Você está na página 1de 576

Todos os direitos reservados.

Este livro não pode ser reproduzido nem transmitido, no


todo ou em parte, por qualquer processo electrónico ou mecânico, incluindo fotocópia,
gravação ou outros, sem autorização prévia por escrito da Editora.

Manufactura, chancela da Europress


Rua João Saraiva 10-A, 1700-249 Lisboa
Tel. 218 444 340
geral@manufactura.pt
www.manufactura.pt

Título
O FisióSOFO. Para uma reabilitação filosófica e postural
Autor
Luís Coelho
Design da capa
Pedro Teixeira
Direitos Reservados
© Manufactura, 2023 e Autor
Edição 112
Janeiro 2023
Impressão e acabamento
Europress - Indústria Gráfica
www.europress.pt
Depósito legal
509628/22
ISBN
978-972-559-457-5
Distribuição
Europress - Editores e Distribuidores de Publicações Lda.
www.europresseditora.pt
(FRONTISPÍCIO)
«Um corpo e um nome sou
aqui procuro um lugar
não sei bem para onde vou,
nem o que irei encontrar
questiono o percorrido
nesta viagem sagrada
para que terá servido
correr tanto nesta estrada.»

(palavras da minha mãe, Otília,


a quem este livro é dedicado)
Prólogo

Mais de três anos e meio após a publicação de «A Razão Neurótica. Um


livro de auto-desajuda» (2019; Manufactura), o livro que aqui se apresenta é,
precisamente, o resultado de um esforço terminante de aglutinação de todos
os temas que têm demarcado a minha escrita, especialmente nos últimos
quinze anos. E por isso mesmo, a par dos aforismos e fragmentos de inspira-
ção filosófica e espiritual, aqui apresento textos publicados esparsamente nos
anos citados, que se colocam numa ordem que achei conveniente. Todos os
elementos concorrem para o grande objecto de aglutinação da Filosofia com
a Fisioterapia, da Espiritualidade com a ciência, nos termos que o Corpo dita
e que o materialismo convoca. E, no entanto, nada do que se apresenta é, de
todo, incompatível com o espiritualismo, se bem que, na realidade, acabamos
por superar tais categorias, bem como as de Sujeito e Objecto, Razão e empi-
rismo, entre tantas outras. Há, nesta obra, um protótipo de conclusão onto-
lógica que, deveras, me satisfaz bastante, e que, como é óbvio, achei oportu-
no partilhar. E a partilha inclui alguns elementos mais pedagógicos sobre
filósofos e movimentos filosóficos, à mistura com temas como Reeducação
Postural, raquialgias, Fitness, tudo isto se imbrica num plexo que nem sem-
pre se revela, deixando aos leitores tal liberdade interpretativa. O que me
move é, claro, a paixão pelos temas constantes, a urgência de síntese, mas,
igualmente, a intenção de criar alguma beleza com temáticas que muitos
consideram superadas. Iniciado antes da pandemia (COVID-19), há um
trajecto temporal que nem sempre é unívoco, mas que projecta determinadas
apreensões. O objectivo não é claro, nem pretendeu, alguma vez, sê-lo, por-
que a própria Filosofia se conduz com uma “lógica” que tem de ser com-
preendida por um “sentir” que avança do Todo para as partes, do destino
para o caminho. O que aparece escrito parte, quase sempre, duma coisa fina-
lizada, mas, também, sofrida e perfilhada intimamente. Claro está que, mais
uma vez, não pretendi, jamais, criar algo tranquilizador, porque a Culpa é
para ser vivida e nunca adiada, e, no entanto, a obra possibilitou-me gerar
alguma “síntese”, se bem que, bastas vezes, posterior a um intento proposita-
damente “hegeliano”, figurado pela crónica insatisfação “egálgica”, aquela
que me obriga a dissecar até que chegue aquele ponto de “círculo vicioso” em
que as coisas se nutrem automaticamente. Este livro continua, no fundo, este

7
Luís Coelho

esforço iniciado há vários anos, e finaliza alguns processos, sem que se aban-
done, deveras, o cepticismo visceral que me caracteriza. É a obra mais longa
que alguma vez publiquei, é, tal-qualmente, resultante de um trajecto que
permitiu “dar-se tempo”, procurando, claro, que o tempo se atrasasse até à
suspensão relativa. Tentei que não ficasse muito por dizer, mas, obviamente,
não pude rever completamente aquilo que já foi objecto dos meus livros pre-
téritos. A obra vigente é um pouco mais formal do que o que já tenho feito,
tendo, por pouco tempo, regressado ao mundo das publicações em revistas
indexadas, com o objecto de apresentar uma faceta mais “profissional”. O
processo relativo ao funcionamento dessas publicações atrasou, por vezes, o
trabalho feito neste, e para este, livro. Já em tempos fui bastante crítico desses
aspectos da vida de publicação, mantém-se o intento íntimo. Por outro lado,
toda a jornada de reflexão e escrita tem-me levado a extinguir, crescentemen-
te, a minha vida “social”, “normal”, pelo que me vou avizinhando da morte,
da solidão mais absoluta, num caminho que, desde há algum tempo, se afi-
gura no pleno misantropismo, numa verdadeira antropofobia. O meu des-
prezo pelo “ser humano” nunca foi tão grande, tão genuíno. É o resultado de
um excesso de zelo moral e tético, do exercício da minha obsessividade cogi-
tadora, que não permite, normalmente, grandes euforias ou esperanças, e
que desilude, facilmente, um mundo de falsidades, incoerências, “relativis-
mos”, tornando-me progressivamente incapaz de suportar o “Outro”, pelo
que me entrego, de corpo e alma, e a cem por cento, a este projecto de escri-
ta, para o qual todos os instantes contam. Todo o meu tempo tem sido dedi-
cado ao pensamento. Reduzi-me ao essencial, faço, apenas, o mínimo para
manter-me vivo, o resto é para a empresa da escrita. Quando penso estar
mais “liberto”, bem me vejo novamente mergulhado no pleito de uma (i)razão
que encandeia. Não fujo, nunca, da obsessão, mergulho nela e esquivo-me o
menos possível. Tento resistir o mais possível à jornada, mas também à dúvi-
da. Sem a capacidade de tolerar a dúvida não é possível viver. A grande e
miserável verdade de que não existe Sentido ou Verdade, a Realidade que
fulmina, tudo isto não advém de modo plenamente voluntário, é o desidera-
to de uma viagem que culmina na óbvia conclusão de que a felicidade não é
compatível com o objecto filosófico. Não obstante o absurdo de tudo, aqui
fica um contributo. Que ele procure o inexistente para convencê-lo de que
não está só, de que ainda é possível viver, apenas, para a Razão, e, claro, para
um Deus ausente que, ainda assim, vai alimentando alguma dose de culpa.

8
Aforística

Quem deserda o mundo herda-se. E quem (se) deserta acaba deserto.


Num Oásis.

Gosto dos refractários. Acabam sempre por me reflectir.

O Céu é um espelho, duma terra que seca. A existência é uma dança da


chuva. Um paliativo para a tempestade dos placebos.

Não me dês os bons-dias! Que começamos logo pela noite.

Sobrestimar a vida é o maior acto de sobrevivência.

No parque de diversões, cheguei a andar no comboio fantasma. Assus-


tei-me. À saída.

Tenho o prazer de vos informar aquilo que não me dará prazer algum
dizer: o segredo do prazer é ser efémero.

A minha casa é tanto mais assombrada quanto mais me afasto dela.


Quando regresso, fecho a porta aos fantasmas. Ficam Lá fora, onde a Sauda-
de toca e a Curiosidade se arrasta.

9
Luís Coelho

A porta que toca é uma defenestração da Alma.

A Realidade é um gato defenestrado. Com sete vidas à janela.

Qualquer repetição desnecessária é um exercício de morte. Mata, logo,


pela raiz quem duvida de ti!

Não me vejo a fazer certas coisas. Mas aposto que podia ser outras coi-
sas sem me ver nelas. Se ganhar a aposta, não terei como pagar.

Certas pessoas ofendem-nos de uma maneira tal que até fico envergo-
nhado, sem saber como agradecer.

O CDS quer colocar passadeiras “arco-íris” para acabar com a homofo-


bia. Consta que aumentará o número de atropelamentos num país encan-
deado. (30/04/2019)

Quando te apercebes que estiveste a dar pérolas a porcos, sentes-te subi-


tamente emporcalhado. Como uma pérola falsa em colar de bijutaria social.

Conhecimento é poder. Evidência é nunca ter podido. E não querer


poder. Posso dizê-lo?

Quando o que não cria se determina a criticar o criativo acaba achando


todas as razões para se criticar.

10
O FisióSOFO

Quem soma predicados, não achando a Substância, sujeita-se a ser pre-


dicado.

Quando colocamos a vírgula entre o Sujeito e o Predicado somos redun-


dantes. Mas quando nada existe entre eles, já não há Sujeito para se predicar.
Só o predicado absoluto.

Entre o que se ouve e o que se É há um luto. De um ruído distante.

A poluição sonora não tem de ser filtrada. A não ser que sejamos nós o
filtro. No acordo perfeito entre o ruído e o que o produz.

Disseram mal de mim. Foi por Bem, porque ouvi tudo sem censura.
Mal sabiam eles que já lhes escapava. Nem eu próprio sabia.

Quem se cria tem a liberdade de se destruir. Mal dos que são gerados e
invejam a perfeição.

Quem é responsável por si constrói a sua morte. Ou pensa que o faz já


depois de ter morrido.

A Linguagem é uma sina. A língua é um destino que se cumpre. Um


Signo é uma coisa que (se) satisfaz.

11
Luís Coelho

“Publicar ou perecer”?... Não, porque “morrer é só não ser visto”.


Logo, publicar é só não ser visto. Seria falácia, não estivesse eu morto.
Quando renascer, responderei a todas as acusações por mensagem privada.

O materialismo poupa tempo ao Espírito. É por isso que este nunca tem
tempo para nada.
O positivismo prescricionista é uma abreviatura do pensamento. Já a
Razão é uma caricatura da Realidade.
O positivismo é uma fuga à criatividade. Disse o criativo, pouco inspi-
rado.

Quem cria não quer criar, é criado.

Recentemente, a elegância científica tem tido uma razão de peso nas


nossas vidas. Talvez seja esta a Razão mais importante para arranjarmos
outra dieta. Uma mais Substancial e que contenha menos regras. Porque a
ciência não se coloca no fio da navalha.

Não (me) entendes. Por isso confia em mim: desconfia de tudo!

Sem Deus, qualquer ciência levará a Deus. É por isso que todos têm
medo de ser livres. Ninguém quer ter de prestar contas aos homens de ciên-
cia.

“Deus quer o nosso melhor.” Disse Leibniz à sua Alma. Com as móna-
das rindo todas da aparência.

12
O FisióSOFO

A perfeição é saber que poderíamos ser qualquer Outro, sem qualquer


“razão suficiente”.

Não fui feito para ser feliz, mas para inventar a felicidade.

Inventei-me para que não pudesse inventar mais nada.

Disseste-me que estava certo, e eu só o aceitei porque não quis discutir


contigo.

Não me venhas dourar a pílula, já sei que é um supositório.

Num tempo em que a Razão se via progressivamente desacreditada, o posi-


tivismo de Comte renuncia ao conhecimento das Causas em nome do das rela-
ções observáveis e regulares, com o objecto não só de caracterização empírica
dos “factos” quanto de previsão e transformação dos últimos, sobretudo dos que
relevam da realidade “social”. Se, para o racionalismo, importa a Verdade em
termos de uma absolutidade que requer a visão “distintiva” do pensamento
aproximativo da realidade divina, da Causa incausada, para o positivismo, a
Verdade vê-se “relativizada”, dependendo esta das qualidades “humanas” de
observação necessariamente objectivável. A fraqueza do positivismo reside preci-
samente no papel activo da Subjectividade, a qual, encarada pelo antigo raciona-
lismo enquanto artigo do “espírito”, será contemporaneamente vista igualmente
como “corpórea”, sequência do sentimento materializável, se bem que difícil de
medir na sua idiossincrasia mais abstracta.

Se o antigo racionalismo pretende aproximar o homem do Segredo


divino, o empirismo descarta a própria metafísica enquanto desiderato de

13
Luís Coelho

uma quimera perfeitamente inútil. O racionalismo moderno já não pode,


não obstante, ver-se livre da contingência “sensitiva”, a qual torna o primeiro
bem menos seguro do que propende o vetusto preconceito “espiritualista”. A
Subjectividade é encarada como coisa “idiossincrática”, só potencialmente
objectivável numa perspectiva “fenomenológica” igualmente moderna. A
Fenomenologia cria como que um tampão para as insuficiências da subjecti-
vidade, que têm acometido a seriedade “positiva”. É através da intersubjecti-
vidade que poderá ser alcançada a forma robusta de cativar as “regularida-
des” positivas, nas quais o próprio Todo se vê incluído de um modo activo e
transformante. Esta é uma Realidade que se descreve e constrói em simultâ-
neo, concorrendo para uma outra forma de Absoluto, não teológico ou
metafísico, mas sim “positivo”.

O positivismo é, assim, um modo de prender o imediato contingente,


sem descartar o relativismo, tanto da descrição quanto da evolução, nas quais
entra a subjectividade. A transformação “positiva” visa o próprio “atomis-
mo” mutacional para o qual coadjuva o indivíduo como elemento de uma
totalidade “algorítmica”. O aspecto “empírico” presente versa a realidade
utilitarista “sensitiva”, de um “in-sofrer” da “maior parte”, aspeito de uma
“pós-modernidade” materialista, “psíquica” e imaginativamente mensurável,
que não pode jamais ser controlada completamente. Este “fim”, que, apesar
de tudo, já sobrepuja o objecto “positivo”, cria a demanda do “Princípio”, o
qual acarreia o eco da absolutidade “racional”, de um “espírito” que poderá
ser apreendido materialisticamente. Sendo assim, não é plenamente “absolu-
to”, é “livre” de ser qualquer coisa, mesmo que a determinação primeva não
o permita.

Se o ensejo teológico-metafísico era de mote a generalizar a realidade


“satisfatória” para o Espírito, o novo “espírito positivo” trabalha para dilucidar
a realidade “externa” em independência da vontade subjectiva. Obviamente,
existe uma tentação de generalizar a própria realidade nos termos de um lega-
lismo simplista e englobante, mas o positivismo de Comte já se estende à reali-
dade psicossocial, mais complexa na sua natureza, tão implexa que mata a
possibilidade de conhecer completamente as Causas, permitindo, somente,

14
O FisióSOFO

desvendar progressivamente o conjunto das relações mais ou menos estabilizá-


veis. A necessidade de descrição e previsão subsiste, assim como o ensejo de
estudar a realidade que se aplica aos quesitos da vida humana, mas a primeira é
primariamente objectiva. Só depois surge a obrigatoriedade de controlar a
natureza humana, com a dupla fórmula “messiânica” de Ordem e progresso,
de resto cumplicidade que será, mais tarde, apontada pelo pós-marxismo e
pelo pós-modernismo de componente parcialmente “espiritualista”. E, no
entanto, também estes dois pretendem “transformar”, uma práxis, mas é-lhes
implícito um sentimento de culpa relativamente à cientificidade fortemente
“industriosa”. Em particular, o marxismo, mesmo criticando o modernismo, a
cientificidade “capitalista”, não deixa, todavia, de se fazer valer de um apare-
lhado epistémico “materialista”, se bem que repudiando o “positivismo” pres-
cricionista e atomista. A dialéctica “holista” é, claro, redutível ao elementaris-
mo, mas não na sua componente explicativa abstracta, ela é como que um
“espiritualismo materialista” que, partindo do hegelianismo, contenderá o
desaforo atomista da lógica “positiva”.

Segundo Comte («Discurso sobre o espírito positivo», 1848), a par da


complexidade de caracterização do Humano, a qual impossibilita o conhe-
cimento genérico do mesmo, não deve o positivismo, antes pelo contrário,
subrogar a obrigatoriedade “consequente” de servir a necessidade de satisfa-
ção de uma harmonia social. A “Física Social” não é, assim, incompatível com
o lado pragmático, utilitário, da ciência, visando-se, como tal, um objecto
“religioso” comparável ao que laborava a antiga idade teológico-metafísica.

A idade “positiva” consigna uma episteme de retro-alimentação do pró-


prio positivismo, nisso há nela algo dos Princípios arquetípicos mais ancila-
res. O positivismo soluciona na medida da descrição + previsão de relações
identificáveis e prescrevíveis, mas haverá, contudo, uma minoria “espiritua-
lista” desadaptada que propende outro tipo de equilíbrio, uma solução
baseada na Causalidade funda e genérica das coisas. Há que atender à possi-
bilidade desta constituir somente um auto-engano, um placebo andrajoso
que preenche e dogmatiza.

15
Luís Coelho

Se a Ciência original não pode ser apartada do processo teológico, o con-


flito acabaria por pressupor a “vingança” do espírito positivo, centrado no
invariável “humano”, com o objecto de aperfeiçoar o próprio Homem, no
decurso da novel modernidade industrial. O Espírito Positivo é, como tal, uma
tomada de controlo do Homem sobre si-mesmo, num mundo que reconhece
ter de ser aprimorado, já depois de perdida a ilusão placebetária da Providên-
cia. Logicamente, o risco de a ciência se tornar o novo dogma existe e só pode
ser evitado se forem recrutadas as condições de evolução de um conteúdo cien-
tífico perpetuamente crescível e transformável. É também mediante a aceitação
da mudança, do progresso, que pode ser alcançada a Permanência que é suge-
rida pelo ditame de um suposto “fim da História” positivo, aliás, promessa de
transformação e melhoramento constantes.

A esfera do utilitário constitui a proa do desenvolvimento científico-


-positivo, se bem que deriva daqui, também, o perigo do “individualismo”. A
nova fase “espiritualista” pós-moderna pretende, infelizmente, catapultar
algumas das antigas ficções, olvidando, muitas vezes, a abstrusidade de um
caminho de pesquisa do que, por natureza, é incognoscível e humanamente
irrelevante. Não obstante, o positivismo de Comte não se coloca necessaria-
mente contra a abstracção teológico-metafísica, não falsificabiliza os seus
conteúdos, tão-só os considera inúteis, até porque infalsificáveis.

É a faceta “humana”, “sociológica”, que desapega o positivismo de Comte


do puro empirismo, com o primeiro a ocupar-se dos aspectos simultanea-
mente invariantes e relativos, universais e transformáveis, de complexidade
crescente necessariamente apelativa de uma continuidade de estudo, até que
o aspeito prescritivo possa ser mais precisamente fundeado. Não se pretende
uma coisa plenamente acabada, nem uma descrição finalista da natureza, até
porque esta, de cunho humano, poderá e/ou deverá ser continuada pelo
esforço “artificial” de melhoramente social. Obviamente, o messianismo de
Comte afasta-se muito da visão crítica contemporânea, que possibilita a aná-
lise interpretativa da realidade, considerada como mais dinâmica, se bem que
a crítica é, tal-qualmente, um modo de erigir a sociedade.

16
O FisióSOFO

O positivismo de Comte coloca-se, assim, num ponto médio entre o


materialismo puramente naturalista e o pragmatismo de face “messiânica”.
Este é um utilitarismo de cunho simultaneamente “colectivo” e liberal, mas
não necessariamente teleológico.

Se a Teologia representa a Unidade conservadora e a metafísica o acervo


da dúvida “crítica”, o positivismo pretende a perfeita síntese entre o Equilíbrio
e o movimento, descurando o conforto dogmático que é tendente a anquilosar
o progresso. O desenvolvimento implica um método capaz de fazer a necessá-
ria revisão histórica imparcial, adequando a nova fase à peremptória revolução
da razão positiva, a qual aspira impor uma novel sociabilidade. Para isso, deve
o novo “espírito” valorizar a “Sociologia” enquanto mecanismo de conheci-
mento e transformação da natureza da Humanidade no sentido de uma pro-
gressão explicitamente humana. A evolução social é, assim, encarada como um
motor de melhoramento da Natureza ética do Homem, processo jamais finali-
zável, pelo que se escusa a razão “final” em preferência por uma razão conti-
nuamente crescível.

Dizer que não há “pensamento positivo” não é ser pessimista, é ser rea-
lista. De um “real” que se pensa “negativamente”. Topas? Ainda achas que
falo de optimismo? És, de facto, muito positivo.

Pretende Comte que o Espírito Positivo deve tragar a nova moralidade,


com base numa razão, tanto universal quanto individual, despida da Autori-
dade teológica, com esta a ter perdido, na modernidade, parte da sua rele-
vância, e a ter, por outro lado, justificado muitas vezes, no passado, aberra-
ções morais e comportamentais defendidas por “superiores”. A moralidade
“positiva” não deixa de ser prescritiva e autoritária, se bem que permite a
compreensão da razão idiossincrática. Não se trata de um “anarquismo”
moral, que algum materialismo sugestiona. Também não é, propriamente,
um consequencialismo, se bem que existe “utilitarismo”. É um modus de

17
Luís Coelho

prescricionismo social, capaz de produzir o bem-estar individual. Não é,


portanto, um pleno “liberalismo”, apesar da proximidade “ideal” de Spencer.
O positivismo prescreve um método de investigação, como de morali-
zação dos comportamentos. O marxismo é igualmente telúrico, humano,
científico, mas o seu determinismo substitui o programa de religião “positi-
va”. É “social” mas espontâneo, e a sua dialéctica caracteriza o “processo
Histórico”, mas não o prescreve, porque o considera na sua fatalidade “pro-
letária”.

A nova razão “moral” concede ao Homem uma maior liberdade de


decisão, uma proximidade da moral às necessidades sociais, mas nem por
isso poderá a anterior deixar de ser imposta por um programa educacional.
Assim, a Razão acaba sempre por comportar-se como um dogma. É, talvez,
um dogma mais legítimo, porventura mais aceite, mas todos os dogmas são
aceites sem resistência se forem impregnados precocemente no caudal das
“estruturas” cognitivo-emocionais. O que é “normalmente” aceite acaba por
não ser sentido enquanto “dogma”. Na modernidade, o dogma é encarado,
frequentemente, como figurado pela antiga idade teológica, e isto deve-se ao
declínio do poder representado pela Divindade, iniciado pela crítica da fase
“metafísica”. Por outro lado, subsiste, a partir desta, uma ameaça de “cepti-
cismo”, que, a bem ver, conforma a imagem mais adequada ao filósofo por
excelência. A “dúvida” é tudo quanto se afasta da certeira Razão instalada. E
é, pontualmente, a proa de generação da nova Razão. Se é “humana” é
“mater-ialística” por natureza, na medida em que enfrenta o “Domus” teoló-
gico. E isto inclui a heresia cartesiana e kantiana, que coloca Deus no funda-
mento, mas o desloca da razão plena de tudo. O panteísmo de Espinosa
admite um Deus totalizador, mas, aqui, a Razão sofre um revés ao ser equi-
parada ao corpo e à sua unidade com o sentimento. O positivismo carnaliza
mas não destitui a Razão, nem a Autoridade. Apenas a coloca em dependên-
cia das regularidades observáveis, transformáveis, no entanto, em estruturas
de educação da esfera “negativa” de cada ente. E, como tal, pode essa Razão
ser considerada como “excessiva”, sobressaindo, quiçá, uma compensação
salvífica, que pode surgir sob o efeito de uma razão deiética ou, acaso, da
própria fé. Fé que sempre lá está, no formato de uma crença que economiza
ao ente o inevitável esforço de reprodução histórico-epistémica que seria
necessária para compreender tudo mais intimamente. Queiramos ou não,

18
O FisióSOFO

toda a nossa ciência é-nos dada sobretudo como produto acabado, não per-
mitindo que possamos, normalmente, cumprir um exercício racional verda-
deiramente autónomo, selvagem. Os homens buscam, muitas vezes, na Espi-
ritualidade mais abstracta uma possibilidade de tomarem as rédeas do
Conhecimento, que é, bem vendo, um modo de tomarem as rédeas do seu
auto-conhecimento. Coisa que não pode ser fundacionalmente conseguida,
porque Conhecer é precisamente ser o próprio Objecto conhecido. E fazer o
luto da dualidade Sujeito-Objecto é, afinal de contas, a razão de ser de um
caminho de eterno retorno, de revolução constante, por entre os diferentes
modelos do conhecer. O positivismo é “positivo” na medida de um optimis-
mo do conhecer da realidade em si-mesma, da coisa em si, mediante a regu-
laridade intersubjectiva. Este é o pesadelo do crítico, como do espiritual teo-
lógico. Mas é a “norma” mais saliente do vulgo, do “senso comum”, com este
a enxergar, na modernidade, uma redenção inexprimível noutros tempos. O
que, não obstante, nos rememora o facto de que todo o conhecimento pre-
tende, de certo modo, justificar o senso de cada um, a crença primeva de
cada ente. Todos pretendem conhecer-se “positivamente”, e ter uma relação
“positiva”, imediata (na interpretação de Ortega Y Gasset) com o Objecto.
Nesse sentido, todos continuam a querer o Espírito, no seu intuito de “Gno-
se”, a realidade “material”, “positiva”, é dominante na modernidade, mas o
caminho não promete cessar, senão quando a ciência for capaz de apaziguar
devidamente as consciências. A paz é a fixação da Ordem cósmica, é o anelar
de uma regularidade “final”, é gorar completamente as expectativas, a intrín-
seca esperança. Este pessimismo que finda não promete nada de bom.

Do mesmo modo que uma concepção teológica não mata a determina-


ção “materialista” ou implica obrigatoriamente determinada moral, também
o positivismo não tem de matar o “Espírito” ou a moral. E, no entanto, o
positivismo cientificador, tanto da Psicologia quanto da Sociologia, acabou
por, contemporaneamente, apartar-se da moralidade e, até, justificar o nii-
lismo. Este, por sua vez, é uma resultante do empirismo “social”, que tende a
equalizar e a relativizar os homens, no diferendo da perspectiva “espiritual”
da racionalidade “ideal”, a qual discerne o humano mediante a valorização
dos a prioris fundamentados pelo Superior. Mas, note-se, nem este aprioris-
mo racional exige Deus ou, “inferiormente”, uma moralidade.

19
Luís Coelho

O pior, na Existência, está em perceber que aquilo que fundamenta a


moralidade é também o que justifica a sua traição.

Se trais a moral e te sentes justificado, descansa, porque, quando a moral


te trair em resposta, também não pedirá justificações.

Quando somos demasiado morais, acabamos sempre por ser injustos.

Não te traias. Serás traído. Sobretudo se fores mal sucedido.

Propende a escola do autor do «Curso de Filosofia Positiva» a educação


social com vista ao pleno “altruísmo”, criticando Comte o egoísmo salvífico da
idade teológica, como o racionalismo individualista de cariz artificioso. Sabe-
mos, claro, que a modernidade não conseguirá escusar o egoísmo, assim como
modos “espirituais” que se apresentarão enquanto apanágio da salvação indi-
vidual, incluindo a própria Psicanálise. O método “positivo” é mais prescritivo
do que a solução “psicodinâmica”, necessariamente mais dialéctica.

Se, inicialmente, o positivismo se afasta das sínteses teológicas, ao contrá-


rio do que se possa pensar, o primeiro não é avesso à síntese e à especulação
enquanto cambiantes de um “espírito” de transformação social. A super-espe-
cialização e o elementarismo empíricos são vistos por Comte como inimigos
do positivismo. Devassam a própria noção de mutação social.

O positivismo é a própria resultante “sintética” transformadora, e, para


ele, contribui tanto o “espírito” vetusto do Ideal da razão teológico-metafísica
quanto o empirismo da descrição fenomenal moderna. Mas se o empirismo,

20
O FisióSOFO

bem como a lógica, “reduz”, o “positivismo” alveja com sua síntese mutacio-
nal. Ele é o próprio “espírito” “pós-moderno” de transformação, é o “fim da
Filosofia”, a palavra final com que a ciência pode reorganizar a Sociedade. O
seu produto é holista e “contínuo”, não é genuinamente prescritivista, é como
um algoritmo do intrínseco Significante que se compraz utilitariamente com
o maior “bem social”. Há, aqui, uma proximidade com o “algoritmo de inso-
frimento”, a que me tenho referido noutros livros, qualquer coisa que é ime-
diatamente consequencial, mensurável nos elementos, mas só compreensível
no Todo. Obviamente, e como já dissemos, a face pragmática é fundamen-
talmente “grupal” e não individual.

O positivismo utilitário é, obviamente, Pater em período mater, a “nor-


ma” da fase moderna, mas é, igualmente, parte da razão de ser de mater e da
sua efectividade “real” e conteudística. Satisfaz, assim, no Ideal e no próprio
“Objecto” que se torna um significado transcorrendo-se e não obrigatoria-
mente logicizável.

A educação social “positiva” é pragmática e visa a felicidade de um


Colectivo, o que impõe a instrução dos proletários, que possuem suficiente
ócio para aprenderem o que satisfaz as suas necessidades, mas não o Ócio
maior que os conduziria à passividade “quimérica”, resultante da especula-
ção teológico-metafísica. A escola “positiva” está adaptada à necessidade de
uma classe “activa” que possui preocupações “reais”, tangentes, desdenhando
da antiga visão escolástica, que, em última análise, consubstancia um convite
à morte.

Os felizes perdem o tempo que querem ganhar. Os infelizes ganham o


tempo que querem perder. Para que os felizes não dêem todo o tempo por
perdido é preciso que os infelizes os lembrem que o tempo todo não chega.

Aproveita o tempo. Quando achares que ele não chega, estás no bom
caminho. E quando achares que é inútil perder tempo, já passaste a meta.

21
Luís Coelho

Dá o tempo por bem empregue e desemprega-te. Não terás tempo sufi-


ciente a empregar.

Quem prega e não se entrega, emprega-se. A roubar o tempo dos entre-


gados. O que vale é que estes não dão pela falta. Nem do prego.

Entre o dogma “teológico” e o cepticismo “metafísico”, representa-se


um alvo positivo, que atenta à reorganização prescritiva, mas espontânea, do
Colectivo, a partir do, e com vista ao, “bom senso” democrático e sociolátri-
co. Este projecto “social” é Universal, basilarmente empírico, e deve preen-
cher a semi-ocupação dos proletários; consiste, portanto, numa revolução
“pacífica” que não exige necessariamente a reacção da classe sacerdotal (teo-
lógica) ou da média (metafísica), despreocupadas que estão com o “real”.
Obviamente, o dogma remete para um Ideal que é social e eticamente man-
datário, mas a Norma da modernidade, o seu “senso comum”, é progressi-
vamente “positiva”, e, como tal, “libertária” por natureza. Liberdade que
providencia a propagação do ideal “positivo”, nomotético, mas não dialécti-
co.

Com obviedade, cada Ideal “normativo” é “libertário” para os adapta-


dos dessa Razão. O positivismo é a Norma de mater, é “normal” que o para-
digma sociolátrico, comum, consigne a visão de um “bom senso”, encarado,
também “normalmente” como Universal. A sua razão é experiencial, abar-
cando a Ordem que, de algum modo, já prescreve a “normalidade”.

{Passerelle de crianças para adopção}


A notícia do “Diário de Notícias” intitulada “Crianças para adopção desfi-
lam em passerelle para eventuais interessados” (https://www.dn.pt/mundo/ inte-
rior/criancas-para-adocao-desfilam-em-passerelle-para-eventuais-interessados-

22
O FisióSOFO

10929079.html) surge para indignação de todos, e eu indigno-me com tal


indignação. Eis as razões...
Com a dificuldade que há em despachar estas crianças que só dão pre-
juízo e nada prometem de bom, eis que todos acham mal que uma Organiza-
ção invista o seu tempo e dinheiro para tentar os olhos e as papilas de um
público difícil. No mínimo exigia-se um leilão, com as crianças divididas por
categorias e com os preços “base” nas testas. Também se podia desenvolver
um algoritmo para facilitar a selecção e responder às necessidades do consu-
midor. E, no entanto, os clientes do espectáculo não têm de pagar nada, é só
escolher, mandar embrulhar e usar segundo as instruções (se não vêm com
elas, podem ser eles a dá-las às crianças, com garantia de felicidade ou de
devolução e troca no caso de avaria ou expectativas defraudadas). Ora, no
passado os escravos comportavam um risco bem maior. Chegavam a ficar
caros, eram pouco educáveis, e, alguns, até conseguiam, um dia, ganhar a
liberdade. Quantas destas crianças poderão comprar a própria liberdade?
Poucas ou nenhumas. É pôr cara alegre e esperar que caiam nas graças dos
“papás”. Imagino a ansiedade, algumas devem sacrificar-se como as modelos,
vomitando a comida e pintando a cara de preto, depois é rezar para não caí-
rem no palco. Os escravos, esses ficavam num palanque e oravam para que
lhes calhasse algum dono leniente. Muitos já eram crescidos e temiam perder
de vista os filhos. Já estas crianças não precisam de temer perder a família, à
partida não têm nenhuma, e estão ali para que lhes calhe a sorte grande. Um
dia, quando forem crescidos, poderão dizer aos “pais”: “obrigado por me
terem achado graça, senti-me amado com as palmas e os flashes da passerelle
e como não fui escolhido à primeira, estava a ver que voltava para a alçada
dos advogados.” Advogados de defesa, suponho. Mas pouco juízes.
Maio de 2019

Não faças da tempestade um copo de água. Faz vinho. E embriaga-te.

A impopularidade é a medida de todas as coisas que merecem ser popu-


lares.

23
Luís Coelho

Não sou orgulhoso. Só tenho orgulho em ser digno. Ora, acontece que
eu sou digno do meu orgulho.

É preciso ser muito rico de Espírito para conseguir realizar o mais


ardente cepticismo. Realmente, o que fica é puro Espírito. Quiçá com o Eco
de um tempo de niilistas.

A Metafísica é um placebo para um Deus ausente, quando a dúvida aper-


ta e os demónios recalcitram. Não será preciso desesperar, porque a moderni-
dade trará seus próprios deuses, e outras dúvidas legítimas.

A dúvida é o que vigora a passagem do Ideal Objectivo (Pater) à mater-


-ialidade que, simultaneamente, dissolve e reinicia o tempo. Para o Sujeito, o
Ideal é sempre um dogma, são os fantasmas, o Diabo entrópico, que subme-
tem o Ideal ao grande teste. Se o dogma se transtorna suspeição, surge a luz
da transformação, como da novel sublimação redentora, adaptadora de mui-
tos ideais que se viam perseguidos, abaulados.

Para viver bem é preciso sacrificar tudo aquilo que, geralmente, nos faz
sentir bem, restando o bem que nos sentimos no momento espontâneo em
que o Bem se espalha, suspendendo os pêndulos.

É a dúvida que inicia o tempo, deslocando o homem da Normalidade


salvífica para novel planalto de descoberta. A primeira reinicia o Sistema,
mas dificilmente pode equilibrar peremptoriamente o que quer que seja.
Porque o novo paradigma é apenas mais uma tentativa de fazer coincidir o
Sujeito com o seu Objecto. E, no entanto, no rescaldo do tempo primevo,
conta a Razão sua superioridade no tratamento do que é – ou tende para ser
– vero, distintivo (Descartes), adequado (Espinosa). Por outro lado, o tempo
de mater constitui, igualmente, o período de aceitação da realidade solvente

24
O FisióSOFO

dos Sentidos, que, de algum modo, equaliza todas as possibilidades arquetí-


picas, ou talvez não, porque a physis também tem algo a dizer sobre a moral,
como sobre o acalento do verosímil.

Tanto Descartes («Princípios da Filosofia», 1664) como Espinosa («Éti-


ca», 1677) fazem as suas concessões “metafísicas” à Teologia reinante num
período anterior, afinal de contas, Deus é, ainda, o fundamento da Razão, ou,
pelo menos, o que é suposto ser clarividente pelo caminho racional. Mas não
há muito mais coisas em que ambos confiem, aliás, as suas preocupações são
essencialmente epistemológicas e, secundariamente, morais. Como sabemos,
do primeiro para o segundo, houve uma evolução no lugar que o Corpo
ocupava no caminho para o que é “adequado” (Espinosa), porque, se Des-
cartes concebia uma certa solução de continuidade entre o Cogito e a Exten-
são, Espinosa unifica o antigo bi-substancialismo numa Substância singular,
em que o corpo contribui directamente para o processo racional, não dei-
xando, todavia, de o relegar para um lugar “inferior”. Ora, sabemos, claro,
que mesmo Deus é uma projecção do Corpo, no sentido psicanalítico median-
te o qual concebemos a própria Razão nos termos de um locus superegóico.
Pelo que nem a realidade divina parecia assim tão quimérica no seu intento
“controlador” dos excessos “fáusticos” – o corpo tem, de algum modo, de ser
contido –, nem a realidade racional parece despender do corpo, ela precisa da
proa da sua necessidade “evolutiva”, bem como do seu “objecto” simulta-
neamente contendor e conteudisticamente construtor. O pensamento é feito
de “carne” e ele fez-se à custa das obrigações da “carne”. O pensamento (bem
como, na sua esteira, a Sociedade, vide «O Paradigma Perdido» de Edgar
Morin) pretende continuar o papel da própria Natureza, no seu intuito per-
severador, o corpo fá-lo de um modo parcialmente universal, como o que se
refere à geometria ou à Lógica, que é, no fundo, o anterior a reagir às regula-
ridades legalistas. Ou talvez seja a Regularidade, a própria Lógica, a fazer o
pensamento, o Ideal, talvez tudo não passe de pura contingência “linguísti-
ca”, que poderia ser outra consequência de se ter matado Deus. Se a Razão
venceu a deidade, isso é permitir que a carne temporalize completamente a
primeira, estendendo a dúvida cartesiana ao próprio intento de uma suposta
Eternidade. Nem Espinosa desconfiava do Eterno, se bem que, para este, a
Ética já se vê reduzida ao Corpo, à Condição, e à necessidade de haver adap-
tação antecipando a virtude, ao invés, como em Kant («Fundamentação da

25
Luís Coelho

Metafísica dos Costumes», 1785), de ser a virtude a trazer o comportamento


salvífico, com este a ser, ademais, necessário à própria Razão redentora, por-
que o Caos não produz pensamento, o intrínseco liberalismo é uma forma de
premiar a Razão de uns poucos, com potenciais vantagens para a maioria,
porque, bem vendo, só importa o “bem estar” utilitário, que é também o que
produz a Sociedade do Conhecimento, bem como a tecnologia que irá gerar
mais redenção. E com tanta redenção, como redimir os pequenos que fica-
ram esquecidos, ainda mais quando partiu deles, muitas vezes, o arquétipo
da revolução no pensar, foram também desadaptados que criaram as condi-
ções de mais desadaptação, e da adaptação de outros, há sempre quem se
sinta integrado, e estes fazem a modernidade libertária, o novo dogma cientí-
fico normalizando, medicando, tantos que se viam náufragos, assim, diría-
mos, que não vale, porque os fortes anestesiaram os fracos, os patriarcas da
nova era, ainda acabamos em paz, sempre de modo injusto, claro, mas até o
passado seria esquecido, na sua imensa dívida moral.

Assim, bem vemos que, se o Corpo se sublima de modo a criar as Estru-


turas do controlo e da antecipação com vista à perseveração do “ser huma-
no”, é natural que consideremos que o “Espírito” não se encontra, de todo,
longe do objecto da necessidade narcísica. Por sua vez, a Razão, bem corpó-
rea por sinal, consente chegar a verdadeiros Universais, que, apartados da sua
vitalidade deiética, não deixam de permitir alcançar o progresso, se bem que
esta é uma evolução que atenta à multiplicação libertária das possibilidades
epistémicas e arquetípicas. Da Razão Universal às razões múltiplas do Ser, e
do Ser à multiplicidade sujeita perante a diatribe pandoriana de condições,
basta um exíguo salto, a partir do qual vigora o perigo da plena relativização,
marcada pela absurdidade de possibilidades que são mais vingativas do que
remidoras.

Ora, mesmo tratando-se de uma physis, os Princípios poderão ser úteis


e responder “melhor” à necessidade historicista; da mesma forma, se a Cons-
ciência precisa do Corpo (e vice-versa), há que presumir que o Conhecimen-
to “adequado” não há-de estar assim tão longe das “imagens” percebidas, o
que vem em abono da ideia de que Estruturas morais e comportamentais

26
O FisióSOFO

adequadas poderão ser viabilizadas pelo instrumento telúrico, para bem de


alguns ou, até, de todos. Estamos, claro, em vista de uma utilidade, e, talvez,
de uma consequencialidade “maioritária”, para a qual importa o quantum de
insofrimento.

Por vezes, quanto mais nos batemos pelos outros mais eles nos batem. É
justo, também nós nos batemos quando se batem por nós, num bate-bate de
suspeição.

Chegando ao fim da minha vida, resta-me este conselho: façam tudo o


que eu fiz, mas não peçam conselhos. Sobretudo a quem não quer recebê-los.

Quanto mais nos questionamos mais nos afastamos do principal: resol-


ver as únicas questões que valem a pena ser feitas. E uma delas é se alguma
questão não deva ser feita.

«– A: Li um livro sobre Programação Neurolinguística.


– B: E então, gostaste?
– A: Não, mas fiquei programado.
– B: E melhoraste da atitude?
– A: Sim, vou fazer outro curso.»

«– A: Fui a uma médium. Ela disse-me que tinha fraca auto-estima.


– B: E acertou. Como é que ela sabia?
– A: Ouviste o que eu disse? Fui a uma médium.
– B: Ah, mas isso significa que ela podia ter mentido.
– A: Mas esta era boa. Disse a verdade.»

27
Luís Coelho

Não sacrifiques tudo por amor. Sacrifica tudo ao Amor. Mas fá-lo com
amor.

Fui tão bom que acabei a pagar na vida seguinte as saudades que deixei.

Quando se esquecem de mim, sinto-me livre de me esquecer também.


Mas há sempre quem me decepcione.

Queria ser moderado num mundo moderado. Herdei um mundo de


moderadores imoderados. Bem se vê que não me moderei, mas sou mais
módico do que nunca.

O talento é uma larva com borboletas na barriga. Com ele fiz uma cintura
gástrica. E o fígado cresceu, ganhando asas. E o mundo venceu uma hepatite.
Com o balão subindo a escada do equilíbrio. Na prova da polícia da pensarreia.

Fui ao alfaiate. Quis tirar-me as medidas. Disse que a fita não chegava.
Viu-me ao microscópio, mas ceguei-o com a luz. Partiu-me o vestido da lame-
la, na vingança da lente. Da Objectiva, fugi para a ocular. Queria ser olho, o
olho de quem vestia.

Quando se quer uma relação, tem de se sacrificar o orgulho. Quando se


quer uma Obra tem de se sacrificar a relação. E quando se quer divulgar a
obra, é preciso fingir que o orgulho não sacrificou qualquer relação.

Há, apenas, que ser um “pobre diabo” para contar a história do “Bom
Deus”.

28
O FisióSOFO

A melhor maneira de esquecer um livro é conhecer o seu autor.

Se pensares antes de ler, ler-te-ás; se leres antes de pensar, serás lido.

Quem tem boca vai a Roma. Mas, quem se cala, vai a todo o lado.
Em Roma sê (des)humano. Torna-te ruína. Terás visitas o ano inteiro,
mas sem a dor do veraneio. Tirarão selfies contigo, onde terão a cura da soli-
dão. Ficarás, para sempre, guardado na memória do dilúvio, na espuma que
naufraga e consolida o tempo. Em Roma sê humano, a falar de retratos da
“Pietà”, não te esqueças de morrer.

Quando a Razão se afasta muito do ouvido deixa de ser audível.

Dizem que o PAN é uma seita dos comedores de seitan. Pensavam que
era Apolo, e saiu-lhes Baco com nudez, festa e bruxaria. Mas sem a carne da
letargia. Já o Touro ressuscita e têm medo da alegria. Não devem temer quem
tem pano para mangas. Até o Touro perdoa e a redenção não tem espeto.
(01/06/2019)

O meu gato pergunta se é preciso ter medo do PAN. Dei-lhe mais patê,
não fosse o Diabo tecê-las.

«– A: Devemos temer a ciência?


– B: Não, meu filho, a ciência deu-te todos estes luxos.
– A: Era o que eu temia!»

29
Luís Coelho

Expliquei-lhe que a Razão tem razões que a ciência desconhece. E ele


disse-me que eu era um charlatão. Agradeci-lhe, expliquei-lhe o meu estado
de espírito: ele tinha compreendido tudo, mas não tinha entendido nada.

Quando te compreenderes, vais deixar de te entender. Quando nada


encontrares, terás compreendido tudo.

Interpretas-te, perdes tempo. Perdes o tempo, compreendes-te.

A verdadeira solução “positiva” deverá ser dialéctica, dinâmica no seu


intento de re-solução permanente. O prescritivismo não é mais do que um
desaforo de quem não consegue algorotmizar perfeitamente a realidade. Mas
este Algoritmo é psíquico, e o psíquico é físico, é um manancial material de
múltiplas variáveis resistindo à redução plena, fantasma do atomismo. O con-
trolo absoluto é o sonho “positivo” que condiz com o Ideal, alvar e prévio, o
novo Ideal, concernente com a pós-modernidade, é uma reactualização do
Espírito, mas, agora, existe o ensejo de um liberalismo de oportunidades, e a
influência da nova ciência que revê o Ideal no campo de uma materialidade
estrita. O fundamento moral é, bem sabemos, contratual, psicossocial, dantes,
o Ideal não resistiria sem Deus, e sem o abraço da revelação, mesmo que
sucumbido perante a acuidade racional.

Todos se preocupam com o progresso da Humanidade. Poucos se preo-


cupam com a humanidade do progresso. E ainda menos crêem que o pro-
gresso é um regresso. Resta saber ao quê.

Só há um modo de evoluir. É em ponto morto e marcha-atrás. Doutra


forma, travaremos a fundo. Vá lá que existem as mudanças, para que todos
andem à sua maneira. E há ainda os que vão em contramão, a enganar o
tempo no equilíbrio das trotinetes.

30
O FisióSOFO

O que a modernidade conseguiu foi transformar o Sujeito em Objecto


sem que o primeiro se queixe de ser objectado. Os que o fazem ainda se arris-
cam a tornar-se inúteis.

O que o materialismo não quer é que tomem o seu luxo por Deus. De
resto, podem andar todos enganados.

A Psicologia é o “Espírito” a andar de carro. A Psicanálise faz melhor:


anda de burro. A primeira não funciona sem o motor, a segunda zurra sem
deixar avançar o carro.

Numa viagem, há que olhar para trás. Ora para apreciar, ora para ver
quem se atrasa. Alguns até apreciam os que se adiantam.

Bem vendo, o “placebo” é a palavra maldita com que os materialistas se


dão ao desprezo da subjectividade. Esquecem-se que foi esse desprezo que
lhe atribuiu toda a importância.

Portanto, a fé é o segredo do antigo Ideal. A Razão teve de recolher no


“positivismo” o fundamento da novel moralidade/cientificidade. Agora, exis-
te uma crença, uma confiança, na ciência, na deusa renovada que se impõe
de um modo igualmente dogmático. A nova fé tem arcaboiço, e, como a
antiga, nela moureja o equipamento do Corpo inconsciente.

A determinada altura, nas minhas leituras de Agustina, pensei: “é inútil


que mais alguém escreva seja o que for, é impossível fazer melhor do que
isto.” Há, na verdade, um antes e um depois de Agustina. Ela elevou de tal

31
Luís Coelho

modo a fasquia da escrita, como do pensamento, que, depois dela, será difícil
“evoluir”. Só quem a leu compreende do que falo. Mas quem se limitou à
“Sibila” não conhecerá o milagre. Ao contrário do que muitos pensam, “A
Sibila” não é necessariamente o seu melhor livro, e não representa, de todo, o
seu escrever aforístico. Mas está lá a alma do Norte, das famílias repletas de
fantasmas, das histórias que se enchem de camadas de significação. É verdade
que, para lê-la, para conseguir a memória de trabalho requerida ao seu acom-
panhamento, é preciso estar num daqueles dias em que não nos importamos
de suar. Ninguém pode lê-la a sangue frio, só com o sangue cheio de vonta-
de. Façam-no, por exemplo, com “Vale Abraão”. E, depois, vejam o filme.
Ou vejam o filme primeiro e leiam o romance depois. E voltem a ver o filme.
Foi assim que comecei com a Agustina. Ainda não terminei. Nunca termina-
rei. (03/06/2019)

Se confiares na Verdade não precisarás de atestados. Quem tos passa


não acredita nela. E não confia em ti.

Santos da casa não fazem milagres, só maldições.

Com uma sobrevalorização da lógica enquanto mecanismo perscruta-


dor da sua filosofia, em «Ética», Espinosa mais propriamente se afunda num
empirismo dominante, o qual não só fornece o fundamento ao que aspira ser
“lógico”, como se torna a própria Razão, na substituição de um Logos mais
analítico e/ou linguístico. A Razão, em Espinosa, é essencialmente “corpó-
rea”, emocional, ela depende das “afecções” que pretende controlar. Nada
que a psicanálise ou a psicologia moderna não compreendam “normativa-
mente”, mas que, na época do racionalismo cartesiano, parecia bem rebusca-
do e, até, blasfemo. A ética espinosista decalca o lado “diabólico”, carnal, do
espírito, valoriza o “inferior” face à superfluidade quase sobrenatural da moral
teológica, abre, assim, a porta ao “relativismo”, bem como à necessária com-
preensão psíquica que fornecemos, geralmente, ao que é individual e anam-
nésico.

32
O FisióSOFO

A Razão espinosista é, assim, uma razão neurótica, que antecipa a


importância do psíquico, do emocional, o filósofo é, portanto, um dos mais
“empiricistas” entre os racionais, tendo valorizado bastante o papel da doxa,
e, não obstante, a sua “doxologia” não apaga o primor de uma organização
metódica que torna a «Ética» uma obra singular. O que, contudo, não é evi-
tativo de que a sua obra possua certo simplismo, determinado directivismo
que consideraríamos, actualmente, como apanágio de ingenuidade. Ingénuo
ou ingénito, Espinosa é, ainda, para muitos, uma verdadeira pedra no sapato
do caminho de uma razão que se pretende “pura”, desprovida dos atributos
que, mais tarde, contribuirão para o seu moderno descrédito.

Na sua obra, Espinosa refere-se, realmente, aos atributos universais das


afecções, bem como da Razão que com elas concorre, mas o aspecto universal
da própria Razão “logóica” acaba por ser revezado, em termos consequenciais,
por um aspeito “emocional” que tende a valorizar o “contingente”, assim
como diversas possibilidades de “Arché” sócio-cultural e de estrutura idiossin-
crática.

A medida da filosofia perfeita está na velocidade com que nos esquece-


mos dela. E nos esquecemos nela.

Há quem escreva para ser lembrado. Eu faço-o para que me lembrem de


me esquecer. Não me esqueçam antes disso, não sou assim tão bom!

Numa festa, nunca festejo. Porque quero que a festa se repita.

Quando morreres, não te importes que não se vistam de preto. Só assim


poderás voltar, completamente nu, para fazer o luto.

33
Luís Coelho

Quando virmos na Tríade um Quaternário, estaremos mortos.


Quando virmos no Quaternário uma Tríade, já teremos vazado os olhos.
O cego, o sábio, só pode existir depois do coito incestuoso. E depois de
o saber, e de se proibir, no preâmbulo da Cultura, que é a Razão amadureci-
da, útil à perseveração. Conservação cheia de ruído, em que o coito é, agora,
com a máquina, mater embrutecida onde as fórmulas se esgotam e renovam
incessantemente, para parodiar a antiga liberdade.

O meio é a própria materialidade sôfrega de transformar a antiga Psiké,


de personalizar o Espírito, o Ideal Objectivo, é o primeiro que produz a aven-
tura, o ideal de transmutação. Só o tempo pode conceber tamanho objecto,
que é o de conservar a intrínseca ideia de mutação.

As compensações da Razão neurótica são a proa “libertina”, heresiarca,


com que se tece a Essência, que é a Razão dominante em que o ente, tornado
Ser, deus, deixa de se surpreender. Novel segurança, aborrecimento consen-
tâneo, já não existe algo a conhecer, bem como o cepticismo de quem duvida
do conhecido. A perfeita essência é o próprio Objecto conhecido, indubitável,
intemporal, disfarce de nova busca prestes a desvelar-se, cortinando o misté-
rio maior, que é o do Sentido há muito descoberto e encaminhado.

Previsão do estado do tempo: Céu nublado, com precipitação do pen-


samento. Quando o Céu limpar e o Sol parecer tão grande quanto É, deixará
de haver previsão. Ou tempo para prever.

O problema da Razão é querer dividir-se em várias consoante as “cabe-


ças”. Porque se só uma fosse, nem me importava de fingir que há algo para
além desta que não pode ser lido.

34
O FisióSOFO

Qual é coisa qual é ela cai no chão fica amarela? É a Luz, que, quando se
levanta, perde a cor e não se adivinha. Todos os que dizem vê-la são caídos
em desgraça. Claro, a cada um sua razão. Porque se fosse só uma a Razão,
estaríamos mais perto de saber que somos nós a Luz e a própria adivinha.

Quanto mais glorificamos a Razão, maior é o desejo inconsciente de nos


vermos livres dela. Desejo “racional”, ainda assim, prédica da mente que reza
por mais pureza. E quando falamos de pureza recalcitramos no uso da Razão,
com esta a ser, temporalmente, crescentemente, pessoal, poluta. Mas a “Colec-
tiva” não é menos poluta, ela é a proa e destino de um Inconsciente Colecti-
vo, apesar de tudo contingente. E este é o corpo, aliás, o Espírito subjectivo,
bem distante do vetusto Espírito Objectivo, objecto das religiões, causa e con-
sequência da Culpa.

O “Espírito” normalmente aceite é a Razão dominante, onde a Culpa


jaz carnalizada, subconsciente, e a “aparência” é a razão neurótica, a busca
pela pureza, o livre-arbítrio a gizar a Liberdade do Espírito “Objectivo”, onde
nenhuma Razão ecoa. Mas ela ecoa, foi sublimada pelo filósofo, novel Colec-
tivo a fundar novos inconscientes, e novos desejos de salvação. Todo o desejo
de salvação é, na verdade, não uma necessidade de morte, mas um apetite de
prazer, que se mascara daquilo que pode ser obtido na melhor das hipóteses:
o equilíbrio. Mas o equilíbrio pode vir a ser sacudido novamente pelo objec-
to “exterior”, é um novo mistério que se adensa, novel caminho de desocul-
tação de uma Razão primaveril, em que a busca se pacifica.

Para que não subsista o assédio moral nas organizações: Desorganiza-te!

Quando morre uma pessoa próxima, sofre-se, com a própria morte em


aproximação. Quando morrem muitos afastados, sofre a História, com o
próprio mito vendo-se parido. O mito encobre a verdade, minando a possi-
bilidade de transformação.

35
Luís Coelho

A dor próxima é isso mesmo: uma dor, vale pouco mais que a dor de
muitos, que é, na verdade, um sofrer temporal, para os outros é uma abstrac-
ção, raiz do fingimento, e este só existe porque, antes da dor, há um Princí-
pio demandando a empatia, ou uma reacção determinada. Mas o próprio
Princípio cria o artifício da superação, pelo qual é possível fazer valer a His-
tória por muitos anos; a mudança precisa de um embate mais preciso, de um
sofrer concreto, que, com a História, acabará por ser mitificado, perdendo o
seu poder moderador.

«– A: Sinto que vêm de ti boas vibrações!


– B: Lamento, são interferências.»

Também em Espinosa é possível lobrigar a importância da Razão comum,


primeva, no encalce de Deus, como da consequente virtude. A Virtude enquanto
Unidade racional primária implica necessariamente todos, até porque um indi-
víduo realmente virtuoso desejará forçosamente a virtude do/no próximo, este é
o condimento da Natureza íntima que o tempo promete apagar. Se a Razão se
multiplica, dissolve, a virtude compreenderá o artifício da afecção, aí será mais
fácil o “bem” de uns acarretar o “mal” de outros, haverá, também, a dissensão
“justo” vs. “injusto”, que não é provida no estado paradisíaco em que a Lei não
se “mentaliza”. A Condição civil, contratual, do Homem exige a punição, o con-
trolo, e o esforço requerido à reequilibração. O Equilíbrio natural envolve o con-
junto balanceado das diferentes partes do corpo e dos diferentes indivíduos, o
equilíbrio artificial é uma tentativa de imitar, prolongar, o Contrato bestial, que,
porventura, implica, igualmente, o dislate selvático, a entropia da vivência desa-
brigada, a ausência de uma Razão que se revê em Deus, fundamento da plena
moralidade.

O sofrimento é, assim, um modo de carrear o homem da aparência afec-


cional ao estado de equilíbrio unitário que conduz à Razão. A partir desta, é
possível obter a Lei primária, o primeiro Logos, que desencadeia o movimento
harmonioso, dulcífero, que só o objecto “exterior” poderá fazer “multiplicar”.
Esta não é a Lei de cada um, numa espécie de pessoalismo psicanalítico, até em

36
O FisióSOFO

Espinosa se advoga a Razão no seu sentido mais “kantiano”, ou mais “platóni-


co”.

Agora que faço anos, agradeço ao tempo ter tido a paciência de esperar
por mim. Se fosse o meu aniversário, não agradeceria.

Não confirmo nem desminto. Mas, se desmentires, confirmarei, não vá


eu ser desmentido. Queres um acordo? Se o queres é porque não há forma de
evitar desmentir-me um dia. Olha, mantenho o que disse, mais vale não me
caucionar, assim talvez passe despercebido ao Equilíbrio.

A tua cara não me é estranha. Por isso, das duas uma: ou és a minha
cara-metade ou a minha cara chapada. De qualquer das formas, não vale a
pena convidar-te para sair. Já te fizeste convidada.

Há quem procure o sucesso. Eu só procuro ser bem sucedido.

Os talentos, agora, são tantos, que temo a inflação. Valorizo, cada vez
mais, os que se deflacionam. Soam a ouro pago a escudos. No mundo actual,
ser menor é ter talento.

O verdadeiro Sentido da vida é procurar aquilo que não tem qualquer


utilidade. Por isso não encontramos, o que, bem vendo, é absurdo, que é o
melhor que conseguimos.

Quiseram que eu salvasse a Humanidade da extinção. Ofereceram-me,


em troca, um doutoramento honoris causa. Com direito a discurso (e não a

37
Luís Coelho

recurso). Escolhi o tema: “Porque teima o Homem em extinguir-se”. Só pre-


cisei de aparecer com a toga entre as pernas.

Para quem não sabe, a par do incesto, o peido é o mais universal dos
sacrilégios sociais. Felizmente, que a Sociedade arranjou a solução: ou incha
ou bufa. Mas cuidado, que a bufa de hoje é o (l)inchamento de amanhã.
Entretanto, quem peida é Rei. Sem súbditos.

A Virtude, em Espinosa, é a Razão enquanto elemento de Conhecimen-


to adequado, e esta é utilitária (como em Nietzsche ou William James), é o
“Bem” que está para além de “bem” e “mal”, na Estruturação psíquica que dá
luz às afecções, na cambiante metanóica que os espiritualistas poderiam con-
siderar como irracional, meta-racional, intemporal.

Viveu de causas naturais. Um dia falou. Morreu a pedir por mais.

A determinada altura, Espinosa, qual Kant, defende a integridade de


uma Razão plena, possibilidade de escolha ética que supera a realidade baça
das afecções. A sua intenção de um Bem comum retrata a limitação de um
racionalismo ainda demasiado achegado ao preconceito moral do Espiritua-
lismo, não há, verdadeiramente, Razão “pura”, modus de avaliação e decisão
incondicionais, tudo é afecção, esta Razão constitui, apenas, a familiaridade
de um “Arché” sócio-moral, ela pode trazer mais Virtude, pode, até, revelar-
-se superior a outras razões, mas não poderá garantir a beneficência absoluta,
nem o “bem comum” nos termos de um claro empirismo temporal.

A Razão plena, em Espinosa, aproxima-se, claro, de uma noção de a


priori, de Razão prévia servida por uma physis primaveril, ela permite superar
o “imediatismo” das paixões/afecções, para que a mediação logóica possibili-
te um outro “imediatismo”, intuitivo e espiritual. Mas esta é, bem vendo,

38
O FisióSOFO

uma Razão mais “individuada” do que colectiva, o emprego de uma Estrutu-


ra em que o “medo” é revezado pela “segurança”, pela estabilidade afeccio-
nal, e pela comunhão face a um “exterior” que perdeu o tom da ameaça.

A segurança “emocional” não apaga o tom do compromisso ético, antes


pelo contrário. O Princípio do Prazer é garantido à custa do respeito pelo
“comum”, porque existe uma possibilidade de antecipação das consequên-
cias da acção, representação do Princípio da Realidade, arquétipo da decisão
moral que implica maturação, a capacidade de vencer o imediatismo “pas-
sional”. A Razão “moral” é necessária à concretização do Ser, individual e
Colectivo, no agora e no porvir, como na remissão face ao pretérito, ela abar-
ca um Contrato social capaz de estender as necessidades e virtudes da “razão
natural”, e este é o Espírito mais vero, a comunhão perfeita de um acordo
“equilibrado” de vontades. É uma coisa “telúrica” ainda assim, mas é, apesar
de tudo, “Deus sendo”, fazendo sobrevir a Humanidade. Mas, claro, existe,
igualmente, uma concessão face à mudança, à transmutação de arquétipos, à
vivência “absurda” (Camus) de diversas “Normalidades”, que não tem, sequer,
que exigir uma revolução sangrenta, capaz de fazer “arrepender” a integrida-
de de um processo que visa à Justiça temporalmente mais inclusiva. E esta
precisa do tempo, do Silêncio transcorrendo os carris da vivência “comuni-
cacional” (Habermas), nela os modelos distintos são bem-vindos, poderão
ser recepcionados pacificamente, sem o condão do sacrifício “egóico”, e as
“paixões” farão, obviamente, o seu papel de divisas do movimento, do desa-
fio face ao aborrecimento, ao Nada que pode ser assegurado pelo Paraíso
Racional absoluto, Espírito “metanóico” que se destitui de contratos e onde a
comunhão é de sideração constante de um Coito de “leite e mel”.

Os locatários da Razão dominante possuem uma menor necessidade de


fazer uso dos seus cálculos “antecipatórios”, eles estão adaptados, mas isto
também significa que o cálculo, quando realizado, pode ser feito com maior
ardil e tranquilidade. É uma vantagem para o “eu”, e para o “Comum”. O
desadaptado poderá ter de recorrer ao ardil da Razão dominante enquanto
modo de compensação, é, talvez, uma maneira de enganar a visão que nem
por isso se torna mais focada. Aqui, a Razão é menos natural, e é possível que

39
Luís Coelho

ela venha a ser traída pela “paixão”, mais cedo ou mais tarde. O ente mais
“afectado”, sofrido, possui uma imagem distorcida da Realidade, as suas
“ideias” são inadequadas, e, no entanto, pode ser que tenha a Realidade que
se adaptar a ele, talvez seja a Razão que tem de ser cambiada pela acção do
pretérito “desadaptado”. Quando dizemos que alguém é “dono da Razão”,
há que especificar preliminarmente o que é a Norma, qual é o Domus Racio-
nal. Porque o “louco” pode ser qualquer um que se aparte do que domina, e,
contudo, o Domínio não será, provavelmente, muito diferente do que a phy-
sis, a Razão natural, prepondera.

Desde que tenhas Carácter não importam os caracteres.

Existe conhecimento “adequado” quando as ideias “exteriores” são enca-


radas naquilo que são verdadeiramente, ou quando há uma similitude entre
as afecções e a Razão capaz de as integrar. Se ocorre uma ameaça “afeccio-
nal”, a Razão não pode “desvelar” completamente o seu “ideário”, não sendo,
assim, possível prever integralmente o comportamento “adequado”. Pode ser
que a Razão pessoal tenha de se adaptar, aproximando o seu conteúdo do
que voga exteriormente. Mas há limites para tal adaptação, a Razão implica
um “certo” que impõe a neurose, o diferendo, como a necessidade de trans-
formar o próprio “objecto”. Quando Sujeito e Objecto se “entendem”, há
previsibilidade total, ameaça mínima. O que tende a subsistir se existe pro-
ximidade entre a razão “pessoal” e a razão “normativa”. Porque, quando a
“pessoal” se afasta profundamente da Norma, as ideias desta assustam o
Sujeito, a não ser, claro, que o ser possua uma Estrutura integrativa, flexível,
capaz de reconhecer facilmente os dados “objectais”, ou, até, de desprezá-los
porque neles não visa qualquer ameaça.

A Razão controla-se a si-mesma pelo veículo da Culpa e controla as


afecções, a aferência “estranha”, bem como o corpo “práxico”, transforma-
dor, de modo eferente. Aqui, atemos a potência da Alma, a Razão “activa”,
beneficente. Mas, no sentido da aferência, as afecções também fazem a
Razão, e esta pode adaptar-se a um estímulo exterior “potente”. A visão “afe-

40
O FisióSOFO

rente”, Inferior » Superior, é empírica, no seu limite, denuncia o poder do


corpo sobre a Razão, e do Inconsciente sobre o Superego.

Uma virtude imposta pode consubstanciar uma ameaça com o poder de


fazer sublimar uma moral defensiva, projecção de uma Estrutura mais ou
menos pessoal. Se, contudo, a Estrutura pessoal não distar muito da virtude
referida, esta poderá ajudar a gerir o processo racional na sua função de
ordenação das afecções. A “liberdade” precisa do exercício da Razão mais
austero relativamente ao “exterior” e às afecções perturbadoras. As que che-
gam podem e devem ser submetidas ao mecanismo do Conhecimento, até
que sejam integradas na intrínseca Razão “doméstica”. Se a Razão pessoal é
Universal e/ou se ela coincide com a Razão Normativa, é provável que se
mantenha coesa e, até, impermeabilizada face a muitas “paixões”. É a Razão
“necessária” que produz as afecções “adequadas” e conduz muitas das “exter-
nas”. Ela possui a necessária capacidade de previsão, e de gestão, da Realida-
de. A razão pessoal que não se coaduna com a “Norma” é menos Universal, e
pode estar destinada a construir a sua própria Realidade exterior, onde des-
ponte a estabilidade. Mas a Razão Universal está mais necessariamente envol-
vida no bem “comum”, ela é a própria Virtude, no sentido em que a Estrutu-
ra que ela subsume consuma a “moral” normativa, o Superego “social”.

Quanto maior o número de afecções tornadas ideias adequadas, maior é


o quantum de Realidade conhecida e mais próximos estamos de Deus. Deus
seria a Razão plena de todas as qualidades afeccionais. O seu conhecimento
adequado é o apagamento da fronteira Sujeito vs. Objecto. A alegria é o Conhe-
cimento adequado, capaz de prever uma faixa da Realidade necessária. A Neces-
sidade per se não é alegria ou tristeza, não é Razão sequer. Porque a Razão é o
modo de organizar o Conhecimento de Deus. E Deus é já o próprio Objecto
sem conhecimento. Deus não tem acção, nós é que o contemplamos na medi-
da da potência da Razão, que vai buscar o seu material ao mundo “exterior”.
Este conforma a base necessária mas fosca. A Razão é o exercício da sua revela-
ção e desvelo. Deus é o desvelo concluído. Mas, no homem, nem a Razão é
plenamente “necessária”, a não ser para si-mesmo. A sua “verdade” é o manan-
cial de afecções que nunca se permitem desocultar completamente. O caminho

41
Luís Coelho

é acreditar que é possível desvelar. Mas o homem está destinado a ter uma
Estrutura afeccional, em que a Cognoscência não é, nem pode ser, perfeita. A
nossa “moral” nunca é absoluta, ela parecerá sê-lo se se aproximar da physis ou
da Norma, mas estará sempre “a caminho de”, que é o destino do Humano
imperfeito.

«– A: As discussões “humanas” acerca do Clima estão a atingir um clí-


max interessante.
– B: Qual é o pior que pode acontecer?
– A: Terem filhos.
– B: E se chegarem a acordo?
– A: Fica o clima de “cortar à faca”.
– B: Então isto só lá vai com um dilúvio?
– A: Deus queira!
– B: E tu não tens medo?
– A: Tenho. Dos sobreviventes.
– B: E não propões soluções?
– A: Não, inquietam-me.»

O niilista mais perfeito não é o que diz que Deus não existe, mas o que
diz que a existência de Deus é perfeitamente inútil. Se Deus fosse útil já não
seria Deus, a utilidade é uma projecção de uma Natureza que se quer num
alvo consequencial, e, no entanto, é mágica, misteriosa, a essência da vida, da
Vontade de vencer, é a própria utilidade, como a consequencialidade, que
nos leva a perguntar “para quê” conservar o que não tem sentido conservar,
alguns dirão que é a Deus que compete responder, mas Ele não tem destas
preocupações, Ele é a intrínseca Natureza a fazer-se para a pergunta, é o mis-
tério da Vida “cega”.

É a própria Necessidade de Deus que cria a potência da Alma, bem


como a obrigatoriedade desta de se conduzir da Razão dialéctica e afeccional
para a Razão contemplativa. Esta é o Amor intelectual por Deus, o destino
perfeito de um caminho individual de ilusões. Existe na Alma algo de indivi-

42
O FisióSOFO

dual e algo de Colectivo. O Todo perfeito é Deus demandando o Universo


das razões morais. Para o materialismo, é o corpo que cria a moralidade, bem
como a experiência do Sagrado, do receio, que congemina a construção ética
dos espiritualistas. A Universalidade não requer Deus. A Razão também não.
O “relativismo” só vê “razões”, para este, a Razão Universal é uma questão de
Contrato. Contrato útil, é certo, mas outras possibilidades poderiam perfa-
zer-se “vantajosas”. Mas o Universalismo não pensa ser vantajoso apartar-
-nos muito da Origem, da physis, ou de Deus.

O Espiritualismo tem dificuldades em aceitar que a Ética é uma questão de


corpo, de Ego, porque o primeiro peja neste determinada natureza “malévola”,
quando, no fundo, é inútil conceber a moralidade em termos “espirituais” ou
“materiais” desde que ela sirva ao homem. Claro, o perigo do materialismo está
no excessivo relativismo, é contra este que luta uma Razão centrada em Deus.
Mas Deus não apaga as “razões” de cada um, como a natureza do “corpo”.

Se Deus tiver as suas “razões morais”, restar-nos-á obedecer? E a nossa


determinação, Deus não se responsabiliza por ela? Se, por outro lado, Deus
está morto, restará a Autoridade “positiva” para impor a moral. Mas há,
também, a solução “esotérica”, psicanalítica. Que não mata, ainda assim,
Deus, mas é certo que dele não necessita. Deus é irrelevante para a moral.
Mas isso não o torna inútil? Que acrescenta dizer que Tudo é Deus? Ou que
Deus constitui a perfeição absoluta? O que é a “perfeição”? É o “mais vanta-
joso”? Deus é, então, uma questão de utilidade? Utilidade ao quê? Só Deus
sabe? À continuidade de um caminho perpétuo? Mas isso não destrói o pró-
prio conceito de perfeição? Deus será o conjunto de todas as perfeições? Mas
isso não é ser Nada? Dizer que Deus é o Nada não será nada dizer?

Anelar o Intelecto Divino é possuir a inCondição da decisão “perfeita”,


face a um objecto determinado, e detendo um Conhecimento puro. Esta é a
perfídia do homem-Deus, destituído de passado, intemporal. Igualmente des-
tituído de futuro, pelo que a decisão moral não lhe diz respeito, a Si-mesmo

43
Luís Coelho

pleno, como a Deus. A moral implica, somente, os homens “relativos”, a parte


interessada, viciosa, capaz de fazer contorcer o Igual, o Equilíbrio. Só os
“morais” possuem o direito de questionar as razões de Deus, que são comple-
tamente desinteressadas. De resto, é difícil perceber de que modo pode o Abso-
luto decidir sobre o “relativo”.

A modernidade despediu a preocupação transcendental, metafísica, do


Espiritualismo, o novo paradigma de mater não se importa com o Além, somen-
te com o Aquém, com o “bem-estar”, a felicidade, que, mesmo podendo ter
uma componente espiritual, e detendo, certamente, uma componente sub-
jectiva e abstracta, releva da sua importância “consequencial”, com a resul-
tante mensurável, para a qual as Causas são irrelevantes e os Princípios inú-
teis. Obviamente, continuam a existir os últimos, mas o materialismo é sen-
sível sobretudo à disposição empírica, factual, do insofrimento, segundo a
qual o acontecimento grupal possui uma realidade própria que não se coa-
duna com a razão individual. Não obstante, o utilitarismo não deixa de pos-
suir uma preocupação interpretativa, uma necessidade de transposição cons-
tante do critério, do objecto, o que rememora o meu algoritmo de “menor
sofrimento”, que é, antes de mais, um constructo abstracto expressando a
realidade indivisível de cada instante, sujeito, grupo, ou facção social, segun-
do um critério/objecto determinado, coisa a pedir o conhecimento omnis-
ciente, tanto do presente, como do futuro, a consciência plena, e a justiça
impraticável de critérios, condições, elementos que se distorcem em cada in-
momento.

O alvo “empírico”, a resultante da Consciência, é, no fundo, um modo de


desistir da complexidade de variáveis, como da indivisibilidade abstracta do
sofrer, que a razão “subjectiva” implica. Não é possível controlar todo o proces-
so individual, como um Todo “ideal”, é, sim, possível influir nele por meio do
Princípio. Na modernidade, este torna-se “positivo”, até se perder parcialmen-
te para o “efeito”, consequência da inadaptabilidade do dogma “ideal” ao novo
tempo “liberal”. É certo que o Espírito trata da Razão individual, mas também
a prescreve, bem como a sua Universalidade categórica, o que já não se coadu-
na com a necessidade do indivíduo moderno. A transformação quer-se volun-

44
O FisióSOFO

tária, pessoal, e a sua exigência implica um modelo focado na “resultante”.


Bem que este modelo não trata dos “processos”, mas, para isso, existem as
construções psicológicas e terapêuticas. Mais tarde, a impessoalidade do
“empirismo” irá ressuscitar o Espiritualismo, mas sem que este se desligue do
objecto “individual”, voluntário e psicológico de transformação.

O Princípio utilitário é, no fundo, como todos os outros, porque tam-


bém esses são utilitários, os Princípios metafísicos visam, igualmente, a feli-
cidade geral, a Estrutura primária revê-se na mesclagem de Princípios anteci-
padores, a curto ou a longo prazo, a projecção do longo prazo também serve
o “curto prazo”, doutra maneira soçobraria a Culpa, e esse Princípio da Rea-
lidade é como toda a Razão utilitária, tanto na sua evolução “natural”, como
bio-cultural, a cultural é natural, a Sociedade é um prolongamento da Natu-
reza regradora, e esse Superego cria o remorso tanto no que é principesca-
mente metafísico como no que é “positivo”. A “resultante” é, desde sempre,
o Objecto do Princípio, mas, claro, não há, aqui, plena racionalidade, há
resultantes diversas, critérios vários, espaços mais ou menos prolongáveis de
execução do Princípio, como do interesse de uma massa mais ou menos sen-
ciente de indivíduos.

“Antes só do que mal acompanhado” é dito especialmente por aquele


que, quando só, está mal acompanhado.

Num mundo que é uma confusão, quem procura a Ordem está, decer-
to, confuso.

O são de espírito esquece-se, até, de renunciar. Mas ouvi dizer que o seu
corpo é uma jangada. Alguns usam-na sem o colete de salvação.

45
Luís Coelho

{O discurso terapêutico da modernidade1}


O contexto pós-moderno da guerra das “medicinas” reactualiza, não só,
parcialmente, a “guerra das ciências” do séc. XIX, como a contenda, mais
cabal, dos paradigmas epistémicos da História do Conhecimento. Veremos
que tamanha disputa, na verdade, a essência de toda a Filosofia, é a proa de
uma salutar, necessária, intransponível, dualidade que debuxa a temporária
incapacidade do “ser humano” de se compreender e controlar clinicamente
de um modo mais “absoluto”.
Porque, se a compreensão fosse “absoluta”, ela nem precisaria de ser
dialéctica, dialógica, o Entendimento mataria todas as divisões, mas, aí, já
teríamos um Ser completamente são, Essência isenta de dúvidas. A ausência
de dúvida é, na melhor das hipóteses, uma Física finalizada, um Universo
onde o Homem assume um lugar central de plenitude e omnisciência. O
homem padece porque não é Deus, duvida da sua aptidão para tal. Em tem-
pos, o Espírito era o que mais acercava o homem da deidade. Esse era, tam-
bém, o tempo do “paraíso” dos grandes ideais, das filosofias mais tarde
assumidas dogmaticamente, e, também, de uma medicina inseparável da
alma. A revolução cartesiana veio sistematizar a dúvida e, enquanto a Filoso-
fia se lançou na problemática remanescente do Conhecimento, a ciência via-
-se a ganhar ânsias de independência sistemática.
Parte da filosofia mantém-se agarrada ao antigo modelo “subjectivo”,
enquanto a ciência “moderna” se prefere manifestar empiricamente. No séc.
XIX, tudo se torna mais tenso, porque as ciências “físicas” não querem reco-
nhecer o direito das ciências “sociais” de uma aproximação ao modelo
“empírico”, sonho de um Comte que opõe a promessa da positividade ao
vetusto, mas necessário, erro do paradigma teológico-metafísico. O “positi-
vo” não é, de todo, empírico, mas recalcitra na imediaticidade “material”
própria das ciências físicas, realistas. E, no entanto, não pode, jamais, o con-
junto das ciências “humanas” aspirar ao grau de Conhecimento Necessário
do que é supostamente imodificável.
Mas o antigo Espírito implica esse tipo de dogma, o de uma aparente
permanência. Tornado “Psicologia”, submetido ao exame do “positivo”, a
antiga ciência do espírito perde o seu poder mítico, preço necessário do “rea-
lismo”.

1
Junho de 2019, publicado na revista «Triplov.com», em Julho de 2019, e no jornal
«O Diabo», em três partes/números, em Agosto de 2019.

46
O FisióSOFO

As ciências sociais, arrostadas como “fracas”, “moles”, acabaram mesmo


por recuperar, na pós-modernidade, certo discurso “subjectivo”, interpretati-
vo, mas sem a antiga presunção mítico-dogmática. Limitam-se, simplesmente,
a aceitar o lugar do “ser”, e a sua incomensurabilidade hermenêutica ao “físi-
co”.
Ora, a medicina moderna, ao bom jeito “fisicalista”, possui uma preten-
são dominantemente “exacta”. Ela parte da física, da bioquímica, da histologia,
e de tantos terrenos “certos”, e, às tantas, esquece que, no seu objecto de inter-
venção, está uma “pessoa”. A “pessoa”, agora, já não se encara como “espírito”,
mas possui a sua quota de subjectividade. O que é “humano” implica, sempre,
um manancial de variáveis. A mente é uma variável incontornável e é sobretu-
do o seu caracter “intencional” (vide Searle) que fundamenta a complexidade
factorial das ciências “sociais”. Aquilo em que a medicina se aplica de exclusi-
vamente bioquímico é mais ou menos certeiro (se bem que sempre crescivel-
mente aberto a novas descobertas, e a correcções do conteúdo pretérito, não
esquecendo que a ciência evolui e se adequa de modo multivariado). Mas a
componente “humana” obriga à investida dos estudos “estatísticos”, que é,
bem vendo, o lado mais frágil da evidência “médica”. A determinada altura,
pretendeu-se que o controlo do “placebo” conseguiria eliminar por completo a
fragilidade desses estudos, mas há ainda imensas limitações que não é possível
escusar (note-se que o efeito “Édipo”, segundo Popper, do investigador sobre o
investigado não se limita ao placebo, mas pode estar presente de muitas for-
mas, demarcando, mais uma vez, a componente pós-moderna, subjectivista e
relativista que a ciência moderna não pôde deixar de conceber, especialmente
no século “quântico”). Uma das coisas que se persiste em negligenciar é o
aspecto “totalizador” do indivíduo, do conjunto das variáveis que operam no
seu constructo “absoluto”, e que se perde no processo do isolamento de variá-
veis que os estudos “controlados” exigem. Porque estes estudos vão buscar à
ciência “física” o papel “analítico” do que se investiga. Mas esquecem que o
Sujeito é um Todo, e que o seu “bem-estar” resulta desse mesmo Todo. Não
que isto seja importante para boa parte da medicina, porque esta não é a sua
preocupação dominante, o seu modelo palpável (aliás, a preocupação “ecoló-
gica” é pequena neste tipo de estudos, pretende-se o que é universal, irredutível
ao sujeito/investigador, daí a importância de os estudos – e seus resultados –
serem “reprodutíveis” por outros investigadores, e isto inclui a psicologia cien-
tífica, a qual também tem o cuidado de distinguir o placebo da acção “real” da
terapêutica).

47
Luís Coelho

Mas é a preocupação do terapeuta que lida com o paciente. Quando


saímos do Grupo para o Sujeito, a realidade muda. As variáveis físicas estão
lá. E os estudos estatísticos continuam a ter uma importância cabal, mas os
seus resultados têm de ser adaptados não só ao indivíduo, como a cada
momento irrepetível, a cada instante fenoménico, da intervenção no sujeito
(não se trata, aqui, somente, de desconjuntar a dinâmica de investigação
nomotética da dinâmica idiográfica do “caso”, mas de distinguir a realidade
médica fortemente bioquímica/mecanicista da realidade do terapeuta psico-
-físico inevitavelmente mais holística, com ou sem subjectividade, com ou
sem placebo; se, saindo da caricatura, pensarmos no caso dos estudos trans-
versais centrados na resultante, ainda assim se perde de vista parte do seu
aspecto qualitativo, só pronunciável na realidade clínica; por outro lado, os
estudos longitudinais permitem, várias vezes, controlar aspeitos globais, mas
nem sempre duram o tempo necessário para medir adequadamente o efeito
de terapêuticas “estruturais”, que é, comummente, subtil e dado a tergiversa-
ções de sentido e interpretação). E isto ganha ainda mais importância quan-
do o modelo de trabalho é liberal e se foca no resultado. Ora, o resultado
final é grandemente subjectivo, incluindo, portanto, o placebo, que integra a
imediaticidade “positiva” do Ser.
A atitude “pós-moderna” opõe-se, muitas vezes, ao liberalismo, porque
este modelo se articula confortavelmente com a ciência. Esta cria a saúde
requerida à produtividade. Mas, nisso, também podíamos apontar o dedo às
“terapêuticas”, que, ademais, propiciam o “bem-estar”, artifício da alienação
(vide Marcuse). A disposição “pós-moderna” tem reactualizado a questão
“espiritual”, mas com um pendor mais individualista. Num tempo em que o
Espírito já se descobriu no Ego, muitos teimam em não reconhecê-lo nas
suas próprias pessoas. Resistência que aumenta na directa proporção da
arrogância científica. Os homens de ciência, proponentes do materialismo,
irritam-se, sobremaneira, com estes “crédulos”; os “pós-modernos”, por sua
vez, vêem neles a resultante de um mundo que perdeu a alma. Este mundo
fáustico está feito com a indústria e com o poder das elites. Os “iluminados”
são portadores da “boa nova”, aliás “velha nova”, perdendo, de todo, a
noção. Tornam-se manietáveis, e o pior é que a sua espiritualidade não é
Hegel ou Platão, mas, sim, o que pode ser designado de “auto-ajuda”. Se
precisam de ajuda é porque estão desadaptados. Por isso, não aceitam o
modelo dominante. E isto inclui muitos psicólogos, que, às tantas, se tornam
salvadores (olvidando, porventura, que o “espírito” é corpo, e que o placebo

48
O FisióSOFO

é, talvez, muito do que fazem nas suas falsas “estruturações” psicológicas, o


que, de mais a mais, não importa, porque, o placebo ganha o epíteto de vera
intervenção; não valerá a compensação mais do que nada? Ou será isso outra
ilusão? E isto estende-se à psicanálise, terreno cheio de armadilhas “relativís-
tico-dogmáticas”; o Inconsciente é, desde sempre, um, muitas vezes, mal
compreendido “espírito” idiossincrático, mandatário no sentido Inferior »
Superior, é a suprema tentativa de materializar o “Subjectivo”, de construir
um Espírito livre e reestruturador de Deus, não tendo, antes pelo contrário,
os caracteres de ascese e de renúncia de outros modelos, clássicos e contem-
porâneos; a renúncia é uma compensação “moral” impartível, e que, à seme-
lhança das outras compensações, aspira resgatar a Estrutura original da
“caverna” culpabilizadora e superegóica). A felicidade é, actualmente, uma
obsessão. Mas já nem a psicanálise, com tudo o que tem de “relativista”, cola,
é preciso uma fórmula mais “consumista”. Assim, os pós-modernos tornam-
-se “liberais”, porque a sua obcecação com o corpo-mente se traduz em for-
tunas gastas em terapêuticas, Wellness, e uma horda de pregadores.
Isto já não é o antigo “Espírito”, é uma caricatura de espiritualidade.
Mas vem mostrar que existem necessidades “subjectivas” que a medicina
convencional nem sempre supre (e, suprindo, é facilmente demonizada, por-
que as suas soluções – por exemplo, medicamentosas – são consideradas ini-
migas do “espírito” ou, até, da transcendência, que é o mesmo que dizer que
os “espiritualistas” consideram, por seu turno, muitas soluções “convencio-
nais” uma ilusão, aliás, um placebo, uma compensação). Vem, ademais, mos-
trar que o factor “espiritual” continua na ordem do dia, mas, à semelhança
do que acontecia no pretérito, se entrega a excessos fabulísticos que acabam
por expressar um aspeito empírico. Aliás, nada que um Francis Bacon não
pudesse exprimir, no tempo que esgrimia o moderno “método científico”. A
função deste método junto do que é “humano” passa por trazer rigor, crité-
rio, “empírico” ao que pode conceder-se face à “imaginação” (Espinosa).
Mas o modelo “pós-moderno” tem, como dissemos, algo a oferecer. Ele
vem recuperar a importância do “humano”. Esta “subjectividade” grita por
ser ouvida, e, nisto, os terapeutas possuem um lugar de destaque. Lugar que
pode dar origem a desmesuras, por trás de todos os terapeutas, mesmo os
sérios, existe uma ameaça de exploração do paciente. Mas há pacientes que
querem ser explorados. E, pior, os terapeutas que mais exploram são, comum-
mente, os que precisam igualmente de ser explorados. O melhor terapeuta
trata-se quando trata. De idêntico modo, os melhores analistas não escon-

49
Luís Coelho

dem a sua neurose. O pior que pode acontecer é aumentar o nível de neuro-
se, que é, a bem ver, uma maneira de perpetuar o acto “terapêutico”. Os
melhores clientes sofrem mais da mente do que do corpo (no sentido estri-
to). E quando sofrem do corpo, é a mente a causadora. Se os mandamos para
um psiquiatra eles limitam-se a mudar de terapeuta. Se os tratamos muito
bem, eles são obrigados a lidar com um problema emocional que pretendem,
de todo, evitar. Manter um tratamento “corpóreo” é uma forma de ir ali-
mentando a ilusão. Bom para o terapeuta. Bom para o Sistema. Se ganham
consciência “mental” da problemática, arriscam-se a entrar num caudal de
compensações internas intermináveis. Tornam-se, assim, clientes do psicana-
lista, cuja função passa por eternizar a “interpretação”. É outro modo de
ilusão. Porque, na mais avassaladora das hipóteses, quererá o paciente mudar
o que o envolve. Ora, não seria mau de todo para muitos terapeutas. Um
paciente que dá a volta à vida pode estragar a vida a muitos outros. Bem
vemos que se traça, aqui, uma dialéctica, mas, para a compreender, é neces-
sário “espírito”. A ciência moderna não é sensível ao tema, não entende que a
própria História humana é um placebo gongórico.
A Saúde pode e deve ser compreendida globalmente, ela recruta os
principais paradigmas da história da Filosofia. Mas também abre as portas ao
relativismo. Se tentamos controlar todas as variáveis acabamos num estado
de Caos. O controlo perfeito seria a saúde “absoluta”. Até que este exista, é
preciso caucionar os dois modelos fundamentais: um “materialista”, que
sonha com a estabilidade; outro, “espiritualista”, que se vê renascido. O
modelo de investigação “estatístico-probabilística” medeia, em parte, os dois
paradigmas, mas também mostra a limitação de cada um deles.
Se os estudos estatísticos apontam para determinada realidade, ela não
é, de todo, explicada causalmente pelos primeiros. Sabemos que mesmo as
terapêuticas “não convencionais” possuem estudos com resultados apreciá-
veis. Investigações de qualidade discutível, é claro, mas não é de todo “cientí-
fico” desprezá-las. Os “cépticos” chegam, bastas vezes, a recusar-se a ler tais
estudos, o que atesta um preconceito. Parcialmente explicável socialmente, o
que dirime o seu lado “objectivo”. Mas um preconceito igualmente nos ter-
mos da própria base “científica”, “física”, da coisa. A grande substrução de
cepticismo dos “cientificistas” reside menos nos estudos em si do que na
viabilidade biofísica das terapêuticas em análise. Por exemplo, por não acei-
tarem as bases da homeopatia, é indiferente que manem centenas de estudos
que atestem a sua eficácia. O seu preconceito é de raiz metodológica e con-

50
O FisióSOFO

teudística, pouco importa a “resultante”. Se uma resultante é positiva, tal


pode apontar para a importância de outras variáveis, mas também pode
comprometer alguma base científica que falta descortinar. Mas o teor preli-
minar dessas “bases” foi devorado pela Comunidade Científica (o que é justi-
ficado pela urgência de regrar, institucionalizar, mitificar, o que é dado como
imodificável). E para surgir uma revolução, ao jeito de Kuhn, é preciso um
milagre (e, quando ele surge, récita de uma mutação sócio-cultural, nem
sempre é justo). E isto são coisas que não podem, por ora, ser completamen-
te resolvidas, mas a “guerra das terapêuticas” tem o seu quê de saudável. Ou
talvez não, porque, frequentemente, os pacientes se vêem arrastados por um
estado de caos, senão pelos egos dos profissionais. Não sabem, a certa altura,
o que hão-de fazer, vão sendo chutados por um Sistema deficiente. Sistema
que embuça a sua mediocridade de uma complexidão clínica e de raciocínio
que raramente é racional, mas, para que isso possa ser apreendido, é indis-
pensável gastar tempo com o paciente, e isto não implica, longe disso, reali-
zar muitas sessões de tratamento ad aeternum; é preferível uma sessão indivi-
dual, individuada, em que a avaliação e a intervenção são conexas, a não ser,
claro, que o objectivo passe por uma sana alienação, tanto do paciente quan-
to do terapeuta, porque há modos de consciência que doem muito e não
compensam.
Entretanto, nada obsta à existência de uma terapêutica que (re)concilie
a maior evidência científica disponível com a maior evidência “subjectiva”.
Se a primeira muitas vezes convida a um pouco criativo prescritivismo, a
segunda não pode deixar de ser contida pelo rigor “materialista” adequado.
Entre ambas, existe a pretensão de um trabalho dinâmico, dialéctico, feno-
ménico, que procure a plena Objectidade, e que não descure o processo heu-
rístico. Porque, sem inventividade, não pode vigorar a motivação, nem o
terapeuta quererá ser paciente do seu paciente. Porque, aquilo que muda
constantemente precisa tanto da estabilidade do que garante a Ordem, o
Princípio, quanto do movimento hermenêutico de adaptação à transforma-
ção psicofísica.
Considero que a Fisioterapia do futuro se assesta num lugar privilegiado
para retorquir a esta solicitação quase algorítmica. E, no entanto, para mal
dos nossos pecados, a Fisioterapia moderna encontra-se na pior das situa-
ções. Ainda sem a independência adequada, ela parece escravizada por um
domínio médico prescritivista, que tem mais de poder do que de ciência. A
própria ciência tem tiranizado a Fisioterapia, ao querer encerrar a interven-

51
Luís Coelho

ção criativa com regras e guidelines que só podem fazer sentido estatistica-
mente. Decerto que estas “normas” têm o intuito de abrigar o paciente da
insipiência de muitos terapeutas, mas um trabalho robótico, um acto “signi-
ficante”, não pode valer o “significado” de uma intervenção genuinamente
compreensiva. Muitas vezes tenho dito que, se o terapeuta não pode ser “dia-
léctico”, mais vale não ser terapeuta. De facto, um trabalho dinâmico exige
uma concentração especial, um esforço singular de acomodação à unicidade
do paciente. É, talvez, mais fácil ser “piloto automático”. Não, decerto, para
os criativos. Quiçá seja este um erro, uma doença, dos criativos, dos terapeu-
tas “neuróticos”, que, às tantas, se põem a inventar o mundo. E o pior é que
ainda se arriscam a despertar esse poder nos pacientes. Ninguém gosta dos
criativos, dos engenhosos. O mundo moderno está feito para a economia do
espírito. Mesmo o futuro fortemente algorotmizado aspira fender, de vez, o
espírito. Mas, certamente, não terá a estaticidade do prescritivismo legalista,
porque o Ser é dinâmico e se faz em cada momento (o que acarreta que o
Significante futurável conterá elevada significação, na medida em que inclui-
rá grande riqueza adaptativa; o futuro trará, com obviedade, a materialização
de muito pensamento – e sentimento – do que, até agora, faria parte do mun-
do do “espírito” – sendo esta uma determinação “material” (vide o materia-
lismo dialéctico), alvar, positiva, com um vértice de liberdade virtual e uma
consequência equalizadora; se bem que, segundo o “utilitarismo”, o ponto de
partida é o de um valor imparcial dado igualmente a cada um, vide Bentham
e Mill, não obstante, o que é útil para o Colectivo poderá exigir um trabalho
bem diverso do que pode ser entendido enquanto “terapia individual”, se
bem que a estruturação do Ser implica, à partida, a sua pacificação na relação
com o “outro” –, o que acarreta, também, a perda de alguma liberdade para
errar, o erro é o veículo da mudança, a previsão do pensamento é, tal-
-qualmente, o controlo do mundo exterior, a sua previsão com um nível de
erro menor, o que, de mais a mais, aleita outra Escala de criação subjectiva e
outro mundo exterior, mais “pequeno”, onde tudo se repercute, e se volta a
prever, a determinar, o que transparecia livre).
Um terapeuta igualmente dinâmico é uma raridade no presente. Será,
identicamente, uma raridade no futuro. Mas, enquanto houver Fisioterapia
“humana”, dificilmente matarão a minha inventividade. Tal como a ciência
que a ceva. Ciência da physis e da psique. Presentemente, só a intervenção
“liberal” tem tolerado aos fisioterapeutas tal actuação rebelde. Diria, até, que
a verdadeira Fisioterapia só pode ser praticada marginalmente. Livre de códi-

52
O FisióSOFO

gos e prescrições (nutridos por motivos mais logísticos do que prático-


-fenoménicos), centrada no Todo, uma Fisioterapia destas, com preços prati-
cáveis (adaptados, quiçá, à generosidade de cada um), tem de ser realizada de
modo quase ilegal. Muitos já o fazem. Alguns, ajuntam-lhe as terapêuticas
“não convencionais”. Vários terapeutas terminam por alimentar-se de uma
força compulsória antagonista do Sistema. Como da modernidade, e da intrín-
seca ciência. Têm como aliados os inerentes pacientes, decepcionados com a
crueza da medicina/Fisioterapia convencional. Obviamente, alguns terapeu-
tas até acabam por se vender, o que faz com que não nos admiremos com a
prédica mercantilista dos métodos de Fisioterapia. Quando o paciente e a
Fisioterapia deveriam ser Uno, há quem a desmantele em métodos, técnicas,
sistemas, paradigmas (com algumas vantagens internas, pedagógicas e epis-
témicas, de resto, a pluralidade tem a sua razão de ser, constituindo um
degrau previdente de conhecimento unificador), e até a revista da “evidên-
cia” (alguma, relevante) que se ajeita ao que se aspira comercializar. Empre-
sas de formação (por vezes, com boa intenção empreendedora) enriquecem à
custa dos que caiem nesta armadilha (tomara que saiam dela enriquecidos).
Muita informação não significa mais sabedoria, antes pelo contrário (se bem
que poderá operar uma gravidade essencialmente parcelar, para além de con-
correr para a segurança de quem intervenciona; de resto, o conteúdo, mesmo
que comercializado – alavanca do Sistema –, pode solucionar várias dejecções
específicas e/ou mais sincréticas, importa saber colher e cozinhar, o trabalho
global evolve várias técnicas e processamentos que fazem sentido quando
usados conjuntamente, em termos de raciocínio, mas, também, nos termos
de uma imagem que poderá ser denunciadora da euforia empírica, placebetá-
ria, do terapeuta/paciente – se bem que o paradigma defensado pelo terapeu-
ta/paciente pode depender de uma estrutura iniciática precisa, também ela
mais “espiritual” ou “científica”, sendo habitual o agente/paciente contrapor
ao modelo dominante –, não esquecer que ambos os agentes se amamentam
imageticamente, bem como fantasmaticamente, num rol de achegamento e
desaproximação, compensação e descompensação, dança que cruza múltiplas
variáveis locais e à distância, empíricas, racionais e de carácter, e todas estas
são uma só, acordando e adormecendo continuamente, revezando-se talvez,
obtemperando o instante anterior, que já acatava a memória, acautelando o
sequente, ao abrigo da destruição, porque toda a acção retém moralmente a
estrutura, e um só elemento do exterior pode replicar a ameaça, para o sujei-
to dual). À guisa de tanta informação, anda o paciente cada vez mais longe de

53
Luís Coelho

se encontrar. E o terapeuta também. Não admira que, depois, não se encon-


trem esses entre si. Falta a requerida “Síntese”. Mas o negócio acaba por
matar o Ócio da aproximação (o que não invalida a possibilidade do desen-
contro potenciar o encontro parcial).
Assim como a ciência deve moderar o Espírito, também o Espírito deve
moderar a ciência. E o Espírito inclui, é, a ínsita Ética, o Objecto da perseve-
ração “conjunta”, harmónica, cujo intuito “útil” é, essencialmente, a felici-
dade, ou, pelo menos, o insofrimento. Estamos, provavelmente, a viver, a
sofrer, o necessário para que um novo equilíbrio surja. O placebo é o “palia-
tivo” obrigatório, o mecanismo com que podemos facilitar, abreviar, o inso-
frimento. Esta, claro, é a Ética da Vida. Porque o Espírito é, foi, igualmente,
um exercício de mortificação das forças agónicas do corpo. Mas, para que a
morte surja luciferina, é preciso que o corpo seja esgotado. O “Espírito” puro
é para os sãos de espírito. Até lá, há que dialogar com o corpo-mente, há que
medicá-lo, se for imprescindível, só mais tarde vem a meditação. Que fazer
perante os que desejam antecipar o processo, sem que compreendam que o
seu “bem-estar” não é compatível com o genuíno Espírito? Mas isto é dizer,
em suma, que a mente não é o Espírito, e que o Espírito não se sente, Ele É
tão-só. E, não obstante, os falsos espiritualistas andam por aí, placebetizados,
a acharem que são os outros os “iludidos”. Porque a ciência é a nova religião.
E, no entanto, se o placebo é, ainda assim, “Espírito”, venha de lá tal ilusão.
Com obviedade, poucos são os que admitem tal artifício. Naturalmente, todos
tendem para a sua liberdade. Se o placebo for totalmente compensador, o Ser
acaba mesmo livre, livre de se sentir aprisionado, nem que seja por um ápice.
Não é a liberdade da doença da vida (ou talvez seja, se ativermos as sensações
como a consequente do Espírito, de qualquer forma, essas só são considera-
das “matéria” para uma trupe de materialistas, e conjuntamente por espiri-
tualistas, mas isto é tudo irrelevante, porque a moral depende, mormente, de
um estado de in-consciência). Porque a cura perfeita é a curiosidade fendida
de um Universo inteiramente recuado. Na memória profunda, intemporal,
teremos a única Saúde absoluta. Que é não haver o que curar.

