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O Vigillante

Blog da profa. Virgínia Salomão

A Arte de Sensibilizar o Olhar ou Por que ensinar Antropologia?


Publicado em 25/03/2013

A Arte de Sensibilizar o Olhar ou

Por que ensinar Antropologia?

Débora Krischke Leitão

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Livro dos Conselhos. *

Marcel Duchamp se permite uma licença poética para definir a pintura como atividade retínica, como arte do
olhar. Proponho que se pense então a questão da Antropologia no ensino médio, se não como uma arte do olhar,
como um exercício de brincar com a retina. Ensinar Antropologia seria, assim, possibilitar e estimular jogos de
luzes, de ângulos e distâncias.

Um par de óculos e uma centenas de lentes

A relação do homem com o mundo é sempre mediada por suas ferramentas. Ele constrói, apreende e interpreta a
realidade a partir dos instrumentos que lhe são fornecidos pela cultura. Tecelão quase compulsivo de si próprio,
borda sem cessar teias de significados para dar sentido ao mundo (GEERTZ,1989:15) Essas teias, onde se
misturam pontos abertos e fechados, novos e antigos, e linhas de todas as cores, são a cultura. É a partir desse véu
da cultura, dessas lentes, que vemos então as coisas, os outros, e a nós mesmos.

Cada cultura, entretanto, teria seu par de lentes próprio, ou, no máximo, um certo número de lentes utilizáveis,
um certo leque de possibilidades de formas de ver o mundo. As lentes de uma sociedade nunca são as mesmas de
outra (BENEDICT, 1997:19). Ainda que tenham semelhanças, são encontradas certas nuanças e particularidades.
O que pode ser considerado ponto comum entre todos os homens é a armação, a existência dos óculos em si. As
lentes, sempre diferentes, vão variar em espessura, cor e formato.

Uma vez vendo os outros por detrás dessas lentes, e a partir de uma visão de mundo, há uma tendência em
considerar nossa forma de ver e fazer as coisas como a mais correta, ou mesmo a única correta. Tal postura
etnocêntrica consiste em tomar o que é nosso como o verdadeiro, e o que é do outro (e o que é o outro) como
digno de reprovação, dando assim aos nossos valores um suposto caráter de universalidade (TODOROV, 1993:
21).

Uma vez estando ao nosso lado todas as verdades e a certezas, estaríamos autorizados a interferir, em nome de
nossa bondade e piedade, no que é do outro. Partindo desse pressuposto muitas formas de dominação, e mesmo
etnocídios, tentaram ser legitimados.

O Etnocentrismo não é, entretanto, exclusividade de nossa sociedade ocidental e moderna. É um fenômeno que se
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” Se fosse dada a alguém, não importa a quem, a possibilidade de escolher entre todas as nações do mundo as
crenças que considerasse melhores, inevitavelmente… escolheria as de seu próprio país. Todos nós, sem exceção,
pensamos que nossos costumes nativos e a religião em que crescemos são os melhores… Existe uma
multiplicidade de evidências de que este sentimento é universal… Poderíamos lembrar, em particular, uma
anedota de Dario. Sendo ele rei da Pérsia, chamou alguns gregos presentes em sua corte e perguntou-lhes quanto
queriam em troca de comer os corpos de seus pais defuntos. Os gregos replicaram que não havia dinheiro
suficiente no mundo para fazer isso. Depois perguntou a alguns índios da tribo chamada Callatie – que realmente
comem os corpos de seus pais defuntos – quanto queriam para queimá-los (referindo-se, é claro, ao costume
grego da cremação). Os índios exclamaram horrorizados que nem se devia falar em coisa tão repugnante”*

Binóculos: explorando territórios desconhecidos

Partir para o território do outro, dar espaço ao que não é familiar: esse é o primeiro passo para uma possível
transformação do olhar, uma relativização de ponto de vista. A curiosidade do homem sobre si próprio sempre
existiu, mas é a passagem do curioso, do exótico e do bizarro, para uma consciência da alteridade é que marca
realmente o pensamento do homem sobre o homem (LAPLANTINE, 1995:13), e a reflexão a respeito da diferença.

