Você está na página 1de 34

UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

TEORIA E PRÁTICA JUNGUIANA

RESIDÊNCIA TERAPÊUTICA: UMA PERSPECTIVA


JUNGUIANA

Suzelane S. dos Santos

Trabalho apresentado à Universidade

Veiga de Almeida como requisito

parcial para obtenção de título de

especialista em Teoria e prática

junguiana.

Orientadora: Carla Portella

Rio de Janeiro

2018
ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO……………………………………………………………………..…..02

2. RESIDÊNCIA TERAPÊUTICA……………………………………………………..….06

2.1 Linha 1: As residências terapêuticas como alternativa para

pessoas que precisam sair de casa…………………………………………….…....07

2.2 Linha 2: As residências terapêuticas para egressos de

internações sem outras possibilidades de moradia…………………………………11

3. A TEORIA DOS COMPLEXOS E A GRUPALIDADE…...………………...……....14

4. O COMPLEXO CASA E SUAS IMPLICAÇÕES NOS

DISPOSITIVOS RESIDENCIAIS……………………………………………………....21

4.1 Cena 1………………………………………………………………………….23

4.2 Cena 2………………………………………………………………………….24

4.3 Cena 3………………………………………………………………………….25

4.4 Análise das cenas…………………………………………………………...….26

5. CONCLUSÃO………………………………………………………………………....31

BIBLIOGRAFIA………………………………………………………………………….33

1
1. INTRODUÇÃO

Esse trabalho tem como objetivo empregar alguns conceitos e técnicas da teoria de Carl
Gustav Jung na interpretação e na intervenção em alguns dispositivos concretos da Reforma
Psiquiátrica. Creio ser relevante esta aproximação pois, apesar de Jung ter uma abordagem que em
muitas vezes privilegia a loucura, não é comum encontrarmos seus conceitos na discursividade da
Reforma.
A Reforma Psiquiátrica no Brasil converge com o movimento da Reforma Sanitarista que
implementou o Sistema Único de Saúde (SUS), onde universalidade, equidade e integralidade são
os princípios básicos. No campo da Reforma Psiquiátrica acrescenta-se a estes princípios a premissa
da desinstitucionalização. (GODOY & BOSI, 2007) Tal desisntitucionalização se pensa através dos
serviços substitutivos ao manicômio, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e
Residências Terapêuticas (RT).
Há alguns anos atuo em três RTs. No cotidiano do campo percebo quase que uma completa
ausência das teorias e técnicas junguianas tanto nas práticas discursivas quanto não discursivas. Isso
me é de grande espanto, pois seus conceitos, creio eu, seriam de grande valia, assim como práticas
pioneiras inspiradas em sua obra como as empreendidas por Nise da Silveira no antigo Hospital
Pedro II e posteriormente na iniciativa que deu origem a Casa das Palmeiras.
Porém antes de prosseguir seria de bom tom fazer uma pequena análise das minhas
implicações, tanto com a teoria e prática junguianas quanto com a Reforma Psiquiátrica, mais
especificamente com o dispositivo da RT.
Poderia dizer que meu encontro com Jung foi totalmente ao acaso, entretanto hoje já não creio
nisto. No sétimo período da faculdade, todos os colegas já se afinavam claramente a alguma linha
teórica, eu não. As que havia podido encontrar ao longo do curso, me tocavam de forma demasiado
frágil para servir como ferramentas para entendimento e trabalho com a psique e eu já pensava em
abandonar a psicologia. Em uma semana faltei à aula de uma disciplina de estágio básico e
retornando na semana seguinte inteirei-me que na aula anterior haviam sido selecionados pelos
alunos teorias clínicas e instituições para que cada um desenvolvesse um trabalho a ser
posteriormente apresentado ao grupo. Na lista com muitas teorias já riscadas, Jung e a psicologia
analítica esperavam por mim. O que encontrei nesta primeira pesquisa me fez muito sentido e
despertou o desejo de seguir estudando a teoria, desejo que perdura e se alimenta a cada nova
leitura.
Em 2014, logo após a conclusão da graduação em psicologia, ocorreu meu primeiro contato
com uma residência terapêutica e, enquanto profissional, com a própria loucura. A convite de um
amigo que integrava a equipe dessa residência fui conhecê-la. Ela se localizada no bairro do

2
Tanque, em Jacarepaguá. Tratava-se de um dispositivo particular, de organização e funcionamento
distintos das residências integrantes da rede pública de saúde. Esta residência não se dizia do tipo I
nem II1, como eu ouvira falar na minha formação, também não se afirmava como de alta, média ou
baixa complexidade. A residência se dizia “casa”. À primeira visita, por algum tempo, confundiam-
se ao meu olhar moradores e terapeutas. Havia dois terapeutas que de fato moravam ali. Recordo-
me ter vivido um grande processo até que eu pudesse assimilar dinâmicas e papéis, processo que se
reiniciava de tempos em tempos, pois logo tudo se movia. Na verdade o que era necessário ser
assimilado era esse movimento vivo da casa, ela não era estática. Um dia alguém, ao deixar a
equipe, chamou a casa de “Casa-Trem”.
Algum tempo depois nos mudamos para Pendotiba, Niterói. Primeiro uma parte do grupo de
moradores, depois o restante. A equipe se alternava lá e cá e a questão da denominação das casas
causava agora ainda mais confusão, pois todo o tempo os terapeutas diziam estar na casa, “indo lá
para casa”, ou “saindo da casa”. Qual casa era? Aquelas nas quais moravam sozinhos, com suas
famílias, companheiros? As residências terapêuticas? Por um tempo usamos falar “casa de
Pendotiba” e “casa de Jacarepaguá”, mas tão logo foi concluída a mudança tornou a ser chamada
“casa” novamente. “Casa” diz das experiências tanto subjetivas quanto objetivas relativas à
construção e ocupação deste espaço. Aqui lançarei mão da facilidade de um recurso da linguagem
escrita, denominando esta casa específica como “Casa”.
Pouco tempo depois iniciei experiências na rede pública de saúde mental, também em locais
de moradia. No hospital de Jurujuba (Niterói), e posteriormente no Instituto Juliano Moreira
(também em Jacarepaguá), estive em enfermarias de internação de longa permanência. O morar ali
era obviamente organizado a partir de uma lógica muito distinta da que eu encontrara na Casa. A
equipe interdisciplinar era composta por psicólogos, assistentes sociais, cuidadores, técnicos de
enfermagem, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, médicos “clínicos” e psiquiatras. Cada
qual com um saber específico. Era uma separação clara em relação às pessoas que alí habitavam.
Alguns se referiam a eles como pacientes, outros os chamavam de moradores. Nós, da equipe, nos
propúnhamos ali a ser agentes do que era chamado “processo de desinstitucionalização”. Dizer tal
termo é tão difícil quanto operá-lo, ainda mais de dentro do hospital. Muitos ainda tentávamos e,
apesar da gigante força institucional, era possível avançar a pequenos passos.
Cito a passagem pelos hospitais, pois foi a partir da atuação nos processos de
desinstitucionalização daquelas pessoas que viviam internadas que tive contato com as residências
terapêuticas ligadas ao ao SUS. Embora muito se discuta sobre o que é desinstitucionalização, quais

1 Genealogia é aqui entendida na perspectiva foucaultiana., como a análise das relações de força que fazem emergir
práticas discursivas e não discursivas. Se diferencia da perspectiva histórica por não estar atada à descrições
factuais, e sim aos movimentos, muitas vezes descontínuos, de produção da própria realidade. Ver a distinção entre
genealogia e história apresentada por Foucault M. (1971) no texto Nietzsche, a genealogia e a história

3
seus agentes, como se dá etc. Na fala corriqueira entre nós profissionais da rede pública de saúde
mental, os “casos de desins” eram aquelas pessoas que estavam em processo de desospitalização 2.
Junto às pessoas que acompanhava, buscava, em poucas possíveis incursões no território, construir
a saída definitiva do hospital. Durante esses processos visitei muitas residências terapêuticas em
diferentes territórios, me deparando com trabalhos muito potentes, outros mais enrijecidos, outros
ainda reprodutores exatos da lógica manicomial.
Em 2017 aventuro-me a uma nova experiência com as residências terapêuticas e assumo o
“cargo” de Acompanhante Terapêutica em duas residências. Uso aspas pois entendo o
acompanhamento terapêutico como função, possível a partir de disponibilidade afetiva. O cargo que
ocupo se trata na realidade de uma coordenação destas casas. Existe ainda um coordenador do
segmento, que organiza questões mais burocráticas de todas as casas, bem como pensa o
acompanhamento clínico. Estas casas integram o chamado segmento do Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) Pedro Pellegrino (Campo Grande), seguindo a organização territorial da
política nacional de saúde. Encontro em cada uma dessas duas casas uma realidade muito distinta,
ainda que ambas tenham como orientadores as mesmas diretrizes.
É justamente a distinção do funcionamento dessas duas casas e ainda da residência
particular que me gerou as questões que pretendo desenvolver neste trabalho. Estas duas residências
terapêuticas de Campo Grande que acompanho compõem um segmento com um total de quatro
casas, sob a mesma coordenação, referenciadas ao mesmo dispositivo de tratamento, o CAPS Pedro
Pellegrino. Dadas as políticas de cuidado, estruturação da equipe, território, recursos e perfil dos
moradores, além das experiências breves durante o trabalho nos hospitais, era-me esperado
encontrar neste seguimento de Campo Grande residências drasticamente distintas da que eu havia
conhecido, e assim ocorreu. No entanto, algo que me instigou intensamente foi, a não esperada e
igualmente drástica, diferença entre estas duas residências. Ao longo do processo de trabalho
tornava-se nítido que cada uma das três casas onde eu atuava trazia consigo características muito
próprias, que se produziam e se constelavam nas equipes e moradores formando cada uma como
que um organismo vivo único e singular.
O que me proponho a pensar então é se há a possibilidade de tomar a residência terapêutica,
ou seja, um dispositivo institucional como uma espécie de grupo, e a partir disso, aplicar a leitura
junguiana do psiquismo a esse mesmo dispositivo, especialmente a teoria dos complexos e mais
especificamente o complexo casa. Nesse caso tenderia a entender o institucional a partir da noção
de grupalidade e à grupalidade aplicaria a teoria dos complexos. Como o grupo do qual me ocuparei
é composto pela RT o complexo em questão será o complexo casa. Creio que para isso será

2 Usamos livremente aqui a palavra “louco” para falar de forma mais próxima do cotidiano dessa condição que
dependendo das tecnologias psis existentes em nossa sociedade podem ser entendidos como esquizofrênicos,
psicóticos, doentes mentais.