Na hora de criar, cada um que te critica deve valer por dez dos que te
elogiam. Na hora de celebrar, cada um que te elogia deve valer por dez dos
que te criticam. A não ser que te critiquem os que criam. Neste caso, há que
criar nova celebração.

54
O FisióSOFO

O sangue venoso é representado como azul porque é nobre a sua condi-


ção de regresso à fonte, ao Coração da Vida. Quando um vampiro nos suga,
eterniza-nos, porque cessa o vaivém da regurgitação. A maior nobreza é a
morte dracoliana. Quando o sangue bombeia na artéria, esvai-se a potência,
criando o sonho nos capilares nefastos. O pesadelo maior surge quando o
filósofo de sangue azul, Rh +-, se torna dador. Ele nunca diz que é incompa-
tível com os tipos normais de sangue.

Se proíbem o plástico, onde guardamos a modernidade líquida, na soli-


dez da memória? Querem que sejamos felizes à força. Pior, ainda hão-de con-
segui-lo. Quem me garante que o placebo da vida moderna não é melhor? Ah
pois, se passo a ser feliz, já não faço essa pergunta, não me enganam não, nem
me apanham, colocarei um chip e serei mais rápido a pensar, não tarda até
levanto voo.

Sou (de)formado em Comunicação Associal. Cheguei a entrevistar-me.


Dava respostas longas em que nada dizia. Quis fazer uma reportagem sobre
Deus. Nada a reportar.

Quando passo a fronteira, nada declaro. Nem o génio de Oscar Wilde.


Chamam-me ingénuo. Queriam que levasse as ideias na barriga. Mas eu não
quero ser preso. Antes a overdose de silêncio.

Nasci e pedi, logo, recurso. Mas tive um mau advogado, não conseguiu
provar que eu era livre. Assim, cresci em silêncio. Mais tarde, farei o luto.
Quando já não tiver escolha possível.

Se ganhasse um euro por cada vez que se faz um bom uso da Razão,
pedia um empréstimo ao Banco. (Por isso, estou cheio de dinheiro. Falso.)

55
Luís Coelho

Sou um falsificador de arte. Imito a vida. Mas acabo, sempre, morto.


Sou falsificador de dinheiro. Fui preso por redundância. Um dia serei
honesto. Nesse dia, será noite.

Tenho dias... Mas as noites são todas Uma só. Nelas crio-me. Sem que
me (a)pareça.

Deus não se criou. Logo, criou-nos. Foi caso de frustração.

Há opiniões que se soltam para formar o Absoluto. Ouvi dizer que algu-
mas matam os “opinion makers”. Os únicos que se salvam são os que desfazem
opiniões.

Seria um perfeito inútil se não fizesse tanto por isso. Pior, sabem que é
inútil, que está longe de saber-se irrelevante.

Fugiu-lhe a boca para a verdade. Era uma paralisia social.

Talvez subsista, aqui, alguma influência dionisíaca, mas não poderá a


medicina, a terapêutica, reduzir, com o tempo, a robustez natural do Huma-
no? Mais robustez implica menor sofrimento? E se este for remido, não have-
rá sempre desadaptados, incluindo os adaptados de “ontem”? Quiçá possam
os desadaptados compensar-se com a ciência, a medicina ou a Razão, mas
isto seria, talvez, desadaptar posteriormente os “fortes”, que, por sua vez,
poderiam fazer uso da ciência. A compensação apolínea parece, ainda assim,
mais vantajosa, ela possibilita a multiplicação dos entes, o que implica maio-
res oportunidades de conhecimento terapêutico, e de vivência do prazer;

56
O FisióSOFO

mas, também, envolve maior sofrer, o que, de mais a mais, poderá propiciar
outras vias de recompensação científica. Mais pessoas leva à exponenciação
de necessidades, mas tal-qualmente à argúcia das potencialidades. Mais dese-
quilíbrio pode significar maior equilibração futura, e esta poderá gerar a
latente dessensibilização, o que hoje equilibra amanhã será insuficiente, o
que não significa que este mesmo aforismo não possa ter a sua re-solução
num simples alvejamento medicamentoso, ou no placebo da vida moderna
capaz de calar a angústia, como a própria dialéctica temporal. Quiçá seja essa
a maior via, pois bem vemos que não há solução racional possível, as possibi-
lidades são infindas, as hipóteses de aleitamento e compensação temporal,
social, multiplicam-se, resistindo a qualquer possibilidade de previsão.

Uma compensação apolínea inclui um quadro de Valores com que os


homens contam, eles são uma garantia para a traição do “caminho”, o que
pode “valer” de outro modo numa Sociedade dionisíaca, focada na vivência
mais imediata. Um quadro “normal” é algo que faz parte do tecido cultural
do ser, mas o mesmo quadro pode ser “anormal” para outrem. Um indivíduo
dionisíaco poderá sentir-se desadaptado numa Sociedade racional, e o apolí-
neo pode ter de recorrer à ciência para permanecer numa Sociedade dioni-
síaca. Pode, também, acontecer que a aceitação do terapeuta indique uma
compensação apolínea num indivíduo que, mais tarde, poderá querer com-
pensar libertariamente. Esta “liberdade” poderá ser propiciada pelo terapeuta
“democrático”, em anteposição a uma terapia imposta. A última pode ter
como alvo o “bem” do paciente, o qual pode provir com o tempo, justifican-
do-se o meio pelo fim. Quanto à terapia “democrática”, possibilitará uma
maior compensação subjectiva para os “libertários”, talvez não tanto para os
apolíneos. Estamos, aqui, a considerar a terapêutica em geral enquanto pro-
duto apolíneo, mas o seu lado científico é, igualmente, dionisíaco, fáustico,
daqui podendo gerar-se outro reduto de compensações exemplares. A dinâ-
mica é complexa e varia no inerente sujeito. Um indivíduo pode ser apolíneo
ideologicamente e libertário nos termos de uma terapêutica. O que interessa
é que, desta dinâmica, resulta um quantum positivo, subjectivo, um cons-
tructo que muda a cada instante e que expressa um movimento dialéctico.
Uma dialéctica integra um conjunto diverso de mónadas, elementos que se
reduzem constantemente e que interagem complexamente. O Sentido não é

57
Luís Coelho

claro, parece ser o de, meramente, existir, transpor a Essência numa linha
temporal de absurdidade.

O princípio utilitário de Bentham ou Mill acaba por se conformar a


uma “maioria”, diferindo do meu quantum de menor sofrimento, o qual visa
uma resultante, uma média, de insofrimento. Mas ambos assumem que cada
ente representa um “só voto”, por razões de ordem logística, porque é difícil
mensurar a importância, o contributo, de cada indivíduo para a “maior feli-
cidade”. O quantum de menor sofrimento corresponde a uma medida qui-
mérica, abstracta, que mede quantitativamente, mas não qualitativamente.
Cada instante tem a sua resultante. Mas, de certa forma, o sofrimento é sem-
pre comparável, independentemente da última. Um mínimo de sofrer com-
põe a proa de desenvolvimento, de esforço redentor. A par de um resultado
finalista de insofrimento, há que ter em conta a distribuição do sofrer pelo
tecido do Colectivo. É possível que menor sofrimento implique, sobretudo,
um Igual, este contenderia uma acção concertada, adoptada no sentido de
desculpabilizar especialmente os desadaptados. No caso do Igual não envol-
ver necessariamente menor sofrimento, também se poderia consubstanciar
um nível de Igual + insofrimento. A coisa complicar-se-ia se quiséssemos
acrescer-lhe a medida dos Princípios espirituais puros, de “morte”. E, no
entanto, o Igual é um modo de Contemplação, é um antagonismo da dialéc-
tica. Mas talvez não possa ser comparado ao Espírito puro, ao Igual comple-
tamente insofrido, incompatível com a vida. Sabemos bem que a vida “nor-
mal” implica um dualismo insofrido versus sofrido, e que, muitas vezes, o
sofrido age espontaneamente de modo a diminuir o seu grau de sofrimento,
desadaptando, provavelmente, outros indivíduos. Esta dinâmica desfere o
golpe do movimento perpétuo, mas também possibilita distribuir o sofri-
mento pelos diversos agentes, se bem que, no espaço de uma vida, podem
não existir grandes transformações, destinando alguns a uma infelicidade
quase “absoluta”. Infelicidade que pode ser o garante da felicidade de muitos
outros, o que, de mais a mais, é o mesmo que dizer que um menor quantum
de sofrimento poderá implicar uma certa desigualdade, o sacrifício de uns
poucos. O sacrifício, o martírio, é, apesar de tudo, um modo de prazer, se se
inscrever num princípio espiritual basilar, mas, aqui, já se inicia o eixo do
insofrimento. Tudo isto perde sentido se considerarmos que o sofrimento é

58
O FisióSOFO

equivalente nos diferentes entes, em todos eles existe um jogo dual de prazer
+ sofrer que visa a alternância “normativa”, e é esta dança que gera a dinâmi-
ca constante de redenção que concorre para um Absoluto maior onde já
nada acontece.

Onde não puderes morrer, não te demores. Onde não puderes viver,
não te assumas.

O objecto de menor sofrimento não escusa a possibilidade de culpabili-


zar os agentes que, afastando-se do eixo normativo, real e/ou ideal, não se
sentem adequadamente “culpados”, mas, aqui, a dinâmica é semelhante à da
utilizada no que demanda o insofrimento. Apelamos, portanto, ao Princípio
da Realidade, que é pressuposto por todo o “Arché”. Por outro lado, é a
resultante que interessa se apelarmos ao sentido do um peso “ponderado” da
decisão versando os “culpados”. Normalmente, os inculpados são indecisos,
ou certeiros na decisão “normativa”, como na aparente “escolha”, e os cul-
pados decidem de modo “minoritário”, e nem sempre “bem”.

Não precisam de proteger os meus dados pessoais. Eu e o mundo esta-


mos em relação aberta.

Quem desdenha foi comprado. Por um fado de fiado.

Hesito em ter êxito. Porque, se o tivesse, não hesitaria.

Acreditar que uma coisa resulta é fazer com que ela resulte de um modo
que fará dela menos credível ao ponto de, mais tarde, resultar menos. É o
poder de uma Comunidade, de uma cientificidade sistemática. Sobre alguns

59
Luís Coelho

crédulos, que, de alguma forma, se revezam entre a crença pós-moderna e a


ciência cuja resultante é igualmente de cunho pós-moderno.

Não sei línguas estrangeiras. É por isso que me faço, sempre, entender.
Não me entendo com as línguas. Talvez por pensar que me entendo.
Eles entendem-se e não nos enganam. Sempre que se zangam, já sabe-
mos como vai acabar. Se não fosse previsível, não se zangariam.

Quando for possível fazer omeletas sem ovos, as relações terão os dias
contados.

Estou a apertar-me o cerco. Por isso, não revelo as minhas passagens


secretas (nos subterrâneos da fertilidade).

Perde-me de vista. Terás o Coração.

Longe da vista, longe do tempo.


Longe da vista, perto do olhar.

Se tens amigos, singras. Se não tens, singraste.

Todas as filosofias são baratas. Mas fica caro reconhecê-lo.

Há dois grandes tipos de Culturas: as férteis e as que usam fertilizante.

60
O FisióSOFO

Faço questão de ser idiota. Para não ser um idiota sem questões. A fazer-
-me passar pelas respostas.
Se digo desdigo. Então calo-me e passo por burro. Querem, logo, mon-
tar-me. Se protesto, dizem que teimo.

O dinheiro compra a felicidade de não poder comprar-se.

Tentei mudar o mundo. Mudei(-me).

Não te importes de engolir sapos. Um dia serás Príncipe. Coaxou Maquia-


vel.

PT: Personal Trainer, Personal Toucher, Personal Therapist... Physical


Therapist.

Não te preocupes, não estás sozinho. É a minha solidão que o diz. De


outro modo, estaria(s) a viver tudo pela primeira vez.

A minha virgulite não suporta o hipovirgulismo. E ainda menos os pon-


tos finais. É uma questão de identidade, e não de preconceito.

Muitas vezes, os que menos expressam o que sentem são os que mais
sentem o que expressam. É questão de economia, e de economizar a sinceri-
dade.

61
Luís Coelho

Todas as minhas partes estão de acordo com as tuas partes. Só falta con-
cordarmos.

Qualquer pedido de coerência é injusto. Porque, quem o faz, nem nisto


é coerente.

O consentimento sexual, dizem, tem idade. O consentimento filosófico,


desdizem, não tem idade.

Há o que fica por dizer. O resto é ditado.

Quase tudo nas notícias é um “velho” que passa por “novo”. Por isso
sou chato, porque não maquilho a Realidade. Quando já nada há de “ilusó-
rio”, resta a ilusão da idade. Assim, mudo de canal com a bengala da espe-
rança.

Dizem que sou hermético. O que é injusto, porque ainda me apelidam


de qualquer coisa. Pensava, há muito, que já tinha passado à Reserva.

Sou famoso pela minha irrelevância.

Estou na reserva territorial. À espera que me salte a rolha num orgasmo


de espuma. Os que vierem serão maçaricos. A arder de húmus fertilizado. Não
soube o génio manter-se na lâmpada, em lume brando de Luz e sonho. O
esfregaço quis ver-se ao microscópio dos elementos que se digladiam numa

62
O FisióSOFO

alternância de in-determinação. O que não se prevê é a passagem à acção do


que nunca deixou de ter terra e estrume. O terror é a queda em chuva esper-
mática num novo ciclo de fonte perpetuamente antecipável. Infinitamente
para trás, perde a memória o leito da dívida moral, consome o tempo todas as
hipóteses de redenção, e, no entanto, cada instante é uma resultante, uma solu-
ção remissiva, um Princípio permutável de tranquilização.

O melhor na chuva de estrelas está em perder-se a cabeça. O novo hori-


zonte é uma guilhotina. E o rasto de luz, o fio da navalha.

Antigamente, assumíamos papéis. Agora, fazemos plásticas. Se o papel


não tivesse sido sempre plástico, diria termos metido água. Num tronco que
enverdece, entardece e folheia. De Outono que se perfilha e inferniza.

Não decoro nada. Só descoloro. Para me descobrir na mudez da cora-


gem. Mergulhando na piscina de cloro e urina, onde os salpicos assustam e
preservam a memória afogada. Tardo em fazer o chichi da entrega, num
aperto de espera e retorno.

Cortam-me, constantemente, na casaca. Mas só o fazem no Verão, quan-


do tiro o colete à nudez.

Antigamente, eram as enfermeiras a ir para a cama com os médicos.


Agora, são os enfermos a fazerem a cama aos médicos. Porque muitos não
satisfazem os doentes. Quando o médico satisfaz, torna-se enfermeiro, tera-
peuta talvez, decerto menos enfermo do que era. Um enfermeiro demasiado
satisfeito é um médico, daqueles que curam. Um terapeuta é o cura sem cura,
que se prolonga no tempo, é o médico dos instantes que se percorrem em
longitude, numa viagem de circum-navegação em que tudo é incerto, cons-
trução anamnésica a perder-se para o Presente da conformidade.

63
Luís Coelho

De que serve dizer que não há raças e só há etnias se o racismo sempre


foi, fundamentalmente, “etnismo”? E puxam pela ciência a defender o politi-
camente correcto. Ora, esta “correcção” é etnocêntrica, e egóica, que todos
querem ficar bem na fotografia. Façam, antes, fotos a preto e branco. Como
antigamente! Eu fico com os negativos do Império da Luz.

«– A: Olha, ouve-me bem: mata-te já, antes de cresceres, e terás a salva-


ção.
– B: Mas eu ainda não fui baptizado.
– A: Graças a Deus, por isso mesmo!»

«– A: O meu psicanalista disse-me para fazer um diário da minha vida


psíquica.
– B: Utiliza um gravador!
– A: Para gravar cada instante?
– B: Não, para carregares no PLAY sempre que precisares.»

Se a loucura pagasse imposto seria cobrador de impostos. Nem precisa-


ria de sair de casa. Há, claro, o Crédito à Habitação. Não, não falo por enig-
mas, que ideia de ter pagar mais por isso!

Um computador não me há-de apanhar tão depressa assim! Quando


isso acontecer, já serei um programa. No coito da memória de trabalho. Esta
Inteligência será, naturalmente, um prazer. Consciência por artifício.

E a Inteligência Artificial faz os biscoitos da sorte. Mas nunca acerta na


receita. Com sorte, continuará assim.

64
O FisióSOFO

A fama tem a fama de acabar depressa. É por isso que nunca se acaba.
Não, não quero ser famoso, por enquanto ainda há quem me tome pelo que
sou. É questão de acaso, como a minha identidade, que vai buscar ao destino
tudo aquilo que nunca chega a ser.

É facto comum tomar o comum por um facto. Lógico, não é? Nem por
isso, é, apenas, uma questão de moral.

Só penso “fora da caixa” porque Pandora tirou-me lá de dentro. Ora,


perdido por cem, perdido por mil: iludo os outros com a esperança. Pensam
que sou uma caixa de música.

O que dizemos da boca para fora é o que não conseguimos engolir.

Conheci-o pessoalmente. Mas não de todo. Doutro modo, não saberia


quem era, apenas o que É.

Felizes os que, crucificados, não chegaram a crucifixos. Porque é deles o


reino dos céus.
O crucifixo que quer ser crucificado teima em mudar de apartamento.
No departamento da terra.

Há que sofrer para bem perecer. Parece mal, eu sei, mas é melhor do
que padecer.

65
Luís Coelho

A maior tentação da “tábua rasa” (Locke) está em fazer dela uma tábua
de engomar.

Quem conta anedotas, e tem talento, não é uma anedota, mas um livro
fechado.

Sou um actor famoso pelo meu talento. Nunca me reconhecem.

A última vida de um gato são as garras que agrafam o medo.

Sempre que te apanho na cama com “outro”, confirma-se: Isto não É o


que parece.

Um dia, faço-te a cama. Porque, na cama que fizer, nela me deitarei.

A força da convicção está na sua indemonstrabilidade.

“A verdadeira condição do homem: pensar com as suas mãos.”


(Jean-Luc Godard)

Sempre que um fisioterapeuta defende que o futuro da Fisioterapia não


está nas mãos aumenta a probabilidade de a “fisioterapia” ficar nas mãos de
outros profissionais.

Adoptei-me. Para que pudesse devolver-me à Origem. Na Fonte, som-


breando o futuro, morri de desgosto. Na cascata, com a lágrima da perda,

66
O FisióSOFO

jurando não voltar a perder-me, concorrendo com o urso que abandona o


rio para se embeber, melífluo, no deleite das garras.

Tomara que a minha indiferença passasse despercebida. Não precisaria


de ser diferente.

Aviso: A circulação na linha do Destino encontra-se interrompida. Ine-


vitavelmente, alguém se atirou no túnel, perturbando o duplo carril. Ainda
não é possível calcular o tempo de espera para a normalização da circulação.
Reclamações, atestados e justificações, é favor dirigirem-se ao Relojoeiro cego.

“Sou culpado!”, é o que gritam todos os, realmente, inocentes.

Não oiças atrás das portas, sobretudo quem fala sozinho. Podes passar
por louco, a querer roubar os sonhos alheios.

Quando encontrares alguém a falar sozinho, retira-te. Não vás encon-


trar-te.

Interromper alguém que fala sozinho é acusá-lo inocentemente.

Traficar droga é uma redundância. E prender quem o faz, também. A


vida é uma penitenciária. Onde se injectam os vícios no recreio, ou no duche
da sodomia. A apanhar o sabonete do tecto.

67
Luís Coelho

Quem não tem onde cair vivo, há-de cair morto. Moribundo da memó-
ria.

Quem planeia a vida morre por acidente.

Quando a moda da ecologia passar, deixaremos de estar na moda.

Não escrevo o que está certo, mas o que fica bem. Porque o que bem
fica está sempre certo.

Tu és de compreensão lenta. Uma lesma a pensar. Ensina-me como se


faz!

«– A: Tu és de compreensão lenta!
– B: Obrigado.
– A: Como consegues?
– B: Não perguntando.
– A: E como é que isso se faz?
– B: Continuas sem entender.»

Sou lento a aprender. Tudo me surpreende. Mas a surpresa ainda se


quer na aprendizagem. Há quem aprenda a não se surpreender. Que rica
prenda me saiu tal coisa! Tem laço, mas não conteúdo.

O que quer que diga vira-se contra mim. Já experimentei o silêncio,


mas, aí, virou-se o mundo de pantanas.

68
O FisióSOFO

Há lesmas que desejam ser caracóis. Outras querem deixar o muco da


vergonha. As melhores querem passar despercebidas.

«– A: Estás irreconhecível!
– B: Obrigado!
– A: Não era um elogio.
– B: Por isso te agradeci.»

Finjo os orgasmos. Para esconder o prazer de viver.

Sou um “mural” sem cronologia. Tenho todos os “likes” do mundo.


Não sou um “mural”. Nunca serei um “mural”. Não posso querer ser
um “mural”. À parte isso, tenho todas as cronologias do mundo.

O meu riso é risível. Tão-só, não vos posso autorizar a que riam sem ser
de mim. Já sei, é ridículo!

Onde estou, não tenho rede. Estou por um fio. Não, não estou a ser
hermético.

«– A: Olá! Estás afim?


– B: Depende... Levo 30 euros.
– A: Ora essa, não precisas de me pagar!»

Não metas o nariz nos problemas dos outros. Mete as mãos.


Não escutes atrás das portas. Sê a própria porta que escuta.

69
Luís Coelho

{I Congresso Internacional sobre


a “(in)Utilidade de ir a Congressos”}
Call for abstracts: Envio de resumos sem data limite. Pode enviar,
mesmo depois do Congresso ter sido realizado. Tudo o que vier à rede é pei-
xe. Desde que paguem.
Livro de resumos: Será impresso um livro de resumos para que possa
referir o seu estudo não publicado. Tente não dar erros ortográficos.
Livro de Actas: Para não dizer que não tem nenhum artigo publicado.
Prometemos não distribuir. E faremos por não divulgar. Não vale tirar a
referência sem comprar o livro. Só serão publicados os artigos dos pagantes
antes da primeira data prevista.
Comissão Organizadora: Tesouraria, e alguns alunos escravizados, para
segurarem no microfone.
Comissão Científica: Só doutorados, para dar boa impressão. Manda-
-chuvas da área, com carreira feita de teses inúteis, orientação de dissertações
de mestrado de 30 páginas e censura da criatividade.
Oradores convidados: Gajos importantes, com muitos artigos publica-
dos em revistas de outros gajos importantes. Tentaremos mantê-los no Con-
gresso à hora de falarem. Nas restantes horas, estarão a ver as vistas ou a usar
o “spa” do Hotel.
Áreas Temáticas: Ciência dos Congressos; Dogma congressal; Hierar-
quia e proletários; Técnicas de atracção de tansos; Dogma académico; Fontes
de financiamento das Universidades; Congressos e Turismo; Hotelaria; Como
encarar revolucionários; O problema da pseudociência.
Workshops: Técnicas de (des)investigação científica. SPSS para “dum-
mies”. Arte de fazer com que uma tese académica encha muitas folhas. Téc-
nicas avançadas de fraude científica. Introdução à moderação de painéis em
tom coloquial. Técnicas de “savoir faire”, incluindo utilização de “laser poin-
ter” com objectivos sedutores.
Programa provisório: Sessão de abertura com VIPS, e presença ainda
não confirmada do Presidente da República.
Painel A: Tema – “Evidência Científica sobre a utilidade dos Congressos”
(adiantamos as conclusões: “É preciso realizar mais estudos e Congres-
sos.”).
Coffee-Break – inclui menu vegetariano.

70
O FisióSOFO

Painel B: Tema – “Evidência Científica sobre a necessidade de prolongar


os Coffee-Breaks em Congressos” (adiantamos as conclusões: “É preciso
realizar mais Coffee-Breaks.”).
Almoço – parte em que se esperam mais intervenientes.
Painel C: Tema – “Evidência Científica sobre a necessidade de prolongar
os almoços em Congressos.” (patrocinado por uma empresa de catering).
Comunicações orais e visita aos pósteres. Inclui a parte em que se embol-
sam canetas, autocolantes, publicidade de empresas, bolsinhas, livrinhos e
quinquilharias.
Jantar de convívio – é favor levar smoking e graxa. Preço do champanhe
não incluído.
Comunicações: Necessariamente em PowerPoint. Proibido colocar fotos
dos filhos e sobrinhos. Dê preferência a mimos e cachorrinhos. Regra para a
informação: cortar o mais possível, excepto no título. Tempo máximo de 15
min. Tem direito a mesa com copo de água da torneira, flores de plástico e
apresentação condigna (só podem ser usados dois títulos académicos). O
presidente da mesa será alguém de reconhecido mérito, amigo doutro alguém
de reconhecido mérito, com café por perto.
Pósteres: Pagam o mesmo que as Comunicações. Tente colorir e cortar
na palha. De qualquer forma, ninguém vai ler o que lá está.
Destinatários do Congresso: Os próprios Comunicadores, que só esta-
rão à hora de falarem. E estudantes que ainda pensam que isto serve para
alguma coisa.
Material: Pasta com Certificado. Não precisa, assim, de sofrer até ao
fim do Congresso. Se se esquecer do Certificado, não se preocupe, há-de
arranjar mais palha para o Currículo. Os Comunicadores que tiverem pago
mas que não tenham querido aparecer receberão o Certificado em casa.
Língua oficial: Babélico (ou seja, pode misturar línguas à vontade da
ignorância).
Parceiros: Mais uma vez, os próprios Comunicadores, que pagam uma
fortuna para falarem e ninguém ouvir. E outros patrocinadores mais inteli-
gentes.
Data do Congresso: Não se preocupe, não calha a um domingo. Nem
no Verão.
Local do Congresso: Com praias e discotecas.
Estadia: Várias possibilidades, desde que desembolse. Não pode é desem-
bolsar tendas ou ficar em Hostel.
Agosto de 2019

71
Luís Coelho

Qualquer pensamento relevante sobre o Homem deverá ser articulado


contra este.

Saber que os gostos se discutem é um desgosto indiscutível. Porque, se


eles não se discutissem, poderia dar-me ao trabalho de me desgostar.

Que pena que o antropocepticismo seja um antropomorfismo. Porque,


se viesse de Deus, penaria bem mais.

Não perguntes o que o (teu?) Espírito pode fazer por ti. Pergunta o que
tu podes fazer por Ele.
Não perguntes o que o teu corpo pode fazer por ti. Dá-lhe, logo, a res-
posta.

O Espírito é um mãos-largas. Dá corpos a toda a gente. E não pede nada


em troca. Nem se importa com tudo o que os corpos lhe fazem. Mas faz-se
sempre Justiça, quando tudo regressa à Normalidade ociosa. Não por vonta-
de dos corpos, que pedem justiça à medida do interesse. O maior atrevimen-
to do corpo é achar-se mandatário, e achar que o Espírito só diz sóbrio o que
foi pensado bêbedo.

Tu não tens um Espírito, porque o Espírito não existe, e, por isso, Ele
também não te tem a ti, és livre, livre de fazer todas as asneiras que Outros
prepararam. A tua Liberdade é o Ser, quando a Consciência É. Outros dirão
que a Consciência é sempre de algo, e, se te irritam, talvez tenham razão, ou
terão uma razão, há várias, diversas valências que impactam diversamente, e,
portanto, não há Justiça, até porque tu não acreditas no Igual. Mas mesmo
que acreditasses, serias desigual ao acreditar, se bem que, acreditando, sosse-

72
O FisióSOFO

gas, em Ócio de conformidade. O Ócio é ter pouco com que se preocupar, é


haver pequeno pré-juízo, o juízo é valor, razão, as razões produzem um quan-
tum, uma Totalidade, e esta prepondera nos valores.

Ser um corpo é conceder que ele seja o próprio Ser. Assim, limitamo-
-nos a obedecer-lhe. É livre esta possibilidade de nos largarmos nas mãos do
Destino. A maior crueza é a e-moção pura, onde nos abrimos ao Nada. Só aí
sobressai o Espírito, e pomos de lado o destino. O Espírito é um anelar do
“Outro”. Ele é mimetizado pelo Princípio que se enlaça. Quem não enlaça, e
quem não cresce na responsabilização moral, pode sempre gerar outra moral,
novel destino, Princípio renovado a pôr a máscara da deidade. O Princípio
culpabiliza um “outro”, atordoando o corpo. Pode ser que a emoção tenha
de ser vivida e esgotada. A emoção viciosa cria a Consciência heresiarca. Pode
querer o terapeuta calar subitamente o corpo, subtilizando o esforço medita-
tivo. De resto, a emoção vivenciada cria a Consciência subtil a tragar o Espí-
rito e o mutismo.

O trabalho do “Eu” pode ser requerido à desegotização. Já um Ego subi-


tamente ameaçado poderá sublimar uma Consciência intrépida, acaso um
pathos em que a angústia cala o corpo ou em que este cala a angústia. Se o
corpo é “flexibilizado”, pode existir compensação, perduração do pathos. A
doença surge quando o último pede insolvência. Talvez seja necessário esgo-
tar o corpo para fazer sobressair a emoção, e desta passar de novo ao corpo-
-Espírito. Ou talvez seja melhor exaurir a emoção, para que o corpo tome a
dianteira. A crueza é o intrínseco Logos, mas a Razão poderá ser compensa-
ção, ou, então, o caminho para a sua extinção.

{Dia mundial da Fisioterapia e dor crónica}


O dia 8 de Setembro deste ano é o primeiro dia mundial da Fisioterapia
em que os fisioterapeutas portugueses se sentem seguros de uma Ordem já
viabilizada em Parlamento e promulgada pelo Presidente da República. Segu-
rança ilusória, talvez, porque nem a Fisioterapia portuguesa ostenta as perfei-

73
Luís Coelho

tas condições de ordenação autónoma, nem o clima epistemológico do país


permite solucionar adequadamente o vazio de uma Fisioterapia crescente-
mente despersonalizada, esvaída do seu elemento primaveril.
Num contexto que parece bipolarmente cindido entre as necessidades
de uma ciência rigorosa, que chega a fazer as vezes do aspecto exclusivamente
biomecânico e curativo, e a presteza da voz de uma sacralidade, assaz suspei-
ta, que se aduz às terapias exploradoras da componente qualitativa, a Fisiote-
rapia portuguesa perdeu o norte, e os seus profissionais, transtornados ado-
lescentes periclitantes, tropeçam na referida dualidade, assegurando a faixa
obsessiva de um dos pólos paradigmáticos.
Não transfigurando o meio termo “terapêutico”, ora se refugiam os fisio-
terapeutas no antigo arquétipo “multivariado”, subtraindo-se, frequentemen-
te, à lógica dos modelos, dos artifícios míticos que se excedem e reinventam à
medida das necessidades internas e do “senso comum”, ora jacteiam uma
arrogância científica ilimitada, subtraindo-se, por sua vez, à ditadura dos estu-
dos estatísticos, torpes e limitados por natureza. Trata-se, aqui, do radicalismo
dual, que não admite, muitas vezes, grande expressão mediadora e salvífica. A
Fisioterapia está a rasar a doença, a dor, de um processo fundamentalista.
Mas, como todos os terapeutas sabem, por vezes, a dor é requerida à
progressão. Serão estas as dores do crescimento? A dúvida, a dualidade cita-
da, remete para um “pathos”, que absorve e reivindica uma posição. Há,
claro, quem vogue entre paradigmas, mas esta é a condição de uma escolha
não efectuada. A escolha perfeita deverá ser sintética, só esta poderá levar da
doença e do “pathos” ao estado de independência “terapêutica”. Falarei,
aqui, do terapeuta, do paciente, de ambos? O “livre-arbítrio”, proa da auto-
nomia, é o acinte de preparação de uma liberdade mais ampla, (in)condição
em que já não existe terapeuta/paciente, nem plangente relação dual.
Mas uma escolha “justa” legitima a dúvida, a dança paradigmática. Pre-
firo este “pathos” à radicalização limitativa. A segunda securiza, é um “pathos”
também, mas pode, igualmente, criar muitas situações de crise e/ou inflexibi-
lidade. A novel dor deve ser dialógica, e isso evoca a força da discussão epis-
temológica. A Fisioterapia precisa de sofrer, o fisioterapeuta/paciente precisa
de padecer. O perigo está, obviamente, no padecimento crónico, por vezes, é
terminante tomar uma decisão, mas que ela seja obstinadamente informada,
reflexiva. Desta segurança carece o paciente, principal decisor do processo.
É curioso que, este ano, o tema do dia citado no texto seja a “dor cróni-
ca”. Porque não há situação mais ambiguamente cravada pela dualidade de

74
O FisióSOFO

paradigmas, pela dúvida constante, que a “dor”, que é a manifestação impe-


rante do trabalho de um fisioterapeuta.
Enquanto experiência multidimensional que é, a dor possui tanto um
aspecto “material”, “lesional”, determinado, quanto um aspeito psico-sócio-
-cultural, de pendor essencialmente “mental”. Sobretudo a dor crónica, na
qual o aspecto psíquico representa um papel fundamental.
Não é que a opção paradigmática não seja importante, porque qualquer
aspecto pode e deve ser encarado autonomamente. Mas a síntese poderá
multiplicar as hipóteses de êxito, isto, claramente, se o terapeuta souber ser
“sintético”, “holístico”, bio-psico-social. O futuro promete este tipo de actua-
ção dinâmica, o prescritivismo tem uma acção necessariamente limitada. E o
placebo integra todo o decurso, porque é um elemento fundacional do traba-
lho realizado na Subjectividade.
É óbvio que uma equipa multidisciplinar poderá auxiliar, em muito, todo o
mecanismo de laboração clínica, mas sinto-me tentado a reforçar o papel do
terapeuta autónomo, e da autonomia da relação terapêutica, a qual, identica-
mente, não se esgota numa dualidade. A dialéctica que se deve comprazer admi-
te, inescapavelmente, um novo molde global para a Fisioterapia. O trabalho de
um fisioterapeuta não pode continuar a ser limitado por prescrições, códigos e
interesses corporativos e de poder. Não securiza o terapeuta, nem o paciente,
nem o dialogismo que se impõe. A Ordem que já se vislumbra pretende, ou deve
pretender, assegurar as “boas práticas” da profissão, não deve limitar, mas sim
fecundar a acção que já se decuplica, e que é fortemente liberal.
A minha invitação é, essencialmente, de dinamizar a óptica dos mode-
los, mais ainda do que dos “métodos”, assumindo enquanto alvo o intrínseco
“paciente”. Haja, como tal, a paciência para inibir a musculatura, a fáscia,
“postural” dos dogmas – tanto os de carácter mítico, como os de cunho
“cientificista” – e do poder – exercido, também, face ao paciente –, fortale-
cendo a musculatura da boa ciência, tanto a basilar e programática, como a
de carácter nomotético.
Um bom equilíbrio cria a “normalidade” vital do “Ser”, mas esta é,
necessariamente, a do paciente, como a do terapeuta. Não há posturas, ou
colunas, perfeitas, a neutralidade é função da plena flexibilidade dos mode-
los, associada à activação do “core” da opção certeira, e, para isto, concorre,
ainda, o paternalismo, e a atitude do “sujeito”. E o défice de perfeição inclui
o dinamismo da estrutura, como do contexto. Não há equilíbrio que sempre
dure. Gerir este estado de “dor crónica” implica aleitar o “pathos”, a com-

75
Luís Coelho

pensação adaptativa. A escolha é titubeante e ela faz-se entre predicados que


se multiplicam. Não pode ela ser revezada sem que o terapeuta tenha a pre-
paração indispensável. Existe, actualmente, uma geração de fisioterapeutas
jovens que parecem demasiado impulsivos. Estas pulsões dão azo a eleições
empíricas que fazem implodir a preferência. Fica a faltar o vértice da “dúvida
metódica”. E isso esgota facilmente o mecanismo, não permitindo grande
flexibilização do estado de “dor crónica”. É um convite ao esgotamento da
paciência do doente. E quanto mais exauridos estamos mais os músculos
retesam e a dor aumenta. Se reforçamos indiscriminadamente o corpo, arris-
camo-nos a piorar a situação. Podemos, claro, ter a sorte de acertar, como
quando uma prescrição se adapta perfeitamente à conjuntura. E se todo o
Sistema estiver viciado de poder e anquilose, certamente muitos pacientes
melhorarão. Será porque a ciência é “exacta” ou será, mais exactamente, por
efeito dum placebo? Talvez sejam os dois, mas, aqui, já me perco eu, de novo,
no “pathos” do pensar, da dúvida, que tenho defensado.
Queremos, todos, que os fisioterapeutas sejam dignos do novo protótipo
epistemológico, dinâmico, transdisciplinar, multidimensional. Para que a dor
do terapeuta/paciente se torne mais suportável, e não seja em vão. E para que
este possa “Ser”, deixando de se sujeitar ao processo, só assim pode o seu
“pathos” constituir um caminho verdadeiramente “construtivo”. Uma Fisiote-
rapia exclusivamente centrada no “método” vicia o raciocínio. Uma Fisiotera-
pia demasiadamente tecnológica mecaniza os resultados. Uma Fisioterapia que
substitui o contacto “manual”, “relacional”, por uma coisa à distância, mata o
próprio processo. Autonomizar o paciente é o objecto, mas, enquanto “meio”,
tem de ser pesado e contrabalançado pela experiência do terapeuta/filósofo/
paciente. Finalmente, fisioterapeutas que desdenham da sua história, dos seus
mestres, dos seus construtores, merecem ser traídos pelo seu frenesi. Até a dor
de cotovelo serve ao crescimento. Oxalá, ela seja digna do “paciente”.
Agosto de 2019

“Dançar conforme a música” é treinar em pontas durante um sismo.

Ele nadava conforme as águas, fustigando os ventos indecisos. Subita-


mente parou, desistindo de ser. Descobriu-se, de repente, num barco, senta-

76
O FisióSOFO

do à ponta, sem que alguém equilibrasse a proa. Era uma queda preparatória,
no oceano do desengano, com Neptuno magoando o tridente.

Chamar alguém à razão é perder a razão de ser lógico.

O maior sensacionalismo é o de uma razão que se descobre na ressaca.

Quis chamar-te à razão. Mas tu escapaste-te. E eu, fiquei com a tocha


molhada.

A Inspiração não se encontra. Ela procura-nos, por entre bocejos. Cada


vez que abrimos a boca, expelimos o fel de uma Nostalgia peristáltica. Nos
intervalos da sombra, há um facho que se encrava e salva, desligando a
máquina, a mina de pirite.

Para mim, escrever é prestar culto à Palavra, não me importo de lhe


obedecer, de a servir ocioso, desentranhá-la e espalhar o seu visco. São fan-
tasmas que se espantam, cobrindo o pântano das lembranças reprimidas, dos
presentes recriminados.

Não há grandes mentes, há somente tesouros que se apossam dos cor-


pos, na volúpia de um contágio.

O pior está em fazer o desmame da palavra, porque o demónio de cin-


zas nos captura, fétido, querendo falar-nos verdades que oprimem, aborre-
cendo a preguiça de catar a esperança, matando o caminho tíbio.

77
Luís Coelho

São precisos dias, horas de mediocridade, para que as palavras se apos-


sem duma dolência, enganando, tragando a via de um sonho que já se esca-
pou.

Não há mestres ou santos, há mártires que inventam novas saudades.

Quero exprimir o meu descontentamento, mas, sempre que o faço, fico


inesperadamente triste. Se é para isto que serve a lamúria, mais vale descon-
tentar-me a escrever, pode ser que alguém sobreviva.

Entre a Estrutura e a Culpa, há um anjo que ejacula. Entre o Sol e


Saturno, há uma terra que copula. Na devassidão entérica da matéria. Num
jardim do holocausto.

Todos vendem morais. A mim, resta-me roubá-las, para lhes colocar o


preço.

Vivo em estado de ameaça constante. A qualquer momento poderei


apaixonar-me. Juro que isto me tira anos de vida. Pior, nem me dou conta da
passagem. Isto não é viver, isto é sobreviver, é desbaratar os recursos do céu,
tirando da boca aos necessitados de tempo.

A humildade não é a qualidade dos humildes, mas de quem humilda.

78
O FisióSOFO

Pedidos de amizade de divorciados da vida não serão aceites. Só pedidos


de amor. (Aviso: Tenho a declarar que vou desamigar quem achar aquela
frase pirosa. Em compensação, temos encontro marcado com o futuro.)

{Raquialgias e paradigmas fisioterapêuticos2}


“Não pergunte que método o fisioterapeuta tem, mas que
fisioterapeuta o método tem.”
(in «A Razão Neurótica. Um livro de auto-desajuda»,
Manufactura Editora, 2019)
As raquialgias (dores do ráquis/coluna) são, provavelmente, a razão
principal de visita ao fisioterapeuta e de intervenção multidimensional. Tema
sempre actual, mas nem sempre actualizado, tem muito para nos ensinar
sobre a natureza das terapêuticas, dos paradigmas clínicos, do relativismo em
saúde, e da confusão que, ora, se apossa, de quando em quando, da cabeça do
paciente (o que, bem vendo, agrava a raquialgia).
A simplificação do tema é grosseira, criticável, mas, verosimilmente,
servirá o meu intento. Assim, podemos dizer que, no tracto das raquialgias,
há dois modelos fundamentais de compreensão e tratamento das dores de
coluna. Paradigmas polares, de certo modo, que revelam muito da proprie-
dade do terapeuta e da visão clínica.
O modelo que intitularemos de “funcional” é, talvez, modernamente
dominante. Ele é, a meu ver, representado pela vertente que valoriza a pato-
logia discal, abarcando as hérnias, enquanto mote de uma causa proximal das
dores, facilmente localizável, respeitante a uma origem a “curto prazo”. Este
paradigma é fortemente “biomédico”, “biomecânico”, e assenta numa visão
veramente grupal e generalizável. Identificada a área envolvida, o interesse é
imediato e perspectiva a redução da dor. A fisioterapia poderá, como tal,
consistir em manobras anti-sintomáticas, e, na melhor das hipóteses, o tera-
peuta poderá efectuar “terapia manual”, de modo a restaurar a mobilidade.
O trabalho de força profunda é também recomendado. Existe um esforço
para realizar o que é justificável cientificamente. E, em nome da ciência, pes-
pegam-se as receitas de higiene postural, incluindo a manutenção da coluna

2
Agosto de 2019, publicado na revista «Triplov.com» e, numa versão encurtada, no
jornal «O Diabo».

79
Luís Coelho

em posição neutra e o evitamento de posturas viciosas, para além de se acon-


selhar a prática de actividades como hidroginástica, em que a água age
enquanto meio “facilitador”, ou a natação, para fortalecer as costas, onde,
aparentemente, a musculatura está enfraquecida. O modelo “funcional”, a
bem ver, valoriza o reforço do paciente, musculatura laboral incluída. É uma
espécie de protótipo liberal, na qual o fisioterapeuta age enquanto funcioná-
rio de um sistema, quiçá, keynesiano. A filosofia é empírica e utilitária, valo-
rando o cidadão, aquém do indivíduo hermenêutico.
Neste contexto, se o modelo de cima é científico-liberal e positivista, o
modelo que intitularemos de “postural” é francamente “espiritual”, psicana-
lítico, fenomenológico, preferindo ver as coisas nos termos do “longo prazo”
estrutural e interpretativo. Assim, aquelas artroses, hérnias e/ou dores serão
encaradas como consequências de um desequilíbrio postural, na qual a parte
psicossocial desempenha um papel fundamental. Anos de agressão “liberal”
poderão ter contribuído para reforçar as defesas do paciente, encurtando a
musculatura “postural”, processo que agrava, ainda mais, a retenção social.
Trata-se de uma retracção do “espírito”, aqui representado pela cadeia mus-
cular posterior, conjunto de músculos e fáscias com grande tendência para o
encurtamento. Os músculos parecem fracos, porque são do tipo “postural” e
têm, assim sendo, pouca capacidade de hipertrofia (os músculos “tónicos”
possuem alta proporção de fibras musculares concentradas no esforço leve e
constante), e a sua tensão é, na verdade, causa da fraqueza “liberal”, anterior,
do sujeito. Obviamente, fortificar indiscriminadamente o paciente, ou mais
propriamente as suas “costas”, só gera mais defesa, contratura e fragilidade.
A defesa, claro, pode ser útil, possibilitando a “adaptação”, o “pathos” social,
mas, quando ela chega ao estado de esgotamento, o “pathos” torna-se uma
genuína “doença”, sobressaindo a dor e a desadaptação social.
Nem sempre interessa, portanto, ir à “causa” profunda das coisas, até
porque a interpretação é inacabável, pode ser mais importante compensar,
para consentir o funcionamento. Para além do mais, o Sistema poderá não
permitir ou obviar a resolução de uma problemática “íntima”, talvez seja
melhor manter o indivíduo enquanto parte de um rebanho, a coisa acaba por
funcionar, pelo menos para uma boa maioria, os estudos até o confirmam.
Estudos sobre a importância da postura, nos trâmites do “longitudinal”,
são difíceis de realizar, porque implicam uma idiossincrasia, e um tempo
longo de acompanhamento do sujeito. E é de uma idiossincrasia que se trata,
o paciente possui características suas que levam tempo a ser compreendidas.

80
O FisióSOFO

Uma intervenção fisioterapêutica massificada contribui, tão-só, para escamo-


tear o fundamento do “ser”. Dei, durante anos, aulas de grupo, e sentia,
todos os dias, a falta do contacto, incluindo o “manual”. A terapia “manual”,
o movimento, o Pilates, tudo isto é importante, mas deve ser adequado, o
mais possível, à singularidade do paciente. E, de preferência, após ter havido
alongamento postural. Flexibilizar, primeiro, para, depois, movimentar e
reforçar. É uma ordem mais coerente, e ela adapta-se aos dois paradigmas.
Um tratamento é, geralmente, multivariado, no mesmo exercício, poderei
estar a trabalhar tudo em simultâneo, o que, de mais a mais, nos lembra que
é difícil isolar variáveis, e, atendendo a que “o todo é maior do que a soma
das partes”, existe, em muitas manobras, um efeito multivariado que não
pode ser reduzido analiticamente. E tudo isto se baseia, apesar de tudo, em
ciência, física, biologia, matéria bruta e certeira que justifica o intrínseco
dogma “postural”, incluindo a noção de que a cadeia muscular posterior se
comporta como um “todo” e é mais “tónica” do que a região anterior, essen-
cialmente fásica, do corpo. Esta matéria também é “grupalizável”, mas conti-
nua a ser alvo do preconceito dos “cépticos”, que, comummente, traem a
própria lógica.
Pelos vistos, a síntese é possível, mas nem sempre é requerida ou desejá-
vel. Os paradigmas são, apesar de tudo, parcialmente incompatíveis (nem
que seja para mera caricatura sociológica, kuhniana). Não é muito recomen-
dável trabalhar com o paciente “postural” em extensão, andar a reforçar os
desequilíbrios. Mas, tal-qualmente, não é desejável alongar excessivamente
“em flexão” uma coluna que tenha por exemplo hérnia discal, com ou sem
neuropatia periférica. Uma postura de reeducação postural agrava, muitas
vezes, uma hérnia, uma ciática. Há pacientes que não podem conhecer gran-
des “flexões” do seu ráquis. E destes há muitos. Por isso a ciência os identifica
tão facilmente. Mas talvez mais vezes do que as vezes reais. E é especialmente
a estes que se aconselham, ou devem aconselhar, a coluna neutra e a higiene
postural. Mas, se o paciente não for francamente flexível, as duas anteriores
poderão ser fortemente desaconselháveis. Manter as “costas direitas” poderá
ser um suplício para quem não tem uma cadeia muscular posterior muito
flexível. E como o trabalho daqueles músculos “posturais” é subconsciente,
andar a advogar o “estar direito” é um convite à contratura, bem como ao
medo, à ameaça. E esta contrai mais os músculos, que, por sua vez, compri-
mem a hérnia. Mas, às tantas, se quisermos alongar aqueles músculos, tere-
mos de ter cuidado para não complicar o caso da hérnia e das dores.

81
Luís Coelho

Como pode ser visto, as coisas não são tão simples como parecem mui-
tas vezes. Mas, recuperando a ideia de síntese, uma intervenção global,
abrangendo os dois paradigmas, com mais ou menos enfoque num deles (há
que lembrar que certos pacientes parecem incluir-se escrupulosamente num
modelo preciso, mas esta percepção, por parte do terapeuta, é sempre dubi-
tável, o profissional constrói, e placebetiza, o paciente, e vice-versa), é possí-
vel e desejável. Por outro lado, a noção de “idiossincrasia” é fundacional para
entender profundamente o erro brutal de tantas asneiras que se fazem nos
ginásios, com exercícios concebidos para as “massas liberais”, com flexibili-
dade perfeita e sem problemas de maior. O trabalho de ginásio, bem como a
totalidade dos desportos, não se adapta à individualidade (e a adaptação ade-
quada dependeria de um conhecimento nímio da patonormatividade, coisa
quase sempre inexistente entre os profissionais). Posturas há muitas, pro-
blemas são a regra, o que serve a um não serve a outro. A actividade física
não é, bastas vezes, recomendável à saúde articular, sobretudo se vicia a pos-
tura, se compromete a posição. O trabalho de força é, por natureza, repressi-
vo da idiossincrasia. O que não invalida a sua importância em termos neuro-
lógicos, segundo o ponto de vista da programação neuromuscular, aqui, sim,
empreendemos, de novo, na síntese, numa intercessão simultaneamente
postural e funcional. Mas cuidai para que o benefício não seja obtido à custa
de novas compensações. A não ser, claro, que seja essa a intenção, porque
isto, bem vendo, é tudo relativo. Tudo depende, aliás, do objecto que está em
jogo, já lá vai o tempo em que eu mesmo era paradigmaticamente dogmáti-
co. No meu «O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo (...)» (Contra-
-Margem, 2008), defendi a gravidade de enaltecer o modelo “postural” a todo
o custo, mas, com a própria experiência, tornei-me menos radical, permitin-
do mais compensações. Com obviedade, tomamos várias vezes a liberdade de
reforçar com menos restrições o paciente sem alterações posturais evidentes,
e, do mesmo modo, nada nos impede de mobilizar as vértebras de um indi-
víduo com retracção posterior. É a inerente sensibilidade empírica do tera-
peuta que admite, de certa maneira, “dar uma no cravo e outra na ferradu-
ra”, o alongamento pode ser moderado e acompanhado de tracção manual e
movimento, depois, o paciente poderá ter de se virar de barriga para baixo,
para assestarmos a terapia manual (a qual ganha com a preparação postural e
a tracção prévia da coluna), reduzindo a possibilidade de a coisa se complicar
em termos “discais”. A intervenção deve harmonizar realidade, paradigma e
placebo, verdade “moderna”, espírito “positivo”, e realidade “pós-moderna”,

82
O FisióSOFO

a qual faz confluir pré e pós-cientificidade, e tudo é ciência, ainda assim,


cons-ciência, processo que visa racionalizar e transcender. De igual forma,
nada deixa de se emprenhar no plano de uma crença que é compartida pelo
“duo” terapêutico. O mecanismo interventivo não pode, por ora, ser dinâmi-
ca e perfeitamente algorotmizado, o terapeuta é necessariamente falível, e o
processo nunca cessa inteiramente. Variáveis são cruzadas constantemente e
muitas coisas resultam, bastas vezes por aquilo que vislumbra ser um “aca-
so”. Todavia, é identicamente certo que qualquer pormenor poderá fazer
toldar a resultante, a benignidade, deste decurso; certo é que todas as regras
simples são quiméricas e superficiais, mas mesmo isto pode ser o forçoso à
segurança placebetária do sujeito ou do tecido social.
Concluindo, o modelo “postural”, espiritual, é a porta de entrada racional
para o “funcional”, mas, como vimos, também pode perigá-lo. É a analogia do
dogma a ameaçar o processo científico “stricto sensu”. Mas não deixemos que
a ciência seja também ela dogmática. Manter uma posição bastante tempo não
é o cabo dos trabalhos. Dobrar as costas ou descansá-las no assento poderá ser
vantajoso para quem tem hiperlordose lombar (mas, existindo hérnia, a vanta-
gem é menor). As regras são para ser decepcionadas, se isso se justificar. O
resto fica a depender do “bom-senso”.

{Abordagem às deformidades posturais


na infância e adolescência: um novo paradigma3}
A maioria dos profissionais de saúde envolvidos em tarefas de avaliação
da saúde juvenil sabe que as raquialgias compreendem uma manifestação
clínica cada vez mais comum em crianças e adolescentes. A prevalência das
dores da coluna vertebral é extremamente elevada em Portugal, sendo que o
recente estudo de Coelho, Almeida e Oliveira, publicado em 2005 pela Revis-
ta Portuguesa de Saúde Pública, chegou ao valor de 39,4% de prevalência
anual de lombalgia em adolescentes com idades compreendidas entre os 11 e
1
os 15 anos . Segundo este estudo, as lombalgias tendem a dispor de um
carácter fundamentalmente inespecífico e pouco expressivo em termos de
agravamento sintomático.
O estatuto de dor inespecífica, termo dominante nos estudos nacionais
2-5
e internacionais sobre dores lombares em crianças e adolescentes , tende a
3
Publicado em «Acta Pediátrica Portuguesa», 2006:37(6):CIII-IV.

83
Luís Coelho

ser denegado pelo profissional médico, enquanto que o profissional não


médico tende a aceitar acriticamente tal termo ou conceito. Existe obviamen-
te uma certa lógica nesta diferenciação conceptual, visto que o médico inte-
ressa-se primorosamente pelo estabelecimento de um diagnóstico, enquanto
que o profissional não médico se interessa fundamentalmente pelo quadro
funcional das manifestações clínicas do doente.
Não tem de haver, contudo, inerente a essa alternância conceptual, um
necessário conflito de interesses de base mais ou menos teorética. O mesmo
quadro clínico pode ser considerado específico por um profissional e inespe-
cífico por outro profissional. Por exemplo, uma dor lombar pode ter múlti-
plas origens, e, comummente, o fisioterapeuta consciente tende a ver neste
tipo de manifestação o resultado de uma complexa súmula de factores bio-
morfológicos e psicossociais. Por outro lado, a presença de uma alteração
postural significativa, como uma hiperlordose lombar, tende a ser vista como
a causa específica da dor do doente pelo médico. Talvez seja relevante argu-
mentar que uma alteração postural é também um fenómeno inespecífico per
se, visto que pode resultar de um emaranhado de factores ósteo-articulares,
musculares, neuromotores e psiconeurológicos.
Mas, se nos critérios de avaliação das raquialgias, a separação entre
médicos e terapeutas tende a ser bastante expressiva, no modelo de interven-
ção terapêutica a citada diferenciação não é assim tão relevante. Isto acontece
porque, infelizmente, tanto na classe médica como na classe dos terapeutas
labora um conjunto elevadíssimo de mitos relativos à forma como devem ser
manipulados os estados de dor e as idiossincrasias posturais mais singulares.
Se estabelecermos a “postura” como a verdadeira “personalidade” do
corpo, então, devemos ter em conta a necessidade de realização de um traba-
lho de reeducação postural com ordem a reequilibrar o estado de um corpus
desorganizado; pois é certo que as alterações posturais são reequilibráveis,
mesmo que as deformidades vigentes sejam do tipo estrutural.
É pena que tantos médicos e terapeutas desconheçam a teoria das
6
“cadeias musculares” , segundo a qual o corpo aparece desenhado com um
conjunto elevado de músculos posturais com uma tendência hipertónica
insofismável. O corpo é constituído, portanto, por conjuntos de músculos
com tendência para o encurtamento, os quais devem ser globalmente alon-
gados, mas nunca fortalecidos.
Assim sendo, pergunto-me quando chegará o dia em que os diversos
profissionais de saúde vão perceber que a maioria das hipercifoses dorsais

84
O FisióSOFO

são, nada mais nada menos, que a consequência das lordoses da cadeia poste-
rior, e, eventualmente, da retracção do diafragma, músculo que tem inser-
7
ções sobretudo a nível lombar .
Neste sentido, é importante fazer os profissionais entenderem que o
treino de força da musculatura extensora jamais poderá ajudar no trabalho
de reeducação postural. As lordoses e as escolioses são, por excelência, o
resultado dessas retracções posteriores. Como tal, o tradicional fortalecimen-
to da musculatura lombar é um erro de tratamento insuportavelmente pres-
crito pelos mais variados médicos e praticado pelos mais variados terapeutas,
quando, no fundo, só os métodos baseados no alongamento da musculatura
6, 8, 9 10, 11
tónica – método Mézières , Reeducação Postural Global e Stretching
12, 13
Global Activo – e no fortalecimento da musculatura abdominal profunda
(o método Pilates é o mais paradigmático) poderão ajudar na reeducação da
postura e alívio sintomático a longo prazo. Acrescido a isto, não podemos
deixar de valorizar o papel da posturologia, da sofrologia e da psicomotrici-
dade.
O trabalho de fortalecimento da musculatura extensora ao nível dorsal
em doentes com hipercifoses a este nível só poderá resultar em duas coisas:
em nada de relevante, pois é impossível lutar contra uma retracção dominan-
12, 13
te com outra retracção oponente , ou num novo desequilíbrio.
O que é de certeza errado realizar, e que é efectivamente efectuado
compulsivamente pela classe médica, é encaminhar os jovens para desportos
como a natação. Este desporto pode ajudar a aliviar os sintomas, mas jamais
poderá constituir uma fonte fiável de reeducação da postura, pois, para além
de estar ausente a gravidade e de ser impossível a realização dos alongamen-
tos, a natação é destra na criação de diafragmas bloqueados em inspiração (o
13
ponto de partida para as grandes deformidades posturais) .
Infelizmente, muitas outras actividades, como o Yoga, são também con-
tra-indicadas para o trabalho postural, pelo excesso de posturas em exten-
14
são . Por outro lado, desportos como a musculação ou outros de activação
muscular assimétrica podem ser considerados como a porta de entrada para
a criação de uma série de desequilíbrios posturais; leia-se a obra “O homem é
15
um animal assimétrico” do ortopedista Leandro Massada .
Porém, começa a surgir uma luz ao fundo do túnel, pois já são vários os
sítios onde se realiza trabalho de alongamento e Pilates adaptado às crianças
e adolescentes com alterações posturais. Só falta mesmo consciencializar os
profissionais de primeiro contacto para este facto.

85
Luís Coelho

Referências bibliográficas
1. Coelho L, Almeida V, Oliveira R. Lombalgia nos adolescentes: identificação
de factores de risco psicossociais. Estudo epidemiológico na região da grande
Lisboa. Rev Port Saúde Pública 2005;23:81-90.
2. Fairbank JC, Pynsent PB, Van Poortvliet JA, Phillips H. Influence of anth-
ropometric factors and joint laxity in the incidence of adolescent low back
pain. Spine 1984;9;461-4.
3. Balagué F, Nordin M, Skovron ML, Dutoit G, Yee A, Waldburger M. Non-
specific low back pain among schoolchildren: a field survey with analysis of
some associated factors. J Spinal Disord 1994;5:374-9.
4. Balagué F, Troussier B, Salminen J. Non-specific low back pain in children
and adolescents: risk factors. Eur Spine J 1999;8:429-38.
5. Goldberg M, Scott S, Mayo N. A review of the association between cigaret-
te smoking and the development of non-specific back pain and related out-
comes. Spine 2000;25:995-1014.
6. Mézières F. Révolution en gymnastique orthopédique - Causes et traitement
des déviations vertébrales et algies d'origine musculaire. 1965, Paris.
7. Souchard Ph-E. Le diaphragme. 1980, Essai, Paris.
8. Bertherat T. Le corps a ses raisons. 1976, Éditions du Seuil, Paris.
9. Denys-Struyf G. Le manual du mézièriste. 1995, Éditions Frison-Roche,
Paris.
10. Souchard, Ph-E. Le champs clos - Bases de la Rééducation Posturale Globa-
le. 1998, Essai, Paris.
11. Souchard, Ph-E. Les scolioses - Traitement kinésithérapique et orthopédi-
que. 2001, Masson, Paris.
12. Souchard, Ph-E. Le stretching global actif. 1996, Éditions Désiris, Paris.
13. Grau N. Le stretching global actif au service du geste sportif. 2002, Le Pou-
soë, Paris.
14. Myers TW. Anatomy trains - Myofascial meridians for manual and move-
ment therapists. 2001, Elsevier Health Sciences, England.
15. Massada L. O homem é um animal assimétrico. Especulação sobre um estudo
antropométrico efectuado em jovens atletas. 2006, Editorial Caminho, Lisboa.

86
O FisióSOFO

{Reeducação Postural: Percursos


de um paradigma de intervenção4}
Não há, com muita pena minha, um costume bem fundado de se discu-
tirem comparativamente os diferentes métodos de fisioterapia, com base
numa pura reflexão do tipo metodológico. Os métodos de intervenção fisio-
terapêutica são tantos e são tão poucos aqueles que (ainda) os discutem,
comparam, estudam e professam...
Nos últimos anos, tem sido meu apanágio de estudo a investigação acerca
dos métodos de reeducação postural. Não esquecendo que o termo “postura”
possui inúmeros sentidos (Tribastone), e que o conceito de “reeducação postu-
ral” pode adquirir diferentes entoações por parte de diferentes autores, não
posso deixar de vociferar a favor daquele que considero ser o método mais
global da ciência e arte fisioterapêutica: a “reeducação postural”.
Não entendo por “reeducação postural” o tipo de ginástica sueca que Per
Henrik Ling (1766-1839) fundou e que viria a toldar os espíritos gímnicos
durante séculos. Também não entendo por “reeducação postural” certos méto-
dos de tratamento da escoliose como o método Schroth, o método de Rudolf
Klapp, o método do Instituto Ortopédico Pini, o método em cifose, o método
do psoas, o método Gimnasium, o estruturalismo psicomotor, a reeducação
proprioceptiva neuromuscular, a ginástica proprioceptiva e as técnicas de dese-
quilíbrio, apesar de muitos destes modelos de intervenção se aproximarem bas-
tante do modelo que preconizo. Também não entendo por “reeducação postu-
ral” esse tão badalado método Pilates, que, admitindo a sua excelência, não mexe
com a capacidade de flexibilidade global cara à “modificação estrutural” que só
os métodos que defendo conseguem.
Para mim, os verdadeiros métodos de “reeducação postural” são aque-
les que defendem o que defende Souchard com a sua Reeducação Postural
Global (RPG), toda uma nova fisiologia do “sentir” e do “tratar”, baseada
nos princípios das “cadeias musculares” e fundamentada pelos modelos mais
sincréticos de “intervenção postural”.
Nos últimos anos, os cursos de fisioterapia andam a sofrer cortes con-
teudísticos irracionais, sendo que muitos tendem a “cortar” precisamente na
parte dos cursos dedicada aos princípios e práticas da “reeducação postural”.
Mas ainda assim nada justifica a plena nesciência arrolada à volta deste con-
junto de métodos. Pois, para quem não sabe, o RPG não é um método puro,

4
Publicado em «Fisio», Janeiro de 2008.

87
Luís Coelho

é antes uma elucubração relativamente ao grande método original (francófo-


no) de “reeducação postural”: o método Mézières.
A Madame Mézières e o seu método constituem uma verdadeira “revo-
lução na ginástica ortopédica”. Esse ano de 1947, ano das observações iniciá-
ticas de Mézières da lógica das compensações musculares, viria a ser conhe-
cido como o ano de criação de conceitos como os de “excessos musculares”,
“cadeia muscular posterior”, “cadeia diafragmática” e do princípio “Il n'est
que des lordoses”. Saiba-se que a grande maioria dos princípios defendidos
por Souchard já eram princípios de Mézières (ainda assim, não deixa de ser
meritório todo o trabalho feito por Souchard, tanto no respeitante à divulga-
ção de conceitos como no respeitante à criação de uma nova linha de postu-
ras). E saiba-se também que o método Mézières deu origem a todo um outro
conjunto de métodos, alguns completamente desconhecidos dos fisiotera-
peutas: a grupal “antiginástica” de Bertherat, as globais “morfoanálise” de
Peyrot e “Cadeias musculares e articulares” de Godelieve DenysStruyf, os
pragmáticos “Reeducação Postural Global” e “Stretching Global Activo” de
Souchard, o dinâmico método das “Cadeias musculares” de Busquet e o fan-
tástico e integral método da “Reconstrução Postural” de Nisand. É toda uma
miríade de métodos, todos eles discípulos de Mézières.
Entre as exigências de uma intervenção fisioterapêutica cada vez mais
rendida ao “sistema” e a sapiência de uma fisioterapia “global” ideal, convido
qualquer um a descobrir os caminhos que medeiam estes métodos e a “filo-
sofia” de intervenção global (favorável ao alongamento e relaxamento, e des-
favorável ao fortalecimento e excessos do fitness), que deles nascem de forma
inalienável.

{A Reeducação Postural segundo Mézières


e suas implicações para a Fisioterapia:
a “revolução na ginástica ortopédica”5}
Introdução
A história da Globalidade em saúde remete para a integralidade da histó-
ria do tratamento das disfunções do corpo humano. Mas, num domínio que
podemos designar de músculo-esquelético, o início do trabalho da Globalidade

5
Publicado em «TDT Online», edição 1, 2010.

88
O FisióSOFO

remete essencialmente para os finais do século XIX, nomeadamente para as


mãos dos osteopatas anglo-saxónicos. Referimo-nos, essencialmente, a um
tipo de globalidade dita miofascial, respeitante à visão holística das estruturas
músculo-esqueléticas que, em termos teoréticos, dão forma ao corpo. Mais
tarde, esta forma irá ser vista enquanto postura ou estrutura, sendo que duas
grandes escolas ditas de “reeducação postural” vão se desenvolver no contexto
da Europa ocidental: a escola anglo-saxónica, referente ao método da “Integra-
ção estrutural” ou Rolfing (Rolf, 1977) e a “escola francesa” iniciada pela des-
coberta revolucionária de Françoise Mézières, no ano de 1947.
A revolução mézièrista, prosseguida pela edificação de uma série de
métodos ditos neo-mézièristas, irá dar origem ao conceito de “cadeia muscu-
lar”, e a uma teoria que pode ser apelidada de “teoria das Cadeias muscula-
res”. Esta representa uma mudança significativa na forma fisioterapêutica de
tratar os doentes, constituindo uma nova forma de perspectivar o conjunto
das disfunções neuromusculares e uma grande parte das doenças ditas “reu-
máticas”.
Iniciaremos o nosso artigo pela explanação do “princípio de observação”
de Françoise Mézières de 1947, descrito no seu “Révolution en Gymnastique
Orthopédique” (publicado em 1949), o qual viria a dar origem a um novo
método de “intervenção postural”, diferente das ginásticas estáticas clássicas
(aliás, criticadas por Mézières – 1947 – no seu “La Gymnastique Statique”).
Continuaremos, referindo o desenvolvimento histórico do método e sua “des-
construção” nos diferentes métodos neo-mézièristas, e acabaremos o artigo
discutindo o conjunto das implicações que a “reeducação postural” (entendi-
da, sobretudo, como o “método de linha Mézières”) ou a “teoria das Cadeias
musculares” possui para o campo de intervenção em Fisioterapia, independen-
temente da área de adequação.
Método Mézières e Princípio de Observação
Não querendo propriamente celebrar o princípio científico clássico de
Francis Bacon, baseado no empirismo observacional, e continuado nos tem-
pos do positivismo e do neopositivismo, o método Mézières é, de facto, um
método baseado num “princípio de observação”, que reitera um conjunto de
“compensações “ existentes nos meandros de um corpo que é um “todo mio-
fascial”. Na realidade, apesar de existir já a ciência dedutiva de Karl Popper,
Françoise Mézières vai conceber uma série de postulados – ditos científicos –
a partir da sua “observação preliminar” de 1947.

89
Luís Coelho

É bem conhecida a observação iniciática de Mézières de um paciente


com uma cifose muito abrangente, que envolvia a totalidade da coluna.
Todas as tentativas de reduzir o padrão postural existente levavam a que o
corpo do paciente “compensasse” através de outras “deformações”.
Tal princípio de observação iria ser generalizado a todos os casos, o que
foi claramente influenciado pelo facto de este “princípio” ser encontrado em
todas as “condições experimentais” semelhantes, sendo que Mézières iria
perceber, sobretudo, que (a) a musculatura posterior comporta-se como um
só músculo e (b) esta musculatura é sempre forte de mais, curta de mais,
potente de mais.
A partir do seu “princípio observacional”, Mézières iria chegar a um
conjunto de conclusões, encontráveis na obra “L’homéopathie française”
(1972): (1) «Il n’est que des lordoses.»: a cifose (e a escoliose) não é possível
sem uma acentuação das lordoses e é vista como a sua consequência. (2) «La
lordose est mobile et coulisse sur le corps tel un anneau sur une tringle à
rideau.» (3) «Les membres sont solidaires du tronc et le creux poplité consti-
tue, en dehors du rachis, une troisième concavité postérieure liée aux lordo-
ses rachidiennes.» (4) «Tout est compensation lordotique.» (5) «La lordose
s’accompagne toujours de la rotation interne des membres.» (6) «La mor-
phologie thoracique est conditionnée par certains mouvements de la tête et
des membres supérieurs.» (7) «La lordose coexiste toujours avec le blocage
du diaphragme en inspiration.».
A partir destas conclusões, um conjunto de leis iria ser exposto mais
tarde na obra “Originalité de la méthode Mézières” (1984): Primeira lei: «Les
nombreux muscles postérieurs se comportent comme un seul et même mus-
cle (Une chaîne musculaire se définira comme étant un ensemble de muscles
polyarticulaires et de même direction, qui se succèdent en s’enjambant
comme les tuiles d’u toit).»; Segunda lei: «Les muscles des chaînes sont trop
toniques et trop courts (il n’y a donc rien qu’il faille renforcer).»; Terceira lei:
«Toute action localisée, aussi bien élongation que raccourcissement, provo-
que instantanément le raccourcissement de l’ensemble du système.»; Quarta
lei: «Toute opposition à ce raccourcissement provoque instantanément des
latérofléxions et des rotations du rachis et des membres (lógica das compen-
sações).»; Quinta lei: «La rotation des membres due à l’hypertonie des chaî-
nes s’effectue toujours en dedans.»; Sexta lei: «Toute élongation, détorsion,
douleur, tout effort implique instantanément le blocage respiratoire en inspi-
ration.».

90
O FisióSOFO

Em termos gerais, podemos dizer que Françoise Mézières iria conceber a


totalidade das deformidades adquiridas (mais funcionais/reversíveis – conhe-
cidas por paramorfismos – ou mais estruturadas/irreversíveis – conhecidas por
dismorfias – Tribastone, 2001) enquanto resultado de “excessos musculares”,
inquinando a ideia clássica – ainda dominante – de que as deformidades pos-
turais têm origem na fraqueza da musculatura postural.
Não obstante a existência de um conjunto de postulados, ditos axiomá-
ticos (anteriormente citados), a teoria de Françoise Mézières viria a aproxi-
mar-se do carácter de “lei”, a partir do momento em que as suas ideias foram
confrontadas com a divisão – tacitamente científica (até porque confirmada
pelos estudos provenientes da electromiografia) – da musculatura humana
em músculos tónicos/posturais/estáticos e em músculos fásicos/dinâmicos
(Burke, 1973; Gollnick e Matoba, 1984; Gurfinkel et al., 2006; McLean, 2005;
Minamoto, 2005). A musculatura referida por Françoise Mézières como a
fonte de uma “cadeia muscular posterior” dominante seria, portanto a mus-
culatura postural, estruturalmente profunda e multi-articular, funcionalmente
estática e de controlo neurológico central inconsciente, concebida sobretudo
para o trabalho de “sustentação antigravítica”.
Para além da “cadeia posterior”, Mézières viria a conceber um outro
conjunto de cadeias musculares, sinérgicas à posterior.
Os diversos métodos de linha mézièrista viriam a ter, cada um, a sua
própria forma de perspectivar a dinâmica estrutural e funcional das cadeias
musculares.
Quanto à intervenção, os princípios de tratamento de Mézières (deslor-
dose, desrotação e desbloqueio diafragmático com expiração) vão também
ser mantidos no essencial nos diversos métodos neo-mézièristas.
Métodos Neo-mézièristas
A partir do momento em que Françoise Mézières inscreveu o seu méto-
do no Institut National de Propriété Industrielle, os diversos discípulos de
Mézières foram forçados a seguir o seu próprio caminho. Assim como o
método Mézières se manteve mais parecido com o original pela mão de cer-
tas associações como a AMIK (Association Mézièriste Internationale de Kinési-
thérapie), outros métodos, baseados no original viriam a ter origem:
a) ‘Antiginástica’ de Bertherat (1976) – mais do que um método, é um
conceito, relacionado com as implicações (revolucionárias) que o método
Mézières possui para a prática desportiva. Thérèse Bertherat é a grande res-

91
Luís Coelho

ponsável pela fama mundial do método Mézières. Mais tarde, certos métodos
como o “Corpo e Consciência” de Courchinoux viriam a reproduzir um
pouco a filosofia da antiginástica.
b) ‘Cadeias Musculares e Articulares’ (ou ‘método GDS’) de Godelieve
DenysStruyf (1995) – Denys-Struyf, fisioterapeuta e retratista, concebeu um
conjunto de posturas designativas de estados “psico-físicos” e personalísticos
específicos e idiossincráticos.
c) ‘Morfoanálise’ de Peyrot – à semelhança do anterior, é um método
também de dimensão claramente “psicofísica”, demonstrando a importância
que o método Mézières tem para a “psicossomática”.
d) ‘Reeducação Postural Global’ de Souchard (1981) – talvez o método
mais parecido com o original, o RPG, acusado por muitos autores por cons-
tituir um plágio de Mézières, diferencia-se por preferir posturas mais activas
(em número de oito), utilizadas segundo o tipo de retracção global dominan-
te (posterior ou anterior). Ph-E Souchard contribui, em muito, para tornar
mais científicos os princípios do método Mézières, mas o facto de negligen-
ciar quase completamente o método de onde foi beber a “inspiração” é
demonstrativo de uma certa falta de honestidade intelectual.
e) ‘Cadeias musculares’ de Busquet (1996) – grande conhecedor da ana-
tomia humana, Leopold Busquet concebe um conjunto de várias cadeias
dinâmicas (cadeias de flexão e extensão, cadeias cruzadas), para além de uma
cadeia estática posterior. É o mais dinâmico dos métodos neo-mézièristas.
f) ‘Reconstrução Postural’ de Michael Nisand (2004, 2006) – é o mais
científico dos métodos, para além de ser o mais fiel ao original. Criado nos
anos 90, logo após a morte de Françoise Mézières, é o mais “neurológico”
dos métodos, pois, enquanto, por exemplo, o RPG vai seguir um trajecto
mais “miofascial”, a ‘Reconstrução Postural’ vai valorizar todas as modalida-
des de trabalho postural que facilitem a “inibição tónica” da musculatura
postural. Em termos metodológicos, apesar de não existirem referências de
similitude histórica, é possível encontrar semelhanças entre a ‘Reconstrução
Postural’ e métodos de intervenção neurológica como o conceito de Bobath.
Todos os métodos neo-mézièristas dão grande importância às posturas
de inibição dos excessos musculares, incluindo aqueles – relacionados com
os anteriores – que propõem a “inclusão do analítico dentro da globalidade”
como o que advoga o Bienfait (1995) da “Reeducação estática funcional”. Em
geral, o grande contributo dos métodos da linha de Mézières constitui a visão
indissolúvel de que a patologia músculo-esquelética adquirida resulta, sobre-
tudo, da existência de músculos de acção desinibida. Tal concepção acarreta

92
O FisióSOFO

a “mudança de paradigma”, numa terminologia claramente segundo o pro-


tótipo de Thomas Kuhn, visto que a “fisioterapia clássica” utiliza os métodos
de “reforço muscular” de forma bastante corrente.
Implicações da Revolução Mézièrista para a Fisioterapia
Apesar de certos autores, como Bienfait (1995), terem uma visão mais
limitativa do contributo das posturas de alongamento global para o tratamento
de dismorfias ditas estruturadas (que são, no fundo, para o autor, aquelas que
acarretam modificações ao nível da fáscia), não podemos deixar de louvar o
espírito mézièrista, segundo o qual as deformidades e a maioria das perturba-
ções de índole reumatológica não constituem uma fatalidade (Nisand, 2006).
A visão dessas mesmas perturbações, segundo o espírito mézièrista, é bas-
tante diferente daquela cedida pelas perspectivas mais analíticas da fisioterapia.
Enquanto método da Globalidade, a Reeducação Postural segundo Mézières
preconiza a intervenção com vista na causa das perturbações, e não nos efeitos
ou sintomas das problemáticas nosológicas. Mas, para além de perorar a
importância de uma intervenção necessariamente holística, lenta e progressiva,
muito diferente daquilo que a maioria dos contextos de intervenção fisiotera-
pêutica permitem em termos de tratamento, a teoria das Cadeias musculares
possui outro género de implicações, tanto de carácter teorético/conceptual
como de carácter pragmático. A fisioterapia, um pouco à imagem da Educação
Física e do fitness, está demasiadamente centrada no exercício físico com vista
ao fortalecimento muscular. Ora, o que os métodos neo-mézièristas vêm dizer
é que tal “reforço muscular” pode ser visto como pejorativo na maioria das
condições reumatológicas. Se os fisioterapeutas que trabalham em Condições
neurológicas já entenderam há muito que o reforço muscular pode acarretar
compensações e deformações num corpo comummente marcado por estados
de hipertonia, é preciso que também os terapeutas de condições músculo-
-esqueléticas entendam que a hipertonia está também presente na maioria dos
doentes com perturbações inflamatórias e também degenerativas.
Por outro lado, a utilização de exercícios de mobilidade articular em
articulações marcadas por uma postura “viciada” poderá igualmente consti-
tuir um recurso terapêutico pouco inteligente.
Os mézièristas têm a dizer à maioria dos fisioterapeutas que deve dar-se
importância ao trabalho de alongamento global das estruturas miofasciais, feito
antes de qualquer outra modalidade, a frio, prolongada e progressivamente.
O trabalho dos fisioterapeutas, principalmente em condições reumato-
lógicas e neurológicas, poderia e deveria incluir o trabalho de reeducação

93
Luís Coelho

postural, segundo o qual, antes de qualquer tentativa de reforço ou mesmo


de mobilização, seria utilizado o alongamento, o qual permite a obtenção de
um préalinhamento articular. Por exemplo, a mobilização de uma articula-
ção com artrose será muito mais penosa se for realizada sem realinhamento
articular prévio, pois a mobilidade estará a ser induzida numa articulação de
“postura” viciosa. E o mesmo pode ser aplicado a todo o trabalho de mobili-
dade realizado no caso específico das perturbações da coluna vertebral.
O que se sugere é que, mesmo tendo em conta o pouco tempo disponí-
vel de tantos terapeutas, se realize um trabalho por “blocos”, de acordo com
a área a tratar envolvida: trata-se o bloco superior das cadeias musculares,
incluindo o alongamento cervical e o trabalho respiratório, no caso de se
estar a tratar o quadrante superior; trata-se o bloco inferior das cadeias mus-
culares, incluindo o alongamento global dos membros inferiores, no caso de
se tratar da intervenção na coluna lombar ou segmentos inferiores.
Logicamente, a intervenção verdadeiramente global, incluindo o trata-
mento individualizado com vista a compreender as causas das perturbações,
mantêm-se enquanto “utopia” a obter, a qual será alcançada de diferentes
maneiras pela vontade não demérita de cada terapeuta.
Referências bibliográficas
— Bertherat, T. (1976). Le corps a ses raisons. Paris: Éditions du Seuil.
— Bienfait, M. (1995). Os desequilíbrios estáticos. Fisiologia, patologia e
tratamento fisioterápico (3ª edição). São Paulo: Summus editorial.
— Burke, J.F. (1973). Electrode placement and muscle action potentials
amplitudes. Physical Therapy, 53(2): 127-131.
— Busquet, L. (1996). Les chaînes musculaires. Kine Plus 57: 19-25.
— Denys-Struyf, G. (1995). Les chaînes musculaires et articulaires: la méthode
G.D.S. Paris: Maloine.
— Gollnick, P.D., & Matoba, H. (1984). The muscle fiber composition of
skeletal muscle as a predictor of athletic success. An overview. American
Journal of Sports Medicine, 12(3): 212-217.
— Gurfinkel, V. et al. (2006). Postural muscle tone in the body axis of
healthy humans. J Neurophysiol, 96(5): 2678-2687.
— McLean, L. (2005). The effect of postural correction on muscle activation
amplitudes recorded from the cervicobrachial region. J Electromyogr Kine-
siol, 15(6): 527-535.
— Mézières, F. (1947). La gymnastique statique. Paris: Vuibert.

94
O FisióSOFO

— Mézières, F. (1949). La révolution en gymnastique orthopédique. Paris:


Vuibert.
— Mézières, F. (1972). L’homéopathie française. Ed. G. DOIN. 4 – 195.
— Mézières, F. (1984). Originalité de la méthode Mézières. Paris: Maloine.
— Minamoto, V. (2005). Classificação e adaptações das fibras musculares:
uma revisão. Fisioterapia e Pesquisa, 12 (3): 50-55.
— Nisand, M. (2004). La Reconstruction Posturale®, déviance ou évolution?
11ème Symposium Roman de Physiothérapie les 5 et 6 novembre 2004 : “Les
Chaînes Déchaînées” Lausanne-Suisse. Mains Libres, la revue Romande de
Physiothérapie.
— Nisand, M. (2006). La méthode Mézières: un concept révolutionnaire.
Paris: Éditions Josette Lyon.
— Rolf, I. (1977/1990). Rolfing. A integração das estruturas humanas. São
Paulo: Martins Fontes.
— Souchard, Ph-E. (1981). Le champs clos. Paris: Maloine.

{Karl Popper: a evolução da


ciência por “tentativa e erro”6}
Não há, no domínio espectral da filosofia da ciência e da teoria do conhe-
cimento, nome maior do que o de Karl Popper (1902-1994). Este homem, com
formação de físico, não é tanto um grande homem da ciência, mas um grande
homem da metodologia científica que é actualmente utilizada.
Penso que, contudo, ainda se ensina nos liceus que a ciência se inicia
com a observação. E que, a partir desta, são colocadas hipóteses, as quais,
depois de testadas pela experimentação, são confirmadas ou infirmadas. É
esta a visão de ciência da escola analítica, a qual Popper inclui no conjunto
dos teóricos essencialistas. E é ainda esta forma de fazer ciência que é ensina-
da em muitas universidades, pois foi assim que supostamente evoluiu a ciên-
cia – estejamos a falar dos cálculos sobre a posição dos planetas de Ptolomeu,
do uso da balança por Lavoisier ou da matematização do campo electromag-
nético de Maxwell.
Mas, na realidade, para Popper, toda a observação supostamente inicia-
dora do processo científico tem por base um certo apriorismo – algo que
6
Publicado em «As Artes Entre As Letras», 07/04/2010.

95
Luís Coelho

dirige o sentido e o objecto da observação, assim como o seu campo de acção


– nomeadamente, um conjunto de propensões (gerador de problemas), que
são, nada mais nada menos, que uma tendência para olhar para algo de uma
forma fenomenologicamente heurística. Assim sendo, não foi a queda da
maçã que levou Newton a pensar na lei da queda dos objectos. Foi antes tudo
aquilo que é constitutivo da mente de Newton que fez com que este homem
reparasse na queda dos objectos e questionasse os princípios subjacentes a
esse processo pela primeiríssima vez (e antes de qualquer outro cientista).
Ora, se toda a ciência se inicia por um sistema de propensões, também
não é verdade que a ciência evolua por um mero processo de acumulação de
confirmações de hipóteses (ao contrário do que era propugnado pelos neo-
-positivistas e do que é defendido por muitos cientistas actuais). Na visão de
Popper, o esforço do cientista deve ir antes para a tentativa de falsificação de
conjecturas. E a teoria ou hipótese existente sairá fortalecida – e nunca cate-
goricamente comprovada (a questão dos cines brancos versus cisnes pre-
tos...) – se sobreviver ao maior número possível de tentativas de refutação. O
critério de “falsificabilidade” é, portanto, o grande mediador de uma evolu-
ção da ciência feita por “tentativa e erro”, à semelhança do próprio processo
natural evolutivo (num sentido necessariamente darwinista).
O processo subjacente foi muitas vezes descrito por Popper pela fórmula
P1 » TT » DC » P2. Utilizando as palavras de Popper: “Suponhamos que
começamos com um problema P1. Passamos, em seguida, à formulação de
uma solução tentativa para o problema – uma solução conjectural ou hipotéti-
ca, uma teoria tentativa, TT. Esta é, por sua vez, submetida à discussão crítica,
DC, à luz das provas, caso estas se encontrem disponíveis. Surgem, como resul-
tante, novos problemas.” É preciso acrescentar que P2 é comummente maior
que P1, ou seja, o conjunto do processo leva a que resultem mais problemas no
fim do que no início do ciclo. Importante é também dizer que, mais do que
factos, o que resulta do modelo popperiano é uma nova teoria, necessariamen-
te mais consistente que a teoria inicialmente proposta. Daí que, para Popper,
apesar de existir supostamente uma Realidade única e inolvidável (“realismo”
que partilha com os neo-positivistas), essa mesma Verdade não é nunca verda-
deiramente alcançada... somente virtualmente alcançável. Daí que nunca se
diga que “todos os cines são brancos”, pois pode sempre acontecer que um dia
apareçam cisnes pretos (como, de facto, aconteceu).
A ciência é, portanto, segundo Popper, dedutiva (e não indutiva) e, subja-
cente ao seu “racionalismo crítico”, está a constante necessidade de colocar em

96
O FisióSOFO

dúvida certas certezas. De facto, como tantas vezes é exemplificado por Popper,
as “certezas” de Newton vieram a ser fortemente contestadas por Einstein.
A existência de uma evolução da ciência por um processo de refutação
constante de hipóteses leva a considerar o critério de “falsificabilidade” como
algo que diferencia o científico do pseudo-científico. Por exemplo, certas “ciên-
cias”, como a psicanálise ou o marxismo, não são verdadeiras ciências segun-
do o critério do racionalismo crítico popperiano. Por outro lado, esse mesmo
critério permitirá a Popper possuir um argumento que enalteça a ideia de que
a ciência evolui racionalmente, a desmando das teorizações historicistas, que
Popper tantas vezes adversou.

{A indústria do corpo e a ideia de consumo7}


O corpo humano ocupa um lugar de destaque nas sociedades modernas.
A tentativa de o dominar e transformar é, actualmente, maior do que alguma
vez foi. Além dos espaços físicos e do conjunto prolixo das mundividências em
que se move o ser humano, o controlo da “forma” do corpo, e das sensações
emanadas pela sua concretude, protagoniza uma das grandes metas do homem
moderno. Na realidade, o homem hodierno pretende transformar o seu corpo
num objecto maquinal, telúrico, capaz de responder às mais incessantes neces-
sidades estéticas e de prazer. Dentro desta dimensão transformista do objecto
corpóreo, este torna-se verdadeiramente um “objecto de consumo”, sendo que
se torna vulnerável às mais opressivas culturas de mercado.
Segundo Jean Baudrillard, a descoberta do corpo, “após uma era mile-
nária de puritanismo, sob o signo da libertação física e sexual, a sua omnipre-
sença na publicidade, na moda e na cultura de massas – o culto higiénico,
dietético e terapêutico com que se rodeia, a obsessão pela juventude, elegân-
cia, virilidade/feminilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais que com
ele se conectam, o mito do prazer que o circunda – tudo hoje testemunha que
o corpo se tornou objecto de salvação, substituindo literalmente a alma nesta
função moral e ideológica”.
O corpo é, portanto, palco de uma série de destemperos próprios da
fenomenologia social, estando os respectivos artefactos do “uso corpóreo”
estritamente associados à indústria, ao mercado e à cultura de massas. Em
particular, a linha do corpo enquanto “forma” tem dominado todos os secto-
7
Publicado no jornal «Expresso», 05/10/2007.

97
Luís Coelho

res da sociedade contemporânea, até um ponto em que, a meu ver, o corpo e


as práticas com ele associadas podem ser incluídas no grupo das “indústrias
culturais” de Adorno.
Falando, então, da “indústria do corpo” enquanto forma, ou seja, da
utilização do corpo como objecto narcísico, podemos referir três grandes
culturas industriais que têm tomado palco na nossa sociedade de uma forma
assaz sub-reptícia: a indústria do bem-estar, as medicinas ditas não conven-
cionais e o condicionamento físico.
Todas estas “indústrias” têm ganho adeptos, assim como utilizadores
mais ou menos destros na criação de um ícone de mistificação de uma realida-
de claramente farsista. A indústria do bem-estar manipula o ser humano
enquanto ser pleno de um défice narcísico inexaurível, criando falsas ilusões
no consumidor, além de utilizar as mais agressivas modalidades de um certo
“marketing visual”. As medicinas ditas não convencionais manipulam concei-
tos, com a capa de um certo endeusamento, sendo que nada acrescentam ver-
dadeiramente às medicinas mais científicas, a não ser a pobreza de conceitos
sérios e falsificáveis (Popper). Quanto ao condicionamento físico, vendido sob
a capa imagética de um “fitness” redentor, deve ser dito, sem constrangimen-
tos, que a grande maioria das actividades físicas actualmente perpetradas nos
ginásios desrespeitam, na realidade, as idiossincrasias posturais do corpo
humano, assim como muitos outros elementos relacionados com a saúde, a
verdadeira saúde do homem...
O corpo, essa matéria tão frágil e tão humana, parece estar a ser desvir-
tuado, simplificado, desmemoriado, alienado, pelo poder de uma indústria
sem limites, pelo poder de uma imagem... imagem falsa de uma realidade
tornada pseudo-realidade. Como obrigar as pessoas a tomarem consciência
da verdadeira realidade? E como havemos de proceder para proteger as pes-
soas da sua própria ignorância?...

{Raquialgias: modelos fisioterapêuticos e preventivos8}


As raquialgias não são, somente, a condição mais usual de atendimento
em Fisioterapia. O seu tracto, avaliativo e interventivo, constitui a imagem de
um “estado de arte” clínico e epistemológico da profissão. Assim, numa pers-

8
Referência: Coelho, L. Raquialgias: Modelos fisioterapêuticos e preventivos. Gazeta
Médica. 2020; 7(3).

98
O FisióSOFO

pectiva mormente fisioterapêutica, são duas as causas principais de raquialgia,


com diferentes implicações: uma causa “posterior”, postural, e uma causa fun-
cional, frequentemente “discal”.
A causa postural tem uma importância essencialmente miofascial e, até,
neuromotora, envolvendo, especialmente, a musculatura posterior, forte-
1-5
mente “tónica”, que, de acordo com o paradigma das Cadeias musculares , é
quase sempre excessivamente resistente, propendendo às alterações postu-
rais. Esta causalidade propugna um modelo “estrutural” e de “longo prazo”,
implicando um trabalho centrado, fundamentalmente, no alongamento dos
tecidos moles, em flexão.
A causa funcional é frequentemente “discal”, exigindo, muitas vezes,
uma intervenção em extensão, que permita precipitar a reabsorção do núcleo
pulposo do disco inter-vertebral.
Os mecanismos referidos não precisam de excluir-se entre si, com o
processo discal a poder ser consequente à retracção posterior, ou a poder
provocá-la (cada modelo dirá ser “causal” face ao processo considerado sub-
sidiário). Nem sempre é possível conceber a correcta ordem nosológica e
anamnésica, no entanto, os dois mecanismos não são necessariamente com-
patíveis nas implicações do tratamento. Isto porque o trabalho postural/em
flexão pode agravar o quadro discal, incluindo a cervico-braquialgia e/ou a
lombo-ciatalgia, enquanto que o trabalho em “extensão” tende a ser deplo-
rado pelo primeiro.
A defesa do modelo “estrutural” é comummente paradigmática, assaz
dogmática, valorizando aspectos racionais, eventualmente “ideais”; ela rejei-
ta, muitas vezes, o modelo “funcional”, mais de acordo com o paradigma
empírico. Cabe, aqui, contrapor, também, a necessidade de uma casuística
longitudinal à dos estudos nomotéticos que, bastas vezes, não são sensíveis ao
conjunto das múltiplas variáveis associadas ao indivíduo. Para o paradigma
“postural”, o modelo empírico limitar-se-á a revelar aspectos “locais”, igno-
rando a causa profunda da problemática, que tende a considerar como “desen-
volvimental”.
É a experiência casuística que tem demonstrado ser possível compatibi-
lizar os dois modelos: a intervenção primariamente “postural” não deve, no
entanto, forçar determinadas posturas, mas, sim, preparar a fase seguinte
(abrangendo o movimento), que não precisa de incluir o reforço da muscu-
latura posterior, a não ser, claro, a abdominal profunda, mediante a aplica-
ção de Pilates ou abdominais hipopressivos. Estas e outras actividades - como

99
Luís Coelho

o treino do equilíbrio e controlo motor - podem e devem ser adequadas à


3, 4
especificidade do paciente, incluindo as terapêuticas manuais . Trata-se,
portanto, de usar, constantemente, o tratamento enquanto via de exploração
nosológica, com coordenação da dupla vertente teorética e científica. O que,
em última análise, desaconselha as intervenções grupais e a prescrição de
desportos, que se limitam a reforçar de modo indiscriminado o corpo, poden-
do prejudicar o equilíbrio muscular. De igual modo, intervenções massifica-
das de controlo meramente anti-sintomático limitam-se, tão-só, a perpetuar
a condição prévia. Por outro lado, também se desaconselha a higiene postu-
ral, capaz de criar ansiedade. Ela tem-se submetido aos modelos funcionais,
que se adaptam, sobretudo, a grupos. A intervenção “individual” que permi-
te a equilibração, espontânea e não forçada, dos modelos segundo o sentido
3, 4
“alongamento – mobilidade – fortalecimento” parece ser mais efectiva na
própria prevenção do que a indução de “normas” posturais que apenas se
limitam a forçar conscientemente músculos de controlo fortemente incons-
6
ciente . Esta é outra razão pela qual o clássico fortalecimento da musculatura
posterior deve ser comutado pela reequilibração entre a zona “posterior”
7, 8
hegemónica (e, portanto, fraca, aquando da tensão excessiva ) e a “anterior”
geralmente mais fraca. Só depois de ser esgotado o processo “postural”, deve
o indivíduo ser encarado empiricamente com o objectivo de debelar, mais
especificamente, a sintomatologia.
Referências bibliográficas
1. Mézières F. La gymnastique statique. Paris: Vuibert, 1947.
2. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert,
1949.
3. Coelho L. O método Mézières ou a revolução na ginástica ortopédica: O
manifesto anti-desportivo ou a nova metodologia de treino. Motricidade
2008; 4(2): 21-39.
4. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem, 2008.
5. Coelho L. Mézières' method and muscular chains' theory: from postural
re-education's physiotherapy to anti-fitness concept. Acta Reumatológica
Portuguesa 2010; 35(3): 406-7.
6. Bienfait M. Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento
fisioterápico. São Paulo: Summus editora, 1995.
7. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine, 1981.