A diversidade cultural só pode ser compreendida se a postura frente ao estranho e ao estrangeiro se tornar mais
flexível e permitir existência da diferença enquanto diferença, não enquanto hierarquia.

Deve-se então, em primeiro lugar, aceitar que o outro existe, conhecê-lo e reconhecê-lo. É preciso perceber que
somos apenas uma das culturas possíveis, e não a única. Conhecendo as diferentes formas de lidar com o mundo,
as diferentes respostas dadas pelas mais diversas culturas é que se pode relativizar que nos é o estranho, tentando
encontrar, assim, no olhar do outro, o ponto de partida. Nossas lentes muitas vezes nos cegam, quando tentamos
ver o que está distante. Ajustemos então essas lentes para mais longe, não deixando que nos ceguem para o outro
e, principalmente, nos tornem míopes para nós mesmos.

Ensinar a olhar é, assim, antes de tudo, apontar os caminhos desse olhar, fazendo nascer a consciência da
diversidade cultural e da pluralidade das culturas.

O Jogo dos Espelhos

É a partir do reconhecimento do outro que eu posso, finalmente, entender quem sou. Cruzar a fronteira, deixando
meu território, é a melhor forma de – olhando para trás- ver meu mundo com o espanto e a curiosidade que não
podia germinar enquanto eu estava dentro dele.

Por mais que o antropólogo tenha esse quê de viajante, não precisamos aqui falar em transposição de fronteiras
físicas. A viagem que proponho é a de simplesmente enxergar o outro lado, a outra margem do lago, o que não me
pertence e é diferente de mim. Através do estranhamento provocado pelas outras culturas, modifica-se a forma
que temos de olhar sobre nós mesmos.

A reflexão antropológica é, em certa medida, o exercício de um desejo narcísico de conhecer a si próprio. O


Narciso antropológico, ao contrário daquele de que tanto ouvimos falar, não vê no lago sua imagem familiar
refletida,
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É um Narciso que, em vez de, apaixonado, se aproximar cada vez mais do lago para mergulhar em si próprio, toma
certa distância para admirar-se de mais longe e a partir de outros ângulos. Começa, então, a estranhar a si
próprio, a se espantar com tudo que lhe parecia banal.

O conhecimento de nossa própria cultura só é possível, assim, através do conhecimento do outro, das outras
culturas. A partir da experiência da alteridade tem lugar, então, um descentramento do olhar. Essa revolução no
olhar (LAPLANTINE, 1996: 19) provocada pelo distanciamento permite, então, que nos espantemos com o que
nos é mais familiar, com o que é parte de nosso cotidiano e da sociedade na qual vivemos.

O jogo dos espelhos é justamente esse, tornar o estranho familiar e enxergar o mais familiar com espanto e
estranhamento. Assim, passamos a observar mais atentamente tudo o que encontramos. Passamos,
principalmente, a reparar.

Bem debaixo do seu nariz

As fronteiras entre o inato e o adquirido são extremamente tênues e vacilantes. Pode-se dizer que todo
comportamento humano, do mais simples ao mais complexo, contém um pouco de cada uma dessas duas
dimensões. Geertz nos traz o exemplo da anatomia humana: natural e fisiologicamente preparada para a fala, de
nada serviria se vazia da cultura, uma vez que é ela que nos fornece as línguas, os idiomas e os dialetos a falar.
(Geertz,1989:62). A relação entre natureza e cultura sempre foi interesse não só da Antropologia, mas de
praticamente todas as outras formas de busca de conhecimento inventadas pelo homem.

Dada sua proximidade extrema, certos hábitos e costumes culturalmente construídos são, muitas vezes, vistos
como fenômenos naturais inatos. De muito perto, sua imagem se desfoca, perdendo a nitidez. Como enxergar com
perfeição, afinal, o que está bem debaixo do seu nariz?

