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1. Introdução
“O que é desenhar? Como o conseguimos? É a ação de
abrir-se um caminho através de um muro de ferro invisível,
que parece encontrar-se entre o que sentimos e o que
podemos. Como atravessar este muro, já que de nada serve
golpeá-lo com força? Devemos minar este muro e atravessá-
lo à base de lima e, no meu entender, lentamente e com
paciência. E é assim que poderemos continuar assíduos neste
trabalho sem nos distrairmos, a menos que não ponderemos
e não arranjemos nossas vidas segundo nossos princípios. E
isto vale tanto para as coisas artísticas quanto para as
outras. E a grandeza não é uma coisa fortuita, ela deve ser
desejada. Determinar se os atos de um homem devem
conduzi-lo aos princípios, ou os princípios aos atos, esta é
uma coisa que me parece tão difícil de saber, e que vale tanto
a pensa quanto saber quem nasceu primeiro, se a galinha ou
o ovo. Mas considero como uma coisa positiva e de grande
importância que nos esforcemos em desenvolver nossa
energia e nosso pensamento.” (Van Gogh, 2002, p.94)
Esta é uma longa citação de uma das muitíssimas cartas que Van Gogh enviou
a seu irmão, Theo. Elas foram organizadas e publicadas em formato de livro. Começo
este projeto de pesquisa, portanto, por um registro escrito de um pintor, que será um
aliado ao longo de todo o projeto. Para esta introdução, onde busco uma delimitação
prévia do tema geral a que se pretende este projeto, destaco a questão inicial de Van
Gogh, que adaptando ao meu propósito, coloco-a da seguinte maneira: o que é isso que
eu faço, a que chamo clínica?
1
A Residência Terapêutica (RT) é um dispositivo de reinserção social no contexto da reforma
psiquiátrica.
1
A pintura e o desenho entraram nesta equação bem no início deste processo, a
partir do encontro com um morador da residência que me pediu para lhe fazer uma
pintura. Tal experiência iniciática foi marcante e é o que trago para o projeto de
doutorado. Experiência essa composta dos elementos: clínica, loucura, pintura, socius. E
que me apresentou um modo de olhar que traduzo aqui nas palavras de Deleuze (1970)
sobre Espinoza: “Espinoza não acreditava na esperança, nem mesmo na coragem; não
acreditava senão na alegria e na visão. Deixava viver os outros que o deixassem viver.
Queria somente inspirar, despertar, fazer ver.” (p.24).
2. Justificativa
“É a ação de abrir-se um caminho através de um muro de
ferro invisível, que parece encontrar-se entre o que sentimos
e o que podemos. Como atravessar este muro, já que de nada
serve golpeá-lo com força? Devemos minar este muro e
atravessá-lo à base de lima e, no meu entender, lentamente e
com paciência. E é assim que poderemos continuar assíduos
neste trabalho sem nos distrairmos (...).” (Van Gogh, 2002,
p.94).
Meu processo na casa2 se inicia ao final do ano de 2007, quando termino minha
graduação em psicologia e decido continuar investindo em minha formação clínica.
Digo “continuar investindo em minha formação clínica”, pois há poucos meses de
concluir a graduação, já havia conhecido casa; havia recebido um convite para conhecer
o trabalho, os moradores, a equipe e, caso gostasse e quisesse fazer parte do trabalho,
poderia voltar e participar.
Bom, fato é que se tratava de convite e proposta interessantes e nada
convencionais. Explicarei melhor. Terminada a graduação, a ansiedade por iniciar um
trabalho como psicólogo era maior do que a urgência por conseguir ganhar algum
dinheiro. Eu já trabalhava e ganhara algum dinheiro na rescisão de contrato da
instituição que não fazia mais sentido para mim. Eu estava concluindo minha graduação
e saindo dessa instituição. Mas qual a pertinência destes detalhes para este projeto?
Bom, eu estava experimentando uma importante desterritorialização em minha
vida: saindo da UERJ e de um trabalho que havia ficado durante oito anos. Queria
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“Casa” é como os moradores e toda a equipe se referem à RT, cotidianamente.
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trabalhar e ganhar minha vida com algo que fizesse sentido, além do sentido evidente da
necessidade de se inserir no mercado de trabalho. E por “fazer sentido”, queria
encontrar neste futuro trabalho os elementos políticos e éticos que considerava
importantes para a produção deste sentido. Queria iniciar uma nova caminhada, mas
como?