4
necessário fazer alguns deslocamentos no entendimento da relação entre indivíduo e grupo proposta
pela psicologia analítica mais tradicional.

Sendo assim no capítulo 2 pretendo situar o nascimento das residências terapêuticas dentro
das direções da Reforma Psiquiátrica, suas funções, seus modos de funcionamento e suas dinâmicas
através de uma análise tanto genealógica quanto bibliográfica.

Já no capítulo 3 será abordada a teoria dos complexos em Jung, como surgiu e o que trouxe de
novo para a interpretação do psiquismo, assim como a possibilidade de entender um complexo
como algo grupal, através de uma análise bibliográfica.

No capítulo 4 usarei cenas vivenciadas por mim nas residências terapêuticas onde a teoria dos
complexos, e mais especificamente o complexo casa, me foi de fundamental importância para a
intervenção institucional. Neste capítulo a narratividade e a associação conceitual me servirão de
norteadores metodológicos.

E, para finalizar, no capítulo 5 espero concluir pela grande utilidade e importância do


encontro entre Reforma Psiquiátrica e teoria junguiana, de tal modo que ambas possam se alimentar
e produzir novos entendimentos e práticas no campo da loucura.

5
2. RESIDÊNCIA TERAPÊUTICA

Como vimos na introdução a desinstitucionalização é a premissa básica da Reforma


Psiquiátrica. Porém, para que haja uma verdadeira desinstitucionalização não basta o fechamento
dos grandes manicômios. Essa seria apenas a tarefa inicial da Reforma Psiquiátrica e teria mais
relação com os processos de desospitalização do louco do que efetivamente com os processos de
desinstitucionalização da loucura. Para que tal desinstitucionalização seja realmente efetiva um
outro princípio se tornou fundamental para a Reforma, o princípio da territorialidade. Este princípio
pressupõe que o louco não deve ser retirado da relações sociais às quais pertence, assim como deve
ser progressivamente inserido em tais relações. É no acompanhamento do contato entre a loucura e
o social que está a intervenção clínica de tal política. Para isso há necessidade da criação de serviços
que substituem os manicômios, serviços esses que precisam estar inseridos na trama do tecido
social. As RTs se apresentam como um destes serviços

Vejo duas grandes necessidades da utilização da RT como dispositivo da Reforma. Primeiro


porque é preciso dar conta de pacientes que não tem possibilidade de residir nas casas das famílias
sem que entrem em estados agressivos e/ou de impossível convivência, gerando sucessivas
internações. Nesse caso nossa cultura felizmente não pode mais contar com os manicômios para a
solução destas situações. Segundo porque é preciso dar conta de uma série de pacientes que, com o
desmonte dos grandes manicômios, não têm para onde ir. As referências familiares foram perdidas
há anos, por vezes décadas ou então são demasiado frágeis para sustentar um retorno do usuário
para o seio da família.

As duas situações descritas acima correspondem a duas linhas genealógicas 3 de constituição


das residências terapêuticas, que implicam práticas distintas e correspondem também aos dois
campos de experiência no qual eu me situo. Obviamente essas linhas não são absolutas nem
excludentes e não param de se cruzar, de modo que podemos encontrar numa residência uma
maioria de egressos e somente um dos moradores vir de uma situação de impossibilidade de
convivência com a família. O contrário também pode se dar, uma residência onde somente um ou
dois moradores são egressos. Porém o que se pretende analisar aqui é como cada linha organiza e
distribui suas prática, quais questões estão implicadas em cada uma delas e assim por diante. Vamos
assim destrinchar essas duas linhas.

2.1 Linha 1: As residências terapêuticas como alternativa para pessoas que


3 Ver Foucault M. (1972)

6
precisam sair de casa

Nessa linha faremos a análise por um lado através de alguns textos que versam a respeito de
duas residências distintas: Kingsley Hall em Londres e República, no município de São Paulo. E,
por outro lado, através de recortes de contações que produzem uma mitologia da Casa onde
trabalho.

O que fazer com loucos4 quando o convívio com seus familiares se torna um fator de
adoecimento e sofrimento psíquico? E para onde eles irão quando seus entes já não estiverem mais
aqui? A existência de manicômios, durante muito tempo em nossa sociedade, constituiu uma
resposta fácil a essas questões gerando, durante mais de dois séculos 5, internações que podiam durar
por toda a vida.

Mas será que só resta ao louco a família ou o manicômio? Não teria ele o direito de sair de
casa um dia? Teriam seus familiares a obrigação de suportar esta situação para o resto da vida? E se
não houver desejo? Acreditamos que o convívio com a loucura só é realmente possível e saudável
se houver desejo.

Muitas vezes uma residência terapêutica pode ser uma forma de criarmos a distância
necessária para que um desejo se constitua, outras vezes pode ser uma forma de dar ao louco a
chance de constituir outras relações, outras ainda pode ser uma forma da família se responsabilizar
mas não necessariamente desejar tal convívio.

Parece ter sido neste sentido que em 1966, no subúrbio de Londres, criou-se uma espécie de
residência terapêutica conhecida como Kingsley Hall. Essa experiência protótipo das residências
terapêuticas, foi criada no seio da antipsiquiatria então nascente e está especialmente registrada no
livro “Viagem através da loucura”6, escrito por Mary Barnes e Joseph Berke, sendo a primeira uma
moradora da residência e o segundo o antipsiquiatria que a acompanha nesta experiência. Nessa
época não se falava de residência terapêutica, a experiência desenvolvida pela antipsiquiatria em
Kingsley Hall se deu num contexto de pura experimentação. Entendiam os antipsiquiatras que o
tratamento da loucura passaria por uma descida até as profundidades da própria loucura, podendo
vivenciá-la até o seu fim. A esse mergulho chamavam de metanoia e era função do antipsiquiatra
acompanhar o paciente nessa viagem através da sua loucura. Nesse sentido tanto o manicômio

4 BARNES, M & BERKE, J. (S/D) Viagem através da loucura. São Paulo: Círculo do Livro
5 DIAS, C.; BREYTO, D.M. e GOLDMAN, L. (1997) A República. In EQUIPE DE ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO DO HOSPITAL DIA CASA (Org) Crise e cidade: acompanhamento terapêutico. São Paulo:
educ, p. 143-151.
6 A partir de agora usaremos a abreviação AT para nos referir ao Acompanhamento Terapêutico e at para
acompanhante terapêutico, como se convencionou usar em tal campo.

7
quanto as medicações então existentes eram entendidos como uma espécie de embarreiramento
deste mergulho. Assim decidiram alugar uma casa para que tais processos, que poderiam durar
anos, pudessem se dar. Este livro é um relato, feito tanto por Mary Barnes quanto por Joseph Berke,
onde cada um expõe seu ponto de vista a respeito desta experiência do mergulho feito pela primeira.
Apesar de não ser exatamente uma residência terapêutica, durante toda a experiência de Kingsley
Hall, muitas pessoas foram morar no local para se tratar, como alternativa aos tratamentos
psiquiátricos existentes na época. O que Kingsley Hall evidencia é um certo aspecto clínico do
próprio morar, porém não deterei demasiado tempo nesta experiência e abandono o clima
contracultural de Londres dos anos 60 para trazer o contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil,
especificamente na cidade de São Paulo dos anos 90, onde uma entusiasta equipe de acompanhantes
terapêuticos decide criar a República. Essa equipe é a equipe de acompanhantes terapêuticos do
Hospital Dia A Casa, pioneira tanto na prática quanto na teorização do campo do acompanhamento
terapêutico (A.T)7 Essa experiência está descrita no texto “A República” 8.

As autoras situam o nascimento desta residência a partir das práticas de AT:

A República nasceu como projeto do nosso trânsito, junto a nossos pacientes, pelas cidades,
casas, nas famílias, clínicas de internação etc. E quantas vezes nessa circulação não nos
dissemos quase indignados: “esse cara teria que sair de casa”; “seria tão legal se ela
conseguisse morar sozinha”; ou, ainda, “do jeito que funciona essa família, vai ser muito
difícil fazer alguma coisa”, e assim vai, outros quinhentos exemplos desse tipo emergem no
dia a dia da experiência de cada um de nós. (DIAS, BREYTON e GOLDMAN, 1977 p.
144)

Nesse trecho podemos flagrar o nascimento de uma residência terapêutica como uma
alternativa para pessoas que precisam sair de suas casas. Pessoas que viviam com suas famílias,
porém esse convívio, pelos mais diversos motivos, era fonte de adoecimento. Adoecimento esse que
muitas vezes levava a internações como mostra a citação a seguir:

Quantas vezes, ainda, não nos vimos optando (na completa inexistência de outra
possibilidade) por uma internação, em momentos críticos de crises familiares, em que o
paciente, às vezes de forma extremamente violenta, começa a questionar um determinado e
mortífero funcionamento familiar. Movimento esse, na essência, extremamente positivo, no

7 FURTADO, J. P. (2004) Residências terapêuticas: o que são? para que servem? Ministério da
Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas estratégicas. Brasilia
8 JUNG, C. G. (1986) A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes

8
qual uma internação, pelas características inerentes da mesma, pode ficar significada como
um ato punitivo e retaliatório. (DIAS, BREYTON e GOLDMAN, 1977 p. 144)

Todavia, não só o convívio familiar poderia gerar crises, como também as dificuldades de
sustentação autônoma de si trouxeram a necessidade de coletivizar o morar. Muitas vezes não
bastava criar uma certa distância em relação aos familiares colocando esses pacientes para morar
sozinhos e administrarem suas vidas, mesmo que assistidas pela equipe de ats. As autoras relatam
tentativas deste tipo de construção, porém também relatam as dificuldades que as fizeram pensar em
uma moradia coletiva.