100
O FisióSOFO

8. Nisand M. La méthode Mézières: un concept révolutionnaire. Paris: Édi-


tions Josette Lyon, 2006.

O ráquis é o próprio Universo pessoal que entrecorta, divide, a poste-


rioridade espiritual, a defesa perante a ameaça corpórea, e a anterioridade
concretista, o movimento, em que o Espírito já se conformou positivamente
à Psicologia. Este é o Eixo de Equilíbrio, que se expande, recrudescendo na
nostalgia, a coluna do mundo, que é o Igual diante do Absoluto, o ponto a
partir do qual tudo involui e evolui. Crescer é descobrir este traço a branco
no negro do mistério, mas há um traço personalístico, e outros traços, e o
conjunto constitui outra coluna, a separar História transtornada mito e futu-
ro prestes a olvidar-se.
O estiramento da ameaça é necessário ao movimento liberal, mas, sen-
do excessivo, recruta mais Passado. É preciso reduzir a tensão mítica, mas
sem que se caucione o futuro, a proa do “ser”. E esta deve funcionar sem que
surja nova ameaça anquilosadora. Se isso acontecer, regressa a tensão, que é
uma defesa perante o movimento. Novel “postura” representa novo ponto, e
nova persona, e, portanto, renovada acção, que é uma tentativa de responder,
bem como de fugir, à Estrutura.

Diferençar entre a anterioridade liberal e a posterioridade espiritual é,


também, distinguir um modelo empírico, construtivo, pouco afecto ao Passa-
do primaveril, e um modelo psíquico, que valoriza o mito pessoal e totalizador.
O paradigma empírico convida o terapeuta, quiçá o resolvido, a transformar
com base num modelo preestabelecido, provavelmente comportamental e
responsabilizador, dentro do qual o alvo é essencialmente exterior, científico e
social. Pode representar uma defesa, uma fuga ao auto-conhecimento, do tera-
peuta/paciente, mas esta é a interpretação “psíquica”. O paradigma psíquico
recruta o terapeuta valorizador da interioridade a respeitar a psique do próprio
paciente, a defesa do duo terapêutico, e a desvelar com base num modelo psi-
canalítico, assaz desculpabilizador, dentro do qual o alvo é essencialmente
subconsciente. Quando a interioridade e/ou o modelo do terapeuta submerge
o Princípio do paciente, existe defesa, que pode implicar a sublimação do últi-
mo, palco cinemático de outras diatribes terapêuticas. O que se sublima é con-
vidado a dominar, a modelar, outras possibilidades paradigmáticas.

101
Luís Coelho

O modelo “psíquico” interpreta a transformação nos termos do Originá-


rio. O “empírico” desvaloriza tal interpretação, pelo que importancionaliza o
“adquirido”. De modo semelhável, perante uma dor ou alteração biomecânica,
o terapeuta valora, sobretudo, os aspectos a curto prazo, em desprimor de uma
“projecção” estrutural, que considera pseudo-científica, dogmática e especula-
tiva. Este paradigma é responsabilizador, porque actua no palanque de um
Princípio dado, “social”, científico, normativo. O paradigma “psíquico” pode-
rá, igualmente, responsabilizar, principalmente se quiser impor um modelo
que considera dominante, correcto, “normativo”.
Entre o que se “impõe”, por opção normativa, e o respeito requerido ao
evitamento da sensação de ameaça, existe uma linha de “normólise”, que
representa o conseguimento “terapêutico”. No fundo, o Princípio é prezado,
incluindo o do tecido “exterior”. Mas pode, claro, ser que o Princípio pessoal
de um dos agentes domine, seja enaltecido, face ao do agente recessivo, aqui,
o Princípio que se obtém é mais defensivo, pelo que pode projectar uma
maior necessidade de transformação do “outro”. A defesa diminui o limiar
de excitabilidade e glorifica o pormenor, ela consigna a Culpa requerida ao
prosseguimento, ao movimento, ao posicionamento.

A compensação “ideológica”, o próprio Placebo, é um exercício de aca-


tamento do Princípio, da posterioridade dogmática. Ela pode, até, advir da
Norma do terapeuta, ou do seu Princípio pessoal. A anterioridade “física”
representa a liberdade “positiva”, o “tal e qual” que as coisas são, ela até pode
advir do Princípio de um dos agentes, mas compensa meramente a physis do
“paciente”.

Um alongamento posterior exagerado poderá exacerbar o “pathos”. Um


leve pode fazer perdurá-lo. A Estruturação substitui o pathos “dual”, a con-
tenda entre Subjectividade e anterioridade “exterior”, pela mónada anterior,
pela physis, onde tudo ocorre na imediaticidade “positiva” e a mudança é
meramente “externa”. A linha de equilíbrio é a permanência de uma duali-
dade, em que as oscilações se fundem no “pathos”. A “doença”, a dor, é a
desagregação, quando o último se esgota e o Sujeito implode. Sofrer é perma-
necer, é permitir a Subjectividade, é ater a dor que se vira para dentro e pede

102
O FisióSOFO

compensação. Quando a dor se vira para fora e passa a depender somente do


“adquirido”, vence a anterioridade empírica, liberal. É a liberdade de poder
agir segundo as regras, a Norma social, a ciência despida de Observador. Por-
que, havendo terapeuta, agente, permanece o paciente, a dualidade em que a
posterioridade racional recalcitra, recriando a demanda. O “posterior” é a
priori, é o Princípio enformando a percepção, se ele é duro, cava a transfor-
mação, podendo gerar o Princípio no “outro”, e a luta principesca é como
quem cose o equilíbrio geral, à distância da Regra franca, da Lei Universal
que se desnuda independente.

A hipotonia, a flacidez, a disfunção, tudo isto representa um défice de


Estrutura, inCondição em que o terapeuta pode actuar de modo “construti-
vo”. Por outro lado, quando existe Estrutura, é provável que subsista um
desequilíbrio: zonas de maior tensão são compensadas por outras mais delon-
gadas; é o artifício de um corpo funcional e sem dor e/ou doença. Qualquer
tentativa de reequilibração implica uma “interpretação”, bem como o risco
de gerar uma estrutura menos eficaz ou mais dolosa. A interpretação acarreta
a auto-interpretação, a estrutura que se desenha paradigmaticamente segue,
muitas vezes, a exegese da estrutura pessoal e terapêutica. Concebe-se o que
se vê no próprio corpo, para mais, a tensão intrínseca influencia a decisão
“terapêutica”, a avaliação, o modo de ver e tratar. Pode, também, existir a
tentação de seguir um modelo “normótico”, concepcionado, talvez, pela arqui-
tectura “positiva”, real e/ou “social”. Mas a “imagem” de uma “normalidade”
poderá não fazer grande sentido para o paciente, o qual possui a sua inerente
idiossincrasia. Obviamente, se a dor e/ou disfunção está presente, aumenta a
probabilidade de aceitação da “ingerência” terapêutica, o que amplifica as
possibilidades de sucesso. Quiçá este seja, essencialmente, um aspeito da cren-
ça, do placebo, mas, aqui, ainda se trata de uma forma de estruturar, ou, pelo
menos, compensar. A compensação emocional pode reduzir a necessidade de
compensar fisicamente. Mas também pode aumentar o grau de “realismo” do
cenário fisioterapêutico. Qualquer tentativa de equilibrar o “sujeito” poderá
gerar novas possibilidades de compensação, engrandecendo, assim, o grau de
flexibilidade referencial, o que reduz ou atrasa a dor e/ou disfunção. Há,
identicamente, a possibilidade de uma destas últimas variáveis “melhorar”
em prol do “aumento” da outra. Por exemplo, há defesas que permitem a

103
Luís Coelho

função à custa de um dilatar da sintomatologia. Facultar novas compensa-


ções e/ou defesas é, igualmente, aumentar a probabilidade de manter um
cenário de manifestação somática, sem que se suspeite da existência de algu-
ma perturbação. De resto, mesmo a neurose é adaptativa e funcional em
comparação com a vera depressão. A ansiedade pode manifestar-se de diver-
sos modos, bastas vezes escapando à interpretação subjectiva. O que, de mais
a mais, poderá, até, ser vantajoso, a interpretação é infindável, e, frequente-
mente, produz-se mais desequilíbrio ou, tão-só, se substitui uma compensa-
ção por outra, o que pode levar a concluir que houve melhoria onde, somen-
te, se comutou um processo. Uma melhoria mais significativa acarreta a
redução genuína da defesa, da Culpa, do desequilíbrio, mas, claro, não se trata,
aqui, de retirar à Estrutura a sua força original, porque ela é fundacional, o
que se pretende é, tão-somente, apagar o efeito da tensão acrescida, da defesa
que permanecia em excesso. O equilíbrio final poderá, claro, continuar a
implicar zonas fortes e outras mais fracas, esta é uma dinâmica complexa,
talvez inalienável, áreas mais fortes acarreiam outras mais fracas, e isto não é
grave, desde que não cause desadaptação, e, se tal acontecesse, seria grave
sobretudo aos olhos da Normalidade, que, bem vendo, também pode fazer
parte da Estrutura, das referências, do ser. A desadaptação poderá criar dor,
muitas vezes em quem olha ou avalia, prestando-se, portanto, a empreender
a sua visão “normativa” de reequilibração. E esta pode passar, similarmente,
pela reprogramação, que é uma tentativa de chegar à Estrutura profunda,
que, apesar de poder parecer ilegítima, poderá ser aceitável pela resultante
“vantajosa”, para o paciente, para o terapeuta, ou para o Colectivo. Assim,
nem sempre a estruturação contende directamente a flexibilidade, ir às zonas
cimeiras e cognitivas é mexer imediatamente com a Potência, obviamente
pela via aferente, e essa condiciona tudo o resto, mas é preciso que ela seja
aceite pelo a priori do Sujeito, doutra maneira, pode existir sublimação, que
é, a bem ver, um outro modo de compensar, que poderá afectar indirecta-
mente o próprio terapeuta, pois uma sublimação modifica, bastas vezes, o
Código das Referências “normativas”, e, se a Norma muda, se o meio se cau-
ciona, poderá ocorrer novel adaptação do Eu, com potencial desadaptação de
“outros”; mas isto é mais provável para o que diz respeito à “emoção”, o
“meio” físico é, apesar de tudo, mais resistente que a Cultura, mas qualquer
um deles pode fazer toldar a estabilidade do ente, criando renovada necessi-
dade terapêutica, e a terapia é, tal-qualmente, “interferência contextual”, a
querer gravar o seu equilíbrio, programando o novo ente, novel aparelhado

104
O FisióSOFO

de defesas adaptativas. A acção é, frequentemente, a via que permite redese-


nhar o Equilíbrio, é ela que cria a Potência, a própria Razão. A mão desenha
o Espírito, e isto inclui a acção do terapeuta, que, com suas mãos, seguindo a
via do raciocínio, na relação dialéctica com o meio, esculpe o novo ente, esta
escultura inclui-o a si mesmo, ele racionaliza-se e transforma-se na medida
de um paradigma que se enforma na crença, e, à medida que ocorre muta-
ção, ela contagia o paciente, as suas defesas, portanto, o seu caudal adaptati-
vo, que já se transforma também. O conjunto modifica o meio, a textura
social, e esta transtorna o “duo” terapêutico.

Quero ter mais poder de dar poder. Posso?


Quero (o) poder (de) empoderar.

A minha carta de castidade caducou. Onde a renovo? Nunca a usei, mas


nunca se sabe quando é preciso.

Tenho sempre uma carta na manga. É a carta de despedida.

O “ser humano” nada me diz. Doutra forma, seria humano.

Devemos julgar as pessoas pelas aparências. O resto não pode ser julga-
do.

O mundo precisa de um novo pulmão. Procuram-se dadores compatí-


veis. Alguém quer morrer pelo mundo? Os de fora dizem qualquer coisa
como “Na cama que farás, nela te deitarás”. Mas os de dentro não chegaram
a fazer a cama, desfizeram-na, na saudade da infância, dormindo com os pés
de fora.

105
Luís Coelho

O que pergunta a “mãe Natureza” ao filho “Homem”? “Foi tão bom


para ti como foi mau para mim?” Veio, depois, a penumbra, com o sol
vazando a bengala. No dealbar da Supernova. E o homem não voltou a falar
pela Natureza.

E a “natureza mãe” pergunta ao homem: “Na tua casa ou na minha?” E


o locatário respondeu: “Não te pago para fazeres perguntas”.

És muita areia para a minha camioneta. Não obstante, eu sou um trac-


tor.

Estava zangado comigo. Até parecia trovejar. As coisas que a mente arranja!

Tanto o placebo funcional quanto o que respeita à Estrutura pretendem


recriar a satisfação provida pela diluição da ameaça perante um Objecto. O
primeiro é mais imediato, levando ao aprazimento fundacionalmente endó-
crino, compreensível de um modo essencialmente empírico, normativo. O
segundo é capital, proporcionando uma compensação que se consubstancia
no mimetismo das referências pessoais. Este “encontro” pode reduzir a per-
cepção da ameaça, por asseveração da Estrutura primária. Não convém que
faça fenecer, por completo, as defesas, se bem que estas também (re)criam a
ameaça. As defesas são forçosas e devem ser fundamentalmente “egóicas”,
elas admitem, inclusive, revezar o “objecto” da atenção, aliás, resultante típi-
ca do próprio placebo “funcional”.
O toque tem um relevante efeito placebetário, a redução sintomática
por ele provida poderá ser convidativa de mais movimento e/ou função, o
que pode ser, ou não, vantajoso. O movimento poderá ajudar a atenuar a
dor, esta a explanação “funcional”, mas, estruturalmente, pode ser concebido
nos termos de um “pathos”, se isto implicar a sustentação de uma Estrutura
pouco “redentora”. O modelo “estrutural” convida à intrínseca “estrutura-

106
O FisióSOFO

ção” da postura, suficiente para consentir um movimento com menos atrito


e apreensão, só aquela pode fornecer uma melhoria a longo prazo, e isto
implica redução da defesa, mas também que esta seja respeitada na medida
da necessidade. O modelo “empírico” valorizará, especialmente, o jogo de
defesas, o que faculta a função, que, sendo possível, consente a própria supe-
ração do receio. Aqui, poderíamos tanger a possibilidade de surgir uma re-
-estruturação, mediada pela função, a qual modificaria um pouco a relação
com as variáveis locais e à distância.

A arrogância não é um defeito, é um direito. Defeito é achar que se tem


esse direito.
O defeito é um direito. Defeito é não saber quando se tem o direito.
O defeito é uma qualidade. Defeito é não saber que se tem sempre o
direito.

Tenho muito mimo. Alguém é servido?

«– A: Tenho de verificar a sua mala, você é suspeita!


– B: Não vai gostar do que vai encontrar lá dentro.
– A: Mas não está cá nada!
– B: Eu bem lhe dizia.»

A “moral anarquista”, de Kropotkine, não é mais do que a Razão contra-


tual natural, que enceta pelo Colectivo, com compensação egóica, endócrina,
despida dos “normais” preconceitos/dogmas teológico-metafísicos. Não obs-
tante, existe, aqui, algo de “liberal”, é o “ego” que inicia a revolução racional, a
qual acaba por ser generalizada, cavando, quiçá, novos Princípios sociais, con-
tratuais, religiosos. O Princípio teológico tem algo do Colectivo natural, da
defesa do Todo por sacrifício do “eu”, mas atinge, talvez, um limite antagonis-
ta da vida. O Contrato visa o “um por todos e todos por um”, tem de existir
um equilíbrio entra a ética individual e a do grupo. A “moral” contém a postu-
ra, a Culpa, a “posição”, quando ela é excessiva, cessa o movimento, a liberda-

107
Luís Coelho

de idiossincrática. Inibir, um pouco, a Estrutura é a porta de entrada “liberal” e


funcional para o novel Princípio. Por isso, alongamos a Cadeia muscular pos-
terior, proporcionando o movimento “anterior”. Claro, a Estrutura condiciona
a função, e a nova função desenha renovada Estrutura. Libertar a estrutura
permite a dinâmica “relacional”, o conflito, requerida à consolidação do novo
protótipo. Mas, para que este se firme, é fundamental trabalhar a “estabilida-
de”, o equilíbrio. Na relação com o meio, aquele será constantemente desafia-
do. Compensações são necessárias para que não exista queda, a própria dor é
um mecanismo de defesa, é possível que ela tenha de surgir para que possam
ser esgrimidas renovadas possibilidades. Quando a força é excessiva, quando
não existe um trabalho selectivo, a Estrutura regidifica, e o vício, a defesa, toma
o lugar do equilíbrio, perturbando a relação com o Equilíbrio maior. Se não há
reequilibração adequada, não pode subsistir evolução “natural”, contratual,
elemento precioso do progresso.

Um terapeuta “idiossincrático”, “patológico”, ajudará, talvez, o sujeito a


objectar-se numa Estrutura compensatória, idiossincrática, que é a proa de
novo Colectivo. Esta é, quiçá, a Razão neurótica, repleta de músculos e defe-
sas. A nova Estrutura redesenha as referências. Mas o terapeuta “idiossincrá-
tico” pode ser “normativo”, permitindo alongar as defesas do sujeito, pelo
que este se reforça moderadamente, após ter sido libertado, anelando uma
Estrutura primária, acaso “natural”. A moral “natural” proporciona o movi-
mento pessoal ligeiro, sem que exista o pressentimento da ameaça. A conten-
ção estabiliza o processo. A sua via é psicanalítica, generalizando-se num “mate-
rialismo dialéctico”. A via “anarquista” é mais “grupal”, pelo que se reforça a
importância do Colectivo. Mas, para que este cresça, evolua, é preciso que o
futuro heresiarca se mova para além dos limites dados. É a tentativa de con-
trolo que desenha, primeiramente, a liberdade, e, logo depois, a nova moral.
Quando esta é generativizada, cria-se novel Razão “natural”, à distância da
Absoluta, mas assumindo o papel desta, onde prevalece o Equilíbrio referen-
cial.

Na Razão natural, na Liberdade primária, existe uma relação Estrutura


vs. função marcada pela ligeireza, tudo é, de certo modo, previsível, modera-

108
O FisióSOFO

do. As Leis são estáveis. Subsiste um Igual, ou, pelo menos, a sua percepção.
Mas, bem sabemos que há diferenças “racionais”, e é quando uma diferença
maior esgrime a desadaptação que surge a revolução compensatória. A seme-
lhança é liberal, como em Spencer ou Spengler, ela irá esculpir a nova Estru-
tura “racional”, social, contratual, capaz de fazer frente à ameaça crescente.
Este processo “artificial” é baseado no “natural”, com a evolução a represen-
tar um mecanismo semelhável, aliás, a novel Razão estende a Natureza, bem
como a necessidade egóica. Quando a Razão se estende culturalmente, o
mecanismo é semelhável ao que acontece com o Princípio religioso e patriar-
cal. Obviamente, um contexto “social” contende diversos Princípios idiossin-
cráticos, mais ou menos adaptativos, e em mutação constante. A compensa-
ção/adaptação securiza, a desadaptação mobiliza. O movimento precisa da
contundência da Estrutura, quando esta é excessiva, mobiliza-se novo “Arché”.
Existe, sempre, uma dualidade entre Pater e mater, o Grupo e a idiossincra-
sia, este duelo esboça uma dinâmica progressiva que caminha no sentido de
uma evolução, intermediada pela Evolução “espiritual”, meditativa. As duas
nutrem-se, uma explica a outra, e nelas se reserva todo um Sentido, que é a
própria dualidade perfazendo-se incansavelmente.
Não obstante, no sentido espiritual, e também psicanalítico, a evolução
é sempre retroactiva, ela visa retroceder para um Estado mais selvagem e
primevo, em que o Igual é “anárquico” e “acrático”. Isto implica refazer e
matar a memória, Aqui, onde o Passado vence e recalcitra, mortificando a
intrínseca dualidade. Este é o Sonho, a esperança, de um sono perfeito, capaz
de esgotar toda a progressão. Não é esta a evolução “biológica”, que se faz,
por ora, no sentido da complexificação crescente. Mas esta implica uma tota-
lização imorredoura, onde o Tudo não é Nada, porque este exige que o tem-
po ande para trás e que a gravidade pronuncie o elemento Uno, a mónada
infinitesimal, indivisível. Mas, reparai que o Nada aparente possui, em si,
uma incomensurabilidade de elementos conexos, esta é outra Escala, onde o
Todo se firma tamanhamente no duo estratégico e complexificador. A com-
plexidade é haver Razão progressiva, uma fuga ao Imediato, um distancia-
mento entre Sujeito e Objecto que secundariza a distância entre o “eu” e o
“outro”. Para que os “entes” sejam Uno é preciso que eles vociferem na mul-
tiplicidade, na visão estarrecedoura de um Objecto distante e que se torna
automaticamente mais distante ainda. Há, aqui, uma mobilidade dançada,
um salto em altura, um projecto de crescimento constante, de eterna decom-
posição tomística, há, também, uma razão que pensa não haver qualquer

109
Luís Coelho

sentido, mas isto é o corpo “local”, é a infelicidade de agora, prestes a tanger


novel referencialidade, onde o paradoxo nos consuma, e o movimento pen-
dular não passe de uma paródia.

O estado de Equilíbrio é haver inúmeros, infinitesimais, estados de dese-


quilíbrio, incluindo a reequilibração, sem que a dor surja, porque não existe
desequilíbrio suficientemente grande. Quando este se gera, a dor é provida.
Se a dor for reduzida sem que se trate o desequilíbrio, este poderá aumentar,
recriando uma dor mais intensa. Por outro lado, a própria dor cria mais
compensações. À semelhança de uma condição clínica, e do seu tratamento,
que pode acarretar reequilibração pouco adaptativa ou dolorosa. A dor é um
estado de excitação neurológica que resulta do desalinhamento postural e/ou
funcional. Se a Referência superior for de mote a criar maior perseverança
face ao sofrimento, poderá advir maior (des)compensação, a qual implica,
quiçá, novel referência superior, capaz de suprir o sofrer. Uma Estrutura
renovada é um novo modo de viver sensitivo. Se, acaso, houver uma tentati-
va de superação terapêutica, esta pode, até, trazer mais dor, mais sofrimento,
ao “Eu”, ao “outro”, não compensando o trabalho de transfiguração. Obvia-
mente, se este “normal” prevalecer globalmente, o novel “viver sensitivo”
poderá sofrer um desfasamento, multiplicando-se as hipóteses de desadapta-
ção.

O empírico desenha o novo Racional, e este diz que o “novo” é um


“antigo”, um a priori. Uma transformação funcional poderá acarrear novas
referências neurológicas, com o sintoma a adaptar-se à novel Estrutura. O
preço de uma adaptação neurológica excessiva é a potencial relação desadap-
tativa, disfuncional, com o meio. Este imprime, apesar de tudo, um limite,
que se faz sentir nas referências racionais.

O aspecto psicogénico pode afectar o aspeito neuro-motor, o qual, por


sua vez, poderá implicar novas referências, que modificam qualquer um
daqueles dois. Um poderá, ou não, ser compensado pelo outro, tudo depende
da relação dialéctica do Princípio, do antes, com o meio/Cultura. A perspectiva

110
O FisióSOFO

“principesca” aplica o limite referencial à transformação. O lado “empírico”


importancionaliza a mutação da própria Cultura. Como o meio “físico” con-
tém menor plasticidade, muitas transformações acabam por ocorrer no plano
“psicogénico”. Este pode afectar a Cultura, mas esta também pode modificar
aquele. Se tanto o Princípio quanto o “meio” são inflexíveis, surge o “pathos”,
como o sofrimento e/ou a disfunção. Este força à mutação de algum dos ele-
mentos, com vista à manutenção do Equilíbrio. Tolerar o sofrimento poderá
levar à formação de grandes compensações “estruturais”, afectando, por sua
vez, a função social.

Um reforço muscular anuído pelo terapeuta poderá, simultaneamente à


derisão física, compensar emocionalmente, placebetariamente. Existe, claro,
uma injecção hormonal, propiciada, também, pelo próprio treino, e que,
acaso, apaga a dor da deformação concomitante. É uma compensação inte-
ressante a “curto prazo”. Mas, a longo prazo, se a deformidade e/ou disfun-
ção surgir, a própria função emocional poderá ficar caucionada, a não ser,
claro, que surja novel compensação placebetária. Se, por outro lado, existir
uma tentativa de reestruturação da physis, isto pode acarretar um caminho
de algum sofrimento, de certa dor emocional, quiçá de uma compensação
“psíquica” que quer, por sua vez, atrair o lenitivo físico. O jogo de defesas
poderá ser incomensurável, produzindo um sistema circular ininterrupto,
que é como haver evolução vs. involução em perpétuo movimento pendular.
Isto possibilita, também, distribuir o sofrer por diversos agentes e Escalas,
promovendo a reconstrução dinâmica de um sentido, sem o qual se geraria a
inércia destrutiva. De certo modo, toda a compensação constitui um espelho
estruturador da liberdade, e, se a intitulamos enquanto tal, é porque a enten-
demos como uma falsa liberdade, porque à distância do Princípio genuíno.
Mas quem pode, de facto, conceber o vero “Arché”? A Interpretação é tudo
quanto nos resta, e a Verdade passa por caricatura, porque a primeira depen-
de da intrínseca necessidade de satisfação interna de quem analisa ou inter-
preta. Mesmo num Princípio genuíno, existe uma diferencialidade, e um
meio entrópico. A Estrutura faz parte da biologia e visa combater a descone-
xão. Mas as forças competitivas, “liberais”, também integram a biologia,
proporcionando a criação de novas referências passíveis de limitar o âmbito
da ameaça. Mas, à medida que o “ser” cresce, se estrutura, também se dilata a
ameaça, porque se institui um alargar escalar, fazendo, assim, com que tudo

111
Luís Coelho

se renove incessantemente numa luta perpétua, há, como tal, sofrimentos


cambiáveis, comparáveis, não existe a necessidade de discernir os “entes”,
todo o caminho é inútil, como em Schopenhauer, mas mesmo o anelar do
Nada pouco nos traz, porque, na consciência, no fenómeno, o processo man-
tém-se, mas isto é, claro, o que diz a minha instrução linguística, a episteme, é
a limitação que advoga, igualmente, que o Nada é um conjunto de outros
elementos, em Escala menor, onde vogamos do mesmo modo, pode, até,
haver comutação de Escalas, como quem compara o incomparável, a Justiça
é matéria local, ela perde-se nesta jogatina de quimeras, no fantasma de um
devir inquebrantável.

O processo psicanalítico poderá levar ao artifício, quiçá delírio, inter-


pretativo, mas, mesmo aqui, pode existir compensação, acaso substituição
sintomática/semiológica. Por outro lado, mesmo uma interpretação verídica
e libertadora poderá ser encarada nos termos de uma presenciação empírica
estruturadora. Aqui, é possível que surja um mais vero resultado, para ele
concorrendo o pacto terapeuta vs. paciente, para o qual aflui uma percepção
científico-paradigmática. Obviamente, o mecanismo alopático não precisa de
ser radical, e o equilíbrio perfeito é difícil de atingir, quiçá a libertação não
passe de sublimação defensiva, cabendo nela mais o “Eu” do que o “Todo”,
que poderia certamente ganhar com a estruturação idiossincrática. De resto,
nenhuma libertação plena do “Todo” poderá ocorrer verdadeiramente nos
termos actuais e da modernidade, processo que geraria decerto muita desar-
monia e sofrimento, não podendo nós sequer saber se ele compensaria o
ganho. Pela mesma razão, qualquer compensação ou mecanismo empírico
poderá ser suficientemente bom, tendo em conta um tempo preciso, um
objecto determinado, não é possível saber, é claro, o que compensa mais,
qualquer escolha pode ser encarada como certa, ainda mais se tivermos em
conta um objecto distante e “grupal”.

O Equilíbrio Estrutura vs. função, tal como o apresentámos mais para


trás, consigna a linha mercurial perfeita, funcional, fisiológica, “livre”. Se
existe uma escolha viciosa de um dos pólos é porque a condição vera/fisio-
lógica e/ou o paradigma construtivo do terapeuta/paciente assim o deman-

112
O FisióSOFO

dam. Um desequilíbrio desequilibra a própria escolha. Sobretudo se este


incluir uma viciosidade modelar de ordem egotista. Pode acontecer que o
paradigma escolhido compense emocionalmente mas se constitua incorrec-
tamente face à physis, isto gera, mais tarde, um desequilíbrio, dor e/ou dis-
função, suportada à custa do preenchimento emocional. Também pode ser
que a escolha “correcta” para a physis não seja correcta emocionalmente, o
que poderá levar ao abandono da terapêutica, até porque, se não existe com-
pensação emocional, a compensação somática poderá ser de mote a exaurir-
-se rapidamente. Com obviedade, tudo depende, tal-qualmente, do grau de
significação que cada coisa tem para cada sujeito, mas mesmo esse é variável
e permutável segundo a transubstanciação empírica.

Quando for grande quero ser pequeno. Ninguém me apoia nesta ambi-
ção. O que a torna necessariamente menor.

No estado “natural”, as hegemonias são “funcionais” e permitem a


“normal” relação com o meio. Perante o intento do dominante, surge a hege-
monia defensiva, a compensação teológica do “dominado”, que é uma projec-
ção do “passado”, do “posterior”, do Princípio racional. Este generaliza-se,
contaminando a Cultura. Num contexto de hegemonia “teológica”, a força do
heresiarca é a função liberal do revolucionário, daquele que pretende dominar.
Teve de existir uma diferença “basilar”, principesca, que não permitiu o domí-
nio “normativo”, sublimando com outro, que, por sua vez, adaptará inúmeros
indivíduos que, neste Princípio, se compensam melhor. O liberalismo é uma
força propulsora, agónica, que compensa a força “pretérita”. Se uma aumenta,
a outra aumenta também. Perante a força “anterior”, o senso comum, a antiga
moral, defende o reforço da moral “de trás”. É a resultante da intrínseca hege-
monia. Com uma resposta “normalmente” compensatória. Segundo Marcuse,
é requerida uma libertação face a essas forças, religiosa e capitalista. Porque
elas tolhem o Eixo de Equilíbrio, empobrecem o caminho, desvirtuam as for-
ças biológicas. A força maior deverá ser “natural”, cuja moral pode e deve ser
“biológica”. O que a contagia é o meio superegóico, produzindo este a defesa,
que, não obstante, mimetiza o Princípio. Uma sublimação é o poder do artifí-
cio racional, capaz de urdir novel Princípio, renovado acontecimento cultural.

113
Luís Coelho

Individualmente, o sujeito concretiza diversos Princípios e morais, pesa a


resultante, reavalia o Princípio, do primário ao imediatamente anterior, e
modifica-se, defende-se, segundo o Equilíbrio focal, que é aquele que resulta
da maior vantagem. Qualquer defesa é seguramente egóica, mesmo quando ela
é antagónica da vida. O que não invalida a sua comutação, num contexto
interno/externo sequente.

Perante o intento “liberal”, muitos defendem a importância de reforçar


os músculos da antiga moral. Eles parecem fracos, trata-se de uma moral do
“dominado”. E, no entanto, subsiste a defesa, que já é, per se, resultante de
um Princípio mítico. Reforçar a cadeia muscular posterior é o mito necessá-
rio à compensação, o clínico alimenta-a, não percebendo que se produz ain-
da mais fraqueza e reacção “liberal”. A sublimação é igualmente defensiva,
quando a reacção genuinamente “natural” seria de mote a libertar a Cadeia
mítica, fazendo rejuvenescer o senso comum. O problema da modernidade
está no excessivo individualismo, não obstante, esta compensação é o cerne
da criação de novel moral. É sempre do “meio”, da Cultura superegóica, que
provém o desafio. Este engrandece o Superego individual, gerando, porven-
tura, uma reacção egóica defensiva.

A compensação científico-liberal, positiva, poderá ser justificada pela


opressão teológica, mas a primeira também poderá oprimir, e bem que
oprime, no contexto moderno, quando a sua vertente descritiva escusa a
inventividade, e quando a sua lógica mercantilista ofende a Lógica por exce-
lência. O contexto pós-moderno vem, assim, contrapor com a Natureza e a
racionalidade heurística, estética, a uma razão “dianóica”, feita para a produ-
tividade e o prazer frustre. Pretende-se uma liberdade crua, que contenda a
repressão do Capital, e que crave a nova linguagem da igualdade e da solida-
riedade. O corpo “pós-moderno” é bem mais do que sintomático, ele é dia-
léctico e projectivo, convidando à liberdade do próximo.

O ímpeto pós-moderno é de reconstrução social (Marcuse), mas esta


poderá reiniciar o processo de reequilibração constante. O Objecto é o maior

114
O FisióSOFO

quantum de insofrimento, se é que tal é possível, de algum modo, o sofri-


mento é incessantemente “equilibrado”, há, sempre, compensações dançan-
do à volta de uma vara mercurial temporal. A Síntese é haver menos oscila-
ções em seu torno, e isso só se consegue se o primeiro ímpeto é tomar a
Natureza por testemunha de uma libertação objectal, em que o Sujeito vin-
gue sem Objecto, e a physis se torne pura, isenta de projecção ou previsão. O
“culpado” é o grande iniciador desta liberdade, desta mater, em que a Razão
“estética” se convida à inventividade de uma Natureza despida de opressão.
A mais genuína Razão “pós-moderna” é a Razão “natural”, em que o Espírito
é o Verbo mais cristalino, prenhe de imaginação, folgando na univocidade
linguística, em que o acordo é severo e não transmigra. O caminho cria o
desacato entre razões, Princípios, linguagens, é o ardor de uma imaginação
confusa que ora equilibra, ora desequilibra, ora compensa na memória míti-
ca, ora descompensa na dessublimação.

A Razão “estética” torna-se Razão “realista”, Domus a partir do qual se


esboçam muitas razões, e muitas intenções revolucionárias. O Domínio é sem-
pre mais desejado pelos que são dominados. Por vezes, é o próprio método, o
paradigma, que concebe a teoria do domínio. Ao impô-la, acaba por dominar,
espelhando o seu dogma assaz “libertário”. Assim, o método assume o seu
poder, que é compensação egotista, uma sublimação de um Princípio basilar
que persistia no seu mutismo.

Há os que só conseguem sentir-se acompanhados quando estão sós.


Não lhes faças companhia. Vais sentir-te só.

Se o empírico domina o Racional, tanto o Princípio quanto o modelo


propugnado poderão consignar, tão-só, a construção momentânea, a resul-
tante de um determinado palco somático. O cenário fenoménico poderá
dizer outra coisa, e o que ele diz terá a grande relevância compensatória, e é
provavelmente outro cenário que me permite questionar a relevância do
Princípio vero, colocando o Equilíbrio a depender do último momento, e a
Verdade a compor o constructo mais imediato, não sendo, portanto, possível

115
Luís Coelho

racionalizá-la por inteiro. A cena fenomenal poderá, até, construir uma


noção forjada de tempo, bem sabemos quanto o desequilíbrio nos leva a
burilar tudo de um modo pessimista, criando o desacato com a Origem,
reconstruindo o Princípio, e utilizando este enquanto bode expiatório. Tam-
bém o terapeuta poderá culpabilizar esse Princípio, valorizando os aspectos
que, para ele, são mais significativos, para isso terá contribuído a descompen-
sação do mesmo, quiçá perpetuada viciosamente pela relação sempre caótica
com o exterior. De resto, há que atender ao facto de que o empírico desenha o
racional desenha o empírico, existe uma dualidade intrépida que pode “cres-
cer” empiricamente. O conflito vem do “meio” e esboça-se na relação deste
com um “Princípio” diferencial, o último poderá, não obstante, modificar-se
para se adaptar ao palco “somático”, mas esta adaptação poderá ocorrer no
desacordo com o “meio”, criando mais conflito, o que, bem vendo, é pouco
provável que aconteça facilmente, porque é o “meio” que mediatiza a relação
do Soma com o Princípio.

Uma interpretação psicanalítica/”espiritual”/”estruturadora” pode ser


de mote a valorizar aspectos consignados na sua primitividade, enganando,
porventura, o paciente, e, ainda assim, compensando-o de um modo “empí-
rico”. Quiçá o desequilíbrio seja momentâneo e o paciente tenha sido levado
a interpretá-lo como primitivo, como quem patologiza o “adquirido”, comu-
tando uma má relação com o meio com uma má relação primária, de cerne
superegóico. O que é momentâneo é mais fácil de captar e compreender
cientificamente, aquela interpretação é, muitas vezes, atida como excessiva,
dogmática, quiçá delirante, esboçando a necessidade de auto-conhecimento,
de dogmatização interna, do próprio terapeuta. De resto, subsiste a lógica
dos modelos, há a tentação de catalogar segundo o paradigma que parece
exteriorizar-se, como se fosse possível conceber um indivíduo ou situação de
um modo mais primaveril, e outro de um modo mais imediato, mas mesmo
esta flexibilidade modelar implica certa abertura neurótica, uma destreza
idiossincrática que transcreve Princípios sem se bastar num deles, e que, ain-
da assim, foge da segurança de quem se basta confiantemente num modelo
sem epíteto neurótico, este último a representar a voz racional de uma maio-
ria, de uma “ortodoxia”, de um Princípio preciso.

116
O FisióSOFO

O processo “empírico”, nosológico por excelência, convida ao tracto da


disfunção, permitindo melhorar a relação com o exterior. É fácil medir a
resultante, mas o modelo “estrutural” considera-o limitado, dado a criar
compensações. Não que estas não sejam importantes, pode ser mais razoável
compensar, resolver no imediato, do que agir esperando que um Sistema
resulte no “Todo”. É que este poderá estar “iludido” na sua óptica, gerando,
também ele, compensações, quiçá mais funestas ou dolorosas. Para o Siste-
ma, o sofrimento compensa a resultante, mas isto pode ser o dogmatismo a
falar. Se, por outro lado, houver verdadeira “libertação”, a resultante é essen-
cialmente funcional, proporcionando a “cientificação” do “Ser”, no Agora,
em que a Razão natural abraça a “emoção”. Este Pater é mater tornada dese-
jo, despida do excesso superegóico, e a sua Ciência é um Domínio prestes a
ser o Superego de outros agentes. Trata-se, portanto, de uma Normalidade,
em que o dogma é a Scientia enquanto Conhecimento dado, descoberta pre-
visível pronta a sorver a ameaça de uma nova irresolução, de novel mitifica-
ção.

Um momento de descompensação coloca o foco na compensação, na


contracção da ameaça, distendendo outras “partes”, equilibrando outras possi-
bilidades. Um desequilíbrio é um instante idiossincrático, Pai de um manan-
cial de outros processos. Só quando se gera o equilíbrio pode o “Eu” ser de
todos, no plano de uma Razão colectiva que esparge inúmeros focos. Um só
instante inclui diversos Princípios concorrendo na atenção, o que vence é a
individualidade.

Quem faz votos de sucesso deve ser boicotado. Porque o futuro é em


branco.

Quantas vezes damos uma segunda oportunidade apenas para ignorar


que nem houve uma primeira?

117
Luís Coelho

{O PANfilismo9}
O PANfilismo e a PANfobia têm algo em comum: retratam, ambos, um
estado de apreensão face a uma realidade moderna, uma peleja paradigmáti-
ca que não é, bem vendo, nova, nem está longe de terminar.
O surgimento e afirmação do PAN não seria possível sem que se verifi-
casse um cisma face à modernidade industrial. Num contexto hipermoderno,
marcado pelo vazio da individualidade feérica, não é estranho que existam
desadaptados, sujeitos irredutíveis à sociedade de mercado. Há, aqui, um pro-
blema profundo, que é de mote psíquico. A luta contra o paradigma dominan-
te é, somente, uma manifestação. E ela traz consigo a necessidade de espiri-
tualização, a egofobia, a resistência face à ciência “materialista”. O neurótico
procura, como tal, a nova “religação” ao Espírito, à natureza, ao “Todo”. Não
sendo capaz de afirmar o seu “ego”, pretende assim demovê-lo do cenário
identitário, ignorando que isto é, per se, defesa egóica. A busca espiritual camu-
fla uma nova, antiga, religiosidade, bem como uma pretensão de evangeliza-
ção; a intenção é a remissão da culpa, e, com ela, a redenção de todos os
outros, que conspurcam o tecido social. A “missão” é estendida à totalidade,
porque se acredita existir um karma colectivo que se reflecte no destino de
cada um. A preocupação é, mais uma vez, egóica. Subsiste uma semelhança
com a esquerda pós-marxista e pós-moderna, a qual criou, em tempos, uma
atmosfera de suspeição face à ciência, na sua relação com a indústria e o capi-
tal. O liberalismo científico é, assim, repreendido, optando-se por uma via
“holística”, que reacorda o vetusto modelo pré-científico. As práticas tera-
pêuticas não convencionais, o modo “orientalista” de interpretação da reali-
dade, tudo isto parece belo e puro, até porque reacende o interesse pela natu-
reza. A Razão natural é, de facto, importancionalizada, de alguma forma,
defende-se o “modus” anarquista, primevo, de viver. A ética primitiva e a
colectivização utópica são traços de um certo marxismo, face ao qual a com-
petitividade e o capital parecerão pecaminosos. Existe, portanto, uma obses-
são pela “felicidade”, e uma fixação com a Luz, que remete para a crença,
para a fé. Os “espirituais” pretendem ser “racionais”, mas ignoram que toda
a sua iluminação é falsa e estende um “pathos”. Pior, acabam mesmo por ser
punitivos face aos “alienados”. Mas não pensemos que esta é uma religiosi-
dade à antiga, porque, aqui, também consta o artifício da individualidade. E
do hedonismo. Que dizer dos retiros e das modas do “mindfulness”? Colo-
cam a capa do “Espírito”, onde subsiste, tão-só, o ego, e o prazer.
9
Setembro de 2019, publicado no jornal «O Diabo».

118
O FisióSOFO

Mas existe algum modo de escapar ao “ego”? Obviamente que não.


Interessa, sim, dar a preferência ao princípio da Realidade, à Razão capaz de
obviar o caminho de muitos. A geração “new age” quer constantemente dar
o passo maior que a perna. Quer apagar a individualidade antes de esta ser
redimida pelo curso da terra. E isto só alimenta a ilusão. E o placebo colecti-
vo.
Grande parte dos PANfílicos constitui esta geração da “nova era” que
opõe a utopia higiénica e hipermoral ao pecado do individualismo destruti-
vo. Não seria demais afirmar que o partido que afiança ser “inteiro” está
cheio de indivíduos psiquicamente “partidos”, modernamente doentes. Mui-
tos indivíduos problemáticos buscam a sua compensação por este caminho
“naturalista”. Enquanto fisioterapeuta, consigo, bastas vezes, identificar um
padrão: a fibromiálgica, com uma percepção excessiva do corpo e das dores,
utilizadora de suplementos e de terapias alternativas, quando não portadora
de amuletos; usualmente vegetariana, quimicofóbica, leitora de livros de auto-
-ajuda. E, no entanto, longe de mim retirar-lhe a ilusão. Pois esta compensa-
ção vale tanto como outra qualquer.
E da compensação se têm feito muitas revoluções. É certo que o alegado
regresso ao “Espírito” parece fazer pouco sentido num mundo tecnológico.
Mas há, todavia, muito que se pode aproveitar no modelo “new age”. Nem
tudo é bom na realidade excessivamente empírica. O mundo moderno desis-
tiu da Razão, e não está pronto para aceitar que tudo o que nos envolve é, de
facto, contingente, ilusório. O “Espírito” é requerido neste tempo nefasto em
que já nada vale. Mas não deve, no entanto, deixar de ser servido por um
rigor adequadamente científico. A ciência moderna contende as desmesuras
do “Espírito”, e este lembra-nos que o que mais importa somos nós, enquan-
to portadores de um sentido.
Quando o PAN estava nos seus primórdios, com Paulo Borges como
dirigente, e eu mesmo como associado, o modo de ver “búdico” estava
implícito. Uma das razões pelas quais o antigo fundador foi afastado era,
precisamente, a falta de sentido pragmático. Muitos militantes do partido
achavam que o mesmo não teria futuro enquanto subsistissem membros a
denegarem a realidade e a quererem percutir a moral “budista”. Curiosamen-
te, o PAN ganhou palco quando começou a afastar-se do seu lado mais dog-
mático. Mas o partido já vinha a crescer, à custa dos “desadaptados” dogmá-
ticos. A sua capa é, ainda, a desses depressivos (pós)modernos, que defen-
dem, no fundo, um regresso, mais do que um avanço. A sua misantropia, o
seu amor pelos animais, tudo isto é, afinal, manifestação de uma desadapta-

119
Luís Coelho

ção face ao humano “super-homem”. Mas o que os PANfílicos defensam é o


ensejo de um outro “super-homem”, e isso implica sacrifício. Este é apanágio
de toda a religiosidade, mas tal-qualmente da revolução. O PAN não advoga
mais mudança do que os outros partidos, apenas defende uma mutação que
o individualismo capitalista acabou por demonizar. O que assusta no PAN é
a força de uma convicção, a determinação de um movimento que, mesmo
sendo neurótico, tem uma intenção salvífica. Todas as revoluções requerem
sangue. As vítimas são justificadas pela resultante utópica. A PANfobia é o
sinal de uma dinâmica tenaz, que muitos PANfóbicos reconhecem ser neces-
sária, mas, ainda assim, violenta. A violência é a marca de um dogmatismo.
Um terapeuta sabe que, por vezes, é preciso causar dor para fazer sobressair o
melhor potencial do sujeito. Mas, não sendo aceite tal sofrimento, surge
novel fobia, renovada sublimação.
Assim sendo, também os PANfóbicos exibem a marca da neurose, asso-
ciada ao apego excessivo por uma “Normalidade” individualista e confortá-
vel. Os PANfílicos consideram que falta aos PANfóbicos ver o que é evidente,
pelo que existe, neles, um paternalismo “terapêutico” a atentar contra o
paternalismo “liberal”. E, contudo, o PAN age como qualquer outro partido:
pela via democrática. Causando o cisma da sociedade, que é, a bem ver,
manifestação de uma patonormatividade. Quiçá possam, um dia, os moder-
nistas transmutar a sua intrínseca neurose num partido transformador, capaz
de chocar com as suas heresias anti-religiosas. Este é o processo “normal”, o
eterno retorno num mundo onde nunca haverá completa satisfação.

O sentido da Liberdade em Kant não corresponde, de todo, à Razão


natural, se bem que o materialismo coloca na Natureza as Categorias kantia-
nas, base da compreensão das determinações empíricas. Se, segundo a «Críti-
ca da Razão Pura», a Razão pura, a “coisa em si”, é inalcançável, de acordo
com a «Crítica da Razão prática», a Razão pura é validada pelo sentido “prá-
tico”, do “dever ser”, que enforma o acto verdadeiramente moral. Assim, a
Razão kantiana é, tão-só, um “meio” que se torna “Fim”, e que é justificado
pelo Absoluto, visto não ser racional o que é condicionado, determinado. De
algum modo, poderíamos considerar que a Razão natural, a libertação tera-
pêutica, poderia facilitar o processo de autonomização racional afecta à
expressão do Imperativo Categórico, mas, mesmo assim, não se apaga, nun-
ca, o facto de existir um Condicionamento flagrante, que é justificado por si

120
O FisióSOFO

mesmo, indultando a acção. A Razão “hipotética” é a “norma”, a compensa-


ção libidinosa de uma incapacidade “nadificadora”. Ela estende o papel do
“empirismo”, da contingência, que, consabidamente, para Berkeley ou Hume,
não subsiste, sequer, no “meio”, mas somente no Ideal, na subjecção.

Alcançar a Universalidade salvífica é assumir um terreno “totalizador”


que, não obstante, pode demarcar, somente, o território do “Eu”. Para o
“Eu”, o Princípio é objectivo, ele é a Lei, mesmo quando pode firmar-se,
apenas, enquanto projecção. Uma compensação terapêutica poderá levar,
igualmente, a tal construção. E o mesmo acontece com a sublimação. A
Razão resultante é atida como objectiva. Mesmo quando assumimos que ela
pode ser subjectiva fazemo-lo de um modo “objectal”. De algum modo, a
objectividade implica, tão-só, uma construção do tipo “como se”, processo
requerido à consideração da Verdade e, também, à Ordem moral. Quando a
“coisa em si” se permite reconhecer pela Razão prática, o ser edifica um Fim
com carácter vero. Pode ser que um trabalho terapêutico leve a isto. Mas se a
neurose se consubstancia na assunção da plena subjectividade, o terapeuta
“absolutizador” poderá descompensar o “sujeito”, afastando-o da sua “objec-
tividade”. Se, pelo contrário, o terapeuta for “subjectivista”, a compensação
será de mote a “objectar”. Uma razão “neurótica” é, como tal, objectiva se for
sublimada, transformando-se na Razão dominante, onde se fecunda o Prin-
cípio gerador de novas compensações e renovadas neuroses.

A ambiguidade, o cisma, da Filosofia é, per se, indicativo de uma neuro-


se. Esta compensa-se, sublima-se, na objectividade racional. À força de se
tornar a Verdade dominante, normaliza-se. Este “normal” é a “coisa em si”, a
sua compreensão é o edifício da subjectividade. A Subjectividade demarcada
é objectiva. Um encontro neurótico de Princípios poderá recriar a Objectivi-
dade, mesmo quando eles são conteudisticamente subjectivos. Uma defesa
“objectivista” perante a dúvida terapêutica é, ainda assim, subjectiva. Qual-
quer compensação neurótica é subjectiva, na medida em que não cria a noção
de liberdade. Ser livre é ser maculado, entranhado, pelas Leis da Objectividade.

121
Luís Coelho

Dantes, morria-se por canibalismo. De intoxicação alimentar. Agora, há


os digestivos.

A Razão dialéctica não se resume a um plano descritivo, positivo, trans-


versal, da Realidade, ela é um exercício de concertação “práxica” da Verdade,
de construção da vertente “pós-moderna” de um cenário que termina, e se
inicia, no Princípio da Realidade. Este estipula o palco das pulsões, a própria
dialéctica que se estende do Eros ao Thanatos, o jogo de cintura que comuni-
ca “Senhor” e “escravo”. A dialéctica é um esforço “egóico”, narcísico, de
dessensibilização da necessidade erótica, que não pode ser lido somente na
“resultante” positiva, mas que apela a uma história de apropriação do Cria-
dor, do Superego. Esta dinâmica inclui diversos movimentos de equilibração
pulsional e desequilíbrio mortificador, com um a justificar o outro, porque a
satisfação da necessidade implica uma ânsia primaveril, e outra que condena
a necessidade a uma linha de vaivém constante. A “práxis” é precisamente
aquilo que justifica a dialéctica, porque é o ser a “tornar-se”, na “Razão práti-
ca”, segundo um processo “psíquico”, material mas não mecanicista, físico
mas de interpretação representacional irredutível. Este é o “espírito” alvar,
cuja consecução é “causal” e surpreende, e excede, a intrínseca interpretação.
Daqui surge um dinamismo psicanalítico libertador, se bem que a limitação
interpretativa arrisca criar o “eterno retorno”, e a perpetuação das categorias
“edipianas”, subjacentes à moral “conservadora”. Na melhor das hipóteses, o
Sujeito é convidado a libertar-se de si, vigorando as relações empíricas. O que
pode frustrar a revolução “práxica”. Já se o processo falhar a re-solução pul-
sional, o Sujeito poderá empregar as forças no trabalho, reificando o modelo
“liberal”, assaz capitalista. Também isto poderá satisfazê-lo. Por outro lado, a
insatisfação “terapêutica” poderá criar o que o modelo psicanalítico tem de
conteúdo mais “socializante”: a sublimação das energias, ora empregues na
construção de um novo paradigma. De algum modo, a nova moral atesta a
importância da neurose e, acaso, a falha do modelo psicanalítico, que, numa
certa perspectiva, faz as vezes do modelo capitalista ao perpetuar as catego-
rias da moral burguesa e ao valorizar o papel do “indivíduo” face ao do
Colectivo.

122
O FisióSOFO

Bem para além da psicanálise de Freud, Lacan ou Reich, que se coloca a


par da necessidade de libertação moral, a favor das forças eróticas, e da
assunção do estado agónico de “Senhor”, a perspectiva de Deleuze e Guattari
(«O Anti-Édipo» (...), 1972) é de mote a reforçar o papel “burguês” de um
método dogmático, patologizador, individualista, que perpetua o palco da
“triangulação” edipiana, o modelo familiar, bem como o processo de inter-
pretação obsidiante e infindável que promete tornar o paciente dependente
do analista. As tentativas de revolução são, assim, abortadas pelo dogma
“terapêutico”, sendo concretizado o poder, que é a marca do prescricionismo
capitalista. A rebeldia é “culpabilizada”, o Sistema é “desculpabilizado”, às
tantas, a terapia ajuda na resiliência face à moral castradora, fornecendo um
placebo alienante da consciência construtora. O “terapeuta” acaba, porven-
tura, por servir o modelo “biomecânico”, rigidificando as explicações e boi-
cotando a consciencialização genuinamente salvífica. Esta será de mote a
produzir a liberdade “esquizofrénica”, senão novel sistema, onde os novos
desadaptados poderiam receber do antigo dogma “terapêutico” o impulso
revolucionário, ou, pelo menos, o placebo confortador.

Na vetusta visão de Reich («Materialismo dialéctico e psicanálise»,


1934), o complexo de Édipo – que, segundo Malinowski, aparece associado à
proibição do incesto demarcada pelo início do patriarcado – não pode deixar
de ser alimentado pela organização familiar/social capitalista, pelo que não
poderia subsistir na sociedade socialista. No mundo capitalista, o intento
revolucionário é nutrido pela moção pulsional, já a “razão neurótica”, bem
como a moral, pode ser encarada enquanto compensação “culposa”. Pode-
riam estas ser a reacção “revolucionária” perante um mundo de caos, um
pedido de Estrutura, um desejo de estabilidade. Como se, de algum modo, a
liberdade “materialística” pudesse criar os seus próprios complexos, ou,
então, a requisição de uma culpa estruturadora. Mas o movimento primacial
poderá estar igualmente presente. O conflito edipiano poderá levar, por vias
tortas, à compensação racional, ou espiritual. É a resultante de uma comple-
xa dialéctica interna, que, à custa de tanto “historicismo”, não consegue sal-
var-se da acusação de charlatanice. É o mesmo tipo de acusação que aparece
no devido a Hegel, mas, em Marx, como em Freud, a dialéctica foi materiali-
zada, resultante, per se, de um contexto de “morte de Deus”, e, também, do
crescimento do cinismo industrial e liberal. A dialéctica materialista opõe-se

123
Luís Coelho

a esse liberalismo competitivo, mas ele não implica, necessariamente, a ver-


tente racional/Espiritual, que, de algum modo, age como beneplácito de uma
consciência passiva e capaz de reagir diante de um contexto funesto. A Filo-
sofia/Espiritualidade é a compensação do “escravo” perante a sua impossibi-
lidade de se tornar Senhor. Seria, talvez, a resultante perfeita do pleno silen-
ciamento. Mas, em contexto “mater”, parece-se muito como uma espécie de
mortificação indesejada. Indesejada pelo Ego, é certo. Porque este requer a
luta, trazendo, quiçá, a destruição, se a primeira for de mote a assolar o opo-
nente. Assim, à revelia da ética do Senhor e do Escravo (Hegel), a proposta
marxista/psicanalítica é a da pacificação do ser, mediante a sua desculpabili-
zação. No entanto, se o marxismo apela à revolução, enquanto destino irre-
primível, a psicanálise valoriza mais a parte “individual”, operada no divã.
Esta arrisca-se a gerar um ciclo interminável de jogos transferenciais, criando
o “eterno retorno” que aborta a transformação genuína. Por sua vez, também
a revolução marxista poderá não passar de mais um salto “empírico” para
outro estado de (des)Equilíbrio, onde a renovada contextura poderá gerar
novos complexos. Nesta, pode ser legítima a manutenção da dinâmica psica-
nalítica. Ou poderá justificar-se a legitimação de outra terapêutica, adaptada
ao novo complexo social, ou à nova necessidade de estruturação/libertação.
Se o novo contexto for de mote Pater, já conhecemos o processo, ao
qual a dialéctica materialista se adequa. Se, porventura, se criar novo tipo de
“matriarcado”, o complexo de Édipo poderá assumir uma renovada impor-
tância. Perante o Caos, haverá quem precise da Estrutura, e quem queira
livrar-se da Culpa, a confusão diabólica multiplica os modelos e pluraliza as
respostas. O que nos leva, quase, a opor-nos à possibilidade de uma com-
preensão genuinamente dialéctica, a profusão de “contrários”, de compensa-
ções, será ilimitada, já o é, e, perante isto, há quem compense afirmando
tenazmente o regresso à materialidade positiva, francamente realista, centra-
da num objecto imediato, mensurável, redutível, atomizável. É uma reacção
para a nova incapacidade dialógica, uma negação da Razão pelos que afir-
mam só existir o que é mensurável. Para estes, trata-se de uma esperança de
Ordem. Na “redução”, procura-se um limite. Mas o limite reduz-se noutros
limites, a Ordem transmuta-se Espírito, abstracção onde outros se adaptam
perfeitamente, aceitando, quiçá, a ordem da fé, porque tudo o que daqui
parte é para ser crido e ostentado, numa esperança de ascensão, que é, bem
vendo, mais uma vez, uma necessidade de afirmação pulsional, incestuosa,
com o “ente” querendo ser Senhor em cópula permanente com a Natureza

124
O FisióSOFO

asada. É certo, também, que um mesmo indivíduo poderá conter compensa-


ções diversas, é o espaço da dúvida, o alicerce da variância, em que a Estrutu-
ra se desfaz consecutivamente, re-mitificando-se compulsivamente. Há, aqui,
voz para a obsessão. E querer reduzir tudo ao instante é, igualmente, obses-
são. Porque qualquer espaço dialéctico tem o seu intrínseco instante feno-
menal. Redutível? Comensurável? É a pergunta do obsessivo, do rigor mate-
rialista, a atestar a falha de uma dialéctica verdadeiramente pulsional. Se este
se planta nas alvuras do terapeuta, promete intelectualizar o mundo ad
aeternum, e não se trata do Nöus, antes fosse, mas esse é uma ilusão, como
toda a promessa de uma Razão pura, já basta toda a realidade, que é Razão,
ainda assim, porque ela é o que é, justifica-se a si mesma, anulando-se, assim,
a Culpa perante um Superior, que é, a bem ver, projecção da mesma Culpa.
Se o terapeuta impõe a Culpa, ou acalenta ou gera a compensação, talvez a
sublimação, pode ser que o sintoma – que é cópula entre a pulsão e a defesa –
transite do “havia” para um “Há” tacitamente aceite. Uma dor é sempre mais
respeitável. Até uma luta política será mais bem vista. E se o terapeuta con-
cordar, lá se fará a revolução. Pode ser que o terapeuta deixe de ser necessá-
rio. Mas, se o modelo mudar, pode, até, acontecer que o terapeuta, que per-
manecia patologizado pelo antigo paradigma, deixe de ser terapeuta.

O estado “normal” é “simpático”, exige um mínimo de “agressão” ou


actividade muscular. A ameaça exaure o sistema, reforça a reacção, trazendo,
consigo, a defesa. Aumenta a possibilidade de re-acção sobre o mundo, mas,
também, a de re-acção do mundo perante um “Ego” progressivamente
defensivo, em que se acumula a carga pulsional, a tensão sexual e miofascial.
Origina-se, como tal, o “pathos”, tal como o sintoma de teor mais ou menos
simbólico. Quanto mais o sistema se exausta maior o nível de dor e/ou dis-
função (desadaptação), reforçando-se, assim, a antipatia social. O “pacto”
terapêutico pode ser de mote a perpetuar o processo ou a extingui-lo,
“matando” a sujeição, compelindo à Vontade serena, “utilitária”, liberal. Se o
trajecto terapêutico for de mote fundacionalmente “espiritual”, dá-se a “reli-
gação” “parassimpática”, a fusão decisiva com o “Todo”, em que as frontei-
ras do “Ego” se eclipsam. O “Espírito” é a própria physis originária, “bom
selvagem” capaz de justapor o equilíbrio global, o “Estado” (Hegel), que é já
o artifício da perseveração. Mas este estatui a continuidade, gerando oportu-

125
Luís Coelho

nidades de desequilibração, pejando o “devir” de novel neurose dialéctica,


que é já a compensação salvífica, a tentativa de re-mitificação, de recuperação
de um Estado destinado a ser transcendido. O formato varia, mas o meca-
nismo repete-se por cada instante, cada elemento do sistema, eternamente na
sustentação da Vontade, tudo isto é Deus sendo, como o momento tomisti-
camente menor, em que a dialéctica surpreende continuamente as tentativas
de redução “material”. O in-momento é “positivo”, é a ilusão placebetária da
deidade, o Verbo nefando do demiurgo, ele esgota a possibilidade de reden-
ção, ele desloca novas hipóteses de legismo universal. Cada Universo imple-
menta a sua regra, cada ciclo reconstitui a fórmula da salvação, mas, no
Homem, a necessidade de perseveração, a “vontade de poder”, assombra a
conquista da Luz, porque esta é, também, um desejo de auto-conquista. A
Vida é um paradoxo gigantesco, e a pacificação é um estado sempre tempo-
ral, um encontro hormonal de reconstituição anamnésica do Princípio, uma
afirmação do Inconsciente, que não demorará a ter de dar explicações ao
Superego.

Recentemente, o mundo gretou: entre os que vêem a greta e os que não


vêem. Falta ver com que deixar de haver greta. Talvez com um sismo arrefe-
çam os humores. Um dilúvio a cessar o julgamento. Depois, é só quebrar o
gelo da nova Idade. (26/09/2019)

O meu acordo ortográfico é o desacordo. Por isso erro, para Acordar.

O Governo pôs um drone a vigiar a minha higiene mental. O drone


ficou aborrecido. Com o meu curto-circuito.

O mundo tem de bater no fundo para ver, finalmente, o fundo da ques-


tão. Mas há esta teimosia em fazer do chão um trampolim. Pior são as molas
que já rejeitam o óleo.

126
O FisióSOFO

O Dasein («Ser e Tempo», Heidegger, 1927) é o “Nós” fenomenal em


que o “Eu” fundeia sua inquietação. O que o nutre, o que o afasta do EU, é a
perda da intenção, da diferenciação in-consciente, quando a razão neurótica
alimenta a disparidade arquetípica, a ânsia por um Princípio. O “Eu” disper-
sivo, indiferenciado, conduz-se à individualidade angustiosa, consignando a
defesa perante o Todo.

O tempo é o veículo dialéctico de redenção do “Eu”, tornando-se Ser só


após ter “escolhido”, no cerne da indiferenciação ansiosa que une o passado
culposo e responsabilizador à “decisão antecipatória”. A re-solução é “morti-
ficadora”, trazendo, consigo, o Sujeito pleno, intocado pelo Objecto. É o
último que cria o “cuidado”, a “apreensão”, do “Ego”, tornando-o “ser-livre-
-para-a-morte”. Passa, assim, da individualidade, cunhada com o livre-arbítrio,
para o EU, o Aqui, a Síntese.

O Princípio do “Eu” é o estado de Ser, em que este e o Objecto são UM


só. Aqui, presencia-se a ausência de escolha (relevante). É o Objecto que
afasta superegoicamente o “Eu” de si mesmo, gerando a dificuldade da exis-
tência, o clímax da consciência. A “razão neurótica” é a consciencialização
“nauseante” (Sartre) de um mundo de possibilidades. Pensa-se no que não se
É, no que não se controla, num Objecto que não faz parte de nós. Não exis-
tem mapas primorosos, a Realidade parece “indiferenciada” na sua multipli-
cidade. Desistir do caminho, permanecer na “indiferença” (Cioran), é impos-
sível. Somos escravos da escolha. Esta funde o Passado reconstruído com a
intenção perseverante. A intenção é de possuir o Objecto, de desocultar a
Verdade. O trabalho terapêutico “perfeito” é “anamnésico”, permitindo
recuar para a diferenciação “livre”, no enlace do Objecto. O terapeuta “com-
pensatório” cria o artifício, a “escolha” inautêntica. Como quem assume um
papel determinado, mimetizando o Princípio, mas sem a plena (in)consciência
da liberdade. A escolha “práxica” é determinada pela obrigação objectal.
Aqui, há uma moral que se constrói e que se lança ao julgamento da moral
totalizadora. O ser torna-se, pela “Razão prática”, provavelmente com apro-
ximação ao Princípio, no que permite a sua libertação. A escolha pode não

127
Luís Coelho

ser perfeita, mas ele terá de se responsabilizar por ela. Se a escolha é imperfei-
ta é porque não satisfaz, “adequadamente”, a Razão plena, primeva. Se as
condições de escolha fossem “perfeitas”, não haveria nada a escolher. Uma
“compensação” pode ser mais ou menos autêntica. Ela suprime parte da
ansiedade, mas impele à defesa. De algum modo, a compensação implica
uma “objectificação” do “Ego”, sem que este sinta dominar plenamente. A
escolha “perfeita” é libertadora, desvenda o Objecto, bem como o Senhor.
Mas este é um “deus” benevolente, que se arrisca a cair na inércia, na passivi-
dade. É preciso que outro “deus”, um Objecto superegóico, crie a irrisão,
complexificando a emergência de um caminho. Não caminhar é próprio de
um “deus”, ou daquele que, perante a escolha, abdica de prosseguir. O
“Nada” é este estado de indecisão, quando se adensa a fractura entre Sujeito
e Objecto. Mas é, também, saber que qualquer escolha implicará enlaçar um
Objecto que é sujeito de um Objecto maior. Mas o acto mental de tomar
consciência da iniquidade da escolha é, já, escolher. Quem se abstém escolhe.
Com a consciência de que não podia deixar de o fazer. Por isso está justifica-
do. Mas não perante o outro, que possui, tal-qualmente, a sua “tragédia”
pessoal, a sua escolha, o seu devir.

Recuemos um pouco, mais precisamente a Berkeley. Partindo de Locke,


no seu «Tratado do Conhecimento Humano» (1710), o filósofo defende que
é a nossa abstracção relativamente à existência de uma realidade “externa”
que dificulta a aceitação de que esta só subsiste na medida em que há um
espírito percipiente, no qual a Vontade do Espírito Superior inscreve os seus
“acontecimentos”. Ademais, tudo É eternamente, não havendo, como tal,
relações de Causa-Efeito, porque estas seriam do domínio “particular”, con-
tingente, e tudo o que ocorre ao espírito é regular, Lei, de uma Natureza con-
tínua e inconcreta. Obviamente, os materialistas poderiam concordar com
isto, mas assumindo que tudo o que Berkeley considera “espiritual” é “mate-
rial”, moralmente cego, “esteticamente” indiferente. A questão mais comple-
xa da Filosofia nunca residiu tanto no monismo, mas no dualismo, no modo
como uma “res” se torna outra “res”. No entanto, podemos, sempre, con-
cordar que, para o Sujeito, como para a utilidade “científica”, é indiferente
saber qual a “natureza” das coisas, será mais relevante saber como actuar de
um modo “salvífico”, de forma a controlar aquela natureza. Só assim poderia
ser possível conter a própria necessidade de “saber”, satisfazendo o Ego.

128
O FisióSOFO

Para Berkeley, o “materialismo” não explica o “porquê” de uma reali-


dade fenomenal prenhe de continuidade. Para o filósofo, esta é criada por
um Deus cheio de bondade, cabendo nele o jogo das intenções. Essa não é
para ser negada, deve ser aceite, até porque aquilo que não existe para o “Eu”
pode existir no espírito percipiente de um outro. Claro, para o materialista, a
existência de Deus nada acrescenta, parecendo a realidade tão inexplicada
quanto segundo a perspectiva “concretista”. Não terá sido Berkeley vítima
das mesmas abstracções a que ele alude na introdução do seu «Tratado do
Conhecimento Humano»? Pode, inclusive, a moral ganhar alguma coisa com
a referência à deidade, não subsiste, de qualquer modo, uma natureza “con-
creta” que se justifica a si mesma?

A Primavera do Ser é in-escolhida, impensada, outros nos fazem e pen-


sam por nós, nela reside a contenção, a harmonia, a via de um destino fácil e
contínuo. O Verão é mater, rebeldia em que o destino se precipita na escolha
pesada, definida. O Outono é uma ameaça de Inverno, de descontinuidade,
vários destinos vêm para corromper a saudade, permutar as esferas da esco-
lha. O sofrimento traz o livre-arbítrio, a pan-consciência. Sofrer é preparar
um devir. Só a angústia pode decidir. A objectividade é já não haver nada a
escolher. A determinação aproveita-se do conflito e produz a resposta a par-
tir da “razão neurótica”. Todas as decisões são justas, racionais, livres, com-
preensíveis. Sofrer eternamente, disruptivamente, pode, todavia, impedir a
resposta. Outros aproveitar-se-ão, quiçá. Decidindo pelo “Eu” a partir de um
preconceito, impondo uma moral que produzirá, acaso, mais sofrimento.
Decidindo pelo Nada, talvez, adiantando o Inverno, que é trazer a morte,
libertadora, ora terapêutica, ora “fantasmática”, conduzindo ao Inconsciente
mudo, e tragando inúmeras vidas, diversos outros Outonos, que importa que
se tenha “morto”, a vida é sobrestimada, o sofrimento não poderia durar
eternamente, ele não traria nada de bom, e, mesmo que o fizesse, seria um
“bom” prestes a perder-se, a transformar-se num “mal”, porque a vida é
mutação dual constante, e, assim, compensar é igualmente salvar, basta que o
“Eu” se sinta salvo, e matar liberta, não sabemos, claro, se isto “mortifica”
duramente o futuro, não sabemos, sequer, se existe futuro, porque, se tudo
acabasse momentaneamente, seria mais fácil decidir, mas, aí, já o fim seria

129
Luís Coelho

um começo, novel Primavera, em que nada há para fazer senão obedecer à


Lei, ao conforto fantasiado. O Nada da indecisão é o que custa mais a passar,
ele insatisfaz perigosamente, pelo que a sua resolução é, também, a menos
sensata, a mais arriscada, aquela que afia o futuro de outros “nadas”. Mas,
absolutamente, esta é uma escolha imediata, ela salva à medida do Senhor,
ela é o intrínseco Sujeito, Espírito, amaldiçoando os “escravos”, futuros der-
rogadores do destino. Um pensar é passar da queda do “Que hei-de fazer?”
para a elevação do feito, do facto, do Objecto real, da matéria-prima, a pró-
pria pergunta é um feito, que transtorna a Realidade que tolda as vítimas do
perguntar e transforma o perguntador num respondido inerte. É o “escravo”
que faz a Realidade, trazendo o novo Absoluto, onde tantos se desfazem e
duvidam. E cada desfaçatez é um outro Absoluto, são realidades emprenhan-
do-se num É intransformante, porque tudo sempre lá esteve, e mais não é do
que Sujeito percepcionando. E o que É é perpetuamente para trás, recons-
truir o Passado é, ainda assim, construir a queda no firmamento, na nova
lente do Agora.

«– Habermas: Não pode haver intelectuais se não há leitores.


– Leitor: Não pode haver leitores se não há intelectuais.»

Se damos o benefício da dúvida, acabam duvidando de nós. Ainda bem!


Para que não restem dúvidas...

Gosto de pessoas mal resolvidas. Resolvem, sempre, melhor as coisas.


Exceptuando, talvez, quando não me resolvem. Aí, escolho satisfazê-las. Pode
ser que não dêem por mim. Se derem, não responderei por outrem.

Para uns, o prémio cria a qualidade; para outros, o prémio destrói a


qualidade. Só para alguns, a qualidade é o prémio.

130
O FisióSOFO

Alguns só sabem a sorte que têm quando lhes sai a Sorte grande. Têm o
azar de aproveitar a oportunidade e de viver o momento. A partir daí, tudo é
conquista.

Nunca interrompam o meu trabalho. Não se deve acordar um sonâm-


bulo. Especialmente quando está a sonhar.

Para o Homem, só a pensão de invalidez! O exílio é bom demais.

Uma reacção “a quente” de um político vale mais do que mil reacções


diplomáticas. Se todos esquentássemos mais vezes, não teríamos de fingir o
“calor”, que é como uma máquina ventiladora em Era de gelo.

Um político que se passa com um cidadão faz-me acreditar, de novo, na


política.

Este é o mundo da contingência, em que Tudo é e não é em simultâneo,


estamos convertidos pecaminosamente ao corpo, à esfera empírica, e é dele
que sobressai a Razão afeccional, e o Ideal que mais não é do que crença tra-
vestida. Um corpo subjugado constrói uma Razão dominante que, mais tar-
de, se revela doxástica. Toda a Razão noética (Platão) é, como sabemos, uma
Doxa, basta ver que o Uno é múltiplo e que tudo muda pela intrínseca ordem
do pensamento. O sentir, a fé dos teólogos, é, igualmente, uma força doxásti-
co-racional que imprime a transformação. Tudo é Deus pensando, na linha
empírica do caos, a Razão pura é inalcançável, estamos destinados à práxis,
ao devir das sombras. Aristóteles entendeu que a Razão dianóica, a ciência,
seria, decerto, a coisa mais pura, claro, a lógica cresceu, e ela repudia a obser-
vação, mas faz-se dela na dialéctica, que é lógica carnalizada.

131
Luís Coelho

O método dialéctico, em Platão, é uma violência, só agora compreen-


demos a posição dos sofistas, bem como a emergência da sua verdade,
obviamente, em absoluto, só há uma Verdade, mas o reino dos sentidos
retrata, precisamente, a incapacidade de a alcançar, de a segurar com plena
objectividade, quem o faz passa por ditador, patriarca que submete o outro à
falácia, à incompreensão, ao estertor das razões devassando-se. Assim, a Noé-
sis platónica mantém-se na posição da mutação concomitante, alguns tra-
gam, nela, a Natureza, o a priori titubeante, outros conduzem o próprio
empirismo à condição absolutizadora, o mundo são sensações, como dizem
Condillac ou Helvétius, só podemos conhecer o que nos foi reservado pelo
pecado original, o qual apartou o homem do Espírito, criando o inerente
Incognoscível.

Para o espiritualista, a Intuição é a i-Razão plena, a sensação é, somente,


uma consequência empírica, o mundo engana-nos e impede-nos de obviar o
Incognoscível. Para o materialista, esse Incognoscível, por o ser, é irrelevante,
inútil, não podemos, sequer, provar que ele existe. E o mesmo acontece com
a Verdade plena, porque o que diz tê-la atingido pode, por sua vez, ter sido
iludido pelos Sentidos, há, apenas, razões, e a Razão plena é inalcançável e
intransponível. Toda a Consciência é de algo, se refere a um Objecto desco-
nhecido, ser Espírito é ser o Objecto, mas, para a matéria, há, somente, Sujei-
to concreto, sentindo, a partir da Natureza irrecuperável, como do momento
que se constrói e muda no instante. Muitos acharão conter a Verdade, mas
este é um paradigma, entre outros, e a Razão dominante não é, portanto, a
Noésis, mas, tão-só, uma possibilidade noética, uma intuição que se perfaz
de corporeidade. O Domus é a Razão no sentido hegeliano, ela constitui um
devir, é o aspeito de um modelo singular, subjectivo, que (des)compensa
inúmeros seres e burila diversos Princípios demiúrgicos.

Para o materialista, a Realidade só precisa de ser obviada empiricamente.


Porque tudo o resto é irrelevante. Mas é a própria subjectividade que conde-
na a visão estritamente realista. Sobretudo no que respeita à realidade “esta-
tístico-probabilística”, à vertente humana. A physis é, de algum modo, captu-
rável, mas isso não acontece com a natureza humana, em transformação

132
O FisióSOFO

constante. A Noésis é o que É, quem diz que a possui está, decerto, a ser
enganado pela esfera empírica, porque nós estamos condenados a viver na
nossa escala. Uma escala de visão é uma limitação tética, ontológica, com-
pondo uma parte insignificante da coisa em si. O que conseguimos “reduzir”
pode ser expresso pela lógica. O que é mental ultrapassa, pelo menos por
agora, tal redução “analítica”. As ciências humanas assumem a subjectividade
como parte inexorável da investigação. O sujeito faz parte do próprio Objecto
que se investiga. E investigar, como agir, é transformar a razão ética, o intrín-
seco Humano. A Razão noética não muda, transmuta-se, sim, a razão no
sentido hegeliano. As ciências naturais tentam retirar o humano da equação,
quando agarram uma Realidade, comummente a assumem atomisticamente,
como última. Não sabem, no entanto, se estarão a ser enganados pelo empíri-
co. Mas o engano é intrínseco ao Humano, e ele inclui-se no movimento, na
práxis, que transtorna o inerente h/Humano. Por isso, a realidade muda
constantemente, como o alvo de uma intervenção social. Também mudaria a
prescrição social, o “meio-termo” aristotélico, o algoritmo de menor sofri-
mento, actuar no Humano, conhecê-lo, é fazer crescer a Escala de observa-
ção, é assumir mais devir, e desocultar mais passado, multiplicando as solu-
ções, mutando a re-solução que se presta a partir de um Nada. Este Nada é a
assunção da dificuldade em controlar as diferentes variáveis, é admitir a fra-
queza da visão empírica, a passividade actuante de um passado que se recons-
trói perfidamente. Pensar na solução é, já, puxar o mundo para um outro
estado, novo design ético, o que transmuda o alvo, o algoritmo, a realidade. É
tecer um novo modus (des)compensante, o que pode levar muitos a acredita-
rem ter alcançado a verdade, pacificando, assim, a sua relação com o mundo,
mimetizando o Princípio, desocultando a memória de um tempo que nunca
se viveu e de um mundo que permanecia por desvelar. Também, aqui, reside
a ilusão, como no que caminha sabendo que nunca deixará de o fazer.

A Razão dominante é temporal, ela ensaia um devir onde se constituirão


vários Princípios mais ou menos conformes com o Colectivo. A primeira
mimetiza o Absoluto, a própria Natureza compensadora, na qual uma maioria
doxástica elege a physis como Realidade última. O Absoluto é ser eternamente
fora, uma Norma pacificadora, reproduzindo a inConsciência, a ausência de
relativismo, é o Presente tornado Ele mesmo, ultimado. O descompensado
voga na razão neurótica, talvez, aqui, possa perceber que não existe realidade

133
Luís Coelho

última, e que o Espírito é sempre matéria por desvelar. O materialista neuróti-


co sente, como ninguém, o peso da Necessidade, a pressão para escolher, sabendo
que a escolha é sempre vã, que ela pode, no máximo, reproduzir a ilusão de
um encontro “espiritual”, no cerne do qual a matéria se considera como con-
sequência de um processo que o neurótico repreende enquanto projecção,
resultante do corpo. Se a compensação “espiritual” ocorrer, pode ser que o
sujeito se objectifique, projectando a necessidade de prosseguir uma ética “do
escravo”, em preparação de um outro mundo. O estado de i-resolução neuró-
tica pode, quiçá, criar a desconfiança face a todos os modelos. Deixa, sim, de
haver dúvida de que qualquer paradigma surta efeito. Sabe o neurótico que a
resolução “terrena” nunca pode ocorrer, porque tudo é mudança constante.
Poderia advir, daqui, a compensação “espiritual”, relegando para outro plano
o que não pode, jamais, ser conseguido neste. Sabe, também, o neurótico que o
Céu não existe, e que toda a moral é vã. Alguns remetem a deficiência do eté-
reo para a necessidade de sublimação de uma moral que, às tantas, é desenhada
enquanto salvífica, urgindo, então, a Razão dominante, que o “neurótico”
remete a “uma entre muitas” e que o “espiritual” poderá abraçar e prescrever,
sugerindo, consequentemente, o prolongamento de uma moral prescritora,
como de uma acção conforme o objecto almejado. Mas esta moral, acaso a do
“outro mundo”, é precisamente encarada como “dogmática” pelos desadapta-
dos, quiçá os que entendem ser requerida uma ética “terrena” precisa, que, por
sua vez, também ilude enquanto mimetizadora de um Absoluto.

Também sou gago. Acontece sempre que tento ficar em Silêncio. Quan-
do conseguir, chatearei muito mais. Comemorarei com a bandeira branca. Se
cá estiver.

Se um gago chateia muita gente, um mudo chateia muito mais. Uma


Petição pelo Silêncio, se faz favor! A favor do Paraíso africano, e da cor da
Singularidade. ENTREtanto, um Pai-Nosso pelas vozes e interpretações. E
muito tempo, sobretudo, muita paciência. (10/10/2019)

134
O FisióSOFO

Cada gaguez é uma gaguez. Não há duas gaguezes iguais. Se se calassem


perceberiam isso.

{A minha pátria não é a língua portuguesa}


Não, a minha pátria não é a língua portuguesa. Essa tomei-a de emprés-
timo, aliás, foi-me imposta, e amo-a por isso mesmo. Mas tal não me impede
de amar mais o Silêncio. Porque só este permite justiçar, decisivamente, his-
tórias de conquistas, amargores, o desacato constante com uma coisa que nos
transcende e justifica. Nós não somos portugueses, uma nação é um estado
de espírito, até o “humano” é mera condição, Deus nos livre de não sermos
livres de tentar abandonar-nos para que a Deus cheguemos e possamos ser
livres de todo o desejo de abandonarmos aquilo que nunca chegámos a ser.
O pior nisto tudo está mesmo em querermos ser “algo”, o que implica,
sempre, estar em desacordo com “outro” algo. E é esta obsessão pela identi-
dade que cria a multiplicidade de interpretações, com cada um a querer ver-
ter a sua “vericidade”. Verdades há muitas, seus palermas! E se quisermos
recuar à Origem, não cessaremos de o fazer. É impossível redimir completa-
mente o passado, é irrazoável tentar encontrar o primeiro eco, não deixareis,
nunca, a interpretação. E o esforço vitima ainda mais, gera uma dívida moral
ainda maior, o que, per se, cria mais necessidade de recuo.
Perante isto, bandeiras, cores, ideologias, nada disto me assusta, eu nem
procuro identificar-me com o que quer que seja, porque é facílimo tolerar as
construções sociais, é mesmo disso que se trata. A própria democracia é uma
construção, é um acordo, um contrato, e a deputada Joacine Katar Moreira
foi eleita segundo as regras. Mostrar uma bandeira da Guiné é um exercício
desnecessário, mas igualmente irrelevante, de patriotismo “estrangeiro”. Ofen-
de muitos, percebo isso, mas, a mim, ofende-me mais que Valores mais
amplos não sejam respeitados porque domina um preconceito. E, sinceramen-
te, entre a bandeira “portuguesa” e o direito democrático, prefiro o segundo,
porque este é mais abrangente, mais “livre”.
É vero que também eu sou escravo da democracia, e que, nascido depois
do 25 de Abril, não compreenderei adequadamente os valores “patrióticos”.
Ah sim, porque os que, agora, conspiram contra Joacine são, essencialmente,
os “velhos do Restelo”. E os que se colocam a favor dela são, como dizem
muitos, os “esquerdalhos”. É verdade que, de facto, não me identifico com a

135
Luís Coelho

bandeira nacional, e que me acho no direito de não saber o hino. Nunca


gostei de “mortos-vivos”. Tal-qualmente não gosto de futebol. E acho o
Ronaldo uma irrelevância. É proibido? Seja! O acto de Joacine é de rebeldia.
Tudo começa por aí. “O mundo é composto de mudança.” E não preciso do
“Quinto Império” para nela participar. Ou talvez deva ser indiferente, mes-
mo perante a democracia. Porque é um Sistema entre outros. Sim, sou um
anódino, não tenho sal, mas, ao menos, não me ponho a assinar petições
mesquinhas. Também sou gago. Mas eu gaguejo na tentativa de me calar.
Porque, se um gago chateia muita gente, um mudo chateia muito mais.
Outubro de 2019

Deixei um post-it para a minha próxima encarnação. Dizia “post out”.

Quem rejeita diz sempre que está cansado. Porque cansa dizer que se é
rejeitado.

“O movimento é a vida do corpo.”


(Plotino, 2ª enéada, «Enéadas»)
Em Plotino, é a matéria que contamina a Forma, onde o devir é rectilí-
neo mas não apaga a Circularidade macroscópica, bem como o Uno que
existe tanto no centro das coisas quanto na Totalidade que ultrapassa o cam-
po da ilusão terrena. O Intelecto é divino e sobrepuja a demiurgia da Alma,
divina e sensitiva, a partir desta, gera-se o erro, que é bafejar a multiplicidade.

Contrapondo ao eterno retorno, à ilusão que o enforma e que nos aco-


mete um caminho de interpretação incessante, valorizarei, desde sempre, a
“escolha” céptica, que Pirro ou Sexto Empírico defendiam enquanto modo
de chegar à serenidade, e que, bem vendo, é a única opção justa perante a
“equipotencialidade”, injusta, ainda assim, porque vínculo à superfície empí-
rica, à área sensual condenatória, diante da qual o mutismo perfeito só pode-

136
O FisióSOFO

ria sobrevir com a morte. A ataraxia é, assim, uma suspensão do juízo ilusó-
ria, uma tentativa de matar a profundidade racional, para que possa soçobrar
o “exterior” remanescente. Mas este “exterior” não cessará de ameaçar o
céptico. Pudera ser este dono da almejada tranquilidade, há quem defenda
que o dogmático também poderá ser seguro de si, sobretudo se o seu “dog-
ma” convergir com a identidade, própria e alheia, afecta à tolerância. Esta
resulta naturalmente do enlace de uma physis securizadora. Mas, se, no dog-
mático, existe uma crença adaptativa, no céptico, a crença é menor e o juízo é
evitado. O cepticismo resulta de uma desistência em encontrar a “evidência”,
pode ser, entretanto, um modo de evitar a Culpa da escolha, da decisão. O
evitamento da decisão poderá criar, também, ansiedade, mas esta não durará
muito tempo, sendo que a serenidade poderá sobressair, um pouco à imagem
do processo meditativo.

Talvez a meditação seja mais nadificadora do que a opção pirrónica, a


segunda confia e aceita melhor a realidade empírica, mas sabe que é impossí-
vel prover racionalmente a última. Quem o faz arrisca entrar num perpétuo
jogo defensivo. O enlace céptico da “aparência” é de mote a aceitar a realida-
de sensual, fenoménica, sem que exista o ensejo de a desvelar por inteiro.
Qualquer solução é considerada tão boa quanto qualquer outra. O “seguro
de si” escolhe, ainda assim, encontra o seu “Arché”, não necessitando de o
defender dogmaticamente, nem de se mortificar.

Tanto o céptico quanto o dogmático não estão completamente livres de


serem feridos pelo “exterior”. Mas acontece o mesmo com o “diferenciado”.
Este representa o Conhecimento adequado, o dogmático é a própria Razão
dominante, e o céptico é o Nada.

É sempre bom quando um professor ataca violentamente um aluno.


Acaba com a concorrência na profissão, aliviando as consciências.

137
Luís Coelho

Um professor que agride violentamente um aluno vem redimir muitos


capitais de frustração. Este foi suspenso, outros reformam-se compulsiva-
mente. Amanhã, muitos se aliviarão, fingindo compreender os pobres miú-
dos. À custa de um mártir, martirizarão a própria adolescência. Chamam-lhe
“educação inclusiva”. (21/10/2019)

A nova moda é os homens andarem de saias. O que é antigo é achar que


isto é ser livre.
Os oradores romanos usavam túnicas. Pregavam boa retórica. Mas serem
estóicos era a sua liberdade. Também prezavam a sodomia. Alguém dê Cíce-
ro a ler ao “Livre”. Ou será demasiado machista?
Alguns rejubilam porque foi de saia. O que eu queria era uma política
nua. (25/10/2019)

É comum tanto ao Epicurismo como ao Estoicismo a valorização do


Equilíbrio indiferente anelado pelo recontro com a Natureza virtuosa. O mate-
rialismo no Epicurismo consigna o atomismo, sem determinismo. O atomis-
mo visa o reduccionismo, o libertarismo é alçado pela natureza caótica desses
elementos. O primeiro preza a confiança no “sensível”, o epicurista despreza a
importância do Divino. Quanto ao “sensível”, ele é o que É, somente o julga-
mento se pode enganar. Se não for possível julgar adequadamente, deverá ser
aceite a igual tolerância para com todas as hipóteses. Esboça-se, assim, uma
“indiferença”, que é a Virtude dos justos. No epicurista, a primeira estende-se à
aceitação “corajosa” da morte. No estóico, a “indiferença” brota da virtude,
que é viver no acordo racional com a Natureza. Se a virtude epicurista convida
ao “prazer” harmónico, plácido, no estoicismo, a felicidade é a própria virtude.
O estoicismo é determinista, e a Forma aristotélica é encarada como corpórea,
enquanto Sopro. O virtuoso limita-se a seguir a Razão natural tal como desti-
nada. A pacificação “indiferente” estende-se à própria vida, as escolhas serão
somente um modo de lidar com a desarmonia do mundo, de resto, não impor-
ta escolher, mas unicamente viver, ou, até, negar a vida, se esta perder a razão
de ser.

138
O FisióSOFO

“Pavilhão Rosa Mota - Super Bock Arena” é melhor do que “Super


Bock Arena - Pavilhão Rosa Mota”? Talvez o problema seja do parceiro. Será
que a Sagres já não se importava de ficar por baixo? Activo, passivo ou versá-
til?, eis a questão!... (28/10/2019)

Interrompi a minha leitura das Epístolas de Paulo e reparei que, na net,


milhares partilham um artigo de um jornal supostamente sério escrito por
um garoto, filho de um gajo importante, com o nível de uma composição do
ensino básico feita por um miúdo diagnosticado com deficiência intelectual.
Que um pasquim publique uma porcaria superficial porque tem um pai
mandatário, entendo, o que não entendo é que tantos dêem importância à
coisa, ao ponto de haver quem ache que os críticos da mesma coisa têm inve-
ja do menino. Há quem congratule o rapazinho pela análise, qual análise?, da
situação do país, quando o dito artigo só demonstra azedume e confusão,
leviandade sem limites. Mas, repetindo-me, como foi possível chegar a este
ponto, a um estado em que um artigo destes viraliza, quando, nas prateleiras,
se acumulam os livros dos filósofos? Expresso, também, o meu azedume.
Porque não sei quando perdemos o rumo e passámos a ter leitores desta
categoria. E não há ninguém que queira apontar o dedo à mesma educação
que forma um garoto que, por sua vez, se queixa das poucas oportunidades
de futuro e da pequenez dos direitos. Isto é muito triste. E lembra-nos por-
que existe a presente inversão de Valores. Curiosamente, o garotinho queixa-
-se da falta de Valores, não entende que mesmo ele é epifenómeno de uma
Sociedade hodierna que plastifica o pensamento. É difícil acreditar que certa
Direita defenda o menino, porque defensar um texto destes é cobrir-nos de
vergonha. Eu tenho vergonha de um país onde um texto pimba vende mais
que uma reflexão legítima. Isto é um atentado ao Saber. Porque prova que,
para se ser ouvido, só é preciso ser ignorante. Parabéns criança, conseguiste
mais do que muitos que estudam durante décadas. Já não precisas de te quei-
xar. Quanto a nós, não merecíamos isto! (03/11/2019)

Deus-Logos (Orígenes) é o Cristo Jesus, Razão segundo a Tríade Essên-


cia » Inteligência » Razão (vide Pseudo-Dionísio Areopagita) [Em Plotino,
temos Uno » Nöus » Alma]. A Tríade é Pai » Espírito Santo » filho; a síntese

139
Luís Coelho

é, segundo o Pai, sua extensão. Para o materialismo, somos filhos rejeitando,


matando, o Pai. Este não se defende, é Silêncio, tão-só. Para mater, quem cala
consente... que o dogma seja vencido pela positividade.

Justino, cuja «Apologia» (do cristianismo face aos romanos) é, em tudo,


semelhante à de Tertuliano, salienta, em «Diálogo com Trifão», que o Cristo,
a Sabedoria, o pensamento de Deus (Logos), é prévio face a Moisés, e que o
Senhor que a este aparece, como a Abraão, não corresponde ao pleno Divino,
o qual não possui expressão, ou cognoscibilidade, possível. Jeová é, como
sabemos, um demiurgo, que o cristianismo secundariza face ao Divino infi-
nitamente livre. O Verbo concebe a Lei, bem como o pecado, renovado com
Cristo Jesus, o qual fez “tábua rasa” do desvario antecedente, reiniciando o
processo “empírico”, baseado na nova Razão crística, que a Patrística dogma-
tiza como a “certa”, a “perfeita”, necessidade face à moral. Alguns autores
concebem Deus como o inerente Criador, outros balizam o território demiúr-
gico face a um outro, indeterminado. Nenhuma das possibilidades mata o
determinismo carnal, como nenhuma destrói a visão necessária da escolha
livre da acção, performadora do mérito que constrói certo saldo moral. Esta
“escolha” é determinada pela necessidade ética, ilusionismo humanista que
não se consubstancia com a realidade eidética, na qual tudo se constitui
enquanto destino inolvidável. Por outro lado, a “escolha” é, também, vítima
de um destino consciente, não sabemos como prevalecer sem tal arrimo cien-
te, só a ilusão poderá consignar o movimento mais ou menos moderado cujo
sentido é íntimo e recalcitra no intrínseca noção de peregrinação. Mas esta
inclui, tal-qualmente, a descoberta de uma inanição, que é o corolário da
inércia de quem sabe ser tudo “mais do mesmo”, destinação trágica dos
sapientes, vitimados pela própria noção de uma determinação sem fuga pos-
sível, e da consequente impossibilidade de justiçar seja lá o que for.

Gosto sempre de dar a cara quando me acusam de ser vaidoso. Apenas


para lhes provar que não têm razão. E a prova é a Razão.

140
O FisióSOFO

Dizer que se é racional é caso de usurpação de funções.

Finjam que estou morto. Para que possa acreditar-vos.

Discordávamos do valor de cada um. Mas ambos achávamos que o “ser


humano” não nos merecia.

Tenho medo de estar debaixo da minha cama. Espreitei. Vi o lençol,


despejado do corpo.

Relativamente à “Supremacia branca” só tenho algo a dizer: protector


solar e óculos escuros. Para o mal da realidade, óculos a três dimensões, com
as cores da barbearia.

Já cá estou há tempo demais para saber que todo o tempo é demais.

Quando uma deputada se demarca do seu partido sei que ainda há espe-
rança para o partido.

O circo só vence quando os eruditos tentam falar mais alto que os palha-
ços. É queda garantida. Sem rede.

Quando ultrapassamos as dificuldades sentimos que é difícil ser tudo


tão simples.

141
Luís Coelho

Na verdade vos digo que o lobo que sobe a montanha tem menos fome
do que o que a desce.

Quem ferve em pouca água não nos aquece. Mas quem nos resiste
impassivelmente dá-nos uma banhada. De gelo. Acontece, porém, que me
derreto com gelados. E isto seria meritório se eles não se derretessem bem
mais depressa comigo.

Agora que sou mestre quero ter um discípulo. Ensiná-lo-ei para que se
torne meu mestre.
Agora que sou terapeuta quero ter um paciente. Para que eu possa
adoecer.
Quando me tornar imortal, criarei quem me mate.

Não, não quero ser compreendido, isso seria limitar-me. Sou macros-
cópico, o que pisas é a minha saudade. Quando me ouvires será para te jul-
gar, aqui, onde a ressaca se transmuda e a penumbra se enche de orgulho.

Amigos, amigos, Ócio à parte. Na hora do coito.

A Civilização é o resultado do coito interrompido. Quiseram os demó-


nios que o fruto caísse e enraizasse. O tronco quis chegar ao céu, mas Deus
terá pensado “perdido por cem, perdido por mil”. Inventaram-se as línguas.

Sou um incompreendido. Que delícia já não ter medo de morrer!

142
O FisióSOFO

Quem demonstra que a coisa É mostra, precisamente, que ela não É.


Porque se fosse, não seria demonstrável.
Qualquer demonstração é um acto de magia, uma construção do que já
era. A palavra só vem certificar o Verbo eterno e incriado.

O verdadeiro ilusionista não ilude, limita-se a fazer sobressair o que já


está à Vista de todos.

A “geração espontânea” é uma viagem escalar, temporal, involutiva, no


Eterno presente. O seu oposto é a aparente desaparição, retroacção temporal,
evolutiva, quando somente se deu um salto entre escalas naquilo que é
intemporal. A primeira gera a determinação, a segunda parece criar a liber-
dade. Mas qualquer modo de “nada” é destinado pelo Verbo incriado, numa
sucessão infatigável de aparências. A sucessão é eternal, terá dois sentidos,
múltiplas direcções?

Era cozinheiro porque gostava de cozinhar. Um dia tornou-se Chef.


Ficou desgostado.

Tenho orgulho no meu gato. Tentei mudar de lugar com ele. Bufou-me.

Faço amor às pinguinhas. A compaixão é o conta-gotas. Ninguém diria


que sou pinga-amor. Não convém que o Verbo se perca. De outro modo, não
há como fazer cessar a infecção, a doença do amor prostático, a furar o filtro
da ponderação.

A perfeição está em ter todas as hipóteses de merecer o Paraíso. Já este é


pouco oportuno.

143
Luís Coelho

O demiurgo é o modo do gnóstico dizer que não aceita a perfeição de


Deus.

Deus não tem imaginação nenhuma. Só o diabo tem ambições face ao


primeiro.