Quando fui até a casa nesta primeira visita, o que me interessou foi uma
espécie de paradoxo: duas impressões, à princípio excludentes, habitavam meu corpo;
havia em mim uma experiência de reconhecimento, pois a casa trazia uma semelhança
com qualquer outra casa da vizinhança ou mesmo com qualquer casa que eu já havia
entrado. No entanto, havia também em meu corpo um absoluto estranhamento.
Fui com um amigo que já fazia parte da equipe num dia muito agradável.
Quando chegamos, algumas pessoas estavam envolvidas na preparação do almoço.
Depois das apresentações, alguém me perguntou se eu podia ajudar cortando umas
cenouras e logo fui incluído no preparo do almoço. Éramos oito no total. Foi um almoço
muito agradável e todos ajudamos com arrumação e limpeza ao final.
Na saída, dei-me conta de que muito tempo havia passado. Percebi também que
não sabia dizer quem ali era morador da casa, quem era cuidador, quem estava ali
cuidando quem estava sendo cuidado. Havia dois cuidadores, mais quatro moradores. E
isso por si só foi algo que achei bastante interessante. Meu amigo explicou que ele fazia
este almoço com todos uma vez por semana e que era um momento bastante importante
para a casa. Tratava-se para ele, de parte importante do seu trabalho clínico com cada
um dos que ali estavam.
Bom, mas o que isso tem a ver com minha decisão em “continuar investindo
em minha formação clínica”? E com este projeto? Eu havia sido fisgado por este
primeiro encontro. E aceitei a proposta nada convencional de começar a frequentar a
casa. Digo isso, pois não havia como ganhar algum dinheiro naquela ocasião, tampouco
havia alguma função ou necessidade específica que justificasse minha ida lá; bem como
não me foi determinado nenhum horário ou dia específico para ir ate lá. Orientaria-me
pelo desejo de ir até lá.
Alguma coisa daquela familiaridade e suavidade, junto com um estranhamento
que experimentei naquele primeiro encontro, sinalizou-me que era por ali que eu queria
iniciar esta nova caminhada. Passei a frequentar a casa, com uma frequência de uma vez
por semana. Ficava lá umas duas horas, acompanhava alguma coisa que já estava em
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andamento e depois ia embora. Logo estava fazendo parte da equipe, o que envolvia
mais comprometimento: participar de um grupo de estudos, uma supervisão e ir até a
casa num horário delimitado, tudo uma vez por semana. E assim, com este primeiro
encontro-passo, iniciou-se um novo processo-caminhada.
Há outro passo importante que é “como a pintura entra nessa equação?”. Bom,
como falei anteriormente, eu estava frequentando a casa e os encontros com a equipe. E
pude experimentar como não era nada trivial ou óbvio preparar um simples almoço,
como havia vivido no primeiro dia em que fui lá. Percebi que aquela dinâmica fazia
parte de um campo afetivo e relacional que meu amigo já havia conquistado entre os
moradores e cuidadores. A experiência inicial abertura, liberdade e encantamento, cedeu
lugar a uma angústia que se traduzia numa questão: “o que fazer?”.
Estava já deparando com as dificuldades relacionais que cada um dos
moradores, com suas singularidades e diferenças, apresentava a mim: Zé3 dormia
demais, o dia todo, se ninguém o chamasse para fazer algo; João não parava de fumar e
falar; Cláudio (cuidador) não parava de reclamar e esbravejar palavras de ordem; etc.
Afinal, cada um deles estava lá por que precisava de cuidados. O que fazer com minhas,
irritações, impaciências e inseguranças? O que fazer com aquelas demandas? Tudo que
havia estudado não me ajudava com estas avaliações rápidas que precisava fazer.
E foi um morador quem me ajudou com essas questões: Marcos. Ele me
causava medo. Era muito fechado e raivoso; recusava muitas das propostas para
fazermos alguma coisa juntos, numa atitude de fuga para a rua em tom de ameaça de
não mais voltar. Sentia-se muito injustiçado por estar “morando numa casa de malucos
que nunca me deixam em paz” – esbravejava e batia o portão. Todas as aproximações
que havia tentado com ele, concluíra-se com seu afastamento, abrupto e barulhento, por
vezes silencioso e mordaz. Eu sentia-me paralisado diante de sua atitude. Um misto de
raiva, medo. Sentia uma grande responsabilidade diante dele, pois era como se ao menor
dos meus gestos, ele pudesse sumir da casa e não mais voltar. Mais uma vez: “o que
fazer? Trancar o portão, segurá-lo? Medicá-lo?” – pensava essas coisas e percebia o
quanto as práticas de contenção manicomiais poderiam ser facilmente reproduzidas. No
entanto, apenas o deixar sair naquelas condições não parecia ser uma prática de
liberdade e saúde.
