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A arte de sensibilizar o olhar ou por que ensinar antropologia?

" (Débora Krischke Leitão)


"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. "
Livro dos Conselhos. *

Marcel Duchamp se permite uma licença poética para definir a pintura como rei da Pérsia, chamou alguns gregos presentes em sua corte e perguntou-lhes
atividade retínica, como arte do olhar. Proponho que se pense então a questão da quanto queriam em troca de comer os corpos de seus pais defuntos. Os gregos
Antropologia , se não como uma arte do olhar, como um exercício de brincar com replicaram que não havia dinheiro suficiente no mundo para fazer isso. Depois
a retina. Ensinar Antropologia seria, assim, possibilitar e estimular jogos de luzes, perguntou a alguns índios da tribo chamada Callatie - que realmente comem os
de ângulos e distâncias. corpos de seus pais defuntos - quanto queriam para queimá-los (referindo-se, é
Um par de óculos e uma centenas de lentes claro, ao costume grego da cremação). Os índios exclamaram horrorizados que
A relação do homem com o mundo é sempre mediada por suas ferramentas. Ele nem se devia falar em coisa tão repugnante"*
constrói, apreende e interpreta a realidade a partir dos instrumentos que lhe são Binóculos: explorando territórios desconhecidos
fornecidos pela cultura. Tecelão quase compulsivo de si próprio, borda sem Partir para o território do outro, dar espaço ao que não é familiar: esse é o
cessar teias de significados para dar sentido ao mundo (GEERTZ,1989:15) Essas primeiro passo para uma possível transformação do olhar, uma relativização de
teias, onde se misturam pontos abertos e fechados, novos e antigos, e linhas de ponto de vista. A curiosidade do homem sobre si próprio sempre existiu, mas a
todas as cores, são a cultura. É a partir desse véu da cultura, dessas lentes, que passagem do curioso, do exótico e do bizarro, para uma consciência da alteridade
vemos então as coisas, os outros, e a nós mesmos. é que marca realmente o pensamento do homem sobre o homem (LAPLANTINE,
Cada cultura, entretanto, teria seu par de lentes próprio, ou, no máximo, um certo 1995:13), e a reflexão a respeito da diferença.
número de lentes utilizáveis, um certo leque de possibilidades de formas de ver o A diversidade cultural só pode ser compreendida se a postura frente ao estranho e
mundo. As lentes de uma sociedade nunca são as mesmas de outra (BENEDICT, ao estrangeiro se tornar mais flexível e permitir existência da diferença enquanto
1997:19). Ainda que tenham semelhanças, são encontradas certas nuanças e diferença, não enquanto hierarquia.
particularidades. O que pode ser considerado ponto comum entre todos os Deve-se então, em primeiro lugar, aceitar que o outro existe, conhecê-lo e
homens é a armação, a existência dos óculos em si. As lentes, sempre diferentes, reconhecê-lo. É preciso perceber que somos apenas uma das culturas possíveis,
vão variar em espessura, cor e formato. e não a única. Conhecendo as diferentes formas de lidar com o mundo, as
Uma vez vendo os outros por detrás dessas lentes, e a partir de uma visão de diferentes respostas dadas pelas mais diversas culturas é que se pode relativizar
mundo, há uma tendência em considerar nossa forma de ver e fazer as coisas o que nos é o estranho, tentando encontrar, assim, no olhar do outro, o ponto de
como a mais correta, ou mesmo a única correta. Tal postura etnocêntrica consiste partida. Nossas lentes muitas vezes nos cegam, quando tentamos ver o que está
em tomar o que é nosso como o verdadeiro, e o que é do outro (e o que é o outro) distante. Ajustemos então essas lentes para mais longe, não deixando que nos
como digno de reprovação, dando assim aos nossos valores um suposto caráter ceguem para o outro e, principalmente, nos tornem míopes para nós mesmos.
de universalidade (TODOROV, 1993: 21). Ensinar a olhar é, assim, antes de tudo, apontar os caminhos desse olhar,
Uma vez estando ao nosso lado todas as verdades e a certezas, estaríamos fazendo nascer a consciência da diversidade cultural e da pluralidade das
autorizados a interferir, em nome de nossa bondade e piedade, no que é do outro. culturas.
Partindo desse pressuposto muitas formas de dominação, e mesmo etnocídios, O Jogo dos Espelhos
tentaram ser legitimados. É a partir do reconhecimento do outro que eu posso, finalmente, entender quem
O Etnocentrismo não é, entretanto, exclusividade de nossa sociedade ocidental e sou. Cruzar a fronteira, deixando meu território, é a melhor forma de - olhando
moderna. É um fenômeno que se registra por toda a parte. Sobre o assunto, para trás - ver meu mundo com o espanto e a curiosidade que não podia germinar
Heródoto já nos contava que: enquanto eu estava dentro dele.
Por mais que o antropólogo tenha esse quê de viajante, não precisamos aqui falar
"Se fosse dada a alguém, não importa a quem, a possibilidade de escolher entre em transposição de fronteiras físicas. A viagem que proponho é a de
todas as nações do mundo as crenças que considerasse melhores, simplesmente enxergar o outro lado, a outra margem do lago, o que não me
inevitavelmente... escolheria as de seu próprio país. Todos nós, sem exceção, pertence e é diferente de mim. Através do estranhamento provocado pelas outras
pensamos que nossos costumes nativos e a religião em que crescemos são os culturas, modifica-se a forma que temos de olhar sobre nós mesmos.
melhores... Existe uma multiplicidade de evidências de que este sentimento é A reflexão antropológica é, em certa medida, o exercício de um desejo narcísico
universal... Poderíamos lembrar, em particular, uma anedota de Dario. Sendo ele de conhecer a si próprio. O Narciso antropológico, ao contrário daquele de que