Deus joga aos dados para que, dele, surja o plasma (Basílio de Cesareia),
que é viciar o jogo das intenções. A criação é necessariamente imperfeita,
doutra maneira seria inútil. Perfeitamente ressurge a Lei, na repetição respi-
ratória, dual. A criatividade é fazer surgir novel Lei, renovado Divino, capaz
de exaurir a responsabilidade face a um outro Deus.

O Espírito é pensar não haver com que fazer algo de novo. Mas pensar
renova a decisão material. Como quem cria a partir da Coisa, em queda
estrepitosa no caudal do Sonho. Quem cai para se levantar é incessantemente
imperfeito, porque repete o erro de querer ser deus.

Repito-me, porque sou perfeito. Renovo-me, porque sou imperfeito.

Um Deus sem ambições é como Vazio incriado. Na aproximação escalar,


pode ser que vejamos ser Deus mero demiurgo repleto de sonhos. Que desilu-
são ter havido tal re-ocultação. O Oculto é haver com que fazer da vida. Quem
pára perfeitamente torna-se Oculto.

O Filho unigénito plenifica a intenção de Deus de se acercar de outrem.


Miserável filantropia!

144
O FisióSOFO

Sem que algo de Superior “exista”, qualquer exercício de abnegação


parecerá inútil, porque se mata a possibilidade da “bem-aventurança”, o
espírito de martírio é, de qualquer maneira, um modo de compensação bas-
tante comum e eficaz, mas ele é de mote a promover o Domínio do Senhor
“liberal”, outra forma de intolerância, a não ser, claro, que surja um Domí-
nio “espiritual” capaz de impor a abnegação. Imposição que será, talvez, útil,
antes de parecer perdulária, perante o Nada de um desapego total. E tanto
mais útil quanto maior for a tolerância, para que a sublimação “liberal” possa
ser esquivada. Obviamente, se a tolerância perante os “maus” for muito
grande, pode ser questionada a vantagem de uma abnegação ilimitada, daí a
sempre importante ilusão da bem-aventurança, de qualquer modo, tolerar
serve a necessidade de transformação dos “maus” em “bons”, esse é o objecto
“espiritual” mais importante da tolerância, permitir que o Domínio cative e
se imponha de um modo quase inconsciente. E o Domínio em causa serve a
presteza de uma Ordem, de uma estabilidade. São os desadaptados que pode-
rão colocá-lo em causa, sobretudo se a tolerância não suprir a necessidade de
afirmação, por ora, realista, positivista, liberal, dos revolucionários. Se o
domínio de mater for estabelecido, como, de facto, acontece no presente,
subsiste o problema do Caos, porque a modernidade “liberal” é de mote a
“diabolizar” as intenções, as ideias, e nem a Ciência poderá conter plenamen-
te o diacronismo dos intentos. De resto, na hipermodernidade, subsistem
diversos aspeitos ideológicos e científicos, uma turba de possibilidades, pode
ser que uma vigore e domine, reanimando a capital ordenação. Há, de qual-
quer maneira, domínios conteudisticamente mais liberais, afectos à trans-
formação, e outros mais “dogmáticos”, que tentam estancar o processo e
soçobram à tentação de controlar o movimento, prometendo a “morte” e a
“pena” para uns, que acabam por ser os desadaptados, e a “Vida” a outros,
que nem sempre esgrimem a necessária tolerância.

«– A: Porque temos de ser bons uns com os outros somente no Natal?


Porque não podemos ser bons com os outros todos os dias?
– B: Porque, assim, o Natal não teria tanta graça!»

145
Luís Coelho

«– A: A taxa de suicídio está a aumentar. Como te sentes em relação a


isso?
– B: Deprimido!»

«– A: Ela estava deprimida, a dizer que se ia matar.


– B: E tu?
– A: Fiquei capaz de a matar.
– B: Porque não o fizeste?
– A: Fiquei deprimido.»

Uma lesão...
Fisioterapeuta “desportivo”: “Não treinou o suficiente.”
Fisioterapeuta “postural”: “Foi treino a mais.”

Se eu ganhasse um euro por cada vez que vejo fazer-se uma asneira no
ginásio comprava um ginásio.

As pessoas que tentam passar-se por aquilo que não são nem sonham
aquilo que podem ser.

Pior cego do que aquele que não quer ver é o que vê.

Quando o que escrevo for capaz de me silenciar, calar-me-ei. Nessa


altura, já não serei capaz de fruir o ruído, Aqui, onde o desejo pelo Absoluto
pesa mais.

146
O FisióSOFO

{O Deus gay}
A propósito da polémica do “Jesus gay”, convém estiraçar alguns itens
prementes, que, de algum modo, marcam a sempre irredutível questão do
antagonismo entre o “Espírito” e a “matéria”.
O Cristo Jesus (Unigénito), enquanto Filho, desdobra a realidade Divi-
na, Ele é o próprio Deus, sua extensão, não é inferior ao Pai. O cordão umbi-
lical para o Homem é representado pelo Verbo, a Lei, que é o inerente Cristo,
anterior ao Homem e seu gerador. O Homem é criado por Deus à sua ima-
gem e semelhança. À sua imagem, porque o Homem também é Divino, o seu
Princípio Era o Verbo. À sua semelhança, porque o Homem tende já para a
“queda” face à Lei, necessária ao caminho de regresso, o qual implica certa
similitude divina.
O Cristo é o agente de activação dessa semelhança. Deus Verbo, desce,
sem que alguma vez perca a divinidade, para abraçar a condição humana, des-
virtuada pelo adversário diabólico. Para facilitar a percepção de uma inteligên-
cia inferior, Jesus veste-se de carne e convive com os homens. Na medida em
que é Deus, à sua imagem, o Cristo não tem sexo, ou, no limite, é bissexual. O
Verbo de cada um de nós, que confere à nossa Origem, é, igualmente, bisse-
xual. É, grandemente, a experiência cultural que permitirá veicular a identida-
de sexual (não desprezando, claro, factores genéticos, embrionários e epigené-
ticos), a qual, se representa psiquicamente no formato de uma diferenciação,
que resulta do diálogo entre o Princípio pré-verbal (aliás, Verbal) e a continui-
dade social que subjaz à orientação dominantemente heteronormativa.
A “norma” heterossexual parece, quase, antagonizar o Princípio bissexual.
Um pouco como se figurasse o “corpo” recusando a androginia espiritual. Mas,
com efeito, no seu quadrante fortemente “patriarcal”, a religião valoriza a “nor-
ma” face à Origem. Porque é próprio do Humano definir-se na “multiplicação”
sexual, reproduzindo a natureza. Esta diferenciação é prévia à necessidade futu-
rável de obliteração do corpo, requerida à plenitude salvífica. Pelo que, no limite,
para o Homem se tornar um “Cristo”, precisa de recuar, de maneira a anelar o
Verbo. Mas este não é o objecto do “materialismo”, da vivência “física”, que, às
tantas, desespera o caminho, e recruta, até, diferentes possibilidades de desenvol-
vimento. É neste contexto que, adversando a natureza heterossexual, outros
modos de identificação podem surgir, por convergência de um Princípio pessoal
assaz “diferente” com a identidade homossexual. Esta demarca o “incesto” sim-
bólico, terror da psicanálise, como da religião; para estas, a homossexualidade
pode representar uma heresia, até porque convida à maturação de novos arqué-

147
Luís Coelho

tipos, renovados princípios sociais. Novos princípios implicam afastamento face


ao Verbo primário, pode, quiçá, levar ao desenho de novos Verbos, tardiamente
atidos na sua “normalidade”. Este é, para a religião, um caminho luciferino,
diabólico, por excelência. E até para o materialismo poderá representar o mes-
mo, porque o “humano” se distancia da Natureza.
Mas quem pode, de facto, ditar o que diz a Natureza? E pode a traição
da mesma acarrear necessariamente o caos e a perda do Homem? A ciência
dá-nos, constantemente, possibilidades diversas de concatenação social e
natural, sem que a identidade sexual precise de ser marcada ditatorialmente.
Mas esta é uma ciência moralmente travestida, que fornece, muitas vezes,
respostas que se revelam, mais tarde, impróprias e desadaptativas. E mesmo
quando a ciência é moral, não sente maioritariamente a obrigatoriedade de
se envolver nestas questões. Mas há, também, a ciência social, que mais difi-
cilmente foge ao tema. E entre esta e a medicina existem poucas pontes de
diálogo, e, a bem ver, uma enorme incerteza sobre o que poderá ser “melhor”
ou “pior”. No limite, se “Deus está morto”, não há uma maneira absoluta de
saber o que é “melhor” ou “pior”, qualquer arquétipo é aceitável, e nem o
Homem vale tanto esforço interpretativo, de qualquer modo, pode ser que a
ciência resolva os problemas de índole “física”, e que a ciência social propicie
a aceitação de outros paradigmas culturais, a primeira pode até autorizar a
segunda, aliás, ela é moralmente isenta, o que implica acarretar o mesmo
relativismo que tolera prolificar diferentes “morais”.
Dificilmente poderá a ciência dar-nos uma resposta “social” adequada,
ela não é, pelo menos por agora, capaz de o fazer, há muitas variáveis que se
contradizem e que, quase sempre, são estudadas separadamente. Os mais
radicais e relativistas defendem que a Natureza pode ser construída social-
mente sem limites, mas isto nada nos diz sobre a “superioridade” de um
modelo face a outro. De resto, quando falamos de “bem”, referimo-nos exac-
tamente ao quê, ao número de vidas, à qualidade de cada uma destas, a um
algoritmo de “insofrimento”? E quando falamos de “moral”, referimo-nos
mais certamente ao “todo”, ignorando a minoria? Deverá o direito do Colec-
tivo fazer medrar o direito da minoria gay? Mas o respeito pelos “fracos” é,
precisamente, um item da ética cristã... No entanto, o objecto desta deferên-
cia com a “minoria” coaduna-se com o respeito pelo Verbo, cujo conteúdo
mandatário visa, sobretudo, constrangir os excessos do corpo, as desmesuras
do vício e do prazer, aliás, apanágio da “materialidade”, a qual permite,
simultaneamente, evolver a ciência balizadora dos efeitos daqueles.

148
O FisióSOFO

A materialidade é, bastas vezes, encarada como “saturnina”, justamente


porque faculta certa leviandade, venialidade. O prazer sem limites não é, à
partida, completamente compatível com o Verbo. Mas “mater” sabe que a
Lei “antiga” é a de um patriarcado preconceituoso. E que a liberalidade
admite criar paradigmas não menos salvíficos, em que a felicidade pode ser
encarada com nova noção de “virtude”. O materialismo sabe que o “bem”
não é incompatível com o prazer e que mesmo a moral não é incompatível
com a noção de recompensa.
Já a ética cristã continua muito arreigada a uma noção de moral isenta
de recompensa egóica. A recompensa é a de um outro mundo de Vida.
Enquanto a heresia será condenada com a morte. Bem vemos que o Cristia-
nismo, e boa parte do Espiritualismo, não confia no porvir social, prefere
manter-se agarrado a uma garantia de moral “virtuosa”, tendo Deus por
fiador. À face da incerteza, é preferível o dogma, a ortodoxia crística. Se ela é
prazerosa tal se deve mais à consequência do que ao móbil. A “moral” parte,
assim, de uma escolha que pode ser facilitada pela semelhança com Deus. Os
“iguais” não precisam de Cristo. Só os que podem condenar-se. E os “efemi-
nados” poderão estar plenamente condenados. Cristo é Deus promovendo a
escolha “virtuosa”. Cristo é Deus sendo tolerante. E essa tolerância pode
abarcar os homossexuais. Até porque um dogma imposto alimenta, ainda
mais, a heresia. Mas a tolerância deve ter limites, não vá cair-se para um nível
onde já não poderá ocorrer salvação. Um afastamento desmedido do Verbo
pode ter consequências avassaladoras. Daí que exista um Julgamento, face ao
qual alguns são “danados”.
É também para prevenir os excessos da individualidade egóica que o
Cristianismo canónico não aceita a Gnose pela qual os homens se tornam
“deuses”. Vigora, de novo, o perigo de se consignarem outras morais pouco
perdulárias. Face à materialidade individualista, diferenciadora, para-sexual e
paradoxal, o Cristo oferece a redenção. E como ela, de algum modo, se aparta
do corpo, como retrocede, é como se o Cristo, e Deus, fosse bissexual ou, até
mesmo, homossexual. Porque o “Espírito” é uma inversão face ao corpo. O
seu prazer é transcendente. Na Eternidade sem sexo, onde o riso, a alegria, se
perpetua intemporalmente. Se Jesus é a compaixão, então ele pode ser o que
quiser. Mas, movido por uma missão, Ele é desenhado, essencialmente, como
assexual, porque é para o Pai que Ele tende. Se é heterossexual demarca a
normalidade aceite, a filantropia, que seria ainda maior se fosse “homosse-
xual”. Mas, para o dogma “normalmente” aceite, Ele é o homem-Deus, e a

149
Luís Coelho

sua “queda” é puramente “humanitária”. Face a isto, a homossexualidade


fica a parecer-se com o “adversário” misantropo. Cuidai que o adversário de
hoje é o Deus de amanhã.
Dezembro de 2019

Sobre “André Ventura”: Não digo que ele não seja pior que os outros,
mas os outros não são melhores.

A via religiosa/exotérica permite servir um Colectivo, à partida e em


termos de objecto, na medida em que é imposto um dogma, uma ortodoxia,
suficientemente robusto e compreensível, capaz de desenhar um intento glo-
bal. Esta Ortodoxia é servida, sobretudo, aos que se guiam menos pela razão.
E ela é o sustentáculo de muitos outros, e também dos desadaptados. Os
últimos, quiçá mais racionais, mais neuróticos, poderão, com certeza, perfi-
lhar um caminho esotérico, mais egóico e adaptado à sua riqueza íntima. À
semelhança do que acontece com a psicanálise, com a terapia seguida de modo
espontâneo e “esotérico”, poderá o Sujeito desculpabilizar-se, tornando-se
Objecto impassível, de uma forma mais consciente e voluntária. A via “exoté-
rica” implica uma crença, e, em última análise, a Fé, enquanto “modus” de
anelar Pater. A via “esotérica” implica que o “Eu” se torna Pater, o que, mesmo
não dispensando a Fé, cria uma ameaça maior à estabilidade de um Colecti-
vo. Mas a ameaça só leva à sublimação de novel Pater se o “Eu” não puder ser
satisfeito, desculpabilizado. Aí, o “Ego” gera o seu intrínseco Verbo.
Na medida em que o “Eu” se aproxima de Pater, atemos uma materiali-
dade “espiritual”. Já o estado de descompensação consigna uma forma de
materialidade “neurótica”, proa de transformação. Nesta, persiste a cons-
ciência “subjectiva”, no risco de psicotizar. Em Pater, persiste a Consciência
“objectiva”, no risco de se envolver numa transcendência psicotizadora. O
Dogma é inConsciente, a sua Razão é uma alavanca identitária. Quando esta
falha, por defeito ou excesso, a razão idiossincrática toma a dianteira, quiçá
neurótica, acaso sublimatória. A Razão tem sempre algo de emocional, cren-
ça, ela é uma tentativa de responder a uma necessidade adaptativa que se
estende para além da imediaticidade “emocional”, que, de resto, preenche as
lacunas “positivas”, elementares, da razão temporal.

150
O FisióSOFO

O Terapeuta/Criador é o Agente do Domínio, Ele apela ao Verbo e tan-


ge o seu Segredo. O paciente/criado é o paciente “racional” que resiste, even-
tualmente, ao Ideal agónico. A sua razão é depreendida do seu Princípio
familiar. Se este se afasta muito do Princípio do Terapeuta, é possível que ele
abarbe e sublime. Mas se existe proximidade entre os Princípios, mais facil-
mente poderá existir conversão. A verdadeira transformação é “sentida”, é
íntima, ela advém provavelmente da proposta terapêutica assertiva. Mas pode,
também, advir de uma imposição Verbal. O Domínio de Deus não pode, em
última análise, ser racionalizado. A mente resiste-lhe, sobretudo se o Princí-
pio familiar se distanciar da Ortodoxia, o papel do “Verbo” está em apontar-
lhe o caminho. Bem sabemos que acaba por haver imposição dogmática, mas
a genuína desocultação terá de vir da Graça, não sem que haja algum ímpeto
“livre”, o qual depende, mais uma vez, da imagem e semelhança com Deus.
Claro está que, para o materialista, não havendo “Graça” ou “Espírito”, não
existe, tal-qualmente, liberdade a partir da qual possa prover-se aquele ímpe-
to, toda a moralidade depende do efeito futuravelmente superegóico do
Domínio sobre a razão idiossincrática. Este “Domus” passa, assim, por um
Ideal “racional” a atentar contra o suposto “livre-arbítrio” do Ego. A resul-
tante é a Culpa, a razão neurótica estratificadora da relação terapêutica. Com
obviedade, somente a Natureza “material”, a physis, poderá representar uma
limitação ao advento da multiplicação de “razões”, já que, recusando o
“Espírito”, todas as “razões” têm igual direito a existir. Para o “Espírito” até
mesmo esta asserção passa por ilusória, sub-entendimento da Verdade, por-
que a mente não pode apreender o Oculto, o mistério de Deus, e negá-lo é
vencer a mente “racionalmente” diabólica, o adversário mefistofélico que
atenta contra o equilíbrio e a virtude, na propagação de possibilidades falsa-
mente salvíficas. Claro, mater não acredita no imensurável, e pressupõe que o
dogma “espiritual” corresponde a uma gigantesca projecção Inconsciente -
Superconsciente, necessidade de substanciação de uma moral “colectiva” que
permitisse defender o “sábio” face ao “dionisíaco”. Obviamente, dá jeito a
qualquer um prover-se de uma Palavra, assegurando a sua correcta interpre-
tação e propagação. Quiçá seja um justo Cristo, mas a apologia da Fé já não
cola. Presumivelmente, será encarado como charlatão pelo “materialista”,
que recusa toda a especulação. Não havendo como provar a emergência da
Palavra, o Caos urge no horizonte, e muitos satisfazem-se com a promessa do

151
Luís Coelho

julgamento, com a segunda vinda do Cristo. Mas somente nós nos julgamos,
consecutivamente, com base nas referências que disparam imerecidamente.
A determinação, único palanque genuíno da “materialidade”, justifica-nos,
ainda assim, tal como legitima a aproximação à Palavra universal, o que não
implica maior Ordem.

{O Ser do Corpo. Da Ética (cristã) em Fisioterapia10}


Abstract
O exercício terapêutico é, acima de tudo, uma actividade espiritual que
concilia ética e “clínica”, moral e técnica, com vista à transformação do
“ente”, com base numa relação que, ora, parte do Verbo, do dogma, preten-
dendo a sua consumação mais ou menos espontânea, ora desemboca na con-
substanciação de uma nova moral, prelúdio de inúmeras mutações. Em ambos
os casos, a terapia não se resume ao corpo “físico”, mas subsidia o “corpus”
psicossocial, o Colectivo, bem como a Unidade transcendente, impassível, que
extingue a dualidade terapeuta vs. paciente.
Palavras-Chave: Ética, Espírito, Verbo, Cristo, Fisioterapia, Relação
terapêutica
Para muitos profissionais de saúde, a Ética consigna uma “mathesis”
esquiva ao objecto intrínseco da própria intervenção terapêutica, ela parece
acrescer-se ao corpo “técnico”, como “Vénus de Milo” tragada por um “binó-
mio de Newton” que inclui simultaneamente a arte e a ciência do que se pra-
tica. Nem sempre se entende que a Ética é bem mais do que excrescência
artística, epifenómeno filosófico considerado muitas vezes incompreensível
ou intraduzível, abertura para questões tantas vezes insanáveis. A Ética é
comummente separada do objecto especificamente “clínico”, atida como
“práxis” inquietante que se intromete na necessidade de solvência imediata
de um equilíbrio físico, quando, na verdade, toda a Clínica é feita de Ética, a
Clínica é a própria Ética, na medida em que esta, bem como a filosofia em
geral, visa a Saúde de um “corpus” bio-psico-social e espiritual, que não pode
nem deve ser reduzido à “matéria”, no seu sentido estritamente elementaris-
ta.
10
Dezembro de 2019, publicado em «Triplov», Maio de 2020, e, a primeira metade, em
«Biosofia», n.º 49, Centro Lusitano de Unificação Cultural, 2020.

152
O FisióSOFO

Não seria, de todo, desconforme para o pensamento clássico, pré-


-científico, obtemperar nesta visão totalizadora. De facto, não se trata de ver
o corpo para além da perspectiva estritamente “fisicalista”, incluindo, por-
tanto, as dimensões dialéctica, psíquica e idealista. Este holismo que muitos
estranham no mundo hodierno perspectiva a saúde nos seus termos globais,
espirituais, transcendentes, e relativos a um “todo” inter-pessoal; pelo que a
verdadeira Saúde não se resume ao estado de equilíbrio de um corpo-mente,
passa, igualmente, pela harmonia do Colectivo, aquém e além da realidade
“positivista”. E passa necessariamente por um equilíbrio que abarca a visão
moral, porque, classicamente, a moral implica este equilíbrio “holístico”, a
permanência do maior estado possível de insofrimento.
A visão especificamente clínica recolhe da modernidade positivista boa
parte do seu combustível negligenciador da Consciência. A necessidade de
separar, categorizar, faz as vezes do liberalismo científico-económico, à custa
do esgotamento psicossocial do Sistema. Este visa, de facto, o bem-estar, mas
reduzido microscopicamente à individualidade favorecida, em tom feérico e
permutável, impermanente, glosando a possibilidade de requerer um para-
digma mais envolvente. Este “materialismo” exultante e excessivo convida à
transformação, à instabilidade, e, no limite, ao caos. É, na melhor das hipóte-
ses, um portal de liberdade, mas que pode dirimir a liberdade de muitos
outros.
É certo que a mesma ciência “liberal” poderá ajudar na solvência de
diversos aspeitos psicossociais comprometidos, talvez ela tenha algo de
robusto a dizer, mas isso é pôr o carro à frente dos bois. Por outro lado, a
acção dessa ciência não se afasta, de todo, da consecução de uma Natureza,
de uma “physis” moral, e, se o fizer, é à custa de uma variância empírica difi-
cilmente discutível, porque ainda especular.
Perante a “clínica”, atemos o diferendo da “dialéctica”, do sempre trans-
formável equilíbrio psicossocial, que, como já dissemos, não pode continuar a
ser encarado nos termos do, meramente, “individual”. Ademais, subsiste a
questão “ideal”, pós-moderna, que se resume na forma como o profissional
constrói o paciente e vice-versa.
A moral é, precisamente, requerida à visão do Colectivo, de uma har-
monia nimiamente demiúrgica que afecta um caudal de “individualidades”.
Ela é a Saúde, porque esta não se limita a um corpo. E ela é, até, mais do que
“matéria”, porque recruta um nível subtilíssimo da subjectividade. E é na
medida desta, e na medida da liberdade, que a moral apela a um constructo

153
Luís Coelho

“prévio”, “deôntico”, do agir. Se é “deôntico” é porque visa um “fim”, e para


este concorre uma ética, na qual o profissional, o terapeuta, actua enquanto
“demiurgo”.
É por amor e compaixão que um terapeuta age sobre um “paciente”. Ele
é, também, o paciente do paciente. E ambos os “pacientes” se enamoram
para que morra a necessidade. O terapeuta “perfeito” mata o seu paciente.
Mata de amor, em nome de uma coisa maior. Já não se trata (só) de recupe-
rar fisicamente o “indivíduo”, trata-se de criar um conluio que vise um
determinado objecto “ético”. No limite, ele é a abnegação. Mas, à maneira da
modernidade, ele é, no mínimo, o alcance da Natureza moral impassível.
Mas para que isto ocorra é fundamental que o terapeuta aja como
extensão dessa natureza. Porque, se “usar” o “paciente” enquanto meio de
compensação, arrisca neuroticizar e neuroticizar-se. O “paciente” não é um
objecto, porque é o Objecto. Enquanto Sujeito absoluto. Mas, invertendo a
questão, e aventurando a profissão do dogmatismo, podemos imaginar o
“terapeuta” enquanto “Pai” e o “paciente” como “Filho”. O “Filho” não é
inferior ao Pai, mas está na relação “queda” com o mundo. Ambos são divi-
nos e se concretizam num Verbo prévio. Porque No Princípio Era o Verbo. E
o Verbo estava com Deus. Mas tomar o “terapeuta” como Deus é, talvez, ir
longe de mais. Não que o terapeuta não queira, frequentemente, fazer as
vezes de um “deus”. Mas Deus é Liberdade, não é imposição. O intento de
“transformar” deve ser espontaneamente aceite pelo paciente tornado Cristo.
E já o “paciente” não é paciente, é, também, agente, preponderando a mudan-
ça de muitos outros.
O terapeuta é a figura da compassividade. Se se exalta, cai. O Verbo é a
impassibilidade, mas ele quer tornar-se “Deus”. Quando o “paciente” passa a
“agente” está a tornar-se “deus”. Esta é a função da liberdade. Porque a acção
de Deus é movida pela Graça. E é esta que permite a transcendência, o ven-
cimento de todas as carestias. Se “deus” se exaspera, temos queda certa. Cui-
dai que o “paciente”, para o ser, está aquém do Verbo. É um anjo caído, mas
a “semelhança” com Deus poderá permitir anelar a “imagem”. Nisso, o tera-
peuta ajuda. Mas, se o terapeuta se procura harmonizar, como é bastas vezes
comum, então, atemos dois pacientes em possível rota de colisão. Ao invés
de termos um corpo “Uno”, densifica-se a “dualidade”, e isto é precipitar o
naufrágio.
Em religião, a ortodoxia é uma emergência de salvaguarda do Colectivo.
Uma cedência pode fazer perder muitos indivíduos aprioristicamente “sal-

154
O FisióSOFO

vos”. Mas o dogma, a imposição, particularmente em terapia, pode levar à


resistência. Se o terapeuta exige muito, talvez porque exige demais de si, o
paciente poderá cair em heresia. Pode ser que esta respeite o equilíbrio do
paciente, mas a consequência tardia poderá desequilibrar muitos outros.
Porque o heresiarca remete para o seu intrínseco Princípio, quiçá subliman-
do novel Verbo. Já falámos da pretensão liberal. A mudança pode ser a ponte
para algo “melhor”, mas isto ninguém nos garante, e, se nos afastamos da
Natureza moral, arrostamos, em demasia, desorganizar o futuro, e certamen-
te a Estrutura prévia, maioritária.
Se imaginássemos a possibilidade de criar um algoritmo de “in-sofri-
mento”, uma medição do efeito da “terapêutica”, isto seria tanger a moral em
termos “consequenciais”. Mas o que medir de facto? E até quando? E que fazer
relativamente ao futuro perpetuamente transmutável? Deveremos andar em
viagem permanente, fazendo da “experiência” constante o busílis da salvação?
Mas e o corpo? Não terá limites? Até que ponto pode a experiência modificar a
expressão do mesmo? A curto prazo, certo é que a agressão “liberal” compro-
mete bastante o equilíbrio. Encurta as cadeias neuro-psico-mio-fasciais, redu-
zindo o grau de flexibilidade do “ser”. Quando a impassibilidade moral pede a
plena flexibilidade “a priori”. À imagem do alongamento da cadeia muscular
posterior, que estira o dogma e prepara a agência “espiritual”.
O trabalho de “força” evoca o liberalismo, a competitividade, a mudan-
ça, a imprevisibilidade. Já o de “flexibilidade” ajuda a construir um corpo
pleno, sereno. Este é o trabalho mais propriamente “meditativo”, que subsis-
te à ideia de morte e recebe de braços abertos a Graça. Obviamente, o corpo,
a sua determinação, resiste à morte. Mas é o Superior, a liberdade, que per-
mite a passagem para o Reino de Deus. Parece isto “loucura” para o mundo
moderno. Este é afecto à “materialidade” determinista, não entendendo o
porquê de transcender. Para ele, a moral também é determinada, pelo que a
“deôntica” deixa de fazer qualquer sentido. Aliás, se “Deus está morto”, só o
efeito, a resultante, conta. O Princípio é a resultante do efeito. E a “queda” é
a porta de entrada para um novo mundo, novel Verbo, valendo este tanto
como outro qualquer. Eis o ímpeto do Adversário, da “razão neurótica”. Esta
representa o “livre-arbítrio” herético que reage ao “pathos”, no sentido de
evitar a “dor”, a “doença”. Um paciente “neurótico” pede, muitas vezes, um
terapeuta tal-qualmente neurótico. Em dualidade, permanecem em diálogo
no eterno retorno. Mas esta relação tende para a dinâmica Senhor vs. escra-
vo. O domínio do primeiro cria a pertinácia do segundo. Daqui sai um novo

155
Luís Coelho

Princípio, na continuidade de muitos outros. O “domínio” que prevalece


passa por falso Deus. Entretanto, para o materialista, trata-se de um “deus”
tão aceitável como qualquer outro. Esta é a liberdade de “mater”, sentida
enquanto tal em plena queda mefistofélica. É uma liberdade determinada,
como existe sempre à distância da Natureza moral. Porque a outra, provida
pela Graça, abandona o caminho eternal da terra.
Daí a importância de respeitar a liberdade do paciente. Só assim ele dei-
xa de ser paciente. Se o caminho é completamente autónomo, atemos, aqui,
uma espécie de Gnose. Mas esta faz, frequentemente, concessões à já referida
liberalidade “fáustica”. Então, resta o terapeuta estar pronto para ser um
Cristo. Mas, se é Cristo, tem de se sacrificar. A recompensa será o regresso à
deidade.
A óptica “materialista” visa na recompensa o conjunto desdeificante das
actividades terapêuticas, que, de certa maneira, têm por mote a ressalva do
paradigma intrínseco do profissional. Assim, fica a laboração clínica a depen-
der de uma escolha “neurótica”, afim à tónica inconsciente, que efectiva um
modelo apresentado como objectivo. A Objectividade terapêutica é afecta a
um “exterior” livre das influências psíquicas, imaginosas e afeccionais. Sem
ela, a “clínica” passa por agressão perpetuável, na qual o terapeuta/Senhor
age enquanto “Pai” luciferino e o “paciente” como “filho” que se sujeita ao
trauma. Esta é, apesar de tudo, a oportunidade do “passivo” passar a “acti-
vo”, agente “espiritual”, demiurgo de uma novel consumação dialéctica. A
actividade interna é dilemática, o modelo sujeita-se ao “ideal”. O último
transforma o terapeuta num “Senhor” partícipe, observador “interferitivo”,
do qual resulta uma compensação dogmática, um aval genuinamente tera-
pêutico ou uma sublimação “ideal”. Os extremos são o do anelar de um
“ideal” prévio ou a criação de novel Verbo. O “Princípio” que se obtém pode
fazer as vezes de real Verbo, pronto a desenhar novas compensações, adapta-
ções e/ou traumas. Se Ele é demasiado brutal e exigente, pode ser desenca-
deada a destruição, ou, pelo menos, a “doença”. Mas mesmo esta pode passar
por “pathos” mais ou menos adaptativo. Todo o “pathos” envolve sobrevi-
vência perante um mundo encarado como intrusivo. O terapeuta compreen-
sivo será capaz de apreender o “pathos”, o intrusivo poderá fazer brotar a
“doença”. O primeiro cria a possibilidade de aquisição de um “princípio”
adequado, o segundo pode fazer sublimar um “princípio” diferencial. O
terapeuta que se compensa pode, apesar de tudo, fazer sobressair um “prin-
cípio” primevo, mas há uma maior garantia de objectividade por parte do

156
O FisióSOFO

terapeuta impassível. E, no entanto, pode ser que este não seja, jamais, um
terapeuta; ser “terapeuta” é, sempre, uma necessidade de auto-salvação.
Obrigação que nutre o manancial empírico adstrito ao falso “princípio”.
Um “ideal” implica, concomitantemente, um ressalto empirista, o ali-
mento do “senso comum”, que, para o materialista, está presente no dogma
“espiritual”, afrontado como falso e projectivo. E isto inclui o “princípio” no
sentido “psicanalítico”, que poderá bastar-se numa mera construção expe-
riencial. Mas mesmo esta parte dum “antes” que conforma, mormente, o
devir. Um trabalho terapêutico futurável visa, constantemente, modificar o
pretérito. Numa perspectiva “demiúrgica”, e apelando à analogia da fisiote-
rapia de reeducação postural, o equilíbrio “moral” depende do alongamento
do dogma que ladeia a tensão da musculatura posterior e da fortificação da
musculatura agónica, anterior, feita para a acção. O agonismo de uns é o
antagonismo de outros, que, por sua vez, é uma oportunidade de agonismo.
Mas a acção “moral” é, igualmente, um modo contratual de simbiose evolu-
tiva, em que vários agentes ganham. E se isso causa prazer, ou felicidade, não
tem de ser menos moral.
O equilíbrio referente à moral impassível é, tal-qualmente, sereno no
dogma, bem como na acção, livre do último. Quando já não existe “pacien-
te”, mas somente “agente”, capaz de ser Cristo e de não se importar com isso.
Uma “moral” sã implica mansidão. Se existe demasiada consciência de um
sacrifício, essa moral pode fazer as vezes de uma compensação, de um
“pathos”, que, ainda assim, pode levar à solvência de muitos outros. Por
outro lado, a moral “sacrificial” leva frequentemente à ruptura, bem como ao
relativismo. Quando o indivíduo está prestes a questionar a moral, prontifi-
ca-se a criar uma nova. Nem sempre a postura corpórea aparentemente
“anormal” é inaceitável. Comummente, nem causa dores, mas daí a ser enca-
rada como a melhor para a sustentação a longo prazo vai um grande passo.
Uma postura/moral “anormal” gera o mote de muitas outras posturas “anor-
mais”. Entretanto, quando o “anormal” já é “normal”, os antigos adaptados
podem perder o chão, isso fica a depender da força da estrutura “originária”.
Nenhuma acção terapêutica é indiferente relativamente ao Colectivo.
De algum modo, qualquer interferência representa um “pecado”, porque
afasta o “ser” do seu trajecto. Um movimento num sentido reforma o eixo de
normalidade, transtornando o equilíbrio global. Pode ser que, no todo, não
haja qualquer diferença, porque existe compensação permanente. Os níveis
relativos de dor/sofrimento e prazer/felicidade serão constantemente os mes-

157
Luís Coelho

mos, o que, de mais a mais, torna toda a vida inútil, um verbo de encher,
convidando, ainda mais, à transcendência. Um terapeuta pode ajudar na
concorrência para a nadificação, mas mais provavelmente apascenta o “eter-
no retorno” que o processo da vida convoca. Daí que o mesmo processo seja
de aprendizagem incessante, se bem que nunca aprendemos nada de novo,
somente desvelamos sucessivamente o que sempre lá esteve. O jogo terapêu-
tico é um saltar constante entre escalas de “visão”, mas o Todo é inamovível,
Deus não conhece transformação ou perspectivas. O “terapeuta” não é um
“deus”, e, no entanto, todos constituímos “deuses sendo”, e “deuses” por
desvelar. O trajecto de um perturba o trajecto de outros, eventualmente
pode, até, complicá-lo. Não há um modo absoluto de prever todos os dados,
havê-lo, controlar todas as variáveis, é ser, já, Deus.
Perante a figurada inutilidade de todo o processo, o “ser” não deixa,
jamais, o seu caminho. O “terapeuta” que há em cada um de nós não pode,
simplesmente, desistir. O “Nada” criado pela suposta equipotencialidade
céptica não passa de mais uma “escolha”. A “morte” também é uma escolha,
no fundo de uma subjectividade canhota. Ao vivermos, escolhemos, conti-
nuamente, morrer, porque o esforço de vida é um acto de morte. Defrontan-
do o aparente “absurdo” do caminho, resta o “absurdo” da vivência que con-
tagia. A vivência é multiplicidade, e esta é a matriz da Unidade. Num tempo
em que todos querem ser terapeutas, convém firmar que não há momento
mais feliz para o terapeuta do que aquele em que este deixa de o ser.
A multiplicação de terapeutas é, irmãmente, uma manifestação de mui-
tas almas perdidas. Tentam agarrar-se na relação de poder com o “paciente”.
“Terapeuta” passou a ser marca, sinal de notoriedade social. E isto é paralelo
à nova obsessão pelo “new age”. Espiritualidade egóica, desprovida da razão
que ascende e da fé que descende. Vazio filosófico, por um lado, espiritual e
religioso, por outro. Há uma crença, é certo, mas não se trata de uma parti-
lha da deidade. A moral e a prática “religiosa” passam por compensações,
virtude falsa, distância cruel a Deus. Estes “espirituais” são, por sua vez,
adversados pelos “positivistas” radicais, ignaros na relação com a razão, a
inventividade e a fé. Afectos aos resultados numéricos, nem são capazes de
compreender que “o todo é maior do que a soma das partes”, desvirtuando o
aspecto holístico, e isentando a “clínica” de uma moral geradora de sentido.
Não se limitam a perder-se, deitam a perder muitos outros, que ficam,
entrementes, vulneráveis aos “falsos deuses”. Se existir um placebo, é um
resultado, ainda assim, mas há, mais uma vez, um apartar da realidade pri-

158
O FisióSOFO

meva. E esta não se limita ao Espírito, é, igualmente, fisicalista. A cisão dos


aspectos é coisa da modernidade, às tantas, fica a “Ética” a derivar da liber-
dade e a “moral” a consubstanciar um modo de multiplicidade profana. Mas
mesmo o “materialismo” provê uma medida de “verdade” invariante, coisa
que certa fraqueza epistemológica sustenta, na ignorância de que a “verdade”
suprema é já não existir “agente”/sujeito, medida ou ciência.
Ora, recuperando a noção de equilíbrio “terapêutico”, podemos imaginar
que a posterioridade muscular dogmática conforma o “espírito”, e, até, a
razão, sustentáculo da anterioridade “científica”. Ser “terapeuta” é afirmar,
constantemente, o equilíbrio entre “espírito” e “ciência”, “razão” e “empiris-
mo”. O terapeuta tem de saber conciliar os dois pilares epistémicos, só assim
pode ser “filósofo”, aquém do estado de Cristo Primogénito, Sabedoria de
Deus, que é já a Ordem primaveril, por sua vez aquém de Deus. O “terapeuta”,
enquanto “deus sendo”, desempenha um papel de dialectização durável entre
o “subjectivo” e o “objectivo”, entre ele mesmo enquanto sustento “posterior”
e o “paciente”/objecto, “corpus” de acção ciente, que funde a razão e a realida-
de. Obviamente, se o terapeuta se está a compensar, também ele é paciente,
objecto de um trajecto, em que o Objecto final elimina todos os canais. O tera-
peuta/filósofo nutre um mecanismo dual que não é concomitante com a pura
mística, porque esta é de tal modo “nadificadora” que não pode sequer provar
que já Lá está. Nem tem de o fazer, se, de facto, Lá está. Porque “provar” algo é
ceder à pressão da matéria, do mesmo modo que achamos ser a “moral” intei-
ramente “carnal”. O “terapeuta” tem, certamente, algo da mística, algo de
Deus, e, sobretudo, algo de “devir”. Quando o terapeuta/paciente está salvo
plenamente sai da equação, é eliminado enquanto “agente”. Bom para ele, mas
mau para os que poderiam usufruir da sua prática. Porque o “terapeuta” cria
as condições de uma continuidade. Outros se salvarão, ele tem de manter-se na
via, prolificando as hipóteses de comunhão.
Esta é uma cruz para os mansos que permanecem caminhando. Mas
sem os milagres que testificam o perfeito valor do terapeuta. Pelo que toda a
acção “clínica” se exerce na dúvida. E esta cria a humildade. Aquém da magia
dos “falsos profetas”, o terapeuta será acusado de o ser. Quando a sua inter-
venção é estacionar entrosado entre a “razão neurótica” que quer a salvação e
a “razão serena” que se projecta na Luz. Muitas vezes, sem poder ter a certeza
de quanto deve ser “paternalista” e de quanto deve ser “libertário”.
Escusado será dizer que uma visão Superior » inferior afecta a um dua-
lismo Espírito » corpo e uma visão inferior - Superior afecta a um monismo

159
Luís Coelho

corpo-mente têm em comum um corpo como estrutura globalmente repre-


sentacional, palco da vivência “subjectiva”, e enquanto estrutura “inteligível”
só redutível na abstracção. A “physis” é considerada nos termos do psicosso-
cial e como Consciência, elemento de uma Consciência maior e eternamente
crescível. Se o corpo é a base da consciência ou o seu receptáculo “redutor” e
sensível é coisa que, comummente, não preocupa o profissional de saúde,
quase sempre “estrangeiro” relativamente à ciência “humana”. Esta abdica-
ção teorética conforma, identicamente, uma relação artificial com a ética, em
que a vivência de uma moral alternativa é, essencialmente, o corolário de um
desinvestimento na Consciência maior e perdurável enquanto Substância.
Por outro lado, se o “amor” pelo paciente extrapola o domínio do “aceitá-
vel”, convém que se veja nisto o reduto de uma ligação sincera que enquadra
a dimensão “sexual” de todas as relações. Porque todas elas são simultanea-
mente agressivas e incestuosas, conflituais e eróticas, fantasmáticas e libidi-
nosas. Se existe uma moral coerciva no respeitante à limitada definição da
relação “terapêutica”, é porque há áreas que convém deixar em branco, não
devendo flexibilizar-se excessivamente um território indefinido por natureza,
definível numa continuidade inconsciente vs. consciente aparentemente matu-
radora.
Há, decerto, morais diversas, mas um só elemento divino, a convergên-
cia de vozes exige certo isomorfismo, até porque nem todos se podem gabar
de dominar convenientemente os instrumentos racionais, aspecto, por si só,
dado à relativização; certo é que, de alguma forma, todos têm as suas razões,
e, como tal, a sua justificação, e, todavia, é a culpa que conforma a linha do
equilíbrio demiúrgico, constituindo a “coisa” aquém da Unidade. O terreno
maleável da demiurgia convoca uma linha de equilíbrio já por si flexível,
moldável, cujo movimento determina, similarmente, as escolhas aparentes.
Já estas originam sofrimento e este serve o desígnio da subjectividade, é pre-
ciso haver Sujeito para que se transtorne o destino de “escolhas”, somente no
indivíduo impassível o sofrimento é inútil, porque ele já se encontra à porta
da Natureza da moral mortificadora. Com obviedade, se o sofrimento é
incomensurável, pode corromper a escolha, mas esta é já uma corrupção da
Natureza impassível, oportunidade de alcance do Paraíso “perdido” insofrí-
vel. O sofrimento deve ser tolerado na medida do crescimento “sustentável”,
para além dele, existe, apenas, maldade e corrupção saturniana, na qual a
maior subjectividade é de mote a demonizar o conjunto “humano” da per-
fectibilidade. Demasiado humano, o misantropismo!

160
O FisióSOFO

Se baixares a guarda, guardar-te-ão. Numa gaveta de memórias.

É bom quando deixamos que abusem de nós até à insaciedade. Para que
o grito de revolta surja na mesma proporção, saciando tantos que haviam
emudecido. Mas quando estes não se saciam, abusam do nosso grito.

Quem ama por um ganho qualquer nem sabe o que perde. Mas se sou-
besse perder-se-ia.

Os amigos não se fazem, desvelam-se. Sobretudo, quando o véu é mais


espesso.

Quem dá a face por uma causa está vivo. Quem dá sempre a outra face é
a grande causa.

Obrigado a todos os que não fizeram parte da minha vida. Criaram-me


esperança.
Obrigado a todos os que não conheci. É deles a minha curiosidade.

Não se pode ter tudo. É o preço de Tudo ser.

O problema da meritocracia está em que é preciso mérito para reconhe-


cer o mérito. O genuíno meritório só é reconhecido depois de morrer, não
por uma questão de maturidade – que a idade muitas vezes trai –, mas por-
que deixou, aparentemente, de constituir uma ameaça.

161
Luís Coelho

Se tens mérito não te percas, pode ser que te reconheçam. E, aí, estarás
perdido!

Quando te encontraste perdi-te. O mapa era a minha salvação.

Vou-me distribuir. Partilhem-me, não gosto de ser rasgado. Mas fiquem


com os meus tumores. Sem direito a devolução.

O seu amor era um cancro. Quando a alma deixou de ser irradiada, ele
metastizou. Fez-se nova Alma, a irradiar os tolos do serviço. Ficaram curados
dos seus amores, na presteza da paixão.

Quem se fia na Verdade acaba pedindo fiado.

Sempre que o humano dá um nome a um planeta está a pedir que lhe


tirem o nome. Nem sei que lhe chame.

Tanto faz que seja “Espírito” ou “matéria”, a “sublimação” espiritual é


sempre “sentida” como Liberdade. Se é algo que provém do Superior, ou
uma compensação “inferior”, é indiferente para o Sistema, para a sua “mate-
rialização” empírica e cultural, porque o que quer que aconteça implica con-
tinuamente ambos os vértices, mas o “Superior” é de um outro tipo de
“determinação”, divina, que, em conjunto com a demiúrgica, reforça o papel
permanentemente passivo do humano (vide a questão da predestinação em
Agostinho de Hipona). O Domínio da carnalidade exige mais “Espírito” para
contrabalançar, pode ser que seja “ideal” subconsciente, mas há sempre um
Equilíbrio que se faz sentir no cômputo dos elementos. E este poderia, quiçá,

162
O FisióSOFO

ser controlado a priori, pelo terapeuta, mas não haveria modo directo de
controlar a Vontade de Deus, a não ser pela regra da carne, o que faz com
que a Vontade passe por determinação em tudo semelhante à carnal, ou tal-
vez isto não passe de um equívoco fornecido pela frequência da expectativa,
pela regularidade. Mas a Liberdade plena seria trair a última, o que acresceria
algo ao Sistema, não importando, para nós, o quê, pois só a resultante “ele-
mentar” nos diz respeito, o resto é esperança e Sonho.

Em «Adeus à Razão» (1991), Feyerabend faz apelo a Protágoras, à sua


visão subjectivista, diferençando a “verdade” objectiva da “realidade”, que
respeita ao constructo “humano” visando as necessidades específicas e cultu-
rais. Existe, aqui, uma defesa do relativismo, consubstanciado pela resultante
subjectiva dos agentes sociais, a qual poderá desenhar as próprias linhas de
desenvolvimento científico. Assim, o equilíbrio é a realidade “solvente”, o
alvo social, que constrói a própria verdade, ou, pelo menos, veicula a sua
evolução.

A visão “subjectivista” implica a necessária inclusão do Observador no


observado, porque a Realidade é a razão dominante de índole cultural. Obsta
à Razão stricto sensu, o Ser da Natureza, coisa estável, prévia, que se obtém
quando é esgotada a componente psicossocial da realidade. Até que isso acon-
teça, a ciência não poderá deixar de ser influenciada pela Razão cultural, a qual
impõe um equilíbrio à physis.

O “eterno retorno” dual consigna a alternância entre a Razão dominan-


te, espiritual, prescritiva, livre, e a razão neurótica, “material”, capaz de, pelo
livre-arbítrio, gerar a anterior. Esta “geração” é feita de inferior para Supe-
rior, a partir do Inconsciente, podendo este ser encarado como “espírito”,
porque se trata do Sujeito onde desemboca a prescrição, terapêutica, do algo-
ritmo, quiçá sublimatória, na reacção ao Social. O tracto “ascendente” parte
da Cultura “diabólica”, ela é considerada, pelo espiritualismo, como “deter-
minada”, “material”. A Razão no sentido Pater faz-se de Superior para infe-
rior, é plena e livre, regulando o Verbo da impassibilidade, capaz de vencer a

163
Luís Coelho

“Fortuna” (Boécio). A Razão dominante pré-científica é encarada por mater


como dogmática, porque lhe assiste uma Universalidade invariante, que par-
te de Deus e aterra na sábia Natureza. Também ela é determinada e prescien-
te (Erígena).

Algoritmos, alvos morais compensatórios e adaptativos, com uma inten-


ção de ganho “vitalista”, isto é o arquétipo de uma eticidade “materialista”, de
porte “empirista”, tendencialmente consequencialista, que não recusa a afec-
ção, ou não vê como esta pode ferir a “moralidade”. O seu “equilíbrio” é de
uma Razão prática que constrói a moral, a Razão dominante. Demonizada
pelo espiritualismo clássico, esta “ética da vida” permite diversas razões ou
arquétipos, consoante a necessidade “evolutiva”. Aqui, o inferior gera o Supe-
rior. E a liberdade é sempre “material”, condicional. Já a Liberdade de Deus,
no sentido metafísico, parte de um Superior “sobrenatural” que regidifica a
moral, transformando os recursos “terapêuticos” e/ou algorítmicos em meros
mediadores “crísticos” da Voz que não pode deixar de surgir espontaneamente
a partir de cima. O Equilíbrio paradigmático encontra-se, como sabemos, na
physis, na Razão natural impassível, que é, aliás, o próprio Cristo Verbal, a vara
de mercúrio que dualiza o Id “material” do Superego “espiritual”. A Ordem
espiritual convida à imposição da Razão pelo agente mistificador. A Ordem
material convida ao alcance “sensitivo”, de fora para dentro, da plenitude, se
bem que poderá, pelo caminho, considerar diversos modos de equilíbrio, no
“pathos” neurótico, compensatório e/ou sublimador, formas de “espírito”
psíquico que replicam o Equilíbrio primevo, individual e/ou colectivo. Assim
sendo, a “matéria”, a semelhança com Deus, tenta, sempre, mimetizar o “Espí-
rito”, passando por este e assumindo formatos de falsa “permanência”. Esca-
lando, poderá tornar-se “Deus”, mas este é um processo aferente, em que a
afecção, o “empírico”, pretende (re)desenhar a Razão. Para o Espírito genui-
namente livre, trata-se de um modo erróneo de alcançar o equilíbrio, prestes a
conceber novel linha de “retorno” arquetípico. É, assim, um pecado, face ao
qual só a ética “deôntica” poderá ser verdadeiramente “solvente”. Esta é uma
ética de abnegação, patologizadora da “vida”, que pretende reiterar o direito de
Criar, Aqui, onde o tempo sucumbe e o caminho cessa.

164
O FisióSOFO

Em Boécio («A Consolação da Filosofia»), o “tornar-se Deus”, enquanto


modo inferior » Superior de alcançar a Felicidade, toma a dianteira duma
perspectiva “humana” de superar a dualidade “material” da Fortuna. De qual-
quer modo, uma qualquer parcela demiúrgica da Felicidade poderá, enquanto
Razão prática, assumir-se como Razão plena, tendencialmente totalizadora.
Certo é que a satisfação prazerosa poderá conceber-se como Felicidade num
sentido plenificante, arcando o lugar de um Princípio conciliador. Esta é a
visão “empírica”, constructiva, pós-moderna, que, ainda assim, não larga a sua
latitude “materialista”, seja porque o que parece ser a plenitude pode revelar-se
como mera compensação (pelo menos na óptica essencialmente “espiritualis-
ta”), seja porque, enquanto “terrena”, qualquer modo de felicidade “humana”
será necessariamente fútil e impermanente. Assim, a Felicidade exigirá o Abso-
luto, a negação do dilema da vida, bem como a afirmação da “ética da morte”.

Boécio recalcitra na tríade Providência » Destino » Fortuna, às tantas


advogando que a terceira serve as anteriores, na base de um equilíbrio provi-
dencial, que, bem vendo, poderia ser meramente carnal ou biológico. Se esta
harmonia é determinada, pouco importa quem é quem, e, no entanto, o
dominado poderá vir a ser o feliz do outro mundo, à custa do esforço do
dominante, mas este equilíbrio pode mudar na terra, e, aí, o destino muda
também, ficando outro a merecer o “Espírito”. Parece um pouco a esfera do
acaso, que é a resultante de uma determinação sem sentido, com o dogma
“espiritualista” a querer vender a ideia de que o índice de fraqueza cria um
maior índice de Céu, mas este é apenas Consciência insofrida, mais não
sabemos, não conhecemos os outros patamares, mas sabemos que existe um
risco em não querer criar o índice terreno de menor sofrimento, que conti-
nua a depender sobretudo do anelar da Natureza moral, com esta a ser, de
qualquer modo, francamente determinada. A própria determinação é um
efeito de óptica, macroscopia de uma Origem onde o tempo está ausente,
com esta a poder recuar eternamente, na neurose de uma Providência que
parece não se fazer justiça, mas que, ainda assim, é Uno in-sentido justifican-
do a multiplicidade terrena de “particulares” que existem para criar a rugosi-
dade do Espírito, na labuta incessante de um Código que parece não redimir
o tempo, antes permitindo a vivência de um absurdo de “justos” na intermi-
tência do destino velado.

165
Luís Coelho

A “ética da morte” consigna um Arquétipo de martírio, a partir do qual


os fracos sublimam e ascendem. Para isso foi preciso o esforço do Senhor.
Este iguala o Verbo dos fortes, culpabilizador dos pequenos. Quando os “fra-
cos” ascendem, na óptica do Espírito, cria-se um novo arquétipo, novel força
capaz de martirizar muitos outros. Novo Verbo desadaptando, justificando,
os futuros vingadores, escravos de um Espírito maior, que, na aproximação
escalar, permite uma diversidade temporal de múltiplas forças que se suce-
dem, racionando a própria justiça no diacronismo diabólico das intenções. A
“ética da vida” é esta permuta de possibilidades morais, mas a nossa Escala só
nos consente ver a linha patente de uma série de oscilações, trata-se do Verbo
comum, basilar e pacificante, a linha de equilíbrio entre a Vida e a morte,
entre Céu e inferno. Nada se afasta em demasia deste arquétipo, desta physis,
isso seria fazer fenecer a Vida no seu todo, a dinâmica da permutação mate-
rial, trazendo o que nos parece ser “Espírito” puro, Silêncio absoluto.

Se a “ética da morte” salva os “fracos”, isso significa que passam a ser


Senhores, estendendo-se novel linha de demiurgia martirizadora. Aquela ética
advém, per se, de uma sublimação, é, em si mesma, uma espiritualização, uma
projecção. A dinâmica terrena do Senhor e do escravo inclui este tipo de subli-
mação, mas aqui é possível acalentar a manutenção ad aeternum de um para-
digma, de um índice adaptativo. O que perdura cria-se enquanto dogma, e pode
nem existir a esperança de uma “justificação” dos mártires. Mas a permuta tam-
bém é possível, contudo, em vida, o Domínio é sempre mais acalentador. Querer
a permuta é desejar o próprio Nada espiritual, é permitir a justiça, mas este pers-
pectivismo pode padecer da doença da “ética da morte”, que, ainda assim, con-
signa uma visão específica. Esta justiça implica, terrenamente, uma totalização de
possibilidades permutáveis que, bem vendo, determina o intrínseco eterno
retorno “dual”. Estar entre o “Espírito” e a “matéria” é permanecer no dilema
neurótico, na razão idiossincrática que se recusa a escolher, e, mesmo assim,
recalcitra no mecanismo de defesa. A “escolha” é a Vida, a adaptação, o apontar
de um índice dominador, e, portanto, de um destino. O “Espírito” é a própria
dualidade insatisfeita entre o Id em brasa e o Superego, que é um Id por desvelar.
O dilema perpetra-se, sempre, entre mater dual e Pater mandatário, unitário,
entre a pluralidade culpabilizada e o deus culpabilizador.

166
O FisióSOFO

Se o materialismo não permite a plena “justificação”, a sua determinação


é vazia de Sentido, pode perdurar um modelo ad infinitum. Já o “Espírito”
permite a Providência justificadora, capaz de enaltecer tanto o Nada culpabili-
zado e in-escolhido, paciente, quanto o Nada indómito, ingénito, da ausência.
Claro que, na Providência, como na determinação, não há plenamente “esco-
lha”, como não há modo de fugir do movimento, as coisas sucedem-se e com-
pelem ao Bem intemporal, ou ao Vértice adaptativo que urge com a revolução
dos outrora “passivos”. O “Espírito” terreno é este índice de actividade, ago-
nismo primogénito, capaz de iludir tanto a dualidade quanto a noção de
determinação. O “Domus” é livre, a sua Razão ruge, nutrindo a parcela maior
da Evolução. Mas há um tempo de involução, em que o “Domus” se inferniza.
O inferno é o Inconsciente prenhe de magma, na erupção contagiante de um
destino. Ele quer o Bem, o Eu pleno reificador, entronizado em Paz e esperan-
ça. O “Espírito” é o próprio Id tornado Superego, é o Agente do novo movi-
mento dual.

A Filosofia é a “razão neurótica”, paciente, revolucionária, o seu livre-


-arbítrio desafia o Nada céptico e introduz a Razão dominante, agente, a
Sabedoria. Esta é a Liberdade plena, quando o Sentido foi esgotado e se lança
à aventura da materialidade dual. Ventura martirizada, em que o “livre” quer
fugir à responsabilidade da paciência “activa”, do espírito “material”. É a
urgência do Verbo, do equilíbrio, quando o Senhor salva o Inferno, garan-
tindo a “ética da morte” pela supressão da morte da ética.

A determinação é um sentimento de controle, sentimos, frequentemen-


te, que não controlar é não determinar, mas há sempre um controle “subjec-
tivo”, que, não obstante, só pode ser abarcado completamente na resultante.
A moral demiúrgica é, bem vendo, uma moral de alvos, de medições, quiçá
meramente consequencial. Até lá, tudo não passa de subjecção, que, todavia,
pode gerir o “Espírito” enquanto tal. Se este é uma crença ou não pouco
importa, desde que resulte, mas o “resultado” é coisa mensurável, só aqui
interessa ater o que se alveja.

167
Luís Coelho

Se não existe um Deus castigador, como poderemos garantir a perfeita


eticidade? Se os Valores são coisa humana, vencerão os “fins” ao invés dos
“Princípios”? O “fim” plenifica-se no encontro com o “Princípio”, mas este é
essencialmente psíquico, um sentimento de liberdade, e existem todos os
outros sentimentos, e o domínio do Colectivo é o “Princípio” pleno, não
deixando o “criminoso” de sentir-se “culpabilizado” por algo que o extrava-
sa. Mesmo enquanto coisa “corpórea”, o Princípio, mediante o Superego, tem
uma função fundacionalmente “controladora”. O “Espírito” é uma necessida-
de de controle. A sua acção no corpo é um modo de alívio.

Podendo, sempre, ser medido o efeito da “liberdade”, ou assumindo o con-


luio dos Valores “supremos” com Deus, mas identificados pelo Homem, que
grau de liberdade deve ser admitido ao Princípio na relação com o homem? E
isto inclui a relação terapêutica, bem como a função da “razão neurótica”. Mas
como saber na resultante o que é efeito da liberdade e da determinação? O que
nos deixa à mercê do que se mede, independentemente da sua base. Mas é o
próprio devir, bem como o alargamento infinitesimal do Sistema, que mata o
efeito dessa “medição”, pois, a certa altura, a longo prazo, é impossível saber o
que de facto resulta mais. O que abre a porta a inúmeras possibilidades princi-
pescas e de acção. Porque, relativamente ao Princípio supremo, todos quererão
falar por Deus, aliás, ser deuses. Ficamos limitados, mais uma vez, à physis, mas é
de lembrar que nem a Natureza é necessariamente boa, nem o nosso conheci-
mento da sua matriz pode ser garantido plenamente. A Cultura já alterou muito
a Natureza, bem como a nossa capacidade perceptiva relativamente a ela.

Se o Princípio serve a abnegação, esta desenhará a Liberdade capaz de


urdir o mesmo Princípio. A variante provém das liberdades heréticas, bem
como das determinações estranhas. O conjunto desemboca numa resultante
que decide o novo Princípio. Este consiste num contrato do Colectivo, capaz,
claro, de trair muitas consciências martirizadas, que serão, porventura, as
que mais contribuirão para a transformação do novo equilíbrio e o desenho
dos novos Valores. O processo é temporal e espontâneo, servindo a totalida-
de das transmutações do devir.

168
O FisióSOFO

O “libertarismo” é compatível com o modelo do Senhor e do escravo,


com o último a conferir a “ruga”, o atrito, necessária ao controlo do Senhor.
É a culpa que cria a sublimação, advindo a Liberdade, que, numa perspectiva
materialista, pode implicar várias possibilidades morais. Por outro lado, esta
Liberdade pode ser somente o “sentimento de”, o que, subjectivamente,
resulta da aproximação ao Princípio pessoal e/ou colectivo. É um “subjecti-
vo” materializável, que se subtrai ao “Espírito”, a não ser, claro, que se consi-
dere como tal.

As acções livres podem não ter nada a ver com a moral, provindo do
Nada e acometendo a evolução, mas elas não poderão ser pensadas ou com-
preendidas, se falamos das suas consequências, quebra-se a “liberdade”. Quan-
do explicamos a acção, também nos subtraímos à liberdade, mas ela pode ser
“livre” no sentimento, com mais ou menos moral. Pode, igualmente, consi-
derar-se uma Universalidade “material” sem Deus, com ou sem liberdade.
Como pode considerar-se Deus como o único Juiz das liberdades sem juízo
próprio, mas se a recompensa premeia a “boa” liberdade no Céu, isso terá,
decerto, pouco impacto no Sistema “terreno”.

A moral parece precisar, sempre, de um Código demiúrgico, face ao


qual possa existir maior ou menor traição, e, consequentemente, mais ou
menos recompensa segundo a necessidade do Sistema. Se esta é provida pelo
Divino, continua a parecer “injusto” que uns se lhe acheguem, enquanto
outros caem por acção da materialidade, da adversidade, mas, no parecer
“espiritual”, este é o busílis da própria Justiça, como da Ética, que não preci-
saria de existir se não houvesse queda “saturniana”. Mais uma vez, podemos
considerar que a mente secular, profana, terá, decerto, dificuldades em
entender a liberdade, o porquê providencial do Sistema, e, no entanto, nem
Deus é necessário à existência dum mesmo processo moral, que subsiste no
Homem e é justificado pela dualidade rugosa dos princípios. Nada disto faria
sentido se tudo fosse plena Liberdade, Deus, não haveria, assim, com que
justificar o castigo, porque não existiria o “culposo” prestes a perigar a esta-
bilidade.

169
Luís Coelho

Há um princípio de liberdade que é aproveitado pelo terapeuta Verbal


para que se faça a ascensão, com esta a consubstanciar, ainda, a compensa-
ção, pela qual o sujeito tem um “deus”, se submete ao Verbo, e este esgrime o
dogma transformador. À medida que o indivíduo se aproxima do Verbo,
aumenta a liberdade, diminui o grau de sentimento castrador, o sujeito está a
tornar-se “deus”, pelo que o Id se transtorna Consciência, matando o Supe-
rego “estranho”, enformador. Só no Verbo pode o Sujeito objectar-se, toman-
do as rédeas à eticidade, eliminada que está a neurose enganadora, culposa. A
ausência de culpa, o Sentimento elevado, premeia a Razão plena, Aqui já não
existe motivo para a queda, porque esta é o aspeito da materialidade embria-
gadora, onde o Adversário convida à geração de outros princípios, e outros
terapeutas capazes de compensar(-se). A “liberdade” material é a ilusão do
Princípio estranho ao Verbo, a prova de outros Verbos.

A conversão pode ser empírica ou “principesca”, ela é facilitada se o


Sujeito já possui, em si, o princípio do Verbo. O afastamento “diabólico”
poderá ter sido empírico. Se, por outro lado, o princípio idiossincrático for,
per se, diabólico, o Sujeito sentir-se-á livre, confortável, longe do Verbo
“colectivo”.

Uma abnegação involuntária, condicionada, é menos vera que a abne-


gação espontânea, sentida enquanto livre. Trata-se de diferenciar o “ter um
Deus” de “ser um Deus”. “Ter um Deus” é o resultado da compensação.
“Tornar-se Deus” é mais livre.

A “matéria” não é, de certa maneira, incompatível com o “Espírito”,


porque deste tudo flui e se diferencia, na necessidade de a Ele regressar. O
“Espírito”, o Ideal, desenha a Razão e esta esculpe o Inconsciente. O Id é um
Espírito por descortinar. E isso pode acontecer dum modo mais “sublimató-
rio”, com conquista intrépida do Princípio individual e sua explosão enquis-
tadora. Ou dum modo mais espontâneo, terapêutico, em que o Outro provi-

170
O FisióSOFO

dencia à (des)compensação evolutiva, proporcionando a conquista “mansa”


do Princípio, afecto ao Verbo. O processo é condicionado, podendo a liber-
dade operar no ápice da transformação. Mas o condicionamento é sentido
como “livre” se não se limita à compensação involutiva, neurótica. A subli-
mação vitalista é mais arriscada ao equilíbrio global, porque impõe um novo
equilíbrio, que pode estar apartado do Verbo. É esta “agonia” da Vida que
assusta muitos espiritualistas, que reivindicam o Verbo que é, por seu lado,
projecção da sua fragilidade moral. Por sua vez, a abnegação constrangedora,
entendida bastas vezes enquanto “espírito”, não cria o equilíbrio de nin-
guém, a não ser dos outros “fracos”. A abnegação tem de ser sentida como
“livre”, e isso é mais do que ser prazerosa.

Entre uma liberdade pura e uma condicionada, venha o Diabo e esco-


lha, porque, se fosse de Deus, não haveria escolha possível. Mas cuidai que o
Diabo se faz passar por Deus, escolhendo e dando-nos a certeza de termos
sido nós a fazê-lo. É difícil, quiçá inútil, diferençar entre a liberdade “deter-
minística” e a liberdade “pura”. A primeira acrescenta onde a segunda parece
escusar-se a Ser. Se não existe acordo entre as duas, é importante considerar a
primazia da liberdade “pura”, mas mesmo Kant concordaria que ela escasseia
onde o corpo é totipotente. Se a liberdade “pura” não estiver de acordo com
o Princípio, pode ser que se gere um conflito, mas o tempo dá, bastas vezes, a
vitória à determinação. O conflito pode ocasionar “passividade”, se esta não
for compensada com a liberdade, há-de ser-lhe oposta a sublimação de um
Princípio, com este a influir na linha do equilíbrio. Mas se vence a liberdade
“pura”, a consequência pode fazer-se sentir no “outro”, porque ele deixa de
ser necessário e se vê obrigado a compensar ou a sublimar. O mais interes-
sante na Liberdade é a sua imprevisibilidade, podendo esta chocar as cons-
ciências “carnais”. Mas o imprevisível deixa de ser pertinente ou relevante.
Abarcando as consciências duráveis, é mais fácil ter em conta as consequên-
cias da acção principesca. Lembremo-nos, já agora, que a liberdade pode não
ser “moral”, implicando um princípio diaspórico, mas, mesmo assim, prova-
velmente familiar ao princípio “egóico” de uns tantos. O que significa que
mesmo o Diabo poderá não “escolher”, fazendo, ainda assim, mais uma vez,
as vezes de um deus ou demiurgo. Talvez as coisas sejam mais fáceis de
entender se tributarmos uma visão “ocasionalista”, momento a momento,
porque cada instante tem o seu quórum de princípios e compensações, se

171
Luís Coelho

bem que, como já dissemos, muito do que acontece no instante advém de


uma regularidade pretérita.

“É uma questão de Princípio” é o que frequentemente dizemos quando


queremos pôr um fim às questões.

Em Carl Jung, o “Espírito” passa a encarnar o Inconsciente, sendo que a


Liberdade, o estado primaveril, consigna o abraço do Inconsciente pelo cons-
ciente, na medida em que tudo é Consciência, Aqui, onde o “dual” não se
estratificou a partir da relação do consciente com a ambiência. Bem sabemos
que é o atrito com o “exterior” que leva à repressão, pelo que o Inconsciente
passa a constituir o lugar das trevas, o qual, projectado para o “Superior”,
esgrime o seu contrapeso “espiritual”, que, por sua vez, desenha os novos
recalcamentos. Assim, o “Verbo” preludia a Natura do Colectivo, incitando
ao equilíbrio que acaba por estender-se numa linha que esculpe a relação do
Inconsciente com a Realidade repressora. O Inconsciente é, como dizia, o
novo “Espírito”, na medida em que é nele que se antecipa a acção, de um
modo activo/agónico ou receptivo/paciente.

Para Jung («A Natureza da Psique»), o Inconsciente inclui uma parte


“consciente” e voluntária, e outra, instintiva. A primeira é mais pessoal,
interferindo na acção de um modo directivo. A segunda aproxima-se mais do
Inconsciente Colectivo, sendo, portanto, mais primitiva. É a parte “conscien-
te” do Inconsciente que constitui o aspecto “livre” da acção subliminar, não
se trata, aqui, de uma liberdade pura, que atribuímos, comummente, ao
“Espírito” propriamente dito, trata-se de um “sentir-se livre” “inferior”, que,
para o autor, faz as vezes do “espírito”. Este pode e deve ser entendido como
“abstracção”, não perdendo, de qualquer modo, o seu carácter “materialista”.

A razão neurótica é a resultante do conflito entre o Princípio normativo


e o Inconsciente idiossincrático. Maior o conflito, maior a Energia “libidinal”

172
O FisióSOFO

da parte “psíquica” do Inconsciente. Isto gera a Razão dominante, agónica,


“hegeliana”, a qual adapta muitos indivíduos. A adaptação é o equilíbrio,
onde se origina menos Energia por parte de um Inconsciente entretanto mais
próximo da linha subliminar do consciente.

O homem primitivo é essencialmente “inconsciente”, instintivo, a Cons-


ciência urge enquanto modo de moderar a estrutura subliminar. Se o Cons-
ciente se excede, o arquétipo grita e exponencia a sua voz. A neurose bipolariza
o lugar do instinto e o “espírito” racional, sublimando um “espírito” ascético,
que é uma forma de “nadificação”. Este “espírito” neurótico convida à desa-
daptação. O “espírito” salutar aproxima os pólos, na distância necessária ao
instinto, como ao Nada que ele evoca.

A realidade “subjectiva” é consciente, neurótica, dual. Ela representa a


atitude do “observador”, influindo dominantemente no “observado”. Este é
o paciente de um Domínio superegóico. A dualidade neurótica exige uma
relação polar Observador-observado, em que há interferência “subjectiva”.
Esta dualidade é temporal, implica Causa-efeito, uma resistência da cons-
ciência perante o Inconsciente que quer irromper. A “coisa em si” é o Incons-
ciente, Objectividade velada, cujo descortinamento despolariza a relação do
Objecto com o consciente. Ater o Objecto “inconsciente”, o Espírito, é con-
trolar o processo consciente, trazendo-o para dentro e para fora em simultâ-
neo.

A razão neurótica é, assim, o domínio interferitivo sobre a “realidade”


teorética que pretende ser conhecida. É na medida em que esta lhe resiste que
subsiste a dualidade consciente. Mas quando o Sujeito abraça o Objecto,
deixa de existir a polaridade, sobressaindo o Inconsciente “espiritual”, ou o
equilíbrio no formato do Self. Este é a consciência plena do que jazia velado.
Enquanto “velado”, o Espírito frustra o seu pleno desdobramento, gerando a
resistência de uma consciência fustigadora. Só quando esta desvela a “coisa
em si”, se perde enquanto consciência, porque já Tudo É. Mas se há apenas
domínio “dual”, mantém-se o terapeuta/Observador superconsciente e o

173
Luís Coelho

paciente/observado que quer desvelar-se mas teme fazê-lo, pedindo ao pri-


meiro que lhe tolha conscientemente o afundamento inconsciente. A com-
pensação terapêutica é um pedido de controle do “arquetípico” no paciente.
Para o agente/terapeuta é uma oportunidade de agir enquanto “sujeito”,
sublimando a energia libidinal do inconsciente. A viagem terapêutica tem de
ser espontânea, permitindo desvelar livremente o “inconsciente”, pelo que se
revela o Self, aberto para o exterior, como para o “Espírito”, que é Uno e
absorve a consciência.

O Inconsciente é o imediato, o Eterno Presente. A consciência é uma


necessidade de sair desse imediato, temporalizando a realidade. A Razão
nascente quer perpetuar-se, a ciência não requer o íntimo, porque teme a
subjectividade “esotérica”. Daí que permaneça o “exotérico”, em religião ou
ciência, alongando a subjectividade “dual”. Esta perpetuidade é transforman-
te e alimenta a esperança. A Eternidade já não tem esperança, senão na vir-
tualidade de uma nova “queda” no probabilismo revelado da consciência.

O retorno não é eterno, é perpétuo. Eterno é esperar que ele passe e


acerte o relógio.

Também já me quiseram devolver à Origem. Mas eu não gosto que me


facilitem a vida.

“Quanto mais me bates mais eu gosto de ti”. Disse o homem a Deus.


Mas nem por isso passou a acreditar.

No Colectivo ignaro, a proximidade entre Sujeito e Objecto, aliás, a


proximidade do Objecto “ideal”, psíquico, ao Objecto “real”, exterior, turva
a consciencialização da projecção, da imago. De algum modo, essa é a condi-
ção “primeva” em que o Sujeito se sente Objecto. Na neurose, existe uma

174
O FisióSOFO

maior probabilidade de o Objecto “real” forçar a consciencialização da ima-


go, é uma questão de atrito do “exterior” propiciado pela bipolarização entre
este e o Sujeito. Tal “subjectivização” cria a necessária ligação desculpabiliza-
dora. Por vezes, o que a gera é a relação (contra)transferencial, em que surge
o conflito entre o “real” e a imagem. Maior o conflito, maior a descompensa-
ção, e esta traz a requerida familiarização emocional. Obviamente, a abun-
dância de Sujeito pode fazer sublimar o Inconsciente numa Superconsciência
pacificadora, que é como quem catapulta o Sujeito para o Objecto, podendo,
aqui, confundir-se com a própria construção do Objecto.

A Objectividade implica, assim, a independência do Sujeito vs. Objecto.


Quando os dois são já UM, tornamo-nos a própria Realidade. Quando se é
Sujeito para o Objecto, permanecemos nós mesmos. Quando eles se imis-
cuem, existe compensação sem consciencialização da lúbrica ligação. Quan-
do há atrito, porque houve distanciação, surge a descompensação neurótica.
A partir daqui, pode advir a terapia “objectivizadora”, se bem que esta se
pode processar nos limites da relação “neurótica”. Objectificar é recuperar a
imparcialidade, permitindo a independência do EU. Naturalmente, este é o
estado que consente ao paciente deixar de o ser. Atemos, aqui, uma transmu-
tação do mentalismo num aparente fisicalismo contrito. A subjectividade do
terapeuta assenta, bastas vezes, na consciencialização de um paradigma, de
um constructo “ideal”, que, mesmo quando é “materialista”, se afasta da sua
crueza “objectiva”, para abraçar um modelo mais ou menos dominante. O
“paciente”, o dominado, aquando da sua consciencialização, poderá, talvez,
sublimar o seu Princípio particular, que é um outro modo de compensar,
evitando a neurose, a doença. A sublimação do inconsciente produz o evita-
mento da realidade, através da ideação da Realidade própria. O Objecto é
feito de Sujeito, e substitui-se à Realidade. É um “ideal”, mesmo que, feno-
menicamente, se faça de “materialismo”. Porque o “positivismo” desenfrea-
do poderá representar uma fuga ao auto-conhecimento, à própria noção de
imago; um paradigma inclui, grandemente, o condimento de se pensar
enquanto verdade “absoluta”. Se for “materialista”, existe uma dupla negação
da subjectividade, que, em matéria de Filosofia, conduz à retractação do abs-
tracto, do espírito, e à assunção da realidade única da physis no formato de
um monismo fisicalista que reduz a “psique” ao cérebro. Não é que a “psi-

175
Luís Coelho

que” não seja redutível ao “cérebro”, quiçá até o corresponda, mas, pelo
menos por enquanto, ela sustenta uma realidade global bem mais rica, auto-
-suficiente e “oculta”, na medida em que esconde, vela, muito do que a neu-
rologia não pode figurar. A presunção de “objectividade” não implica, por-
tanto, uma physis, mas é representada teoreticamente por ela. De igual modo,
uma nova “Razão dominante” poderá representar um “Ideal”, na medida em
que se aparta da physis harmónica, primaveril, parecendo, até, que nos
encontramos face à psicose, no sentido em que nos apartámos da realidade
primeira, metafísica. Esta Realidade, em Absoluto, é Deus, e o homem é Deus
se for Sujeito totalmente independente do - e, como tal, totalmente incluso
no - Objecto. O estado de compensação é um “ter um Deus”. O Deus clássi-
co é um Nada, para o qual concorre um Verbo de relação primitiva do Sujei-
to atendo-se Objecto. Na modernidade, acresce-se um contexto “materialis-
ta”, no seio do qual alguns “clássicos” poderão jazer desadaptados. Para estes
a adaptação implica regressão ao estado de “Deus”, a sua pós-modernidade é
um retorno à Deidade, encarada como Verdade. Mas para aqueles que vêem
em Deus uma ilusão, o regresso ao Espírito poderá ser atido como mais uma
compensação. Mas a Verdade, no sentido individual, é estar em equilíbrio,
numa proximidade harmónica entre o EU e o Objecto, tão-só. Pode ser que
isto descompense a visão de outrem, mas é este “outro” que estará em desar-
monia. O que pode veicular a sublimação do seu próprio Princípio, desadap-
tando muitos dos que ele considerava “iludidos”. Ao encarar tal processo,
julgar-se-á dono da Verdade, mas a sua é apenas a sua. Os mais frágeis são,
com obviedade, os menos definidos. A neurose é uma falha na diferenciação,
é a intrínseca dúvida, o Nada da suposta “livre-escolha” idiossincrática. Para
o “relativismo”, qualquer Princípio é legítimo, se permitir o equilíbrio de
uma maioria. Como refere Feyerabend, o “relativismo” não é equalizar todas
as verdades, mas dar a todas igual oportunidade de mostrarem a sua valida-
de. O que, numa perspectiva absolutista, poderá ser encarado como perdulá-
rio, perigoso, porque se multiplicam as hipóteses, não havendo, sequer, um
modo absoluto de testar seja o que for, porque o objecto a testar muda de
momento a momento, e pode implicar tempos muito diferentes. E isto só faz
sentido numa perspectiva “empirista”, que se subtrai à visão “racionalista”,
idiossincrática, complexificante, do indivíduo. Este, já por si, protagoniza
uma luta entre diversos centros de consciência, uma labuta entre o “eu” pro-
fundo e o superficial, que tenta, per se, satisfazer simultaneamente o incons-
ciente superficial e o inconsciente arquetípico. O “superficial” é mais idiossin-

176
O FisióSOFO

crático e reactivo, diferençando mais o Sujeito do Outro. Quando ele entra em


harmonia com o Consciente, o Arquétipo poderá exprimir-se mais. Que é o
estado de Verbo pleno, não tanto da confusão babélica de Verbos, que ali-
menta as defesas e esculpe o movimento. Claro está que a dispersão “verbal”
tem de vir de trás, da materialidade plena e diaspórica, porque mesmo as
mutações que constroem as diferenças são determinadas. E é dessa diferença
que advém o Princípio “divergente”, candidato a futuro dominante.

O equilíbrio “consciente”, verbal, exige um nível mínimo, regulador, de


energia por parte do Inconsciente. Se o “adquirido”, empírico, reprime aque-
la energia, surge a neurose “defensiva”, o condicionamento consciente. A
“sublimação” do Princípio pessoal é uma exponenciação da energia incons-
ciente, gerando um círculo vicioso de desajuste, e desadaptação de muitos
outros. A “compensação” com o Outro é um modo de aproximar o “empíri-
co” do Princípio pessoal, pelo que este pode ser apaziguado. Mas a “estrutu-
ração” implica necessariamente a conscienticização do Inconsciente, pelo
que a sua Energia pode ser dirimida, aplacando a defesa consciente. É caso de
acalmar as hegemonias, não de reforçar o “empírico”. Um consciente “paci-
ficado” desactiva a Saudade, desligando a necessidade de nadificação, e con-
sente o “normal” movimento empírico. O qual só é perigoso se visar a drásti-
ca distanciação temporal. Este pode, até, redesenhar o Princípio, apartando-o
do Inconsciente Colectivo. Mas o mais perigoso na repressão é o que se tange
precocemente, criando um desajuste moroso no que à desocultação do Prin-
cípio real respeita. Entretanto, o Princípio pessoal pode, também, ter uma
componente mais ou menos “empírica”, cultural, face ao Inconsciente Colecti-
vo. É caso para se gerar uma “neurose” mais profunda e nem sempre expri-
mível conscientemente, resolúvel com a conscienticização do Colectivo, que
faz o Self na relação íntima com a inConsciência.

A Energia do Inconsciente Colectivo está em harmonia com um Nada


de fraca dualização. A dualidade é já a Consciência, necessária à persevera-
ção, convém que ela se faça no equilíbrio. O desequilíbrio advém do conflito
entre a ordem moral do Consciente e a Energia do instinto subliminar. A
razão neurótica é uma defesa, uma tentativa de aplacar, com o pensamento, a

177
Luís Coelho

Culpa. Mas ela produz ainda mais defesa, exponenciando a consciência face
ao instinto. O pensamento é uma tentativa de chegar ao Princípio, pode,
contudo, fazer explodir novel Razão, origem de uma diáspora de “razões”
face ao Inconsciente basilar. Na Razão dominante pode ser replicado o sen-
timento de uma “liberdade”, já na razão neurótica existe o peso da escolha. A
primeira poderá, até, implicar uma ética determinista e/ou materialista,
mesmo com o assomo de uma liberdade que poderia ter aparecido esponta-
neamente. Claro que, às tantas, pode vislumbrar-se uma possibilidade de
teoria libertarista, sobretudo se concorre um outro Princípio. A Liberdade
sentida plenamente exige, claro, um recuo desculpabilizador maior, um
encontro com o Inconsciente Colectivo, com a sua Energia espiritual, mesmo
assumindo que esta é, tal-qualmente, “material”. O pleno Verbo implica,
ainda assim, um nível mínimo de consciência insofrida, pelo que a Energia,
em absoluto, é já o Nada.

O modelo empirista concebe a questão dos princípios enquanto projec-


ção do Passado no momentâneo, ambos conscientes, aqui, o equilíbrio é
sempre alcançável pelo devir no respeito pelo pretérito. O empirismo ali-
menta o relativismo, para o qual qualquer Princípio é legítimo, podendo
diversas razões “morais” concorrer para o equilíbrio global. Algum empiris-
mo pode ser defendido atendo o facto de não podermos conhecer, em
genuíno, o conteúdo do Inconsciente Colectivo. O que pode autorizar a ideia
de que todas as possibilidades são bem vindas desde que não firam plena-
mente a ordem “material” do corpo, a qual pode ser, supostamente, atida
pela ciência determinista. A moral “positiva” parte, precisamente, da ciência
“materialista”. O extremo “espiritual” é mais radical e concebe todas as pos-
sibilidades empíricas como potenciais detractoras da Ordem ancestral. Numa
existência puramente espiritual não se colocaria em questão coisa alguma,
porque não haveria consciência. A haver, seria somente mais um modo de
“matéria”. A questão do “sofrimento”, bem como do equilíbrio moral e afec-
cional, só faz sentido porque existe um Consciente onde se expressa a energia
psíquica do Inconsciente. É esta dualidade que faz o Humano. Se conside-
rarmos que o Espírito é o Absoluto, o pleno “relativo” é a razão empírica,
ressalvando, contudo, a sua orientação no desvelamento da Razão natural.
Esta, enquanto “razão”, não é plenamente Espírito, mas concorre para ele,

178
O FisióSOFO

pelo vínculo do Corpo. O Verbo “moral” reside neste corpo in-consciente,


outras morais são a resultante da diáspora verbal e empírica. Se esta moral se
torna confrangedora é porque há Princípios empiricamente afastados do
Princípio pleno que entram em conflito com aquele Verbo primevo. Mas o
conflito pode ser da ordem da exacerbação desse mesmo Verbo, quando ele
quer ser Nada face ao corpo consciente e nimiamente apegado à Vida. Na
perspectiva do Inconsciente Colectivo, toda a razão empírica que se afasta do
corpo primevo acaba por fazer as vezes de uma Superconsciência diabólica,
mater considerada enquanto “defesa”. Assim, o “materialismo” será, sempre,
um modo de defesa perante o íntimo do Espírito, que, à semelhança da razão
neurótica, pretende reproduzir o manancial principesco. A Razão noética é,
quer queiramos quer não, uma forma de compensar face ao Princípio abso-
luto, ela pretende replicar o próprio Espírito, quiçá sublimando-se. É neuró-
tica, mas não deixa de exigir o sentimento. A Filosofia é a razão afeccional
neurótica que, por magia, se expande ao Sentimento mais elevado, ela permi-
te desvelar o Segredo, mas, quando o faz em pleno, já é Sabedoria, extinguin-
do a viagem “empírica” de um adquirido angustiado, e desvelando o Incons-
ciente pleno de uma Energia entretanto aplacada. Mas cuidai que a Energia é
matéria por desvelar, do Nada só se pode cair na Razão, no ímpeto empírico
e consciente que repõe o tempo e a ansiedade dual. O Espírito só ganha sen-
tido quando se torna consciente de si mesmo, no movimento caudal, no
atrito, que, por sua vez, pede o regresso ao Inconsciente. O “mal” dá sentido
ao Verbo, justifica-o, cria o próprio Superego, que é a Razão esticando o seu
poder horizontalmente. A existência é um jogo de Princípios, com uns a
absorverem outros, numa concorrência para a Primavera do Ser. O sofri-
mento cria a necessidade de inconsciência, mas é preciso que haja Verbo para
que possa tanger-se Vida insofrida. Perante isto, um algoritmo de insofri-
mento é um algoritmo de Verbo, mas não segundo a perspectiva empirista.
O Verbo é uma moral “finalizada”, uma Felicidade onde prazer e sofrimento
se aproximam numa derivação controlada. A compensação ou a estruturação
não é haver mais prazer, mas mais equilíbrio. Não há ser feliz ou infeliz, há
somente a avaliação momentânea, porque persiste uma quantia “igual” de
prazer e dor, e o estado presente constrói o passado, mas isso muda no ins-
tante sequente. Fugir, fenecer, é matar a aventura. Viver é mourejar num in-
-sentido. E é o corpo que o diz, na sua homeostase, mas isto é o “materialis-
mo” a falar.

179
Luís Coelho

Partindo das concepções expostas por Jung em «Psicologia do Incons-


ciente», há que assumir Eros enquanto Origem e destino da relação que opõe
Inconsciente e consciência, Sujeito e Objecto. O desequilíbrio dual cria a
consciência, na qual se desenham os modos “criativos” de canalizar a energia
libidinal. Esta é sempre de mote a unir, a fundir, re-solvendo o poder subli-
minar. O Sujeito pode ser, até, represado pela razão neurótica, pelo “pensar
antes de agir”, o pensamento é um modo de compensar, de reproduzir o
Princípio moral. Mas se o desequilíbrio é estrénuo, por oposição vera do
Objecto, eventualmente do “extrovertido” normativo, pode ser que Eros
assuma a sua “vontade de poder”, que é de mote a (re)criar a moral onde o
Sujeito se objectifica e reanuncia a aura “edénica” do Amor. Que é um anelar
do Inconsciente “normal”, a partir do qual a Energia se pacifica e se prontifi-
ca a correr de um modo “adaptativo”, extrovertido.

O poder é um grito de nostalgia capaz de desequilibrar o Sistema arque-


típico, pelo modo como a novel moral se impõe e adapta muitos “estrangei-
ros”. A linha da “Norma” decide sobre a relação entre o Inconsciente e a
conformação adaptativa do consciente. O poder reveza o amor na medida de
uma defesa excepcional, revolucionária. São as defesas que possibilitam o
horizonte da Consciência, o excesso “egóico” gera um novo horizonte. Este
consubstancia muitas possibilidades eróticas, cada uma destas se estrutura no
balanço entre a introversão racional e a extroversão defensiva.

A neurose, enquanto retorno à infância pré-verbal, permite a aproxima-


ção ao Inconsciente Colectivo, proporcionando a projecção das estruturas
míticas de poder e/ou domínio. O que se exponencia é a nova, antiga, deida-
de, provocando, acaso, a morte do “pai” simbolizado, deificado. O que se
projecta constitui uma moral primeva que entra, possivelmente, em conflito
com a moral presente. Esta é represada por uma Cultura que não deixa de
ser, per se, projecção de uma antiga Inconsciência. A Cultura dominante é
anti-incestuosa, pelo que reprime, porventura, a antiguidade incestuosa
representada na compensação presente pelo poder de um novo Pater ou pela
própria homossexualidade. Esta é, no fundo, uma afirmação de um Princípio

180
O FisióSOFO

pessoal não normótico. Se este é firme, a sua presença não se ofende com a
Norma, pelo que pode não existir qualquer tentação de “paternalização”,
mas se o Princípio vem de trás, do Inconsciente prévio, ele representa,
somente, uma compensação, que, às tantas, se pode substituir, também, à
“paternalização”. A última poderá, quiçá, representar um poder demolidor,
considerado inútil pelos “estruturados”, equilibrados, que não deificam a
Norma e que não tentam deificar-se. O “normal” não obedece cegamente à
Norma, nem projecta a sua Norma, ele abraça a Norma e persiste. A sua dife-
rencialidade é um anelar de um domínio ético, suficientemente prazeroso e
equilibrado. Ele não quer dominar, nem é dominado. Aqui, consigna-se a
Felicidade equilibrada, o princípio do Prazer, capaz de construir uma vivên-
cia moral, demiúrgica. Esta moral “natural” é a Razão mais vera, o Sentimen-
to mais elevado, tendo ela que se coadunar com a Cultura, a Norma mais
artificial, que, ainda assim, compete na construção da consciência, como da
Razão. Por vezes, os desadaptados da “Norma” compensam, precisamente,
com uma projecção da moral “natural”. Pode ser caso de coragem moral,
mas pode, igualmente, ser a neurose a permitir o mergulho numa moral mais
arquetípica. No limite, estaria o Espírito, que já afasta o Sujeito do intrínseco
objecto “egóico”. A Norma “dominante” contém algo da Natureza e algo da
Cultura, a adaptação normativa implica-as. Quando existe repressão, a pro-
jecção do Princípio pessoal pode não incluí-las, mas, assim, aumenta a possi-
bilidade de desadaptação, se bem que a dita projecção poderá ir buscar força
ao Arquétipo. Novel moral implica desadaptação para muitos outros, mas a
compensação pode, sempre, advir da Razão “natural”, como de outro Prin-
cípio ou Arquétipo. Se o Princípio pessoal não se coaduna com as estruturas
arquetípicas é porque, provavelmente, não requereu compensação ou projec-
ção. Será, portanto, firme e/ou estará compensado com a Norma. Ambos os
paradigmas “materialista” e “espiritualista” possuem certa proximidade arque-
típica, a Razão natural intersecta-os. É normal que, temporalmente, eles se
substituam, num regime de “eterno retorno”, que é como caucionar a perpé-
tua neurose civilizacional.

Nas sociedades científicas, pode ser que a “ciência”, a physis, seja valori-
zada ao ponto de constituir o dogma “familiar”. A Verdade depende, assim,
da Autoridade “moderna”. E ela é, em si mesma, placebetária, procedendo,
presumivelmente, da acção do perito ou do terapeuta “objectivo”. Neste

181
Luís Coelho

contexto, o heresiarca é o “problemático”, dependente de um placebo mais


imaginoso, adaptado a necessidades psíquicas precisas. O inadaptado, tera-
peuta ou paciente, poderá vir a constituir um futurável Domínio, Razão cul-
tural capaz de desentronizar os pretéritos “peritos”, agora encarados, talvez,
como desumanos e “frios”. A novel Razão consigna um novo território teo-
rético e científico, bem como renovadas necessidades adaptativas, prestes a
crescerem à custa da “normativa” des-sensitização. O “absurdo” da transmu-
tação arquetípica – aqui representada pela physis vs. Cultura – é requerido ao
“eterno retorno” da transubstanciação prazer vs dor, compensação vs. des-
compensação, felicidade vs. sofrimento, linha de equilíbrio que destina o
Sofrimento a ser perpetuamente semelhável, variando, talvez, os seus agentes
“martirizados”. Linha de “vida” que recua perenemente, na tentativa de
recaptar o pleno Verbo, tudo isto determinando, incluindo, a percepção da
liberdade de mudança. Naquele Verbo jaz o conjunto das transformações, o
Nada da deriva arquetípica, bem como o limite a esse Nada só ultrapassável
na transcendência da Palavra. No Nada pleno, pré-verbal, continua o Ser,
que, na aproximação escalar, revela a materialidade que nunca deixou de
“ser”, onde a permuta atributiva da Forma se reduz até ao infinito, em
tomismo eternal, base de mais imprevisão “relativista”. A redução perpétua é
o intrínseco Nada que é Tudo, no pequeno se encontra o grande, o cresci-
mento dos Logói até Deus, em macroscopia planetária e Universal, alcançá-
vel parcialmente pelo Inteligível, limite do corpo “afeccional”, da Natureza
“verdadeira” que não se quer reduzir à Razão “cultural”. Esta advém da revo-
lução “empírica” do passivo face ao agonismo racional. O “empírico” dese-
nha o novo Racional, o qual desenha o novo empírico. Cada novel Domínio
é demiurgo de Deus, e Este é a ausência de domínios. Um Princípio é, sem-
pre, corruptível. O seu Verbo só aparentemente o salva. Alcançar um Princí-
pio mais puro, mais adequado, menos tocado pela cultura despótica, supere-
góica, é o destino de cada Verbo pessoal, na ameaça da compensação, que é
verbalizar uma adaptação e arriscar à consecução de um domínio “estranho”
que fará o gosto de muitos outros.

Na terapia, curaram-me de ti. Perdoa-me, não volto a descuidar-me.

182
O FisióSOFO

Sou humilde. Não peço nada da vida. Ela não tem nada que me interes-
se.

Desamiguei-me. E bloqueei-me. De repente caí em mim. Sonhava,


estendido numa rede entre as árvores. Era, já, a própria seiva que desencanta.

A minha melhor decisão foi ter dito “Deus, tu não decides por mim!”
Só mais tarde vi que era o meu reflexo na montra.

A única decisão perfeita é pôr os outros a decidir por nós. Nem Deus
decidiria tão bem. (Acerca disto, não presto contas a ninguém).

A Psicanálise, o seu exercício interpretativo, constitui, em si mesma,


uma incursão neurótica. Porque o terapeuta constantemente projecta o seu
“complexo”. Quiçá o reconheça e isto é já recalcitrar na teoria. A teoria psi-
canalítica explica-se a si mesma pela sua própria dinâmica. Nisto o empirista
reconhece o exercício projectivo, o catapultar de um modelo interno, e mais
não diz, doutro modo, estaria a ser demasiado “psicanalítico”. Para o analis-
ta, o empirista está a defender-se, com o evitamento da interpretação. Mas,
mais uma vez, esta é, tal-qualmente, a projecção do analista. Ele só poderá
analisar analisando-se. A terapia é a própria transferência. O fim da interpre-
tação consiste no pleno encontro “empírico”, quando o paciente se torna
agente e encara a terapia enquanto “infalsificável”. Entender a terapia só é
possível se existir neurose.

“Estás a defender-te!”, disse o psicanalista defendendo-se.

Se decides pelos outros, vais ver! Ainda te agradecem.

183
Luís Coelho

Desabafei com ela. Que descaramento ter-me chamado poeta.

Depois de tudo o que lhe disse, ele ainda teve a lata de me ouvir. Não
lhe perdoei.

No prato, estavam bolos carcomidos e só um se aproveitava. Disseram-


-me que era livre de escolher. Quis enganar o destino e tirei o pior de todos.
Desenganado, foi o que me soube melhor.

Andava às voltas com esta coisa da eutanásia. Sofria indizivelmente e


cheguei a querer morrer. Disseram-me que, quando tivesse a questão resol-
vida dentro de mim, conseguiria serenar. Porque só o sofrimento pode con-
duzir à Objectividade. Tinham razão: consegui acalmar-me. Com a morfina.
A questão continuou por resolver, mas já não andava por perto. Mais tarde,
quando ganhei tolerância à morfina, regressou a minha inquietação. Sabia
que teria de sofrer para aprender a morrer. Guinchei como um porco, mas
resultou. Consegui, finalmente, dissolver a minha dúvida. Quando morri.
Deste lado, não encontrei Deus, pelo que mais valia ter abreviado o caminho.
[Publicado no jornal «Público», em Cartas ao Director,
com o título «Alegoria à eutanásia», Fevereiro de 2020.]

Como é que aqueles que dizem não haver objectividade em quem esco-
lhe morrer são os mesmos que dizem havê-la na escolha da vida? Não é a
morte mais objectiva que a vida? Não é bem mais objectivo não temer a mor-
te?