3
Todos os nomes são fictícios.
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Passei a me proteger de uma forma que não considerava saudável nem para
mim, nem para ele: evitava-o. Aos poucos soube de sua história e isso aumentou o peso
da responsabilidade que sentia. Sua última internação havia acontecido depois de uma
saída abrupta. Havia sido encontrado pela família, dias depois, machucado, confuso. Foi
internado e durante esta internação iniciou-se uma conversa para que ele fosse morar na
casa.
Ele havia sido o último a mudar para lá e sua experiência ressoava com a
minha: estávamos ainda achando um lugar na casa. Num dia como outro qualquer,
estava ajudando Lúcia (moradora) a fazer uma lista do que precisava comprar na
farmácia. Ela consultava suas gavetas, armário, seus potes etc; eu anotava o que ela
pedia. E na beirada do papel, eu estava rabiscando um desenho, que pareciam ondas do
mar. Foi quando Marcos passou, silenciosamente por nós, e disse, em tom provocativo:
“Finalmente o psicólogo acertou!” – havia um tempo que nosso contato não passava de
um cumprimento lacônico.
Aceitei a provocação e questionei: “Mas no que acertei?” – e assim iniciamos
uma conversa que durou um bom tempo. Ele se referia às ondas. Carlos havia passado
boa parte da vida próximo ao mar; gostava de pegar jacarés. E foi assim, num encontro
ao acaso, entre o quarto e a sala, entre minha conversa com Lúcia e os rabiscos que se
insinuavam como ondas, que encontramo-nos de outra forma.
Entre muitas lembranças que envolvia sua relação com o mar, sua antiga casa
(já havia se mudado algumas vezes), e muitos rabiscos-desenhos que fizemos juntos,
tentando dar forma a essas memórias que emergiam do nosso encontro, Carlos
compartilhou de forma vibrante que em seu antigo quarto havia posters de ondas
gigantes, surfistas. No meio desse encontro tivemos uma visão-ideia: pintar uma onda
para colocar em seu novo quarto.
No entanto, alguns dias depois, Carlos assumiu uma atitude ambígua comigo.
Sempre que me via, falava de nossa ideia em tom irônico, me chamando de psicólogo-
pintor e logo saía de perto. Não se envolvia, além desses curtos comentários. Entre
conseguir o material para nossa pintura e combinarmos o dia para realiza-la, passou
algum tempo; sua ironia, por vezes, distância e indiferença em relação ao nosso projeto,
me confundiram.
Mas me guiava pela sensação de que havia sido muito bom o encontro que
tivemos. Busquei não me “distrair” (tal como Van Gogh) com sua atitude e sustentei
5
nosso combinado me fiando pelo lampejo de luz que vi sair dos seus olhos quando
contava-me sobre sua relação com as ondas, sobre como sentia-se em casa.
No dia em questão, um belo dia de sol, cheguei com o material: tintas, pincéis,
papel, lápis etc. Chamei por ele, que me devolveu um longo e distante silêncio. Não
insisti, apenas coloquei uma mesa no quintal e comecei a mexer no material. Depois de
um tempo, apareceu, fumando. Pouco falamos. Carlos, ainda afastado, tateava o
material com os olhos.
Sentia-me confortável ali. Observando as diferentes texturas dos papéis, sua
porosidade. Apontei alguns lápis, abri algumas tintas, mexia nos pincéis. Tudo parecia
muito bonito e novo. O sol começou a incomodar, então pedi ajuda a Carlos para
reposicionar a mesa com os materiais. Embalados pelo vendo suave e o som distante do
radinho de Zé, que estava deitado no quarto, achamos um bom lugar debaixo da sombra
da amendoeira. Fiz meu primeiro traço no papel, ainda não sabia o que fazer. Mas ali já
não havia mais medo de errar, e cada traço era preenchido com certeza e alegria.
Carlos pegou mais uma mesa, posicionou-se e começou também a mexer no
material. Ele parecia frágil e inseguro com o material e com as primeiras formas que
traçava. Mostrou-me seus traços e perguntou se estava bom. Disse que sim, ajudei com
algumas formas que ele queria construir. Aos poucos estávamos já, um intervindo no
trabalho do outro, brincando com o material.