No decorrer dos quinze anos de trabalho do instituto A Casa, fizemos algumas experiências
nessa linha, enfrentando, junto aos nossos pacientes, o problema da moradia. Um pequeno
apartamento ou um flat, por exemplo. Algumas destas experiências com certo sucesso,
outras frustradas, e, como regra geral, junto aos ganhos referentes à autonomia e ao alívio
de tensão, muitas dificuldades no gerenciar da solidão, do isolamento recorrente da
organização necessária, dos cuidados com alimentação, limpeza, higiene, etc. (DIAS,
BREYTON e GOLDMAN, 1977 p. 144)

Deste texto foi pinçada essa primeira questão que interessa a este trabalho, que era exatamente
o nascimento de uma residência não a partir dos egressos de longas internações, e sim, a partir
daqueles que necessitavam de casa, como forma de saúde, para que justamente não acabassem em
sucessivas e/ou longas internações. Parece ser essa também a genealogia da Casa onde trabalho há 4
anos, em Pendotiba. Em geral as pessoas que lá residem ou que por lá já residiram estavam em
situações semelhantes.

Além dessa questão acabei por me deparar no texto com outro aspecto que aproxima as três
experiências que estou estudando. Parece haver nessas casas um certo borramento das fronteiras que
dividem trabalhar e morar.

Em Kingsley Hall, apesar de não ter sido exatamente uma residência terapêutica, muitas
pessoas acabaram morando por lá. Não só os ditos loucos, mas por muitas vezes também os
antipsiquiatras que faziam os mergulhos em suas próprias loucuras, de modo que era fácil flagrar o
borramento entre as fronteiras entre aqueles que assistem e aqueles que são assistidos.

Já na República essa questão parece ter sido formulada a partir da ideia de que os ats que
acompanhavam o dia a dia da casa precisavam eles mesmos de serem um pouco moradores. Isso se

9
revela através da expressão que criaram para essa função: at morador.

De cara nos denominamos A.T. morador, ou morador com mais experiência. Experiência
do que?, rapidamente nos perguntamos. A denominação “morador” marcava uma qualidade
de presença desejada. Um lugar de companheiro, colega para esse A.T. solitário presente na
República todos os dias. (DIAS, BREYTON e GOLDMAN, 1977 p. 146)

E as autoras seguem trazendo o estranhamento de estarem trabalhando, porém em um trabalho


que exigia delas uma espécie de investimento desejante na casa, mas este investimento, como forma
de intervenção, precisava se dar a partir do lugar de moradoras.

Quanta pessoalidade há no morar e quão conflitivo para nós, A.T.s, “psis”, amantes da
psicanálise, deixarmo-nos habitar. Fazermo-nos usar por meio daquilo que se explicita no
cotidiano: a roupa num domingo de verão, o livro que lemos, o nome do amigo ao telefone,
o jeito na cozinha, a habilidade ou não nas tarefas domésticas. (DIAS, BREYTON e
GOLDMAN, 1977 p. 147)

Na Casa de Pendotiba essa questão parece ter ganhado uma maior extensão, lá esse at
morador é efetivamente um morador, dividindo e compartilhando desse morar. Porém a questão
ganha outras nuances já que há todo um entendimento de que o morar precisa ser ele mesmo
terapêutico. Assim, mesmo os terapeutas que não residem efetivamente na casa, mas que por lá
ficam durante horas, muitas vezes dias, sentem a casa como sendo sua. Uma estranha casa onde
cabe todos os pronomes possessivos ao mesmo tempo que não cabe nenhum, de modo que posso
dizer que a casa é minha, mas que também é dele, que também é nossa, e que não é de ninguém.
Todos depositam ali suas próprias casas e ao fazerem isso as modificam. O somatório desses
processos constitui a casa como um todo. Mas também poderia dizer o inverso: que a casa como um
todo dispara esses movimentos de modificação das casas de cada um. Assim se dá uma casa
psicótica, totalmente distinta de uma casa neurótica.

Há então um pensamento de que o morar é terapêutico. Isso leva a um esforço de


entendimento da função terapêutica e das intervenções da própria casa. Está se falando de uma
intervenção produzida pela casa, uma intervenção que não é só das pessoas com as pessoas ou das
pessoas na casa, mas uma intervenção da casa nas pessoas. Como se costumou dizer no dia a dia da
Casa: essa casa é para quem precisa de casa.

1
0
2.2 - Linha 2: As residências terapêuticas para egressos de internações sem
outras possibilidades de moradia

Nessa linha faremos a análise a partir da cartilha informativa produzida pelo Ministério da
Saúde em 2004, sob organização de Joarez P. Furtado: Residências terapêuticas, o que são? para
que servem?9, assim como através de algumas portarias que versam sobre esses serviços. Depois
faremos o confronto desse material com a experiência vivida por mim no dia-a-dia como at em duas
residências do segmento do CAPS Pedro Pellegrino.

Vamos começar pela cartilha do Ministério da Saúde, pois ela versa sobre o lugar das
residências terapêuticas nas políticas de desinstitucionalização. Na introdução a residência
terapêutica é apresentada junto aos programas De Volta Para Casa e Programa de Reestruturação
dos Hospitais Psiquiátricos como as ações que vem “concretizando as diretrizes de superação do
modelo de atenção centrada no hospital psiquiátrico”.

Logo no início do texto fala-se do público ao qual se destina tal serviço. Aqui surgem as duas
linhas de análise que estabelecemos. Mais adiante, quando formos analisar a minha experiência no
segmento do CAPS Pedro Pellegrino, veremos o porque resolvemos fazer esta análise na linha 2.
Diz a cartilha:

As residências terapêuticas constituem-se como alternativas de moradia para um grande


contingente de pessoas que estão internadas há anos em hospitais psiquiátricos por não
contarem com um suporte adequado na comunidade. (...) Pessoas que poderiam deixar o
hospital psiquiátrico com a garantia de seu direito à moradia e ao suporte de reabilitação
psicossocial. (FURTADO, 2004, p.5)

Essa corresponde à linha 2 de nossa análise, porém logo em seguida o texto apresenta o que
seria a linha 1:

Além disso, essas residências podem servir de apoio à usuários de outros serviços de saúde
mental que não contem com suporte familiar e social suficientes para garantir espaço
adequado de moradia (...). Existem também usuários sem histórico de internações

9 SAMUELS, A., SHORTER, B. e PLAUT, F. (1988) Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago

1
1
prolongadas mas, que por razões diversas, precisam de dispositivos residenciais que
permitam prover adequadamente suas necessidades de moradia. (FURTADO, 2004, p.5)

Mais a frente, no item Origens e Perspectivas dos SRTs no Brasil, a cartilha explica que logo
no início das ações de desinstitucionalização no Brasil surgiu o problema do que fazer com os
usuários que “não contavam com suporte familiar ou de qualquer outra natureza” (FURTADO,
2004, p.6) e que este assunto foi amplamente discutido na II Conferência Nacional de Saúde Mental
em 1992. Explica também que algumas experiências piloto no começo dos anos 90 “geraram
subsídios para elaboração da Portaria nº 106/2000, do Ministério da Saúde, que introduz os Serviços
Residenciais Terapêuticos (SRTs) no âmbito do SUS.

Apesar da cartilha apontar a necessidade de residências terapêuticas tanto para egressos (linha
2) quanto para pessoas que não tenham necessariamente passado por internações prolongadas (linha
1), quando vamos ler a Portaria nº 106/2000, notamos que ela não contempla as situações descritas
na linha 2. Fica bem clara a determinação do público para estas residências no parágrafo único do
art 1º:

Entende-se como Serviços Residenciais Terapêuticos, moradias ou casas inseridas,


preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos
mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam
suporte social e laços familiares e, que viabilizem sua inserção social.

No parágrafo único do art2º-A fica também determinado o que se quer dizer por longa
permanência: “para fins desta portaria, será considerada internação de longa permanência a
internação de dois anos ou mais ininterrupta”

Continuando a pesquisa pude constatar que a destinação das residências terapêuticas para os
pacientes egressos de longa internação foi ratificado sem alteração em todas as outras portarias
existentes até hoje

O que foi possível entender a partir das análises realizadas é que a prevalência de pacientes
egressos se deu nas residências terapêuticas criadas pelo SUS. Que apesar de na cartilha
desenvolvida pelo Ministério da Saúde ser considerado também um público não de egressos, as leis
que instituem esse serviço via SUS não levam esse público em conta. A necessidade de acabar com
as longas internações é que foi o real motivo da construção dessas residências. Como a demanda era
demasiadamente extensa as residências precisaram ser construídas de forma rápida e através de

1
2
modelos aplicáveis em larga escala e em diferentes regiões do país. Um grande esforço de estado
de mudar a lógica hospitalocêntrica. Contudo tal formatação e tal aplicação de modelo podem ter
gerado excessivos endurecimentos no funcionamento de tais casas.