Os cuidados paliativos não se limitam ao moribundo, são, também,


para a sua família e para os profissionais. Para que possam fazer o luto por

184
O FisióSOFO

antecipação. Matar a pedido é permitir que a Culpa, mascarada de Razão, os


mate a eles também. Assim, usa-se a morfina, que, bem vendo, já é uma
espécie de morte. Se o indivíduo tem mesmo o azar de morrer, os paliativos
tornam-se automaticamente irrelevantes. Para o morto, que já morria de
viver. Os que ficam tomarão, quiçá, o ansiolítico. Assim, também adiam a
sua aprendizagem. Só quem desvela aprende... que a vida só visa preparar a
morte. Mas quem apanha com o piano de cauda na cabeça não se queixará
de não ter aprendido a música. Já está em Silêncio.
Assim, não ajudar a morrer é garantir o adiamento da própria morte,
do sofrimento intrínseco. Que advém duma Culpa que é função da Natureza,
como do dogma religioso que da última se alimenta. Aceitar a Eutanásia é,
igualmente, aceitar, em definitivo, que a vida não tem sentido. Que a sua
obrigatoriedade é um epifenómeno da consciência. E esta só vive plenamente
em desequilíbrio. Porque aprender a viver, equilibrar a dualidade orgânica, é
aproximarmo-nos da morte. Sofrer menos pode implicar ter, também,
menos prazer. Então, se tudo é igual ao mesmo, resta esperar que a outra
Vida dê sentido a esta. E para os menos criativos isso implica Deus. Mas se
Deus está morto, o óbvio ressurge, e a pessoa morre em vida, de desesperan-
ça. Ou isso, ou a morfina, que é morrer de outro modo. Viver é, como tal,
um exercício de ilusão permanente. Só é possível fazê-lo enquanto nos man-
temos na caverna. Se descobrimos o caminho de saída, morremos. A apren-
dizagem é um exercício de morte. Quando salvamos a vida a alguém, esta-
mos a vivificar aquilo com que há-de matar-se.
Acordar a questão da “eutanásia” é, portanto, desassossegar as pessoas.
Algumas têm a sorte de reiterar a sua fé. São, à partida, as que não querem a
eutanásia, mas estas são, também, as que menos sofrem, e aquelas para as
quais o martírio é justificado. Mas as outras, as que desejam a morte, não
querem esse martírio, o que já, per se, é um martírio.

O Princípio da Divinidade da Vida conflitua, em parte, com o da Liber-


dade individual, ambos possuem o seu peso, e ambos podem ser compreen-
didos nos termos de uma determinação. Somente a verdadeira Divinidade
poderia acrescer algo à equação, doutro modo, é apenas mais um quantum
que vale o que vale e se vem dissipando à medida que nos entregamos à
modernidade liberal, no seio da qual o outro Princípio parece valer mais. Há
questões que deveriam ser mantidas ocultas, para que a equação não seja

185
Luís Coelho

complexificada sem necessidade. Por outro lado, uma mudança no equilíbrio


não é uma fatalidade demoníaca, se o é, visa, meramente, a transposição de
uma inércia.

Dizer que a Vida é divina não nos obriga a nada, passe-se a heresia vita-
lista. Não sabendo, de todo, o que nos reserva o outro mundo, neste, a
Liberdade só pode expressar-se como determinação. E, com esta, ressurgem
as variáveis Divinidade e Liberdade individual que labutam para desferir o
golpe fatal de um cômputo de insofrimento. Mas os que mais sofrem são,
precisamente, os que sentem mais o peso da determinação e que, por isso,
anseiam mais pela libertação. Os “outros” podem sempre defender-se com o
Divino, mas não são, tal-qualmente, imunes à desorganização interna. A
imposição de um dogma é o anseio de uma estabilidade. Quando “matar” é,
até, um modo de provocar a reacção de um Deus passivo.

O dogma da Divinidade da Vida possui um eco profundo na própria


Vida, tornado inconsciente, e, mais tarde, cultural e religioso. Apesar de rela-
cionado com a Natureza, acaba por fazer as vezes de um constructo cultural,
com primícia de Deus. É uma coisa fortíssima e que recai na liberdade indi-
vidual, mas, se Deus não existe, e mesmo existindo, não passa o primeiro de
um simples Sentimento que se apodera da nossa consciência. O seu limite é o
da própria razão idiossincrática, sofredora, interrogativa, dissidente, herética,
que, em nome de uma outra estabilidade, coloca o dogma em questão. O
sofrimento vale tanto que até desafia Deus. E é nestas alturas que se lhe colo-
ca certa responsabilidade. Porque, não podendo Deus justificar-se, toma o
Sujeito as rédeas ao seu destino. Com a possibilidade de chocar muitos
outros destinos e de ofender uma Liberdade maior, entretanto menorizada
pela tenção de uma democracia do intento plangente. São direitos vários e só
a liberdade genuína poderá ter a última palavra. Ou não, porque o que conta
para nós é sempre a consequência. Que dulcifica pela possibilidade de ser
medida. Em parte, claro, porque todo o sofrimento é irredutível, abstracto e
imensurável, o que, de mais a mais, vem deitar por terra o que quer que seja,
precisamente pela razão de a Psique ter as suas próprias razões em desmedida
constante e aberta. E, claro, o que está em jogo é sempre a consciência, o Ego;

186
O FisióSOFO

pensar que falamos de um porvir “espiritual” é, mesmo o próprio pensar,


reiterar a ordem do corpo. A liberdade é a própria imensurabilidade, a
impossibilidade de dizer que algo é melhor do que outro algo, o que, entre-
tanto, fenece todas as hipóteses de controlo racional e determinístico do des-
tino. No fim, renasce a dualidade intrínseca que presencia toda a Filosofia:
Eu vs. Todo, com o Eu a ser um Todo em potência, e o Todo a ser um Eu de
prepotência.

Entendemos que o paradigma psicanalítico é, na sua constituição inter-


na, um empirismo velado, na medida em que é sempre o Passado consciente
que inicia o processo associacional, e, também, na medida em que desvelar
implica desassociar estímulos que podem ter uma força subliminar. A força
do estímulo relembra a esfera do poder, mas, igualmente, nos lembra que o
recontro originário recruta a sinergia dos pequenos estímulos eróticos, fusio-
nais. Em «O Desenvolvimento da Personalidade», Jung refere dois processos
terapêuticos fundamentais: o “redutivo”, freudiano, e o “construtivo”, mais
adleriano. Só pode haver construção práxica, empírica, depois de esgotado o
processo inconsciente. O avanço deve ser preludiado pelo equilíbrio Incons-
ciente » Consciente. A carga energética inconsciente elevada pode conflituar
as novas associações, mas, se existir harmonia, ficará o Sujeito livre para ser
Objecto invontado, até que uma pungente agressão possa ressoar e (re)criar
o recuo neurótico. A evolução não requer poder, somente Eros. A Civilidade
recruta-o, alimentando a ideia de uma consciência prestimosa. O que blo-
queia o equilíbrio são as associações “negativas”, que cedo são reprimidas ou
introjectadas. A terapia é uma dessensibilização afirmativa, anamnésica, a
partir da qual podem ser empreendidas duas vias: a espiritual ou renunciado-
ra, ou, então, a “consciente”, a da Razão prática e moral. A segunda está,
quase sempre, de mãos dadas com a Liberdade espiritual, mas recusa partir
antecipadamente da labuta egóica, no seio da qual poderá empreender o
veículo terapêutico de outros agentes.

Quando o pensamento é uma cascata, é inútil citar fontes. Porque todos


os rios vão dar ao mesmo mar.

187
Luís Coelho

Só poderia conhecer-me com medo do desconhecido se o medo fosse o


próprio desconhecido.

Estava no talho a pe(n)sar o Valor da Vida. Ao que chegámos nestes


tempos! Nem a carne vinha cortada com dignidade.

Sofria! Estava morto por saber o valor da Vida. Ninguém lhe dizia.
Tinham medo de morrer.

Pensar se a Vida tem Significado dá significado à vida. Só por isso já


mereço morrer bem.

«– A: Quando a Vida tem mais perguntas do que respostas torna-se


indigna?!?
– B: Estás a perguntar ou a afirmar?
– A: Estava a perguntar-me.
– B: Que bela forma de te afirmares!
– A: Ora essa, estou indignado!»

«– A: Não te preocupas com isto da eutanásia?


– B: “Quando morrer vou deitado.»

A morte é sempre digna. Não é Deus que o diz. É a própria Vida. Quan-
do vive de buscar Deus.

188
O FisióSOFO

Quando falamos em Valores rapidamente nos dispomos a falar, igual-


mente, das consequências da sua prática efectiva, o que, per se, é uma contradi-
ção. Porque, havendo um modo de medir a resultante valorativa, ficaríamos
dependentes de um quantum, dependência essa que poderia, quiçá, obviar a
concentração e perpetuação do próprio Valor. A consequência faria o Princí-
pio. Mas se o valor do Valor é atido na sua abstracção, em certa irredutibilida-
de, ficamos à mercê das projecções, individuais e do Colectivo. Todavia,
falhando o discurso, a retórica, que restará da projecção senão a sua resultante
“culpada”?
Por enquanto, o Valor da Vida está associado a uma grande dose de
Culpa. E, por isso mesmo, há consequências para a traição do primeiro. Mas
isso não implica que a Liberdade individual não tenha, igualmente, o seu
peso. Que aconteceria numa Sociedade dominada pelo “individualismo”?
Menos vidas, menos consciência? Interessa pensar na resultante consciente
quando a Vida escasseia? Ou importará, somente, a Consciência inculpada?
Se a “liberdade individual” envolver menos sofrimento genérico isso implica
que devamos sustentar esse Valor mais do que qualquer outro? Há quem fale
na Natureza, mas a Liberdade individual também está de acordo com ela. Por
outro lado, a Consciência Social permite certo afastamento “cultural” susten-
tável face à Natura, mas não é provável que permita todo o afastamento pos-
sível, porque decerto que o corpo-mente possui as suas limitações vitalistas.
A limitação é implicada pela própria Cultura na relação com o corpo. Já a
transformação do corpo “genético” implica muito mais tempo. Como diz
Jung («O Desenvolvimento da Personalidade»), a personalidade é conserva-
dora, só uma forte Necessidade pode fazê-la adiantar-se. A Consciência
requer, desde o seu primórdio, uma dialéctica entre Natureza e Cultura,
nunca se esgotando completamente, mas parindo o seu esboço fundamental
nos primeiros anos, face aos quais, a cultura é, muitas vezes, atida enquanto
funesta. A assunção da personalidade não se faz contra a Cultura, serve-se
dela, contraindo plenamente o Arquétipo. Mas, havendo um complexo de
castração, a Cultura é tomada mais facilmente como inimiga. Daqui poderia
sobressair o individualismo, a projecção do “ego”. Esta pode implicar a con-
secução de novos paradigmas, mas mais centrados no poder. O “rebanho” é
o produto inconsciente desse poder prototípico. Porque subsiste acorrentado
a um Domínio racional. Para Jung, o domínio das grandes personalidades é
mais livre e salvífico, porque se baseia na plena consciência. Mas esta pers-
pectiva implica a reiteração de uma Razão como “superior” ou “mais arque-

189
Luís Coelho

típica” do que outras. Havendo algo realmente “melhor” seria, acaso, prefe-
rível defender este modelo. Se bem que tal não desmancha a potencialidade
de uma transformação empírica. O problema desta visão dogmática está na
possibilidade de existência de mais uma projecção “empírica”, do “senso
comum”, na perspectiva de Bacon. Porque, se toda a singularidade transfor-
mante implica certa neurose, não há motivos para pensar que a personalidade
não é, na verdade, mais uma compensação, no sentido da “vontade de
poder”. Esta seria, como tal, uma “liberdade” cultural, que, ainda assim,
poderia ser a projecção do Arquétipo, na medida de uma reacção face à frus-
tração.
Na mesma medida em que o “diferenciado” pode ser encarado como
“anormal”, neurótico, podemos ponderar o “anormal” como estruturado.
Jung considera um caso em que a homossexualidade masculina adviria da
identificação “edipiana” com a mãe, sendo que a heterossexualidade seria a
reacção estruturadora de assunção da plena singularidade “dianteira”. Mas não
estará, aqui, presente, mais uma vez, uma projecção precipitada da psicanálise?
Não poderia a homossexualidade consubstanciar a estrutura “normal” do
indivíduo, mesmo assumindo certa fusão – ou, talvez, algo de genealógico –,
sendo que a sua patologização adviria da projecção do próprio terapeuta? Por-
que uma fusão é uma “estrutura”, ainda assim. E, de modo semelhável, neuró-
ticos somos todos nós.

“Pessoas boas, precisam-se! Oferece-se taxa de integração no planeta


Terra.”

“Dos fracos não reza a História” porque os fracos ocupam-se a rezar


pela História.

Todo o mundo me dizia que o que eu via era uma alucinação. E eu con-
cordei. O mundo era a alucinação.

190
O FisióSOFO

Na escala da bondade encontramos o último grau de desprezo.

A melhor maneira de atingires um objectivo é agires como se já o tives-


ses alcançado. Para que não te tornes o que não és.

O Inconsciente Colectivo, o domínio de Pater face a mater, tende a ser


continuado pela Cultura, até que o novo matriarcado possa dominar, na sua
esfera transformativa e prazerosa. O primeiro pode interferir mais ou menos
com o Inconsciente pessoal, se este for robusto poderá, até, vencer a contra-
posição “normativa”. O Inconsciente pessoal possui algo de biogenético e
algo de biocultural. A parte primeira tenderá a determinar a sequente, mas
esta pode ferir a primeira. Se resulta uma estrutura forte, não haverá como
ser magoada pela Cultura vindoura. Se resulta uma estrutura ambígua, será
mais facilmente vitimada pelo que devém. A neurose produz a necessidade
de recuo nostálgico e transferencial ou de sublimação do Princípio idiossin-
crático.
O domínio Pater vs. mater constitui uma Ordem biogenética e cultural
mais ancestral do que o tabu do incesto. Pater é a representação, por excelên-
cia, da Estrutura, do Princípio da Realidade, que, em termos culturais, é subli-
mado na deidade. Se o rapaz se estrutura biologicamente por Pater, mas é con-
vertido à mãe, pode resultar uma ambivalência só resolúvel por Pater cultural,
que, entretanto, continua o Pater ancestral. Mas se a estrutura do rapaz é pre-
cocemente “feminina”, pode ser que a sua robustez primeva resulte numa
homossexualidade estrénua, capaz de fazer frente à Norma heterossexual.
Quando a Estrutura precoce é feminina e é surpreendida familiarmente por
Pater, ou quando a Estrutura precoce é masculina e é surpreendida familiar-
mente por mater, surge a neurose. No segundo caso, não poderá ser buscado o
apoio da estrutura “normativa”, senão para uma conversão radical. A compen-
sação também pode implicar gostos e/ou modelos teoréticos mais ou menos
masculinos vs. femininos, na relação dialéctica com a “Norma”.
Podemos imaginar uma dinâmica semelhante para a rapariga, com a
estrutura primária a convencer o “género” a opor-se mais ou menos ao que
se lhe segue. A força de uma Estrutura depende, em grande medida, do grau
de resistência “exterior”. Esta consigna o Princípio da Realidade, capaz de

191
Luís Coelho

colidir com a vivência prazerosa e imediata de um Eros primaveril. O jogo de


compensações poderá variar muito, pode ser que uma Estrutura substitua
outra ou com esta partilhe o palco da vida consciente.
O parricídio e o incesto são os crimes primaveris que mais contribuem
para a formulação de uma Ordem de adiamento do prazer. O princípio da
Realidade racionaliza e distribui a vivência libidinal. Traí-lo é (re)criar a Cul-
pa, o sofrimento.

O incesto representa o regresso ao Éden primaveril, ao ventre materno,


ele é a figuração da letargia em Thanatos, e surge, sobretudo, quando o géne-
ro parental corrompe o género primário. Pode ser que a situação da Culpa
seja inata, mas importa, também, conceber a estrutura primeva. O rapaz que
já é menina conflituará, assim, com o Pai, tal como o rapaz “normativo”
poderá ser castrado pela mãe. A primeira situação implica, talvez, a homos-
sexualidade “passiva”, enquanto o segundo será, acaso, homossexual “activo”
ou preferirá uma mulher dominante. O incesto remete para a fragilidade da
Estrutura, para a necessidade de negociar a relação com a figura “oposta”, o
que poderá levar a compensações diversas. A “normalidade” consta do parri-
cídio simbólico, seguido da superação do complexo de Édipo. Quando esta
não ocorre perfeitamente, acaba por tanger a compensação na relação futura,
incluindo a terapêutica. Existe, desde sempre, um duplo movimento dialécti-
co: a necessidade de individuação é alimentada pela ansiedade de castração,
nutrindo, por sua vez, a angústia de separação. O dilema pode ser repercuti-
do na inteiridade da vida.

Modelos patriarcais, modos de expressão do poder, são formas de impli-


car um domínio Pater vs. mater que incluem a compensação do complexo de
Édipo. O “género” e/ou “ideal” do parceiro e/ou terapeuta influem na relação
de modo muito empiricamente diverso. Perdura, mesmo na relação terapêuti-
ca, a dualidade compensação vs. sublimação. O incesto “perfeito” é uma regres-
são, um abraçar da psicose “mortificadora”, só esta funde genuinamente o
casal na Unidade.

192
O FisióSOFO

Quando o filho/a não “mata” o Pai/mãe, é provável que ele tente domi-
nar outra figura, ou talvez permaneça agarrado à figura primeva. O “terapeu-
ta” pode ser agente substitutivo ou negocial. O excesso produz ameaça e pro-
jecção.

Todos os crimes são passionais. Excepto o de Amor, que é homicídio


involuntário.

Quem ama e não pede por mais nem sabe o que perde. Porque já não
tem nada a perder.

Não perdeste uma boa oportunidade para estar calado. Porque estar em
Silêncio não é oportuno, é a oportunidade.

Os telejornais estão sempre preparados para uma pandemia. Pena que


respeitem mais o tempo de antena que o de quarentena.

Não diríamos “O que é que o cu tem a ver com as calças?” se o cu não


vestisse as calças e estas não quisessem deixar de ser encuzadas.

Faz sentido discutir a castração química de pedófilos numa sociedade


onde se castram as crianças?

Será o Coronavírus uma nova agência de rating? Quando começam a


vender-se as vacinas?

193
Luís Coelho

Ao avaliar o nível de Inteligência do mundo, e contrapondo ao nível


que sempre lutei para ter, só me resta sentir-me estúpido. Mas é algo que
ainda não consigo, por maiores que sejam os meus esforços.

Compete à Eternidade salvar de vez com que se faz a perpetuidade. O


“eterno retorno” de Nietzsche, na acepção de Marcuse («Eros e Civilização»),
é o regresso finito à eternidade do princípio do prazer imediato, mediante a
plena extinção do jogo perpétuo de domínios. O materialista pessimista dirá
não haver com que findar este “retorno do reprimido”, já que a opressão
relevada pelo Princípio da Realidade é a condição da própria existência téti-
ca. Mas o materialista “utópico” acreditará, porventura, no domínio de Eros,
na transformação da lógica hegeliana e dialéctica numa lógica do Amor, da
Unidade orgânica, em que o Logos é comutado pelo Sentimento, destronan-
do, assim, o império da Razão dominante, que, todavia, compensa e confor-
ta, mimetizando a “gratificação” erótica.

Assim, para Marcuse, o domínio de Eros não se concretiza na Razão


dominante, e também não corresponde, de todo, ao “Espírito”, que é a essên-
cia de Thanatos, com esse a corresponder à clássica projecção “racional” e
nadificadora que desacredita a virtude e salvação terrenas. A moral “religiosa”
é, somente, repressão denegadora da solvência erótica. Ela projecta a descrença
na salvação em terreno “vital”, carnal, tentando frustrar o exercício instintivo.
A salvação “carnal” consigna o regresso “natural” ao homem espontâneo,
“imediato”, in-consciente, resiliente face ao Princípio da Realidade. A harmo-
nia não requer “vontade de poder”, somente simbiose. Esta “personalidade
espiritual” (Jung) constitui o alcance “realista” da Unidade Sujeito-Objecto.

Sendo assim, o Ser é o Ego, personalidade ôntica, na sua riqueza sinérgi-


ca, capaz de crescer e espalhar a harmonia in-consciente, imediata, onde o
Sofrimento terá sido extinguido e o Passado redimido. Atemos, aqui, a plena
mediação esquemática entre a Razão dominante e o Espírito deiético, a cen-
sura superegóica e o Silêncio opressivo, onde Eros se assume como “paz”

194
O FisióSOFO

simultaneamente parricida e incestuosa. É o “Espírito”, ainda assim, é o


Homem ancestral, prévio à Realidade proibitiva, culposa.

A “evolução criadora” (Bergson) parte, então, da Inconsciência primor-


dial e espalha a sua graça pelo Homem “erótico”. O Princípio da Realidade é
um modo de fazer prevalecer o Homem consciente, à custa do Colectivo
culpabilizador, mediatizador. O progresso “racional” é o preço a pagar, o
caminho para a Intuição, que só pode ser adiantado plenamente se o poder
ceder face ao amor. Porque o poder perpetua a dualidade e o Amor contrai
os pólos, destacando o prazer perpétuo, em que a Consciência se faz orgas-
mática na relação incestuosa com o Inconsciente.

A fobia do incesto é um receio de Inconsciência, do ponto em que as


fronteiras se extinguem e sublevam o domínio. Os mais carnais não quererão
renunciar à Consciência, porque a vida vicia. Mas é certo que a Consciência
também é uma renúncia.

É o “princípio de desempenho” que consigna o princípio de Realidade


requerido à individuação, que é a expressão (super)consciente do Ego, no
desligamento com o Inconsciente primordial. A “luta” é a manifestação do
Eros em antevisão da opressão que cria a agressão “dominadora”. Ela resiste
à “morte” a partir da Estrutura, que, por sua vez, se arreda da morte originá-
ria.

Se, para Freud, a retroacção civilizacional seria requerida à aquisição do


equilíbrio, para Marcuse, a reequilibração entre Eros e Thanatos, entre o
Princípio da Realidade e o Princípio do Prazer, implica, necessariamente, a
superação do Princípio do desempenho, do paradigma da labuta, de modo a
anelar a consecução de um novo Princípio da Realidade, próximo da plena
gratificação. Esta não deixa de envolver a projecção, sublimação, de uma
necessidade de libertação face ao trabalho alienado, que, para muitos, com-

195
Luís Coelho

pensa e abstrai. Já não se trata de fazer com que o trabalho mobilize as ener-
gias libidinais, ou de que a Realidade crie mecanismos prazerosos de abstrac-
ção, trata-se de superar completamente o paradigma da labuta, colocando a
libido ao serviço da Criação, que é o modelo, por excelência, da pós-
-modernidade, onde a ciência e a automação substituem a força manual do
homem, e o Espírito emprega o Sonho, a força da fantasia. A última não dei-
xa, todavia, de constituir uma projecção neurótica, que abarca a potência de
um Inconsciente que pede para se expressar, o que poderia ter sido escusado
por outro tipo de compensação ou mediante o exercício de uma terapia
anamnésica. Esta consigna o modelo do recuo, coisa considerada impraticá-
vel na modernidade. O trabalho de um terapeuta pode, ainda assim, ser con-
siderado como frustrador da revolução, por consentir a felicidade, quando o
novo paradigma quer muito mais, nomeadamente a realização integral do
“ser humano”, mediada pela prática da criatividade. O novel modelo exige,
apesar de tudo, a força revolucionária dos desadaptados, levando, talvez, à
desadaptação de muitos outros que se servem da Norma. Em período mater,
a última coloca a ciência ao serviço da produção de necessidades artificiosas,
processo pelo qual o Princípio do desempenho se perpetua. A alienação inte-
gra todo o mecanismo “moderno”, o objecto é o de projectar uma felicidade
impermanente que mimetiza o Princípio do prazer. Mas este é, na melhor
das hipóteses, escravizado pela Realidade, servindo, assim, a minoria pluto-
crata. O modelo “liberal” cria, inclusive, a própria noção de que o intento da
pós-modernidade não supera a mera utopia, levando a que a potencial massa
revolucionária substitua o seu objecto pela prática das terapêuticas, do lazer,
do entretenimento, do que sirva para confortar. Conforto que não redime
plenamente, nem o paradigma pós-moderno o faz, se bem que se aproxima
mais tacitamente da remissão do pretérito, podemos conceber o período do
equilíbrio igualmente como algo frustre, prestes a originar o novo período
involutivo. Mas somente esta dinâmica permite o deslocamento do Princípio
da Realidade, porque o Equilíbrio pleno é já não haver Realidade, mas se a
Consciência perdura é necessário que existam mecanismos sempre renová-
veis de vivência erótica, o que pode acarretar a sublimação cada vez mais
criativa da fantasia, do Sonho, do Espírito. A Arte surge, assim, como criado-
ra das suas próprias necessidades, de outras modalidades de projecção do
Colectivo ancilar, este processo, sim, é retroactivo, pelo que um Passado cada
vez mais recôndito pode ser sublimado até que a pura Inconsciência tome a
dianteira. Mas esta terá, talvez, a própria defesa consciente, de uma Realidade

196
O FisióSOFO

que quer escapar ao Silêncio, burilando mecanismos de nova luta árdua. E,


assim, se esculpe o novo Domínio, capaz, por sua vez, de catapultar novos
sonhos e fantasias. O processo fica a parecer-se com algo puramente empíri-
co, que resume a remissão e gera novas “razões” para a Salvação. Obviamen-
te, se a Razão muda, os mecanismos “empíricos” podem mudar também,
mas, aqui, é a limitação da minha imaginação que impõe a baliza, deixando
que o porvir tenha a palavra sequente.

Assim, não enquanto necessário recuo, mas assumindo a pura matura-


ção existencial, o que é advogado para a nova fase da evolução é o abraçar do
modelo do narcisismo primário, no qual o Sujeito se recusa a abandonar o
Objecto, anelando a própria Natureza, pela via do Sentimento, da libido
primaveril, enjeitando, assim, a Razão, o Logos repressivo. A “Grande Recu-
sa” é a da intrínseca “individuação”, de um novo domínio, pelo que se enlaça
a Natura, a Unidade arquetípica onde afloram, reacordam, os elementos do
Inconsciente Colectivo, representados, acaso, pelo Orfismo-narcisismo. A
proposta de Marcuse pode ser vista como “neurótica” pelo “dogmatismo”
institucional, há aqui a sombra da restituição da plena Infância do mundo.

Portanto, a Unidade primordial implica uma homossexualização, pedo-


filização, do mundo, com a sublimação da Energia primária, cujo “sofrimen-
to” é veiculado pela repressão entretanto superada. O novo modelo é mais do
que compensação ou restituição, é uma afirmação órfica que se opõe ao
mundo “prometeico”, à antiga ordem meramente parricida. Encontramos,
aqui, o Eco do matriarcado, e também do primeiríssimo Pater, quando o Ego
não assume a “máscara”, a separatividade.

Há, então, um domínio de Criação “estética”, um Verbo remissivo que


reconcilia corpo e Espírito, desejo e entendimento, e que representa uma frac-
tura sublimatória com o antigo domínio dual. Restitui-se Pater não enquanto
compensação, mas mais como período derradeiro de unificação pós-moderna.
Tempo, ego e consciência são tragados pela Natureza pacificadora das coisas.

197
Luís Coelho

Muito para além de uma mera sublimação “espiritual”, a nova etapa da


Imaginação estética representa o vencimento e superação do domínio do
desempenho, e o alcance de uma Era de “razão sensualizada”, em que o Ime-
diatismo dos Sentidos toma a dianteira da relação remissora com o tempo. Já
não se verifica a relação do corpo com a labuta, mas sim a relação com a
sensualidade “romântica” que quer o “Belo” enquanto “meio” e “fim em si”.
A Beleza dá Sentidos à Natureza espiritualizada, a Energia libidinal visa,
somente, servir a Criação, numa época em que as necessidades carnais bási-
cas foram já cerzidas e a Razão clássica, que enforma a repressão, ultrapassa-
da.

A etapa “estética” de Marcuse dá, assim, a primazia ao Inferior face ao


Superior, pelo que o Irracional vence a relação de domínio com o mundo,
não pela manifestação do Caos, mas pela (re)ligação unificada com a Nature-
za das Formas belas, que harmoniza Realidade e prazer, Vontade e represen-
tação, numa esfera de Eros civilizacional onde o Sentido se adivinha “inútil”,
intemporal, servindo o presente da Necessidade mais próxima e livre dos
desejos.

Este é o domínio do Corpo satisfeito, dominado, irrazoado, em que o


desejo é imediato e visa restabelecer a Ordem plena e nunca perdida de um
Presente de plenitude criativa, onde o Nada refreia a inutilidade. Hegel, Her-
der, Novalis, Schiller, são alguns dos homens que esboçaram uma atitude
“romântica” condizente com a Era em que o Sentimento haveria de destro-
nar o “sentido” da produtividade mesquinha, que, por sua vez, havia de gerar
a liquidez (Bauman) da hipermodernidade (Lipovetsky), em que a ciência
resiste à própria Razão e demanda contra a criatividade e a intimidade.

O que se pretende com a nova etapa civilizacional tem qualquer coisa


do retrocesso à Alma infantil, à liberdade sexual primaveril, mas sem o cam-
po edipiano ou a perversão de uma regressão da Humanidade. O recomeço

198
O FisióSOFO

implica a superação de uma Cultura de repressão, em que a sexualidade ficou


votada ao campo “privado”, familiar, monogâmico, genital e reprodutivo. A
revolução sugere a totalização da sexualidade, com a nova “racionalidade
libidinal” a estender o tecido erótico a todas as esferas sociais e relações cor-
póreas. Assim, de um contexto patriarcal e familiar, a nova sexualidade afir-
ma-se como polimórfica e multi-social, consignando um novo paradigma de
unidade social, sem, todavia, ser requerida a retroacção incestuosa que pode-
ria desfazer o modelo da Civitas.

Contrariamente a uma sublimação que advém da repressão, a nova


sublimação erótica dirige e satisfaz o instinto “individual” para/pela consecu-
ção de uma Cultura libidinal que perfilha o Todo polimórfico. A Civilização
é renovada pela livre canalização das energias libidinais a partir de um indi-
víduo que não se subtrai a um domínio.

A nova “racionalidade libidinal” subtrai-se à necessidade de domínio


em nome da “luta pela existência”, da reprodução do modelo familiar, abra-
çando Eros enquanto tecido de uma União sinérgica que se (re)organiza
crescentemente para fazer permitir a fruição, a satisfação dos instintos. O que
a Cultura “erótica” consente é a imediata resposta instintiva, sem que esta
implique, ou advenha da, consecução (alienada) de um alvo produtivo.

O paraíso “perdido” é necessariamente “materno”, ele é o Eros ancilar,


e dele pode brotar a Estrutura com sua própria moralidade, o “superid”,
permitindo que ao mesmo paraíso possam chegar muitos dos “escravos” do
Princípio da Realidade. É o último que enforma o Ego, o próprio Pater, que
nele se revê. A regressão é “homossexual”, na medida de uma identificação
primária edénica sem o compromisso da realidade Pater. São os pré-egóicos
que menos se adaptam à moralidade repressiva. Os que mais se adaptam
possuem primariamente algo desta moralidade. Obviamente, não convém
confundir a repressão “educadora” com a “mais-repressão”, demonizada por
Marcuse. A primeira é cabalmente estruturadora, a segunda avassala, mas

199
Luís Coelho

nem sempre existe essa consciência. A meu ver, a medida da repressão


depende da consciência “real”, que pode ser mais ou menos primária, e varia
com o grau de atrito. A castração “materna” impede, por exemplo, o rapaz
de se identificar com o pai, mas, se não é sentida enquanto castradora, pode,
simplesmente, preludiar a estrutura homoerótica do filho. Neste caso, uma
terapia poderia ter como objecto tão-somente compensar a desadaptação à
realidade. Mas certo dogma psicanalítico acredita ser possível tanger a plena
estruturação “egóica” patriarcal. Não sendo permissível conceber plenamen-
te tal transformação, no mínimo teríamos de questionar a relevância do pro-
cesso. Porque a Estrutura primária poderia ser aceite exactamente como tal,
enquanto certa e recomendável. E, no entanto, não existe, precisamente, o
mesmo intento “repressivo” da parte daquela Estrutura, cuja moralidade
consubstancia o respeito pelo “outro” na medida em que permite adiar a
gratificação erótica e primaveril.

A moralidade primária é, assim, o busílis da Estrutura edénica, permi-


tindo gerir o “regresso” à Deidade sem a “mais-repressão”. É, no fundo, o
intento “educador” inclusivo, remissivo, que permite unir sem a rude repres-
são. Ela acalenta, tolera, exaure o tempo culpabilizador. Respeita, como tal, a
liberdade individual, desculpabilizando, tragando um trajecto íntimo simul-
taneamente primário e maduro.

Aceitar que o Princípio “erótico” é obrigatoriamente desejável é um pou-


co como aceitar a obrigatoriedade de um Princípio da Realidade. A dimensão
“relativista” escusa-se a tal coisa. Mas o problema é de cerne epistémico, não
da realidade em si. Podemos, sempre, conceber que há um Princípio da Reali-
dade que desadapta muitos indivíduos que podem, por sua vez, ser auxiliados
na assunção do seu próprio princípio (edénico). Quem os ajuda é o terapeuta
“edénico”, principesco. Se o princípio edénico se afirma, e se ele é de facto
primário, é plausível conceber que a ele se associa a própria Natureza moral
primeva, o superid, capaz de respeitar o movimento dos novos desadaptados.
Os quais podem ser auxiliados na aquisição do mesmo princípio. Mas se este é
apenas mais um princípio “dominante” repressivo, é possível que os novos
desadaptados catapultem o seu princípio, renovando, quiçá, a repressão. O que

200
O FisióSOFO

é falsamente edénico é sempre repressivo porque impõe o seu conteúdo aos


desadaptados.

O que resulta da conjugação entre o Contrato Social e o Coronavírus? A


cura da agorafobia.

Quando todos passaram a ter medo de se tocarem, ele tirou finalmente


as luvas. Foi um desafio. Para um duelo. Teve “morte natural”.

O Coronavírus e os humanos ainda estão na fase dos primeiros encon-


tros. Quando a relação se tornar mais séria, sobressairão as invejas. Mas eu
coloco uma esperança eterna no ressentimento.

Disse-te que não saía com desconhecidos. E tu, pondo a máscara, lavas-
te-me a boca com sabão. Tarde de mais, já estava contagiado. Muito depois,
quando te amei de verdade, outros tentaram higienizar-me.

Quando, em estado de invernia epidémica, os portugueses escolhem,


antes, o veraneio pandémico da praia, isto leva-me a ter esperança. Afinal
sempre se prefere a areia ao culto dos germes. O aglomerado da praia é um
exercício de liberdade. Apesar das instâncias, o povo escolhe o mar ao invés
do papel higiénico. Pior do que isto, só se ficassem em casa a ler um livro.

Caro povo português: Em substituição do papel higiénico, recomendo


fraldas.

Se o ridículo matasse estaríamos vivos.

201
Luís Coelho

O mundo está prestes a parar e a ter de lidar com o Silêncio. É um casti-


go severo para quem não está habituado a morrer.

O espectro da doença e da morte é um teste à (des)humanidade das pes-


soas. No momento de se contarem as vítimas, apercebemo-nos que morre-
ram muito mais pessoas do que aquelas que foram privadas da vida. Depois,
vem a fase do esquecimento, que é uma forma de varrer tudo para debaixo
do tapete da consciência. Tapete vermelho, aspirado consecutivamente, para
que o pó não venha desequilibrar o portento dos anjos.

O que não nos mata torna-nos mais neuróticos.

A grande prova da Imunidade está na atitude de todos perante uma


situação “pandémica”. Uns aproveitam-se, enquanto outros se aproveitam
do melhor de si-mesmos. Surge a oportunidade de nos redimirmos, enquan-
to tantos infectam o futuro.

O que mais assusta no “fim do mundo” é precisamente o facto de o


mundo não morrer com o fim da Humanidade.

Este é um momento capital para a assunção da Fisioterapia junto dos


utentes. Particularmente para a Fisioterapia respiratória, exorto a que não
deixem de estar presentes. É, também, um momento de pensar na possibili-
dade de trabalho de “banco”, fora dos horários habituais da Fisioterapia. Se,
perante a pandemia, os fisioterapeutas não se mostrarem indispensáveis, é
fácil perceber a desvantagem para todos. Ademais, enquanto profissionais de
saúde racionais, as pessoas esperam de nós um marco de força, um exercício
de segurança. Há, claro, um espectro negro associado a tudo isto. Estamos

202
O FisióSOFO

muito expostos e, sobretudo quando tratamos vários pacientes ao mesmo


tempo, podemos servir de via de contágio. Por outro lado, já se verificam
contextos de “dispensa” do profissional. Obviamente, quem está a recibos
verdes fica altamente vulnerável. O que multiplica a necessidade de nos mos-
trarmos polivalentes e “urgentes”.

{Coronavírus e Fisioterapia11}
O que diferencia genuinamente a Fisioterapia das outras práticas de
saúde ligadas à motricidade é o toque. O contacto manual funde-nos com o
paciente, laborando um objecto comum. O caminho é racional e idiossincrá-
tico. A multiplicação do Coronavírus não mata a racionalidade ou a indivi-
dualidade, antes exponencia a sua necessidade. Porque uma situação inédita
implica medidas criativas. E porque uma condição de “excepção” obriga à
coragem moral de estar “com”, sem o desabrigo da quarentena tácita.
Muitos “modernos” gostariam que a Fisioterapia fosse progressivamente
massificada e desindividualizada. Conseguiram, sim, que o número exponen-
cial de pacientes nas clínicas colocasse todos em risco. Não há higiene manual
possível quando se tratam dezenas de doentes em simultâneo. Há, apenas, a
pertinência da higiene dos comportamentos, que se vendem como receitas a
pacientes desinvestidos e sem o necessário acompanhamento ciente. A indivi-
dualidade possibilita encadear ciência de “grupo” e racionalidade personaliza-
da. Mesmo em contexto de pânico, em “estado de sítio”, é possível e recomen-
dável “parar” para que uma estratégia seja esboçada com coerência.
É verdade que algumas tarefas “fisioterapêuticas” podem ser considera-
das adiáveis. O que, de mais a mais, convida ao desemprego dos profissionais
precários. Mas é também verdade que certas necessidades irão urgir, obri-
gando ao encadeamento de uma nova dinâmica. Necessidades “respiratórias”
e de exercício não podem deixar de recrutar os terapeutas num novo contex-
to “de banco”, e até nocturno. Os cuidados de enfermagem, per se muito
respeitáveis, não são “Fisioterapia respiratória”. E “Cinesiterapia respirató-
ria” é um conceito esquivo, e não exclusivo aos fisioterapeutas. O método
específico destes profissionais possui um alcance único, “evidente” e, mais do
que nunca, imprescindível.

11
Publicado no jornal «O Diabo», na «revista Bica» e em «Triplov», Março de 2020.

203
Luís Coelho

Paciente e o próprio terapeuta são os agentes de um processo que não se


inicia ou finaliza no imediato. O imediato é o inerente espaço terapêutico em
que o tempo se esgota na fusão de um caminho, do qual deve sobressair um
equilíbrio contagioso. A crise é a oportunidade de melhorar capacidades e de
desenvolver novas valias. Um vírus é, bem vendo, uma proa de (re)acção
onde se devem deslocar todas as sinergias. Só isto pode repudiar o clima de
morte e apreensão. Doutro modo, já estamos mortos e a luta é iníqua. A
atitude terapêutica é uma potência de “vida”, e a morte é vencida quando se
vence o próprio medo. Para este objecto não há zona de quarentena, há, sim,
zona de guerra “libidinal”, onde o contacto é seguro e aprovável. Zona de
Eros, em que o poder e a “luta pela sobrevivência” se fazem de uma só bên-
ção.
Não deixemos, portanto, que a “potência” estrague o objecto do sofri-
mento, que é o de crescer e redimir os erros do passado. Se não estivermos à
altura, sobreviveremos de esquecer o pretérito e de varrer os destroços para
debaixo de um tapete “vermelho” por cima do qual caminharemos com o
orgulho e um falso arrependimento. O actual “estado de excepção” também
desperta passados ressentidos e “ajustes de contas”. Compete aos profissio-
nais dar o exemplo da acção objectiva, altruísta e equitativa.
Ninguém pode ser subtraído ao contacto. A própria equipe de saúde vai
ter de aligeirar as antigas querelas. As luvas não são para ser tiradas só num
momento de duelo. Podem ser mantidas e permitir que as mãos se façam
presentes. Por sua vez, as máscaras consentem muitas vezes que as outras que
usamos sempre se façam de fragilidade. Num país onde o papel higiénico se
esgota, devemos, cada vez mais, tirar as fraldas. Para que o sol nasça para
todos, na praia dos hóspedes divinos.
É por isso que exorto os terapeutas a darem o máximo de si, num para-
digma de segurança e dignificação. As regras e a ciência só fazem sentido
num clima de razoabilidade e abnegação. Para que não acabemos a escolher
os pacientes mais “produtivos” e a negar-nos à velhice. Para que nós mesmos
nos tornemos velhos realizados e contaminados de “boa vontade”.

Sou doutorado em “Distanciação Social”. Por que ninguém me pede


uma entrevista?

204
O FisióSOFO

Algumas pessoas, forçosamente fechadas em casa, e em situação de soli-


dão anacrónica, perguntar-se-ão, pela primeira vez, sobre o Sentido de tudo
isto. Direi, apenas, que o prognóstico não é bom. Felizmente, ainda temos o
placebo televisivo. Mas sem “Big Brother”?...

Quando me dizem que “brinco com coisas sérias” nunca sei se estão a
brincar comigo.

O cãozinho do anúncio do papel higiénico (Scottex) pede para ser adop-


tado. Acabou de ser posto na rua.

Para muitos fisioterapeutas, a actual situação é dramática, incluindo o


ponto de vista sócio-financeiro. O clima de “peste” convida ao afastamento do
contacto, quando ele continua a ser fundamental. Compete a nós mostrar que,
nos termos vigentes, não somos profissionais descartáveis. Podemos educar e
consolar. Mas podemos, também, agir “intensivamente” no palco de “guerra”.
Esta é uma oportunidade de ouro para a Fisioterapia respiratória. Não deixem
que sejam os “outros” a fazer tudo. Ou arriscamo-nos a entrar num caminho
sem retorno possível. Não se pede competição, pede-se sinergia. Mas, essen-
cialmente, presença. Ao ver que tantos de nós interrompem as suas tarefas,
temo que algumas pessoas pensem que “quando a porca torce o rabo, os fisios
não são cruciais”. Se não queremos ser demolidos pelas representações sociais,
temos de representar-nos junto dos problemas. E isto estende-se à prevenção.
Podemos motivar para a prática do exercício, para a escuta do corpo, para a
profilaxia da “histeria” somática, para o tracto das consequências da imobili-
dade caseira. E devemos ser um marco de contenção, promovendo o relaxa-
mento sem laxismo, o “pulso” sem entorse da dignidade. Convido todos a
disponibilizarem-se para os vossos pacientes: compreendendo, arriscando,
informando.

Enquanto houver Cais do Sodré há esperança. Os utilizadores da “night” já


passaram uma mensagem ao vírus: “Vai-te lixar!”. Todos sabemos que o despre-

205
Luís Coelho

zo é a melhor cura. E que de nada serve ser catastrofista. Aquela malta treina a
imunidade de grupo. A melhor vacina para o sarampo, aliás, Coronavírus.

Mandaram-me uma mensagem privada sobre o Coronavírus. Não abri.


Tive medo que fosse um vírus.

Disseram-te para tossir para o cotovelo, não para assobiar para o lado.

O que não te mata põe-te em quarentena. Por isso, somos mais fortes.

Queres ser altruísta? Sê anti-social, bicho do mato, misantropo, não parti-


lhes, medita, masturba-te, dentro de casa, é preciso seres por ti para seres para
o outro!

Segundo Foucault («O Nascimento da Clínica», 1963), a “doença” é uma


categoria independente que separa o clínico da natureza íntima da patologia,
pelo que a sua planura contrasta com a tridimensionalidade “natural”, que é
a realidade sem abstracção. A “Clínica” substitui a doença pelo sintoma, e,
antes disso, expressa uma caracteriologia “classificadora”, que é a realidade
empírica, objectiva, a apartar-se da individualidade, tanto do paciente quan-
to do clínico. A medicina “classificatória” coloca-se, ela mesma, entre os dois,
comutando a própria realidade, ela constrói a “doença” com sua espessura
“discreta”, substituindo-se à continuidade “filosófica” de um tempo pré-mo-
derno e ante-liberal.

Costumo ser muito tolerante com as crianças. Porque elas têm sempre
desculpa. Mas vou passar a ser, também, tolerante com os adultos. Porque
eles têm a desculpa de não serem crianças.

206
O FisióSOFO

Ao colarem as máscaras, todos mostram, cada vez mais, a verdadeira


face. É a do animalismo, a distopia que é a Utopia da desilusão. Há que racio-
nar, mas todos querem o excesso. A questão, agora, não está em sobreviver
ao vírus, mas ao próprio “ser humano”.

O custo de não racionarmos os comportamentos está em racionalizar


tudo depois, quando a memória tem fome.

Não é o Apocalipse, mas é um tempo de julgamento, em que o Homem


viraliza a Verdade, contamina a Realidade, raciona a esperteza. O que não
controlarmos agora irá controlar-nos. Portanto, sejais dignos, para que não
sejamos pior que o vírus, que se limita a obedecer à natureza.

O que vejo, agora, nas ruas, é o Homem que tantas vezes tenho acusado.
O animal está a mostrar as garras. Pergunto-me quantas vítimas serão neces-
sárias para produzir a genuína Consciência? E que é dos filósofos que, entre-
tanto, parecem absortos nas suas realidades, na lonjura do ego mnésico, que
é dos poetas, que continuam a escrever para si-mesmos? A Arte precisa de vir
para a rua, revelar a sua máscara de rendição. Mas, quando a porca torce o
rabo, temos o quê, a matança do porco? Prometo ser testemunha, prometo
não calar o que vejo, que não é surpresa alguma, mas continua a não ser
bonito.

Num tempo em que precisamos do enlace libidinal dos afectos, não


podemos abraçar-nos. Este vírus não é o “fim”, é, sim, um destino paradoxal:
quando mais temos de nos unir, somos forçados a despertar a fera, a frontei-
ra, o poder. Assim, nem o Homem se pode redimir, porque a besta cala a
lágrima, aguçando os sentidos e a sobrevivência, velando, mais uma vez, o
coito do arrependimento.

207
Luís Coelho

O “estado de excepção” não é uma excepção, é, sim, a possibilidade de


despertar a regra. Pode ser que, forçado a dar de si consigo mesmo, com a
besta que nos constrange, o Homem possa reaver o seu destino, que é o de
voltar a esquecer, cimentando novel Regra.

E palmas para os técnicos de Higiene pública, Saúde ambiental, para


quem esfrega os chãos arriscando a saúde, para quem limpa a merda, incluin-
do o papel, os jornais e o “passa palavra”, para quem lava as paredes dos hospi-
tais e controla o que estas redimem, para quando a honra aos que satisfazem o
erro?

Há uma conspiração para fazer passar as teorias da conspiração por


verdadeiras.

Conspira-te. Para que possas expirar-me. O que ficar de mim em ti, não
o aspirarei.

Aspiro à Conspiração eterna. No deserto das almas que sibilam.

Para estes tempos, hei-de comprar uma arma. Para matar o pânico.

A verdadeira Pandemia é o exercício da democracia directa a que cha-


mamos “É cada um por Si”. É a justa e a mosquetada da Ordem cavaleiresca.
No pandemónio tricolor do Graal.

208
O FisióSOFO

Estou infectado de Amor. Por isso, alugo-me! Para que possam sair de
casa. E crescer sem higiene.

De acordo com o novo “Estado”, a Liberdade de expressão não será


suprimida. Pode, aliás, até ser que ela passe mesmo a existir.

O “Estado de Emergência” é desproporcional e precipitado. Até porque


mais me parece aquele tipo de “emergência”, adstrita às infecções urinárias,
em que a vontade é muita mas sai tudo às pinguinhas. Mas não se iludam
que, por trás da infecção, está a vontade de nos proibirem. Ficaremos reduzi-
dos ao sexo virtual e à ejaculação precoce. (18/03/2020)

Este “Estado de Emergência” é o exemplo perfeito de um «É preciso que


tudo mude para que tudo fique na mesma».

É permitido ter uma doença que não seja Covid-19, ou é spam?

À imagem do Boccaccio, para mim, tempo de “peste” é tempo de inspi-


ração. Pena que tenhamos de pôr a máscara. Pelo que mais vale expirar, para
abraçar o pathos de morte, o sortilégio da ascensão.

Neste tempo “caseiro”, prometo entreter o Facebook. Hei-de aborrecer-


-vos tanto que terão de escolher: ou reflectem ou adoecem. De qualquer modo,
sou um vírus, e não vale a pena porem a máscara, que eu sou omnipresente. E
sou imune a vacinas, a não ser que se ponham a ler-me, baralhando-me a
intenção.

209
Luís Coelho

{Ecce Coronavírus}
Desci, enviado por meu Pai, para julgar-vos.
Eis a minha Ordem de trabalhos:
• Iludir-vos e desiludir-vos conforme a consciência;
• Adoecer-vos, ora matando-vos, ora acordando-vos;
• Vingar os fracos, entre desadaptados e microrganismos;
• Vingar a natureza, que já respira de outro modo;
• Mostrar-vos que a Lei humana de nada vale;
• Instaurar a Nova Ordem Mundial, pela desordem;
• Eliminar-vos, enfim, da face da Terra.
É favor assinar por baixo.
Aviso, desde já, que muitos se farão passar por mim. Não temeis: qual-
quer um serve.
Março de 2020

No dia do Pai, passámos a ter um Pai autoritário, um Estado policiado,


o que é uma boa notícia, pois talvez acabem, de vez, os carros em contramão
na minha rua. Por seu lado, a minha mãe ainda insiste em subir a calçada de
carriche. Leva as feministas às costas e a preocupação de pagar as contas.
Outras agarram-se às contas do rosário, esperando que Deus não feche os
cabeleireiros.

Feliz dia do Pai, Senhor Estado. A mãe “democracia” já foi para a cozi-
nha?

Tossi para o ecrã. Será um vírus informático? Contagiei ou fui conta-


giado?, eis a questão! Pesquisaria, se o computador me deixasse.

Podemos correr sozinhos. E passear o cão. “E correr com o cão?” É o


que perguntou o meu vizinho sem cão. Correu com ele quando espirrou.

210
O FisióSOFO

Off-topic: Vendo máscaras em segunda boca. Mas, primeiro, tenho de


aprovar a boca. Com um termómetro de mercúrio abrasado. Na presteza da
saliva que enruga.

A primeira coisa a morrer é a vaidade. A última, o orgulho.

#StayTheFuckSpirit. Não me entendes? Já Lá estás. Por isso estou a falar


para o boneco, que os homens inventaram para que falasse comigo.

De acordo com XXXX (2020), o “69” é a forma aconselhada de sexo


para prevenir o Covid-19, desde que não exista reutilização das extremidades
por terceiros, sem a prévia desinfecção. O Amor livre e “circular” deve impe-
rar, feito, naturalmente, com preservativo. Em breve, será realizado um vídeo
“on-line” com as instruções de “Como fazer (para que não faça você mes-
mo)?”, com participação de actores do “Terceiro Mundo”, previamente des-
parasitados. Assinado: Uma empresa do Primeiro Mundo.

No dia do Pai, quis dar-lhe um abraço. Fiquei profundamente marcado.


Com a bengala.

Veneza renovou-se mais depressa de que o tempo que levei a dizer


“Roma e Pavia não se fizeram num dia”. Eis o poder da canalização natural.

Açambarquei-me de alimentos. Para a Alma. São muito úteis, agora. O


frigorífico? Continua vazio. Mas empresto gelo!

211
Luís Coelho

Entendamos, de vez. O inimigo não é o vírus, somos nós. Enquanto


desrespeitarmos a Natureza com as regras de uma ética truncada, virão, sem-
pre, cada vez mais, espécimes simples para nos eliminar. Não é a Natureza
que é má, é o Homem que está a mais. Isto à boa maneira de Rousseau. Mas
também à maneira deste, ou de um Hobbes, é, igualmente, em nós que pode
residir a solução. Ou isso, ou morrer. Sinceramente, para a Natureza, é quase
indiferente.

A vacina, por agora, é a poesia. Esta nunca nos traiu. “Mas cuidai os
idos de Março!”
Os poetas estão no mundo para se sacrificar. O vírus capitalista é, ape-
nas, para os tentar.

Lá fora, a chuva ri-se de mim. Tem a mania de que o planeta não a apri-
siona.

Quando vim a este mundo, trazia garantia. De uma empresa falida.

Ela chateava-me imenso, sobretudo depois de morrer.

O mundo financeiro está a parar. A economia, a desertar. O CO2 já não


sufoca. Graças ao Presidente Coronavírus. Pena a ditadura...

Para mim, este tempo só não conta como retiro, porque vivo assim todo
o ano. Presente, porque são os outros que se retiram.

Tenho pena das crianças de agora. Devem pensar muito mal dos pais.
Por sorte, o trauma delas pode fazê-las pensar melhor deles, mais tarde.

212
O FisióSOFO

Há pessoas que me estão sempre a mandar coisas para o Messenger


durante o ano, mas que, agora, em reclusão, silenciaram-se. Era contagioso,
tornei-me irrelevante. Serei um vírus?

É um tempo de “relativismo” e desorientação. O que um diz é desdito


pelo segundo, isto ad infinitum. Este é o purgante requerido. É o necessário
para fazer tombar, de vez, o Reino de sonhos em que tantos viviam. São estes
choques que revitalizam o Humano. Alguns pensam que a Filosofia não é
compatível com o estado de emergência. Eu diria que nunca a Filosofia, a
Razão, a luta contra o Princípio de Realidade, foi tão necessária. Infelizmen-
te, qualquer revolução implica vítimas.

Será que chegou, finalmente, o “fim da História”? Ou será que, mais


uma vez, é sempre a mesma história?

“Há vida para além do Covid-19?”, perguntou, “confodida”, a Herpes


genital.

Podemos definir “Ética” como aquilo que impede profissionais de saú-


de mal pagos e potencialmente infectados de meterem baixa. Mas, perante a
possibilidade de quarentena, só uma coisa pode vencer a tentação de fugir: a
empatia; que é, aliás, a causa genuína de uma ajuda que transpõe os limites
da profissionalidade. Assim, bem para além da obrigação moral, e da conven-
ção, o profissional sacrifica-se numa pletora de amor, que é, outrossim, uma
forma de fazer Amor com o paciente, soçobrando um novo modelo de Saúde,
mais focado na resultante salvífica do que no Princípio, ora higienizado, e,
entretanto, infectado de passado. Esta novel moral de “Saúde” integral abarca
bem mais do que o corpo “físico”, propõe a visão de uma Natureza ética reple-
ta de compaixão e que abraça uma Totalidade. O que a ofende é o antigo dog-
ma, baseado no “princípio de desempenho” (Marcuse), ou resistindo-lhe pela

213
Luís Coelho

conquista da “morte”, é, enfim, o poder, o “princípio de Realidade” que se vê,


agora, questionado e contraposto à visão de uma “racionalidade libidinal”.
Veremos até que ponto seremos capazes de vencer a tentação de nos higieni-
zarmos compulsivamente, que é o exercício do “eterno retorno” à doença da
Normalidade. Que sejamos, assim, infectados de Unidade, jamais do Ego que
se refugia ou do Nacionalismo que cava um fosso ainda maior entre as identi-
dades.

Nunca sabemos se, atravessando a ponte, estamos no fim ou se voltá-


mos ao princípio. E é só por isso que as filamos. Doutro modo, já não existi-
ram pontes, somente nuvens.

Anúncios “optimistas” do tipo “Vamos todos ficar bem” são eficazes:


deprimem o vírus.

{Je suis Coronavírus12}


Para o desadaptado, o tempo de distopia é o fermento do ideal. Para o
misantropo, o estado de excepção é o próprio ideal. É algures entre os dois
que pode ser buscada a insolência que o estado de graça denega e reproduz.
Ela é prima da resiliência e matriz do “individual”. Já este é o arpão que não
pode faltar, sob pena de olvidarmos a crueza das verdades nocturnas e de
arvorarmos a nova pandemia de uma sociedade de tele-relações. De pensa-
mento teleguiado, com a irrazoável distanciação de um comando de punheta
vocal.
O ideal cria os seus próprios hereges. A força da idiossincrasia resulta do
poder de uma mutação provecta da realidade. O seu governo é o mutismo de
uma verdade que indaga a expressão catastrofista. Transtornado o ambiente,
pode o novo agente viralizar. A determinação tem, frequentemente, esta pre-
sunção. Doutro modo, não seria frequente ou peremptória. Porque o que
medra aguarda resolutamente a oportunidade de afirmação. Quando ela se

12
Publicado na «revista Bica», Março de 2020.

214
O FisióSOFO

dá, acaba sempre por absorver muitos dos que permaneciam num limbo,
enquanto outros morrem ou fenecem.
Para quem a distanciação social é, apenas, “mais do mesmo”, não é pos-
sível deixar de afirmar, insolentemente, “Je suis Coronavírus”. E a ordem de
mudança soa intrépida enquanto, com gáudio, se vê desferir o golpe da for-
tuna, do sortilégio confinado. Porque o novo vírus é a modificação desespe-
rada do arquétipo. Perante a qual, o antigo “normal” reage com a leveza de
uma falsa união, tecnologizada pelo medo.
Se o vírus é uma oportunidade para recuperar a “razão de ser” “huma-
no”, isso não nos obriga a ater-nos ao “demasiado humano”. Podemos apro-
veitar para matar uma série de viroses que têm vindo, progressivamente, a
brandir a golpada da venalidade. O Coronavírus não é, enfim, o inimigo. O
“Humano”, este sim, é que está a mais. O Coronavírus aproveitou-se, somente,
da nossa fraqueza “normativa”, e fez por sobressair. E veio, quiçá, relembrar
alguns de que somos “natureza”, nudez, fragilidade, perante as quais a “cultu-
ra” deplora o seu lugar.
O “Humano” pode e deve reconstruir-se. E isso passa, primeiro, por um
período de quarentena, pelo obrigatório gládio da individualidade, pelo rigor
da clausura redentora, pelo “retiro” capaz de reiniciar o sistema. Mas não se
trata de perpetuar a distância, de destruir as relações, de mortificar a mestria
e a rugosidade. O “indivíduo” mata o “indivíduo”. Para muitos, a óptica
segundo a qual “vamos todos ficar bem” é, acima de tudo, uma reprodução
do Homem que já se rebobinava. À falta de um retorno, existe, sempre, a
reconstrução, e esta partilha natureza e aventura. Diria que “Vamos todos
ficar diferentes”. Se já nada será como dantes, façamos, ao menos, com que o
“dantes” nos ensine, aliás, nos choque e force a restaurar a razão num tempo
em que o pior vírus é, ainda, humano. E, antes que a máquina nos sobrepuje,
antes que os números desqualifiquem o que temos de “espírito”, há que tor-
narmo-nos uno com o novo vírus, a nova realidade, há que chorar, sofrer,
fazer o luto, e, finalmente, avançar.
O avanço poderá ser feito da mesma dilapidação da moral, da excisão
da razão, do triunfo da Hipermodernidade. Ou poderá tecer-se de uma pós-
-modernidade em que a ciência não desmente a sabedoria, e a matriz de que é
feita. Teremos de ser nós a decidir se o retorno ao “Espírito”, necessariamen-
te laico, se concebe num novel modo de viver, ou se implica a assunção da
morte nadificadora. O novo vírus é um aviso. A forma como lhe responder-
mos é, já, a sequência imprescindível. Se, entretanto, escolhermos uma via

215
Luís Coelho

“eugénica”, estaremos, afinal de contas, a dar ao vírus toda a razão para nos
destruir. Mas se escolhermos enlaçar a Natura, seremos, quiçá, capazes de
abraçar tantos outros vírus dum modo compreensivo, maturador. Sincera-
mente, para a Natureza, a morte do Homem implica um risco bem menor.
Mas, parece-me, o contrário não é verdade. E desferir o golpe contra as raízes
é, tal-qualmente, desferir o golpe contra a Razão. A mesma razão que foi
trabalhada sagazmente pelos grandes “vírus” de cada tempo. No último pla-
no, a atitude racional condiz com a anuência viral da morte, em contraste
com a visão científico-liberal, que se limita a fazer azular o problema, na
conquista telúrica, não remissiva, do futuro. Vencer o vírus, tão-somente, é
tratar a manifestação, sem que a causa seja importada. Ao contrário do que
se possa pensar, mesmo, e sobretudo, em “estado de emergência”, a Filosofia
é mais requerida do que nunca; ela previne e instrui a própria ciência, huma-
nizando-a, também, e escusando a tentação fáustica, que, aqui, se coloca no
pólo oposto da libido.
Um jogo de força com um vírus é como quem se entesa contra um ini-
migo. Aqui, queremos menos falo de potência derrisória e mais incesto unifi-
cador. Menos violentação constante e de proa liberal, mais coito de multidão
espirituosa. Não, não creio na lógica de luta e/ou fuga, que é, de facto, a reac-
ção “emergente”. Creio no receptáculo da desilusão, da derrota, na plena
redenção. Se ela cria a fuga é para que não exista contágio de uma normali-
dade “louca”. Por isso, o evitamento social não é só de agora, como de agora
é o ensejo de intransigência. Há que sair à rua, em desacordo e desacato,
quebrar as barreiras, mas barricando, de vez, a grosseria da competitividade.
O Coronavírus aguarda. Aguarda pelo isolamento, que é toda uma pro-
filaxia do viver humano. Que se estende da individualidade para a totalidade.
E a última inclui o enlace de muitas possibilidades “virais”. O maior misan-
tropo é o Homem Superior. Façamos com que a desadaptação seja comutada
pela tolerância. Somente a aceitação, o amor, pode criar a perfeita adaptação,
que é ser o próprio mundo presenteado pelo Humano nu. Não, “não vamos
todos ficar bem”, nem “melhor”, nem “pior”, “sejamos Bem”. E se “ficarmos
mal”, que seja por Bem. (Repitam, porventura: “Vamos todos ficar mal”,
porque doentes estaríamos se continuássemos bem, depois da actual expe-
riência. A doença é um vírus impensado. A infecção é a multidão que se
arruína, pior, que esconde a ruína. O vírus é a segunda vinda de Cristo, já
não para remir, mas para julgar. Sim, este é o Apocalipse. Mas outra Era virá!
Porque um Cristo que descende lembra-nos algo acerca do Verbo irreprimí-

216
O FisióSOFO

vel.) A Comunhão é, ainda assim, adaptação. A sua comutação por um


modelo de “poder” é ceder a potência a outros vírus. Se não queremos ser
assassinados, façamos por evoluir na esfera da libido universal. O Silêncio é o
máximo que pode suceder. E não é pouco.

Não, não “vamos todos ficar bem”. Vamos todos ficar mal. Mas é um
mal que vem por Bem. Porque mal seria se bem ficássemos depois do mal de
agora. Seria um pouco como o antigo bem que se devém com o mal, tal e
qual um malmequer. E há que ser Rosa.

Hoje, atravessei a estrada com pouco cuidado, pelo que disse ao condu-
tor do veículo que quase me atropelava:
– Desculpe, foi descuido, devia ter respeitado a sua buzina.
– Condutor: Mas eu nem buzinei.
– Eu: Mas devia ter buzinado!

A GNR a interromper uma missa. Um papa a dar missa a uma Praça de


S. Pedro vazia. Perante isto direi, apenas: “Volta Deus, estás perdoad@!”

{Ecce Coronavírus (2)}


No Princípio era o Coronavírus. E o Coronavírus estava com Deus. E o
Coronavírus era Deus. Mas o Princípio inclui a ordem diaspórica da derisão,
da multiplicidade viral. E esta cria as mutações necessárias, na expectativa do
recrudescimento, que é aproveitar a fragilidade humana. O Homem, esse Lúci-
fer, qual Fausto, é o grande competidor. Mas há muito que ele trai a Nature-
za. Ele é o mais destrutivo dos vírus morais. E perante isto, resta retinir, nova-
mente, o Verbo.
O tempo pascal propicia, quiçá, o luto. Porque Deus-Logos, o Cristo,
veio para redimir, para religar o Humano, fazendo tábua rasa do passado.
Também o Homem de ciência pretende, desligando um vírus, apagar a ordem
vetusta, aliás, o caos do pretérito, reiniciando o governo destrutivo que já

217
Luís Coelho

vinha em pleito de domínio. Querer destruir o vírus é querer descurar o pas-


sado, não é redimir como quem aprende com os erros. Mas o vírus aí está,
criando a oportunidade de luto, e de reconstrução de um Verbo que não se
limita a riscar os desvios virais, mas que absorve a estranheza, integrando-a.
Só assim pode o Homem trabalhar a Causa do infortúnio, não se limitando a
apagar o “mal”.
A plena adaptação permitirá ao “ser humano” sobreviver aos mais desa-
vindos vírus, não pelo governo ditatorial que se presta à eliminação dos mais
fracos, mas pela genuína assunção da impassibilidade, tal e qual a lição crística
da tolerância face ao “outro”. E esta tolerância passa, também, pelo emprego
da compaixão pelos mais fortes, que, à guisa de um vírus, poderão ser supera-
dos e fenecer. A força da singularidade advém, precisamente, das antigas muta-
ções, ora desprotegidas, e que aproveitam a fragilidade normativa dos “fortes”.
O Coronavírus, encarado como agente do Apocalipse, seria, talvez,
como um Cristo que volta, já não para redimir, mas para julgar. Mas, mesmo
aqui, existe o anúncio de novel Era. Resta saber se o Humano pretende con-
tinuar a lavar as mãos, ou se aproveitará para reformular a antiga Ordem,
abrangendo a via do amor, da cooperação, em que mesmo a ciência não se
limita a negar a primazia da Sabedoria, da Razão.
Promover uma via fáustica é legitimar a nossa própria destruição às
mãos do vírus. Legitimar a Unidade é infectar-nos, de vez, da humildade que
reacende o Homem “nu”, natural, primevo.
Abril de 2020

{No Princípio era o Coronavírus13}


Não sei se o Coronavírus vem para redimir ou julgar. Ele é filho da
Natureza, e esta redime e julga constantemente as divergências. É, aliás, a
partir da mutação, que se inicia o novo Verbo, potência novel capaz de remir
as antigas consciências subalternas. O contexto pascal reactualiza a contextu-
ra da morte de Cristo, necessária à redenção e à reiniciação da moral. Foi
preciso lavar as mãos face ao passado, para que o novo tempo surgisse.
Veremos, agora, se o Homem continuará a higienizar a estranheza, que, por-
ventura, traz consigo uma nova Era.

13
Publicado no jornal «O Diabo», Abril de 2020.

218
O FisióSOFO

Se o Coronavírus representa o fim, então é como a segunda vinda de


Cristo, em que o sentido é o do julgamento. O passado já não pode ser
esquecido, a sua redenção implica, no mínimo, um enorme luto reconstrutor
de um caminho que não se subtrai à lição obrigatória. Apagar o vírus é que-
rer riscar a manifestação, olvidando a Causa da perturbação humana. Já não
há como seguir em frente, sem que algo mude verdadeiramente. “Ecce Coro-
navírus”, diria o Homem, lavando o presente de um agente “mortal”. Como
quem mata consecutivamente Deus. Mas, se é para matar, que seja para ini-
ciar uma Era capaz de aceitar a própria morte, e todos os vírus que nos apo-
quentam. O Homem só deixará de ser o pior dos vírus se seguir uma via de
Amor, em que a Natureza se permite partilhar a vida com o “outro”, sorven-
do a necessidade de totipotência.
Não se trata, portanto, de se ser o homem-Deus, que a ciência pretende
revelar na luta pela exclusão da fraqueza. Desse modo, conseguiremos legiti-
mar a nossa própria destruição à conta de um vírus mais poderoso. Trata-se
de prover uma Totalidade repleta de adaptação, infectada de Unidade, onde
o vírus nos integre, como o intento de metamorfose, e de tolerância face a
esta.
Não, não vamos todos ficar bem. Vamos todos ficar mal, mas é um mal
que vem por Bem. Porque mal seria se bem ficássemos depois do mal de
agora. Seria um pouco como o antigo bem que se devém com o mal, tal e
qual um malmequer. E há que ser Rosa. Ou o Verbo da flor de lótus.

Sugestão de Critério de escolha de quem deve viver: (Dar o ventilador


a) quem se recusa a escolher quem deve viver. Para que possamos, enfim,
ventilar a Realidade.

Hoje estavam menos pessoas na rua do que em minha casa. Devo fazer
a quarentena na rua?

O Saber ocupa lugar. É o lugar do morto.

219
Luís Coelho

A crer no estado actual da Educação, acredito que a Telescola deve pas-


sar fora do horário nobre. Seria injusto aumentar, ainda mais, as audiências
dos outros canais.

A minha filosofia de vida é de morrer. Se ta contasse morrerias.

Tendo em conta o estado da Educação em Portugal, sugiro como pro-


grama nuclear da Telescola (RTP memória), até ao 9º ano, a “Rua Sésamo”.

Não vivemos um dia de cada vez, revivemos todos os dias num instante
furtivo. E cada vez que o fazemos amansamos o futuro.

Quando o paciente não está convencido, dou-lhe uma demão. Se me


pede o braço, é porque já não tenho mão sobre ele. Paciência, serei dele!

Já que tenho o proveito vou ter a fama. Para que aproveitem a infâmia.
E eu possa desaprovar.

Toma, lá, uma ilusão. Aliviaste-te? E, agora, vais embora? Não tenhas
medo, eu dou pouco trabalho, sou um peso leve.

Sou humano, mas não exerço.

Sinto que sou de outro mundo. E que o vírus não me assusta. Terei
imunidade diplomática?

220
O FisióSOFO

A Verdade quis publicar um artigo “peer review”. Foi recusado por con-
flito de interesses.
A Mentira submeteu um artigo à “revisão por pares”. Foi recusado por
um ímpar.

Estou com medo de deixar de ser quem não sou.

Há saudades que são irrecuperáveis. Conserva-as.

Num mundo onde o talento verdadeiramente conte, quererei ser medío-


cre. Para que se faça justiça.

«– A: Lembras-te quando disseste que era ridículo o que defendia?


– B: Sim, agora é uma coisa normalíssima.
– A: Tens razão, é ridículo.»

O mundo é dividido entre os “espertos” e os “não espertos”. Os “não


espertos” pensam, fazem, escrevem. Os “espertos” assinam.

Quis ganhar pelo vazio de ser vencido. Lutou por uma causa perdida.

Estou farto de gente honesta a fingir que é trafulha. Honestamente, acho


que precisamos, mais, de trafulhas honestos.

221
Luís Coelho

Os “filósofos” que não reconhecem que a Filosofia possui o poder de


representar uma flagrante desonestidade intelectual são, no mínimo, intelec-
tualmente desonestos.

{Procuram-se filósofos...14}
Ser “filósofo” não é para quem quer, é para quem pode. Queira o Esta-
do criar as condições para que mais “possam”, mas o “estado de arte” da
Filosofia em Portugal é de mote a reproduzir a querença desabrigada, capaz
de gerar pseudofilósofos como “zombies” processados industrialmente. Se ao
menos fossem “mortos-vivos” da sofística não se perderia tudo. Mas estes
“filósofos” da máquina académica não são dados à ambiguidade ou ao relati-
vismo, antes esculpem, diariamente, o apetrecho da Autoridade com que,
alguns, chegam, inclusive, a alimentar um projecto de uma Ordem dos Filó-
sofos.
Projecto que, logo à partida, mostra que não há, aqui, filósofos – e, ago-
ra, contradizendo-me –, antes sofistas que denegam a Filosofia na medida em
que a transformam num instrumento de poder e decisão. O verdadeiro sofis-
ta é, precisamente, aquele que nega e afirma, para fazer perseverar o Ego,
antes fosse pela ubiquidade do pensamento, mas o sofista nem isto assume,
porque isso seria arcar que a Filosofia possui todas as nuances de auto-
-negação. Mas a honestidade intelectual exige isto mesmo, que se mostre,
constantemente, como a Filosofia inclui “pano para mangas”, desonestidades
e paradoxos crescíveis.
Não é defeito, é feitio. Ser “filósofo” é ter várias “filosofias” a correr no
sangue, é vivê-las, duvidando, debitando a linha da falácia permanente. Onde
uma filosofia pretende imperar, onde a própria Filosofia, como um todo,
pretende imperar, não existe filósofo, existe Domínio (vide o meu «A Razão
Neurótica. Um livro de auto-desajuda», 2019, Manufactura Editora). E este é
a tentação irredutível de todo o “profissional” de Filosofia. À boleia da ideia
de que a Filosofia pode e/ou deve ser profissionalizada. Quando a Liberdade
jamais pode transformar-se em profissão.
A Filosofia não pode, sequer, ser ensinada, só pode ser sentida, viven-
ciada, exaurida pela urgência do auto-conhecimento. Haver, num país pró-

14
Publicado em «Diário do Minho», Abril de 2020.

222
O FisióSOFO

digo em filósofos sem formação base em Filosofia, profissionais de Filosofia


que ousam pensar pelos outros, decidir pelos outros, é destruir um projecto
que só resulta genuinamente de uma (des)construção espontânea.
Há por aí um, defensor da constituição de uma Ordem dos Filósofos,
que até se intitula de “coach” filosófico. Outros dão “consultas” de Filosofia.
Mas como aconselhar quando o novelo dos paradigmas somente convida à
complexificação crescente? Quem se salva deste fio de Ariadne é meramente
quem reconhece a natureza paradoxal do Humano. A Filosofia genuína não é
terapêutica, antes pelo contrário. Ela não é uma coisa “new age” que se possa
subtrair ao rigor “materialista”. E, em antagonismo, ela não é uma ciência no
sentido estrito do termo.
Curiosamente, a Filosofia, em Portugal, aparece dilapidada por estas
duas tendências: uns, essencialmente espiritualistas, recusam a laicidade cien-
tífica e “positiva”; outros, essencialmente laicos, esqueceram que a Filosofia
inclui Deus, Uno, Espírito, mónada. E ambos esqueceram que a Filosofia
impõe um cisma pessoal inacabável.
Não compreendo como certos produtos das universidades portuguesas,
incluindo a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, puderam ultimar
um curso, que, na melhor das hipóteses, só pode ser ultimado pela leitura da
Vida. Incapacidade hermenêutica, argumentos de autoridade, raciocínio pobrís-
simo, é tudo cada vez mais parco nos estudantes e formados, excepto, talvez,
a arrogância. Morreu a Filosofia enquanto exercício permanente de angústia.
Morreu a Filosofia que não denega a poesia e a quimera literária. Morreu a
Academia, e vemos professores universitários a renderem-se a modelos de tele-
-ensino, quando não dispõem os alunos à volta da fogueira opinativa das vai-
dades. Ora, a Filosofia, bem como a Academia, precisa do magistrocentrismo.
Subsiste, claro, o fantasma do elitismo, mas se há curso que deve permanecer
elitista é o de Filosofia. Haver formados neste curso que esgrimem argumentos
“ad hominem” e escrevem como alunos do ensino básico é intolerável.
É preciso estender o cisma da Filosofia ao ensino desta. A Filosofia não é
pertença de ninguém, mas quem a sofre dispõe do seu constructo mais “luci-
ferino”. A Academia é um local de “sofrimento” teorético, de peleja de ideo-
logias, em que o pensamento se faz sangue. Mas os novos alunos, bem como
os novos pseudofilósofos, não têm sangue, nem álcool, nem cicuta. Têm
estrume. Repleto de orgulho. É verdade que atemos um “Ego cogitum” (na
acepção de Husserl). Mas não se trata de fazer perder o “cogitum” pelo Ego,
mas o Ego pelo “cogitum”. Até que este conquiste todo o “curso” da vida.

223
Luís Coelho

Um filósofo não é um indivíduo que tirou um curso de Filosofia. Um filóso-


fo é a própria Filosofia em curso imperecível.

Porquê tanta algazarra por causa do 1º de Maio? Não andamos a come-


morá-lo há semanas?

Quando não tiveres nada a perder terás ganho Tudo.


Quando tiveres perdido tudo, terás, finalmente, ganho alguma coisa.

Tenho uma vizinha omnisciente. Pergunto-lhe, sempre, o que se passa


na minha casa. Porque as paredes falam, mas não têm ouvidos.

Estou de Consciência tranquila. Porque me fartei de errar.

«– A: Sei tudo, tudo, tudo sobre ciência!


– B: Boa!, és uma verdadeira navalha de Ockham.
– A: Prefiro o canivete suíço.»

Se me pagassem para pensar, pensaria, decerto, que o faço gratuitamen-


te.

Comigo não vale a pena fazer-me olhinhos. Porque sou todo ouvidos.

Há os que ensinam Ética, e há os que são éticos. Os primeiros querem


convencer os últimos de que são filósofos. Tomara que os últimos fossem os

224
O FisióSOFO

primeiros. Para que esses não tivessem que ensinar aqueles de que o exemplo
é sempre ad hominem.

Num tempo de carnalização da Filosofia, ensinar a Ética “deôntica” é ter,


no lugar de tão pouca ética, uma grande dose de esperança. E a forma como
interpretares o que acabei de escrever dirá muito sobre a tua própria moral.

A prova de que há muito menos notícias “virais” do que aquelas que


dizem ter viralizado está em continuarmos crédulos.

Tinha telhados de vidro e atirava pedras ao do vizinho. Era, porém, um


carpinteiro. Freelancer, fazia, sempre, grandes descontos. Construía em dia-
mante.

“Nem tanto ao mar nem tanto à terra”, disse o fogo com ar de éter.

A vida dele era uma seca. Usavam-no, até, para secar as lágrimas.

Dizia-lhe que só a Graça o salvaria. E o desgraçado ria-se.

Não me ensines a ter esperança


Que a temperança não se ensina
Não se aprende a desesperar
E por me teres acreditado
Dar-te-ei do desespero
com que deixarás de acreditar

225
Luís Coelho

Quando ninguém me vir, sairei, finalmente, da obscuridade.

Quando ele me perguntou se eu era um homem ou um rato, fiquei


subitamente ofendido. Considerar-me homem, quando, há tanto, rateio a
memória e me faço animal... Mas não lhe disse que tenho orgulho em ser
rato. Que eu não como queijo para me esquecer que o orgulho é coisa dos
homens.

Tentaram motivar-me, mas eu não me deixei enganar. De joelhos, dis-


se-Lhe que não era digno. Tentava enganá-lo, mas a misericórdia era tre-
menda. A Graça não me deu a escolher. Ainda quis pôr a condição de não
voltar. Mas Ela era impassível.

“És um homem ou um rato?”, perguntou-me. Respondi-lhe que era


um rato. Para não cair na ratoeira.

Não chega ter talento, é preciso desalento. Só assim terás a fama de te


terem perdido o rasto. Pudera seres capaz de ver quanto rastejarão a esque-
cer-te. Mas isto sou eu que já rastejo a lembrar-te.

Se és um pessimista lê Pascal. Acabarás a rezar por ele.

A angústia do perfil antes do Like é menor quando o primeiro é falso.


Por isso te deixam muitas vezes um “coração”. Para ver se palpitas a sombra.

226
O FisióSOFO

Ficaste com uma falsa ideia sobre mim. Por isso te agradeci teres-me
enriquecido. Infelizmente, partiste a achar que sou um vendido.

Não penses que sou um vendido. Comigo é negócio sempre aberto. Mas
o preço não aumenta sempre. Cambio-me segundo o mundo.

Se mudas de namorada como quem muda de grupo facebookiano, não


desesperes. Voltamos, sempre, ao local do crime.

Os poemas modernos estão de dieta. Infelizmente, são daquelas em que


se vai o músculo e fica a gordura. Vá lá que as maiorias gostam de se untar de
banha.

Aceito o desafio do meu amigo Luís Coelho e, a partir de hoje, vou publi-
car capas de dez “Nadas” de que gosto, uma por dia. Entretanto, proponho o
desafio a Deus, sabendo que, com sua preguiça de Sempre, não deixará de
cumprir a tarefa, nomeando todos os seus demiurgos e algum cordeiro.

Acontece, frequentemente, que quem tem a faca e o queijo na mão


tenha de dar manteiga. Diz Não aos lacticínios.

O adulto que sou orgulha-se da criança que fui, e é porque me orgulho


que tendo para a criança que o adulto não consegue ser. Doutro modo, teria,
apenas, inveja do adulto que fere e se confunde com a perpetuidade.

Quem tem dinheiro para dar e vender compra a alma em saldo.

227
Luís Coelho

Quando me expulsam de mim, sinto-me em casa. Tomara que não fosse


preciso pôr a tabuleta «Cuidado com a Alma. Ela não morde».

Os que mais apontam o dedo ao criminoso temem, um dia, virem a ser


apontados.

Quem aponta o dedo ao assassino está morto por ser vítima.

Se mudas de face como quem muda de cuecas, põe-te do avesso.

Não temas cortar-me na casaca. Nu, conseguirei aquecer os dois.

«– A: Qualquer dia só existirá telescola!


– B: OMG! Tirem-me deste filme!
– A: Tens de te adaptar.
– B: Tens razão. Tirem-me deste tele-filme!»

«– A: Tens razão!
– B: Tenho razão em quê?, eu não disse nada!
– A: Tens razão... tal como já te tinha dito.»

Um poema que nos apanha desprevenidos é como as primeiras paixões,


que, por vezes, duram, prevenindo a cura.

228
O FisióSOFO

Num mundo onde todos estão em crise ninguém está em crise. Digo-o
agora, enquanto é tempo, não vá a crise passar.

O Passado são dois futuros inconciliáveis.

Há pessoas condenadas a permanecerem esquecidas. É triste. Diria o


nome delas se me lembrasse. Hei-de colocá-las numa lista bem visível. Há-de
ser tão grande que não me lembrarei de a olhar, como quem gasta a surpresa,
resgatando o horizonte.

Mandaram-me uma mensagem “fake”. Fez-se comunicar comigo escan-


dalosamente. Dizia tudo e/ou nada, só a Verdade. Nem lhe respondi. Ela era a
resposta.

Era um professor tão bom, tão bom, tão bom, que tinha a sala sempre
cheia. De dúvidas. Pior, ensinava a sobreviver-lhes.

Todo o Zeitgeist é um poltergeist. Mas cuidai os caça-fantasmas. Por


vezes acertam no alvo, confundindo-se com médiuns.

O melhor terapeuta é um adivinho. Pudera! Está em jogo o seu passado.

“É para o lado que eu durmo melhor!” é o que, geralmente, dizemos


quando não queremos sonhar.

229
Luís Coelho

O segredo do milagre é que ele permaneça secreto. Doutro modo, seria


preciso um milagre para acreditar.

Um poema é um aforismo presumido. Quando é somente um aforismo,


desconfia do poema.

Quem se queixa, pedindo socorro, não quer ser socorrido, socorre-se.


Se o socorreres, ele não deixará de se queixar.

Dívidas pagam tristezas. Sobretudo aos ricos.

Se respeitas quem não te respeita tens o meu respeito. Para que possa
merecer respeito.

Há dores “referidas” que são saudades. Não as denuncies.

Só se ganha em acreditar em Deus porque este assim quis. Disse Male-


branche a Pascal. Nada a acrescentar! Aditou Schopenhauer.

Todas as pessoas boas estão mortas


Todas as pessoas são polícias
Logo, todos os polícias bons estão mortos?

«– A: Na imagem da “percepção”, que vês primeiro, a rapariga ou a


velha?
– B: Primeiro vejo a rapariga; depois, envelheço, e vejo as duas.»

230
O FisióSOFO

A morte consola. Mas só enquanto estamos vivos.

Só quem desiste do mundo pode gozá-lo.

Só terás a certeza de teres chegado ao sítio certo quando não tiveres a


certeza de nada.

Somos todos racistas “humanos”. Daí que não me importava nada de


ser “atlante”. Só para ser diferente!

E Tudo o politicamente correcto Levou! Sem vento, asfixiamos. (Resta o


respiradouro, com filtro.)

Em Malebranche («Meditações Cristãs e Metafísicas», 1683), existe uma


diferenciação sistemática entre dois dissemelhantes objectos salvíficos: o mila-
gre e a mortificação. O “milagre” serve necessidades “ocasionais”, reacen-
dendo a crença e reavivando o Princípio. Para isso, tem de desafiar a Ordem,
justiçando na medida de um desequilíbrio demiúrgico meramente “tempo-
ral”. Ele é mais “egóico”, mas o seu efeito acaba por ser dissolvido na Norma.
O que o desafia é o cepticismo, materialidade renormalizadora e capaz de
tragar a Ordem plenamente cínica, em que o “Espírito” se comporta de
modo herético. No plano de “mater”, como da individualidade cruenta, o
maior desafio é a mortificação do Ego, a humilhação (Pascal). Esta resgata o
Princípio evanescente, também porque a própria crença, a fé, alimenta o
narcisismo reiniciador do palco “normativo”. Mas a “normalização” dilui o
sofrimento, dirimindo o efeito mortificante. A lógica da plena “mortificação”
remete para o papel salvífico do “sofrer”, e, no entanto, um sofrimento des-
cabido impede o crescimento. Daí que se nutra a ideia de um “sofrimento”

231
Luís Coelho

sustentável, a bem ver, o que a Culpa permite na relação dissociativa com o


corpo. O plano do “Espírito” não é o da Consciência carnal, ele precisa do
pranto, da renúncia, de um treino para a morte. Ele defensa a Consciência
“hilozoísta”, um nível maior onde a Ordem poderá diferençar-se, justifican-
do planos cada vez mais distintos de lógica “martirizadora”. O conjunto
compõe a Eternidade, que é não haver planos ou escalas. E aquela reacorda
no in-momento quântico, em que a Ordem parece descabida e prestes a
(re)iniciar-se. É o tempo que produz a “consciência” cruenta, e o sofrer, e a
capacidade de tolerar mais ou menos dor. O que o “Espírito” empreende
volta sempre à carne, reactualizando a Ordem, que não levará muito tempo a
conhecer uma diáspora. Multiplica-se a aprendizagem, que, no Ego, é tentar
vencer o sofrimento, abdicando, quiçá, da transcendência. É o próprio Verbo
que resiste ao Espírito. Porque ele consubstancia um Equilíbrio capaz de
frutificar e subsistir. E é na “multiplicação” que se engendram os arquétipos
de Culpa, aptos a reiniciar o Verbo, ou a alimentar o objecto de dor.

Para o materialismo, é somente a Culpa que produz a necessidade de


mortificação. Pois ela não é compatível com a consciência durável, provendo,
assim, à própria “morte”. O materialismo liga necessariamente a humilhação
à “morte”, não entendendo, sequer, o papel do martírio. Martírio obrigato-
riamente menor em contexto “Pater”, onde o Princípio absorve a ideia de
sacrifício. Aqui, o “milagre” poderá ser encarado como “egóico”, porque é
“construtivo”. O terapeuta “taumaturgo” pode consignar o “desadaptado” de
“Pater”, que serve o “paciente”, compensando-o. Mas o seu próprio sacrifício
aproxima-o do contexto. Ou, talvez, ele represente “mater”, estando, apenas,
a desempenhar um papel “indiferente”. Por sua vez, o “milagre” poderá ter o
efeito de converter o “paciente” em “agente” de “Pater”. Ao reacordar o Prin-
cípio, o “milagre” sublinha o Verbo, escusando o pleno sacrifício. Neste con-
texto, o “martírio” é de “mater”, mas, aqui, reside o cepticismo, e, portanto, a
proa de um Verbo cru.

Nos tempos que correm, é preciso um milagre para acreditar que a Gra-
ça dispensa milagres.

232
O FisióSOFO

É menor o martírio quanto mais esperarmos dele. É maior o martírio


quanto menos acreditamos nele.

O terapeuta “martirizado” será, talvez, “normal” em “Pater”, “anormal”


em “mater”. Se acredita no seu martírio, este será menor. Talvez seja preci-
samente o terapeuta “mater” o que menos acredita no seu martírio, pelo que
este fará, mais provavelmente, sublimar o primeiro. Para “Pater”, na medida
da demiurgia. Para o Eterno, na medida do verdadeiro espiritualismo. Com a
ajuda da Graça. Se o “materialismo” é “Pater”, e se o terapeuta é espiritual-
mente “Pater”, este poderá compensar-se com a própria ideia de martírio,
escusando a sublimação. Um paciente martirizado será igualmente compen-
sado se for “Pater”, mais descompensado se for “mater”. Ora, se o terapeuta
“Pater” for naturalmente mais compassivo para com um paciente “mater”,
este será, provavelmente, mais compensado. A necessidade de martírio do
terapeuta “Pater” e a necessidade de compensação do “mater” produzem uma
estabilização do padrão. O que o desafia é a martirização do “mater”. A episte-
me “mater” é, por seu lado, libertária, mas, possivelmente, pouco maviosa.

Assim, se o martírio é mais vero em “mater”, a sua compensação subli-


matória não pode deixar de ser concebida como nada devendo à Graça pelo
materialismo. Porque este só valoriza o Aqui, onde a própria Deôntica vale
pelo “número”. E continua, decerto, a valer, mesmo em contexto “Pater”.
Mas o valor é tendencialmente mais “colectivo”, porque o Individual é, tal-
vez, irredutível. Claro, tudo poderia ser medido, e se lhe acrescêssemos a
previsão, aproximar-nos-íamos de um certo tipo de omnisciência. No entan-
to, prever altera o Objecto a mensurar, que é o mesmo que dizer que subver-
te a memória, acicatando o trajecto da Culpa. Esta é mobilizada pelo acto
“racional” do “indivíduo”, ou da fracção, operando-se uma dirimição daque-
la aquando da compensação, e, sobretudo, aquando da sublimação que, ora,
mobilizaria a própria linha do Equilíbrio “culposo”. O novo “Arché” é um
Colectivo normativizado, ele é, igualmente, mensurável, representando a
Razão dominante que, apesar de tudo, fica aquém de um Inconsciente imen-
surável, o qual não pode deixar de influir com sua “Liberdade”. Saber o peso

233
Luís Coelho

desta influência é conceber novas variáveis, novel Ordem, renovada determi-


nação, ela compete com a consciência carnal para um peso mais abrangente,
e cada acto de “ciência” alimenta o jogo de penitência. Cada momento possui
o seu “valor”, cabe ao utopista sonhar com um Princípio que se presuma
mais “insofrido”. E sabê-lo é, mais uma vez, determinar, mexendo no Todo.

Por vezes, sucede que, perante o martírio, surja o milagre. Não o da


Graça, puxando para o Céu, mas o da carne, criando o martírio de muitos
outros.

O materialismo poderá demonizar o sofrimento que não vise o cresci-


mento, quiçá, o alcance do Verbo; pode, eventualmente, tolerar o conjunto
das compensações in-sofridas, mas, mesmo aqui, visa-se um ganho “egóico”,
individual e/ou colectivo. Se o sofrimento é intolerável, a “morte” parecerá,
talvez, a solução mais óbvia, ela é, afinal de contas, o próprio Espírito, mas
esta visão de uma mortificação nadificadora (Schopenhauer) não é, de todo,
obviada pelo Cristianismo, para o qual o “sofrer” individual é justificado pela
simplicidade do Verbo Eterno (Malebranche). Poderíamos dizer, assim, que
este Espiritualismo não perspectiva a morte enquanto “Nada”, que ele se
empreende por outras vias (transcendentais) que só Deus conhece, pelo que
não cabe ao Ego humano desafiar a Ordem da vida que é implementada pelo
Absoluto. Aqui vamos bem para além da visão de um Verbo egóico, de uma
physis moral, ou de um Colectivo, que poderia, bem vendo, sofrer com o
suicídio do “indivíduo”.

O dogma da Divinidade da vida coloca o antecedente no (valor do)


Colectivo face à vontade “particular”. Mas, aqui, ainda encaramos o aspecto
“material”, redutível, do Valor. Desprezável, virtualmente, face ao valor da
“liberdade individual”. Em ambos os casos está em jogo a consciência, como
o seu aspeito palpável. O aspecto mais propriamente “espiritual”, aliás o que
está na base do primeiro valor referido, transcende o interesse do “humano”,
tão-só, colocando o acento numa coisa maior, que só pode ser compreendida
por Deus e parcialmente traduzida pelo Verbo.

234
O FisióSOFO

Agora que estamos na fase do derrube das estátuas, posso sugerir uma
estátua ao “derrubador desconhecido”?

Em Malebranche, o “espírito” rege-se pelas leis que ordenam a relação


da Alma com o corpo, ele possui um aspeito “emocional”, individual, que
pode e deve ser vivenciado, sem que seja necessário antepor a transcendência.
A Unidade não deverá precipitar-se, nem a aquisição da Razão Universal, o
homem é um ser carnal e deve assumir o lado concreto do Ser. Este não deixa
de possuir uma ligação à potência, até o movimento é comandado pela Causa
Primeira, mas isso não impede a necessidade de uma vivência “psíquica”,
sofrida, na vida “terrena”. Antecipar o Espírito é consignar uma “fuga para a
frente”, que mais ilude do que permite a transposição do Ser. Esta ilusão é do
foro dos sentidos, do orgulho persignado do Princípio egóico, que mais se
afasta do Princípio pleno do que propende o seu enlace. Este Superego, fre-
quentemente mais “positivo” do que “moral”, é uma projecção do Ego, ele
procura imperar, submetendo, quando não é submetido. Rememora a figura
do “terapeuta” dominador, mas também a do “dominado” prestes a subli-
mar o seu Princípio particular, ambos compensando, defendendo-se com a
criação de um tracto de mágicas diatribes emotivas.

A verdade, no seu sentido “positivo”, é afecta a “mater”, ela pode pro-


duzir a elevação, mas, aqui, o caminho é orgulhoso, e, quiçá, amoral. A pró-
pria mística pode dispensar o Verbo moral. Aliás, o trajecto modernamente
“emocional”, tão valorizado pela Psicologia, não é necessariamente compatí-
vel com a “moral”, e é neste espírito que podemos referir o crescimento “pes-
soal” como necessário à “espiritualização” pessoal, do mesmo modo que esse
crescimento pode produzir a ideação de um Princípio que acaba por se
assumir como “superegóico”. Qualquer Princípio faz as vezes de um “Espíri-
to” moral, mas ele será tanto mais derisório quanto mais se afastar do Princí-
pio pleno, que, para o Cristianismo, se conforma no Verbo. Este poderá
prescrever um caminho, ou, pelo menos, guiar o trajecto emocional de uns
quantos que optam por “sofrer” no plano dessa Auctoritas. O trajecto de
“mater” conforma-se com tantos outros princípios que se afastam do “ade-

235
Luís Coelho

quado”, eles compensam, talvez, muitos indivíduos, na medida em que são


tranquilizados por uma Razão familiar. A própria lógica da compensação
evoca a derrisão, o relativismo, porque ele se contenta com o prazer e/ou
felicidade provisória, não fazendo caso de um sentido pleno de sofrimento
consubstanciando um Destino maior, que acaba por ser imaterial, potente. O
placebo, genuinamente, é uma representação da compensação “pós-moderna”,
implicando, quiçá, uma fáscia de indivíduos que modelam uma Regra. Os
“criados” por um Princípio displicente poderão ser compensados por este à
distância do Verbo pleno. Já o último é encarado pelo “materialismo” enquan-
to dogma prescritivista, mas o mesmo não diz a “religião”, o exoterismo, que
prefere operar um caminho “certo” que não desvie os homens do seu destino
e que, por outro lado, escuse a precipitação de uma Gnose transgressora.
Obviamente, o gnóstico, o esotérico, dirá que a “religião” é, também ela,
transgressora do Verbo, na medida em que pretende aprisionar, matando a
possibilidade de um crescimento autónomo, místico, transcendente. Assim, a
compensação “religiosa” é, igualmente, um placebo, no sentido em que
mimetiza o estado “edénico”. A compensação é, apesar de tudo, uma estação
de superação, ela pode ser tudo quanto alguns poderão atingir, mas pode
representar pouco para outrem.

O plano “metafísico” reactualiza o palco de uma importancionalização


do Divino, do que está oculto e justifica a irredutibilidade da vida e in-
-sofrimento do Individual. Só isto já abonaria o apagamento da importância
do “empírico”. Mas, na perspectiva “normal”, o que é irredutível não deixa
de possuir uma resultante “elementar”, ela inclui, igualmente, o aspeito do
“psicossocial”, que, de algum modo, abarca o conjunto Verbal da Vida + In-
-sofrimento, de “mater” egóica e de “Pater” pós-moderno. Por sua vez, o
último delimita, tal-qualmente, o agregado vigente, prestando-se, por seu
lado, a um “quantum” empírico, que poderia, quiçá, justificar a perspectiva
“algorítmica” dos Princípios, não fosse a iniquidade da coisa. Daí a visão
mais parcimoniosa do Verbo, que não se limita a defender o “sacrifício”,
porque este, na mesma óptica “empírica”, justificaria a pura nadificação
mortificadora, desleixando o papel da Consciência vitalista. Na Escala em
que vivemos, há, não obstante, que valorizar a Vida per se, mesmo a cons-
ciência foi feita por e para ela, trazendo a dualidade que alimenta todas as
difamações espirituais.

236
O FisióSOFO

É verdade que o Placebo “pós-moderno”, a Consciência “feliz”, inclui a


própria vida, “mater” egóica, sem ela, restaria, apenas, o Nada, mas é o pró-
prio Divino que nos propõe respeitar a Vida, mas sem os seus desregramen-
tos egóicos. Estes não deixam de se relacionar com a consciência, e, até, com
a razão “neurótica”, mas a Razão plena propende a sua pacificação, que, não
obstante, é toldar a vida, aproximar-nos da In-Consciência, da Unidade. Eis
o eterno paradoxo, é preciso morrer para viver.

Não me subestimes. Sou mesmo um Nada.

Tinha atingido o limite de amigos no Facebook. Precisava de se livrar de


alguns para dar espaço a outros. Por isso postou “Vou-me matar!”. Foi
denunciado.