Carlos começou a brincar sozinho com o material, e mostrava para todos o seu
trabalho. Neste momento algumas cadeiras já estavam dispostas ao nosso redor.
Cláudio, Zé; Lúcia desenhou bem rápido uma flor vermelha. Olhei para aquela cena e
percebi que algo havia acontecido. Sentia muito prazer de estar ali. Olhava com alegria
para aquelas pessoas que compartilhavam comigo aquele momento e senti-me em casa.
Esse disponibilidade afetiva que sentia, parecia exercer uma força de contágio, como se
uma atmosfera de composição estivesse atravessando a todos ali. “Zé, coloca numa
rádio mais animada aí!” – alguém sugeriu e Zé apenas estendeu a mão com seu radinho,
autorizando que tocássemos em seu radinho intocável para trocar a estação.
Carlos estava em casa, eu também. A casa como um todo se reconfigurou a
partir de uma atmosfera de acolhimento.
Por fim, Carlos escolheu uma pintura que fizemos juntos, escreveu seu nome
com tinta, depois escreveu “Bob Marley” e pediu que eu também escrevesse o meu.
Disse que aquele seria seu novo quadro, para seu novo quarto. Não pediu que eu
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desenhasse o mar, e quando perguntei o sentido do “Bob Marley”, respondeu que as
cores e a forma lembrou-o de um disco antigo. De forma jocosa, concluiu: “Ele cantava
numa banda só de doido!” – referia-se aos outros moradores que participaram, de forma
imprevista, conosco.
Com o tempo, nas supervisões, notamos que sua atitude cotidiana era outra.
Sua força e vozeirão ganhavam uma nova modulação. O tom de queixa esbravejante,
excludente, transformou-se num tom quase teatral, agregador. Suas saídas para rua não
mais nos afetava com ameaça e, por vezes, deixava que alguém o acompanhasse. Fui
algumas vezes. Foram longas caminhadas em silêncio. Poucas paradas para um cigarro
e alguma conversa.
Eu havia experimentado mais um encontro, dado mais um passo. Retomando o
início desta justificativa de projeto de doutorado, depois deste encontro com Carlos e
com a pintura, decidi continuar investindo em minha formação clínica. Este passo foi ter
encontrado um modo de estar lá, um sentido para estar lá: o que é isso que faço e chamo
de clínica?
Algo se passou naquele momento em que Carlos, ao acaso, viu os traços
emergentes de ondas do papel. Algo se passou entre todos nós que ali estávamos.
Experimentamos ali algo em comum que se revelou como um modo de olhar. 4 Um
brilho, um lampejo, um momento de criação de sentido e de território. Mas como dar
consistência a esse momento? O que há de clínico nesse momento?
A experiência com a pintura havia me ajudado nisso. Como estar ali, com
aquelas vidas que precisavam de cuidado integral, vidas que apresentavam-se formas
singulares de existir, formas essas que por vezes me causavam, inclusive, desconforto?
Como estar ali sem querer impor uma forma? Como intervir?
Entendi que havia, nesta experiência, muito que explorar e entender. Retomo a
citação a Van Gogh, em que ele afirma que desenhar é “a ação de abrir-se um caminho
através de um muro de ferro invisível, que parece encontrar-se entre o que sentimos e o
que podemos”. Acrescenta, ainda, que tal tarefa precisa ser realizada com paciência,
4
Em relação a este momento do olhar que atravessou a todos os envolvidos na cena dos traços de onda
do mar, Deleuze (2016), no texto “A imanência, uma vida”, define a imanência como uma vida: “Uma
vida está em toda parte, em todos os momentos que este ou aquele sujeito vivo atravessa e que esses
objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não
fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. (...) apenas entre-tempos, entre-
momentos.”(p.410)
7
lentamente, um trabalho feito com uma lima, de forma sutil. Minha hipótese é que há
nessa arte sutil um comum com a clínica.
Uma potência encontrada no limiar da clínica com o não clínico (intercessor
arte/pintura/filosofia); Através da pintura, iniciei este processo, que me acompanha até
hoje. A pintura como um intercessor para pensar a clínica. Cabe esclarecer que não
quero aqui pensar “a pintura” como uma oficina, ou arteterapia, mas sim como uma
prática envolvida com a abertura do olhar para uma dimensão da vida que é sempre
inaugural, um olhar para uma dimensão da vida que, por vezes é sutil, mas revela o
potencial de criação de novas formas, de novos mundos.