Já nas residências constituídas para além das regulamentações do SUS, não só egressos de
longa internação, mas principalmente pessoas que não tinham mais como se sustentar de forma
saudável no seio de suas famílias se tornaram o público principal. Porém tais iniciativas não eram
regulamentadas por nenhuma política de estado, viabilizando assim um caráter mais experimental
de tais residências.

Essa diferença talvez possa ter grande importância para a análise que pretendemos empreender
a respeito dessas residências a partir da noção de complexo de Jung, pois é do complexo casa que
estamos falando. Porém antes vamos ver o que é a teoria dos complexos em Jung.

1
3
3. A TEORIA DOS COMPLEXOS E A GRUPALIDADE

Neste capítulo vamos explorar a teoria dos complexos, especialmente o texto Considerações
Gerais sobre a teoria dos complexos, pronunciado na aula inaugural da escola politécnica federal de
Zurique em 05 de maio de 1934, que se encontra no livro a Natureza da Psique de C. G. Jung 10.
Neste texto o autor começa situando o modo como descobriu os complexos, a partir do teste de
associação desenvolvido por ele. Jung percebe que a velocidade média das reações é perturbada
pelo automatismo da psique, o que ele chama de assimilação. A causa desta perturbação, que em
um primeiro momento era percebida como falha de reação, eram os complexos de tonalidade
afetiva.

Isso tem-se verificado principalmente nas experiências de associação, e nestas ocasiões se


descobriu que o objetivo do método que era determinar a velocidade média das reações e de
suas qualidades, era resultado relativamente secundário, comparando-se com a maneira
como o método tem sido perturbado pelo comportamento autônomo da psique, isto é, pela
assimilação. Foi então que descobri os complexos de tonalidade afetiva que anteriormente
eram registrados sempre como falhas de reação (JUNG, 1986, p. 28)

Essas “falhas de reação”, que são em geral tempos de reação prolongados, vêm intervir no
teste de associação por conta de conteúdos inconscientes que, estimulados por certas palavras,
catalisam determinados afetos, o que Jung chamou de constelação. “…este termo [constelação]
exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na
aglutinação e na atualização de determinados conteúdos.” (JUNG, 1986, p. 29) Estar constelado
então significa reagir defensivamente de uma forma específica determinada por conteúdos que a
consciência não tem acesso.

A expressão ‘está constelado’ indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de
expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A constelação é um
processo automático que ninguém pode deter por própria vontade. Esses conteúdos
constelados são determinados complexos que possuem energia específica própria. Quando a
experiência em questão é a de associações, os complexos em geral influenciam seu curso
em alto grau, provocando reações perturbadas, ou provocam, para as dissimular, um
determinado modo de reação que se pode notar, todavia, pelo fato de não mais
corresponderem ao sentido da palavra-estímulo. (JUNG, 1986, p.29)

10 JUNG, C. G. (s/d) Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

1
4
Jung compara o teste de associação às conversações cotidianas. Diz que nesses diálogos certas
palavras deixam revelar os conteúdos constelados, porém isto pode provocar uma certa inadequação
na medida em que o interlocutor, tomado pelos conteúdos constelados acaba por reagir mais a esses
conteúdos do que à própria conversação. Assim a pessoa age mais de forma automática do que de
acordo com as suas intenções.
Para além da unidade da consciência e das intenções da vontade, os complexos podem
dominar o indivíduo. Jung mostra como a própria memória pode ser afetada pelos complexos que
em determinadas situações pode produzir lacunas e/ou falsificações.

A existência dos complexos põe seriamente em dúvida o postulado ingênuo da unidade da


consciência que é identificada com a “psique”, e o da supremacia da vontade, toda
constelação de complexos implica um estado perturbado de consciência. Rompe-se a
unidade da consciência e se dificultam mais ou menos as intenções da vontade, quando não
se tornam de todo impossíveis. A própria memória, como vimos, é muitas vezes afetada.
(JUNG, 1986, p. 30-31)

Jung usa também o modelo energético para compreender o funcionamento dos complexos.
Ele crê que os complexos, além de mobilizarem conteúdos específicos, mobilizam grandes
quantidades de energia. Daí vem a explicação do fato de que os complexos podem se sobrepor a
consciência, à vontade e à memória. Teriam os complexos mais energia acumulada que tais
instâncias da psique. O comportamento e até mesmo os pensamentos podem ser possuídos por tais
complexos, retirando a liberdade, visto que, quando ativados de alguma forma assumem o controle
fazendo o indivíduo passar por situações estarrecedoras até mesmo para o próprio.
Mais a frente, Jung se pergunta como definir um complexo afetivo cientificamente e a sua
resposta parece afirmar que o complexo é uma imagem:

é a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso,
incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Esta imagem é dotada
de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente
elevado de autonomia... (JUNG, 1986, p.31)

Nesse sentido Samuels, Shorter e Plaut 11 reiteram que “um complexo é uma reunião de

11 Na página 196 das Memórias do Jung encontramos uma nota da Aniela Jaffé, compiladora e editora do livro, que
achamos importante reproduzir aqui: “A torre de Bollingen não era, para Jung, apenas uma casa de férias. Na velhice,
ele passava lá metade do ano trabalhando e descansando. ‘Sem minha terra, minha obra não viria à luz.’ Até idade
avançada, Jung fazia exercícios cortando lenha, tratando a terra, plantando e colhendo. Nos seus anos de mocidade, a
paixão era velejar e praticar outros esportes náuticos” (JUNG, s/d p. 196)

1
5
imagens e ideias, conglomeradas em torno de um núcleo derivado de um ou mais arquétipos, e
caracterizadas por uma tonalidade emocional comum” (SAMUELS, SHORTER, e PLAUT, 1988,
p. 49)
Posteriormente Jung vai relacionar o complexo ao problema das possíveis cisões da
personalidade. Cita as experiências de Pierre Janet e Morton Prince que postulam que em casos de
cisão de personalidade acreditam que cada uma delas possui consciência, caracterologia, e até
mesmo uma memória própria. Para Jung esses fragmentos da personalidade podem coexistir sem
necessariamente se comunicar, tendo assim um grau elevado de independência uns em relação aos
outros. Estes fragmentos podem, de forma autônoma, reversar-se de tal maneira que cada um deles
assuma o controle em situações específicas. Jung chega mesmo a afirmar que “não há diferença de
princípio alguma entre uma personalidade fragmentária e um complexo” (JUNG, 1986, p.31)
Para justificar tal cisão e tal autonomia dos complexos, Jung recorre às experiências do
sonho e da psicose, afirmando que, nos sonhos os complexos aparecem personificados, como se
fossem personagens que tem vontade e que são capazes de agir por si próprios. Na psicose os
complexos assumem autonomia e se manifestam através das alucinações que são como vozes
internas, porém atribuídas ao mundo externo, muitas vezes sentidas como ordem que submetem o
indivíduo.
No dicionário crítico de Análise Junguiana os autores, no verbete sobre complexo, deixam
evidente esta questão da fragmentação da personalidade, situando inclusive um certo combate
estabelecido por Jung às noções unitárias de personalidade. Dizem os autores: “A noção de um
complexo baseia-se em uma refutação de ideias monolíticas de personalidade.” (SAMUELS,
SHORTER e PLAUT, 1988, p. 49)
Porém qual seria a etiologia desses aspectos parciais da psique dissociados, ou seja dos
complexos? Nesse momento é a teoria do trauma que vem responder a questão. Por conta da não
assimilação de uma emoção muito forte que um pedaço da psique é arrancado e posto para fora. Tal
trauma pode ser muitas vezes causado por um conflito moral que impede a integração da totalidade
da natureza humana.
Em determinados casos a força do complexo é tamanha que o próprio “eu” pode ser
assimilado por ele, “resultando daí uma modificação momentânea e inconsciente da personalidade,
chamada identificação com o complexo” (JUNG, 1986, p.33). Tal identificação com o complexo
Jung vai relacionar aos fenômenos medievais de possessão. Dirá ele que não há diferença de
natureza, somente de grau, entre um lapso de linguagem e as blasfêmias de um possesso. Porém em
uma concepção moderna já não mais se pode considerar os complexos como entidades próprias, isto
é, como demônios. Considera-se atualmente um complexo como uma espécie de imaginação ou
fantasia, todavia isto não aplaca em nada o sofrimento causado quando se é possuído por um

1
6
complexo. O que importa aqui é salientar o caráter profundamente autônomo do complexo. Querer
atribuir o complexo apenas à disposição adoecida de um indivíduo, seria, segundo Jung, uma
disposição apotropaica.
Para Jung é mais confortável para a consciência considerar o complexo como algo seu e assim
fazer tudo para ocultá-lo do que lidar com essa instância autônoma, isto é, com algo de fora da
consciência e com força suficiente para dominá-la. O modo como a consciência faz isto é tentando
desqualificar como irreal ou fantasioso os movimentos do complexo. Porém,

a explosão da neurose assinala o momento em que já nada mais se pode fazer com os meios
mágicos primitivos dos gestos apotropaicos e do eufemismo. A partir deste momento o
complexo se instala na superfície da consciência, não sendo mais possível evitá-lo, e
progressivamente assimila a consciência do eu da mesma forma como esta tentava
anteriormente assimilar o complexo. O resultado final de tudo isto é a dissociação
neurótica da personalidade. (JUNG, 1986, p 34)

Jung vai avançar no sentido de entender que o temor dos complexos na verdade é o temor do
próprio inconsciente, revelando alguma espécie de não integração da própria psique. O temor dos
complexos que pode ser confundido com uma crença nos espíritos seria como que uma maneira de
afastar o lado obscuro de nós mesmos.

