSB’, sujeitos como o Cebes aparecem como
relativos à coesão organizacional ao longo parte de um grupo mais amplo de atores. Ou
da trajetória do ‘movimento sanitário’. São seja, o ‘movimento sanitário’ surge nos artigos
explicitadas convergências e aproximações como um conjunto de sujeitos que atuam em
temporárias entre diferentes sujeitos coletivos torno da defesa do projeto da RSB, mas sem
com propósitos comuns que desencadearam consenso sobre quem seriam e sem evidências
diversas ações, mas sem apresentar elos orga- de interação permanente entre eles.
nizativos entre eles. Menicucci e Brasil23(391) Dessa maneira, consideramos que, com base
chegam a afirmar que o ‘movimento sanitá- nas definições de ‘movimento social’ assu-
rio’ “não se constituiu como uma organização midas pelos autores, seria incoerente, sob a
formalizada e com uma identidade coletiva expressão ‘movimento da reforma sanitária’,
demarcada e reconhecida”. não abarcar os mais diversos sujeitos que con-
Diante disso, no caso das abordagens que tribuíram para as mudanças no sistema de
propõem tratar o ‘movimento sanitário’ en- saúde brasileiro. Apesar disso, não descarta-
quanto um sujeito coletivo, é relevante ques- mos a existência de um movimento específico
tionar se indivíduos e grupos, que sequer de sanitaristas em torno de entidades como o
compartilham espaços de diálogo e decisão, Cebes, a Abrasco e outras organizações, mas,
podem compor uma mesma organização ou mesmo nesse caso, não identificamos elemen-
um único movimento. Assim, parece-nos equi- tos de coesão para tratá-los como um único
vocada a ideia de que basta ter um conjunto ‘movimento organizado’.
de sujeitos que defenda uma pauta, indepen- Contudo, caso o ‘movimento sanitário’ seja
dentemente de haver algum elo de coesão or- considerado como a expressão das organiza-
ganizacional entre eles, para ser considerada a ções da sociedade civil que têm atuado para
existência de um único ‘movimento organiza- defender o projeto da RSB, a articulação desen-
do’. Porém, no caso analisado, cabe considerar volvida a partir da criação da Plenária de Saúde
que isso depende das referências teórico-me- e da FNCPS torna inequívoca a participação
todológicas e dos sujeitos privilegiados em direta de organizações populares, tais como
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