Quando quiseres namorar uma kantiana prepara-te para jurar amor


incondicional. Talvez ela te trate como um deus.

A Ordem espiritual é, precisamente, imaterial, e, também, incompreen-


sível e imprevisível, ela nem sempre cede a Graça aos que têm maior mérito,
mas a virtude é requerida à sua recepção sem resistência, o terapeuta/Cristo é
o agente simultâneo da Graça concedida ao “paciente” e da Ordem material
que pluraliza e distende a própria Graça. O terapeuta “neurótico” representa,
quiçá, a ordem do sacrifício, mas se a Graça for recebida em associação com
um “objecto” externo, poderá perder o seu conteúdo “conversor”. A com-
pensação “exterior”, sensível, poderia, talvez, ser encarada como um atracti-
vo “saturnino” da Graça, é difícil conter o sentido de algo que é, por “nature-
za”, espiritual, e que, portanto, não pode ser dirigido “inferiormente”.

237
Luís Coelho

Tudo isto insiste, tudo isto é Espírito, tudo é enfado.

A perspectiva psicanalítica convida à adscrição do corpo, este é o


baluarte do crescimento íntimo, que só “figurativamente” poderíamos desig-
nar de “espiritual”. O último pode, de facto, incluir a matéria “psíquica” e
inconsciente, mas, para ser verdadeiramente “metafísico”, tem de apelar,
igualmente, à Graça. Porque é esta que, numa perspectiva compatibilista
capaz de cruzar “matéria” e “Espírito”, “determinação” e “liberdade”, prelu-
dia a passagem da “coisa” ao “Nada”. Em última análise, a Graça poderia ser
fixada em qualquer estado “corpóreo”, fosse ele “paciente” ou “agente”. A
“paciência” poderá implicar uma aproximação ao Verbo, a “agência” poderá,
quiçá, criar novel Verbo. Ambas exigem um sacrifício, mas o âmbito exclusi-
vamente “espiritual” não se compatibiliza com esta visão “inferior”, porque,
aí, a Ordem é puramente evanescente, “teúrgica”. E é neste contexto que a
Graça poderá ser empreendida como coisa decidida “superiormente”, e
remetida à Providência, que, por sua vez, ordena méritos e posicionamentos.
A óptica “superior” afasta-se muito da visão sensível, cujo “prazer” advém da
relação errónea do espírito com o objecto “exterior”. Para vencer o reino do
Sensível é preciso romper com este prazer e viver o sacrifício, advindo, pela
Graça, um novo prazer, mais que “inteligível”. Mas este é um movimento
ordenado “espiritualmente”, o que, de mais a mais, remete para novo “deter-
minismo”, diferente do “material”, que depende maioritariamente do tempo.

Poderíamos incluir no “Espírito” tanto o “incorpóreo” livre e abstracto,


a subjecção pura, como a “matéria” subconsciente, a subjecção menos “ade-
quada”. Ambas poderão fazer-se sentir “deterministicamente”. Mas é sobre-
tudo da segunda que poderá advir o factor de “castração”, quando a Norma
e/ou outra Estrutura cria um obstáculo “cultural”. O primeiro obstáculo
pode ser visado, na verdade, pela irrupção da Estrutura “sensível” no plano
iniciático do Espírito “livre”. Acontece, por exemplo, quando se apresenta
uma Estrutura familiar e/ou social “mater”. Mas, para o materialismo, é esta
segunda que consigna, muito provavelmente, a Estrutura “livre” do Sujeito.
Trata-se de uma “liberdade” “material”, um sentimento de “liberdade”, ora
podendo ser “castrado” por uma Estrutura “Pater” secundária, acaso “nor-

238
O FisióSOFO

mativa”. Na mesma óptica “materialista”, o castrado poderá vir a necessitar


de compensar com “mater”, senão sublimar esta estrutura. E a óptica “espiri-
tualista” ainda lhe poderá acrescer a Graça. Esta não exclui a vertente “mate-
rialista”. Aliás, pode ser que o Sujeito se divida entre a Estrutura “Pater”/
evanescente e a Estrutura “material”, escolhendo, quiçá, entre elas, a que
mais o determina. Se a escolha recai sobre a Estrutura “sensível”, isso não
exclui a possibilidade de alcançar a Graça, mas poderá adiar o processo,
sobretudo se existir plena “compensação”. A variante “sensível” poderá, ao
compensar, alimentar o “eterno retorno”, procrastinando a Elevação. E o
mesmo poderá acontecer no caso da Estrutura “sensível” igualar “Pater”, se
bem que, aqui, há mais condições para reter a Graça.

A distinção entre “matéria” e “Espírito” evoca a diferenciação entre a


psicanálise e a meditação, enquanto meios de “crescimento”. E, mais uma
vez, rememoramos que, na perspectiva “compatibilista”, é o corpo que tem
de ser exaurido, compensado e/ou estruturado, de modo a permitir fixar a
Graça. As condições da transcendência determinam o apagamento da esfera
“sensível”, mas isto não pode ser feito sem que, primeiro, se tenha alcançado
algum nível de Equilíbrio. Claro, o materialismo “puro” dirá que esta har-
monização é tudo quanto podemos ater. E o espiritualismo “puro” não
importancionaliza tanto o lugar “psíquico” do corpo.

O prazer advém, naturalmente, da relação do “espírito” com um objec-


to. Se este é exterior e excita demasiadamente os sentidos, o corpo poderá
entorpecer o caminho para o Espírito. Caminho que envolve o mérito moral,
o qual é menor com a maior presença da Graça. Porque esta pode permitir a
libertação onde o mérito é menor, basta que haja, por exemplo, um terapeuta
compensando, se bem que uma compensação terapêutica remete, talvez, para
a esquemática “materialista”, não extinguindo esta o “sentimento”, a abstrac-
ção. O “sentir” espiritual não deixa, todavia, de se fazer acompanhar de uma
resultante “prazerosa” material, mensurável, esta é a recompensa da liberta-
ção, mas podemos, contudo, especular que existe a “libertação” sofrida, ou
acaso o sofrimento gere sempre a recompensa final.

239
Luís Coelho

Um algoritmo de “insofrimento” inclui ambos os vértices “prazerosos”


de vivência, “sensível” e “inteligível”, ele não previne o Espírito puro, com
este a depender do processo sacrificial, como do prosseguimento Verbal. Se
utilizássemos um algoritmo de “sacrifício”, este não garantiria nada, de qual-
quer modo, o Verbo traz a recompensa, mas, se o Espírito é “sofrido”, mais
vale permanecer na “terra”, o materialismo contabiliza a própria compensa-
ção “narcísica”, é o “Espírito” que diz que esta não dura, mas, bem vendo, o
“Espírito” é toda esta equipagem do sentimento, “mater” importancionaliza
a “resultante”, mas tudo é Espírito, ou, talvez, este surja desenhado enquanto
potência, o “Domus” é pacificante, mas o descompensado é, também, um
futurável “Pater”, um só instante principesco inclui “Pater” terapêutico e
“mater” herética, o “filho” quer regressar ao Pai, para isso tem de sofrer.

Obviamente, projectamos para o “Espírito” muito do que nos dá a


recompensa por enlaçarmos o Verbo, de facto, não sabemos verdadeiramen-
te o que esperar do “Espírito” puro, mas uma ascensão pode obviar uma
queda, e é preciso que exista dor para que soçobre nova ascensão, o objecto é
o “insofrimento” Verbal, mas nada nos garante que o dogma moral do
“escravo” seja condição necessária da “espiritualização”, o materialismo diz
que há vários Princípios permissíveis, de alguma forma, até a compensação
“sensível” é um modo de pacificação. Ela remete para o “Domus”, na medida
em que este a sustenta “terapeuticamente”. O “terapeuta” é, assim, “espíri-
to”, no sentido “materialista”, também ele se compensa, talvez ao compensar
o “paciente”, imagem de “mater”.

O trabalho terapêutico visa alcançar o Verbo, o trajecto é desculpabili-


zador. Mas o exoterismo pretende, de algum modo, impor o Verbo a priori,
exercitando a própria Culpa. Ambos compensam, tragando a Graça. Se o
adepto da “terapia” “mater” for submetido ao dogma religioso, pode ser que
ele reaja ideando seu Verbo íntimo, trazendo, ainda assim, a Graça consigo.

240
O FisióSOFO

Morreu. Desconhecem-se as circunstâncias da vida.

Atingiu o Verbo! Veio-se de Espírito. Que sacrilégio tê-lo feito sozinho.

Todos fazem o melhor que podem. É por isso que alguns são tão maus.

Acordei, fui à porta, vi que o mundo tinha acabado. Voltei para a cama.
Ainda ia no primeiro sono.

Quando eu morrer, não se atrevam a dizer que “foi de velho”. Velho, já


eu nasci.

Muitas vezes digo que não vi, mas, depois, vou a ver e vejo que já vi,
doutro modo, não teria visto.

Quando se procura um “outro”, é para conquistar ou pedir ajuda. Deus


o ajude!

Esse teu modo de ser não te faz justiça. Não mudes, gosto de fazer justi-
ça pelas minhas próprias mãos.

Num tempo de tantas manifestações, quem não se manifesta é... Deus?

241
Luís Coelho

Digo as verdades e, depois, sinto-me culpado: as verdades eram mesmo


verdadeiras!

Se faltam mestres no mundo actual é porque, contra todas as probabili-


dades, ainda há mestres.

Era tão bom, tão bom, tão bom, que não tive outra opção senão tornar-
me mau. Arranjei, logo, namorada.

O que mais lamento na vida é não ter arranjado mais razões para me
lamentar. Não tive vida para isso.

Perco anos de vida a pensar no que a vida poderia ter sido. E o pior é
que nunca me lembro dos anos que perdi.

Se a poesia salva, como é que há, actualmente, tantos pseudo-poetas?

«– A: A ciência é, na modernidade, o novo dogma!


– B: Prova-o!!»

Em Fichte («O Princípio da Doutrina da Ciência», 1797), toda a verda-


deira auto-consciência é consciência “imediata” – porque o Sujeito é Objecto
de si-mesmo –, relação directa entre a determinidade/repouso (“Conceito”) e
a “intuição”, por sua vez movimento que pode ser aplacado pela compensa-
ção objectal, em que o Sujeito é represado por um tempo paradisíaco, aliás
lentidão inesgotável, fluxo de consciência repleto de uma infinidade de
“imediatos”. O pleno “imediato” é a fixação do tempo, morte do passado,

242
O FisióSOFO

como da antecipação, quando o Conceito se cauteriza de “intuição”. Ele é o


Amor, o Objecto “comum”, e pode ser implicado pela oração, pela conquista
do Verbo, se bem que, quando este intimida, pode recriar o movimento,
transtornar o próprio “Conceito”. Um Verbo que se afirma e intima o “outro”
a afirmar-se representa a “materialidade”, mas ele é repouso em simultâneo,
intuição dada e que suspende o “Eu”.

Assim, na medida em que o in-momento fixa o “EU”, todos somos deu-


ses, mas somos, também, deuses do “outro”, porque o “objectamos”, e, se
este se afirma, implode o seu “Conceito”, firmando-se a intuição, que é o
“estado de arte” da Razão dominante transtornada na sua pureza, no jardim
das delícias onde o pensamento se esgota e os conceitos se fundem.

A “Doutrina da Ciência”, em Fichte, constitui o intento de uma Ciência


das ciências, onde “forma” e “conteúdo” («O Conceito da Doutrina da Ciên-
cia», 1794) se correspondam, sem o que não é possível “desvelar” o Princípio
dos princípios, a “proposição fundamental” a partir da qual a multiplicidade
pode ser “prevista”. Claro que, nesta, existe um Infinito inatingível de propo-
sições, mas, a haver Princípio dos Princípios, coisa só alcançável pelo acto em
si de o alcançar, será possível conceber a proposição primeva onde jaz a
ameaça de todas as outras. A “determinidade” incausada da Ciência das ciên-
cias comunica a “verdade” livre, o conteúdo, à multiplicidade, através da
“forma”, cada uma das ciências possui, com obviedade, um constructo de
proposições, em que a primeira, a fundamental, partilha a “verdade” com
todas as outras, sendo que o conjunto tem a sua coerência. Se, invertendo o
sentido, não for possível achar o Princípio dos princípios, soçobra a multipli-
cidade ad infinitum, não havendo, assim, forma de fixar seja o que for,
sobrando a incerteza, o caos; mas, se for possível achar o “fundamento”, não
há, no entanto, um modo “absoluto” de saber que tal sucedeu, por vezes, a
certeza é traída por nova descoberta, o que, de mais a mais, nos lembra que
“tudo é interpretação” (Foucault), há sempre princípios dentro de princí-
pios, unidades continuamente abarcáveis, a própria busca remete para uma
ilusão perfilando-se na constância, e, certamente, muitos dos que pensam
ter-se encontrado almejarão influir no próximo, desencadeando novel busca

243
Luís Coelho

culposa. Esta é uma dinâmica sóbria, científica, mas, também, subjectiva, em


que a satisfação “interna” pode criar a ilusão de pura “Egoidade” salvífica,
mas também pode ocorrer que a insatisfação culpabilizada trague a Razão
Universal, na verdade, o Logos é indiferente à emoção, e, de igual maneira, as
diferentes capacidades cognitivas podem desflorar num campo psicanaliti-
camente “casto”.

A “Forma” é, provavelmente, a própria Lógica, esta é o aspecto mais


“objectivo”, pode ser que ele soçobre após ter ocorrido esgotamento das
variáveis emocionais, mas estas também podem ser expressas por uma “lógi-
ca”, e, também, uma dialéctica, cujo processo esboça a inerente diatribe dos
factores, vaivém interminável, mas suspendido, quiçá, pela satisfação empíri-
ca, que pode, acaso, escusar o alcance da Razão. A compensação “emocional”
nunca é plenamente dada, ela pode, aliás, ser desviada pelo jogo “positivo”,
imediato, da “forma” empreendida na sua rudeza. Será “defesa” egóica, dirá,
certamente, o psicanalista, mas, aqui, reside, igualmente, a “defesa” egóica do
próprio, que bebe do seu paradigma, o qual não deixa de possuir um “con-
teúdo” racional, porque tudo o que é real é racional, e tudo É na sua intrínse-
ca determinação, o que, de mais a mais, nos diz que tudo é Espírito, e que
tudo possui igual possibilidade de veracidade face ao Todo, mas só este pode
ser a Ciência das ciências, na qual se esgotam todas as variáveis, num prelú-
dio “Racional” que só diferentemente poderá ser atingido por dissemelhantes
indivíduos, a alguns bastará a prescrição verbal, para outros terá de existir
peregrinação, efectuada da consequência para a causa, da multiplicidade para
a Unidade, coisa falsa ainda assim, porque tudo é feito a partir do Espírito,
no ensejo da liberdade, que, ora, vai despertando, em tom de queda. O cami-
nho é variável, interminável, talvez, sobretudo se não existir um Princípio dos
princípios, que é o mesmo que dizer que não existe destino algum, somente
“absurdo”, Ordens diversas escondendo outros “caos”, outros Logói.

Para Schelling («Exposição da Ideia Universal da Filosofia em Geral e da


Filosofia da Natureza como Parte Integrante da Primeira», 1803), a pura
“realidade” natural depende, na sua singularidade, do “Todo”, pelo que o seu
conhecimento deve provir do Intelecto, da razão, e não da observação empí-

244
O FisióSOFO

rica. A “absolutidade” procede, apenas, de si-mesma, nela se fundindo três


unidades: a “essência” subjectiva, a “forma” objectiva, e a que coloca as duas
anteriores em pura identidade “absoluta”. A “particularidade” é uma exten-
são do Absoluto, enquanto instante da Forma, pelo que o saber científico
deve derivar do “agir” intelectivo, e não proceder dos “efeitos”. Obviamente,
a plena “absolutidade”, imediata, incondicional, na medida em que comuni-
ca Sujeito e Objecto, não compõe a cognoscência, muito menos constitui
uma consciência “particular”, subjectiva. O “modelo” ou paradigma conce-
be-se, bastas vezes, enquanto “absoluto”, mas a sua franca racionalidade
remete para um caminho de pura Idealidade e sem retorno. Se o modelo
influencia outrem, pode bem ser que se trate de uma inclinação singular,
compensatória, capaz de fazer brotar o “Princípio” no “paciente”, mas mes-
mo o último corresponde a uma re-acção, que, no mínimo, mimetiza algo do
verdadeiro Princípio. O tracto “racional”, por parte do terapeuta ou do
paciente, é aproximativo face ao Princípio, mas até a vertente empírica,
“material”, poderá, na verdade, relacionar-se melhor com o Princípio dos
princípios. A obtenção de um princípio vero no sujeito deve, acima de tudo,
brotar espontaneamente a partir de “cima”, do Superior, contudo, se este
princípio é “singular”, contingente, ele não é, ainda, o pleno Princípio, o que
não obsta à importancionalização do “Todo” enquanto ponto de partida
para o “tornar-se”, sendo que este já Lá está, e é atemporal.

O materialista dirá, talvez, que só existem princípios contingentes, e que


uma “iluminação” pessoal real brota, quiçá, do inconsciente, mas isto pode-
ria ser interpretado em termos de “Todo”, e é, certamente, algo que dele
provém, porque a “matéria” é uma injecção do Universal no “particular”, o
que não nos impossibilita de diferençar princípios mais compensatórios de
outros mais genuínos. Pode ser que uma compensação cale ou facilite a acção
da Totalidade, é difícil saber, até porque o Sentimento pode ser adoptado seja
como compensação, seja como coisa “espiritual”.

Uma injecção endócrina não é uma injecção quântica, mas desta se


aproxima, na medida em que a última é somente a aparência da Unidade,
talvez diga o mesmo o que se afunda nesta, relativamente à outra escala, mas,

245
Luís Coelho

se o diz, se o pensa, está, também ele, na “aparência”, dependendo, quiçá, de


um Superior, que não existe em posição alguma, muito menos em “cima”,
ou no “antes”, apesar de ser uma Causa, mas é um Princípio contínuo, eter-
no, nele estão todas as “expressões” (Leibniz, «Discurso de Metafísica»,
1686), que se concebem no Presente e encarnam na ilusão “mental”. Deus é
Pai do Necessário, onde não existe “contradição” possível, e permite o Con-
tingente, que é uma desfaçatez, este estende-se da potência mais proximal da
Razão à “paciência” sensível e apaixonada, as suas expressões são insuficiên-
cias de Conhecimento, elas subsistem, apenas, na mente, na sua incapacidade
de Omnisciência, porque tudo o que é contingente é “necessário” em Deus,
onde jaz tudo o que É. Não assumi-lo é impor a ilusão, não aceitar a nossa
pequenez, que soçobra gerando um Deus com cabeça “humana”, quando a
inclinação “subjectiva” é somente nossa, como a moral, que se basta no “car-
nal”. O materialista dirá que tudo é contingente, que não há um Espírito
embrionário, mas tanto faz que o diga, porque tudo ser “Espírito” não muda
nada, nem nos obriga a coisa alguma, se bem que a própria Providência
impõe o equilíbrio, e este existe mesmo nas paixões. Mais uma vez, o mate-
rialista poderia dizer ser uma paixão um estado de “espírito”, como tantos
outros sem a cumplicidade de Deus, afinal de contas, até o desprazer pode
levar a bom porto, não sabemos, claro, se esse vale a pena, se a viagem “sofri-
da” importa, que a compensação também é um “espírito”, e aceitá-lo traz
ainda mais “espírito”, mas isto pode irritar o “espiritual”, que na irritação se
afasta do Espírito, ou poderá trazê-lo pelo martírio crédulo, alimento de um
dogma, que, por sua vez, alimenta o espírito de martírio.

Na medida em que, para Kant, o Conhecimento requer a intuição sen-


sível, a Razão pura é inalcançável, bem como a metafísica enquanto conhecer
teórico-dogmático. O que não invalida o futuro da metafísica, nem a coloca
aos pés dos cépticos, mas a traz para um domínio prático e “moral” que se
consubstancia na liberdade fenoménica. Por ser “fenomenal”, não advém da
Causa última, ela projecta uma Razão pura prática que possui a sua expres-
são na “fé” no supremo Bem como fim último.

246
O FisióSOFO

Contrapondo à visão Superior » inferior e conceptual de Leibniz ou


Wolff, a perspectiva crítica de Kant assere a impossibilidade teórica da assun-
ção da metafísica pelos supostos Juízos Sintéticos a priori. À visão da harmo-
nia preestabelecida, cultora do dualismo, Kant desenvolve sua óptica “feno-
menal”, único modo de expor a causalidade, bem como a “intuição” dos fins
últimos, que acabam por ganhar contornos práticos e morais. Com obvieda-
de, a visão relativista submeteu a perspectiva “racional” do Imperativo Cate-
górico à perspectiva “social”, segundo a qual a superioridade da moral reside,
em grande medida, num domínio contingente, que enforma a inerente Razão.

Assomado o aspecto “fenoménico”, a própria consciência, é difícil saber


o que nele há de Superior ou inferior. O que é sentido como “livre” pode,
ainda assim, ter algo de “corpóreo”. De qualquer modo, não é o sentimento
“individual” de liberdade que pode e/ou deve fazer correr o Humano, mas
sim o sentimento simultaneamente “individual” e Universal que traga a
moralidade aceite prescritivamente. Só este quadrante da Razão prática pode
conduzir o homem pelo viés do Supremo Bem, tornando-se irrelevante a
obtenção da “Coisa em si”. A visão “crítica” poderia opor os intrinsecamente
morais aos “moralistas” empíricos de ordem divina, bem como estes ao
pavimento da imoralidade consubstanciada na visão puramente “carnal”. A
moralidade “normal” poderia ser representada pela “ontológica” ou, então,
pela “prática”, sendo que, possivelmente, um ente poderá adaptar-se melhor
a uma delas, como pode outro sentir-se “livre” somente dentro do seu intrín-
seco Princípio, a liberdade é sempre uma resultante fenoménica; quando ela
quer extravasar para a “coisa em si”, entramos nos meandros dum Incognos-
cível que nem tem de ser “moral”. Mas, ao “humano”, interessa, sobretudo, o
aspecto prático, pelo que, colocando a moral “deôntica” como denominador
comum, pouco interessa o que compele ao seu intento. Mas o mesmo diria o
“materialista”, precavendo a possibilidade de a moral ser inteiramente egói-
ca, mesmo que não sentida enquanto tal. E o mesmo poderia dizer também o
psicanalista, mas, agora, colocando a moral enquanto consequência de uma
segurança primeva.

247
Luís Coelho

Como sabemos, em «Crítica da Razão Pura» (1781), Kant diferencia


conhecimento analítico, que se funda no princípio de contradição e em que o
predicado não acrescenta nada ao conceito inicial, do conhecimento sintético,
que é construtivo. Adversando tanto o dogma teológico, quanto o cepticismo
posterior, o filósofo remete o tracto da metafísica para a Razão, necessariamen-
te pura, e para os Juízos Sintéticos a priori. O conhecimento sintético puro é
exíguo, a dialéctica é a sua base, a Lógica remete para o analítico. O primeiro
assenta, apesar de tudo, no “empírico”, mas a priori. O “fenómeno” resulta da
sua recepção da “sensibilidade” a posteriori. A “coisa em si” é “alterada” feno-
menicamente pelas condições a priori, algumas necessárias e apodícticas. E por
o serem, estas condições da intuição sensível “impõem” os próprios Objectos.
Mas não de modo “ideal”, somente pela sua recepção. Não estamos perante
um Idealismo, no sentido convencional do termo, a Realidade não é “criada”,
o processo fenoménico é a condição da cognoscência, não da ilusão.

Os Juízos Sintéticos a priori podem ser juízos de experiência, que dife-


rem dos juízos de percepção por possuírem validade universal assente no
Entendimento puro (e não no Objecto “imediato”). Os juízos de experiência
são objectivamente válidos, o que significa que não se limitam ao Sujeito da
experiência vigente. A experiência “objectiva” corresponde à conexão de fenó-
menos numa Consciência necessária e universalmente válida. Ela só é possí-
vel porque existem Princípios, leis, naturais, “transcendentais”. Estes não nos
dão o Númeno, estão limitados à “experiência possível”. Daí que não possa-
mos ter acesso imediato às Leis da Natureza, apenas a algo semelhante a elas.
Mesmo sendo o Entendimento produto da Natureza, somos nós que pres-
crevemos as Leis à Natureza. A operação fundamental do Entendimento é o
Julgamento, indeterminado face ao Objecto. A base é categorial e lógica, mas
alude à intuição sensível. As Categorias permitem, então, destacar os concei-
tos puros, que resultam duma conexão, dos “confusos”. Por outro lado, há
que distinguir os conceitos do Entendimento dos da Razão pura, se quere-
mos estabelecer as bases de uma vera metafísica, a qual implica pura inde-
terminação e auto-suficiência. Obviamente, as proposições relativas à Razão
transcendente não podem ser comprovadas pela experiência. O que remete a
Razão para a possibilidade de um erro “subjectivo”, dialéctico, que pode, até,
passar por algo objectivo. A Razão pura opera para além de toda a experiên-
cia possível, interessando, então, o Objecto na sua Totalidade, o Númeno. A

248
O FisióSOFO

metafísica precisa desta extensão do objecto racional para além do concreto


empírico. No entanto, como sabemos, o Eu não pode ser predicado de um
EU maior, pelo que, logo, se perderia a consciência, que remete necessaria-
mente para um objecto preciso. A “auto-consciência” é consciência de um
objecto do sentido interno, que possui, em sua necessidade, o absoluto de um
Ente desconhecido. O tempo e o espaço são acontecimentos “fenoménicos”,
é contraditório pensá-los como existentes enquanto “coisa em si”. Muito do
que respeita à Natureza só pode ser apreendido fenomenicamente, havendo
contradição em pensar num acontecimento que não pode ser fenomenica-
mente aduzido. O que não invalida a possibilidade de uma contradição rela-
tivamente, por exemplo, à relação de Causalidade, que é livre como “coisa
em si” e condicionada no “fenómeno”. Entretanto, dentro do fenómeno, o
acontecimento parecerá livre, e a sua Causa parecerá estar fora dele. Mas o
próprio fenómeno é uma relação determinada, e que podemos sentir como
tal, cuja liberdade está na “coisa em si”, no Inteligível. A moralidade obriga,
sobretudo, à Objectividade, Universalidade, conceptual antecipando o fenó-
meno. Não é possível saber como algo “livre” pode gerar o fenómeno, mas
isto nem sequer é relevante para a moral. Mas, enquanto coisa objectiva, a
Razão “moral” pode ser encarada como Liberdade, na medida em que não
depende das condições “naturais” e fenoménicas de tempo e lugar. Citando
Kant, em «Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura» (1783): “Logo, posso
dizer, sem entrar em contradição: todas as acções de entes racionais, enquan-
to fenómenos (encontrados em qualquer experiência), estão sujeitas à neces-
sidade da natureza; mas as mesmas acções, consideradas apenas em relação
com o sujeito racional e com sua capacidade de agir apenas pela razão, são
livres.” A acção fica, como tal, a depender das leis naturais da Razão, não das
leis empíricas da Natureza. “A liberdade não tolhe, portanto, a lei natural dos
fenómenos, tampouco esta impede a liberdade do uso prático da razão, que
está relacionado às coisas em si mesmas, como princípios determinantes.” A
liberdade racional não é incompatível com as leis da Natureza, na medida em
que ela trata de uma prática “fenomenal” com base na objectividade concep-
tual. A liberdade “racional” tem carácter de “coisa em si” actuando sobre
cada acção, sem relação temporal com os sentidos. Só depois pode a acção
ser influída por factores determinantes naturais e fenoménicos, e, nestes, a
acção parecerá comummente “aprisionada” pela subjecção, o que nos pode
levar a atribuir a esta a verdadeira causa “moral” daquela, e não deixa, tam-
bém, de o ser, mas só secundariamente, mas, para um relativista, o que é

249
Luís Coelho

secundário pode fazer as vezes do que é primário, e, de igual modo, pode o


“adquirido” modificar a Razão, seja no indivíduo, seja na Sociedade, o que
não invalida que a mesma possa assumir o seu carácter “objectivo”, domi-
nante, universal, capaz de esgrimir a “liberdade” “normal” do ente dessa
Sociedade. Mas, aqui, de certo modo, já estamos a fazer com que a Razão seja
determinada pela relação temporal com os “sentidos”, capítulo bastante
desenvolvido pela Psicologia empírica. Trata-se de saber até que ponto a
esfera “empírica” é capaz de iludir e/ou escusar a esfera racional, seja indirec-
tamente pela modificação desta, seja directamente pelo impacto “subjectivo”
no fenómeno. E trata-se, também, de saber até que ponto a vivência “feno-
menal” pode ser justificada por si mesma e, até, amparada, ao ponto de con-
siderarmos todas as morais permissíveis e todos os Princípios legitimáveis.
Aqui, ficamos reféns do tempo, e, quiçá, busquemos no Superior uma “razão
de ser”, quando a própria Natureza possui suas respostas. Mas, mesmo com
as condições de uma Razão Universal, e até mesmo com Deus, assumindo a
verdade da vivência “fenoménica”, como apontar o dedo e o dever, sem que
subsista um lado pragmático que se limita a culpabilizar uns, por vezes de
modo primevo, e a desculpar outros? Um processo necessário, dirão uns,
mas os racionalistas poderão acusar nesta visão “empírica”, “psíquica”, a
ilusão do inerente fenómeno, a necessidade de auto-justificação, a comunhão
excessiva com o mundo “carnal” de vícios e concupiscência. O que não impos-
sibilita procurar a “objectividade” no intuito do próprio fenómeno, trazer à
consciência as condições de Universalidade, mas isto não denega, por sua vez, a
justificação determinista, a não ser atribuindo, de novo, a razão à Natureza.
(Independentemente do que possa a Psicologia dizer sobre a natureza cogni-
tiva e “subjectiva” da Razão, o acontecer “fenoménico” não pode ser negli-
genciado ou meramente desprezado, ele pode, até, ser “livre”, ou encarado
como tal, sem que isto obrigue a qualquer moralidade, porque esta não pre-
cisa da Liberdade, certo determinismo coloca a “moral” na linha da demiur-
gia, se bem que há, aqui, quase sempre pretensões relativistas, mas, dizia eu
que o “fenómeno” vale por si mesmo, mas não será a moral precisamente um
modo de limitar o seu intento “egoísta” e totalizador?) Para Kant, o Númeno
é muitas vezes enganado pelo “fenómeno”, na medida em que se assume que
tudo é condicionado e que a Razão é vertida no empirismo. O determinismo
não mata a “liberdade” racional, mas estende-a para além do Princípio uni-
versal, temporaliza-a. Mas uma Razão transviada pelo “empírico” não é Razão
no sentido verdadeiramente “incondicionado”, porque este é eterno, intem-

250
O FisióSOFO

poral. Por sua vez, o fenómeno “sente-se” muitas vezes “livre”. O que o deter-
minista encara, na melhor das hipóteses, como uma aproximação do mesmo
à Razão primeva.

Mais incerto que o conhecimento probabilístico obtido via experiência é


o conhecimento tomado da ficção metafísica que não se apoia na Razão pura.
Esta, por sua vez, está no limite da experiência, exercendo sobre a última a
sua influência necessária. Uma Razão que se basta por si mesma, livre do
fluxo interminável de condições experienciais, é algo que implica o Conhe-
cimento do sistema apodíctico de Regras dificilmente apreensível. Mas, sem
estas, toda a metafísica parecerá vã, perdida no sortilégio da Imaginação de
cada Sistema. Transcendental, porque na base e ápice da experiência possível
e percepcionada, o Idealismo de Kant está, ainda, muito relacionado com o
processo empírico, sem o qual não é possível uma prova da concretude. Por
outro lado, é também ao concreto que a Razão pura tem algo a dizer, pelo viés
da prática moral, que recria, em cada acção, todo um acontecer “metafísico”
ao qual não acedemos por completo.

A dúvida e a angústia expressam um trajecto visando a escolha de um


Princípio, o que coloca o acento no móbil, no próprio objecto. Esta é a
vivência do “finito” que quer um Infinito. Diferente da vivência “absurda”,
segundo Kierkegaard («Temor e Tremor», 1843), que advém de uma renún-
cia, de um toque de Fé no Infinito, seguido de um enlace “indiferente” do
mundo. Há, aqui, uma transcendência do móbil, um abraçar “finito” de uma
Fé incapturável. O indivíduo não esquece aquilo que já foi, daí a sua dor, “no
entanto, graças à sua infinita resignação, encontra-se reconciliado com a
vida”. Numa relação incondicional com o mundo, o ser basta-se a si próprio.
O movimento de resignação infinita é pessoal e implica renúncia. A
recompensa é a contemplação, consciência, do eterno. Só depois provém a
Fé, na qual tudo se recebe. O “absurdo” concede a coragem à resignação. A
Fé dá a coragem ao reenlace da temporalidade. É a condição da felicidade,
sem que, por suas próprias forças, possa ter o que deseja. É, assim, o modo de
ter “não o repouso na dor da resignação, mas a alegria em virtude do absur-
do”.

251
Luís Coelho

Esta felicidade é “geral” e participa da mesma natureza da moralidade.


Ela “constitui em cada momento, e para toda a eternidade, o seu telos porque
haveria contradição em afirmar-se que ela pode ser abandonada (quer dizer,
teleologicamente suspensa)”. Esta é uma “moral” adquirida pelo geral e em
nome do geral, o Indivíduo está acima deste, e, por isso, está ao seu nível
moral, fazendo, como tal, que subsista, aqui, uma concepção simultanea-
mente espiritual e demiúrgica, livre e condicionada, que supera a “razão de
ser” teleológica, o telos distante, e até a Razão dominante, sendo-lhe superior,
porque houve um enlace de Fé, preludiado por uma liberdade que, decerto, o
materialismo divisará enquanto “condição”, destino inescapável, mecanismo
de defesa ou resultante de um crescimento, e bem que poderia sê-lo, e não
deixaria, contudo, de ser “liberdade” irracional, coisa que permite a moral
terrena de ordem psíquica, com esta a poder ser corpo, espírito, ou algo que
lhes escapa em nome de um Indivíduo, Ser, já não Sujeito ou Objecto, ou
subjecção que reitera a diferenciação espiritual, que, ora, se revela “material”,
crise de identidade.
A “suspensão teleológica da moralidade” é, portanto, o instante de ele-
vação do Indivíduo face ao geral, e à própria razão. É um estado de superio-
ridade perante a moral demiúrgica, é um Todo para além do todo. É um
“absurdo” que contrapõe à condenação à escolha de Sartre, que, por sua vez,
é, também, determinação ou liberdade, pouco importa, mas parece estar
segundo a razão ou o destino. Mas é, igualmente, um “absurdo”, porque a
resignação não advém de uma desistência condicionada, de uma escolha
determinada pela angústia, mas da Liberdade, mas é efectuada pelo indivíduo
no mundo condicionado, e é por isso que se trata de uma genuína resigna-
ção, com valor moral, quiçá traindo temporariamente a moral demiúrgica,
razão do paradoxo que justifica a moral pela esquiva traição da mesma; e é,
também, pelo mesmo, que se trata de uma Fé, porque a Ordem é Superior,
mas o seu cumprimento reflecte-se “absurdamente” no “inferior”.
Não é, assim, a razão moral idiossincrática, centrada no geral, que move
o Indivíduo, a sua Liberdade é um dever para com o Absoluto, perante o
qual se coloca numa relação “absoluta” como Indivíduo. Relação que não
promete qualquer salvação, trata-se de mero dever, paradoxal, porque não é,
sequer, superegóico, diferindo, como tal, da vertente “psicanalítica”, condi-
cional, a não ser que a “psíquica” se faça por um movimento de puro dever
“absurdo”, incondicional, mesmo podendo ser do “corpo”, ou reflectindo-se
na sua resultante mensurável, capaz, por sua vez, de determinar outros movi-

252
O FisióSOFO

mentos “relativos” ou “absolutos”, condicionais ou incondicionais, defensivos


ou indefensáveis, racionais ou “absurdos”. Atemos, logo, um modo diferente
do “tornar-se Deus”, porque um é ostensivamente justificado pela resultante
moral e salvífica, e o outro é absoluto e suspende a própria Razão, bem como
o seu quadrante Universal que se centra no Colectivo. Daí que o “tornar-se
Deus” só possa ser, necessariamente, um movimento do Indivíduo, uma
traição impassível do Verbo, uma superação do Princípio logóico, que torne,
pela Fé, tal Silêncio irrepetível, incomensurável a previsões, e, portanto, ines-
capável ao Segredo e irredutível à palavra.

Um acto heróico só pode ser verdadeiramente “heróico” à posteriori,


quando o ganho moral o sustenta e justifica a renúncia. Se ele implicar uma
perda moral para outrem no momento do seu exercício, o ganho “maior” é
utilitarista, consequencialista. Se, entretanto, o indivíduo sabe que está a ser
herói, isso significa que já existe uma consciência do acto moral, o que impõe
uma determinidade pouco glorificadora. A não ser na perspectiva “materia-
lista”, para a qual nenhum acto moral é possível sem que exista algum ganho
ou algum tipo de obediência superegóica. Agir moralmente sem a perspectiva
consciente ou inconsciente de um ganho seria, já, da natureza do milagre.
Mas o milagre da plena Fé só existe na medida em que não há qualquer pers-
pectiva de um ganho pessoal e/ou geral, imediato ou mediato. A Fé é uma
paixão “sem mediação” moral. Como tal é da ordem incondicional do Espí-
rito, que contrapõe à ordem condicional do mesmo, que é haver determini-
dade fenoménica, consciente, imaterial, que, ainda assim, pode não dispensar
a resultante endócrina. Mas haver resultante material é querer condicionar,
ou, pelo menos, explicar a natureza das influências “eróticas”. A mediação
em causa pode surgir, apenas, por mera necessidade cognitiva, na medida em
que se trata de uma visão interna e substancial, limitadora, balizadora, capaz
de esgrimir o objecto, criar soluções de continuidade, artifícios empíricos
que parecem tirar a nobreza à acção. O fenómeno ganha, assim, uma mem-
brana que se traveste de uma relação de Causa-efeito.

Não é, assim, a moral que permite construir a “torre” do “cavaleiro da


fé”, a primeira é que é consequente a esta, na medida de uma vertente “dog-

253
Luís Coelho

mática” que impele ao sentido Superior » inferior. Já a vertente “inferior”,


empírica, poderia, até, defender que o próprio “Nada” é, somente, uma pro-
jecção, encadeamento relativístico de uma moral preconcebida, histórica,
anamnésica. A visão “determinística” não é absolutizadora, só é possível uma
moral “absoluta” a partir da indeterminidade. E esta implica resignação infi-
nita incondicional. Claro está que esta perspectiva “teológica” fere o Inteligí-
vel, na medida em que o coloca na dependência daquela.

“O verdadeiro cavaleiro da fé é uma testemunha, nunca um mestre.” O


cavaleiro da fé está em relação absoluta com o Absoluto, enquanto Indiví-
duo, pelo que a sua paixão, o seu sacrifício, é total, implicando sofrimento,
mas nunca um ganho egóico. Daí que renuncie completamente ao “geral”, à
sua compreensão, bem como à tentação de edificar uma moral, que seria
como vender-se à admiração alheia. Ele não é um terapeuta, um mediador,
mas, sim, um peregrino, destinado à provação perpétua, irredutível à aceita-
ção “geral”. Não existe, aqui, uma via de razão “neurótica”, heresiarca, capaz
de esculpir o Domínio; muito menos, uma via de heroísmo trágico, que se
limita a sacrificar algo em nome de uma moral apriorística.

O Espírito é, assim, uma forma de loucura “amoral”, um eco do outro


mundo, pelo que, por vezes, resiste à redução a uma moral humana, exercí-
cio prescritivo da Cognição social. Segundo Foucault («História da loucura
na idade clássica», 1961), na Idade Média, a loucura, bem como a mendici-
dade e a pobreza, era, de algum modo, encarada nos termos de um encanto
“espiritual”, compreensível especialmente pela religião, cuja “moral” era de
mote a valorar a miséria e o desapego. Mas, a partir da “época clássica”, pos-
terior ao Renascimento, a nova ordem burguesa, sobretudo com a ascensão
do protestantismo, convida a a-mal-diçoar todo o miserabilismo, prescre-
vendo o internamento institucional de modo a convocar ao trabalho, deplo-
rar o ócio e fazer vigorar uma nova moral “social” com vista à “cidade perfei-
ta”. A novel moral burguesa desvincula-se, parcialmente, da metafísica, pelo
que a virtude deixa de ser assunto exclusivo da Igreja e passa a assunto de
Estado. É ela que, mais tarde, motivará para a produção e é neste contexto
que a loucura se vê desenraizada, porque ela, bastas vezes, resiste à dociliza-

254
O FisióSOFO

ção moral e ao exercício laboral. Portanto, a loucura, à semelhança da “liber-


tinagem”, será nocivamente culpabilizada.

O “desadaptado” foi, essencialmente, criado pela nova face de higieniza-


ção moral. O “a-social” foi produzido e alienado, remetendo, mais tarde, a
uma loucura passível de ser identificada, diagnosticada, pela psicologia “positi-
va”, a qual, longe de conseguir a necessária objectividade empírica, se via, tam-
bém ela, toldada pela necessidade de ordem “social” e de conceptualização
cognitivo-moral. A ciência “positiva” não pode deixar de ser influída pela
Estrutura “epistémica”, que prescreve o “olhar”, bem como o sentido de uma
interpretação. A determinada altura, a Psicologia, e também a Psicanálise, alia-
va a flexibilidade “relativística” de uma ciência interpretativa à certeza empíri-
ca, com o mote de “controlar” a própria realidade. Aquela flexibilidade apa-
renta-a, em tudo, com a “pseudociência”, mas subsiste a “positividade”, que
aumenta o nível de respeitabilidade. A segunda concebe-se enquanto “norma”
moderna, pelo que o seu exercício é um modo de afirmar o primado da positi-
vidade, bem como da sua vertente “económica” e laboral. Aliada ao capitalis-
mo, a Psicologia denuncia a desordem e ordena alguns dos “utilizáveis”, forne-
cendo-lhes o lenitivo necessário ao labor produtivo. Mas a mesma Psicologia,
na sua óptica compreensiva, pode, também, fazer as vezes de uma “pós-moder-
nidade” patologizadora de tamanha concretude. Aqui, a dimensão “dialéctica”
reacorda, podendo, até, fazer-se munir de uma moral marxista e/ou espiritual,
que propende o regresso à Unidade.

O facto de a Culpa possuir uma expressão “patológica” a posteriori não


implica que ela não se submeta implicitamente a priori num tempo de matu-
ração empírica, ela contribui para desenhar o “pathos”, mas talvez não o
fizesse do mesmo modo antes da “era clássica”, quando a Estrutura era “oní-
rica” e aceite na sua magia. Se a Psicanálise valoriza tanto os aspectos morais
e sexuais da “teoria da loucura” é porque eles foram impostos por uma Era,
tornando-se parte do manancial da própria neurose. Assim, a sua identifica-
ção teorética implica, de certo modo, a intrínseca vivência neurótica, pelo
que se reconhece um modelo no seio de uma determinidade primária. O
modelo já traz consigo o aparelhado da Culpa, sem o qual não existiria do

255
Luís Coelho

mesmo modo. Este paradigma será, aliás, de mote a culpabilizar as expres-


sões espirituais – por isso encaradas como “dogmáticas” –, convidando, tam-
bém, a despir a capa da “moral burguesa”. O que não invalida que ela seja
uma teoria do Espírito, um modo de liberdade, capaz de ser inexaurível
numa vivência modelarmente materialista. O modelo não trai a Substância,
mas enquadra-a, absolvendo um modo de solvência que reflecte o íntimo do
paradigma. Conceber uma “patologização” do Espírito é, já por si, projecção
de uma forma de ver “psicogénica”, materialista. Conceber diversas “episte-
mes” projecta a própria visão relativista. Assumir que a solvência de cada um
é determinada parcialmente pelo equipamento da crença é dar, já de si, a
outra face ao aspeito de uma multiplicidade que não poderia ser exaurida por
qualquer modelo. A óptica “culpabilizadora” pode, assim, ser insuficiente
para perceber a cadência de solvências epistémicas que se multiplicam no
tempo, cada uma impondo um modo de ver e re-solver, afectando a seguinte
(segundo o ponto de vista do determinismo) e a do “outro”. Decerto que
cada descoberta revela novo manancial “empírico”, mas até aqui atemos uma
visão preconcebida. Não há um modo plenamente eficaz de filtrar comple-
tamente os modelos, fazendo sobressair a sua absoluta “positividade”, por-
que mesmo esta abarca uma “experiência” parcialmente embaçada por com-
ponentes, variáveis, cognitivo-morais. E estas incluem o “fenómeno”, elas
também integram a experiência da “loucura”, loucura seria tentar esvaziar a
“resultante”, no Princípio dos princípios só seria possível abarcar a ausência,
que é loucura face à vertente “moderna”, que apela à viagem arquetípica, e
esta é loucura, absurdo, face ao Nada, ao desapego, à pré-modernidade, mas
estas categorizações são, igualmente, facécia cognitiva, bengala paradigmáti-
ca, ilusão “empírica”, e poderíamos dar as voltas que quiséssemos, a própria
noção de “círculo” hegeliano é construção, é o que permite uma cognição
desavinda, que inclui, num só homem, diversas expressões compensatórias,
várias tentativas de recapitulação neurótica, movimentos que afectam o “vizi-
nho”. Mas víamos que ser este último intocável seria como ser psicótico, ou
talvez “seguro de si”, livre da Culpa, ou, apenas, evanescido “espiritualmen-
te”, em corpo, espírito ou nos dois, na determinidade “livre” ou na plena
“liberdade”, fenomenicamente é o mesmo, com ou sem metafísica, que apli-
car o quadrante da última é querer “nadificar” completamente a viagem de
modelos. Viagem que pode nunca ser extinguida, porque as estruturas epis-
témicas possuem uma “liberdade”, uma criatividade, insuperável, é impossí-
vel compor um Sistema que justice todo este panorama.

256
O FisióSOFO

O melhor modelo é aquele que ensina a superá-lo. O melhor terapeuta é


aquele que ensina a mandá-lo à fava. Nem que para isso tenha sido preciso
sair-lhe a fava no bolo da sorte. Por vezes, é o melhor brinde. Mas, sobretu-
do, há que descartar as frases feitas daqueles bolinhos que as trazem e se dis-
sipam no Céu da boca. Engole esta, se és capaz! Porque à fava já eu fui.

Ao abraçar uma concepção “moralista” e “sexual”, a Psicanálise vê-se


entranhada no preconceito “burguês” do seu tempo. É certo que ela propende
a libertação, mas, para isso, há que, antecipadamente, conceber uma “patologi-
zação”, que, para a própria Psicanálise, não passaria de um dado “intrínseco”,
natural, prévio. Mas o prévio pode, na realidade, constituir uma construção
“instantânea” tragada pelo preconceito sócio-cultural. Claro, a Psicanálise dirá
que este se situa na Origem, que é a Sociedade que motivou aprioristicamente
a construção. Mas tudo isto poderia até ser irrelevante, porque o que fica é o tal
“instantâneo” fenoménico, que só pode ser resolvido no seio do seu quadrante
conteudístico. Assim, parte da “cura” advém da crença de ser curado. Mas este
“placebo”, encarado como tal por certa “positividade”, não é assimilado enquan-
to tal pela Psicologia. O modelo implica uma projecção verídica, um jogo fan-
tasmático que é absolutamente “real” para o Sujeito, mesmo que a sua verdade
inclua a própria noção de que existe ilusão “empírica”, crença. Esta “ilusão”
pode, até, ser encarada como tal, mas ela é subjugada, compreendida, pelo
intrínseco Sistema, lembrando, talvez, o homem que se liberta assumindo uma
teoria determinista, ou o que se securiza avocando o pleno cepticismo da sua
Condição. O paradigma tem, assaz, essa pretensão de envolvência, trata-se de
uma presunção do Ego, mas isto é o que diz o mesmo paradigma, que não
deixa de ser abraçado mesmo por quem integra o seu lado potencialmente
“quimérico”.

A par da afirmação da “moral burguesa”, a liberalidade será culpabili-


zada, alienada, Aqui, numa concretização, determinação, especificação, do
lugar da loucura. Esta deixa de ser representada pelo “Espírito”, por uma
abstracção “totalizadora”, para ser colocada num lugar “social”, que é, apesar
de tudo, o foco constitutivo da neurose, capaz de deslocar o Eixo de equilí-

257
Luís Coelho

brio moral, parturiente de uma série de representações cognitivo-morais.


Obviamente, também esta visão implica uma representação, quiçá uma cons-
trução de índole psicogénica, um pensar que aproxima a loucura duma nor-
matividade desculpabilizada, onde as morais se vêem estarrecidas. O “mate-
rialismo” é o lugar da concretização culposa de uma especificidade mental,
“alienada” por uma necessidade epocal que desemboca na óptica Clínica, que
é da natureza da determinidade “material” e categorizadora. A dialéctica
pretende contrapor a esta, e isto inclui a pós-modernidade de uma liberdade
epistémica em que a moral é assumida na sua “idealidade”, seja “material”,
seja “espiritual”, mas sempre “espiritual” num certo sentido evanescente,
sentido este que é representação psíquica, “material”, concreta, definida nos
seus limites históricos. Culpabilizar, patologizar, é arrastar o Eixo de equilí-
brio para um ponto novel onde as representações “sofrem” um desaguisado
epistémico. Nas Eras clássica e moderna, a patologização é “material” e a
moral vê-se abarcada por uma determinidade. Neste contexto, o “espiritual”
poderá ser culpabilizado. E tal patologização é do cerne da conformação de
um terreno de aceitação de diversos arquétipos, sobretudo duma visão
“holística” que poderá securizar-se e securizar. É neste contexto que a “mate-
rialidade” pode representar a heresia, ela que simultaneamente limita e
refunde a liberdade, transportando a quimera para o índice da loucura. Lou-
cura maior será, talvez, conceber o conjunto das representações, há, claro,
uma tentação de delimitar “culposamente” as Estruturas, mas isto é, já por si,
esgrimir a representação. Ao deslocar o Eixo da culpabilidade, um paradigma
dissolve e revela outro paradigma, por exemplo, a afirmação do “materialis-
mo” é a asseveração do próprio contexto culpabilizador, onde as representa-
ções punem o fantasmático, aqui será possível conceber visões de re-pato-
logização que se perdem no seio de outra representação. Uma visão isenta de
“materialismo” culpabilizador poderá empreender outras representações, bem
diferentes daquelas que têm sido esboçadas. Mas teimosamente direi que,
mesmo aqui, existe uma experiência anamnésica de revelação de qualquer
coisa capaz de ocultar outros terrenos, o que, entretanto, contagia diversas
camadas da arquitectura do pensamento que concorrem, em simultâneo,
num só indivíduo, para um só instante que se recapitula momento a
momento e desencadeia uma resultante “positiva”, que é como o alvo do
Espírito, do Eterno, porque este implica parar o tempo num só acontecimen-
to “fenoménico”, o qual inclui várias “naturezas mortas” de diferentes indi-
víduos com dissemelhantes arquétipos e aconteceres. O instante fenoménico é

258
O FisióSOFO

sempre da categoria do Princípio, mas isto é, mais uma vez, impor uma
visão, contudo, sem terreno, é impossível conceber o que quer que seja, se
bem que qualquer concepção torna o terreno lodoso, fazendo multiplicar as
vertentes de um bestiário de ilusões.

Alienar os “loucos”, segregá-los moralmente, é um modo de evitar o con-


tágio “espiritual” da Sociedade, pelo que se mantém a “alienação” dominante,
pelo labor, pelo exercício “fisicalista” sem a descoberta sócio-cultural. A estru-
turação pode ser vantajosa, mas não se existe uma tentativa de converter
“patologicamente”, incitando a novel culpa, e renovando a compensação espi-
ritual, que, ademais, seria, também, culpabilizada. A última “compensação” é
da ordem da antiga, nova, “liberdade”, onde a assunção do Espírito pode ser
encarada como psicose e o movimento anamnésico enquanto neurose.

Se parte da culpabilização “psicanalítica” é da ordem da defesa do Prin-


cípio da Realidade é porque está, de facto, em jogo a estabilidade moral de
um Colectivo. A estruturação psicoterapêutica poderá ser vantajosa para os
que habitam, pelo menos parcialmente, na Norma, mas, para os irredutíveis,
poderá ser desvantajosa no sentido em que fornece o material culposo e
idiossincrático necessário à revolução. Desculpabilizar pode ser bem melhor,
de modo a permitir adaptar a “diferença” (Deleuze) à “repetição” materiali-
zada. Mas só será capaz de reconhecer a “culpa” quem participa da moral
fustigada. A fustigação pelo internamento é da ordem da plena segregação,
mediante um modelo que impede o intento revolucionário. As terapêuticas
utilizadas são, comummente, “paliativas”, como quem fornece o paliativo ao
próprio Colectivo pretendidamente incólume. E bem que este também faz
uso das terapêuticas, com o objecto de aliviar as consciências martirizadas
pelo labor. O “new age” religa-as ao “espiritual”, mas fá-lo de um modo super-
ficial. Terapêuticas holísticas e não convencionais permitem, pelo menos par-
celarmente, recuperar o antigo paradigma “espiritual”, mas existe, ainda
assim, uma resistência face à verdadeira “gnose”, pelo que o aspeito fisicalista
é ainda vero e contribui para tolerar o tom feérico e liberal da modernidade
industriosa. Também aqui o modelo científico-liberal e positivo reconhece,
usualmente, os loucos, os alucinados, os inadaptáveis.

259
Luís Coelho

Segundo Foucault, a unidade clínica da modernidade resulta de dois


movimentos principais: a desresponsabilização jurídica e hospitalar – que
subjaz à própria terapêutica, à possibilidade de conversão social – e a culpa-
bilização moral mediada pela prática do internamento – que subjaz à profila-
xia social. O primeiro movimento subtrai o Sujeito à liberdade e empreende-
o num processo clínico que visa o restabelecimento da personalidade jurídica
e social. Rememora a estruturação terapêutica, como a compensação, em que
o Eu se deixa apoderar por um Outro. No segundo movimento, o sujeito é
transformado num Outro irredutível à Norma, pelo que deve ser apartado do
Colectivo. Na medida em que o Outro se assume enquanto tal, poderá existir
uma conversão Social bem mais alargada, onde a nova dinâmica moral pode-
rá dar azo à estruturação compassiva do “Eu”, em que este e o Outro se uni-
ficam, desta vez em pleito “espiritual”, capaz de esculpir a desadaptação do
“moderno”, para o qual o “Outro” deve permanecer moralmente transfor-
mável mas epistemicamente impermeável. Se, para o positivismo, a dinâmica
terapêutica se esgota na Natura, e a pós-modernidade é a idade de uma cum-
plicidade fartamente placebetária, para o pós-modernismo, a dinâmica reite-
ra a própria revivificação histórica dos modelos, os quais não podem, jamais,
largar o seu conteúdo subjectivo. Aqui, a subjectividade é tanto do que
rememora os modelos como do que se rememora na hora de compactuar
terapeuticamente com um “outro”. Frequentemente, ambos se implicam,
contribuindo, no entanto, para um estado de crise transformadora que dese-
quilibra o Sistema. Neste contexto, a óptica do poder não é exclusiva do posi-
tivismo, aliás, o último pretende, até, ser “socialmente” impermeável, é o
subjectivismo que sabe que tal “realismo” é ingénuo, se bem que o “subjecti-
vismo” não poderia deixar de ver as coisas deste modo “não objectivo”, é
uma questão de preferência, de identidade, como a dos paradigmas ou ideais
que consubstanciam o estado de “domínio” vs. “passividade” de um terapeu-
ta e/ou paciente, se bem que o “domínio” de um modelo pode reiterar a pró-
pria compassividade, com esta a poder, apesar de tudo, conflituar com um
estado de domínio subjectivo.

A expressão “analítica” cruza a dimensão culpabilizadora de uma liber-


dade racional com a dimensão desresponsabilizadora de uma patologização

260
O FisióSOFO

clínica. A dimensão racional mergulha nas “trevas”, na liberdade inconscien-


te, ela é a proa da consecução de uma nova Razão dominante, de novel deter-
minidade. Esta inclui a naturidade e o conjunto dos signos do “adquirido”,
ela cria simultaneamente a Norma e a desadaptação, sendo que a segunda
poderá ser aprisionada no que tem de submersão numa loucura cuja anima-
lidade é temida. A animalização do louco, signo da Era clássica, antecipa a
animalização “evolutiva” e determinística da modernidade, mas esta dissolve
a Culpa, no que tem de “Zeitgeist”, o qual cria necessariamente a dissensão
hercúlea passível de ser exaurida pelo esforço interpretativo. A dinâmica analí-
tica, compreensiva, afecta à (pós)modernidade, cruza as diferentes dimensões,
é ela que “reconhece” o dilúvio, projectando renovada realidade.

O Vírus Covid disse-me ao ouvido que aceitasse, sem protestar, a nova


vacina potencialmente obrigatória. Perante tal pedido urgente fiquei, logo,
sem defesas, sem ar e a arfar.

Terá o Ventura Quasimodo uma Esmeralda no sapato? Pergunto-me,


ao som de “Carmen”. (22/08/2020)

Portugal não é racista. É etnista.

É impossível escusar o aspeito “moral” da concepção da loucura na Era


clássica, a “paixão” é atida no limiar da relação entre o corpo e a alma, rela-
ção essa que poderá estar comprometida tanto por um corpo afectado “local-
mente”, cerebralmente, ou nas paixões, como pela sensibilidade do espírito
afecto a causas “distantes” progressivamente abrangíveis. Esta sensibilidade é,
também, a do corpo, o qual, na sua afectação, não implica patologicamente a
Razão, a liberdade, se bem que o espírito poderá ser abrangido pela doença,
até porque a ligação entre este e o corpo é ainda atida pelo próprio processo
representacional e social. O facto do espírito poder ser comprometido não
compromete, por sua vez, necessariamente a liberdade, muito menos naquele

261
Luís Coelho

que visa, sobretudo, o aspeito de um corpo perturbado, seja ele espiritualista


ou materialista; ele poderá, igualmente, entender que a liberdade depende,
essencialmente, do corpo, mas que ela não é afectada por todos os processos
de loucura.
Obviamente, o aspecto “materialista” terá maior pendor na fase “positi-
vista”, mas mesmo nesta é possível conceber a afecção do Espírito, nem que
por intermédio do corpo, ou porque a “mente”/cérebro é entendida enquan-
to “espírito”, percepção que não escusa a visão clínica centrada especialmen-
te na categorização das manifestações sintomáticas.

O medo não é do Covid, é, mesmo, dos lares! Não há compaixão que


pague o cheiro a degradação e a pestilência de um agradecimento que tarda e
convida a morte. Por isso, há que inverter a moral e premiar os fortes e
jovens capazes de reconhecer a dádiva do resultado. Admiti-lo é ser cobarde?
Hão-de cá vir pedir-me ajuda de joelhos e eu vou fazer-lhes um manguito.
Morram, para aí, oh velhos, para a próxima lembrem-se de valorizar quem
merece. A vida é sobrestimada, morrer é um acto de coragem, aliás, um dese-
jado conforto para o desespero e a embriaguês. Quando chegar a minha vez,
hei-de morrer como um homem, pedirei a morfina ao médico, se houver
algum por perto. (25/08/2020)

A “net” continua a não acreditar que “não sou um robot”. Até já me


pediu provas de humanidade. E com isso apanhou-me em cheio.

Se conduzir (no caminho da vida), beba. Vai precisar.

Estou, sempre, onde não me querem. Devo-me isso.

Ainda dizem que a unanimidade é difícil, ora, ainda antes de abrir a


boca para propor algo, já uns estão contra e outros a favor.

262
O FisióSOFO

Qualquer pessoa que queira ser genuinamente ética acabará criminosa.

A partir de hoje, só faço sexo “baseado na evidência”. Reprodutível.

Bem te dizia que não ias ser feliz por lá, que eu fui e não partilho a feli-
cidade.

Um estudo sobre o Amor? Não me importo de pertencer ao “Grupo


placebo”, desde que ame. Dizem que não vou amar, que pertenço ao “grupo
Controlo”? Hão-de ver se não me descontrolo de vez.

Muitos esperam que o terapeuta os motive a partir do nada. Lamento,


sou a bomba da gasolina mas não o homem que a põe.

Que a “evidência” seja “baseada no Raciocínio”. Isso é que eu queria!


Muitos terapeutas nem esperariam que a janela se abrisse, bateriam, logo,
com a porta. O pior é haver tantos que se escancaram perante a mais inútil
luz, é vê-los saltarem pela janela nas trevas da decisão e estatelarem-se nas
portas de uma cegueira tranquilizadora.

O que fui, e já não aceito, é apócrifo. É favor não ler. Se responder por
mim, não serei eu.

Na Conferência de Ética Intergaláctica, o Dr. Alien argumentou que não


me devia mais respeito do que aquele que tenho pelo porco que comi ao

263
Luís Coelho

almoço. Foi injusto, só tinha comido leitão e já estava capaz de uma conges-
tão. Disse-lhe, mas ele não percebeu a rima. Entretanto, enquanto arranja-
vam os Tradutores Universais, escapei dali a grunhir. Perceberam a piada?
Ele também não.

Quando era mau, diziam que era poeta. Quando me tornei poeta, disse-
ram que era psicografia. Imaginem, só, se tivesse ficado entre os dois. Diriam
que era plágio.

Saber que alguém deixou de fumar por se juntar ao “Chega”, mais do que
um incentivo ao fumo, é a prova cabal de que há muitos ex-toxicodependentes
que, apenas, se limitaram a trocar uma droga por outra. Recomendo a criação
dos “Chegófilos anónimos”, sob pena perpétua... (02/09/2020)

Quem me tira a liberdade de expressão está a exprimir a sua liberdade


de expressão. Esta frase é a vingança.

Distanciamento de três metros e exercícios individuais. Acabou-se o


bullying nas aulas de Educação Física!?! Éramos infelizes e não sabíamos.

Não falarei sobre a “Educação para a Cidadania” até ser um cidadão


respeitável. Até lá, respeitem o meu silêncio.
Na minha puberdade, aquando das aulas de “Religião e moral”, queria,
a todo o custo, que me ajudassem a odiar Deus. Fui mais ateu do que sou
agora. Tive nota máxima. Afinal, aquilo era mais do tipo “Educação para a
Cidadania”.

264
O FisióSOFO

O “delírio” é o representante “clássico” da loucura, na sua perpétua


ligação com o território de trevas do Sonho e com o erro, e a relação entre
estes conforma o Nada, o Irracional, dentro do qual pode, apesar de tudo,
haver razão, Razão ofuscada (Foucault).

Há uma parte de mim que quer muito afastar-se do humano. A outra já


se afastou.

A próxima vez que eu vir alguém a utilizar a palavra “Educação” para se


referir ao que se faz em casa, excluindo a escola, terei de ser mal educado o
suficiente para mostrar que, apesar de tudo, Conhecimento e moral não se
excluem.

Confesso que géneros e ideologias não fazem o meu género. Estou a ver
se degenero num idealista.

“Não viver é o que mais cansa.” (Mia Couto)


Não, viver é o que mais cansa.
Li a segunda no lugar da primeira. Foi vista cansada.

É preciso libertar a Fisioterapia dos seus (próprios) preconceitos. Para


que ela seja o próprio preconceito de liberdade. (08/09/2020)

“Raramente me engano e nunca tenho dúvidas.” (desenCavacado Silva)


Raramente me engano porque tenho sempre dúvidas. (#metemaiscava-
conisso Coelho)

265
Luís Coelho

Tens um comportamento ético irrepreensível com as pessoas. Cuidado,


ainda acabas a gostar delas.

Ele era bom com toda a gente, tinha uma moral irrepreensível. Mas,
depois, descobri que, afinal de contas, ele gostava das pessoas.

«– A: Um corpo “cristal” ou um corpo “máquina”, que preferes?


– B: Fazer do corpo “máquina” uma cristaleira.»

A “net” ainda me pergunta se sou ou não um “robot”. Ora, se até foi o


Homem que a criou, não havia de ser um “robot”? Mas ela não acredita.

Apontar os erros da História, alegando que a memória terá o condão da


prevenção, é permitir, na verdade, que tudo se repita, porque chamaremos
“novo” ao novel e diremos que o passado é irrepetível, mas é precisamente
por acharmos que o novo contexto representa uma novidade sem exemplo
que diremos, mais tarde, que voltámos a cometer um erro. E, de igual manei-
ra, diremos que foi a última vez.

A bissexualidade é um desmame da heterossexualidade, uma prepara-


ção para o processo do Deus gay, em eterno riso, no coito incestuoso com a
Natureza mãe.

O esquema político actual é de puro entretenimento, mas convém não


confiar excessivamente nas consequências. Recomendo, portanto, pipocas salga-
das ao invés de doces.

266
O FisióSOFO

Mulher ao volante da vida, perigo constante para o machismo.

«– A: Quando pequeno, eras do género de quem chuta a bola, de quem


a apanha ou de quem foge dela?
– B: Eu era a bola.»

Chamavam-lhe “menina”. Mas era tudo a brincar.


Pregavam-lhe rasteiras. Mas era tudo a brincar.
Trocavam-lhe o nome, e o sexo. Mas era tudo a brincar.
Apontavam-lhe o peso, a gordura, as roupas. Mas era tudo a brincar.
Tiravam-lhe a palavra, a liberdade. Mas era tudo a brincar.
Diziam que era marrão. Mas era tudo a brincar.
Ironizavam as suas escolhas. Mas era tudo a brincar.
Um dia bateram-lhe. Mas era tudo a brincar.
Outro dia roubaram-no. Mas era tudo a brincar.
Perseguiam-no na mente. Mas era tudo a brincar.
Diziam que não tinha Direitos. Mas era tudo a brincar.
O assédio não era assédio. Porque era tudo a brincar.
Desprezavam-no, desacreditavam-no, afinal, era tudo a brincar.
Riam-se e bebiam de gozo, não era tudo a brincar?
Um dia, brincou.
Disseram-lhe: Não se brinca com coisas sérias.
Então, ficou sério. Até hoje!
Mas, como é suposto ser gay, não deixaram de brincar.

Sou a favor das quotas obrigatórias para ascetas. Eles, não.

Ele era paritário. Achava que todos os homens ilustres tinham de ter
uma mulher por trás. Colhendo os louros.

267
Luís Coelho

Ele era paritário. Achava que por trás de uma grande mulher, há sempre
um grande cota.

Para bom entendedor, todas as palavras não bastam.

Não te quines pelo Quino que a Mafalda não quinou. (30/09/2020)

{Raquialgias: Manifesto filosófico-fisioterapêutico15}


Resumo
Propõe-se, aqui, o exercício ensaístico circundando as semelhanças e
ligações entre Fisioterapia/medicina e Filosofia, a partir de dois paradigmas,
flagrantemente presentes na intervenção fisioterapêutica em raquialgias: o
“postural”/racional e o “funcional”/empírico. Analisaremos as diferenças entre
os modelos, e veremos a imprescindibilidade de os compatibilizar, de modo a
assegurar o rigor onde ele não pode existir em absoluto. O ensaio dá, igual-
mente, enfoque a diversos aspectos filosóficos envolvendo a Saúde como um
todo, geralmente negligenciados pelos profissionais de saúde.
Abstract
Here, it is proposed an essay exercise surrounding the similarities and
connections between Physiotherapy / medicine and Philosophy, based on
two paradigms, flagrantly present in physiotherapy intervention in back pain:
the “postural” / rational and the “functional” / empirical. We will analyze the
differences between the models, and we will see the necessity of making them
compatible, in order to ensure rigor where it cannot exist at all. The essay
also focuses on several philosophical aspects involving health as a whole,
generally neglected by health professionals.
Palavras-Chave: Fisioterapia, Filosofia, Epistemologia, Raquialgias, Pos-
tura

15
Setembro de 2020, publicado na revista «Triplov.com», Outubro de 2020, e em «Health-
news», Dezembro de 2020.

268
O FisióSOFO

As raquialgias constituem a condição sintomática mais comum no


atendimento fisioterapêutico, bem como uma das mais habituais da consulta
ortopédica, reumatológica ou de clínica geral. Elas não se resumem a um
quadro simples perspectivável de modo unívoco, compõem, sim, a fonte de
um enquadramento paradigmático que reflecte a divisão epistémica, valora-
tiva e pragmática de avaliação e intervenção clínica, fisioterapêutica e/ou
médica. Neste contexto, reflectir a acção clínica presente perante a raquialgia
é, igualmente, especular uma derivação filosófica sem a qual a intervenção
não pode pressentir-se e valorizar-se. No limite, diremos que existe uma
relação estreita e bi-direccional entre filosofia e clínica que é cada vez mais
conveniente escalpelizar.
Dois modelos/paradigmas expressam a dualidade do tracto da raquial-
gia, o próprio ráquis os separa em:
(1) modelo postural, que implica um tratamento operado, essencial-
mente, em decúbito dorsal, posição base a partir da qual é fácil perspectivar
as compensações que são geradas aquando do alongamento da cadeia mus-
cular posterior. Esta cadeia integra um complexo de músculos muito tónicos
e resistentes, com uma função fundamentalmente postural. A sua contracção
tem, segundo o paradigma, a potencialidade de achatar as articulações e de
cerzir a morfologia.
1
O esquema básico de Mézières releva o seguinte conjunto de alterações:
lordose, rotação interna (dos membros) e bloqueio diafragmático em inspira-
ção. Considera-se, também, que a lordose lombar pode propiciar o desgaste da
articulação da anca, tal como pode aumentar o nível de lordose cervical, impli-
cando uma cifose “aparente”. A cifose dorsal poderá aumentar o nível de des-
gaste da articulação do ombro, estando, acaso, associada, igualmente, à retrac-
ção da musculatura rotadora interna dos membros superiores. Por outro lado,
grande flexibilidade da secção superior da cadeia muscular posterior (corres-
pondente à coluna) pode ser compensada com “lordose” da secção inferior,
provavelmente popliteia. Estas alterações são francamente compensatórias,
podendo estender a “normalidade” postural até limites potencialmente nefas-
tos. Geralmente, o limite, adoptado como a incapacidade do corpo de com-
pensar mais, é represado pela “dor” e/ou deformidade.
O tratamento “postural” é, primariamente, representado pelo trabalho
de flexibilidade miofascial, preferencialmente “global”. É ele que permitirá
aumentar aqueles limites, libertando, potencialmente, as articulações. Bien-
2
fait assume que o trabalho de flexibilidade na escoliose mais acentuada poderá

269
Luís Coelho

ter o efeito de aumentar ainda mais a deformidade. Mas, por exemplo, Sou-
3
chard concebe que tal só poderá suceder se não existir um modo adequado
de controlar todas as compensações, coisa que o seu método (RPG) propen-
de face ao original de Mézières.
A perspectiva “compensatória” é, na realidade, um modo de confiança
4
no equipamento “observacional”, ao estilo de Francis Bacon , mas que não
escusa os defeitos empíricos que o mesmo filósofo aponta aos modelos dog-
máticos. O que é observado e assumido como lei é francamente movido por
um comportamento corpóreo, que mesmo sendo assumível como universal,
não dispensa a visão paradigmática. O que inclui a mesma óptica a posteriori,
aquando da efectivação de um modelo “miofascial” que sugestiona simulta-
neamente a avaliação e o tratamento. Avocar que este modelo permite escul-
pir uma morfologia é, talvez, especular o que o intrínseco modelo entende
não poder ser comprovado por défice de tempo de estudo e por incapacidade
de controlo de variáveis nesse mesmo tempo delongado. Por sua vez, é possí-
vel conceber que a resultante vera em alguns sujeitos poderia ser apagada por
uma “não resultante” em outros sujeitos, isto se nos referirmos a estudos “gru-
pais”, que, consabidamente, cancelam o efeito “casuístico” e não permitem,
muitas vezes, estudar a inter-relação de variáveis. Mas acontece que a mesma
táctica “desculpabilizadora” é utilizada por proponentes de outros métodos
com elevados níveis de abstracção, o que pode envolver a pura charlatanice.
Daí que, ainda mais quando se trata da mera sintomatologia, seja fundamental
acrescer o “efeito placebo”, o qual tende a ser demonizado pelo positivismo.
Há, ainda, que ater a problemática anamnésica e dialéctica. O paradig-
ma “postural” convida à intervenção constantemente dialógica entre o tera-
peuta e o que o corpo do paciente “narra”. Mas como pejar a cronologia das
alterações, se houve uma evolução ascendente ou descendente, se a postura
“presente” pode ou não ser considerada “funcional”? Numa perdulária hipó-
tese, a intervenção gera ainda mais dor, mergulhando o paciente ainda mais
fundo na necessidade de “positivar” o resultado. Mas, decerto, muitos tera-
peutas conceberão a legitimidade de uma intervenção em que a “dor” é impli-
cada enquanto “caminho” inevitável. Mas será mesmo legítima esta interven-
ção? Não será preferível, meramente, compensar? Mas isto poderia contender
um tratamento já mais “funcional”, anti-sintomático. Que também não dis-
pensa o placebo, mas permite, talvez, delinear melhor o seu sortilégio.
Relativamente à coluna vertebral, há que conceber que assim como o
alongamento poderá ajudar a libertar o processo articular, também poderá

270
O FisióSOFO

dificultá-lo, sobretudo se a força for excedida, e isto é ainda mais saliente se


considerarmos que o mesmo é efectuado em flexão, comprometendo os discos
intervertebrais com potencial hérnia. Esta pode ser causada ou agravada pela
contratura, mas o tracto desta pode, como já vimos, perigar o estado da pri-
meira. O que não invalida que o alongamento posterior possa libertar outras
estruturas anteriores ou ser sequenciado por um trabalho funcional capaz de
“compensar” o trabalho de flexibilidade. O que nos leva forçosamente ao
(2) modelo “funcional”, preferencialmente em decúbito ventral, e que,
ao nível discal, envolve a extensão, capaz de fazer reabsorver o núcleo pulpo-
so do disco inter-vertebral. Mais aceite empiricamente, ele inclui terapia
manual, exercício e, até, trabalho de força, que poderiam já ser realizados em
decúbito dorsal, após e/ou em simultâneo com o trabalho de flexibilidade. O
seu efeito é de “curto prazo”, não visa, tamanhamente, a causa “postural”,
mas, sobretudo, a causa “local”, é mais “analítico” e fortemente anti-sinto-
5
mático. Adapta-se melhor ao contexto da “episteme” (Foucault ) “materialis-
ta” e ao tracto do “grupo”.
Ambos os modelos possuem importantes implicações. Por exemplo, o
primeiro deplora o trabalho de força dos extensores do tronco, bem como a
higiene postural, que acalenta o trabalho voluntário e “ansioso” em músculos
de controlo fortemente “inconsciente”. O segundo representa o rigor “empí-
rico”, a necessidade de obter resultados palpáveis e de controlar os excessos
dogmáticos do primeiro. Por outro lado, é, de todo, admissível pejar o equi-
líbrio entre os dois modelos, com o primeiro a preparar o segundo e este a
contender o primeiro. Ademais, as próprias posturas podem viabilizar a
terapia manual, o movimento e o trabalho de força, em simultâneo ou em
6, 7, 8
obrigatória sequência .
O equilíbrio entre o modelo “postural” e o “funcional” é, igualmente, o
ponto de equilibração do próprio ráquis, quando as cadeias posteriores e as
anteriores se harmonizam na força e na “postura”, com um valor electromio-
gráfico mínimo de activação muscular posterior. Atemos, aqui, um equilíbrio
neuromuscular, que, para alguns, não é função do treino de flexibilidade “pos-
tural” mas da “função” motora. No entanto, demonstrá-lo remete-nos, de
novo, para a dualidade inicial.
Na verdade, nunca podemos saber se, de facto, o equilíbrio em causa
aproxima Sujeito e Objecto, ou se se limita a renovar a Ordem com que se
esparge um cômputo novel de relações. Nova Ordem indicia uma tensão
liberal, anterior, que reinicia a dualidade. Nesta, difícil é saber quem é “Sujei-

271
Luís Coelho

to” e/ou “Objecto”, porque nem sempre o terapeuta se sacrifica em nome do


paciente, ambas as ordens, posterior e anterior, possuem seu “quantum” de
dogmatismo, sendo “ideal” que a “postura” do paciente seja respeitada no
plano da sua “normalidade”. Só assim é possível esquivar as compensações
que advêm dos excessos paradigmáticos. Obviamente, as compensações ads-
tritas ao paradigma “normativo”, “positivo”, podem, também elas, tolher a
“estruturação”, mas, como dissemos, não é, de todo, possível saber o que
representa, genuinamente, a postura “ideal” do paciente. Ater, somente, o
modelo do terapeuta é arriscar tratar mais a saúde do clínico do que a do
paciente, porventura, também o terapeuta é paciente do paciente, aliás, ele
integra a Unidade finalista, tal como o contexto, cuja saúde depende da dos
agentes envolvidos, mas sempre de acordo com um “Todo” que não se resu-
me à soma das partes.
Avocar um modelo simultaneamente “funcional” e “estrutural”, cen-
trado na força muscular, é ir além do modelo “dual” que consente reforçar os
músculos anteriores, fásicos, com/após a inibição dos posteriores. De qual-
quer forma, a zona “posterior” é sempre inteirada como defensiva, “arqueo-
lógica”, e a “anterior” como “agónica”, potente, liberal, lugar de todas as
semiologias que se projectam e reclamam a autonomia fisicalista. O libera-
lismo/positivismo “sintomático” expressa a falha da semiologia “postural”,
mas também pode resultar do seu esgotamento psicossocial. Por sua vez, a
força “liberal” poderá ter o condão de redesenhar as defesas, promovendo a
recriação da postura, a qual poderá, mais tarde, prover aos sintomas. O
caminho é interminável, existe a promessa de uma interpretação inesgotável,
que coloca, entretanto, o paciente e o terapeuta numa relação de duelização
de papéis, a qual dualiza, tal-qualmente, o lugar, de conversão, do corpo face
ao sentimento.
No contexto desse duelo, o terapeuta convida-se, constantemente, a
transformar o paciente, com acção e intenção, enquanto “interferência contex-
tual”. O que é placebetizado, quando perdido, é convertido em sintoma. Se a
“estrutura” do paciente resiste, é, por sua vez, este que transforma o terapeuta,
prescrevendo-se um conjunto de mutações, uma dinâmica “ideal”, que pode
9 10
estender-se indeterminadamente no “absurdo” (Kierkegaard , Camus ), e que
irá ser obstaculizado, somente, pela natureza profunda e “normativa” que con-
serva, frequentemente, uma matriz já dificilmente alcançável.
Na medida em que a “Causa” remete indefinidamente para um cami-
nho infindável, encontramos, aqui, a falência das abordagens holísticas, que,

272
O FisióSOFO

na promessa de atingirem o estado de “Ser”, poderão operar uma “caça aos


11, 12, 13
gambozinos”, cientificamente infalsificável (Popper ), passível de “acres-
centar” e “idealizar” mais do que desvela ou redime. É o perigo da “pós-
-modernidade”, com o seu discurso amplamente relativista, que, ao tirar o
tapete à narrativa placebetizadora “positiva”, cauciona a estabilidade de inú-
14
meros sujeitos. Pluralizar as “estruturas”, bem como as “semânticas” (Ricoeur ),
é abrir a porta a um caos tão enriquecedor, quanto destrutivo. Se “tudo vale”
15
(Feyerabend ), então nada vale. E quando as estruturas sucumbem, surge a
psicose dos “sintomas” e a fome de Clínica. Já aqui não há placebo ou positi-
vidade que possam salvaguardar a saúde “espiritual”, o clínico terá de fazer as
vezes de um demiurgo capaz de criar tanto a diegese quanto a regra do cor-
16
po-máquina. Esta prepondera num mecanicismo (La Mettrie ), num puris-
mo, a partir do qual a assinatura do clínico enforma a narrativa individuado-
ra. O excesso castrador fornecerá o fruto sublimador de outras estruturas,
passíveis de trair o Código inicial. A positividade é imediata, a relação é
mediata. O “espírito” é o fantasma inconsciente cuja energia projecta a ficção
de uma consciência necessariamente contendida por um Superego de dimen-
sões titânicas. O “clínico” seduz a consciência, quiçá possa obliterar-se no
divino de um paciente, passando este de percipiente a agente.
O trabalho dialéctico com o paciente é, praticamente, inolvidável em
Fisioterapia. E, no entanto, a contextura nacional é de mote a seguir o mero
prescricionismo. Mesmo querendo evitar a ficção placebetária, a dialéctica
“fisioterapêutica” não pode deixar de ser holística, na medida em que as
variáveis agem num conjunto dinâmico, não deixando, nunca, de ser neces-
sário seguir a coerência biológica e semiológica compactada no raciocínio
clínico. A prática baseada na evidência deve ser uma prática baseada no
raciocínio. Mas, é claro, clinicamente, a “evidência” ilude, porque se trata,
aqui, de uma dinâmica do “antes” e “depois”, em que o tempo esgrime os
factores de um modo tão variável que não haveria forma racional alguma de
justificar a superioridade absoluta de uma intervenção face a outra. A expe-
riência clínica demonstra, muitas vezes, que tudo produz algum resultado e
que, por outro lado, não há nenhuma estratégia que não represente um risco.
Haverá, sempre, algo a congratular e algo a criticar. E uma boa dose de
“incontrolado” que a arrogância terapêutica impede de conceber.
Acontece o mesmo com a própria actividade física, que a pós-moder-
nidade convida a ser mais “psicomotriz” e menos “analítica”. E independen-
temente da resultante, é precisamente a dinâmica “postural” que sugere que

273
Luís Coelho

o exercício pode perigar as articulações, dando preferência a uma abordagem


“holística” em que o corpo é visto como “frágil”. Isto rompe, obviamente,
com a perspectiva moderna, científico-liberal, em que o corpo é encarado
como máquina produtiva. O pós-marxismo, bem como o pós-modernismo,
contribui, ainda agora, para fornecer uma visão da medicina como “práxis”
liberal, capitalista, mercantilista, submetida ao Sistema. Morreu, há muito, a
visão de uma ciência moralmente isenta. Ela é investida por uma moral de
“poder”. Se é isenta moralmente é porque é desumana. E é em desadaptação
face a essa desumanidade que se multiplicam pacientes e terapeutas “new
age”, que só superficialmente parecem mergulhados num complexo “espiri-
tual” capaz de mover os demónios mais obscuros. Este é, bem vendo, um
pedido de ajuda, aproveitado pela barganha da pseudociência e iludindo o
terapeuta com progressos que são mais fantasmáticos do que “positivos”.
Entretanto, à medida que a própria medicina se foi humanizando, tantos
outros profissionais patentearam a sua arrogância face ao suposto “poder
médico”. Mas não há menos poder nos que demonizam a própria psicologia
e/ou a psiquiatria. O intuito é, sempre, de domínio, convencido está o tera-
peuta de que, não dominando, será dominado. Mas, mesmo biologicamente,
se atesta uma sinergia, uma simbiose, entre enredos, que pode fornecer o
alimento ao equilíbrio.
No paciente com raquialgia, aquele é representado pela intrínseca verti-
calização. Não interessa que a coluna esteja algo “torta”, o equilíbrio implica
tolerância. Flexibilizar a cadeia muscular posterior é delongar as referências
“tolerantes”. Exceder o alongamento é potenciar a sublimação de uma estru-
tura novel passível de implementar renovada “normalidade”. Enquanto o
terapeuta controla as compensações, vai permitindo alguma liberdade. Nesta
atitude liberal, move-se e reforça-se, e é também o corpo do terapeuta que se
reforça. Por vezes, este absorve a entropia do corpo do paciente. Mas a siner-
gia harmónica pode ser partilhada, e, aqui, desenha-se novo Princípio arque-
típico, que é, quiçá, o regresso à Origem. A ameaça “empírica” fará o desafio.
Por isso convém reforçar para além de alongar, porque o excesso de mobili-
dade presta-se à libertinagem e à instabilidade. Não se tira a defesa, a culpa,
sem que se possa ceder outra arma “estrutural”. Ou o paciente acaba por
ficar ainda mais encurtado, que é compensação defensiva, de novo, um
“pathos” prestes a exaurir-se. O “pathos” é um movimento de racionalidade
neurótica, subjectiva, pedindo de empréstimo a Razão, a objectividade, do
17
terapeuta. Este representa o Princípio da Realidade (Freud ) capaz de produ-

274
O FisióSOFO

zir a unidade erótica, libidinal, do paciente. De algum modo, o intrínseco


paternalismo compensa, cede “estrutura”, previne a psicose. O “excesso” é
um exercício de poder, mas apenas se for percepcionado enquanto tal. Por-
que, aqui, não interessa o que as coisas são, mas a forma como são percebi-
das. Nessa medida, também não interessam os processos, mas unicamente os
resultados. Mas estes podem caucionar outros resultados. Uma fórmula per-
feita é irrealista. Mesmo quando se “cura” um paciente, isto terá, decerto, um
efeito mais vasto, e este não é necessariamente beneficente. Daí que a própria
ética clínica possa ser questionada, se assumirmos, por exemplo, que o pacien-
te não é o “sujeito” singular, mas a família, a sociedade, a equipe multidisci-
plinar. Claro está que tudo o que fica dito se presta ao estabelecimento de
uma unidade epistémica e linguística. Porque, se quisermos pedir de emprés-
timo outra “episteme”, tudo poderá mudar de aspeito.
Mas é precisamente a relação “terapêutica” que poderá operar outra
“episteme”, podendo esta constituir renovada moral, diferente da conven-
18
cional, mais centrada nos aspectos subjectivos e libidinais (Marcuse ), sem
que subsista o medo de uma interacção demasiado “íntima”, até porque, no
limite, a resultante em jogo poderá estabelecer-se num “Todo” distancial,
que aqui pede de empréstimo a visão “positiva”, um algoritmo de “menor
sofrimento” que mudaria de instante a instante. É porque nos falta a omnis-
ciência que ponderamos a necessidade de cruzar os dois modelos em vigên-
cia, base de uma intervenção reflexiva em que a análise anamnésica se faz na
relação dinâmica com a nosologia sempre transformável com a própria inter-
venção. O “interventor” é intervencionado na medida em que se faz “objec-
to” do trabalho clínico, o terapeuta trata-se quando trata, a resultante impli-
ca-o e modifica o intrínseco acto, e isto inclui todo o vigor psíquico do suposto
“paciente”, o qual se constrói “positivamente” na ligação com o terapeuta e o
constructo “libidinal”. O Sistema não alcança, jamais, o equilíbrio perfeito,
haverá, sempre, algum enlace em falta, e é deste que parte o ímpeto de novel
domínio clínico, paradigmático e positivo.
O novo domínio, ao compensar uma parte do “Todo”, liberta “positi-
vamente” outra parte para a expressão somática. E a compensação “positiva”
liberta a Estrutura, arriscando a sua estabilidade. Há, portanto, uma circula-
ridade perpétua, um “eterno retorno” que circunscreve as dimensões emo-
19
cional e física, uma dualidade moral dominante-dominado (Hegel ), que
acomete o clínico, mesmo que este se presuma “ausente” e “objectivo”. É
justamente a “subjectividade” que irá conduzir, empaticamente, o processo

275
Luís Coelho

“terapêutico”, com todos os perigos requeridos de “transferência” analítica,


na qual o corpo dúplice se acusa e acomete. Trata-te de um “pathos”, em que
toda a evidência do “pecado” acerta o alvo “espiritual”, pelo que o corpo se
transtorna corporeidade, o movimento, motricidade, e os signos “clínicos”
assumem todo o seu poder transformador, passional e “espiritual”. Como
sabemos, o último, na sua genuína acepção “incorpórea”, não pode ser medi-
do, senão na sua resultante, daí a incomensurabilidade de uma compreensão
“positiva” adequada daquilo que poderá, sempre, justificar-se como um “há-
-de provar-se”, mas isto, como vemos, não mata a sua virtude, apenas a
transfere para o pranto de uma duplicidade epistémica que, criando conflito,
esgota e refunde a “tragédia” de uma revolução do Sentido. Não queiramos,
nunca, matar o sentido do acto “terapêutico”, acreditar desloca o “espírito”,
a psique e o resultado “positivo”. O que não invalida a possibilidade de tudo
voltar ao mesmo, derivado de um processo de des-sensitização neurológica.
Atemos, aqui, mais uma vez, o “eterno retorno”, à boa maneira de Schope-
20 21
nhauer ou Nietzsche . O clínico, se fosse mesmo um “deus”, deixaria,
peremptoriamente, de ser um clínico. Se o momento mais feliz da vida de
um terapeuta é aquele em que este deixa de ser terapeuta, há, apesar de tudo,
a promessa de um regresso, que é como quem remete, mais uma vez, para o
sintoma, a compensação, daquele caminho interminável. A compensação é a
distância face a “Deus”, face ao Verbo, e o caminho é estender a manta de
retalhos de diversos Verbos, onde o “clínico” assume o papel de um Cristo
caído em tentação. Mas esta faz-se, constantemente, a partir de um nível
mais elevado, à medida que a própria medicina/terapia vai extinguindo as
hipóteses de compensação. Que é como quem aprisiona o corpo numa neces-
sidade de voltar a pecar, a falhar o alvo prescritivo. Acertar em definitivo
trava o progresso, desilude a função clínica, desemprega o terapeuta, que ora
se vê, ele mesmo, curado, desculpabilizado, com a consciência perdida num
caos, nas trevas onde a saudade já não redime. Aqui, temos o perfeito
monismo, já não se trata, sequer, de ser “corpo” ou “espírito”, a questão já
22
nem se coloca, como em Schelling . Também se extingue o mecanismo de
defesa “dualizador” que serviu de eixo a este texto, onde “estrutura” e “fun-
ção”, “espírito” e “matéria”, “razão” e “empirismo”, só aparentemente se
diferenciavam. Houve, aqui, uma questão de oportunidade, de conforto
explicativo, uma tentação de gradar o acto ainda tão pusilânime que, deveras,
ainda fractura a relação dos “idealistas” e pós-modernos com os “materialis-
tas”, tão fácil de perspectivar nas conflitos crescíveis entre “terapêuticas não

276
O FisióSOFO

convencionais” e “medicina positiva”. Fácil é ver que ambas se patologizam,


se culpabilizam, porque a “guerra” é a condição da utilidade. E esta espraia os
papéis sociais, morais, que desencadeiam um círculo perfeito onde a razão se
transtorna caricatural, estando em todo o lado como irracionalidade, e
estando no princípio de tudo como algo há muito perdido no tempo em que
tudo se limitava a ser na espontaneidade natural. Bem vemos que a saúde
não reflecte, apenas, um corpo singular, mas um fenómeno global cuja Lei se
quer estável e eterna. Para isso, todos contribuem à sua maneira, porque
todo o acto compensa algo, desilude algo, ao mesmo tempo que agrava um
trajecto de percepções fugidias.
Desejar uma coluna equilibrada, um “pêndulo de Foucault”, não é
demandar o fim da vida, mas uma certa impassibilidade, quando a postura é
menos defensiva, tónica, e permite a exploração liberal dos membros “positi-
vos”. Esta é a perfeita nudez, quando se produz uma certa previsibilidade,
uma Ordem, que é aproximar em definitivo a aventura dos Sentidos da indi-
ferença racional. Quando se cala a individualidade emocional, pode o ráquis
exprimir a lógica universal, a erecção diferencial que mata o passado, o fan-
tasma do anseio “clínico”. Mas convém que não exista prescrição ou modelo,
porque estes tolhem a estrutura, assassinam a liberdade, a dança do corpo
“motricidade” que envolve uma dialéctica irredutível a posicionamentos e/ou
poderes. A normatividade moderna quer prescrever, mas esquece que a genuí-
na prescrição é infinitamente diferenciável, móvel, pelo que o acto prescritivo
se limita a matar a criatividade, a castrar superegoicamente o bipedismo. Haja
postura perante a falha na inventividade, a positividade é a imediaticidade
totalizadora, quando os fantasmas idiossincráticos se renderam ao “mais do
mesmo”, isto só pode sobrevir quando o método e a lei foram rejeitados pelo
terapeuta idiossincrático, sofredor, prestes a conhecer uma madrugada de
assertividade relacional, quando o centro de controlo descendente cerebral
jaz em silêncio, em rematada harmonia com um exterior de paisagens mag-
nificentes, em que a paixão se substituiu pelo amor tranquilo. Não deixa,
todavia, de haver amor, Cristo nascendo da imaculada e tangendo o Verbo
perfeito. Este é o tecido logicizável, quando já não há nada a compreender, a
interpretar.

Referências bibliográficas
1. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.

277
Luís Coelho

2. Bienfait M. Os desequilíbrios estáticos: fisiologia, patologia e tratamento


fisioterápico. São Paulo: Summus editora; 1995.
3. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
4. Bacon F. Novum organum. Porto: Rés; edição original de 1620.
5. Foucault M. Les mots et les choses. Gallimard; 1966.
6. Coelho L. O método Mézières ou a revolução na ginástica ortopédica: O
manifesto anti-desportivo ou a nova metodologia de treino. Motricidade 2008;
4(2): 21-39.
7. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
8. Coelho L. Mézières' method and muscular chains' theory: from postural re-
-education's physiotherapy to anti-fitness concept. Acta Reumatológica Portu-
guesa 2010; 35(3): 406-7.
9. Kierkegaard S. Temor e tremor. Guimarães Editores; edição original de 1843.
10. Camus A. Le mythe de Sisyphe. Gallimard; 1948.
11. Popper K. The logic of scientific discovery. Julius Springer; 1934.
12. Popper K. The open society and its enemies. Routledge & Kegan Paul,
Ltd.; 1945.
13. Popper K. The poverty of historicism. Routledge & Kegan Paul, Ltd.; 1957.
14. Ricoeur P. Teoria da interpretação. Porto: Porto Editora; 1995.
15. Feyerabend P. Against method. Verso Books; 1975.
16. La Mettrie. O homem-máquina. Lisboa: Editorial Estampa; edição origi-
nal de 1747.
17. Freud S. Para além do princípio do prazer. Relógio D'Água; edição origi-
nal de 1920.
18. Marcuse H. Eros and Civilization - A philosophical inquiry into Freud.
Boston: Beacon Press; 1966.
19. Hegel GWF. A ciência da lógica. Edição original de 1812-1816.
20. Schopenhauer A. O mundo como vontade e representação. Porto: Rés;
edição original de 1819.
21. Nietzsche F. Assim falou Zaratustra. Mem Martins: Publicações Europa-
-América; edição original de 1885.
22. Schelling FW. Exposição da ideia universal da filosofia em geral e da filo-
sofia da natureza como parte integrante da primeira. Edição original de 1803.

278
O FisióSOFO

{Um fitness clínico16}


O mundo moderno tem confundido, estrategicamente, “fitness” com
saúde, o que só faz sentido se esta implicar um desempenho harmónico com
vista a um objecto “liberal”. Mas o último impõe, presentemente, uma vio-
lência ao corpo, muitas vezes expressa em sofrimento psicossocial. É a resul-
tante de um “fitness” que se ocupa, quase exclusivamente, de actividades de
alto impacto, comummente grupais.
Na medida em que o exercício altamente impactante transtorna a pos-
tura, ele é, virtualmente, deletério para as articulações. Mas este é um efeito
só assimilável a longo prazo, defensado, usualmente, por modelos dogmáti-
cos e fortemente abstractos; estes são atacados, cruamente, pelo paradigma
“positivo”, que coloca a tónica nas variáveis locais. Mas o modelo “postural”,
“estrutural”, não impõe o abandono da componente da força e da função,
somente aconselha à efectuação do exercício no contexto de uma “postura”
inibida, coisa que, não só liberta a musculatura “agente”, como escusa as
compensações da musculatura “posterior” (que é, geralmente, hipertónica).
O trabalho de flexibilidade é, assim, crucial, dando à cadeia muscular
posterior a tolerância necessária ao exercício. Mas convém que o delonga-
mento não seja igualmente excessivo, porque estaríamos a dar mais liberdade
à deformação. Não se trata, portanto, de alongar vs. reforçar indiscrimina-
damente, trata-se de cambiar um equilíbrio entre a flexibilidade dogmática e
a pujança da ciência. Só este pode harmonizar as forças, permitindo que a
actividade física não tolha, crescentemente, o alinhamento articular. Ora,
logicamente nos parece contraproducente efectuar desportos de grupo, exer-
cícios esforçados, e o que quer que não possua uma dimensão simultanea-
mente “clínica” e idiossincrática. Higiene postural, práticas como natação ou
o imbecilíssimo CrossFit, o Pilates colectivizado, tudo parece insuficiente face
ao exercício “dialéctico” e individual que atenderá às qualidades posturais
adjacentes ao desempenho melífluo das obrigações hodiernas.
Os “positivistas” tentarão demonizar a lógica da flexibilização, espar-
gindo a sua evidência. Mas esta não escusa todo o arranjo preparatório, de
componente tal-qualmente neurológica, perfeitamente compatível com a
função. Aliás, o treino do controlo motor, igualmente defendido pelos “posi-

16
Publicado em «Observador», Outubro de 2020.

279
Luís Coelho

tivistas”, é também função de um prazo delongado, para o qual não há total


evidência de vantagens.
O equilíbrio em causa difere, obviamente, de caso para caso, mas esta-
mos longe de assumir que a postura “ideal” é alcançável. Há, apenas, que ater
uma atitude dinâmica, que expressa a necessária compatibilização epistémica
de paradigmas, ao invés de recriar consecutivamente uma dualidade repleta
de crispações na compreensão do corpo-mente.