a crença nos espíritos difundida universalmente, é expressão direta da estrutura do


inconsciente, determinado pelos complexos. Os complexos, com efeito, constituem as
verdadeiras unidades vivas da psique inconscientes, cuja existência e constituição só
podemos deduzir através deles. (JUNG, 1986, p.35-36)

Ao se encaminhar para o final de sua palestra, Jung reconhece a sua dívida para com Freud
como sendo aquele que teve a coragem de enfrentar esses pontos obscuros, descobrindo assim o
inconsciente. Porém faz uma certa crítica dizendo que Freud classificou esses pontos obscuros
como atos falhos, dando assim uma certa conotação negativa ao inconsciente. Para Jung,
diferentemente de Freud, não são os sonhos, mas sim os complexos a via régia para o inconsciente.
Os sonhos, os sintomas e os atos falhos teriam nos complexos a sua origem.
Jung ainda versando sobre a descoberta de Freud vai fazer uma certa leitura de que Freud
elaborou a sua visão sobre o inconsciente através da teoria do recalque por estar lidando
diretamente, no diálogo com seus pacientes, com o temor do complexo. Para Jung,

o temor do complexo é um preconceito fortíssimo, pois o medo supersticioso do que é


desfavorável sobreviveu intocado pelo nosso decantado iluminismo. Esse medo provoca

1
7
violenta resistência, quando investigamos os complexos, e é necessária alguma decisão
para vencê-lo (JUNG, 1986, p.36)

Nesse sentido, para Jung os complexos não derivariam do recalque e sim seriam componentes
normais da vida psíquica, que podem apresentar aspectos positivos ou negativos. O recalque teria
muito mais a ver com este temor do complexo do que com sua natureza, visto que “(…) as pessoas
tem repugnância em considerá-los como manifestações normais da vida” (JUNG, 1986, p. 36). Ao
final do texto, Jung aproxima sua teoria dos complexos, porém sem nomear, de uma teoria animista.
Diz ele “a existência dos complexos, isto é, de fragmentos psíquicos desprendidos, é um resíduo
notável do estado de espírito primitivo” (JUNG, 1986, p.38). Jung ressalva porém que este
primitivo quer dizer para ele, original, e que não convém desejar a superação deste primitivo, pois o
identifica a própria humanidade. Ao fim da palestra Jung afirma ter falado apenas sobre aspectos
fundamentais da teoria dos complexos, deixando em aberto para futuros debates três problemas
relativos à questões terapêuticas, filosóficas e morais.

Agora gostaria de tocar o problema filosófico discutindo a possibilidade de considerar o


complexo não de um indivíduo, mas de um grupo. Isto porque estou às voltas com a RT, que
entendo como um dispositivo grupal. Para fazer a análise deste dispositivo através de uma
perspectiva junguiana será necessário um deslocamento conceitual que permita pensar a teoria dos
complexos na grupalidade. Esse deslocamento foi o que a autora Laura Villares de Freitas fez em
seu texto “Grupos vivenciais sob uma perspectiva junguiana”. Para isso ela se serviu de pensadores
como Edward C. Whitmont e L. Zinkin. Acompanharei aqui parte da sua argumentação.
A autora começa fazendo uma pergunta-problema, a saber, “grupos sob uma perspectiva
junguiana?”. Tal problema se coloca por conta da posição que o aspecto social (grupal) assume na
obra de Jung. A autora constata que,

...no conjunto de sua obra (de Jung), somos constantemente alertados pelo autor dos perigos
de regressão, contágio ou intoxicação psíquica, criação de dependência mútua, perda de
autonomia, massificação e fuga do confronto consigo próprio. Jung deixa claro que seu
método de trabalho era a análise individual e não estimulava trabalhos em grupos.
(FREITAS, 2005. p.51)

Freitas segue apresentando um estranhamento. Esse estranhamento diz respeito à relação


entre indivíduo e coletivo, duas noções que aparecem em conceitos centrais da obra de Jung:
processo de individuação e inconsciente coletivo. Porém, afirma a autora, “...parece-me que,
embora a individuação implique a ampliação e constante estruturação dinâmica da consciência, o

1
8
indivíduo não é sinônimo de ou equivalente à consciência, e tampouco coletividade corresponde a
inconsciente.” (FREITAS, 2005. p.51)
Tal afirmação me faz questionar o estatuto do coletivo em Jung. Parece que coletivo não
corresponde ao social, tendo o primeiro um valor positivo enquanto ao segundo é reservado um
valor negativo. É estratégia de Freitas a positivação do social através da noção de grupo. Essa
positivação é fundamental, pois se está lidando com um dispositivo clínico que se insere na
perspectiva da reforma psiquiátrica, onde as estratégias visam a reinserção do louco através do
social.
Para essa positivação a autora se vale do pensador pós junguiano Whitmont, que tenta
desfazer a identificação entre grupo e massa na obra junguiana. Whitmont, segundo Freitas,
considera a experiência grupal uma maneira do inconsciente se manifestar. Explorar tal experiência
no grupo, para o autor, tem tanto valor quanto às técnicas de exploração individual do inconsciente,
tais como a análise dos sonhos ou imaginação ativa, todavia ressalta as vantagens da “análise num
setting grupal” (FREITAS, 2005. p.51). Tais vantagens seriam as seguintes:

...o indivíduo sente que pertence a algo maior, pode experienciar tanto conformidade
quanto singularidade, buscar auto-sustentação, conviver com uma ampla gama de tipologias
e pontos de vista, vivenciar situações numa concretude maior e, além disso, amplia-se o
trabalho com as projeções e as possibilidades de um relacionamento genuíno. Whitmont
destaca que o arquétipo do grupo pode ser vivenciado tanto na dimensão que envolve
sentir-se pertencendo, quanto na que implica valores e leis. (FREITAS, 2005. p.51)

Zinkin, segundo a autora, é um outro pensador importante para se pensar o trabalho com
grupos sob perspectiva junguiana. Este teria feito valiosos deslocamentos conceituais que conferem
ao relacional, ao grupo, ao social, um primado sobre o individual. Sendo assim:

...o relacionamento é primário e o indivíduo é uma realidade secundária. Desde o início da


vida estamos em relação, e o mundo interno é uma construção que deriva da comunicação
interpessoal. Temos de nos encontrar no diálogo com outras pessoas antes de poder
dialogar conosco. Também na análise, individual ou grupal, a imagem de si próprio resulta
da interação. O grupo é concebido como o ambiente natural em que o indivíduo se torna ele
mesmo, assim como a planta que brota de um solo fértil. (FREITAS, 2005. p.55)

Para Zinkin, ainda segundo Freitas,

cada indivíduo é como um nó numa rede, que seria a matriz do grupo. A partir dessa
analogia, propõe o conceito de inconsciente cultural, pois para ele, Jung não negligenciou a
importância da cultura, embora tenha enfatizado mais o acultural em detrimento do papel

1
9
da transmissão cultural. É importante não esquecer que os arquétipos se constituem e
ganham forma em situações de interação, só tendendo a funcionar como entidades
independentes e autônomas em casos patológicos, pois, em contextos compartilhados, sua
função natural é facilitar a interação e a comunicação. (FREITAS, 2005, p. 55)

Desta maneira, podemos afirmar que todo processo de individuação se dá através de uma
experiência grupal. O inconsciente coletivo é deslocado de uma instância intrapsíquica para uma
instância interpsíquica. Assim sendo, as noções de coletivo e de social são aproximadas, permitindo
que os arquétipos sejam pensados menos através de aspectos universais e mais através de aspectos
culturais. Como mostra a citação, Zinkin chega a propor o conceito de inconsciente cultural. Este
tipo de deslocamento, que afirma o primado do social sobre o individual, continua a ser feito pelo
restante do texto. São propostos conceitos como self grupal, insight grupal, consciência grupal,
sombra grupal, símbolos grupais. É no sentido desse mesmo deslocamento que pretendemos afirmar
que uma RT, enquanto um dispositivo coletivo, possui seus próprios complexos.
Pretendo no próximo capítulo me embrenhar pelo problema terapêutico através da
aproximação da teoria dos complexos, agora entendido como um processo grupal, com o
dispositivo da residência terapêutica.

2
0
4. O COMPLEXO CASA E SUAS IMPLICAÇÕES NOS DISPOSITIVOS
RESIDENCIAIS

Foi visto no capítulo anterior a teoria dos complexos elaborada por Jung. Agora, neste
capítulo, será trabalhado o complexo casa. Creio na necessidade de entendermos esse complexo e
suas dinâmicas, pois ao lidarmos com dispositivos residenciais estamos necessariamente às voltas
com ele. Como vimos no primeiro capítulo, a residência terapêutica foi criada como forma de
intervenção para aqueles pacientes que, de alguma forma, a questão da casa e do morar eram
cruciais em seus estados de adoecimento, seja porque não existem mais condições dessas pessoas
morarem sozinhas ou nas casas dos seus familiares, seja porque haviam perdido suas referências de
casa devidos a longas internações. Em ambos os casos podemos dizer que os processos terapêuticos
de tais pacientes (no caso moradores) passa necessariamente pelo trabalho com o complexo casa.
Está aí uma especificidade do dispositivo residência terapêutica: um dispositivo que incide de forma
terapêutica na questão casa.

Jung, em sua autobiografia12, pode nos ajudar a pensar o complexo casa. No capítulo
intitulado “A Torre”, o autor conta todo o processo de construção de sua “casa de campo” 13, desde a
compra do terreno em 1922 até sua forma definitiva em 1955. Não irei refazer o percurso do seu
processo, pois produziria um desvio muito grande em relação aos objetivos desse capítulo. Porém
farei, a partir do seu relato, uma distinção que, apesar de não ser clara no texto de Jung, pode ser
relevante para pensarmos as especificidades do dispositivo residência terapêutica.