Abrir com uma lima uma passagem pelo muro, talvez seria abrir-se a uma
dimensão da vida intensiva, inorgânica, um ponto caos-germem, que é possível de
experimentar como forças, intensidade, sempre em relação, sempre coletiva. Tal como
iniciou-se este processo-caminhada, numa casa, num coletivo, penso que este modo de
olhar, trata-se também de uma dimensão política da clínica, uma vez que a consistência
desta experimentação envolve um comum.
Uma arte-clínica, uma clínica na sua relação imanente com questões estéticas,
éticas e políticas, onde as partes envolvidas (terapeuta, paciente, cuidador etc) emergem
como efeito do encontro, como produto de um processo de cuidado que se passa num
plano de consistência.
Teria a pintura algo a dizer para a clínica?
3. Objetivos
4. Revisão da Literatura
8
“Hoje não tenho mais vontade de escrever. Depois de meu
livro sobre Marx, creio que vou pensar em parar de
escrever. Então, começarei a pintar.” (Deleuze, 1993,
depoimento a Didier Eribon).
5
Segundo Deleuze (2006), é tarefa da filosofia criar conceitos e não refletir sobre algum assunto. E para
isso utiliza-se de intercessores: “O que me interessa são as relações entre as artes, a ciência e a
filosofia.” (p.154)
9
A catástrofe é uma experiência que antecede o ato de pintar. Trata-se de um
desmoronamento do mundo dado, organizado. Segundo Deleuze (2016) todo pintor
enfrenta este momento, pois a tela inicialmente nunca está branca6; isto significa dizer
que ela está povoada de clichês, de memórias de imagens já produzidas. Todo pintor
precisa superar os clichês, desfazer as categorias que levam à recognição. Criar uma
imagem pictórica (no caso da pintura), ou criar um conceito (no caso da filosofia),
envolve mobilizar o jamais visto ou sentido, o jamais pensado ou o impensável7.
6
Deleuze (2016), no texto A pintura inflama a escrita, afirma que “a tela não é uma superfície branca.
Ela toda já está atulhada de clichês, mesmo que não sejam vistos. O trabalho do pintor consiste em
destruí-los: o pintor deve passar por um momento em que não vê mais nada, por um desmoronamento
das coordenadas visuais.” (p.191)
7
Conforme Cíntia Vieira da Silva (2014), “ nas palavras de Deleuze ‘o pintor apenas reproduz o visível
para captar forças invisíveis’, forças que se exercem sobre os corpos e forças que estes exercem sobre
o entorno.” (p. 7)
10
E é neste aspecto que o filósofo destaca o procedimento de Bacon em relação à
catástrofe e ao diagrama: trata-se de lançar no quadro marcas livres, pitadas de acaso.
Abrir no quadro este espaço de caos-germem, que servirá como um modulador, campo
de emergência das cores e formas não figurativas. Não se trata, esclarece Deleuze
(2007b), de pensar que o diagrama seria uma mudança da forma, onde uma primeira
forma seria o clichê, primeiro investimento intencional do pintor; que passaria a outra
forma, final. Trata-se de uma zona de indiscernibilidade ou de indeterminabilidade entre
duas formas, trata-se de “criação de relações originais que se substituem à forma, (...) o
diagrama distribui por todo o quadro forças informais.” (idem, p.158)
Busco, portanto, a partir da construção conceitual em relação à experiência de
catástrofe, caos, diagrama, a possibilidade de criar uma plano de consistência clínico
para a experimentação de mudança. Uma prática estética envolvida na criação de
figuras não representativas, na produção de visibilidade para forças informais: teria essa
experiência diagramática da pintura, algo a dizer para a clínica?
11
O capitalismo da sociedade de controle8 atua, portanto no fio da navalha, onde
os fluxos de conhecimento, afeto e desejo são necessários a sua sustentação; no entanto
são esses mesmos fluxos que comportam o elemento diferencial necessário ao escape e
à resistência. Como avaliar esta diferença?
Há, no texto Desejo e Prazer – que é uma carta de Deleuze (2016) endereçada à
Foucault – alguns apontamentos onde o autor especifica algumas diferenças de
pensamento em relação ao amigo filósofo. Não cabe a este projeto dar conta das
diferenças filosóficas ali apresentadas, mas sim apontar uma aproximação importante
com outra abordagem do conceito de diagrama.