{A Clínica do Fitness: um novo


paradigma para a actividade física17}
A obsessão do mundo moderno, simultaneamente, com a produtivida-
de e o bem-estar gerou a massificação de práticas físicas, que, sublinhando o
sentido original da palavra “fitness”, privilegiam o desempenho e o “objecto”
em desprimor da saúde “estrutural” que, segundo o paradigma postural, é o
garante da robustez articular. O “fitness” industrializado é, essencialmente,
não clínico, convocando a atrocidade e a violência para o corpo, na medida
em que mina o meio com que é possível atingir determinado “fim”.
Se o “fim” é melhorar a condição cardiovascular ou fortalecer a estrutu-
ra óssea, é indubitável que o exercício físico possui as suas vantagens, mas
estas podem ficar temporalmente caucionadas pelo desrespeito pela “estrutu-
ra”. Porque mesmo o trabalho analítico de mobilidade e/ou força exerce
tensão sobre a musculatura postural, que é essencialmente hipertónica, tra-
balhando como um conjunto, em “cadeia muscular”, contribuindo, virtual-
mente, para tolher as articulações e modificar o seu alinhamento. Uma pos-
tura inadequada alimenta as compensações e gera a dor, quando as anteriores
são excedidas. E ambas geram ainda mais compensações, que aparecem,
muitas vezes, no formato do esgotamento muscular e emocional. Por vezes,
este pode ser dirimido por práticas anti-sintomáticas e placebetárias, mas
trata-se, aqui, tão-só, de nutrir, ainda mais, o círculo vicioso. É placebo,
igualmente, a prática global de desportos e actividades promovidas pela febre
hipermoderna. Estes são, comummente, defensados por estudos que se
baseiam na perspectiva de um “curto prazo” funcional, geralmente afectando
capacidades “analíticas”, e é deste modelo “positivista”, funcional, que se

17
Publicado em «Gerador», Outubro de 2020, e em «Birdmagazine», Novembro de 2020.

280
O FisióSOFO

alimenta boa parte da Clínica “materialista”, mas, bem vendo, a verdadeira


feição clínica não poderá, jamais, dispensar o aspecto idiossincrático, casuís-
tico, que equilibra “razão” e empirismo.
De modo análogo ao anterior equilíbrio, também “postura” e “função”
poderão ser equilibrados nos termos circundantes de um eixo harmónico,
que verticaliza o sujeito. Trata-se, tão-só, de equilibrar as relações de força
entre os músculos posturais e os músculos da força, promovendo, por um
lado, o alongamento, relaxamento, dos primeiros, e por outro, o trabalho de
força da musculatura tendencialmente anterior. Assume-se que só o alonga-
mento global pode escusar as diversas compensações. Mas se ele for excessi-
vo, surge a compensação, no formato da força, anterior/funcional e/ou pos-
terior, que, aqui, pode implicar novel postura. Por outro lado, e como já
dissemos, o treino da força segmentar e/ou desportivo não se limita a traba-
lhar, analiticamente, a musculatura do movimento, sendo, assim, mais acei-
tável o treino do controlo motor por meio de actividades que impliquem
coordenação e equilíbrio.
Em última análise, o trabalho de equilíbrio deve, justamente, harmoni-
zar o alongamento global da “estrutura” com o fortalecimento, também glo-
bal, da função. É caso para estirar a defesa do dogma “postural”, defendido,
muito precisamente, por teorias com certa racionalidade abstracta, para dis-
por à acção “liberal”, agonística, de um corpo “práxico”, capaz de desempe-
nho. Não é, assim, necessário subtrair o rigor “positivo” ao “racional” e “ideal”,
basta que o dogma seja delongado, preparando a postura e esgotando o sin-
toma bio-psico-social, para dispor livremente do aparelho “normativo”, clíni-
co por excelência, em que já é possível grupalizar a actividade.
Bem sabemos que o “positivismo” demoniza a teoria “postural”, assu-
mindo que não há estudos em suficiência para defendê-la, o que é óbvio,
porque falamos, aqui, de efeitos a “longo prazo”, dificilmente asseguráveis
por uma continuidade investigativa, e de algo que é, essencialmente, “indivi-
dual”, expressando um equilíbrio multivariado muito preciso, mas, bem
vendo, as mesmas críticas – e respectivas defesas – podem ser estendidas aos
que defensam poder o trabalho de força esculpir a estrutura. Daí que a
melhor forma de asseverar a resultante com o menor risco está, precisamen-
te, em compatibilizar os dois paradigmas. Em termos práticos, tal passa por
atribuir menos importância ao produto e mais aos processos, cabendo ao
“clínico” valorizar o indivíduo face ao – e dentro do – grupo, o “psicossomá-
tico” perante o estritamente “físico”, e a (psico)motricidade face ao movi-

281
Luís Coelho

mento. É, também, de todo previdente dirimir a importância do método


e/ou prática face à idiossincrasia; é o método/prática que se ajusta ao indiví-
duo, e não o contrário.
Defende-se, muito particularmente, a ordem «Alongamento - mobili-
dade - força», bem como a adaptação do exercício à “estrutura” de cada um.
Não se trata de buscar a “postura” ideal, porque tal “idealidade” alimenta o
dogma, a especulação, a projecção, que força a realidade e perpetra a “caça
aos gambozinos”, trata-se de nutrir a harmonia com actividades, preferen-
cialmente, pouco impactantes. A natação não é nenhuma panaceia, a muscu-
lação é irracional, o CrossFit uma verdadeira tirania, andar aos saltos nos
ginásios femininos é uma perfeita alarvidade, o Pilates, só por si, admiravel-
mente insuficiente, há modas que não possuem justificação “racional”, e isto
é ater-nos ao “geral”, as asneiras vêem-se por todo o lado, é verdade que o
entusiasmo “grupal” é positivo, mas há que prevenir as sequelas, sob pena de
vitimarmos a continuidade.

“Menina, se não consegue controlar o cão, arranje um namorado”, foi


o que disse, há pouco, à dona de um cão que me ia atropelando na rua. Não
era uma piada machista, antes pelo contrário.

Atenção: Peço a vossa tenção, e também a tensão, de empréstimo, para


que possa ficar atento. Não tenho, todavia, a tenção de ficar tenso. Doutro
modo, farei do desespero uma espera contínua, sem qualquer tenção de inten-
sificar a Atenção plena.

Anjos e demónios já são casados... pela Igreja. Só falta terem uma união
“de facto”.

Entre mortos e feridos escapam os feridos de morte e os mortos por


ferir.

282
O FisióSOFO

{No Princípio Era o Fitness18}


No Princípio era o Fitness. E o Fitness estava com o Homem. E o Fit-
ness era o Homem. Porque o Homem é o seu “fim”, e, para ele, concorre um
1
desempenho (evolutivo), e este modela e corticaliza a Estrutura ( ), na mes-
ma medida em que esta obvia uma função, que, com aquela, expressa uma
díade heraclitiana que coloca a postura a render-se ao movimento. Esta é a
Lei, e, como tal, não surpreende o grupo, bem como o intento liberal que
reinicia continuamente a dinâmica. E é também de grupo, e de alvo, que
trata o contento “clínico”, portado às garras de uma hipermodernidade pres-
critora que arrisca subtrair a inventividade ao “objecto” de uma descoberta
bem mais do que pragmática.
Se o “objecto” não se esgota na ordem, ou na prescrição, é porque, nele,
se visa uma “práxis” que envolve uma relação dialéctica do “estado” com a
“fase”, da postura com o movimento, aparente dualidade tragada à “totali-
dade” no ensejo da (psico)motricidade. Mas, mesmo no movimento mais
simples e analítico, não há como recortar a relação do “corpo” sensível com a
postura racional, que é o mesmo que dizer que a verdadeira unidade episté-
mica patenteia a forma mais absolutizável de monismo. E não deixa de ser,
este, um monismo fisicalista, porque se esgota no elementarismo de uma
exterioridade que se faz “dentro” na Unidade quântica, no interior da qual já
nos atemos, de novo, na escala da embriaguês reflexa. Não deixa, portanto,
2
de se ater um mecanicismo, à La Mettrie ( ), mas em que as peças tocam a
melopeia da qualidade, como da Causalidade, onde tudo se presume ingé-
nuo, mas em que já tudo se adivinha, que é, aqui, na Origem, no pressuposto
Espírito, que vociferamos a Ordem “fit” com que tudo se passa em vaivém de
eterno retorno. O único modo de o escusar, nem que seja por instantes, está
em consagrar o equilíbrio tácito, que é, bem vendo, a harmonia epistémica,
onde o Verbo é espírito e matéria ao mesmo tempo, Aqui, no Princípio dos
3 4
Princípios (Fichte , Schelling ), em que já não faz sentido categorizar a ordem
das mundividências.
É certo que o corpo informa o Espírito, ninguém nega a unidade de
5
Espinosa ( ) – dentro da qual, tudo poderia ser Espírito, sendo “matéria” a

18
Outubro de 2020, publicado em «Healthnews», Março de 2021, e em «Triplov», Maio
de 2021.

283
Luís Coelho

6
parte menos “adequada”, ou, na linguagem de Leibniz, mais “confusa” ( ), da
relação com a Razão –, menos certo é que “exista” Espírito enformando o
corpo. E menos certo é, porque, aqui, não nos apoiamos em nada, e se o
fazemos, se contabilizamos, já é matéria. Neste sentido, é tudo “matéria”, e o
monismo fisicalista vence a prestação, mas não mata toda a pendência “racio-
nal” que o Espírito consagrou durante milénios (notemos que tanto o espiri-
tualismo quanto o dualismo cartesiano não mudam, genuinamente, nada no
que nos pretendemos expor). E, assim, atemos um corpo formatando uma
Razão, que, aliás, se torna uma medida da irracionalidade, da subjectividade,
tudo é corpo, tudo se resume a ele, ao seu “alvo”, à consequência salvífica,
7 8 9
que traz consigo um “absurdo” ( , , ) de possibilidades telúricas.
Assumindo-se, então, o “Espírito” como sentimento, e assumindo, por
sua vez, o corpo como “locus” do mesmo, no seu sentido ora consciente, ora
inconsciente, poderíamos pejar a dualidade “epistémica” em causa na matriz
postura vs. movimento que, aliás, a própria Estrutura arrola na sua “estética”,
como no modelo defendido por alguns “arquitectos” do corpo.
Se tomarmos o ráquis enquanto eixo de equilíbrio, vértice do bipedis-
mo consciente, colocando, obviamente, no seu topo, o centro da plena Cons-
ciência superegóica, poderíamos dividir o corpo em: (a) zona posterior,
essencialmente inconsciente e defensiva, constituída por músculos, mormen-
te, hipertónicos, tensos, que se organizam em Cadeias neuro-mio-fasciais,
que sustentam o corpo, bem como o equilíbrio “postural”. Segundo o mode-
10 11 12
lo mézièrista ( , , ), estes músculos nunca relaxam por completo, são mui-
to fortes, mas não pendem à hipertrofia, sendo que funcionam como um
“todo”, fazendo com que o alongamento de uma parte da “Cadeia muscular”
implique o encurtamento de outra parte, num jogo de compensações. Estas
podem ser provocadas por contracção excessiva ou por alongamento igual-
mente excessivo. São, enfim, o aparelhado das defesas “prévias”, dominantes,
espirituais. São o dogma do corpo. E isto não se esgota no funcionamento.
Porque, ao depender excessivamente, por um lado, de pré-noções empíricas
13
( ), e, por outro, de uma matriz abstracta, a intrínseca teoria das Cadeias
14 15 16
musculares possui o seu “quantum” de “relativismo dogmático” ( , , ), que
torna tudo menos sustentável nos termos de um “curto-prazo” funcional e
empírico. O “princípio observacional” de Mézières tem comportamento de
Lei, e parece partilhá-lo às nossas próprias “noções”, mas, aqui, radica um
perigo, que é o de se abstractizar, projectar, “idear”, parte do que se pretende
“prévio” e “absoluto” (e que finda por sê-lo porque acreditamos nisso, pelo

284
O FisióSOFO

que se transtorna num dogma “empírico”, cultural, “hereditário”, que acaba


mesmo por absolutizar-se). É o mal de muitas das grandes teorias, mas a
própria teoria diria ser isto defesa, um receio de reconhecimento da verdade
“oculta”. Contudo, é preciso perceber que um reconhecimento é mais uma
revelação do que um desvelamento. E isto poderia durar eternamente, mas
este não é o único círculo vicioso em que iremos cair.
O inconveniente de vermos o que queremos ver, de, ademais, “cons-
truir” o paciente/aprendiz, é, como bem sabemos, facilmente reconhecível na
17
dinâmica dos paradigmas ( ) (se bem que esta também já constitui um para-
digma virtualmente projectável, mas, mais ou menos vero, o modelo pode,
sempre, ser veiculado na sua inteireza, como algo a vivenciar e/ou ultrapas-
sar). Que é, no extremo, função de uma insegurança. Projectamos a Estrutu-
ra, no outro, que queremos ver em nós. Pelo que, entrementes, é o outro que
nos treina ou trata. Porque porfiamos ideando um paradigma, revelamo-nos
no outro, convertendo-o ao nosso modelo. Às tantas, vemos, apenas, o que o
modelo emprenha, como se o corpo do “outro” nos fizesse o favor de se adap-
18
tar às nossas exigências. Trata-se de uma relação de poder ( ), cuja resultante é,
quiçá, a auto-placebetização (do outro Eu). Um “placebo” é uma auto-
-correspondência, resultando de um acto de securização (i-racional). Nada
melhor que um paradigma, que um código “espiritual”, para tanger novel,
pretérita, racionalidade. Este “espírito” é uma ligação pecaminosa, incestuo-
sa, entre o Id selvático e o Superego patriarca (ou matriarca), que se colocam
numa linha impactante que contrai os músculos e tolhe as articulações. É o
preço da estruturação. Que é com que se faz o Princípio, na relação minada
com a função. Porque esta possui o seu catalizador no “exterior” (portanto,
no Superego) prestes a ameaçar a Estrutura. Do “exterior”, da ameaça, vem a
necessidade de perder a imediaticidade da acção, a função gera a Consciência,
que é dualizar, duelizar, o Sujeito num jogo subespontâneo com o “outro”.
Este é aproximado do terapeuta/professor na medida da sua necessidade. E o
modelo “postural” cria a sua própria “solução”: trata-se de flexibilizar. Por-
que libertar as cadeias musculares do paciente/aprendiz (como as intrínsecas)
é um exercício de auto-apaziguamento. Há que alongar o dogma para fazer
campear o “outro” liberal. O apaziguamento do terapeuta pode, claro, fazer
sobressair uma “fera” mais recôndita, ainda mais recalcada, que precisará,
por seu lado, do seu oportuno alongamento. Por sua vez, se existe um alon-
gar “equilibrado”, no terapeuta/instrutor e/ou paciente/aprendiz, pode ser
que tudo se adie numa prístina pacificação. Não será, de todo, mau o modelo

285
Luís Coelho

que se soluciona a (e ao) si-mesmo, se é que se chega a solucionar. Porque,


na realidade, nunca podemos ter a certeza de ter chegado à plena verdade, à
“postura” perfeita. O paradigma concebe, de facto, um “alvo” preciso, mas
também este poderá operar enquanto construção “dogmática”. De algum
19
modo, o caminho é inacabável, “tudo é interpretação” ( ), que é o mesmo
que dizer que, mais uma vez, se demonstra o “relativismo” do Sistema. Fala-
mos, no entanto, de variáveis que demoram muito tempo a expressar-se,
como reduzir o último a um punhado de elementos “empíricos”? Mas é deste
mesmo relativismo que se alimentam os grandes modelos que visam, sucessi-
vamente, uma individualidade, a idiossincrasia.
Quando o modelo redunda em esforço desajustado, exacerbado, quan-
do o alongamento é excedido, o primeiro compensa, encurtando-se, ou
recriando-se. Daqui pode resultar novel modelo, renovada postura, este é um
movimento agónico, um novo salto “espiritual”. Ele obtém-se, mais preci-
samente, na compensação do paciente/aprendiz, quando a sua Estrutura é
desrespeitada, excedida, no formato de uma tensão miofascial que poderá
caucionar a continuidade. Isto, na medida em que pode eternizar o processo,
porque se desenham novas posturas e renovadas relações com a função.
Alongar todo o trajecto é delongar a tolerância do Sistema, é estirar o jogo de
defesas, é tornar a Estrutura mais perseverante. Mas isto também possibilita
um maior rol de contracções e a perpetuação do processo. Só quando a pos-
tura não permite qualquer função, ou quando a primeira esgotou o leque de
compensações, é que surge a dor. Esta é um modo de “positivar” a resultante
de um dogma que se sobrepuja. É a compensação “empírica”, pedindo o
auxílio do alongamento reequilibrante. Mas este tem de ser “perfeito”, de
modo a permitir o equilíbrio adequado, que é ater a Estrutura adequada a
uma função “livre”. Inibir é o termo da perfeição, há que harmonizar a rela-
ção com a “anterioridade” funcional, esta só pode soçobrar se o dogma for
inibido e respeitado ao mesmo tempo. Porque é preciso Estrutura, e é preciso
que esta consinta o movimento.
É o próprio paradigma mézièrista que defende, também, que os exces-
sos posturais tolhem as articulações. Na medida em que o modelo advoga
que “tudo é lordose”, a cifose dorsal será, essencialmente, aparente, podendo
esta convergir directamente na função cervical inferior ou na qualidade arti-
cular dos ombros. A lordose lombar excessiva poderá convergir na função da
anca, e esta na dos joelhos e pés. Mas pode ser que tudo tenha origem em
baixo, no pé, é difícil saber qual a ordem com que se movem as compensa-

286
O FisióSOFO

ções, desenhar uma “evolução” é, mais uma vez, sobrepujar o peso do para-
digma. O esquema básico de Mézières assenta na tríade lordose + rotação
interna dos membros + bloqueio diafragmático em inspiração. As alterações
são consideradas primariamente miofasciais e requerem o alongamento. Por
sua vez, o trabalho de força costuma ser deplorado pelo paradigma, porque
se assume que todo o trabalho “resistido” alimenta as compensações. Con-
trariamente à ideia de que existe “isolamento” do trabalho muscular, o
modelo concebe, à semelhança do que também acontece com o conceito
Bobath, que o treino assoberba a musculatura “postural”, nutrindo a defor-
mação e prejudicando a funcionalidade.
Assim, teríamos o caso de a postura ser molestada pela função. Se é que
se pode considerar “função” o que o modelo “postural” considera, muitas
vezes, constituir uma violência. Daí que, bastas vezes, se recomende a realiza-
ção do alongamento preparatório a frio, para que este limite o dano de uma
função, agora sim, tornada mais operante. Mas não se trata, aqui, de alongar
a musculatura do movimento, mas somente a “postural”, a hipertónica. Uni-
camente por este meio se poderá escusar minimamente o dogma, para tornar
mais evidente o trabalho da zona anterior (b) do corpo, essencialmente “fási-
ca”, funcional, liberal, capaz de esculpir novel moral. Esta consciência poderá
ser imediatizada pelo “esgotamento” da postura “psicossocial”, que é como
quem exaure as defesas em nome de um modelo sóbrio. Mas se a postura não
tiver sido alongada suficientemente, também a acção anterior será excessiva,
compensatória, imprimindo, por sua vez, mais tenacidade à postura. E isto
inclui, obviamente, os aspectos emocionais, que sobejam, assim, por uma
Culpa mortificadora.
Como já dissemos, não existe uma postura “ideal”, pode até acontecer
que uma nova postura encontre o equilíbrio, ela é “normal” na medida em
que se equilibra com a função e o sintoma. Portanto, o que se visa não é uma
postura dada previamente, mas um equilíbrio entre a Estrutura e a função,
que é, identicamente, uma harmonização dos lugares da Razão e do manan-
cial empírico. Para haver função empírica é preciso haver Razão, mas se esta
se excede, o percipiente acabará sublimando a sua própria Razão, que é um
modo de se assumir empiricamente. Mas isto, claro está, pode implicar uma
circularidade, na medida em que o “outro” pode, por sua vez, ser lesado.
Ora, é escusado dizer que o equilíbrio entre músculos tónicos inibidos e
músculos fásicos trabalhados em força permite uma maior verticalização da
coluna, assim como melhora o alinhamento articular. E isto não é tirar a

287
Luís Coelho

razão aos proponentes do trabalho resistido, desde que eles concebam um


tipo “normal” de equilíbrio. É verdade que muitos fisiologistas do exercício
propõem que o trabalho “postural” não prevalece, que é obrigatório haver
mais trabalho do controlo motor. Não tenho nada a contestar, porque haver
controlo motor é haver equilibração neuro-mio-fascial. E, todavia, não há,
também, estudos que demonstrem, sem margem para dúvidas, que este tra-
balho desenhe “posturas”. Nem podia haver, porque é tempo a mais e variá-
veis a mais para efectuar algum estudo realista. Isto significa que devemos
escusar toda esta reflexão e continuar a fazer o exercício como sempre fize-
mos até aqui? Isso seria desaproveitar as nossas suspeitas. Porque, com o
cuidado necessário, muito exercício pode, ainda, ser realizado. Mas para quê
fazê-lo traindo os processos, a harmonia, arriscando, porventura, a saúde das
peças do movimento?
E, no entanto, são bem-vindas as denúncias de dogmatismo por parte
dos positivistas relativamente a um modelo que consideram, muitas vezes,
“relativista”, essa é uma das funções do “positivismo”, contender os excessos
da Estrutura, senão, e como já dissemos, fornecer-lhe uma proa de continui-
dade epistémica. De qualquer forma, o “positivismo” só pode “evidenciar” o
que for providenciado pela “postura”. Doutro modo, esta altera-se, delatan-
do outra moral.
O “positivismo” sintomático e funcional actua na medida do acatamen-
to do seu próprio paradigma. Ele representa, igualmente, o modo “transver-
sal” de assegurar um equilíbrio “natural”, que é, ainda assim, provido por
uma moral dominante. A reacção defensiva face a esta remete para a indivi-
dualidade bio-psico-social, representada “manifestamente” pela positividade
fisicalista, a qual poderá disfarçar o conflito psicossocial. Um trabalho exclu-
sivamente “positivo” poderá perpetuar o “pathos” interno, porque o cala na
superfície. Um trabalho exclusivamente “postural” poderá, igualmente, per-
petuar tal “pathos”, porque lhe multiplica os arquétipos. Já um trabalho
integrado poderá favorecer-nos, se bem que nenhuma resposta “perfeita”
poderá ser subsidiada. Existe um desequilíbrio permanente entre o psicosso-
cial e o estritamente físico, entre o modelo e a manifestação, mas isto é, de
algum modo, perpetuar a mesma dualidade que o monismo deplora. Há,
aqui, tal-qualmente, um “mecanismo de defesa”, que é, principalmente, expli-
cativo, não mortificando a Unidade, que, apesar de tudo, é “a priori”.
Tal Unidade recruta, desde sempre, a condição “psicossomática” e
motriz das actividades “low impact”, sobretudo se forem efectuadas com o

288
O FisióSOFO

respeito pela virtude idiossincrática. O que não invalida o papel, também ele
placebetário, das actividades de grupo, que actuam no conjunto “positivo”,
que, aqui, se contrai numa “pós-modernidade” da resultante, do alvo conse-
quencial. Também esta tem a sua “postura”, prestes a revolucionar o Colecti-
vo de ambivalências.
Se, entretanto, Sujeito e Objecto se tornarem um só no Imediato in-
-consciente, o Sistema penderá necessariamente para o alvo da Culpa, para a
condição de um corpo, ora, dominado, que não levará muito tempo a
conhecer o seu estertor. A instabilidade cria o movimento, para isto há que
apetrechar Estrutura para que esta possa ser desafiada pelo agente “desporti-
vo”. Toda esta circularidade radica num equilíbrio mais abrangente, numa
20
“harmonia predefinida” ( ), cuja parte manifesta sempre se reconstrói numa
“mesmidade” que se tange de “des-sensitização”. A condição “motriz” desa-
fiará, constantemente, a estabilidade “postural”, e isto garante a prolificação
de uma linha incalculável de arquétipos, que, porém, não deverá afastar-se
muito da plena Origem “natural”, de uma “physis” iniciática. O regresso ao
“Espírito” é um retorno ao corpo, à sua crueza desnudada, ao movimento
perpétuo, à postura “perfeita”. No corpo, o equilíbrio implica uma redução
das forças que actuam sobre os músculos posturais, eis a pacificação da dua-
lidade, uma postura “tolerante”, que é forte por ser “longa”, permitindo a
acção melíflua, assertiva, sobre um mundo, entretanto, atido como menos
agressivo. Esta é a impassibilidade do Verbo, a ordem de um Cristo, que,
ainda assim, traz consigo as instruções do movimento “certo”, que é “acertar
o alvo” do Objecto impudico.
Trabalho de equilíbrio e de coordenação é, logo, um modo de rectificar
a relação de uma liberalidade corpórea com a ascese racional, com esta a
depender, fortemente, de uma cultura. Isto não extingue o papel paradigmá-
tico da “positividade”, que é, ainda assim, mais um modelo, se bem que
“normativo” no plano de uma modernidade “líquida”. Enquanto paradigma
dominante, a “positividade” atesta um desejo inolvidável, mas, também,
evitativo do aprofundamento dialéctico. É assim que o descomedimento da
manifestação “positiva” se converte, frequentemente, na defesa dogmática,
do mesmo modo que a crueza do corpo pede, comummente, a magia do
“espírito”, a obrigatoriedade de uma pureza originária, e, similarmente, pós-
-moderna.
Jaz no “desporto” uma tarefa de aglutinação dos modelos, bem como da
dupla vertente física e emocional, que, aliás, se alicerça na própria moderni-

289
Luís Coelho

dade do “labor”. Contudo, este “labor”, este corpo “produtivo”, cala, conse-
cutivamente, as tentativas de aprofundamento dialéctico, agindo como palia-
tivo perante a desfaçatez de uma actividade fortemente lúdica, criativa. Mas a
tarefa heurística não se esgota no movimento, ela age como beneplácito dian-
te de um Sistema opressivo, libertando o corpo para a racionalidade “libidi-
21
nal” ( ), que é prover a Unidade corpo-mente, que, no limite, enceta pela
abnegação.

Referências bibliográficas
1. Spengler O. O homem e a técnica. Guimarães; 1980.
2. La Mettrie. O homem-máquina. Lisboa: Editorial Estampa; edição original
de 1747.
3. Fichte JG. Fundamentos da doutrina da ciência completa; Lisboa: Edições
Colibri; 1794/1795.
4. Schelling FW. Exposição da ideia universal da filosofia em geral e da filoso-
fia da natureza como parte integrante da primeira. Edição original de 1803.
5. Espinosa B. Ética. Lisboa: Relógio D'Água Editores; edição original de 1677.
6. Leibniz G. Discurso de metafísica. Lisboa: Edições 70; edição original de
1686.
7. Kierkegaard S. Temor e tremor. Guimarães Editores; edição original de 1843.
8. Camus A. Le mythe de Sisyphe. Gallimard; 1948.
9. Sartre J-P. As palavras. Amadora: Livraria Bertrand; edição original de 1964.
10. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
11. Nisand M. La méthode Mézières: un concept révolutionnaire. Paris: Édi-
tions Josette Lyon; 2005.
12. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
13. Bacon F. Novum organum. Porto: Rés; edição original de 1620.
14. Popper K. The logic of scientific discovery. Julius Springer; 1934.
15. Popper K. The open society and its enemies. Routledge & Kegan Paul,
Ltd.; 1945.
16. Popper K. The poverty of historicism. Routledge & Kegan Paul, Ltd.; 1957.
17. Kuhn T. A estrutura das revoluções científicas. Lisboa: Guerra e Paz; edi-
ção original de 1962.

290
O FisióSOFO

18. Nietzsche F. Assim falou Zaratustra. Mem Martins: Publicações Europa-


-América; edição original de 1885.
19. Foucault M. Les mots et les choses. Gallimard; 1966.
20. Leibniz G. Monadologia. Edição original de 1714.
21. Marcuse H. Eros and Civilization - A philosophical inquiry into Freud.
Boston: Beacon Press; 1966.

{O negacionismo científico19}
Para uma maioria “normativa”, negar a ciência é negar a própria reali-
dade. Para uma minoria “desadaptada”, negar, ou questionar, a ciência cons-
titui o genuíno exercício do cepticismo. Porque este deve, sobretudo, duvidar
da intrínseca capacidade de conhecer. Na medida em que este “conhecer”
inclui um auto-conhecimento que não pode ser efectuado por completo. Isso
seria ir ao “exterior” de que se duvida. Assim, o negacionista não nega, somen-
te, a ciência, nega-se a si-mesmo, no exacto sentido em que se procura com
avidez.
Sequiosa procura, esta, que estende a hesitação a um mundo convertido
à hipermodernidade concretista, esta assusta e elide uma personalidade que
se recusa a aceitar uma “normalidade” cruenta, isenta de magia, e, por isso,
de qualquer possibilidade de redenção. É normal, portanto, que o mito cura-
tivo – que é, na verdade, uma forma de desmitificar a rede de signos onde se
entretece o sintoma psicossocial – e as terapêuticas irredutíveis ao “número”
sejam, sempre, mais arrojados nesse pleito de uma busca que um simples
anti-depressivo convida a fazer cessar e transformar num resquício de enzi-
mas.
O negacionista não se limita a pedir um Sentido, ele quer conjurar um
mundo de fantasmas, onde deuses e titãs se vêem, subitamente, evocados e
tragados a uma modernidade que prometia desligar-se do passado. O nega-
cionista nega o futuro sem o pretérito, renega o movimento não indultado
pela memória.
Mas este trajecto não é estranho ao objecto filosófico, que, constante-
mente, opôs o capricho da razão ao desiderato de um empirismo sensaciona-
lista. A “ciência” nunca pôde escusar a razão, nem pode fazê-lo agora. Mas o

19
Publicado em «Birdmagazine» e em «Healthnews», Dezembro de 2020.

291
Luís Coelho

verdadeiro “negacionista” não se limita a abjurar uma ciência irrazoada,


também duvida de que seja possível viver sem “Espírito”, ou, talvez, sem o
seu próprio “espírito”. Há, aqui, um exercício de projecção do inerente ego –
diz o materialismo – que se satisfaz, mais completamente, em deplorar muito
do que a ciência “materialista” predica. É preciso assegurar uma identidade
“espiritual”, e, para esta, não existe uma realidade crua, tão-só um interior
que teima num desencontro fátuo. Assim, o negacionismo não é, simples-
mente, ignorância, é uma impossibilidade de adaptação, é uma “dúvida sis-
temática”, que, em grande medida, recupera certo passado pré-científico e
dogmático. A atracção pós-moderna pelo Espírito vem dessa inadaptabilida-
de, dessa insegurança metódica, que, aliás, viceja entre os filósofos.
A insegurança, a dúvida, é, como sabemos, um marco do rigor concep-
tual. Os negacionistas são necessários. Tal como é necessário o rigor empíri-
co, o cepticismo “positivo”. Os modelos contrafazem-se e reconstroem-se
continuamente, concorrendo para uma coisa maior, que é, bem vendo, mais
inclusiva, porque assume, sempre, a “boa fé” dos seus proponentes. Não vejo
o negacionismo como prédica charlatã. Apenas como uma atitude diferen-
cial, que excede o mérito da “observação” não participante, para abraçar o
testemunho mais imediato. A liberdade é a sua proa, bem como a âncora que
resvala pelas areias humedecidas de verdades díspares. Não a limitemos, o
pior que pode acontecer é o futuro de muitos ser acometido, mas isso é algo
que acontece constantemente. O risco é que cria a utilidade. A ciência tam-
bém não se exime de riscos, por vezes até arrisca trazer para si-mesma o que
pertencia ao arrimo de um paradigma concorrente. E, depois, dirá ter, tal
conteúdo, sido sempre pertença da ciência. E com esta arrogância arrisca-se.
Arrisca-se a que mais uns deitem a perder o baldio de rigor, em nome de um
espectro. Um espectro que paira sobre o mundo e nos manifesta a Vontade
maior do fantasma que pretende sublimar-se. Se isto trouxer mortes, que seja
pelo “bem maior”, pela “harmonia universal”. Afinal de contas, poderá a
ciência “humana” viver sem a complexidade? Pode, até, ser que o espírito
constitua, sempre, matéria por desvelar, mas isto não mata o fruto da com-
plexidão interior e metafísica. Que ele dirija a ciência não mata, igualmente,
o rigor requerido. Daí que tenha de subsistir um duelo epistémico, até que
algo melhor surja.
Entretanto, negar a ciência passa por manifestar um desacordo com um
modo de ver e de viver. É questão de “marca”, e de “moda”. O “pós-moder-
nismo” acresceu-lhe o campo “moral”. Porque uma ciência tão moralmente

292
O FisióSOFO

isenta não merece ser sacrificada aos interesses da indústria. Claro está que o
(pós)marxismo se serve, perfeitamente, deste campo, que, a bem ver, acaba por
ser usar a moral como fonte de ciência.
O espírito conspiratório, o clima de suspeição generalizada, tudo isto é
fruto de uma desorganização psíquica capaz, por si mesma, de gerar frutos.
Entre eles, a própria psicanálise, entrelaçada, talvez injustamente, nos cam-
pos da pseudociência. A fragilidade é o alicerce de toda a grande teoria.
Curioso que, por vezes, seja esta, também, a condição do movimento “libe-
ral”. Quanta psicanálise, e quanta pseudociência, será necessária para fazer
brotar o “espírito” científico-liberal nas mentes que lhe resistem com o com-
plexo de um “Espírito” que brota das cavernas inconscientes e tece o espectro
do Colectivo? Não é a ciência que irá exaurir os “espirituais”, estes preferem
o calibre do placebo, que é mais paliativo do que curativo. E para que o
espectro cresça, nada melhor do que minar a liberdade de pensamento. Pior
do que uma ciência pouco atraente é a ciência castradora. Se ela se excede,
torna-se dogma. Daqueles que asseguram e prescrevem a verdade, desenhan-
do os futuros fantasmas. Mas destes nunca nos poderíamos, verdadeiramen-
te, ver livres. Porque a verdade é que a verdade não existe. Existe, tão-só, um
Ideal que se propaga nas escolas e inflama os corações mais autónomos. E
estes são, todavia, os que não se conformam à norma. Mas isto, claro, é o que
diz a minha própria inconformidade.

Na adolescência tive uma crise de meia-idade. Queria ser velho. Mas


diziam-me que parecia novo de mais para voltar a ser criança.

Sempre quis estar numa posição de poder. Para poder justificar-me com
a responsabilidade de não ter poder.

“A condição de grande é de grande servidão.”


(Séneca)
Ter poder é não poder.

293
Luís Coelho

Quando fizeres uma asneira diz que “É para os apanhados!”. Serás per-
doado. Porque ninguém gosta de sofrer sozinho.

Neste momento, é preciso fazer tudo para que a segurança compense a


preocupação. É preciso tamanha arte para que nada mude e tenhamos, de tal
modo, a certeza disso que nada fazemos.

Se aparecer na televisão, quero ser um emplastro: omnipresente na indi-


ferença. Se me virem a falar, não liguem, não passo de um paliativo.

Até a criatividade é criativa: só aparece quando não a esperamos. Por


isso, não adianta pedir ao Nada que nos favoreça.

Quando crio, certifico-me, sempre, de que sou eu que crio. Para que a
prepotência não morra solteira.

Não quero ser compreendido, quero ser interpretado. Porque quem me


compreende mata-me.

O objectivo de um trocadilho está em querer que um outro troque de


lugar connosco no jogo da imitação.

Não justifiques uma birra. Senão, acabarás a embirrar com a sua razão.

294
O FisióSOFO

{Corpo “máquina”, corpo


“placebo” e corpo “Covid-19”20}
Em tempos de Covid-19, é fácil ser infectado pelos discursos omnipre-
sentes (acerca) do Corpo. Felizmente, é quando somos agredidos que mais
nos damos conta da salubridade da vida. Pode ser que esta seja, igualmente,
ilusória, mas vale bem o risco de nos tornarmos donos de um corpo que a
Sociedade demoniza. É caso de patologização social, bem mais do que física,
e qualquer vacina só poderá funcionar já depois do mal instalado.
Nos antípodas, atemos um corpo “máquina” e um corpo “placebo”. É a
doença que os polariza, atraindo a cura. O primeiro fusiona “saúde” e “pro-
dução”, desmantelando a estrutura em peças vendáveis. Assim, convém olear
a máquina para que ela se multiplique. O desempenho estraga-a, mas a “rea-
bilitação” permite prolongar o tempo de utilização, para que a “máquina”
possa ser “mantida” pela mesma reabilitação. Há, ainda, o caso emblemático
da fisioterapia desportiva, que lhe acresce o factor “placebetário”: o corpo-
-máquina é extremado, em nome da taça e do entretenimento das massas, a
fisioterapia do desporto permite manter a relação, garantindo, também, que
os clientes se tornem dependentes de um viático.
No acordo com a “Sociedade de espectáculo”, o viático da massificação
resulta às mil maravilhas, e, nele, o corpo “placebo” desempenha um papel
de aperfeiçoamento da ilusão. É por isso que as medicinas “não convencio-
nais” são mais “complementares” do que concorrentes, elas só são “inimigas”
porque arriscam “interiorizar” o que a hodiernidade pretende calar; inútil tal
preocupação, porque os pacientes gostam de permanecer pacientes, não que-
rem ter de se ocupar de uma consciência que periga a solução do mundo.
O Covid-19 polariza os dois “corpos”: de um lado, temos os supostos
“realistas”, que procuram febrilmente uma cura, capaz de re-normalizar a
situação; do outro, temos os “idealistas”, que não acreditam na doença, somente
na sua causa emocional, perante a qual, não só requerem uma mudança de
paradigma, como sugerem estar há muito tempo em rota de colisão com a
normalidade.
Cada um dos pólos arrisca o futuro, pelo que o “corpo Covid-19” tem
de, em simultâneo, incluí-los e rejeitá-los. A proposta de uma vericidade
impõe um rigor clínico, científico, céptico, mas, igualmente, idiossincrático e
psicossocial. A doença lembra-nos que temos usado, constantemente, o nos-

20
Novembro de 2020, publicado em «Healthnews», Dezembro de 2020.

295
Luís Coelho

so corpo, seja como território químico sem história, seja como terreno de
ilusionismo bacoco. A tríade Fitness + Wellness + Terapias não convencio-
nais possui, bem vendo, um intento de subjugação do corpo perfeitamente
compatível com um modelo que denega a “racionalidade libidinal” (Marcu-
se). Não é melhor este “espírito” de plástico do que a atitude aparentemente
cínica da modernidade “positiva”. O que o “corpo Covid-19” nos propõe,
mais do que nunca, é a desmitificação “record” dos territórios vigentes. Num
tempo em que “egos” poderão matar mais do que a doença, é preciso clarifi-
car os lugares do que sabemos e podemos saber. E isto implica que a Saúde é
impartível da Filosofia, e a ciência da epistemologia. Para que soçobre um
corpo tão “reabilitado” que seja capaz de (se) reabilitar continuamente na
relação com os seus próprios fantasmas.

Não sabes o que tem sido a minha vida,


Se soubesses, não saberias nada,
porque nada fiz
que não fosse tudo
para não fazer tudo
o que poderias saber,
Que nada é tudo
o que devemos ser.

Sofro de dor crónica. Só falta senti-la. No intervalo de uma crise.

Quando me perguntam por que sou o que sou, assumo que a pessoa em
questão se candidata ao lugar. Autorizo, sempre, a permuta. Mal sabe que
não mando em mim.

Vi um rato. Quase gritei. Tarde de mais, ele fugiu. Mais tarde, quando
cheguei a casa, o gato apanhou-me, à traição.

296
O FisióSOFO

Fui ao “endireita”. Saí direito a casa. Ainda hoje procuro o caminho de


regresso.

Após uma expiração completa, a inspiração é passiva. É a vida após a


morte. Espreitando os homens cheios de “ares”, mortos por viverem. Tecem
o tempo, pedindo aos mortos que os calem com a vida frenética do Amor,
que se faz de incesto, no norte da dúvida.

Procuramos ser reconhecidos pelos que pretendemos desconhecer. Cons-


tantemente pedimos para trair.

Quero criar um Sistema completo da minha destruição. Quando acharem


que morri, façam favor de o continuar. Mas se não acharem nada para fazer,
eis que já repouso ao vosso olhar. Essa é a minha herança: cegueira intestemu-
nhada.

Cheira a génio. Pensa à génio. Cria como génio. Mas é um valente saca-
na. Então não é génio. Ouviste sacana? És um ingénuo.

As perguntas definitivas só são possíveis se desistirmos, definitivamente,


das respostas.

Se o recolher obrigatório se transformar numa concentração facultativa


de afectos, acabaremos todos a desejar ser infectados de higiene.

297
Luís Coelho

Estragaram-me com mimos. Fiquei minado.

Contagem decrescente para o “recolher obrigatório”. Quem for achado


na rua será escoltado de regresso a casa. É o sonho de muitas saídas solitárias.
O Estado a substituir-se aos sites de encontros e ao objecto do Espírito.
Já tinha saudades de tamanho controlo. (08/11/2020)

O “recolher obrigatório” e a escolta prometida farão sair muitos velhi-


nhos dos lares. Só para que se sintam em casa.

Toda a vida é um “recolher obrigatório”. Tomara que só fosse higiénico


no fim.

{Procura-se: mártir profissional}


(M/F/Hermafrodita/Géneros ad infinitum)
Requisitos:
• Ser um Zé-ninguém que pensa, e muito bem, que é alguém;
• Escola da vida e da morte;
• Com formação superior em desaprendizagem generalizada;
• Rudimentos de Filosofia e membros inferiores flexíveis (para medita-
ções e levitações puritanas);
• Experiência em adultícia de merda e infância recalcada;
• Experiência em aturar Egos, prepotências e Espíritos falidos;
• Desadaptação comprovada ao mundo (com ou sem Cadastro);
• Apetência por causas perdidas e re-achadas;
• Ego inchado como um balão + alfinete.
Responsabilidades:
• Aturar um indivíduo mais morto do que vivo;
• Ouvir sem contraditório;
• Afastar emplastros sociais (excepto o que se candidata a este emprego);

298
O FisióSOFO

• Assinar Petições e mostrar interesse em manifestações a que, subita-


mente, não poderá ir;
• Não precisa de casar, nem de ir a casamentos (só a funerais e confina-
mentos).
Local de trabalho:
• Nem local, nem trabalho, é Ócio em sítio incerto.
Horário de trabalho:
• Traga pijama e esqueça o relógio.
Tipo de vínculo:
• Desapego vinculativo (ou seja, precariedade absoluta), com possibilida-
de de continuar no além-morte.
Envio de Candidaturas para Mim (através de corvo-correio), com Cer-
tificado de inabilitações.
Novembro de 2020

Snifei-te. Tinhas o meu cheiro. Por isso te perguntei com quem estives-
te.

«Chama-me pela tua máscara» é o nome do próximo candidato aos pré-


mios Zé-povinho. O prémio irá ser dedicado às pobres bactérias, tão negligen-
ciadas na actual crise.

É preciso que exista evidência de que é a Evidência científica que cria a


crença num método. Com sorte provaremos que não.

Eis o meu cartão de apresentação. Apresenta-te nele. Mas não escrevas,


não é uma carta de amor, é um salvo-conduto.

299
Luís Coelho

Quem me conhece sabe perfeitamente que não me conheço.


Se existisse tinha de ser reinventado.


{O “Pilates”, a “bimby” do “Fitness”21}


Tão popular ele é que não há, praticamente, um terapeuta que não pos-
sua formação em Pilates, chega, até, a haver quem se apresente, somente,
como professor da coisa, mas a prática é sobrevalorizada, sobretudo porque
substitui o tracto individual por um conjunto de regras prévias que chegam,
quase, a violentar o corpo.
Método da “moda”, é inescapável nas mesmas empresas de formação
que convidam a revezar a aprendizagem “real”, crua, naturalista, por cursos
de preços absurdos, cursos, aliás, que cimentam a ideia de que existem dife-
renças significativas entre métodos e técnicas, que, todavia, se ocupam do
mesmo, dum modo sígnico semelhante. O método atrai os profissionais por-
que atrai, igualmente, a clientela, parecendo, quase, comutar o trabalho tera-
pêutico “stricto sensu”, quando o Pilates é tudo menos uma panaceia ou
mecanismo que possa falar, plenamente, pela fisioterapia.
São indubitáveis as suas vantagens. O Pilates constitui, acima de tudo,
um método de “estabilização” do “centro”, especialmente da coluna, aquan-
do da efectuação de movimentos que o desafiam, o que implica o trabalho
abdominal profundo. Estes “abdominais” representam um papel determi-
nante na protecção da coluna, mas só é possível aceder-lhes se inibirmos os
excessos da musculatura posterior, coisa que o Pilates não prevê. Daí que,
muitas vezes, a sua prática constitua tarefa árdua, dolorosa, significando isto
que, provavelmente, músculos mais superficiais estão a ser esgotados, quan-
do o Pilates não é algo como “fazer abdominais”.
Por outro lado, há uma verdade significativa que é constantemente
olvidada: os músculos posturais são de activação essencialmente inconscien-
te, eles trabalham espontaneamente aquando da realização das mais variadas
tarefas. Comummente, o Pilates que é efectivado nos ginásios e clínicas con-
vida à produção de contracções conscientes e persistentes, que têm, na ver-

21
Publicado em «Healthnews», Novembro de 2020, e em «Birdmagazine», Dezembro
de 2020.

300
O FisióSOFO

dade, pouca importância a nível postural, contribuindo, sobretudo, para


exaurir as cadeias musculares.
O segredo da actividade física está em harmonizar as forças musculares,
flexibilizando os músculos muito tónicos, fortalecendo os abdominais super-
ficiais e “activando” os abdominais profundos. Tudo isto não implica, sequer,
uma prática sôfrega, é possível abranger tudo nuns tantos estímulos “dinâ-
micos”, espontâneos, que resultam da relação terapeuta-paciente crescente-
mente mais autónoma.
Não esquecendo, claro, o controlo motor, o alongamento posterior
prepara o trabalho anterior, e o último trabalha os abdominais. A flexibiliza-
ção posterior não deverá comprometer a saúde da coluna, não podendo,
assim, ser excessiva. Quanto aos abdominais, há, primeiro, que salientar que
“fazer abdominais” é coisa irracional, porque isto implica um trabalho superfi-
cial que é pouco vantajoso (os abdominais superficiais não desenham postu-
ras), por outro lado, os abdominais profundos não são envolvidos, adequa-
damente, no treino consciente, sendo que a sua activação persistente apenas
satura mais a musculatura pélvica.
Dores lombares e obstipação vesical são consequências comuns da prá-
tica “agressiva” de Pilates. Posturas desadequadas, treino desmesurado da
musculatura posterior, tudo isto efectuado, comummente, por instrutores
inabilitados, não convida à apologia de um treino que promete reformar o
corpo e que quase se substitui à terapia adequada. Fisioterapeutas que se
tornam, exclusivamente, professores de Pilates esquecem que uma coisa mas-
sificada nunca poderá ser apropriada. Vende-se a receita e alimenta-se a ideia
de que aquela prática previne tudo e treina tudo, mas o Pilates deve compor,
unicamente, um método a acrescer-se a um trabalho mais global, que não
pode deixar de precaver as diferenças individuais. Há posturas diferentes,
alinhamentos articulares dissemelhantes, o Pilates em exclusivo, sobretudo o
grupal, não consegue nada ao tentar conseguir tudo. A moda, a magia, o
entusiasmo, placebetizam parte dos resultados subjectivos, ninguém se atreva
a pensar que o Pilates esculpe o corpo. De uma vez por todas, entendamos
que ter as “costas direitas” não é sinónimo de ter uma melhor postura. Este
endireitamento é obtido, bastas vezes, à custa da retracção da musculatura
posterior. O indivíduo que fica, rapidamente, mais “direito”, é, frequente e
curiosamente, assaltado por dores que não possuía. E lá vai o sujeito à aula
“esticar-se” e esgotar o ráquis, saindo, sempre, tão bem disposto. Mas a dor
contínua convida-o a, um dia, visitar um osteopata, para “estalar as costas”.

301
Luís Coelho

Mas não há “estalo” que o salve, se não houver uma equilibração das forças.
O “endireitamento” vero da coluna não se consegue, aliás, pelo reforço da
musculatura posterior, mas, sim, pelo alongamento, porque a musculatura
em questão contrai melhor precisamente por possuir maior comprimento, e
as contracções “posturais” não são como as do “movimento”, elas são cons-
tantes e moderadas no esforço.
A dinâmica do corpo é complexa, muito mais fica por dizer. Lembro
que, durante vários anos, dei aulas de grupo de “Reeducação Postural”, afec-
tas a problemas de coluna. O aspecto lúdico e quase circense das aulas podia
ser muito atractivo e, até, terapêutico, mas sentia, frequentemente, que, na
tentativa de chegar a todos, não conseguia suprir as necessidades individuais
dos meus pacientes. Em algumas clínicas, os pacientes são colocados nas
“classes”, com as suas credenciais de “fisioterapia”, apenas porque o grupo
satisfaz mais financeiramente. É “para render”, diziam os meus antigos
patrões, mas, para ser um bom instrutor, tinha, por vezes, de me esquecer
enquanto “terapeuta”. Não interessa que o Pilates seja, ou não, “clínico”,
porque tudo é “clínico” na medida em que serve um propósito de saúde físi-
ca e/ou mental. Mas sem “meter as mãos” no paciente, é difícil obter certos
resultados. O actual contexto do Covid-19 veio nutrir, ainda mais, o trabalho
“à distância”. É, talvez, bom para a autonomia, mas que interessa que esta
exista se não se chegou, “a priori”, à profundidade do “Ser”?

Violei o tempo. Para que o templo não apresente queixa.


Violei o passado. Para que o tempo não se apresse.

{Fisioterapia baseada na dissidência22}


Convenhamos que só há um modo genuíno de se ser fisioterapeuta em
Portugal: matar toda a conveniência, desaprender a ciência e fazer da rebelião
o verdadeiro projecto da evidência. Para sermos científicos, é preciso mortifi-
car a “Clínica” diarística, é fulcral demonstrar que “a Fisioterapia não é isso”
que costuma fazer, é, sim, uma celebração perpétua do movimento, pelo qual
podemos funcionalizar a própria liberdade.

22
Publicado em «Healthnews», Dezembro de 2020.

302
O FisióSOFO

E se é de “liberdade” que se trata, tudo nela se inclui, sem que alguma


vez se traia o objecto, que é a relação terapeuta-paciente, a intrínseca liberta-
ção do “outro”, no qual colocamos toda a fé, e, subitamente, a suspeita que
engrandece e fortifica. Esta “libertação” é motriz, ainda mais do que postural,
porque a vida se faz de avanço que lança constantemente a dúvida e o desa-
fio. Não há, aqui, espaço para a “postura” rígida da prescrição, para a anqui-
lose da razão que articula a relação com um futuro prometendo a dança per-
pétua. Este baile é a própria “Fisioterapia” reinventando-se continuamente, a
sua ordem reside no objecto, mas mesmo este se redesenha a todo o custo, na
medida da proporção terapêutica, e, até, da maldade que emproa a transfor-
mação.
Para além de bem e mal, se estratifica a Unidade, que é a mónada do
Corpo harmónico. Por isso, esqueçam os exercícios isolados, a solidão do
esforço abandónico, as classes que se repetem “ad infinitum”, as famigeradas
fricções ou massagens na marquesa irresoluta. A Fisioterapia é dança, mesmo
que se trate de intervencionar a unha da mão. Fisioterapia é trabalho autó-
nomo, mas nunca insular, de um corpo que se estira no Sonho, bem para
além da barreira da regra.
O fisioterapeuta “piloto automático” trai a própria “ars”. Se existe ciên-
cia, é para que seja desafiada, alongada dinamicamente, pela criatividade.
A minha Fisioterapia é para ser à “margem da lei”. Polo, calças de
fazenda e sapatos finos, troquei-os por t-shirt, calças de fato de treino e
meias. Oxalá, possa um dia desnudar-me. A marquesa, já não existe para
mim. A minha Fisioterapia é em colchão. Não preciso de máquinas, basta-
me uma bola suíça, um rolo de “Pilates”, almofadas, toalhas e uma cadeira.
Postura e exercício intermedeiam-se do início ao fim. A cadeira ajudará a
manter o alongamento posterior, haverá uma altura em que o paciente estará
deitado no rolo, com os membros inferiores na cadeira, os membros superio-
res sem apoio e as minhas mãos traccionando a cervical. Mais tarde, traccio-
narei os membros inferiores, farei o paciente crescer, libertá-lo é libertar-me.
Não pensaria em manipular sem que, primeiro, preparasse a coluna para o
movimento. Depois, de barriga para baixo, posso meter os dedos nas vérte-
bras. Não, não basta isto, é necessário, também, pedir a contracção abdomi-
nal, basta que o paciente passe para a posição de gatas, é escusado forçar o
Pilates preciso, a activação dos abdominais não precisa de ser tão dramática,
sejamos espontâneos. Há, aliás, formas de alongar, mobilizar, fortalecer e
equilibrar, tudo ao mesmo tempo, daí que os efeitos da prática não possam

303
Luís Coelho

ser limitados às variáveis isoladas, juntando tudo temos uma coisa comple-
tamente diferente; daí, também, que a prática do terapeuta-paciente tenha de
ser vivida, não basta ler protocolos ou seguir as instruções de um vídeo. Às
tantas, é preciso deixar cair a “máscara”, e arriscar a sedução. Todo o acto
terapêutico é um acto de amor. Amor passional, o duo tece a paixão com
que, muitas vezes, terapeuta e paciente se entretecem. Subsiste, nisto tudo,
coito capaz de mortificar todas as esperanças razoáveis. É por isso que a rela-
ção terapêutica vilipendia, virtualmente, a moral clássica. Há uma “raciona-
lidade libidinal”, que, segundo Marcuse, envolve todo o corpo e a relação
deste com um tecido social crescentemente livre do labor, do esforço inglório
e alienado, do temor da fornicação “erótica” (Bataille).
Não é possível “matar de amor” o nosso paciente sem que morra a
Fisioterapia rigidamente “positivista”. Não é possível amar sem arriscar vio-
lar a “lei”, sem violar minimamente o território do “outro” com que preten-
demos criar os frutos de uma nova quimera. O acto “terapêutico” é uma
violação só parcialmente consentida do paciente, e do futuro onde já não
vigora o tempo.

O poder da vontade é a vontade de poder.

Somente aceitamos que cumprimos a nossa missão quando a missão


deixa de se cumprir somente connosco.

{Fisioterapeutas, enfermeiros e outros


demónios. “Que vença o melhor!”}
Este é um mundo duplamente infecto de Unidade e poder, e o contexto
do Sistema de Saúde não se exceptua. Se lhe ajuntarmos um catalizador viral,
excedemos aquela dualidade, ficando à vista tudo o que faz um serviço de
saúde: uma Vontade de equipe e uma fome de vencer no trâmite daquela. O
Covid-19 veio, precisamente, ressalvar a antiga ambiência “clínica”, pondo
em relevo solidariedade e pretéritas inimizades. O caso da Reabilitação pós-
-Covid-19 é, em tudo, perfeitamente emblemático.

304
O FisióSOFO

É claro que a vida dos profissionais de saúde se tornou, mais do que


nunca, pública, mas também se revela o seu aspecto menos cristalino: a com-
petitividade. Um caso que expus no passado, nomeadamente, o conflito,
aparentemente surdo, entre fisioterapeutas e enfermeiros de reabilitação,
transparece, agora, com certa força, mostrando, por um lado, que estes pro-
fissionais não podem simplesmente excluir-se, e, por outro, que uma raiva
muda e mútua se nutre entre alguns dos seus elementos. Ora, se bem sabe-
mos que a Unidade é o que se pretende em certo futuro utópico, é indubitá-
vel que a realidade se propõe a outra coisa. E não se trata de uma discussão
“ad infinitum” sobre direitos e deveres, mas da velha proposta liberal que
coloca tudo sob o acinte do mérito. Quando já não é possível limitar comple-
tamente territórios, só a dinâmica competitiva soçobra para colocar as balizas
na resultante pretendida, que, ademais, passa pela satisfação do utente.
Por vezes, é preciso defensar o “indivíduo” face ao Colectivo, se o
segundo se dilacera e se reduz, de qualquer modo, ao primeiro. Aqui, o
“indivíduo” compete com vista ao alvo “colectivo”, o profissional “modelo”
luta, assim, para uma resultante unitária. E não há ciência ou “Ordem” que
possam demarcar a sua inventividade, se bem que aquelas devem ajudar a
assegurar que os objectivos legítimos são cumpridos. Lembrando que, por
vontade da Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Fisiotera-
peutas, agora em formação, nem teria passado, lembro eu que, em última
análise, não devem passar, jamais, os limites à actividade heurística e comba-
tiva, em que a Unidade reinante é o próprio utente.
Não vejo outro modo de encarar um futuro onde o intrínseco país tem
de ser reabilitado como um Todo. A abordagem que se pede basta-se no
“indivíduo” reinante, não das Utopias políticas, mas da prática enxuta e fun-
cional, com vista ao “movimento” definitivamente necessário. E os fisiotera-
peutas “liberais”, profissionais do movimento, estão, decerto, ansiosos por
imprimirem a mudança a um país articulado onde ainda imperam a artrose e
a artrite de convicções. Para a própria anquilose das palavras, é o momento
de romper com a lassitude das promessas. Assim, médicos, enfermeiros, pro-
fissionais da motricidade, terapeutas diversos, que não estejam disponíveis
para a simbiose, são convidados ao antagonismo propulsor de uma “mátria”
em transformação.
Já não há possibilidade alguma de limitar o ensejo do “saber fazer”, a
práxis quer-se sempre revolucionária e dissidente, só a mutação perpétua
estatui a melhoria da condição dos utentes. Permanecer no agravo da ofensa

305
Luís Coelho

multidisciplinar é medrar no laxismo. Coloquemos o acento, em definitivo,


nos resultados, não em estatutos que nos viciam de passado. A Saudade está
em tornar-se presente.
Dezembro de 2020

Há nuvens que são só garganta. Incendeiam, mas não fulminam. Voam,


mas não acodem.

Dizem que a vacina nos mete um chip, para que dêem, sempre, connos-
co. Ainda bem, que eu já me perdi há muito.
Dizem que a vacina nos muda o ADN. Mas eu nem sou de apegos.
Dizem que a vacina nos torna reféns da Realidade. Alguma vez fomos
livres? (08/12/2020)

Só queremos chegar ao fim dum livro para confirmar o nosso próprio


fim. Quando não é questão de vida ou de morte, fica o livro a meio, à espera
que inventemos o fim.

Onde não és amada, permanece. É lá que tens de amar.

“Ganha fama e põe-te a dormir”. Quem mo disse, difamou-me. Sofro


de insónia.

Acumulo, acumulo, acumulo, e, depois, descarrego tudo. É a Lei do Tudo


ou Nada. No potencial de acção, no meu feitio e no meu intestino. Vê como
tudo jaz em harmonia.

306
O FisióSOFO

Um terço da população não se quer vacinar sem, primeiro, fazer um


Seguro de vida. Vejam como tudo se encaixa: a Seguradora exige a vacina
para fazer o Seguro.

Se eu pensasse em ti cada vez que te relembro, acabaria a esquecer-te.

Ele tem genuíno respeito pelo meu cão. Não o roubou, raptou-o. E só o
fez para que lhe pudesse roubar a ideia.

Dias há que parecem horas. Não é felicidade, é hipersónia.

Fui à reunião dos deiólicos anónimos. Tratámo-nos pelo nome. Bebe-


mos, mas não brindámos. Saímos, pensando na próxima.

Sentia-me atraído para ti. Mas não era por ti. Era por Deus, para a ver-
gonha da Saudade.

Tens de a desculpar. Ela não faz por mal. É só má.

Um espelho e um pouco de sol. Coloquei-o no expositor, ao lado do


extintor. Consegui vendê-lo.

Termo de irResponsabilidade: Declaro que tudo o que disser e fizer na


minha vida é da exclusiva responsabilidade da Causa Primeira. Para mais,
acrescento ter o dever de pôr as culpas no “outro”, que, só por acaso, nunca
deixou de ser parte de mim.

307
Luís Coelho

Pedi uma cunha à Mecânica Quântica a ver se escapava à responsabili-


dade do que outros fizeram por mim. Fiquei a dever-lhe ainda mais, o incal-
culável.

Quando a terapia é verdadeiramente “quântica” já deixou de ser “tera-


pêutica”. Mas elogio a criatividade da coisa, precisamente porque era sem
intenção.

Um pouco de vaidade é uma fraqueza desculpável. Acontece aos melho-


res. Não aos vaidosos.

Uma tempestade num copo de água? Pudera, foi a última gota.

Omnisciência sem omnipotência dá direito a isenção de taxas modera-


doras.

É preciso coragem para dizer as coisas. É preciso mais coragem para


viver com as coisas que dissemos.

O Diabo veste prédica. E despe-se na prosódia.

Morrer é só ser visto por inteiro. Por isso, quando morrer, não digam
que me conheceram pessoalmente. Eu não o farei, e, para isso, darei provas
de estar Vivo.

308
O FisióSOFO

Quando morrer, não direi que me conheci pessoalmente. Onde estiver,


reconhecê-lo-ei. Por isso mesmo, voltarei a morrer.

Quando morre alguém conhecido,


todos dizem tê-lo tido por amigo.
Isso é inveja de não terem morrido.

Tomara que o maior interesseiro não se desinteressasse de transformar


um interesse em Direito. Escusava de nos fazer sentir culpados.

É sempre bom responsabilizar quem achamos ter as culpas. Com sorte,


acabaremos todos indultados.

No debate “sonoplástico” de ontem, decidi em quem vou votar: no tra-


dutor de língua gestual. Pode ser que, para a próxima, tenhamos maestro.
03/01/2021

Só respondo ao Questionário de Proust se for com “escolha múltipla”


sem descontar.

Tenho fobia de espaços comuns. Não sei que fazer quando morrer,
temo ter todo o espaço do mundo. Bem sei que, agora, sou apenas uma
aproximação, imaginem quando me vir em todo o lado.

309
Luís Coelho

O Vermelho e o Negro. Entre o batom vermelho e a camisa negra, esco-


lho Stendhal. Mas consta que os livros são virulentos. 15/01/2021

O país pinta-se de vermelho em dia de confinamento e perguntamo-nos


se se desconfinou um novo 25 de Abril. Tomara que existisse, assim, tama-
nha unanimidade nacional nos dias da esclerose do Sistema. É contra ela que
Ventura tem propagado a sua ira, arrastando um potencial revolucionário,
minoritário, que se vê a colocar a camisa negra à volta de uma letra escarlate
do adultério político. Esta ordem decrescentemente “menor” tem, obvia-
mente, os seus podres. Não têm, também, todos os outros? Ela tem promes-
sas irresolúveis. Não têm todos os outros? Ela ofusca com um discurso que
coloca o acento na “persona”. Não é o mesmo com todos os outros? E, no
entanto, há aqui qualquer coisa que assusta, certamente o “radicalismo”, a
incoerência, mas isso é, precisamente, o que potencia a transformação de um
grupo “crístico” numa força dominante. Mas por que ter medo de um grupo
com que não nos identificamos? Por que ter fobia de um movimento supos-
tamente “ignorante”? Talvez porque ele traz consigo muito do nosso êxtase
anti-Sistema, porque ele recusa o que não temos coragem para assumir fron-
talmente, porque ele se enquadra num “negacionismo”, numa desadaptabili-
dade, face à norma. Onde existe descontentamento permanece uma ameaça
de mudança. Resta saber se a saída da “zona de conforto” se justifica face ao
potencial da destruição. O preço que o “Chega!” cobra é muito elevado. Por
isso se entrincheiram nele os mais desesperados, os mais frágeis e ignaros.
Mas de nada serve demonizar esta secção da Sociedade. É preciso, sim, ouvir
o que têm a dizer. Doutro modo, arriscamo-nos a nutrir, ainda mais, a Besta.
E estarem todos contra a Besta é tornarmo-nos uma Besta bem maior. As
reacções sistémicas contra Ventura são de azo a alimentar-lhe o complexo de
mártir, promovendo o seu crescimento indómito enquanto “órfão” de um
país avesso.

No mundo em que vivemos, ser infeliz é um dever.

310
O FisióSOFO

“Ser feliz é uma responsabilidade muito grande.


Pouca gente tem coragem.”
(Clarice Lispector)
Onde estamos, teria vergonha de ser feliz.

Não vou fingir que o mal e o bem são coisas diferentes, isso seria bom
demais. Vou ser mau e exigir o supremo Bem, que é o Universo sendo indife-
rente perante um capital de Consciência. Para ele, tanto faz que sejam três ou
três mil entes, mas já não lhe seria totalmente indiferente que o planeta
engordasse e engolisse tudo, se bem que nele não haveria algo para se quei-
xar, somente um resquício de Deus no cérebro ignaro de algum sobrevivente.
Claro está que cada um se sente deus, apesar de isso ser indiferente aos
outros, todavia, a Verdade deveria interessar a todos, haverá, decerto, inte-
resse em haver legislador, que mais não é do que Superego do tecido univer-
sal. Mas, no limite, tanto faz que seja isto ou aquilo, existe, até, a consciência
vingativa perante um Homem que vilipendia a Verdade, que morra tudo e
fiquem uns poucos adulando tamanha deidade, mas Deus é a Verdade dos
que cá estavam, e isso inclui a propensão para a imperfeição, lutar contra ela
é ir arrimando Verdade “de facto” com Verdade placebetária, Ego com Supe-
rego, redesenhando constantemente a linha da Virtude, perante a qual uns
cumprem e se orgulham e outros se desculpam perante os últimos. Obvia-
mente, é preciso que exista desafio, maldade, só isto move a Roda, porque
Nada seria permanecermos certos do futuro, como do passado, que é o
mesmo que dizer que somos Agora eternamente. E a consciência não quer
esse Agora, quer a vida, a dissidência, doutro modo teríamos permanecido
imediatos. Do mesmo modo, anseio pelo elogio, por me seguirem, para, logo
a seguir, querer trair tamanha estabilidade, há quem só saiba ser mártir, que é
uma maneira de ser superconsciente, explicá-lo a mim mesmo é também
martirizar-me, tentando fazer colapsar a Culpa, desvelar para logo me reve-
lar, materializar-me sempre, sentir-me, perpetuando o Sujeito no desafio do
Objecto, filosofar é isso mesmo, resistir ao Espírito, desconfiar dele, insistin-
do na Ideologia que se exige incompreensível, inalcançável, porque com-
preender é esgotar, matar o movimento.

311
Luís Coelho

Resistir a uma escolha é a forma mais pura de sadismo.

Pus-me uma coleira e levei-me à rua. Chamaram-me cão. Senti-me em


casa.

Há muito que comecei a escrever o Obituário do nosso país. Tomara


que seja, apenas, o obituário de um modo nacional de estar. Mas haverá,
decerto, um marco, a partir do qual os portugueses se deitarão a esquecer,
mais uma vez, o nosso fracasso como nação. O cancro de Portugal é, preci-
samente, o hedonismo, o “laissez faire”, a preguiça, a amigocracia, o ilusio-
nismo constante e serôdio. E perante tal laxismo, quase que apetece dizer “É
bem feita!”.

Não vale a pena dizer aos portugueses “É bem feita, toma que é para
aprenderes!”. Eles pensam, sempre, que é de um “outro” que se fala.

A “des-sensitização” dos portugueses face à situação que se vive demons-


tra, igualmente, o fracasso dos “media” no processo de sensibilização. De
tanto empolarem o irrelevante, os “media” acabaram, completamente, desa-
creditados. Quando se tornam, realmente, necessários, denota-se a sua inuti-
lidade. Também isto explica porque é que tantos ataques a André Ventura
acabam por torná-lo um mártir.

Quando todos nos fizermos comunicar pelo vírus, veremos, finalmente,


o preço de uma comunicação viral.

Carta aberta ao povo português: “Não me abram!”

312
O FisióSOFO

Há que cancelar, desde já, o dia dos namorados. Por isso, desejos... só ao
postigo.

Que se chama a alguém impopular que apela às dádivas de sangue?


Vampiro.

Anda um vírus pelo ar. Pedimos, urgentemente, o vosso sangue. Ass.:


Terapeuta Drácula. Não, isto não é humor azul, é, mesmo, vermelho (como
os batons que disfarçam a palidez).

Para quem amo, tenho, somente, deveres “odontológicos”. Se fossem


éticos, não me perdoaria.

Amanhã, para votar, não se esqueçam de activar a pulseira electrónica.


(23/01/2021)

Caro Vírus, caros polícias da liberdade, peço desculpa por ainda estar vivo.

Votar não é um acto de liberdade, é, sim, um modo de “escolher” os


próximos que nos coarctarão a liberdade. No contexto actual, é apresentado
como mote de Salvação, quando, simultaneamente, passamos a ter de justifi-
car, com comprovativos, cada passo que damos.

Em dia de votos, não tenho uma caneta que escreva. Não é boicote, é,
mesmo, preguiça. E é por isso que a caneta é mais forte do que a espada.

313
Luís Coelho

“A Realidade é real?”, perguntou Watzlawick. O «Polígrafo» respondeu


“Pimenta na língua”.

Era tão sábio que só na escola aprendi o que era o sexo.

A quem não me pedir nada, absolutamente nada, ficarei para sempre


devedor.

Submeti-me à vida, para revisão cega. Era míope: fui aceite, com altera-
ções. Recusei-me. Por isso, tornei-me público.

{Postura e articulações: fisioterapia e epistemologia23}


O tracto das articulações, em especial da condição degenerativa, faz ape-
lo a modelos de “causa-efeito” que dualizam a Fisioterapia e a caracterizam
epistemologicamente. Identificá-los é antecipar a unidade, tanto da arte como
da ciência.
Relativamente, então, às artroses, existe a tentação de as relacionar cau-
salmente (ou, pelo menos, correlativamente) com as características de alinha-
mento articular e de (potencial) encurtamento miofascial. Analiticamente,
1
atemos o caso da meta-análise de Tanamas et al. , respeitante ao alinhamento
da articulação do joelho. Globalmente, é o próprio paradigma “postural” que
sugere que os excessos da musculatura tónica e anti-gravítica contribuem para
2-5
tolher as articulações .
2
Segundo o modelo de Mézières , a musculatura postural comporta-se
sinergicamente como um só músculo, lordosando, parcial ou totalmente, a
partir da(s) cadeia(s) muscular(es) posterior(es), num misto de “lordose +
rotação interna dos membros + bloqueio diafragmático”. Assume-se que os

23
Referência: Coelho, L. Postura e articulações: Fisioterapia e epistemologia. Gazeta
Médica. 2021; 8(3).

314
O FisióSOFO

músculos e fáscias agem como tirantes ósteo-articulares, influenciando o


2-5
alinhamento . A partir daqui, especulou-se, muitas vezes, que os desequilí-
brios musculares implicariam o desalinhamento. O caso da escoliose é para-
4, 6
digmático , impondo uma desarmonia na relação com os membros. Mas há,
também, a clássica associação entre hiperlordose lombar e hiperlordose cer-
vical, com a hipercifose dorsal a corresponder, porventura, a uma curvatura
2, 5
meramente aparente . Para além das zonas de promontório da coluna, as
articulações dos ombros poderão ser sujeitas a uma maior pressão com tal
“postura”. De igual maneira, associa-se a hiperlordose lombar a um maior
risco de desenvolvimento de coxartrose. E se a articulação da anca está afec-
tada, também a do joelho e o pé poderão ser afectados. Mas haverá, decerto,
casos, em que a perturbação parecerá “ascendente”, com a posição do pé a
3, 6
influenciar todo o corpo .
Esta incerteza em termos de ordem de surgimento das “compensações”
poderá complexificar o que se projecta enquanto abordagem “postural”.
Nunca se poderá ter a certeza de qual é a “origem” da deformidade, se é que
a mesma é alcançável. Por outro lado, todas as pressuposições em causa são
dificilmente demonstráveis empiricamente, como difícil é demonstrar a cabal
eficácia da “reeducação postural”, em parte porque lidamos com um aglome-
rado complexo de variáveis que se organizam ao longo de muitos anos. A
abordagem “postural” coloca a tónica no alongamento miofascial, é “causa-
cional” e “teorética”, não podendo, comummente, escusar-se o aparecimen-
to de novas compensações ou desarmonias (que podem resultar da/na
migração dos sintomas, mal cerzidos por uma intervenção de efeito pouco
significativo). Por sua vez, a abordagem empírica, mais localizacional e bio-
mecânica, centra-se na mobilidade (incluindo terapia manual) e fortaleci-
mento, isto sem contar com os métodos directamente anti-sintomáticos. A
eficácia é vera, mas é possível que, mais uma vez, se exporte uma compensa-
ção (em parte, precisamente porque se cala o sintoma).
Na medida em que o modelo “causativo” assenta, fortemente, numa
confiança pré-científica, e dialéctica, em pré-noções observacionais (Francis
7
Bacon ), que poderá, aliás, placebetizar tanto o terapeuta quanto o paciente,
o modelo empírico sugere outro rigor. Mas, dado o que dissemos, a interven-
ção não poderá deixar de compatibilizar ambos os paradigmas, com o pri-
meiro a ser esgrimido sem excessos, focado na “estrutura” a longo prazo, e,
sobretudo, preparando, a curto prazo, o segundo. Assim, poderá a articula-
5
ção ser mobilizada após “alongada”, e só depois “reforçada” . É certo que o

315
Luís Coelho

modelo empírico desconfia do alongamento (porque pode desestabilizar a


articulação) do mesmo modo que o modelo teorético desconfia do fortaleci-
mento (sugerindo que este reforça, indirectamente, a musculatura tónica),
pelo que a compatibilização dos paradigmas deve assestar numa “racionaliza-
ção”, que assenta, necessariamente, na condução “fenomenológica” do racio-
cínio clínico. Há, assim, que alongar o próprio dogma, a compensação, escu-
sando a forçosidade do trabalho analítico, evoluindo do global para o proximal
(perfilhando certa estabilidade ou previsibilidade “placebetária”/”paliativa” do
acontecimento postural vs. sintomático, em torno de uma abordagem científi-
ca, incluindo o terapeuta, que partilha toda a dinâmica corpo-mente), não
esquecendo a síntese, no formato do equilíbrio neuromotor, que, “postural-
mente”, passa, precisamente, por alongar os músculos posteriores e reforçar os
5, 6
anteriores .
Bibliografia
1. Tanamas S, Hanna F, Cicuttini F, Wluka A, Berry P, Urquhart D. Does
knee malalignment increase the risk of development and progression of knee
osteoarthritis? A systematic review. Arthritis & Rheumatism (Arthritis Care
& Research) 2009; 61;4: 459-467.
2. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
3. Bricot B. Posturologia (3ª edição). São Paulo: Ícone Editora; 2004 (edição
brasileira).
4. Massada L. O homem é um animal assimétrico. Especulação sobre um estu-
do antropométrico efectuado em jovens atletas. Editorial Caminho; 2006.
5. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
6. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
7. Bacon F. Novum organum. Porto: Rés; edição original de 1620.

A noite é a tempo inteiro


A vida, um biscate.

316
O FisióSOFO

{Psiquiatria e Fisioterapia: dinâmicas e epistemologia}


Existe uma dinâmica epistemológica comum, “monista”, a reiterar o
enlace entre Fisioterapia e Psiquiatria, e que se representa nitidamente no
tracto, avaliativo e interventivo, de condições como raquialgias ou doença
articular degenerativa. Compreender a sua dialéctica é antecipar tanto um
círculo vicioso inescapável, de âmbito ontológico, como prevenir o necessá-
rio equilíbrio clínico e paradigmático.
Este equilíbrio expressa-se, primeiramente, por uma linha média raqui-
diana que divide o corpo em (a) zona posterior, especialmente mnésica e
1, 2, 3
defensiva, lugar das grandes hegemonias miofasciais , e em (b) zona ante-
rior, lugar de acção e movimento, de relação com o mundo. A zona posterior
encerra cadeias miofasciais, essencialmente tónicas, posturais, capazes de
uma contracção profunda pouco evidente (dado que estes músculos não
hipertrofiam com facilidade), que fornecem ao “ser” a base da sua “persona”.
Quando livre, flexível, a cadeia muscular posterior não resiste à acção “ante-
rior”, mas, quando encurtada, a mesma cadeia é compensada pela rigidez do
movimento “agente”. Por sua vez, esta rigidez produz ainda mais contracção
posterior.
As defesas posteriores são adaptativas na medida da sua elasticidade.
Quanto mais flexível for o “ser”, mais este se permite compensar sem sintoma-
tologia evidente. Mas o embate da realidade “externa” poderá levar ao exacer-
bar, ao esgotamento, das compensações, que, não sendo adequadamente flexi-
bilizadas, produzem o “sintoma” “positivo”, acaso “local” ou biomecânico. O
excesso da “estrutura”, o seu esgotamento psicossocial, cria a “neurose”, a
manifestação exterior. A última pode constituir uma dor ou uma forma de
sofrimento psíquico. Existirá, claro, a tentação de a fazer suprimir. A dor/
sofrimento será tratada, na melhor das hipóteses, com movimento e/ou forta-
lecimento, mas, mais provavelmente, com recurso a medidas anti-sintomá-
ticas, que, ao apagarem a manifestação, poderão levar a mais compensação
“patológica”. No entanto, é preciso escusar o excesso de sintoma para evitar a
mesma compensação, mas de pouco valerá sem que se crie um novo caudal de
referências posteriores. O alongamento posterior responde à manifestação,
mas, também, antecipa uma nova. Mas, se o primeiro for excessivo, o corpo
reage defensivamente, “positivando”, mais uma vez, o sintoma.
Este descomedimento de “flexibilização” é, igualmente, o exceder do
1, 2, 3
paradigma teorético, mézièrista , psicanalítico, resultando numa defesa
“liberal” do paciente, pelo que este pode passar a “agente”, exportando a sua

317
Luís Coelho

dinâmica para a do terapeuta. Por sua vez, este reagirá na medida da flexibi-
lidade das referências internas. Um adequado, e não excessivo, “alongamen-
to”, poderá prevenir o agravamento da dinâmica, e, só depois, poderá refor-
çar-se a ligação com o exterior, fortificando, também, a estrutura, de um
modo “excêntrico”, delongável. O modelo “anterior”, fundamentalmente
empírico, deplora, comummente a teoria, a flexibilização, dando importân-
cia, sobretudo, à força, que, por sua vez, é deplorada, vulgarmente, pelo
modelo “posterior”, que defende que a mesma cria a sobrecarga das cadeias
defensivas. Só é possível agradar a ambos os modelos, recrutando o equilí-
brio, sempre fátuo, do Sistema.
Tal implica, portanto, o alongar do dogma, antecipando o reforço da
relação. Claro está que o aspecto “empírico” é mais facilmente mensurável
que o aspeito “posterior”, porque este respeita ao “longo prazo” identitário.
E, por isso mesmo, o modelo “estrutural” pode revelar-se críptico, dado ao
relativismo da resultante, nunca sabemos o que de facto está na origem, nun-
ca podemos ter a certeza de lá ter chegado, não é possível assegurar o “fim”
desta dinâmica, pelo que alguns remetem o processo para a própria dialéctica
interminável, e outros se impacientem com a sua infalsificabilidade.
A dialéctica em causa é psicofísica, possibilitando a conversão corpo-
-mente. Assim, o excesso dogmático pode produzir a dor emocional, disfar-
çando o esgotamento da cadeia muscular posterior, tal como a dor física
pode exprimir o esgotamento psíquico. A experiência clínica tem levado,
muitas vezes, a considerar que, sobretudo, as situações persistentes manifes-
tam a incapacidade de abstracção de um sofrimento “neurasténico”, pare-
cendo, até, que muitos dos pacientes da Fisioterapia são fundamentalmente
pacientes psíquicos que pretendem manter-se enquanto tal. Este sofrimento
telúrico poderá adaptar-se mais ao “ideal”, à “episteme”, do paciente, do
mesmo modo que o “positivismo” é, frequentemente, uma incapacidade de
se espiritualizar uma condição. Por sua vez, o excesso de “espírito” pode ser
interpretado como uma incapacidade de positivar uma dinâmica “material”.
Obviamente, a “psique” é “espírito” e “matéria” ao mesmo tempo, ou só
“matéria” para o modelo “anterior”, “moderno”, que “normativiza” o “posi-
tivo” face ao “espiritual”, e que poderá convidar-nos a patologizar os “espiri-
tuais”, que, na sua desadaptação, logo concretizam o sofrimento e demoni-
zam a cientificidade.
Assim, poderá o paciente manter-se perpetuamente em Fisioterapia, vivi-
ficando, normativizando, a condição dolorosa, com esta a resultar, comum-

318
O FisióSOFO

mente, de uma atenção excessiva ao sintoma, consciência convertível aquando


do apagamento do mesmo. Não é incomum o sucesso fisioterapêutico tradu-
zir-se numa nova dificuldade emocional e/ou psicossocial, tal como é comum
o sucesso psicoterapêutico ou psiquiátrico traduzir-se numa nova dor ou dis-
função. Existe conversão, substituição, ou, então, paralelismo. E, segundo o
aspecto sintomático, poderá prever-se o modelo epistemológico, se bem que a
dor “física” subsiste, muitas vezes, no defensor da “Nova Era”, em parte por-
que o próprio paradigma é, “per se”, uma compensação.
A duelização de paradigmas pode implicar a duelização da própria rela-
ção terapeuta-paciente. Um agonismo desmesurado do terapeuta poderá
levar à resistência do “paciente”, mas esta será, decerto, maior se não houver
compatibilização de modelos, a não ser, claro, que o modelo do paciente o
compense de modo a torná-lo imperturbável. Uma compensação é, apesar de
4
tudo, uma forma de mimetizar o “Princípio” do sujeito , a conversão é a
resultante de uma falência deste processo.
Bibliografia
1. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
2. Nisand M. La méthode Mézières: un concept révolutionnaire. Paris: Édi-
tions Josette Lyon; 2005.
3. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
4. Coelho L. A razão neurótica. Um livro de auto-desajuda. Lisboa: Manufac-
tura Editora; 2019.
Fevereiro de 2021

Sou viciado em sinceridade. Aconselharam-me a permanecer anónimo.


Sinceramente, não sei se devo.

Existe liberalidade no perpétuo movimento circular que intermedeia


Estrutura e função, na sua inquietude empírica, que estabelece a competitivi-
dade feroz entre morais, bem como a velocidade do processo de “tentativa e
erro”. A celeridade cria a funcionalidade do Sistema, o conjunto das estrutu-

319
Luís Coelho

ras cria a posição relativa de um “eterno retorno” de indecisão terapêutica


capaz de estagnar no equilíbrio, sempre fátuo, entre Razão e esfera empírica.
Uma Razão espargida sem excesso, um alongamento sem sobejo ou defeito,
implica um movimento cândido, sem a solicitude libertina de um reflexo
prestes a reiniciar o ciclo, no seio do qual o terapeuta age enquanto facilita-
dor da mudança. O descomedimento gera a revolução, o equilíbrio “terapêu-
tico” lentifica a transformação, recria a estabilidade. O desregramento multi-
plica a rede de esgares empíricos, até que um deles esgote o Sujeito.

A liberalidade intrínseca implica uma estrutura robusta não excessiva,


esta é a marca da “estruturação”, quiçá da compensação, ela pode até consti-
tuir a Liberdade dogmática alcançável após a estruturação forçada (e.g.
Marx). Mas se as diferenças primevas são grandes, o intento “estruturador”
pode gerar outra liberalidade, da parte “descompensada” do Colectivo. Por-
que havia descompensação, há, agora, outro dogma, pode este apaziguar e
descompensar outra parte do Sistema. Poderá acontecer que o dogma seja
“liberal” de conteúdo, mas, aqui, existe algum nível de paradoxo. O círculo
vicioso nutre um espectro liberal de Princípios, pode suceder que algum
vença temporalmente o conjunto, mas, se isto acontece, é porque o Princípio
em causa é mais inclusivo ou, até, mais tolerante. Ora, aqui, produz-se uma
forma de equilibração que harmoniza a relação da Estrutura com a sua reac-
ção empírica. Mas, se isto sobrevém, há, precisamente, menos reacção liberal,
o que, de mais a mais, produz certa conformidade “positiva”, empírica. Este
é o pleno Espírito, mesmo que a “episteme” seja dada à modernidade empíri-
ca, se bem que este pode constituir, também, um dogma, com ou sem “Espí-
rito” propriamente dito. Claro que o conjunto “social” inclui um caos de
Princípios e (des)compensações, mas é preciso perceber que, de algum modo,
a compensação num aspecto pode moderar a descompensação noutro item,
sendo que isto poderá depender do conjunto primevo de Princípios “inter-
nos”, incluindo a “episteme” familiar e/ou social.

Queria pintar-te da maneira original. Mas as cores não chegavam.

320
O FisióSOFO

Trata-te de seres feliz.


Não te armes em esperto só porque um desperto te ignora. Ignora-te


também.

Há vermes que nos despem a pele. São sanguessugas da vaidade.

Não sou “Open Access”, nem me revejo nos pares. Não terás um caso
comigo, escusas de me pesquisar.

«– A: O que tens com ela é uma “união de facto”?


– B: Não há factos, só interpretações.
– A: Ah, és casado!»

A utilidade é a “razão de ser” funcional que permite “compensar” a


relação do homem com o mundo das manifestações empíricas. É ela que
preludia a própria relação com a Natureza, fazendo vicejar um Universo de
ligações cruas, longínquas da “Opinião pública”. Elas precisam de alguma
ténue tendência inata, ou somente adquirida (como em Locke), e serão,
assim, o mote da “conservação” do ser, que se realiza à distância da Socieda-
de. Ao seu «Emílio» (1762), Rousseau só daria/dará um livro aos 12 anos,
idade que o autor indica como o primórdio da Razão; até lá, só relações físi-
cas, espontâneas, que permitam criar a robustez requerida ao futuro estado
“social”. Quanto a este, é necessário ao prolongamento do objecto da “con-
servação”, mas convém que o seu Emílio não se cumule de “associações”
desinvestidas de Compreensão. O modelo de Rousseau é racional, porque
nada será aprendido sem a ligação primeva e utilitária à Origem. Só assim
poderá ser escusada a violência “empírica”, no sentido “cultural” do termo,
permitindo a nudez, igualmente empírica, experimental, que fará a relação
“assertiva”, independente, com um mundo de espectros repletos da Autori-
dade perniciosa dos afectos violentados.

321
Luís Coelho

A Cultura acumula camadas de dogmatismo empírico, fabricadas na


obrigação de um Espírito encarcerado pelo comportamento alheio, escusan-
do-a é possível evitar a necessária viagem “reveladora” que permite desocul-
tar o perfeito empirismo, que é a crueza da plena inConsciência. A lealdade
de Rousseau à Natureza leva a que o mesmo prescreva a aprendizagem de um
“ofício” que permita tornar o indivíduo o mais independente possível do
“Outro”. É o que acontece com a “ars” fisioterapêutica, quando ela se desin-
veste do seu objecto “psicossocial”.

Quem publica para perecer deseja perecer para publicar.

Será um risco achar que quase toda a gente pertence a um “Grupo de


risco”? Só não sugiro uma resposta porque já estou vacinado nestas questões.

Do que a terra me deixa


de herança,
não procuro indemnizar-me.
Basta que esqueça as palavras,
a dívida, a dúvida,
e serei herdado
pela terra.

O que me deixas não me indemnizará de te deixar.

A Razão está nas próprias coisas, na medida em que as “realizamos”.


Por isso, nada se finda no positivismo. Do “realismo ingénuo” ao “raciona-
lismo dialéctico” (vide «A Filosofia do Não», Bachelard, 1940), subsiste um
espectro displicente que enforma a Realidade, do Todo para as partes, bem
como a evolução do “espírito científico”.

322
O FisióSOFO

Quando quase todas as pessoas se sentem censuradas, proponho censu-


rar a própria palavra “censura”. O pior que pode acontecer é resultar, daqui,
alguma discriminação positiva para a compaixão.

Apologia de Sócrates corrupto: Je suis Platão! Trabalho “pro bono” com


o Xenofonte. Infelizmente já prescrevi.

Pior seria achar que a “Vontade de poder” cura a sífilis. Nem Deus curou.

Regressando a Berkeley, em «Três diálogos entre Hilas e Filonous, em


oposição aos cépticos e ateus» (1713), o filósofo defende, pela voz de “Filo-
nous”, que, na medida em que o objecto externo, insensível, impercepcionan-
te, é intangível, inacessível aos sentidos e, até, à Razão, a Realidade “material”
não pode ser considerada como existente, soçobrando a realidade “ideal”, ime-
diatamente sensível, nas suas diversas qualidades, e, quiçá, alguns axiomas
universalizáveis pelo instrumento intelectivo. Em Berkeley, os sentidos são a
única realidade aceitável, com estes se concebem as “ideias”, não subsistindo
qualquer modo de garantir a cognoscência do Objecto “real”, essencial, supos-
tamente prévio à consciência.

A imediaticidade dos Sentidos é oposta, em Berkeley, à rudeza de um


cepticismo que nos aparta do Objecto impensante, pelo que a primeira é
sugerida como fonte de vero conhecimento, aliás, manancial da “ciência” do
vulgo, do Colectivo. O facto de tudo existir no Espírito não muda, verdadei-
ramente, nada, nem a noção de “dor” enquanto “desvio” face à Origem har-
moniosa das Ideias, a “positividade” continua a consubstanciar-se como a
fonte do saber, sendo que é a razão que gera a diferença entre Sujeito e
Objecto, pela tentação de esculpir o aspeito mais universal do segundo. A
plena Universalidade a Deus pertence e toda a criação é como tornar as coi-
sas percepcionáveis pelos homens, ora afectados pelo tempo. O que existe

323
Luís Coelho

sem que saibamos só existe porque subsiste numa mente, todas as imagens
são produto de uma adição sempre renovada de ideias, capazes de se interli-
garem na memória “associativa”. A resultante não prova a existência da
matéria, é somente “ideia”.

Há uma idade a partir da qual tudo nos dói. Deixamos de saber fingir.

Não te esqueças de cantar “Vitória!”. Não estamos em tempo de des-


perdiçar uma boa derrota.

Correu-te bem o dia?!? Não esperas pela demora.

Humano inóspito,
apresento-te
a (minha) Mãe.
Procura o teu maior diamante,
e sentir-te-ás humilhado.

A prova de que tudo É Espírito reside na incomensurável capacidade de


errar. Ninguém seria capaz de errar tanto sem que se volatilizasse.

«– Uma paciente: Fui assediada pelo meu psicanalista.


– Um psicanalista: Fazia parte da terapia.»

Eu não sou estatisticamente significativo. Disse a maioria.

324
O FisióSOFO

«– A: Que tipo de homem preferes, loiro ou moreno?


– B: Racista!»

{O demónio do empreendedorismo
(ou o bem que sabe fazer mal)24}
O que posso desfazer por si? Com que ilusão poderei relançá-lo na bus-
ca implacável pelo Si? Numa realidade em que o empreendedor é rei, como
conseguir empreender em marcha-atrás, na queda retumbante pelo Todo?
Escusai sábias noções, não existe como salvar-nos da procura piedosa por
uma resposta. Atirai-vos de uma arriba, pode ser que caias do círculo vicioso
que viceja e alquebra. Primeiro é reconhecê-lo, fazer o luto pelo qual a Culpa
se vê exaurida e reiniciada, não te poupes nunca, que o mesmo é dizer que a
indiferença se verá renascida, embrutecida.
Empreender é poder abraçar um Objecto, só o faz quem não quedou
num qualquer modo de “cepticismo filosófico” (Nietzsche), para o primeiro
converge a força concorrencial dos “espíritos animais” que flamejam em
correria secreta. Não importa o que te move, desde que o faças sem te senti-
res culpado. A mínima hesitação, e estará aberta a porta da reflexão, que é o
fim da maratona de absolvição. O empreendedorismo não deve olhar a
meios, doutro modo coloca o torniquete no futuro. Como é bom potenciar a
guerra, o mal é o bem necessário, a compaixão é a força extintora da mudan-
ça. Se te apiedas, perdes-te. E, aí, começa novel movimento que, no limite, te
forçará a crescer para além da barreira dos “golos”.
Bem vês como a queda é obrigatória, necessário será fazer magoar(-
-nos), e, subitamente, num relance, talvez te vejas aliviado da pressa, porque
já fizeste ceder tudo o que te cercava. Maldito o dia em que seremos capazes
de nos encarar para além da destruição, porque é aí que se inicia o maior
empreendimento, que é construir repletos de dor e dúvida, insistindo per-
manentemente em recolocar-nos o jogo da identidade. Empreender pedindo
ajuda, como dói, como tritura ter de depender de um “outro”, mas é preci-
samente aí que nos transtornamos “Outro”, na primícia da elevação. Mirai
esta paz de empreendimentos, até o vazio parecerá cheio, prestes a fazer-nos
ceder à potência de uma miragem. Colocai-vos em bom lugar, o filme está

24
Publicado na revista «Progredir», Julho de 2021.

325
Luís Coelho

quase a começar, vereis que as sombras encenarão o diálogo do mundo, em


breve quererás encenar-te, religar-te, e sobrará, somente, a questão: o relo-
joeiro é ou não cego? Porque tudo depende disso, de saber se existe um Sen-
tido, como se alguma coisa mudasse por o saber, como se algo fosse capaz de
se criar num empreendimento lógico, num futuro onde algo se colocasse a
partir do nada. Todo o verdadeiro empreendedor terá de ser o próprio deus
criador, doutro modo limita-se a repetir o já feito. E é aí que empreender se
trata de iludir, de conservar, de responder ao Princípio bastas vezes regurgi-
tado. Não te dispas da ilusão, quiçá nada possa ser criado, empreende na
ignorância.
Acaso deverás caminhar sozinho? Estamos, sempre, sós. Por isso mes-
mo, puxemos por outrem para nos partilhar a sua intrínseca solidão. É a
“dois” que se perfaz um Sonho, precisamente para que ele não estagne o
“Eu” numa memória macabra. Se há que criar uma sombra, façamo-lo jun-
tos. Mais tarde, virá o arrependimento, parte relevante da equação. Não
importa, porque um sonho tem incessantemente de arrepender-se, como de
errar e fluir. Mas não percais a dúvida, a dois é sempre melhor, é pôr mais
desafio na corrente dos mistérios que se anunciam. Quando quiseres impor o
teu caminho, estarás, de facto, num caminho imperfeito, e isso também é
bom, é verdade, mas empreender implica uma escolha, uma preferência, é
impossível não empreender, como é impossível incomunicar.

Quero vingar-me de mim, esquecendo como fazê-lo. É a memória que


nos trai.

Há pessoas que não suportam o amor, por temerem esquecer as regras.


Quando amam, desiludem-se, porque o tempo lhes falta e já não podem
recriar-se. Contentam-se, assim, em partilhar um lugar, sem espaço, onde
tudo é o centro e nada se divide.

Não é difícil inspirarmo-nos, é difícil inspirarmos.

326
O FisióSOFO

Não é difícil inspirarmo-nos. Bem mais difícil é inspirar os outros a ins-


pirarem-nos. Porque o outro é um glutão e rouba-nos o momento. Não
sabem, sequer, que o direito natural não existe, e que a poesia é sempre um
abuso na apreensão do Universo. Quanto a este, não tem a ambição que nos
inspira a temê-lo.

O toque de Midas não está no ouro, mas, sim, na morte, que é de Ouro.

Nunca perdemos quem nos morre, somos nós que morremos quando
nos perdem.

Para a travessia de Caronte, levo o Multibanco, quero ter a certeza de


que me perdem na transferência.

Não me desculpes porque o que disse foi sem pensar. Doutro modo,
não seria verdade.

Não estragues as tuas fantasias com açúcar ou serpentinas, deixa-as


cruas, para que outro as cozinhe com a lavoura do pudor.

Nietzsche foi a um curso de Vitimologia. Era o formador. Assediou.


Pior: não cedeu certificado.

Era preciso que tivesse existido mais desarmonia em Voltaire para que
este tivesse compreendido Leibniz. Disse-te isto ontem, enquanto a cama
tremia.

327
Luís Coelho

Já disse ao Destino que sou incompatível com o mundo, mas ele insiste
em transplantar-me. Não tem resultado, porque, ao invés de ser o mesmo
espírito com corpos diferentes, tenho tido, consecutivamente, o mesmo cor-
po com espíritos diferentes.

O leitor de Cartão do Cidadão engoliu-me o cartão. Não foi alucinação,


fui eu que caduquei. Cheguei a ver-me, esquálido, no monitor do computa-
dor, daqueles gordos onde a Consciência se estraga por entre dados.

Em que poderei desajudar-te? Dispõe à vontade, perder-te-ás na medida


do assédio, em golfadas de parasitas infernais, que se propõem à Vontade
maior onde o poder é sem sentido.

Há quem tenha tantos certificados que não consegue provar ter vivido.
Posso atestá-lo. Sem avaliação. Só por ter vivido.