A distinção que gostaria de fazer, ainda que essa distinção não seja completa e absoluta, é
entre duas formas de entendimento de atuação do arquétipo casa e do complexo a ele relacionado.
Uma trata mais da produção da subjetividade através dos aspectos concretos das ações ligadas à
construção, manutenção, arrumação, dinâmicas de funcionamento etc. da casa. A outra está mais
ligada aos aspectos representativos, tais como leituras, interpretações, significações que a
concretude da casa foi tomando a posteriori aos olhos de Jung. Para exemplificar essas duas formas
presentes no texto escolhi um parágrafo onde Jung salta de uma forma a outra. A parágrafo começa
trazendo a questão da casa de uma forma mais representativa:

12 Loucura Suburbana
13 Segundo Bakhtin o carnaval remonta a cultura popular da Idade Média européia. Nessas festas havia uma suspensão
da ordem social estabelecida em nome do que ele veio a chamar de “baixo ventre”. Em sua análise o ordenamento
racional e moral da sociedade corresponde às funções exercidas pela metade superior do corpo que tem como objeto a
ser ordenado a metade inferior do corpo. O carnaval teria como função criar uma ruptura na temporalidade social onde
haveria uma inversão, colocando o baixo ventre no comando e destituindo a metade superior do corpo de seu poder. O
ato inaugural desta inversão se dava através do ritual onde o rei era rebaixado ao estatuto de plebeu enquanto um plebeu
era elevado ao estatuto de rei, tendo esse ato efeitos de suspensão das leis jurídicas e do código de condutas morais.

2
1
Desde o início, a torre foi para mim um lugar de amadurecimento - um seio materno ou
uma forma materna na qual podia ser de novo como sou, como era, e como serei. A torre
dava-me a impressão de que eu renascia na pedra. Nela via a realização do que, antes, era
um vago pressentimento: a representação de uma individuação. Um marco, aere perennius.
Ela exerceu sobre mim uma ação benfazeja, como a aceitação daquilo que eu era. (...)
(JUNG, s/d. p. 197)

Porém no meio do parágrafo ele começa a falar da ação concreta da construção da casa,
comparando-a a uma espécie de sonho que simplesmente foi se dando sem muitas reflexões: “...
Construíra a casa em partes separadas, obedecendo unicamente às necessidades concretas do
momento. Suas relações interiores jamais tinham sido objeto de minhas reflexões. Podia-se dizer
que construíra a torre numa espécie de sonho.” (JUNG, s/d. pp. 197-198) Logo em seguida retorna
falando da leitura que ele fez a posteriori dos processos vividos: “... Somente mais tarde percebi o
que tinha nascido, e a forma plena de sentido que disso resultara, símbolo da totalidade psíquica.
Ela se desenvolvera como um grão antigo que tivesse germinado.” (JUNG, s/d. p. 198)

Essa distinção foi realizada, pois ela parece importante para pensar a residência terapêutica.
Esse dispositivo, como visto, vem sendo utilizado, na maioria das vezes, para pacientes
considerados graves. Em geral psicóticos. Logo é um dispositivo que se insere muito mais numa
clínica das psicoses do que das neuroses. Essa questão talvez seja de crucial importância na
construção da casa. Muitas vezes, quando se está por exemplo em uma oficina de argila com um
psicótico, o que mais interessa é um processo de organização que está muito mais no ato de ir dando
forma àquela argila do que o que representa ou significa a forma final dada à argila. Assim talvez
possa ser pensado esse dispositivo: também interessa mais todo o trabalho de construção e de
transformação da casa que lida diretamente com o arquétipo casa e todo o complexo que gira ao seu
redor, sendo isso o que é considerdo terapêutico na residência, mais do que as significações e
representações assumidas a posteriori. Essas últimas talvez tenham mais a ver com as lógicas de
funcionamento neuróticas e, a rigor, não precisam da residência para serem trabalhadas. Poderiam
muito bem ser trabalhados em outros dispositivos, como por exemplo o próprio consultório. Sendo
assim, é no intuito de manter a especificidade clínica do dispositivo residência terapêutica que
enfatizei os movimentos concretos de construção, manutenção, arrumação, dinâmica de
funcionamento, etc. em sua estreita relação com o complexo casa como sendo o que mais me
interessava. Porém agora gostaria de apresentar algumas cenas vividas por mim nas três residências
terapêuticas onde trabalho, de forma que elas nos ajudem a entender as implicações do complexo
casa no dispositivo residência terapêutica.

2
2
4.1 Cena 1

Era a semana anterior ao carnaval. Semana em que sai um já tradicional bloco 14 que reúne
trabalhadores, familiares, usuários da saúde mental entre outros… Afinal se trata de carnaval, época
de misturas onde os papéis sociais e funções estabelecidas sofrem um afrouxamento como nos
mostrou Bakhtin15, (2008). Cheguei em uma das duas residências do seguimento do CAPS Pedro
Pellegrino na qual trabalho para de lá partimos para o bloco. Cheguei na casa acompanhada do
coordenador de seguimento e assim que cruzamos a porta fomos recebidos por uma das moradoras
que se encontrava bastante ansiosa. Ela tinha um papel de destaque no bloco e estava ansiosa com
os detalhes a respeito da roupa que iria usar, de quem iria acompanhá-la e de mais uma infinidades
de coisas que mal podíamos entender. Foi em meio a esse momento confuso que o coordenador
pede para usar o banheiro. A moradora absorta em suas preocupações nem ouviu a solicitação do
coordenador, que acabou por reiterar o seu pedido. A moradora numa espécie de estranhamento
responde:

- Ué, usa lá! Não precisa pedir não.

- Quando a gente está na casa dos outros tem que pedir licença para usar o banheiro - rebateu
o coordenador.

- Tá, mas não precisa! Pode ir lá direto - insiste ela, como se não tivesse feito muito sentido a
argumentação do coordenador.

Após esse diálogo o coordenador se dirige ao banheiro. Ao retornar, algo na cena parecia ter
se transformado. Podemos dizer que, se houve um pequeno deslocamento é porque houve uma
intervenção. Porém o que de fato interveio nessa cena? Se enfatizarmos o campo representativo
ligado às significâncias, a intervenção teria se dado através da intenção quase pedagógica do
coordenador de fazer a moradora entender que a casa era dela e não dele e por isso seria de bom
tom, segundo as convenções sociais que ele lhe pedisse autorização. Todavia, um outro universo se
abre se não mais permanecermos no campo representativo. Nesse caso não seriam as intenções do
coordenador que teria intervido e sim sua própria necessidade, no caso a necessidade de usar o
banheiro. Mas antes de seguirmos a análise, o que será feito no final do capítulo, pulemos para a
próxima cena.

14 Essa é uma prática comum nos hospitais psiquiátricos como forma de preservar minimamente os objetos pessoais.
15 Ver FREUD, S.(1988) Luto e Melancolia. In: Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud Vol XIV. Rio de
Janeiro: Imago

2
3
4.2 Cena 2

No seguimento do CAPS Pedro Pellegrino trabalho como at de duas residências. A cena


anterior se passou numa delas. Essa se deu na segunda casa, uma casa com moradores que na
maioria deles apresentam dificuldades motoras. Além disso são idosos que passaram por longos
períodos de institucionalização de modo que suas referências de moradia tem mais relação com o
hospital psiquiátrico do que com as longínquas casas de suas famílias. Uma casa que também
sofrera muitas perdas nos últimos dois anos. Cinco moradores, neste período, faleceram e novos
moradores lá chegaram, porém em condições semelhantes. A cena que escolhi descrever não é uma
cena inusitada no dia a dia da casa e sim uma cena constante, repetitiva, que parece se situar numa
certa lógica de mortificação presente na casa. A cena é a seguinte:

Muitas vezes quando chego na casa percebo que os cuidadores estão sentados no sofá,
assistindo televisão, ouvindo música junto com os moradores ou mesmo conversando entre si.
Imagino que se eu pudesse entrar sem ser percebida e se já não conhecesse as pessoas não
perceberia diferença entre os moradores e os cuidadores. Porém a cena que sempre se repete no
instante de minha entrada são os cuidadores quase que saltando do sofá como forma de se
diferenciar dos moradores ao se colocarem em atividade. Como que se a minha presença exigisse
que eles mostrassem serviço. Era um salto repentino de alguém que estava em casa sem poder estar
e que diante da at de referência da residência se via imediatamente no trabalho.

Uma questão realmente paradoxal no dispositivo da residência terapêutica: estamos em casa


ou no trabalho? De qualquer forma parece que o complexo casa ganhava, nesse caso, uma estranha
configuração. Tínhamos uma casa morta, quase uma casa mal assombrada. Estranhamente no
quintal dos fundos dessa casa se abria uma porta para um outro quintal, que circulava metade da
casa. Lá haviam outras duas portas: um para uma espécie de depósito, onde se entulhavam todo tipo
de objetos quebrados e fora de uso; a outra era a do arquivo morto. Lá ficam os prontuários de todos
os usuários falecidos do CAPS, incluindo os moradores das RTs.