Em um dos apontamentos, Deleuze (2016) diferencia o diagrama de poder, um
diagrama-Estado (conforme as análises microfísicas de Foucault), que estaria a serviço
de um plano de organização; e um diagrama-máquina de guerra, que opera aliado outro
plano, apresentado por Deleuze como plano de imanência:
“De um lado, portanto, teríamos Estado-diagrama do poder,
sendo o Estado o aparelho molar que efetua os microdados
do diagrama entendido como plano de organização; de outra
parte, teríamos máquina de guerra-diagrama das linhas de
fuga, sendo a máquina de guerra o agenciamento que efetua
os microdados do diagrama entendido como plano de
imanência. (...) Num caso, tem-se um plano de organização e
de desenvolvimento que é oculto por natureza, mas que dá
a ver tudo o que é visível; no outro, tem-se um plano de
imanência, onde há tão-somente velocidades e lentidões, não
desenvolvimento, e onde tudo é visto, ouvido... etc.” – (idem,
p.137)
8
“Post-scritum sobre as sociedade de controle” é um texto em que Deleuze (2006) apresenta algumas
diferenças importantes entre a sociedade disciplinar (numa referência à Foucault) e a sociedade de
controle: “na sociedade de controle o essencial é a cifra: a cifra é a senha”(p.222); “Muitos jovens
pedem estranhamente para serem “motivados”, e solicitam novos estágios e formação
permanente.”(p.226)
9
No texto “O que é um dispositivo?”, Deleuze (2016) afirma que “Há muito que pensadores como
Espinoza e Nietzsche mostraram que os modos de existência deviam ser pesados segundo critérios
imanentes, segundo aquilo que detêm em possibilidades, em liberdade, em criatividade, sem nenhum
apelo a valores transcendentais. Foucault alude a critérios estéticos, entendidos como critérios de vida
que, de cada vez, substituem pretensões dum juízo transcendente por uma avaliação imanente. (...)
Uma estética intrínseca dos modos de existência como última dimensão dos dispositivos?” (p.364)
12
Seria possível dizer que olhar de um pintor como Francis Bacon, no seu combate
aos clichês, enfrenta um mesmo problema? Seria esse também um problema clínico?
5. Metodologia: o caminho
Ovo ou galinha, o que vem primeiro? Com a mesma questão levantada por Van
Gogh a respeito de sua prática como pintor, Benevides (2013) inicia sua terceira entrada
a respeito das práticas com grupos10. E situa que tal problema, à primeira vista
insolúvel, traz dois enigmas consigo: a questão da origem do ser; e como este ser
conhece o mundo que o cerca.
A solução aponta para uma saída que visa criar um terceiro termo nesta
equação: o devir, ou a relação entre os termos, ou as práticas e as circunstâncias que
antecedem a formalização de um sujeito que conhece e de um objeto a ser conhecido.
Noutros termos, responde a autora, antes do ovo ou da galinha há o vivo, como
realidade pré-individualizada (idem, p.182); o conhecimento é efeito de práticas
concretas, sendo as práticas “não uma instância misteriosa, mas o que fazem as pessoas”
(idem, p.194). Fazer este que é produto de forças em luta permanente. O conhecimento
é efeito de um processo que cria tanto o sujeito quanto o objeto.
10
Capítulo intitulado “Entrada 3: Dicotomias ou a lógica do terceiro excluído”, do livro “Grupo: a
afirmação de um simulacro”, Regina Benevides de Barros (2013).
13
No caso específico deste projeto, pesquisar a partir da produção conceitual a
respeito do recorte Deleuze-Guattari sobre pintura, apostando nas possíveis ressonâncias
com a prática clínica.
6. Referências Bibliográficas
1. BARROS, Regina Benevides de. Grupo: a afirmação de um simulacro; – 3ª
edição 2013 – Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2009 – (Coleção Cartografias)
350 p.
14
tradução de Guilherme Ivo; revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. – São Paulo: Ed.34,
2016. 448p.
15. VAN GOGH, Vincent. Cartas a Théo; tradução de Pierre Ruprecht – Porto
Alegre: L&PM Pocket, 2002. 424p
Documentário:
Bacon´s Arena (Francis Bacon – Vida y Obra); dirección: Adam Low; fotografia:
Dewald Aukema; montaje: Sean Mackenzie; música: Brian Eno. Producido por
Anthony Wall; una producción BBC; coproduccido por State of Francis Bacon. Género:
documental; año 2005; Reino Unido.
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