A prova mais substancial de que uma série de características humanas naturalizadas são, na verdade,
culturalmente dadas é, antes de tudo, o conhecimento de outras realidades onde há uma variação do padrão
cultural. Dotados de uma anatomia semelhante, damos a nossos corpos diferentes usos. A maneira de caminhar,
vestir, sentar, comer e até mesmo rir é, se dá de cultura para cultura, de forma diversa. É a partir da percepção da
diversidade, da presença do outro, que se pode relativizar, portanto, nossa própria sociedade. Percebendo que
existem outras formas diferentes da nossa de expressar a dor, outras regras de casamento, práticas de cura muito
diferentes e distintas crenças e religiões, vemos também nossa cultura com outros olhos. Olhos mais críticos mas,
antes de tudo, mais aguçados e muito mais sensíveis.

Do olhar crítico ao olhar sensível

As diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação estabelecem a construção de uma visão crítica do
mundo como uma das competências a serem desenvolvidas em Sociologia no ensino médio. Essa visão crítica
permitiria ao aluno “perceber-se como elemento ativo, dotado de força política e capacidade de transformar”

Ela teria então o mérito de proporcionar essa postura reflexiva por ser, antes de tudo, uma disciplina que propõe
que se pense a realidade (muitas vezes cotidiana e próxima de nós) de forma a fugir do senso comum.
Antropologia e Sociologia, irmãs gêmeas (não univitelinas, porque semelhantes, mas não iguais; companheiras,
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Pensar o mundo a partir de uma postura antropológica é, entretanto, ir além da visão crítica. É desafiar, sem
temores, nossas próprias crenças e certezas (e as dos outros) mas, antes de tudo é perceber a enorme gama de
elementos que compõe a realidade. Ensinar antropologia, mais do que mostrar o lugar de posicionamento crítico,
é trocar incessantemente de lugar, é possibilitar que se experimente as mais diversas posições. É ser capaz se
entregar a empatia e de se deixar colocar em um lugar diferente do seu, “enriquecendo a perspectiva pessoal com
a percepção das relações que se estabelecem do ponto de vista do outro” (MACHADO, 1997:81). É conhecer o
outro, mas principalmente compreendê-lo e respeitá-lo. É reconhecer, sobretudo, a existência da assimetria e da
diversidade.

Trazendo para dentro da sala de aula temáticas do cotidiano, a “cultura da vida”, a Antropologia é capaz de
proporcionar, espelhada na comparação com o “outro”, o distanciamento essencial para o desenvolvimento do
olhar sensível. Desenvolver o olhar sensível é exercitar a um só tempo uma postura crítica, política e cidadã, mas
também, e principalmente, poética. Sófocles, dramaturgo grego autor da Trilogia Tebana, foi nomeado general
porque, por ser poeta, era capaz de ver as coisas em sua totalidade sem, entretanto, perder em minuto algum a
dimensão dos detalhes, das pequenas coisas, das gotículas de tinta que formam o quadro maior. Não precisaria o
mundo hoje, mais do que nunca, do olhar sensível de generais poetas?

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Bibliografia

BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva. 1997

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC. 1989

HERÓDOTO História. In: http://www.perseus.tufts.edu

LAPLANTINE, François. La Description Ethnographique. Paris: Nathan. 1996

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1995.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1996.

MACHADO, Nilson José. São Paulo: Escrituras.1997

TODOROV, Tzetan. Nós e os Outros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1993

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COMO CITAR O TEXTO:

LEITÃO, Débora Krischke. “A Arte de Sensibilizar o Olhar – ou Por que ensinar Antropologia?” In,
http://www.geocities.com/deborakrischkeleitao/artigo.html

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Virgínia Salomão, mestre em Comunicação e Mercado (Casper Libero), doutora em Comunicação (Umesp ), jornalista,
advogada, aprendiz de escritora.
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