Três meses antes de eu iniciar o trabalho neste seguimento um morador havia falecido. Ainda
na primeira semana percebi a existência de um quarto que jamais era aberto. Era o quarto do
morador falecido. Qual não foi a minha surpresa ao adentrar o tal quarto e me deparar com todos os
pertences ainda ali, intocados. Estranha sensação ao me deparar com os chinelos que ele havia
cuidadosamente guardado embaixo do seu colchão16, chinelos de alguém que nem conheci, mas que

16 Importante aqui distinguir o que é desospitalização como o processo de saída dos hospitais, no caso psiquiátricos, do
que é o movimento muito maior de desinstitucionalização. Nesse caso além da saída dos hospitais é necessário operar
uma saída também das instituições da doença mental, da periculosidade, da psiquiatria e de todas as outras instituições
que contribuem e atuam nos movimentos de exclusão de uma parcela bastante numerosa de pessoas. Ver BASAGLIA,
F. (1985) A Instituição Negada. Rio de Janeiro: Graal e ROTELLI, F. (1990) Desinstitucionalização. In: NICÁCIO, F.
(org) Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec

2
4
ainda se mostrava presente nessa espécie de indiferenciação entre vivos e mortos. Logo em seguida
percebi no armário onde eram guardados os documentos, exames, livros caixa etc. a permanência
daqueles pertencentes, não só a este (ex?) morador, como os pertencentes a todos que haviam
falecido antes dele.

Hoje me pergunto que trabalho era esse que as cuidadoras insistiam tanto em me mostrar que
estavam fazendo quando eu chegava na casa. Imediatamente se colocavam a varrer, limpar,
cozinhar, relatar ocorridos etc. Porém o quarto estava ali intocado, os documentos também. Percebi
logo de início a necessidade de intervir nessa questão. Como transformar algo como uma casa morta
em uma casa viva, de vivos, para vivos? Precisei entrar na casa literalmente metendo a mão nesses
espaços e objetos carregados de morte. Para isso foi necessário que tomasse a casa como minha pois
não só com os mortos ali presentes precisei lidar mas também com os mortos que trazia em meu
corpo. Adentrar a casa nesse processo de elaboração da morte necessariamente passava por algo
muito íntimo em mim. Qual não foi a minha necessidade de produzir mudanças na minha própria
casa ao revirar esses objetos na RT. De alguma forma se estabeleceu uma conexão muito próxima
entre essas duas casas, de modo que uma reverberava na outra botando em ação processos de luto17.

Porém quero analisar todas essas questões a partir do complexo casa, e isso será feito após a
terceira cena.

4.3 Cena 3

A próxima cena se deu na Casa, foi durante o almoço. Eu e meu filho de 5 anos de idade
havíamos dormido na casa na noite anterior. Depois de uma manhã de muitos afazeres eu estava
dando almoço a um dos moradores, que necessita de um acompanhamento muito próximo nesta
hora. Entre uma garfada e outra que eu colocava em sua boca, o meu filho me pediu um copo de
suco pois havia acabado de almoçar. Ao responder a ele que aguardasse um momento pois estava
ocupada ele me ofereceu ajuda. Olhou pra mim e disse:

- Vai lá que eu vou dando a comida pra ele.

Fui surpreendida por tal atitude, visto que muitas vezes meu filho tem dificuldade de se
aproximar deste morador específico. Desde muito pequeno ele me acompanha em alguns momentos
em que estou na Casa e sempre me foi visível certo ciúme que este morador sente.
17 São definidos como RTs Tipo I as moradias destinadas a pessoas com transtorno mental em processo de
desinstitucionalização, devendo acolher no máximo oito moradores. São definidos como RTs Tipo II as modalidades de
moradia destinadas às pessoas com transtorno mental e acentuado nível de dependência, especialmente em função do
seu comprometimento físico, que necessitam de cuidados permanentes específicos, devendo acolher no máximo dez
moradores.

2
5
O mais interessante dessa cena é que eu me levanto e passo o posto para meu filho,
atendendo seu pedido. Ele continuou a dar o almoço para o morador, que continuou aceitando as
garfadas sem nenhuma resistência. Momentos depois retorno com dois copos de suco, um para
cada. Porém, meu filho continua dando o almoço para ele até o fim do prato, enquanto eu fui fazer
outras atividades. Um tempo depois meu filho chega com o prato vazio dizendo, com toda
naturalidade que o morador havia comido tudo. Pedi a ele que colocasse o prato na cozinha e depois
disso ele vai brincar pela casa enquanto o morador torna a pegar sua bola de basquete e volta a
quica-la pelo quintal.

O espantoso dessa cena é que não há espanto algum. Tudo se dá na naturalidade do


cotidiano. Porém, quantas são as coisas aí envolvidas! O quanto me sinto a vontade para não só
levar o meu filho para lá, quanto de lá pernoitar com ele. Todo um campo afetivo onde compareceu
o ciúme do morador, mas também comparece a experiência vivida por meu filho ao me ver
cuidando de outras pessoas e não tendo a atenção dedicada exclusivamente a ele, mas também eu
experimentando dividir essa maternagem.

Vamos partir agora para a análise dessas três cenas.

4.4 - Análise das cenas

A análise que pretendo fazer terá a lógica da teoria dos complexos e mais especificamente o
que chamamos de complexo casa como base. Como vimos no segundo capítulo, um complexo se
torna dominante em relação aos outros complexos na medida em que seus elementos não são
integrados a consciência. Diz-se então deste complexo que ele está constelado. Seus elementos não
integrados retornam a realidade sob uma certa forma de possessão, gerando uma perda de
autonomia que, em determinados casos, pode chegar até a uma cisão da personalidade. Nesse caso
os fantasmas invadem a realidade.

Na primeira cena, segundo a lógica dos complexos, há uma espécie de confronto entre a “casa
da moradora” e o “não poder sentir-se em casa” do coordenador. Este parece querer dizer a ela que
não estava na sua casa e por isso deveria pedir autorização para ir ao banheiro. Porém, essa lógica
parece não fazer muito sentido para ela. Seria o caso de insistir para que ela entendesse a idéia de
propriedade que está aí colocada? Será que para fazer com que a casa seja dela a casa não pode ser
minha? Talvez tenhamos aí uma confusão de línguas que diz respeito a um diálogo entre a neurose
e a psicose. Na esfera neurótica talvez todas essas representações façam algum sentido, porém

2
6
quando se trata da psicose estamos lidando com um campo não representacional. E se para a
moradora o importante for a construção concreta da casa, uma casa que varia como se varia a
concretude do cotidiano? Talvez a necessidade do coordenador de ir ao banheiro já instaure
imediatamente para ela um “estar em casa” que não passe pelas representações neuróticas. Algo
como “se você precisa ir ao banheiro e aqui há um banheiro, vá, você está em casa”. Não há
apropriação neurótica, a casa é propriedade de quem nela habita e enquanto habita.

E o complexo casa? Havia algo interditado para o coordenador. De antemão, segundo sua
lógica, seria errado ele, enquanto profissional de saúde, sentir-se em casa. Isso teria intenção de
produzir na moradora uma espécie de apropriação neurótica da casa. “A casa não é minha, logo, é
sua”. Não é de se espantar que dentro do universo “psi” algo assim se dê, é a antiga e ultrapassada
neutralidade ainda produzindo seus efeitos, onde as questões do paciente é que devem ter lugar e
para isso, as questões do terapeuta não devem comparecer. Porém, acho que nenhum ser em sã
consciência vai defender a neutralidade num dispositivo grupal como a residência terapêutica. Se
usamos a teoria dos complexos, podemos dizer que a intenção do coordenador é um tiro que saiu
pela culatra. Ao excluir-se da casa, ele não se dá conta dos seus processos de integração do
complexo casa e com isso, ele é como que possuído pela sua casa e tenta de alguma forma impô-la a
moradora. É como se ele, ao estar impedido de sentir-se em casa fosse tomado pelas suas
representações do que é uma casa e quisesse de alguma forma ensinar isto para a moradora. Logo,
no intuito bem intencionado de dar uma casa para a moradora, ele acaba por destituir a casa dela
através de uma certa imposição da sua própria casa. Isso não faz o menor sentido para a moradora,
pois ela insiste no estranhamento que lhe causou a pergunta do coordenador. Parece entender
melhor a sua necessidade de ir ao banheiro do que a sua boa intenção de lhe dar uma casa neurótica.
O impasse ali instaurado só se resolve quando o coordenador desiste de lhe explicar que a casa era
dela e simplesmente vai ao banheiro.

Porém, devemos atentar para uma questão maior presente nesta cena. Essa atitude do
coordenador não é a atitude individual, pois está inserida em uma certa direção tomada na
construção desse tipo de residência terapêutica. Como vimos no capítulo 1, as residências
terapêuticas construídas a partir da necessidade de dar moradia aos egressos dos hospitais
psiquiátricos trazem muito marcadamente essa lógica. Pessoas sem casa que precisam ser inseridas
na sociedade através destes dispositivos residenciais. Talvez a nossa ansiedade em proporcionar-
lhes uma casa tenha um papel muito importante aí, como uma espécie de ressaca da massificação
produzida nos manicômios. Isso pode-se entender, todavia é algo que não pode gerar uma interdição
do “sentir-se em casa” para as pessoas que aí atuam como profissionais. A residência terapêutica,
enquanto dispositivo clínico grupal, não distingue quem ali trabalha de quem ali mora, acionando

2
7
em todos os processos ligados ao complexo casa. Assim sendo, qualquer interdição que inviabilize
que as questões relativas à casa, ao morar, ao habitar, sejam ali colocadas tenderão a ser consteladas
no próprio dispositivo.

Já na segunda cena, temos uma casa onde um “estar em casa” se apresenta sob uma certa
lógica de mortificação, o que parece emergir como aspecto negativo do complexo é uma casa morta
ou mal assombrada. Já não sabemos se são os mortos que produzem esta casa ou se é a casa que
produz estes mortos, tal a autonomia do complexo. Na cena que descrevemos parece que o “estar
em casa” se encontra interditado por uma certa lógica social do trabalho, associada à lógica da
direção terapêutica que analisamos anteriormente. Os cuidadores se põe a “mostrar serviço” no
exato instante em que eu, na qualidade de at da casa, ali ponho os pés. Como se estar junto dos
moradores sentindo-se em casa não fosse estar trabalhando e como se “mostrar serviço” fosse
trabalhar.