tanto ouvimos falar, não vê no lago sua imagem familiar refletida, e sim a imagem aluno "perceber-se como elemento ativo, dotado de força política e capacidade de
de algo que é desconhecido, rica em detalhes que, antes de ver o outro, transformar"
passavam desapercebidos. Ela teria então o mérito de proporcionar essa postura reflexiva por ser, antes de
É um Narciso que, em vez de apaixonado, se aproximar cada vez mais do lago tudo, uma disciplina que propõe que se pense a realidade (muitas vezes cotidiana
para mergulhar em si próprio, toma certa distância para admirar-se de mais longe e próxima de nós) de forma a fugir do senso comum. Antropologia e Sociologia,
e a partir de outros ângulos. Começa, então, a estranhar a si próprio, a se irmãs gêmeas (não univitelinas, porque semelhantes, mas não iguais;
espantar com tudo que lhe parecia banal. companheiras, porém independentes) têm a reflexão sobre o mundo como
O conhecimento de nossa própria cultura só é possível, assim, através do companhia inseparável.
conhecimento do outro, das outras culturas. A partir da experiência da alteridade Pensar o mundo a partir de uma postura antropológica é, entretanto, ir além da
tem lugar, então, um descentramento do olhar. Essa revolução no olhar visão crítica. É desafiar, sem temores, nossas próprias crenças e certezas (e as
(LAPLANTINE, 1996: 19) provocada pelo distanciamento permite, então, que nos dos outros) mas, antes de tudo é perceber a enorme gama de elementos que
espantemos com o que nos é mais familiar, com o que é parte de nosso cotidiano compõe a realidade. Ensinar antropologia, mais do que mostrar o lugar de
e da sociedade na qual vivemos. posicionamento crítico, é trocar incessantemente de lugar, é possibilitar que se
O jogo dos espelhos é justamente esse, tornar o estranho familiar e enxergar o experimente as mais diversas posições. É ser capaz se entregar a empatia e de
mais familiar com espanto e estranhamento. Assim, passamos a observar mais se deixar colocar em um lugar diferente do seu, "enriquecendo a perspectiva
atentamente tudo o que encontramos. Passamos, principalmente, a reparar. pessoal com a percepção das relações que se estabelecem do ponto de vista do
Bem debaixo do seu nariz outro" (MACHADO, 1997:81). É conhecer o outro, mas principalmente
As fronteiras entre o inato e o adquirido são extremamente tênues e vacilantes. compreendê-lo e respeitá-lo. É reconhecer, sobretudo, a existência da assimetria
Pode-se dizer que todo comportamento humano, do mais simples ao mais e da diversidade.
complexo, contém um pouco de cada uma dessas duas dimensões. Geertz nos Trazendo para dentro da sala de aula temáticas do cotidiano, a "cultura da vida", a
traz o exemplo da anatomia humana: natural e fisiologicamente preparada para a Antropologia é capaz de proporcionar, espelhada na comparação com o "outro", o
fala, de nada serviria se vazia da cultura, uma vez que é ela que nos fornece as distanciamento essencial para o desenvolvimento do olhar sensível. Desenvolver
línguas, os idiomas e os dialetos a falar. (Geertz,1989:62). A relação entre o olhar sensível é exercitar a um só tempo uma postura crítica, política e cidadã,
natureza e cultura sempre foi interesse não só da Antropologia, mas de mas também, e principalmente, poética. Sófocles, dramaturgo grego autor da
praticamente todas as outras formas de busca de conhecimento inventadas pelo Trilogia Tebana, foi nomeado general porque, por ser poeta, era capaz de ver as
homem. coisas em sua totalidade sem, entretanto, perder em minuto algum a dimensão
Dada sua proximidade extrema, certos hábitos e costumes culturalmente dos detalhes, das pequenas coisas, das gotículas de tinta que formam o quadro
construídos são, muitas vezes, vistos como fenômenos naturais inatos. De muito maior. Não precisaria o mundo hoje, mais do que nunca, do olhar sensível de
perto, sua imagem se desfoca, perdendo a nitidez. Como enxergar com perfeição, generais poetas?
afinal, o que está bem debaixo do seu nariz? _____________________________________________
A prova mais substancial de que uma série de características humanas Bibliografia
naturalizadas são, na verdade, culturalmente dadas é, antes de tudo, o BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva. 1997
conhecimento de outras realidades onde há uma variação do padrão cultural. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC. 1989
Dotados de uma anatomia semelhante, damos a nossos corpos diferentes usos. A HERÓDOTO História. In: www.perseus.tufts.edu
maneira de caminhar, vestir, sentar, comer e até mesmo rir, se dá de cultura para LAPLANTINE, François. La Description Ethnographique. Paris: Nathan. 1996
cultura, de forma diversa. É a partir da percepção da diversidade, da presença do LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1995.
outro, que se pode relativizar, portanto, nossa própria sociedade. Percebendo que LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro:
existem outras formas diferentes da nossa de expressar a dor, outras regras de Jorge Zahar Editor. 1996.
casamento, práticas de cura muito diferentes e distintas crenças e religiões, MACHADO, Nilson José. São Paulo: Escrituras.1997
vemos também nossa cultura com outros olhos. Olhos mais críticos mas, antes de TODOROV, Tzetan. Nós e os Outros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
tudo, mais aguçados e muito mais sensíveis.
Do olhar crítico ao olhar sensível
As diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação estabelecem a
construção de uma visão crítica do mundo como uma das competências a serem
desenvolvidas em Sociologia no ensino médio. Essa visão crítica permitiria ao

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