Cabe ressaltar que nessa cena está se falando de cuidadores, não mais de um coordenador
como na primeira cena. Nesse sentido algumas diferenças importantes se colocam. Os cuidadores
permanecem nas residências por longos períodos, oito, doze, por vezes vinte e quatro horas,
enquanto ats e coordenadores distribuem o trabalho presencial em vinte e quatro horas semanais,
sendo que boa parte dessas horas são dispensadas para reuniões, supervisão e outras atividades.
Fora essa questão da quantidade de horas no convívio da residência, há também uma divisão social
do trabalho onde o trabalho intelectual é realizado pelos coordenadores e ats, dos quais é exigido o
ensino superior completo e o trabalho braçal exercido pelos cuidadores, dos quais se exige apenas o
ensino médio completo.

Sendo assim, a interdição do “sentir-se em casa” para esses cuidadores que passam longas
horas na casa parece ser muito mais danoso. Nessa casa em especial, o aspecto negativo do
complexo que se apresenta enquanto mortificação da própria casa atua há muito tempo. Esse foi o
meu estranhamento, tudo ali parecia morto como se não houvesse trabalho nenhum, apesar da
flagrante necessidade dos cuidadores de me mostrarem serviço. Mais estranho ainda foi perceber
que aquele serviço que eles insistiam em apresentar não tinha sido capaz de mover em nada os
objetos e lugares das pessoas que haviam morrido. Um trabalho que não era em hipótese alguma um
trabalho de luto e sim um trabalho contra o luto, mantendo a casa na posição de um vivo-morto.

Não sei se foi pelo trauma de uma morte ou se foi pela exclusão da possibilidade de sentir-se
em casa, ou pela mistura destes e de outros fatores que essa situação se deu. O que fica claro é que
mesmo o estar sentado no sofá antes da minha chegada não era um sentir-se em casa propriamente
dito, parecia mais um limbo.

2
8
Hoje posso entender, a partir da intervenção que fiz, que o aspecto negativo do complexo
estava ali completamente constelado. Digo isso, pois a intervenção que fiz foi toda baseada na
minha entrada na casa trazendo junto de mim o que eu faria se essa fosse a minha casa. De fato foi
preciso fazer de lá minha casa. Comecei a dar destino aos objetos e aos lugares que estavam sendo
mantidos ali enquanto mortos-vivos. Era necessário deixá-los ir, os mortos precisavam ser mortos.
O processo foi tão intenso que nem a minha casa foi poupada dele. Matar os mortos produzia um
movimento de vida na casa, porém eu já não sabia mais se os mortos eram os meus mortos ou os
mortos da casa, nem se a casa que estava em movimento era a minha própria casa ou a RT. Muitos
não suportaram esse processo e foram muitas as resistências. Alguns cuidadores pediram
desligamento e uma moradora que estava na UTI de um hospital há meses veio a falecer. O
processo ainda está em curso e uma das resistências que ainda precisa ser quebrada é a retirada do
arquivo morto de lá. O CAPS ainda continua depositando aquilo que considera arquivo morto no
quartinho do segundo quintal.

Já na terceira cena, acontecida numa residência onde a necessidade de casa em geral se deu
como uma alternativa à casa da família, pude viver não a lógica de exclusão do “sentir-se em casa”
e sim, ao contrário, a sua integração. Lá o próprio entendimento do trabalho propicia que eu durma,
leve meu filho, me disponha às dinâmicas afetivas que giram em torno do convívio e dos afazeres
desta mesma casa. A afirmação paradoxal do dispositivo da residência terapêutica onde o trabalho
consiste em lá habitar, ajuda a integrar todos os processos relativos ao complexo casa favorecendo
os seus aspectos positivos.

Como fazer a separação entre morar e trabalhar nessa experiência? Estava eu trabalhando
quando alimentava o morador? E quando passei o posto, era meu filho que estava trabalhando? São
muitas as questões que podem ser levantadas neste sentido. E creio que encontraremos, no modo
como se dá o entendimento e o funcionamento desta casa, sempre respostas paradoxais. É assim,
enquanto paradoxo, que é afirmada a natureza clínica do dispositivo residência terapêutica. É a um
só tempo que lá é um local tanto de moradia quanto de trabalho. Como diz o coordenador, lá só é
um trabalho na medida em que também é a nossa casa.

2
9
3
0
5. CONCLUSÃO

Vimos no capítulo 2 que a residência terapêutica é um importante dispositivo de


desinstitucionalização na Reforma Psiquiátrica, vimos também duas linhas genealógicas de
nascimento da RTs, uma concernente às RTs constituídas a partir dos egressos dos manicômios e
outra linha constituída por aqueles que não tinham mais como habitar suas casas de origem. Daí
extraímos o entendimento de que aqueles que necessitam de uma RT estão às voltas com a questão
casa, questão essa que passamos a nomear, no quarto capítulo, de complexo casa.

Porém foi necessário, para entender a especificidade deste complexo, recorrer à teoria dos
complexos de Jung. Nessa teoria fica claro que o complexo reúne, em torno de um núcleo
arquetípico, um conjunto de conteúdos. Quando esse complexo não se integra à consciência ele
tende a ser constelado, ou seja, a personalidade é como que possuída por tais conteúdos. Todavia a
análise que pretendíamos se daria num dispositivo coletivo. Foi necessário recorrer a autores pós
junguianos que aplicaram os conceitos da psicologia analítica à situações de grupo. Isso nos
autorizou, no quarto capítulo, a pensar o complexo casa não a partir do indivíduo e sim a partir do
próprio dispositivo RT. A partir daí foi possível empreendermos a análise de três situações vividas
em três RTs distintas. Em duas delas, casas constituídas segundo a primeira linha genealógica que
analisamos no segundo capítulo, a interdição do “sentir-se em casa” não favorecia a integração do
complexo casa no próprio coletivo, assim pudemos ver como esse complexo se constelava. Já na
terceira casa, uma casa constituída na segunda linha genealógica, não havia interdição do “sentir-se
em casa”, inclusive esse “sentir-se em casa” era tido como uma direção clínica da própria RT. Isso
favorecia a integração das múltiplas casas que ali habitavam, fazendo da RT, enquanto dispositivo
clínico, o próprio processo de integração do complexo casa.

Sendo assim chegamos à conclusão de que quando estamos lidando com o dispositivo das
residências terapêuticas podemos dizer que necessariamente é do complexo casa que se trata, pois
as pessoas que são atendidas por este dispositivo clínico o são justamente por não terem, de uma
forma ou de outra, bem integrado este complexo. E para nós, terapeutas que desejamos atuar em tal
dispositivo, é necessário saber que é através dos processos de integração de tal complexo que se
dará esta clínica, tanto nos moradores que ali residem quanto na equipe que ali trabalha. A
residência terapêutica é composta, por se tratar de um dispositivo coletivo, de diversas casas. Assim
podemos afirmar que uma residência terapêutica é um dispositivo onde se constelam as diversas
casas que estão em processo de integração. A residência terapêutica, enquanto moradia de muitos, é
uma resultante de casas que foram excluídas com casas que estão sendo construídas nesse processo
de integração.

Se ainda levarmos em conta que a grande maioria dos que necessitam desse dispositivo é

3
1
composta de modo geral por psicóticos, teremos que afirmar que o processo de integração do
complexo casa não se dá pelos seus aspectos representativos e sim pela construção real e concreta
da casa e do seu cotidiano. Seu aspecto terapêutico se encontra em tudo que concerne o próprio
habitar. É através de um cano que estourou, de uma conta que se paga ou não, de um legume que
apodrece na geladeira, de um prego que precisa ser pregado na parede, de um cesto de roupas sujas,
de um local onde se dorme melhor, enfim, da infinidade concreta da realidade cotidiana de uma
casa que se vai integrando o complexo casa.

3
2
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, M. (2008) A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo-Brasília: Hucitec e UnB
BARNES, M & BERKE, J. (S/D) Viagem através da loucura. São Paulo: Círculo do livro
BASAGLIA, F. (1985) A Instituição Negada. Rio de Janeiro: Graal
DIAS, C.; BREYTO, D.M. e GOLDMAN, L. (1997) A República. In EQUIPE DE
ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO DO HOSPITAL DIA CASA (Org) Crise e cidade:
acompanhamento terapêutico. São Paulo: educ, p. 143-151.
FREUD, S.(1988) Luto e Melancolia. In: Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud
Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago
FOUCAULT, M. (1971) Nietzsche, A genealogia e a história. In: Microfísica do poder. Rio
de Janeiro: Graal, 1979. p. 15-37
FREITAS, L. V. (2005) Grupos vivenciais sob uma perspectiva junguiana. In:Psicologia
USP, 2005, 16 (3), pp. 45-69
_____ . (1972) História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva
FURTADO, J. P. (2004) Residências terapêuticas: o que são? para que servem? Ministério
da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas estratégicas.
Brasilia
GODOY, M.G.C. & BOSI, M. L. M. (2007) A Alteridade no Discurso da Reforma
Psiquiátrica Brasileira face à Ética Radical de Lévinas In: PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de
Janeiro, 17(2):289-299, 2007
JUNG, C. G. (1986) A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes
_____. (s/d) Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
ROTELLI, F. (1990) Desinstitucionalização. In: NICÁCIO, F. (org) Desinstitucionalização.
São Paulo: Hucitec
SAMUELS, A., SHORTER, B. e PLAUT, F. (1988) Dicionário Crítico de Análise
Junguiana. Rio de Janeiro: Imago

3
3

Você também pode gostar