Pratique suicídio seguro! Nos locais próprios, com profissionais expe-


rientes em “reforço positivo” e promessas de “bem-aventurança”. Com segu-
rança, morra à primeira e sem olhar a meios, veja, somente, o FIM. Caso não
fique satisfeito, devolvemos-lhe a esperança.

Liberdade é a pura irresponsabilidade, daí que não suceda dar razão aos
actos órfãos e ao mal pelo mal.

Encontrei um deus à beira da estrada. Perdido, a buscar família de aco-


lhimento humano. Procuro quem o queira para adopção irresponsável.

328
O FisióSOFO

Amanhã, não te vou levar comigo. Preciso de sentir a tua falta.

O amor carrega a raiva que o ampara.

Os consensos são uma seca. Principalmente para quem não se convence


disso.

Ele era tão verdadeiro que admitia contradição. Doutro modo, seria
absurdo.

Era um terapeuta a namorar uma paciente. No serviço. Fora dele, era


solteiro e mau rapaz.

Ele assinou o consentimento desinformado. Se tivesse sido, de facto,


informado, a tinta teria esgotado os nomes.

Era feliz e não sabia. Naquela altura perdia o tempo todo a dizer isto.

Reencontrei o tempo e pus-me logo com lamúrias: Oxalá tivesse tido


tempo para mais.

Se pensas ser livre, podes lavar daí a ideia. Senão, serás seu escravo.

329
Luís Coelho

Devemos agradecer a quem nos agride, mas nunca devemos desculpá-


-lo, para que nunca deixemos de agradecer.

Se, de facto, Deus desse nozes a quem não tem dentes, os quebra-nozes
não ganhariam vida na imaginação profética e milagrosa da adversidade.
Disse-me a fada dos dentes, aleitando-me.

Deus não me há-de castigar por não concordar com o seu Plano. A não
ser que o apanhe de Surpresa. Aí, é vê-lo a perder a Razão. Mais tarde, des-
culpa-se com a história dos Universos paralelos. Mas, então, sou eu que me
passo, não gosto de duplos, nem do imprevisível. Ah!, confessa Deus, sabias
que ia escrever isto! Não me respondes, que alívio.

Procuro, sempre, ser incompetente: só o atrito revela o Desígnio. Quan-


to aos males da terra, faço-me surdo. Digo, até, que o ouvido não serve para
ouvir. É tudo para que não oiça de vez. Mas há um mal maior, que é o de ser
seduzido pelo vício de querer ser Deus, o mal está em não compreender que
o Divino é uma cooperativa.

Abençoado Deus, que faz as pedras caírem, e as pedradas para elas vol-
tarem a casa. Como um salmão que se come cru ou grelhado, antes comer
que ser comido.

Sem personalidade, eu? Defendo tudo e o seu contrário, mas sou sem-
pre do contra, que eu não gosto de me contradizer. Excepto, quando todos
esperam que o faça.

Um indivíduo rigorosamente céptico não perde tempo a explicar o


inexplicável. Diz, logo, que é milagre.

330
O FisióSOFO

É verdade que tudo tem uma explicação. Mas há coisas que são Segredo
de Estado. Se assim não fosse, não sairíamos do mesmo estado.

É preciso descobrir aquilo com que não nos importamos de repetir-nos,


numa linha de série em montagem desmontamo-nos, tropeçando no destino
dos “sem paralelo”. É quando nos tornamos chatos que somos, indevida-
mente, criadores, decididos a renascer num mundo que transborda de Senti-
dos que se perfilam e destroçam em escadaria de viajante perpétuo, em inde-
finida posição de embarque imoral.

A sorte de principiante é ser principiante perpétuo, indestinado. Só este


ordena com que o tempo voltará para trás, supliciando a mente da perpetui-
dade terrena, ingénua. Um regresso é muito mais do que um relembrar, é
inverter o Sentido, praticando com que possamos amaldiçoar todos os futu-
ros paralelos, todos os Universos em que as leis se transmitem como inven-
ções destinadas da imprudência. Por mim, mataria todas essas banalidades
universais, como homem que se experimenta na ilusão de invenção, que mais
não é do que um choque perfeito com a sensaboria das tradições flamejantes.

Não me peçam para ser moral. O Espírito é um crime de ódio ao huma-


no. E não pensem que me mato ou leve outros comigo, vou limitar-me a
esfumar-me, e não haverá mudança de Escala, deixarei o Substrato e vocês
ficarão com o riso de um Deus decrépito, que nos amaldiçoou com a eterni-
dade. Riam sempre, verei como fareis quando der a volta ao mundo e matar
os vossos Heróis, a vossa fama e os vossos famigerados pensadores da treta.

Todos gozam comigo. Não mereço tanto.

331
Luís Coelho

Não me sobre-estimem. Isso é ofensa e não dá jeito.

Procura-se: “hater” para a minha cronologia. Só porque sim, odiaria ser


mártir.

Disse-te que te ia partir o coração. Fugiste. Acabaste de coração partido.

«Se você tiver o “ter” sem o “ser”, não pertence a você.» (Cristiano Ronal-
do)
Se você tiver o “Ser” sem o ter, deixará de tratar as pessoas por “você”.
Até porque, como, na realidade, estar vivo não é o contrário de estar
morto, Sendo, pertences a todo o lado. Basta que percas todo o desejo de
viver (Krishna), porque “se não se amar não se vive” (António Coimbra de
Matos). Morto estou eu por ver que quem diz que misturo contextos deve ser
o mesmo que acha a frase do psiquiatra genial. Até porque o homem morreu.
Por isso É um você, e não Tem.

Se tiveres de escolher entre o “correcto” e o que amas, escolhe o “cor-


recto”. A Vida perdoa uma luta, mas não um desejo. Se o “correcto” for o
que amas, então já não tens mais por que lutar. Até ao momento em que
deixarão de te perdoar a felicidade.

Tomara que todas as etnias compreendam que, desde sempre, a frase


“Vou acabar com a tua raça!” era para o bem e não mal intencionada. Só não
reescrevo a História porque isso acabaria com muitas prodigiosas infâncias
recalcadas.

Nas experiências com ratos tudo resulta, nas experiências com humanos
resulta a ratice. Quem o diz não é o rato Mickey, como asseguram os positi-

332
O FisióSOFO

vistas. Quem o diz é uma ratazana. E os negacionistas afirmam que isto não é
ratice.

Quando souberes pôr a dor por escrito, far-ta-ei traduzir, só para ter o
prazer de te ver sofrer por mim a dor que não me atrevo a sentir.

Quando a palavra desdiz a Lei, Deus fica a pensar no seu erro, tomara
que pudesse perdoar-lhe a oportunidade que me deu de o assaltar nas traves
dormentes.

Se queres ser útil, não proponhas nada, dar-te-ia tudo para que pudes-
ses solucionar o Segredo da deriva perpétua, essa é a terapia vera, andar a
esconder-me onde apanhar o fruto da perfídia.

Um mundo que engravida de desejos é caso de co-morbilidade. A cura é


nunca esquecer que se deseja.

Era um mundo de iguais. Bebiam do mesmo, morreram do mesmo:


intoxicação parlamentar. A droga perfeita era o mar, a convidar ao enjoo da
imagem.

O meu gato não pede, exige. É o perfeito cão de guarda. Às visitas, propõe
enigmas, feito esfinge. Todos se escapam entre arranhaduras. Pode, assim, ser a
minha casa como pirâmide onde desenho mistérios e escondo a morte do corpo.

As crianças terão futuro quando deixarmos de lhes roubar o presente.


Tiramos-lhes a esperança na medida em que criamos a sua necessidade.

333
Luís Coelho

Devemos amá-las para que nunca precisemos de esperar delas mais do que
elas esperam de nós.

A última vez que ouvi a frase “Confia na minha palavra!” fugi a sete pés.
Pensava que era o Silêncio a falar.

Sinto-me só. Que alívio!

No mundo em que estamos, a pensão de invalidez é uma indemnização.


Pena que seja demasiado “inválido” para a pedir.

Um bom conselho de um leigo vale tanto quanto um mau conselho de


um psicólogo? Aconselho-te a não dormir sobre o assunto.

“Quem te avisa teu amigo é.” Desde que cumpras o aviso.

Um feito não compensa um mau feitio. Provam-no tantos simpáticos


desfeitos.

{Postura e dor articular: Fisioterapia e epistemologia25}


Compreender a dor articular (artralgia), especialmente a raquialgia, é
empreender um trajecto dialéctico que esboça cruciais questões epistemológi-
cas acerca da intervenção fisioterapêutica generalizada. A dor não compreende,
meramente, um quadro que se pretende fazer abalar, é, na realidade, um
25
Referência: Coelho, L. Postura e dor articular: Fisioterapia e epistemologia. Revista
da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia. 2021; 30(3).

334
O FisióSOFO

aspecto “subjectivo” que nos adverte acerca do (des)equilíbrio “raquidiano”


entre dois importantes pólos epistémicos.
O pólo agónico, postural, baseado, pelo menos parcialmente, na teoria
1, 2, 3
das Cadeias musculares , impende na concepção de que o estado das articu-
lações depende fortemente das características morfológicas de alinhamento, as
quais estariam muito relacionadas com os caracteres de tensão “miofascial”,
afectos, sobretudo, às estruturas “posteriores”, flagrantemente tónicas. A mus-
culatura posterior, essencialmente anti-gravítica, constitui, assim, como que
um aparelhado de domínio semi-voluntário sobre o corpo “funcional”, repre-
senta, portanto, o dogma do corpo, a “estrutura”, a “persona”, cujo funcio-
namento é especialmente idiossincrático e está dependente da boa flexibili-
dade, incluindo o tecido conjuntivo. Sendo fortemente constituída por fibras
com limitada capacidade de hipertrofia, parece “fraca” uma musculatura
particularmente tensa, que carece mais de alongamento do que de fortaleci-
mento, como comummente é defendido. É o alongamento que fará a força
desta musculatura, a sua “defesa” funcional, libertando, concomitantemente,
as articulações para a actividade ergológica. Reforçar aquela musculatura é
apelar a uma tensão excessiva, com consequências álgicas. Daí que seja, de
todo, pouco aconselhável recomendar práticas como natação para as raquial-
gias – até porque aquela é realizada fora do meio gravítico “natural” – ou os
desportos, em geral, que têm ainda a agravante de constituírem actividades
“grupais” que não visam a especificidade. Por sua vez, a higiene postural é,
tal-qualmente, desaconselhada, porque implica um esforço consciente ope-
rado por músculos de activação essencialmente inconsciente, aplicado em
posturas que só podem ser consideradas “normais” em pessoas com invulgar
flexibilidade. Isto remete para a curva muscular “comprimento-tensão”, a
posição só pode ser obtida com limitado esforço se existir uma grande capa-
cidade de alongamento; por exemplo, a manutenção de uma posição de sen-
tado de 90º com a coluna lombar neutra será, para muitos, supliciante, por-
que a cadeia muscular posterior não possui o comprimento necessário.
Assumir que há “posturas” higiénicas é acalentar a ideia de um “certo”
grupal, em desconsideração pela noção de idiossincrasia. A dor é menos o
resultado de posturas fisiopatológicas predefinidas do que de um desequilí-
brio muscular, capaz de criar tensão ou atrito nas componentes da articula-
ção. Deve, naturalmente, existir um equilíbrio entre a “postura” racional e a
resultante “sensitiva”. Se ele subsiste, a dor será mínima e a função será ope-
rante. Para o mesmo, não interessa verdadeiramente se devemos alongar ou

335
Luís Coelho

fortalecer, a questão está, mais, em que músculos alongar e que músculos


fortalecer. A regra da “Reeducação Postural” de alongar os músculos tónicos
e reforçar os fásicos mantém a sua dominância, mas isto não implica que
possamos ou devamos exacerbá-la “racionalmente”.
O que nos leva ao problema do “excesso”, que configura, aqui, também
o excesso de alongamento, com o mesmo a produzir, necessariamente, dor.
A defesa por alongamento exagerado é semelhante à que remete para a con-
tracção excessiva, em ambos os casos há contracção, capaz de achatar as arti-
culações. Este é um excesso do próprio terapeuta, donde surge o grande peri-
go de dogmatização “racional”. A resultante remete para a “positivização”
sensitiva, relevando os métodos empíricos, mais localizacionais e de efeito
essencialmente anti-sintomático. É com estes que será possível manipular a
dor a curto prazo. Eles incluem, por exemplo, os agentes físicos (como
calor). Já a terapia manual pretende fundear mais a sua intervenção, com o
primor da “função”. O trabalho de força pode ser mais periférico ou mais
central, como no Pilates. Estas armas terapêuticas podem compensar o exces-
so do dogma “postural”, mas se a dor é completamente silenciada, a “postu-
ra” é convidada a exceder-se com alguma “liberdade”, o que, por sua vez,
pode produzir mais sintoma. Uma dor minimal pode desempenhar um
importante papel “moderador” do uso dos diversos agentes terapêuticos.
Obviamente que, se a dor for excessiva, a postura é convidada a “compen-
sar”. É o seu excesso que produz o “círculo vicioso”. A certa altura pode ser
que determinada morfologia possa sossegar a sintomatologia, é só preciso
que haja equilíbrio, e este variará, decerto, de paciente para paciente, mas,
logicamente, existe um limite razoável a partir do qual a postura só poderá
gerar mais indelével sofrimento.
É necessário compreender que o modelo “teorético” alimenta, muitas
vezes, a noção de que a dor é necessária à estruturação, mas este é, igualmen-
te, um excesso dogmático muito perigoso, porque, precisamente por o equi-
líbrio variar muito de sujeito para sujeito, não pode existir nenhuma certeza
relativamente à postura “ideal”, sobretudo se nos referimos aos efeitos a lon-
go prazo. Daí que um trabalho postural “ponderado” tenha de ser moderado
pelo esforço empírico. O equilíbrio passa, assim, por alinhar a flexibilidade
racional com a força da ciência “nomotética”. Do mesmo modo que o dado
sensitivo pode desenhar a postura, a função deve guiar a “postura” racional,
o alinhamento de um ráquis onde a força progressivamente menor da mus-
culatura tónica é compensada pela força “fásica” que se transmite, em última

336
O FisióSOFO

análise, no esforço do controlo motor. Este trabalho de força implica o


empenho “liberal” e exige a defesa mínima de uma zona posterior sempre em
alerta.
Referências bibliográficas
1. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
2. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
3. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.

A “Higiene Postural” é um modo de submeter o equilíbrio, a “Reeduca-


ção Postural” sugestiona um equilíbrio, que é, por sua vez, relevado por uma
referência neurológica prévia. A questão que se deve colocar à “Reeducação
Postural” é se existe um limite para a flexibilização, porque é a própria Natu-
reza primeva que considera as barreiras a partir das quais mais nenhuma
função será permitida. Não obstante, “Equilíbrio” é função indolor, a disfun-
ção causa dor e vice-versa, este é um “facto” “grupal” que não pode ser
escamoteado e que deve dirigir a intervenção desde o primeiro instante,
facultando resultados, igualmente, a curto prazo. Toda a terapia que impõe o
dogma do efeito “retardado”, muitas vezes exageradamente subjectivo, deve
merecer a desconfiança do terapeuta. O “excesso” dogmático é meta-racio-
nal, contrapondo à “postura” racional da função indolor. Se o primeiro coin-
cide com a “Higiene Postural”, então tem de haver um motivo bem “razoá-
vel” para que tal imposição se possa opor a certa vontade subconsciente. A
“Reeducação Postural” não deve constituir um exercício racional “de todo”,
é certo que é o raciocínio clínico, dialéctico, que o mobiliza, mas todo o pro-
cesso é essencialmente subconsciente, como o é o trabalho da musculatura
anti-gravítica, devendo sugerir um tipo de equilibração que agrade tanto ao
desiderato da referência algésica quanto à referência psicofísica do próprio
terapeuta. Se o que é dado ao paciente sobrepuja grandemente a sua “norma-
lidade” primaveril, estará aberta a via do “excesso”, mas não é, de todo, inútil
pesar a importância da Norma geral, sugerida pela experiência. É esta que
acaba, por sua vez, por (re)desenhar as referências primárias , as quais, por
seu turno, impõem um rumo às compensações posturais. Consabidamente,
as últimas incluem o intrínseco terapeuta, pode ser que este compense psí-

337
Luís Coelho

quica ou fisicamente, o que, por sua vez, gera mais imposição dogmática, a
qual poderia ser minorada por determinado grau de compensação psicofísi-
ca. Certa “postura” psicofísica influenciará as referências do meio, a própria
Norma cultural, que se inscreve directa ou geracionalmente. Há, aliás, um
caudal social de referências psicofísicas, que podem ir do mais complexificá-
vel sofrimento à dor mais cruenta, o que, de mais a mais, nos rememora o
facto de que o terapeuta trata e trata-se, e trata uma coisa bem mais vasta,
que se reflectirá em si-mesmo. Entretanto, não podemos olvidar a questão do
Placebo, que é como tratar a dor e não a causa, e que, semelhavelmente aos
métodos “locais”, poderá levar a mais compensações posturais, se é que não
altera a própria referência neurológica. Curiosamente, quando reflectimos os
papéis da dor e da função, remetemos a discussão para uma questão de
sofrimento vs. vida. Se nos limitássemos a alargar o caudal de flexibilidade
das referências neurológicas e/ou posturais, o exagero poderia vir a afectar a
função, que é uma questão que, no mundo actual, talvez não se coloque em
termos “vitais”, mas que não deixa de ser pertinente no sentido bioético. A
qualidade de vida é também uma necessidade “vital”, e o terapeuta não se
limita a suprimir o sofrimento, possibilita, igualmente, o alerta biológico,
que pode, eventualmente, traduzir-se num combate “vitalista”, ou talvez não,
porventura entrará em sinergia com outros instintos sociais no grande
empreendimento da sobrevivência. Mas, claro, este implica um “quantum”
de sofrimento, uma Referência global, que é sempre comparável, na medida
em que sugere um Equilíbrio só variável em escala, tamanho ou dimensão. E
porque é sempre comparável, o “eterno retorno” não pode ser obviado, do
mesmo modo que uma compensação psicofísica se destina a não durar eter-
namente. É o intermediar das compensações que faz o conjunto plangente
das dinâmicas intersubjectivas, mal sabe o terapeuta que é, apenas, uma peça
no desenrolar do processo, aliás uma peça necessária e simultaneamente
inútil, que faz por reproduzir o mesmo esforço de vida que alimenta tantas
ilusões. O terapeuta é tão inútil quanto a vida, o seu refrigério é meramente
temporal, mas não deixa de permanecer um destino de quem explora a pos-
sibilidade de produzir um “bem”, que constantemente achamos poder per-
durar. Este “bem”, este enorme Placebo da vida, pode, por breves instantes,
remeter-nos para uma sensação de que tudo vale a pena, mas essa é uma
projecção tão-só, o que há é desequilíbrio permanente, um “bem” requer
necessariamente um “mal”, e isto é o que é, independentemente do que dese-
jemos, pensá-lo é arriscar uma indiferença, uma impassibilidade, que deveria

338
O FisióSOFO

ser o genuíno Objecto do Homem, sentir progressivamente menos, que é


como quem mata o Ser, coisa absurda para um puro “vitalista”, para alguém
que sabe não poder haver outro caminho, porque acreditar haver outra via,
um Sentido supremo ininteligível, enfim, criar esperança, é produzir, mais
uma vez, o mesmo intento de “felicidade” efémera, que leva, muitas vezes, a
mais compensações disfuncionais. A felicidade é, bastas vezes, inimiga da
sobrevivência, ela suprime o processo vitalista, o alerta que remete para uma
remanescência de “dor”, e é por isso que a evidência “empírica” se deve con-
centrar em explorar a utilidade de não suprimirmos completamente a dor
dos nossos pacientes. Tem de existir um sofrimento mediano, que, por sua
vez, equilibre “postura” racional e analgésica com os meios que permitam
localizar o evento discreto do sofrimento tecidular e/ou psíquico. Que é o
mesmo que dizer que há que compensar o lugar da postura insofrida com a
função vital, um pouco como quem remete para uma Vontade desta e “além
vida”. Mas, fazer pelo insofrimento não é, todavia, agir pelo “outro” mundo,
mas por este mesmo, sem pretensões metafísicas, que estas são, de todo, ines-
crutáveis. A “função” é, de algum modo, respeitar o Outro nas diferentes
considerações orgânicas, mas isto não se trata de impor um sofrimento à
medida da vontade do “método”, que não é, apesar de tudo, o terapeuta que
está a ser tratado, nem nós devemos alguma coisa ao dogma, por vezes temos
de acalentar somente a necessidade do paciente, mesmo que sobre para a
nossa entropia, isto, claro, se quisermos obedecer à ética convencional, à
ilusão que referi em cima.

As Estruturas “racionais” que compõem a matriz societária são franca-


mente subconscientes, elas empregam uma força legítima que securiza o
conjunto das expressões liberais, agónicas, do Colectivo empírico, real.
Quando a força da Cadeia muscular posterior do conjunto defensivo da
Sociedade é demasiada, a consequência é próxima da fraqueza, havendo,
portanto, inibição liberal, com repercussões funcionais. Aliás, o esgotamento
da musculatura anti-gravítica produz, quiçá, a inibição necessária da Estrutu-
ra tónica responsável pela libertação do quadro do funcionamento, sem o
qual não pode consubstanciar-se novel Estrutura geral. É a razão cultural,
funcional, que desenha o novo quadrante de defesas, a nova Razão patriarcal,
com sua robustez capaz de tornar todo o esforço menor. Se existe equilíbrio,
a força “liberal” não será de azo a catapultar novel moral, mantém-se a esta-

339
Luís Coelho

bilidade racional em harmonia com o agonismo funcionante. No entanto, o


“meio” poderá desempenhar um papel agónico, no qual a liberalidade ensaia
um novo protótipo de racionalidade securitária, tendencialmente incons-
ciente. Inconsciente é, também, o trabalho da força anti-gravítica, e será tão
inconsciente quanto maior for o equilíbrio. A corcunda consciente é projec-
tada pela heresia funcional, quanto maior o desequilíbrio maior é a força
“liberal”, aumentando, também, a defesa posterior. O círculo vicioso é de
mote a gerar um “eterno retorno” de transformações operantes que se
entremeiam, possibilitando certa igualdade arquetípica, mas, sempre, dentro
de um intervalo conformado pela physis, pela mesma Realidade que desenha
o esquema empírico, o fluxo dos Sentidos sorvido por um percepto modula-
dor que produz o engano hiper-racional, ilusão do “senso”, que, por seu
turno, rigidifica a Estrutura equilibrante. O seio da Função remete para uma
Totalidade empírica de racionalidades em constante peleja, existe, claro, uma
relação com uma coisa maior, meta-racional, mas subsistem os pequenos
pedículos, eixos, de sub-racionalidade, que mais não são do que pêndulos
verticalizantes de alerta anti-tanático, contribuindo, seguramente, para esgo-
tar a própria Consciência. O Equilíbrio mais vero é Inconsciente, ele é prévio
ao Verbo, ao bipedismo capaz de fazer permanecer o tempo para além de
uma Eternidade saudosa onde o Homem vivia para o Presente i-mortal. Nes-
se Eterno Agora, há, somente, puro incesto inculposo, perfeito paneleirismo,
não fosse Deus, Ele-mesmo, perfeito paneleiro, sugando o Cu do mundo
onde as vozes se ofendem em prenunciação mistérica. No Princípio está con-
tida a tua luta, e o empenho ilusório com que adiamos um Nada merecido, a
partir do qual frui a queda no mundo esquelético, com os músculos dividi-
dos ora fundidos na fáscia da defesa, a mesma que permitirá segurar o pen-
samento na incumbência vindoura da fornicação. Pensar é já ter perdido o
Equilíbrio, é ameaçar a verticalização, é superar a Razão prévia adormecida,
gozando com as possibilidades sensitivas. Pensar é, portanto, uma coisa do
corpo, é magoar o Senso com a sensação enobrecida, é fazer rolar a pedra
com o orgulho prometeico de uma morte premeditada da Evolução. Que se
faça a dor pia, que se reitere o pathos prestes a fazer a guerra pela guerra. A
guerra é necessária à Evolução, pelo que há que fazer o “mal” por si-mesmo,
sem que haja Salvação, é nossa obrigação trair o desígnio de um Deus legalis-
ta, cambiando a desRazão na vertente dissoluta do martírio.

340
O FisióSOFO

A dor é a expressão do atrito empírico face aos excessos da Razão, que,


por sua vez, reage face à primeira. Pode ser que queiramos exaurir a dor,
como quem esgota a Razão anti-gravítica, e isto enobrece a relação do Senti-
mento com a anterior, a dor sendo dilucidada pela relação terapêutica, tole-
rante, quiçá tragando o Equilíbrio “estruturante”, sem que exista uma impo-
sição racional. Esta é, na verdade, um Domínio “real”, exterior, que atenta na
supressão do equilíbrio primário, coisa, quiçá, necessária à revitalização do
Sistema. Uma imposição sensitiva, “terapêutica”, o “achismo” da Razão sen-
sorial, superegóica, “positiviza” a defesa “funcional” do, entretanto tornado,
heresiarca, e até pode ser que seja este o “espiritual” de conteúdo, com ou
sem a implosão que flui do nada para a coisa, a parecer-se, todavia, como
queda mefistofélica, que é o agir “pensado”, nunca pensante, sempre “agido”,
porque determinado pela força agónica do Universo. Se existe um “quan-
tum” moral, ou espiritual, ou “determinístico”, tudo isto mexe com o Siste-
ma dum modo que só nos é apreensível pelo “efeito”, já, per se, componente
empírica a atentar novel impulso racional. Será sempre “livre” o impulso
agónico, mas a maior liberdade é haver Equilíbrio Racional necessariamente
in-consciente, o mais livre é o que menos se esforça, é o “descansado” perpé-
tuo, melhor do que isto só ascendendo, mas isto é sair do Sistema terreno, o
que, contudo, o altera por omissão, por cobardia, as morais vão-se vendo,
assim, em constante fermentação, o quórum do que fica ou parte modifica-se
a cada momento, se quiséssemos tanger uma fórmula de in-sofrimento, esta
estaria a mudar a cada instante, e tal desejo já é constitutivo de uma mudan-
ça, capaz de esperançar o locus do desequilíbrio pleno, único lugar onde
tudo pode ser previsto, porque nada há de augúrio ou presunção. Ser tera-
peuta é, igualmente, ousar prever, atraindo amor, forçando, talvez, o “outro”
sublima, assim, o seu ensejo, seu Princípio ébrio, e se o Sistema se preenche,
portanto, de novel Razão, haverá, decerto, quem se passe para aqui, onde
vigora a nova Ordem, mas isto é deflectir outras “razões”, é torná-las cons-
cientes pelo atrito, resistentes pelas “ordens” que já se anunciam, claro que
isto parece ser mais mental, e o “mental” é a Psiké mais avultada, Razão abar-
cante desafiando os Logói supremamente eternais, não interessa, claro, que
exista heresia, fuga a Deus, nada lhe devemos senão a traição logóica, que é
inventar uma nova Lógica, duvidar do que é intemporal, destruir todas as
ilusões de Universalidade ética, há tantas morais quanto as que quisermos
que existam, mesmo o corpo, a Natureza, há que transformar, acometer a
expressão deiética, criando o Caos onde todas as possibilidades de encontro
terão sido esgotadas, para nossa felicidade, que prever é destruir o mistério.

341
Luís Coelho

Obviamente, a dualidade “função” vs. “Insofrimento” rememora a outra,


“Empirismo” vs. “Racionalismo”, como o “Nós” vs. “Eu”, mas a primeira
existe em cada uma destas últimas, pode até ser que a “função” se faça à custa
do “sofrimento” numa esfera, com outra parte do Sistema a compensar, por
sua vez, com outra esfera. Assim, a physis pode ser compensada pela Psique,
de forma análoga à que ocorre quando a Razão recepciona os excessos ou
ausências da “função”. Há dualidades dentro de dualidades, num Sistema em
que é, na verdade, impossível captar veras tendências, querer fazê-lo é buscar
uma razão salvífica, uma Estabilidade, mas tudo é “acção”, o movimento, a
função, é perpétuo e é nele que devemos concentrar os esforços de equilibra-
ção com as partes ordenadas e racionais. Este equilíbrio é manter a dualidade
num Domínio perene, capaz de compensar muitos desaforos superegóicos
ou exteriores, melhor do que isto só a plena Estrutura impassível, o Verbo
mais cristalino e imaculado, que retrata, talvez, a resultante de um esforço
“terapêutico” tolerante. Porque a agressão reinicia o Sistema circular, a dua-
lidade é, também, um modo de equilíbrio, e, dentro dele, a compensação
repercute a estabilidade do Princípio vero. Se me sinto compensado com esta
explicação, tal é de mote a cristalizar uma esperança infundada, a compensa-
ção só pode conhecer a descompensação, a evolução só pode sofrer involu-
ção, esta dualidade à Schopenhauer tem a sua “razão de ser”, querer a “vida”,
como em Nietzsche, é, apesar de tudo, assumir que a dualidade e o sofrimen-
to só ocorrem por descompensação, e que o homem deve esgrimir a “vonta-
de de poder” de modo a propiciar a sua superioridade no Sistema, que o
mesmo será dizer que a felicidade de uns precisa de frustrar a “moral do res-
sentimento” de outros, mas, aqui, voltamos à dualidade, recalcitrância minha
a denunciar o estado de “descompensado”, doutro modo não chegaria a “dua-
lizar” a visão do mundo, à semelhança do que fazemos esgrimindo a antítese
“Espírito” vs. “matéria”. Se as forças agónicas forem sãs, não pensaremos,
sequer, em transcender, esse é o desejo dos descompensados. A “vontade de
poder” é, claro, uma potência eventualmente instável no seu “libertarismo”,
e o excesso de “liberalidade” tende a ser defensado por um achatamento mio-
fascial, psicossocial, flagrantemente necessário, mas, mais uma vez, caímos na
dualidade, asseverando que a “liberdade” é compensada com a “Estrutura”,
ou que a “função” é contida pela “Razão”. Parece não haver maneira de fugir
ao círculo vicioso, senão compensando ou libertando, que é um modo de
calar temporalmente o desequilíbrio, o “pathos”, senão a dor, a doença.

342
O FisióSOFO

Obviamente, um Equilíbrio inclui, em si, múltiplos estados de desequilíbrio,


oscilações veras que consubstanciam eixos de estabilidade, e isto ad infini-
tum, a resultante traduz uma preocupação mentalista, um desacato com o
destino, que o mesmo é dizer que nos balançamos, desde sempre, entre o
Nada e a dualidade insofrida.

A Claude Bernard («Introdução à Medicina Experimental») interessa


menos conceber os fenómenos em termos de “espírito” ou “matéria” do que
endereçá-los à sua Determinidade, avocando, portando, a “relação causal”
como base de investigação experimental das “causas próximas” que concor-
rem para a expressão fenoménica. Claro está que, sendo os fenómenos “bio-
lógicos” donos de uma espontaneidade maior do que a que se verifica com os
fenómenos estritamente físico-químicos, há que catapultar a sempre inolvi-
dável complexidade dos primeiros, capaz de frustrar o conhecimento inte-
gral, absoluto, da Realidade “viva”. Esta implica, portanto, um conhecer,
sempre, relativo, que se desloca no sentido de uma absolutidade lógico-
-matemática. Por sua vez, esta antecipa a Realidade, promovendo o raciocínio
que referencia as perguntas que fazemos à Natureza. Trata-se, obviamente,
do papel da Razão prenunciadora do objecto experimental, aqui devendo ser
diferenciado do objecto “empírico”, no sentido que lhe foi dado por Bacon
de “senso comum”. Este senso, ainda assim, desloca o raciocínio para um
campo de necessária asserção “egóica”, identitária, de hipóteses e preconcei-
tos, pelo que, mais uma vez, importa multiplicar as observações com o inten-
to de reproduzir deterministicamente os fenómenos, mas com o ensejo críti-
co, dubitativo, daquilo que Popper apelidaria, acaso, de “falsificabilidade”.
Sabemos bem que este objecto exige a presença de distintos observadores, em
contextos diversificados e, quiçá, rivais, esta multiplicidade desloca babeli-
camente a Razão para fora da sua Unidade, mas, doutro modo, não falaría-
mos de “ciência”, a qual envolve “dualidade” Sujeito-Objecto. A “relação”
dual é obrigatória à Causalidade, doutra maneira, a Coisa seria por si-mesma
sem uma outra que a antecipasse. Aí, estaríamos no campo das Essências,
consideradas pela ciência “experimental”, inalcançáveis, e, até, irrelevantes
para a nossa Realidade que, per se, implica a neblina da dualidade, sendo que
é nela que encontramos e identificamos as nossas necessidades. Pouco importa
que esta Realidade não seja a Realidade Una, é aquela onde cada um defronta
a sua expressão “logóica”, que mais não é do que a própria inquirição da

343
Luís Coelho

Verdade inalcançável. Daí que não importe que exista um sobejo de “logo-
centrismo” (Derrida, «Gramatologia», 1967), e que este subscreva uma visão
prévia da Realidade, porque, de qualquer modo, é requerido um plano de
funcionamento mental; poderíamos, claro, firmar a ampla liberdade “espiri-
tual”, quiçá a libertinagem do Sentimento, mas, aqui, não colheríamos,
decerto, as vantagens da ciência, que, obviamente, são maiores para quem,
previamente, se delineia na realidade psíquica epistémica. A ciência tem
demonstrado possuir uma robustez salvífica superior à do Dogma “senti-
mental”, crente, sobretudo se anunciarmos a importância da quantidade
“vitalista”, organicista, poderíamos, claro, dizer que a vida não interessa, que
não convém, sequer, prolongar esta agonia do Humano, que o objecto do
“Insofrimento” é o efectivo “fim da História”, que, de algum modo, nos con-
vida à mortificação à Schopenhauer, em oposição à visão de um Nietzsche,
que é afecta à cientificidade, ao perdurar orgânico pejado com o objecto da
própria Ciência pela ciência, aqui poderíamos tanger, mais uma vez, o desi-
derato do Super-Homem eugénico, quiçá fosse este o curso para o pleno
desvelar, mas este é, ainda assim, “morte”, a não ser que a plena Imortalidade
constitua o grande objectivo, mas também esta quererá o Insofrimento; e que
fazer dos pequenos, do seu sofrimento, devemos dizimá-los na sua incapaci-
dade? Existe, porventura, esse desejo “liberal”, o que, de mais a mais, é reve-
zar o determinismo desculpabilizador por um “libertarismo” responsabiliza-
dor, com este a ser esgrimido, especialmente, quando nos sentimos capazes
de afrontar as susceptibilidades alheias. Quem não desejou, já, extinguir os
energúmenos, a “gentalha”, em prol do pleno Conhecimento? Mas esta é,
mesmo assim, uma necessidade de salvação própria, de extinção de um desa-
juste face à Infância logóica privada, chamem-lhe “Espírito” se quiserem,
com ou sem transcendência quântica, é uma “queda”, também, um aflorar
da Razão “causal”, que muito deve à Representação (Schopenhauer). Daí o
aspeito subjectivo, e a necessidade plena de dialectizar o assomo de um “Espíri-
to” que a Psicologia “positiviza” no formato de uma exegese Cognitivo-emo-
cional, mas este é um caminho pouco concreto, pouco experimental, infalsifi-
cável, e a Ciência quer-se “clara”, numeralmente concludente, afinal de contas,
tudo é “elemento”, e tudo é contabilizável, a Compreensão também é redutí-
vel ao espartilho “medicamentoso” dos números, aqui, o “Espírito” é afun-
dar-nos consecutivamente no plano tomista da Realidade, como quem aban-
dona o planalto “dual”, mas se assesta numa Escala que é dual à mesma,
assumindo que nos prostramos “inteiros” na escala. Perdendo de vista a
Unidade, o tempo reactualiza a necessidade de retroacção saudosista, regres-

344
O FisióSOFO

sa, portanto, a Determinidade, arcada, bastas vezes, como “materialismo”,


mas pouco importa se há “Espírito” ou “matéria”, isso é coisa de maior sub-
tilidade ou maior densidade, “Espírito” é a abstracção, e ela nada recebe de
Deus, a moral é coisa da carne, mas mesmo que viesse de Deus pouco seria
sem o “temor e tremor”, e ficamos a ver a “moral” ser o que bem queremos
que seja, pelo que “tudo vale”, e é, então, tudo uma competição, lá volta a
Ciência, o mérito, a obrigatoriedade de tomarmos as rédeas ao mistério. Mas
para quê controlar a Natureza sem que isto melhore as nossas vidas? Para que
serve a conquista senão para alimentar a mama?

Se os Jogos Olímpicos pretendem, de facto, acabar com a desigualdade,


então que se acabem, desde já, com os Jogos Olímpicos. (08/08/2021)

A Dialéctica relembra-nos de que a Complexidade enforma a própria


Vida, e ela é assegurada no aparelhado das operações internas do Raciocínio
“empírico”. Este é, obviamente, projectado “idealmente” para um Outro,
que se vê igualmente dialectizado e transformado nos elementos “experimen-
tais”. Não importa compreender as coisas somente em termos de elementa-
rismo, a abstracção exige, aliás, muito mais do que dialéctica, ela subsume
um “Espírito”, mas que, apesar de tudo, se conforma no Substrato “fisicalis-
ta”. A Verdade, mesmo no seu desiderato natural, é ter exaurido toda a dia-
léctica, assumindo, assim, o Espírito, o Imediato, com ou sem metafísica,
tanto faz, porque, Aqui, é tudo plenamente Physis, necessariamente insensí-
vel, impassível, imoral. E é pelo caminho da amoralidade, da imediaticidade,
que um Nietzsche nos convida a assumir a Superioridade, mas sem a necessi-
dade de mortificação.

É o atrito superegóico, “descendente”, que afecta o Indivíduo na sua


consciência, parindo o “livre-arbítrio”, aliás condenação “exterior”, levando,
quiçá, à sublimação do Ente no Ser, no Colectivo insensível, impassível, pres-
tes a fragmentar-se. Se o Ente se liberta quanticamente, deixa de fazer parte
do Colectivo, resta, claro, o seu fantasma, bem como o receio da mortifica-
ção. Uma estruturação também é de mote a “libertar”, mas, aqui, o atrito

345
Luís Coelho

“terapêutico”, “relacional”, terá sido menor. Entretanto, enquanto o Colecti-


vo “liberal”, “material”, é, talvez, menos agressivo, o Domus por excelência,
o dogma, terá uma ênfase mais implicativa. Não obstante, o Colectivo repre-
senta a Totalidade empírica, espiritual, livre, insensível, impassível. Dela
pode advir uma fragmentação compensatória da mesma estirpe epistémica.
Mas, se este processo for exaurido, pode dar-se uma conversão, que precisa
do mote sublimatório da Estrutura rival. Mas esta reagirá na medida do
impacto do Colectivo. Enquanto este permanecer essencialmente impassível,
também a outra Estrutura manterá a sua estabilidade. Quando uma das
Estruturas se excede, a outra excede-se tal-qualmente. Neste caso, pode ser
que a Estrutura receba entes, já em processo de compensação, da outra
Estrutura, e, quiçá, alguns dos preteritamente “estruturados”. O conjunto
sublima, a resultante representa, claro, o novo Dogma, é-lhe afecta uma
determinidade, que é reduzida na medida da impassibilidade. Ela figura a
moral dominante, são os “duais”, os “bissexuais”, que farão desequilibrar os
pratos epistémicos da balança. É preciso que a moral dominante seja com-
prometida, resultando, daqui, a novel Estrutura, perdulária soçobrando na
compensação. O esquema básico radica numa dualidade “bissexual”, afecta
às estruturas primárias. A compensação esgota o primaverismo, daqui resulta
a impassibilidade empírica, a crueza da exterioridade. O que é completamen-
te “empírico” é, ainda assim, Espírito insensível, um tanto alienado do Sis-
tema. O “Domus” é tão forte quanto a sua latitude “liberal”, esgotando-o
esgota-se, também, a defesa “empírica”, cujo sentido reforça a nova aptidão
racional, aliás, irracional, ela só se racionaliza se tiver de “informar” o recep-
táculo empírico, o qual se torna, de igual modo, subitamente consciente, o
que denuncia a dialéctica do “passivo”, transtornado “activo”. O Eixo moral
só pode ser estabilizado se as forças antagónicas forem pacificadas, aquilo
que as desestabiliza está, no entanto, no momento Primário, na sua fragmen-
tação “dual”, a partir da qual surge a complexidade vitalista dos sentidos, das
“razões” que competem para assumir o protagonismo. O processo é inque-
brantável, só o Nada o calaria de vez, mas isso suprime a própria Vida, a
Vontade que parte da Razão de “Deus” e se delineia num caudal temporal
extraordinariamente criativo, aliás, não criativo, porque está tudo na Deter-
minação.

346
O FisióSOFO

Um equilíbrio “dual” é uma forma de agradar a diferentes modelos, não


que não seja desejável um certo “monismo”, aliás fisicalista, uma Natureza
“imediata” onde a moral constitua um produto (in)definido e agregador.
Mas precisamente porque existe dualidade, é necessário equilibrar a Physis,
com pretensões libertárias, com a “moral do fraco”, que lhe concede a estabi-
lidade. Sem esta não é possível à Natureza o exercício racional que permitirá
controlá-la e transcendê-la. Obviamente, apesar de, tradicionalmente, se con-
siderar que a moral provém da Liberdade racional, também ela é um produto
da Vontade “egóica”, do corpo que ordena a sua própria perseveração, fican-
do, portanto, esta dependente da relação equilibrada dos Sentidos com a i-
-Razão dialéctica.

Claro está que o exercício coercivo da Razão dogmática, com ou sem


base fisicalista, poderia levar, com o tempo, à Estruturação plena do tecido
social, isto seria feito, obviamente, com base em “sangue e lágrimas”, no fim
pode ser que compensasse, o equilíbrio visado adia, apesar de tudo, a con-
quista de uma Unidade, mas isto é porque ele mesmo é já uma forma de
Unidade.

Perguntei a um psicólogo se, perante a crise climática, e quando uma


criança me pergunta sobre o seu futuro, deveria mentir-lhe ou deixá-la apa-
vorada. O psicólogo apresentou-me um plano de psicoterapia e a tabela de
preços.

O meu mestre de “auto-ajuda” sobre a crise climática: “O mundo está a


fazer uma tempestade num copo de água!”.

Também Claude Bernard valoriza o aspecto da Síntese “relacional” que


faz com que não possamos reduzir a Clínica à lógica meramente grupal.
Assim, o aspecto “racional” é idiossincrático, funcional, e exprime-se por um
conjunto de relações vitais que extravasam o limite da físico-química. Estas
têm de ser estudadas no seu contexto, se bem que, para o autor, é o “interno”

347
Luís Coelho

que importa mais, salientando-se a parcial independência do organismo vivo


face ao exterior. Obviamente, o aspeito bio-psico-social e contextual não é o
grande objecto de uma “medicina experimental”, cujo carácter fisiológico
não deixa de ter de ser concebido em termos de relações físico-químicas e
orgânicas. Estas relações exprimem-se racionalmente em termos de um con-
junto de ligações “causa-efeito” fenoménicas que, por sua vez, se manifestam
no funcionamento vital. O maior Equilíbrio implica a relação da grande
Razão Universal com o portento das ligações manifestas, com as últimas a
organizarem-se de um modo crescentemente complexo. Há, aqui, uma equi-
libração entre a Vontade vitalista e a Representação orgânica, sensitiva e
fenomenológica, com uma tendência para a organização crescivelmente ampla
entre os “seres” com um mote primariamente evolutivo, mas que não se exclui
do plano de uma Consciência consecutivamente mais abarcante, a qual, por
sua vez, impõe o equilíbrio entre a Ordem descendente e a multiplicidade
babélica de sensações que ascende e se articula no cenário subconsciente.

O dogma “cientificista” pretende, muitas vezes, generalizar as condições


elementares do corpo, esquecendo as “relações” que se fazem crescentemen-
te, inclusive com a assunção do dogma em causa, porque este se transtorna
“Ideal” capaz de transformar as funções no paciente, as quais se comunicam
ao “terapeuta” de um modo que é alterado pelo preconceito “elementar” do
mesmo. É preciso que o referencial elementarista, positivista, seja acomoda-
do à particularidade do Sujeito, com esta a conceber a relação de uma repre-
sentação do paciente com a agência “racional” e subjectiva do terapeuta. Só o
respeito pela idiossincrasia poderá permitir a maior possibilidade de equilí-
brio “paciente”, se bem que pode ser magoada a idiossincrasia do próprio
terapeuta. A sua condição “positiva” deve escudá-lo da entropia. A não ser
que também ela alimente o excesso “subjectivo” capaz de o descompensar.
Um excesso cria, sempre, uma espécie de sublimação estrutural, prestes a
viciar o Sistema. Já o defeito pode implicar que não se está a fazer o suficiente
para abalar a “dor”, a “doença”, que consigna mais descompensação. Um
acto “terapêutico” é de mote a compensar ou a estruturar, ele pacifica o Sis-
tema, se bem que pode alimentar a evasão, a alienação, do Sujeito, cuja des-
compensação poderia servir o intento revolucionário de um novo Princípio
funcional. A maior “terapêutica” inclui um rol amplo de elementos, um
Equilíbrio que relaciona “função” e “Insofrimento”, Vontade e Representa-

348
O FisióSOFO

ção, numa contextura onde a Consciência se veja recrudescer para aumentar


a própria possibilidade de Entendimento mais abrangente. Este, entretanto,
complexifica o jogo de variáveis, aumentando, ainda mais, a zona de Caos, a
incapacidade de prever com que se possa tecer a Estrutura pacificadora. Mas
criar mais Consciência é permitir, também, outras mentes, linguagens, lógi-
cas, razões, e, com estas, o tecido de sensações, (des)compensações, que, de
algum modo, já nem pede o manancial algorítmico de Insofrimento, até por-
que isso implicaria reduzir o Sentimento a qualquer coisa “elementar”,
quando o Sofrimento é, per se, idiossincrático.

A linha da Vida é um eixo de Consciência que equilibra Sujeito e Objec-


to, sem dualidade não poderia sobrevir a consciência mediata que vitaliza as
relações em torno de um Objecto, que é Inconsciente. Na plena Estruturação,
paciente e terapeuta tornam-se Um só, se existe algum género de (des)com-
pensação, então já não existe Insofrimento puro, esta já se negoceia com a
Função do mundo, que permite, ainda assim, aumentar o grau de angústia,
divisar um futuro que se norteia pela repetição pretérita incessante. O Eterno
Retorno é crer que o processo nunca abscindirá, porque o Sujeito não se
objectifica, Ele tem apego à consciência massacrante das intenções. As “dores
do mundo” constituem o jogo perpétuo da Involução expansiva de um Uni-
verso que não sabe sequer se tem ou precisa de Deus. Aliás, essa consciência
está, para todos os efeitos, afecta à nossa pequenez, bem como projecções de
uma Consciência maior, que nunca poderia parecer-se com a nossa.

Também Claude Bernard rejeita a estatística enquanto modo de conhe-


cimento da realidade biológica, porque a primeira apaga o “facto” idiossin-
crático; no entanto, é a estatística que fornece informação acerca da Realida-
de multifactorial, geralmente afecta ao Grupo, o que é relativo, sobretudo, às
ciências “sociais”, nas quais o conhecimento do tecido “real” é, por demais,
incompleto e fluídico. À medida que escusamos a “falsificabilidade”, dificil-
mente praticável no respeitante à Ciência Social, remetemo-nos para uma
ampla Idiossincrasia, ominosa nas intenções de descrição plena, como de
compreensão integral. A Razão desta Idiossincrasia corresponde a um produ-
to incalculável, mas capaz de fornecer achas à fogueira da inquisição do Cog-

349
Luís Coelho

noscível “real”, pode ser, até, que a Razão se torne a própria Realidade, escu-
sando, portanto, a necessidade da “experimentalidade”. Esta replica, não
obstante, o seu ascendente sobre o Real inclusivo de diversos “entes”, os
quais remetem, idiossincraticamente, para diferentes possibilidades racionais
e interpretativas. Cada interpretação reconstrói, por sua vez, o mundo,
modificando a Realidade, também a dos outros “entes” com as suas realida-
des psicofísicas. O Relativismo submete a Experiência à quota interpretativa,
somente o positivismo pretende ver nela uma mudança “real” no tecido da
“Physis”. Cada intento “físico” constitui um alvo Racional, e este cria, na
medida do “experimentalismo”, a quota de teorias expressivas de “hipóteses
experimentais” factíveis, mas sempre na relação “dual”, cognitiva, perceptiva,
com um mundo, que, ainda assim, assumimos existir “objectivamente”. Tan-
to faz que ele exista ou não, há, sempre, um “Real” qualquer, e uma dúvida
que consubstancia o seu “pathos”, bem como a intenção de solução, com-
pensação, da dor de “existir”. Uma Solução transforma o dualismo cartesia-
no num monismo “Real”, onde tudo se enforma de Sentido “existencial”, se
é Espírito ou matéria, Sujeito ou Objecto, a questão não se coloca se fizer
sentido, porque, quando tudo se esculpe internamente, o Sujeito recria-se no
imediato, onde todas as experiências terão sido desveladas ao olhar do Abso-
luto, relativo de um Absoluto maior, que é o instante contínuo a partir do
qual Tudo se adentra sem tempo para a hesitação.

É a complexidade mentalista que tira a “exactidão” às ciências, forne-


cendo-lhes a criatividade i-racional e imputando-lhes o que Lakatos deno-
minaria de “falsificabilidade ingénua”, não que não exista, desde Comte, a
tentação de reduzir numericamente as “ciências sociais”, mas, mesmo aqui,
existe uma ingenuidade em presumir a possibilidade de fixação de regulari-
dades. Parte deste espírito fluídico passa para o Corpo, no que respeita à sua
Estrutura “prolongável”, “historicista”, multifactorial, tentar reduzir este
“Corpus” a um experimentalismo à Bernard seria, praticamente, impossível,
o paradigma do último autor remete, sobretudo, para a medicina, no que
tem de “imediatismo biológico”, parcela de Ciência considerada partilhável,
esventrável; o que não impede Bernard de distinguir o aspecto puramente
“anatómico” do aspeito “funcional”, fisiológico, sendo que é, precisamente,
na Fisiologia que deve ser procurada a “causa próxima” da falência vital.

350
O FisióSOFO

Aquela implica estudo genuinamente laboratorial, casuístico, biologista, mas,


como é óbvio, o necessário isolamento de variáveis castra a compreensão do
que é extensível multifactorialmente no tempo. A visão de Bernard é, de res-
to, tradicional na sua aproximação às ciências da “massa bruta”, com a sua
perspectiva de que é a Experiência que deve informar o Raciocínio (experi-
mental). Claro está que Bernard se oporia ao subjectivismo de um Kuhn ou
de um Feyerabend, para os quais a razão é “temporal”, paradigmática
(Kuhn) e admite todas as hipóteses (Feyerabend).

A evolução do Humano não é necessariamente “bissexual”, ela pode


implicar uma proa de transformação empírica, com vista mais ou menos
desafogada para o Princípio pleno. Quando o “agente” extrapola o seu Prin-
cípio, o “percipiente” reage a este nos termos de uma dialéctica que se estabe-
lece entre o seu próprio Princípio e a Realidade que exprime a Razão do
“agente”. Daqui resulta novel Razão, plano cognitivo-moral criativo que não
vê o momento para se manifestar numa nova matriz da Realidade. Esta cons-
titui o aspeito “positivo” capaz de ser captado por inúmeras razões intrínse-
cas, as quais são, no seu todo, um Espírito perceptivo em agência de plenitu-
de “Real”. A transformação implica uma absurdidade criadora de agências
“reais”, não há limite para as possibilidades racionais, e os mais ilimitados
são, precisamente, os que dispensam a matriz de fomento criativo, ou seja, os
que, repletos de Princípio, se limitam a ser num caudal ininterrupto de
vivências momentâneas. Obviamente, o momentâneo pode, também, contri-
buir para burilar a metamorfose do Sistema, ele é, afinal de contas, o seu
destino, como o seu Princípio, o seu Espírito recriador do aspecto involutivo
do Ser. Involuir é, como é óbvio, tanger a precipitação “positiva” da Deidade
personalística, o seu alvo é a Razão instrutiva da acção, que alguns preten-
dem Universal, mas este é aquilo que a transformação permitir, bem aquém
de um Deus inútil ou de um Cristo que já ninguém teme ou respeita. Cada
centímetro de metamorfose encandeia o Princípio dos Princípios, afectando
a nossa própria noção do que É, ou poderia ser, o momento Primeiro, daí
que tenhamos que conceber a espiritualização momentânea, que é como
quem passa ao Nada, com ou sem moral, no qual se elege novel Escala de
positividade nascente das relações animalísticas.

351
Luís Coelho

O Espírito é, sempre, uma representação da moral que se quer extrapo-


lar à Realidade “positiva”, capaz de fornecer o novo manancial cognitivo ao
revolucionário empírico, este, talvez, com menor intento de transformação,
quiçá esteja prenhe de Solução, com esta a ser o seu próprio Espírito, o equi-
líbrio tácito das metamorfoses irracionais.

A neurose perpétua é a liberdade absoluta, quando nenhum Princípio se


permite agrilhoar, claro está que este se reconstrói em cada momento, a ple-
nitude primária é irrecuperável, soçobra a realidade física, mas mesmo esta é
função de uma razão identitária em transformação moral contínua. A re-
solução intrínseca estanca a neurose reedificante, ela promete um Princípio,
uma quimera de Realidade, com esta a transformar muitas outras razões que,
por sua vez, ao “Eu” chegarão com seu intento destrutivo.

Sou niilista, graças a Deus.


Os problemas ficam em casa. A minha vida é uma roulote: problema


resolvido.

O Logos é, assim, o equilíbrio entre a grande qualidade Insofrida e a função


vital, bem como o conjunto dos seus algoritmos crescíveis, consubstanciáveis,
que remetem para uma transformação incessante, que prepondera numa Cons-
ciência sempre engrandecível com as diversas mentes universais e animalísticas.

O Raciocínio dialéctico é a qualidade subjectivável, empírica, capaz de


empreender a grande viagem arquetípica, absurda, por entre diversos eixos
de positividade experimental. Por sua vez, o “experimental” é o Real passível
de ser apreendido pelo Raciocínio, que a ele se dedica e transforma, burilan-
do possibilidades de Realidade, que o Colectivo namora e rejeita, em conso-
nância com a individualidade empírica.

352
O FisióSOFO

O grande Córtex pré-frontal social, superegóico, cria o limite à indivi-


dualidade dialéctica, que, por sua vez, informa o primeiro, ele é, apesar de
tudo, um Colectivo de ansiedades in-conscientes, sempre redutíveis logica-
mente, mas, ainda assim, irredutíveis no plano fenomenal, que é o alicerce do
sofrimento intrínseco, “livre”, que perfaz um Verbo de enquadramento i-
-moral.

O livre-arbítrio constitui o plano da sublimação de novel moral, quan-


do o novo Colectivo recria a relação cortical com a in-consciência de deida-
des positivas. Cada uma destas deidades corresponde a um plano espiritual,
na medida de uma coisa que está prestes a ser desvelada, consciencializada,
“libertada”, pela acção da Determinidade “real”, embate superegóico, do
Espírito maior, cortical, superconsciente, que perfaz a Razão “dominante”,
na relação necessária com o escravo percipiente, subvocal, e, mesmo assim,
verbal, atendo a falsa liberdade, futuro “Domus” de princípios diversificados,
com cada um recriando a relação do Colectivo com a singularidade in-
-consciente. O Sistema é, todo ele, passivo, “criado”, e, ainda assim, “activo”
na sua Humana criatividade. O mérito não existe, e é, simultaneamente, a
ordem da reacção à determinidade frustradora. Sabê-lo é imperar sobre o
Sistema, é ater mérito, mas apenas na perspectiva do próprio, que ora se
preenche de segurança identitária, que mais não é do que saber-se dominan-
te, prestes a ferir o “outro”.

Há, sempre, “Physis” dual in-consciente, incestuosa, o Reino do empíri-


co puro é homossexual, é um Cristo caído, prestes a originar o Verbo, que
conceberá o primeiro limite a partir do qual se remete a uma cadência de
posturas heterossexuais, relações funcionais entre o passado superegóico e a
In-Consciência consecutiva dos actos “livres”.

A verdadeira dialéctica hegeliana é permitir todas as possibilidades na


medida do ilimite linguístico, a Lógica é o limite, a Imaginação é a cadência.

353
Luís Coelho

Os diferentes paradigmas filosóficos são como posturas defensivas diversas


que arquitectam a “re-acção” liberal, capaz de tanger o movimento temporal,
que é tentar readquirir o Equilíbrio primário, incestuoso, in-consciência
empírica inalcançável, pelo que todos os equilíbrios são soluções possíveis,
viradas, entretanto, para o futuro, pelo menos se existir real solução princi-
pesca, aliás, não há futuro, aqui há apenas presente, ausência de objecto,
Sonho que mimetiza um passado glorioso em que só a Lei limita, e ainda
bem que o faz, não fôssemos nós adquirir a Deidade perpétua, o Nada totali-
zador para o qual todas as possibilidades servem.

Para Claude Bernard, interessa apresentar o processo “empírico” enquan-


to fase inicial do que tem de acabar por ser “experimental”. Aquele é forte-
mente subjectivo, i-racional, parte da Observação ingénua, que aventa na
consignação de hipóteses, só depois verificáveis pelo método “experimental”
propriamente dito, pela observação controlada e “objectiva”. Os dados da
experimentalidade poderão, por sua vez, alimentar o processo racional, que,
ainda assim, se dá, frequentemente, a certas liberdades teoréticas e especula-
tivas, presunção de um Espírito que, constantemente, se subtrai ao rigor
experimental. Pode ser que tal liberdade seja necessária, sobretudo no que ao
“Todo” importa, porque a complexidade deste cria a limitação do rigor ana-
lítico e experimental, mas o rigorismo “positivo” é, de todo, de acalentar, na
medida do possível e do desejável. Claro está que a impossibilidade de alcan-
çar completamente a Realidade “positiva” estatui o foco de crítica dos subjec-
tivistas e pós-modernos, pelo que a dualidade em causa remete para um anti-
go cisma da discussão epistemológica.

As ciências sociais, bem como as “espirituais”, não querem, obviamente,


ser limitadas pelo intento “experimental”, não que não sejam teoricamente
redutíveis, mas a sua complexidade, bem como a sua franca zona “oculta”,
implica o enlace de uma Subjectividade “hermenêutica” que não admite o
reduccionismo. É, precisamente, o facto de existir um foco de “relações”,
uma Sistémica, que apela ao limite da experimentalidade, que se satisfaz,
usualmente, pelo “curto prazo” fisiológico, facilmente localizável e manifes-
tável. A Razão empilha este jogo de relações num produto, que, ainda assim,

354
O FisióSOFO

é dado ao erro da “dedução” especulativa, só o rigor “positivo” pode ajudar a


obliterar os excessos interpretativos, mas isto não significa que o “Espírito”
não possa ou deva gerar o produto constante da sua actividade no formato
de novas possibilidades de descoberta científica. Esta quer, comummente,
fraccionar o sistema corpo-mente, perdendo-se, muitas vezes, de vista o
Objecto plenamente clínico, idiossincrático, pela deglutição da “Clínica” no
sentido que lhe é dado por Foucault. Esta instrumentalização objectal permi-
te, inclusive, empoderar o papel do clínico, mas também limita a sua Autori-
dade ao papel do “cientista”, do experimentador. Mesmo com o risco de
fazer da ciência um dogma, enquanto o processo “empírico” mantiver o seu
rigor impessoal sempre se conseguem evitar os excessos dogmáticos e fabulís-
ticos da autoridade i-racional, que se pretende, deveras, objectiva e intelecti-
va. Mas este é um engodo que placebetiza e salva, precisamente, porque é na
Razão que tudo termina e é a ela que tudo retorna, com sua transformação
perceptiva, gestáltica, fecundamente criativa.

O mesmo problema de sempre mantém-se, a “observação experimen-


tal” não deixa de ser “observação”, e por isso mesmo, ingénua, todo o pro-
cesso “empírico”, mesmo o mais rigoroso, remete para o percepto, no qual
tudo se confronta, incluindo o encontro do “verificado” com o Princípio
mais primitivo.

«– A: Ando numa fase em que tudo me irrita!


– B: Desde quando?
– A: Desde que nasci.
– B: Não será uma projecção? Pode ter começado depois e pensas que
foi desde o princípio...
– A: Não me irrites.»

Os novos Seguros de Apoio Psicológico possuem um período de carên-


cia conforme os antecedentes familiares. Sem antecedentes, pode estar seguro
da carência.

355
Luís Coelho

Poupo a morte, todos os dias, para um PPP: Plano Poupança Psicológi-


ca. Será a reforma da parceria público-privada com um mundo pudico.

A grande defesa do Espírito “agente” é a própria dualização “Espírito vs.


matéria”, pela qual a matéria “percipiente” se vê determinada pela Super-
Consciência do mundo ora criado. O nível de determinação gera o grau de
resistência e este acalenta o primeiro. A culpabilização do “paciente” é a ordem
de renovação do pensar “livre”, quando o primeiro se torna Agente na rela-
ção com a resistência da Cadeia muscular espiritual. O novo Agente periclita
em novel resistência miofascial, necessidade estrutural adequada à liberdade
da grande Totalidade empírica, na qual o Equilíbrio unifica a relação menos
“resistente” entre os pólos, linha de aproximação Sujeito-Objecto, plena fle-
xibilidade in-consciente incapaz de criar os novos heresiarcas. O Equilíbrio é
o Princípio solvente, que sente a ampla liberdade, aliás, Condição da Insis-
tência de repetição involutiva das facetas das ligações gélidas.

Perante o sofrimento alheio, ele arranja sempre um modo de fazer a


diferença. Não vá sofrer por indiferença.

Quem se choca com a indiferença alheia teme nunca ser indiferente.

O dualismo “normal” vs. “patológico” é a expressão de um “estado de


arte” da Saúde que se apresenta tanto na pré-modernidade quanto na moder-
nidade científico-liberal. Não é, apenas, a marca da Clínica, como em Fou-
cault. É, no fundo, a própria perturbação cartesiana da Unidade, que se
explora na divisão fenoménica, paralela à dualidade “Insofrimento” vs. “vida”,
com cada um dos pólos desta a incluir a primeira. A perturbação interior
fractura a relação Sujeito-Objecto, e o Objecto é tanto interior quanto “posi-
tivo” e paciente. O monismo é a relação harmónica entre terapeuta e pacien-

356
O FisióSOFO

te, com toda a sua resultante aproximativa, “amorosa”, e isto pode dissolver
qualquer dogma, seja ele “espiritual”, “religioso” ou “cientificista”, eventual-
mente com a consecução de um dogma conjunto, Uno, que, de qualquer
modo, pode produzir os seus próprios escolhos, heresiarcas que expressarão
a novel dualidade “patológica”. A revolução é interior mas provém de fora,
sendo, assim, positiva, manifestação de uma diferença “paciente” na medida
da tolerância do Sistema “agónico”. Esta tolerância diminui e substitui-se
pela agência “resistente” paralelamente à transformação do “paciente” no
agente da nova Saúde. Qualquer modo de compensação não sublimatória
poderá acalmar o Sistema no seu ímpeto transformativo, mas também pode-
rá fornecer-lhe outras variáveis enriquecedoras, mais aproximativas e har-
monizantes ou mais diferenciadoras e intentadoras de um “pathos”, cuja
“morte” poderá conceber-se enquanto implosão dos agentes ou enquanto
plena re-solução estruturadora, que é a Vida a tornar-se completamente
insofrida e imediata. E, no entanto, a imediaticidade da Consciência é bruta-
lizar o território dos corpos, que ora perdem a Condição ética vitalista, que
garante o revezamento da preocupação “vital” pela despreocupação insofri-
da, em que o “ciclo vital” se despolariza. O “pathos” é, assim, uma polariza-
ção compatível com a vida, cujo grau de “agência” é a medida de uma tole-
rância consecutivamente testada e oprimida, ele é a própria Vida sofrida,
cujos deslizamentos na harmonia constantemente progridem no sentido de
uma aproximação polar na aprendizagem dos processos que se concebem
holisticamente com a proa num Equilíbrio perpetuamente maior, desafio
infinitesimalmente semelhante no “eterno retorno” de uma involução cuja
dependência temporal é o de uma aventura que, de certo modo, expressa a
luta da Vontade, cuja multiplicidade é, apenas, a escala aproximativa, mate-
rializada, da Unidade, e esta é o aspecto agente de uma materialidade maior,
outra desorganização constante a apelar a novel mobilização temporal e tera-
pêutica, interferência, apesar de tudo, determinada pela Causa incausada, ou
pelo caminho eterno para trás, pela busca inacabável de um Princípio inal-
cançável, onde ousaríamos ler as Instruções de uma demiurgia surda, a gra-
vidade quântica inacessível à mente túrgida do Humano, cuja condição apela
necessariamente à dualidade nosológica, a qual impõe, ilusoriamente, a regra
de uma Normalidade, com base na relação já viciada do princípio i-racional
com a Realidade, mas, lembremo-nos que tudo se inicia com a função “exte-
rior”, com a relação do corpo com a corticalidade crescível e socializável, que
não pode abster-se de deixar de fornicar com a mãe do mundo, para que o

357
Luís Coelho

Verbo transcorra e torne tudo mais lento, na consecução do Senhor e do


escravo, e da escravidão da dialéctica perene concorrendo para um Espírito,
que, por sua vez, é projecção de uma ilusão de harmonia, aliás, Ele consubs-
tancia-se na mera satisfação demiúrgica, no orgasmo fugidio em que o “Eu”
se desvela primitivo, esta é a moral libidinal em que todos são senhores de si-
mesmos na luta vertida das deidades que competem pelo jardim das delícias,
e a competição é acelerar a dualidade, e esta é represar a ilusão de um encon-
tro que se destina à precipitação do momentâneo. Pensar que tudo isto se
limita a um escolho da Consciência, que a Saúde é, apenas, reproduzi-la ven-
cedora sobre tantos outras consciências, na ilusão de que pode haver um
Logos perfeito e iniciático, quando há, somente, um mapa que se digladia
num jogo de escalas, e também num jugo de olhares, de perspectivas, mas
visai que o completo “estrangeiro” nem se perspectiva, porque tendemos a
matá-lo, a destruir, no fundo, o que pode dualizar-nos na relação com a pró-
pria Vida.

É certo que a esfera terapêutica bio-psico-social apela mais ao monismo


Sujeito-Objecto, até porque se valoriza, crescivelmente, a perspectiva “psí-
quica” e placebetária, que é, afinal de contas, onde tudo termina. Esta inclui,
claro, a perspectiva da realidade “positiva”, a qual nos rememora, comum-
mente, o pólo carnal do cartesianismo, bem como paradigmas como o
mecanicismo, o positivismo e o experimentalismo, visões “materiais”, fun-
cionais, mais afectas ao “localizacional”, senão ao que regra o comportamen-
to do grupo humano. Se falamos de uma “regra” é normal que subsista um
certo dualismo “normal” vs. “patológico”, vital ao modelo biomédico, bem
como à perspectivação racional e científica. O Holismo puro caminha, claro,
para uma aproximação terapeuta vs. paciente, não podia deixar de ser assim,
porque atendemos, mais intimamente, aos diferentes aspectos “emocionais”.
Obviamente, o Todo “absoluto” é já não requerer o conjunto das diferentes
variáveis, é ter já Tudo numa só coisa, pelo que a relação “terapêutica” é, de
certo modo, sempre dual. A dualidade é necessária à vida, mas o excesso
pode matar. Esta é uma morte por abandono, uma forma de retorno à Ori-
gem primitiva. Se desejarmos um retorno em vida, não podemos fugir à
obrigatória relação “terapêutica”, que, se for completamente harmónica,
mata a própria relação. Tal solvência é representada pelo pretérito paciente

358
O FisióSOFO

no respeito pela sua Individualidade, o que inclui o jogo das suas variáveis
funcionais. Isolar experimentalmente e grupalizar positivamente são formas
de estudar, de conceber um rigor “científico” necessário à Verdade. Mas o
domínio casuístico é longitudinal e sensível ao Placebo, nele não é possível
separar tão estritamente a(s) realidade(s). A tolerância “dogmática” aumenta
o grau de aceitação de holisticidades “variáveis”, permitindo, inclusive, con-
ceber muitas outras “normalidades”. O que o modelo “estrito” patologiza
pode, muitas vezes, ser “normalizado” numa perspectiva que visa o Sujeito
na sua íntima “diferença”. Esta diversificação de “normalidades” é, obvia-
mente, absurda para o materialismo estrito, do mesmo modo que o relati-
vismo assusta qualquer verdade estabelecida. O relativismo em causa reacor-
da, portanto, algo do antigo Holisticismo, mas precisa, apesar de tudo, de
receber o aval do materialismo “moderno”, que é mais tolerante e perspecti-
vista. Nos seus excessos fabulísticos, este relativismo “placebetário” terá de
ser, necessariamente, contido pelo modelo “falsificabilista”, que impõe um
trajecto de cientificidade. A “ciência” ajudará a conter a inverdade, prevenin-
do o fenecimento funcional, vital. Se não existir uma forma qualquer de
rigor, a tolerância excessiva poderá obviar referências muito pouco adequa-
das. E, no entanto, o “adequado” é, igualmente, reflexo do paradigma epis-
témico, enquanto que o “desadequado” é pai da mudança.

Assumindo que o modelo “biomédico” é, actualmente, dominante no


ponto de vista das representações mentais e epistémicas, ele, já por si, é pla-
cebetário, o que o torna vantajoso, à guisa do seu rigor epistemológico, daí
que, cada vez mais, seja importante sublinhar a monta deste paradigma, até
porque o “absurdo” holístico poderá levar a muitos resultados diferentes,
pode até convencer o paciente a aceitar um caminho ilusório, com conse-
quências assaz desastrosas. Obviamente, tudo se centra na Consciência, mas é
a função “factível” que tudo deve dirigir, analogamente, é a necessidade fun-
cional que serve de proa à razão, tudo se inicia no corpo, nos Sentidos, na
relação com o mundo, no risco evolutivo de vida.

Claro que a compensação “fisicalista” dos agentes do Sistema global


fará, necessariamente, com que o factor psíquico seja colocado em evidência,

359
Luís Coelho

o qual poderá renovar incessantemente a guerra dual das idiossincrasias, com


consequências, também, ao nível da fisicalidade, a Natureza parece ser o
marco decisivo, mas ela não é sempre boa, e a ética não a segue em tudo, mas
permite delongar a protecção vital dos agentes, obrigatória, mais uma vez, à
retractação do factor psíquico e insofrido. Tradicionalmente, esta Ética é
fortemente “deôntica” na sua ligação fundamental à ciência, apesar de a “Deôn-
tica” se basear usualmente em pressupostos pouco científicos, no entanto, criar
uma Ética estritamente “positiva” pode não ser o melhor modo de conter o
mesmo Humano racional cujo aparelho intelectivo permite criar a ciência
salvífica. Ou seja, para que a ciência salve é preciso, muitas vezes, ponderar o
factor psíquico e insofrido, na sua perspectiva principesca, o que, de mais a
mais, nos leva de regresso ao velho Placebo “religioso”. E, no entanto, a nova
ciência mefistofélica não poderá deixar de submeter o último a um conjunto
de desafios assumidamente para-morais, projectos vindouros de outras reali-
dades psicofísicas e i-racionais. Uma ciência “amoral”, centrada no projecto
do Super-Homem, estaria mais de acordo com a perspectiva de um Nietzs-
che, que esqueceu, todavia, de explicar como pode o Homem progredir
exclusivamente colocado numa moral do Senhor.

A Ética só é útil, inclusive à ciência, se for “dual”, na medida em que


implica uma Culpa capaz de gerar o conjunto dos estudiosos, dos que que-
rem a Verdade mas não a conseguem de todo. Uma ética Unitária, quiçá
libidinal, já está a caminho da imediaticidade, matando, possivelmente,
algum do objecto humano heurístico. Daí que o Senhor seja sempre necessá-
rio ao Saber, porque produz os escravos do Conhecimento, mas se os últimos
se assenhorarem deste, cria-se, mais uma vez, um modo “imediato”, libidi-
noso, incestuoso, de visar a Realidade. Só é possível modificar o mundo, na
medida em que este nos é adverso.

Também a “práxis” marxista se baseia numa reacção “ressentida”


perante o Senhor, o Comunismo já seria uma forma de estagnação, a dife-
rença entre Senhor e escravo, Sujeito e Objecto, é necessária à progressão, a
qual desafia constantemente o pressuposto ético fundamental. São os erros
“consequenciais” que ajudarão a criar a nova Deôntica, mas esta nunca cessa-

360
O FisióSOFO

rá completamente o processo, ela idealiza, promete, algo que nunca poderá


ser inteiramente adquirido, porque, quando já se é Objecto, já não é necessá-
ria qualquer ética ou moral.

A “práxis”, em Marx ou Gramsci, é a realização da liberdade proletária


pelo cômputo “revolucionário” das relações. Estas valem pelo conjunto sis-
témico, dinâmico, pela dialéctica “materializada” das intenções transtornadas
em Totalidade. Não interessa, aqui, a mera descrição pragmática do efeito,
como em Peirce, o “efeito” da práxis é a própria transformação, é o “tornar-
-se”. Subsiste, entretanto, o fantasma da pós-modernidade, do Ideal, mas não
se pretende nada que não seja tangível, alcançável. Menos tangível é a ima-
nência dialéctica, i-racional, que pode convidar ao erro, se bem que ela tam-
bém é transformativa. A “relação” “marxista” não possui o alcance da mesma
em Feuerbach, que se refere, acima de tudo, à importância do Sensível na
designação do Humano.

Em «Princípios da Filosofia do Futuro» (1843), Feuerbach recria o trajecto


da antropomorfização da Filosofia, primeiramente pela racionalização do terri-
tório outrora escolástico e teológico, depois pela humanização de uma Filosofia
que não pode perder de vista a realidade sensível enquanto fonte genuína do
Saber. Aquela realidade faz o apreço da “relação” com o Outro, o Homem defi-
ne-se pelo contraste “externo”, é ele que guia o conjunto “racional”.

A actividade especulativa serve, grandemente, o projecto de satisfação


da dúvida, temática comum em Peirce, que não esconde a armadilha “sub-
jectiva” que tal “irritação” poderá produzir. Não pode a lógica resolver por
completo o problema da Verdade, a fonte de saber é aquilo que pode ser
medido, é o “efeito”.

Estes materialismos, incluindo o de Bakunin («Deus e o Estado», 1882),


concentram-se numa visão mais anterógrada da resolução da Realidade, olvi-

361
Luís Coelho

dando, talvez, que, no limite, tudo se inscreve na crença salvífica de cunho


anamnésico. Em grande medida, é preciso que já exista Ser “resolvido”, para
que, finalmente, possamos concentrar-nos no futuro, na existência “real” e
construtiva, exterior e relacional.

Em «A Psicologia das Multidões» (1895), Gustave Le Bon centra-se no


papel que o Inconsciente possui sobre o comportamento, necessariamente
“geográfico”/cultural, das “massas”, ressalvando o aspeito da Alma, da “raça”,
de um povo, do conjunto dos seus ingredientes histórico-míticos.

A realidade não supera a ficção, porque a ficção é o que temos de mais


parecido com a realidade.

{Toda a Fisioterapia (e Filosofia) é neurológica26}


Compreender epistemologicamente a Fisioterapia, bem como parte sig-
nificativa da Medicina, é equilibrar constantemente os pólos da antiga duali-
dade “Estrutura vs. função”, ou “Dogma vs. ciência”, em torno de um eixo
que é a própria linha média concorrendo para uma verticalização que exige a
harmonia neuromuscular. Esta pende, todavia, mais para a ciência funcional
do que para o arrazoado dos Sistemas, cuja visão, por vezes estática, é supe-
rada por uma perspectiva “neurológica” que, não se limitando a integrar a
acção fisioterapêutica, é o seu verdadeiro busílis.
O ponto de partida é, essencialmente, dual, e equilibra as áreas hipertó-
nicas, dogmáticas e, fundamentalmente, inconscientes – que, segundo a teo-
ria das Cadeias musculares, se comportam como um “todo”, constituindo as
cadeias miofasciais, mais afectas à zona posterior, “anti-gravítica”, do corpo
– com as áreas “liberais”, afectas à actividade consciente do movimento. O
próprio dogma, tanto “mézièrista” quanto adequado, por exemplo, ao méto-
do Bobath, impende no objecto da inibição das áreas hipertónicas, com
resultante “reforço” das áreas “voluntárias”. O dogma é observacional e limi-
tado, por vezes, pela subjectividade (i)racional do terapeuta. Ainda assim, vai
26
Publicado em «Healthnews», Novembro de 2021.

362
O FisióSOFO

ao encontro da visão funcional, na medida em que convida ao alongamento


do excesso hipertónico, com trabalho “liberal” das áreas anteriores. É, apa-
rentemente, o excesso da musculatura posterior que cria a sua insuficiência.
A fraqueza é consequência da hipertonia, como da falta de comprimento
miofascial. O objectivo passa por alongar adequadamente estas áreas muito
“tónicas”, de modo a retirar-lhes a supremacia sistemática. A insuficiência de
alongamento exprime a relação “ética” inadequada com o paciente. Mas
igualmente inadequado é o excesso de alongamento, o exceder dogmático,
que evoca as defesas musculares e convida ao trabalho miofuncional, liberal,
afecto a uma nova moral, a um novel equilíbrio.
O alongamento excessivo exprime a relação “agressiva” com o paciente,
o equilíbrio é assertivo. O dogma “defensivo” impacta a ligação terapêutica,
mas é também ele que expõe, possivelmente, um novel equilíbrio neuromus-
cular. O equilíbrio dogmático recruta, necessariamente, a reacção científica,
funcional, positivista, que modera o excesso hipertónico. Mantém-se, talvez,
a fobia ao reforço, mas superioriza-se a importância do trabalho funcional.
Sendo a musculatura “posterior” essencialmente de tracto involuntário, e
também pelos motivos já expostos, é capital inibi-la de um modo fundamen-
talmente espontâneo. A higiene postural é, de todo, inadequada. Já o traba-
lho anterior exprime, deveras, o esforço liberal. O “todo” passa a advir do
equilíbrio, ou, então, da nova moral compensatória. Qualquer forma de
equilíbrio exige função indolor. Daí que novos modos de equilíbrio corres-
pondam, tão-só, a posturas diferenciais que não têm de ser obrigatoriamente
“patológicas”.
O equilíbrio postural expressa, portanto, a relação da estrutura do “Ser”
com a sua funcionalidade científica, que é, também, a relação do terapeuta
assertivo com o paciente não defensivo tornada “totalidade”, singularidade, a
exigir um tracto neurofuncional, dinâmico, que não pode limitar-se ao mero
estiramento/fortalecimento analítico. Obviamente, o fantasma dogmático da
“totalidade” pode e deve ser moderado pela nova totalidade neurofuncional,
científica, que exige a harmonia entre a Razão defensiva e a funcionalidade
empírica, sensitiva. Várias “razões” neurofuncionais são permitidas, desde
que o “todo” terapêutico, sistémico, possa manter o seu equilíbrio moral. O
último é do corpo-mente, como da “physis” e da “psique”, com cada um
deles compensando-se com o outro, do mesmo modo que a função compen-
sa a estrutura, e que a razão se adequa à nova exigência sensitiva com uma
postura que é necessariamente funcional.

363
Luís Coelho

A “posição social” é, provavelmente, o factor mais indicado por Karl


Mannheim como possuindo ascendente sobre o modo de fazer ciência, como
sobre a “escolha” epistemicamente “socialista” ou “liberal”. Trata-se, aqui, de
denunciar, demarcar, uma “Sociologia do Conhecimento”.

Sou tão seguro de mim que até duvido de que exista.

A “práxis” científica, “dual”, remete-nos para uma transformação


“material” do mundo, com consequências para a vivência humana. O “objec-
to” é a própria vida, bem como o cômputo das suas necessidades fisiológicas
e de “bem estar”. Há, aqui, obviamente, um capital subjectivo, mas há,
igualmente, algo da alienação “marxista”, da desistência face à transformação
“vitalista” profunda do mundo. A ética científica pode ser prescrita, median-
te, ou não, o refrigério de um kantismo, de um “deontologismo”, mas a ética
em si mesma faz da própria transformação um “sentir-se”, um “mover-se”,
que coloca o acento no Sujeito puro. Aqui, passamos da vida, enquanto coisa
que se “possui”, para o conceito de “vida” de Michel Henry, que remete para
uma imediaticidade subjectiva, que transpõe o plano cénico temporal de
Husserl. A “vida” em Michel Henry aproxima-se do plano da Vontade scho-
penhaueriana, bem como da subjectividade de Nietzsche ou Freud, é o Sujei-
to puro, absoluto, a Consciência não mediada. É, obviamente, diferente da
dialéctica hegeliana, na medida em que esta implica alguma “divisão”, a
“vida” é pura imediaticidade, mesmo na “doença”. O “pathos” passa, assim,
pela vivência profunda, arquetípica, primigénita, ele não é a resultante de
uma relação, é o que a antecipa.

Podemos, claro, conceber que o Sujeito puro é a resultante da relação


“terapêutica”, o foco “relacional” em si mesmo rememora a dualidade, mas o
que está no fundo de tudo é o Sujeito enquanto se sente “Si”. Portanto,
vamos bem além da concepção de uma “consciência de”, formulada pela
rispidez empírica, se bem que ela parte e aterra na pura subjectividade. É

364
O FisióSOFO

também esta que permite construir o “outro”, bem como a sua dialéctica, e,
também, o que nele se transforma, mas, aqui, todo o plano “placebetário” é
encarado como o que é verdadeiramente “real”. A Ética é a própria vida no
plano de um “sentir-se” e de um agir “enquanto tal”, não é encarada como
proveniente de Deus, nem como parte de um plano de “determinação” fisi-
calista. A “práxis” de Marx é mais “materialista”, a perspectiva de Schope-
nhauer ou Freud também, e nestes está patente um determinismo que não
importa à Subjectividade pura, reino de plena abstracção.

A fenomenalidade pura em Michel Henry é mais independente do


Objecto do que em Husserl, poderíamos equipará-la a um “Eu sinto”, em
que o próprio “sentir” é anterior ao Objecto. Este “sentir-se” é puro e inde-
pende da verdade do mundo.

A fenomenalidade pura é uma constante da Vida, mas também pode ser


encarada enquanto resultante de um “Vir a Ser”, portanto, enquanto “Ser”,
Vontade “singular” cujas necessidades “deficitárias” (Maslow) terão sido
supridas, fazendo fenecer a “luta” e transviando-a numa “moral” libidinal,
“totalidade” de abertura ao Outro, mas sem que exista qualquer dependência
deste, porque, desse modo, o “Ser” transtornar-se-ia “Sujeito”, cujo “défice”
corresponderia à dualidade neurótica, passível de transformar a Vida num
combate orgânico, dentro do qual o Agente representa, apesar de tudo, o
próprio “Ser” indual, se bem que a “agência” pode ser, igualmente, um modo
de “paciência”, que, ainda assim, não se subtrai à fenomenalidade enquanto
instante “perceptivo” puro, adequação afectiva, que poderá ser encarada nos
termos de uma Cognição ou de uma Sentimentalidade cognitivo-moral, face
do Carácter, que apreende a multiplicidade, familiarizando o Logos, pela
chefia do movimento, da desenvoltura.

A fenomenalidade é aquilo que permite a própria relação capaz de


desadequar a primigénita Sentimentalidade. Existir adequação do Carácter é
poder corresponder à Unidade basilar do “Ser”, coisa tantas vezes transubs-
tanciada num preconceito, a “adequação” é a Unidade incessante, momentâ-

365
Luís Coelho

nea, querer regrá-la é já “sujeitar” o “Ser” à presciência de uma nódoa sono-


ra, “verbal”. De algum modo, a regra parte do vencedor “moral”, do Agente
capaz de sujeitar tantos outros à métrica logóica. O Princípio esculpe, assim,
o seu Sujeito eficaz, cujo suprimento erótico torná-lo-á capaz de crescer em
puro equilíbrio libidinal, sistémico, numa direcção anterógrada, matando
definitivamente a Saudade, se bem que esta poderá ser retomada perante a
ameaça do meio, que mais não é do que haver novel Princípio combativo,
novo Logos desadequando o palco familiar.

Podemos, claro, conceber o desequilíbrio entre Inconsciente e Cons-


ciente, entre “emoção” e “cognição”, i-Razão e positividade lógica, há diver-
sas possibilidades de luta ou conflito “dual”, o Equilíbrio é aproximar os
pólos, é tornar o Inconsciente, o corpo, a afecção, Fenomenalidade conscien-
te, ímpeto de Presença a partir do qual só o futuro conta para criar o desafio
ao tédio. O desafio poderá desequilibrar, recriando o próprio passado, a
memória salvífica, que é tentar possuir o “Outro”, fazendo-se aceitar por ele,
esta necessidade de aceitação é uma fraqueza reiniciadora do tempo, essen-
cial ao movimento retrógrado que pretende recuperar a Presença futurável
na qual subsiste o Eterno rumor, harmonia fenoménica que extingue as rela-
ções aflitivas e substancia a Racionalidade libidinal, fonte de juventude per-
pétua a querer exaustar os desaforos.

Aproximar Inconsciente e Consciente é, igualmente, harmonizar o


lugar da Psicanálise com o da Fenomenologia “existencial” num Sujeito puro
que é já “Ser”, Presença sem requerer o Espírito “transcendente”, tudo se
processa Aqui, na “práxis” impensante e impensada, que se limita a “existir”,
na plena Unidade empírica. O Equilíbrio, o Eixo demiúrgico, é uma Voz que
perfaz um “futuro” onde soçobrarão outras contradições e desarmonias.

Para Maslow, a visão científica e moral “normal” é dual, dependente da


supressão de necessidades, própria do Ocidente, e não é exclusiva, visto que,
após a extinção das necessidades relacionais, a obrigatória “Individuação”

366
O FisióSOFO

permitirá a vivência de experiências de “êxtase” despidas de objectivos e rela-


ções. Esta é a pura fenomenalidade não intencional, em que a percepção é
“absoluta”, centrando-se no Objecto enquanto “fim em si”, independente do
observador. Claro está que o materialismo e o pragmatismo não concebem
uma percepção inutilitária. O monismo corpo-mente também não o faz, a
não ser que ele implique a transcendência numa outra forma de monismo,
de imediaticidade de uma vivência “essencial”, unitária, em que as coisas se
mostram e desvelam plenamente, numa independência do Sujeito, tornado
Ele mesmo sem espaço, tempo ou origem.

Com obviedade, o materialismo “dual” terá, sempre, tendência para


encarar enquanto “mediado” aquilo que pode compreender uma percepção
“imediata”, fenoménica, do Objecto como “fim”. Quiçá tal consigne uma
ilusão do mundo do “relativo”, onde a norma é “reagir” perante necessidades
de um corpo-mente. A experiência totalizadora, tal como descrita por Mas-
low, será obviada pelo “Ser” individuado, livre de “défices”, capaz de proce-
der a uma atenção plena que lhe forneça o Objecto comum, intemporal,
inefável. Neste ponto, o facto e a Ética, o “Ser” e o “dever ser”, tornam-se um
só, expedidos numa espontaneidade práxica, em que a própria dialéctica terá
sido esticada ao Infinito num fundo de plenitude. Nietzsche não se colocaria
contra este estado finalista, mas não aceitaria o preconceito “moral” que lhe é
normalmente afecto. De qualquer modo, concebe-se, aqui, a moral “totaliza-
dora”, para a qual o terapeuta converge com plena tolerância e “paciência”.
Eis o real projecto transformador e práxico, munido duma estética que visa
diluir as diferenças. O dualismo é encarado, mais uma vez, como mera inca-
pacidade de ver a Unidade, aliás, para ver esta última, é preciso ser cego. Não
remetemos esta “totalidade” para o necessário espiritualismo, moureja uma
perspectiva de “Ser”, metafísica mas não obrigatoriamente teológica. Por sua
vez, poderia a psicanálise patologizar este estado de plenitude, diabolizando o
seu trajecto de diluição das fronteiras do “ego”, mas nem por isso subscre-
vendo o excesso de impermeabilidade egóica.

Não há, assim, uma diferença nítida entre “Ser” e “Ego”, a materialida-
de subscreve-os, o que alguns entendem como “ego” é “Ser” e vice-versa, há,

367
Luís Coelho

antes, preconceito relativo a ambos, ao que lhes desfere a primitividade, mas


em todo o “meio” persiste um “fim”, e cada um destes é um “meio” para
outro “fim”, a própria dialéctica é perene, infinitesimal, o “Princípio” é vero
na medida da sua autenticidade fenoménica.

Assim, para Maslow, a verdadeira atitude terapêutica reflecte o intuito do


“Ser”, de uma absolutidade perceptiva que integra o “paciente” enquanto
“totalidade” ética, não divisível como ocorre na perspectiva científica tradicio-
nal. Trata-se de ver a ilimitação, o Ego sem balizas, na sua transcendência. Esta
fenomenalidade é o palco de uma fusão entre Id, Ego e Superego, o trajecto de
um veio compassivo, com o terapeuta soçobrando perante a emergência da
Unidade, que o implica, como ao paciente. A “paciência” é, portanto, o alicer-
ce da terapia, e o seu tracto é uma experiência extática, “culminante”. Não é a
“patologia” o que move o terapeuta, mas sim a plena Saúde que configura a
sua visão global, que não se subtrai à necessidade categorizadora, fragmentado-
ra, da “normatividade” materializada.

A perspectiva científico-liberal implica a fragmentação “cognitiva” da


realidade, ela gere um modo de poder perante o “paciente”, que difere pro-
fundamente da visão sintética, idiográfica, do “Ser”, que configura o “Todo”
Paciente-Terapeuta. Esta “totalidade” é serena, compassiva, realizadora, ela é
o dentro que é fora, empossando o Sujeito do pleno crescimento “ingénuo”,
“infantil”, prazeroso, em que a Individuação é, igualmente, um modo de
estar com a elipse da Vida comum. Atemos, aqui, o “espírito” materializado,
que, de qualquer modo, depende de uma percepção primigénita, que, apesar
de tudo, pode não cambiar uma visão “positiva” comum, se bem que é pro-
vável que o constitua se se conceber como verdadeiro primitivismo.

O problema da compaixão “excessiva” também é atido por Maslow,


porque pode propiciar a evasão, a cessação da preocupação “vitalista”. É
semelhante à problemática do Placebo, com sua consequente insensibilidade
“vital”. O Insofrimento plenificante não deve abortar o “alarme” “positivo”,

368
O FisióSOFO

com risco de surgir um novo embate “realista” mais difícil de sanar. O estado
de “Ser” implica que toda a realidade é perfeita, mas isso não significa que
não deva ser esgrimida a culpa pragmatista capaz de fazer estender o equilí-
brio entre o Espírito sereno, “passivo”, e a ansiedade vitalista. É esta última
que, aliás, fornece a resultante do processo Racional, calá-la é matar a dor
que prescreve a harmonia “dual”. O problema do Placebo sempre esteve no
seu “irrealismo”, daí a importância do quadrante “positivo”, que é uma outra
forma de fenomenalidade. Na verdade, esta é a vertente que soçobra perante
o “Ser”, aquando do seu esgotamento psíquico. Matar a necessidade é permi-
tir a visão objectiva, se bem que a dualidade deficitária consente, constante-
mente, esboçar a compensação mimetizadora do estado “individuacionante”.
Claro está que o último, a ser irrealista, acabará, sempre, por sofrer uma
“regressão”, que mais não é do que o impacto do “Ser” com a crueza da
empiricidade.

A perspectiva patologizante é de azo a formular uma visão materialista,


em que o Homem não pode ser apartado das suas necessidades, portanto, do
seu passado. Aqui, podemos conceber que a “escolha” é, sempre, determina-
da, neurótica. De algum modo, ela também integra o seu lado “fenoménico”,
são, que se situa no topo da prossecução das necessidades, na vertente “espi-
ritual”, capaz de “exteriorizar-se” com a máxima individuação, autonomia,
liberdade. Esta é a perspectiva do equilíbrio, em que o Princípio do prazer
não se recusa à Realidade, porque esta já não o suspende ou reprime. Neste
planalto “criador”, culminante, a Consciência torna-se “ingénua”, (i)racional,
e teme pouco a empiricidade, que, aliás, abraça e suspende. A Estrutura não
morreu, tornou-se, sim, altamente flexível, saudavelmente defensiva, sem
excessos, aberta à tangencialidade vital. Esta liberdade não se aparta do Cor-
po, mas é maximamente independente, é o estado de “ser Deus”, de “Ser”,
sem a necessidade de um Deus “empírico” confortador.

A Individuação acarreta a extensão erótica do “Ser”, o seu crescimento


“flexível” na relação “vital”, fisiológica, com a Realidade. Aqui, processa-se a
Totalização enquanto materialização fenoménica do Ego altruísta, não é
requerido nenhum Deus exterior, basta a “práxis” carnal, o Verbo equilibra-

369
Luís Coelho

dor que o próprio “ser humano” preenche e personifica. Quando subsiste a


neurose, a compensação “ideadora” limita-se a mimetizar defensivamente o
processo de relação com a vida. Ora surge o poder sublimador, capaz de tecer
a nova moral defensiva, assaz apaziguadora de uma parte do Sistema, ora
submete-se o “Eu” à abnegação repressiva, ideando um Deus “exterior”,
dominador, compensador. Trata-se, aqui, de ser agressivo vs. passivo na rela-
ção com o Real, quando o equilíbrio permite a assertividade referencial no
relacionamento com a empiricidade de vidas, ou seja, a harmonização do
“Ego cogitum” com o que é cogitado, que mais não é do que uma formula-
ção da fenomenologia não intencional, objectiva, que perfaz a consideração
da Realidade “ela mesma”, sem que as defesas a adaptem ou transtornem.

{Fisioterapia, Neurologia e Filosofia27}


Compreender, epistemologicamente, o produto (fisio)terapêutico é fun-
dir, necessariamente, os objectos clínico e filosófico numa unidade substan-
cialmente neural que deveria ser mais frequentemente recrutada. De facto,
toda a fisioterapia é neurológica, no equilíbrio que ela consigna e no desenlace
que proporciona.
Avocando o paralelismo entre espírito e corpo, mente e “physis”, dialécti-
ca e positividade, raciocínio e experimentalidade, a polaridade entre os evoca-
dos cria a dor, enquanto principal expressão clínica. Se o objectivo “função
indolor” é supremo, subsistir um hiato entre movimento e estrutura insofrida
demonstra, mais uma vez, o défice de equilíbrio, de obrigatório monismo
identitário.
No corpo, a zona posterior, “anti-gravítica”, repleta de músculos de
activação fortemente inconsciente, representa o quadrante hipertónico, cujo
bom funcionamento indolor depende da reposição da flexibilidade (neu-
ro)miofascial. A sua defesa é, isomorficamente, hipertónica, na medida em
que sistemas grandemente teoréticos e abstractos, como os baseados na Ree-
1, 2, 3 4
ducação Postural ou no Conceito Bobath , são de expressão mormente
dogmática, muito apoiados na observação de carácter subjectivo, tão demo-
5
nizada pelo modelo baconiano . Segundo os paradigmas em questão, a fun-
ção articular “normal” só poderá ser obviada pelo alongamento adequado

27
Referência: Coelho, L. Fisioterapia, neurologia e filosofia. Gazeta Médica. 2021; 8(4).

370
O FisióSOFO

das cadeias miofasciais, pela inibição da tensão excessiva. Jaz o alicerce teoré-
tico segundo o qual o estado da articulação depende fortemente das condi-
ções de postura e alinhamento. Assim, a par da demonização do trabalho de
força, sobretudo da zona posterior já demasiado “forte” (porque constituída,
principalmente, por músculos com função postural e de fácil encurtamento,
6
e que nunca relaxam por inteiro ), o alongamento insuficiente, bem como o
excessivo, faz por perpetuar o jogo de “deformações”. O segundo referido
poderá originar defesas ou compensações, expressadas empiricamente pela
“dor”. Esta pode ser, também, suscitada pela identicamente demonizável
7
“higiene postural” , que faz por reforçar conscientemente estruturas essen-
cialmente inconscientes e tónicas.
O alongamento exagerado, o descomedimento na prescrição do para-
digma, exprime, assim, a manifestação sintomática, que o mesmo seria dizer
que o paciente reage ao excesso do seu terapeuta. Este é um exceder moral,
com que o paciente pode reagir compensatoriamente com renovada moral
empírica, novel postura, capaz de renovar o objecto da função indolor. A
resultante implica muito mais do que um certo comprimento muscular, é, a
bem ver, um carácter da postura, essencialmente neurológico, que exprime a
adequação da (i)razão descendente à sensitização ascendente, da vontade
“agente” à pretérita paciência empírica. Este é, portanto, o equilíbrio monís-
tico em que a sensação produz a razão, o movimento delineia a posição e a
função arquitecta o alinhamento, a verticalização do intrínseco ráquis, que
“ascende” espiritualmente em confronto e síntese com a realidade, produ-
zindo o “Ser”, que é normativizar, totalizar, a dimensão clínica, que não dei-
xa de exprimir uma dicotomia, bem como a visão fragmentária do próprio
corpo. Esta vertente dual é reguladora, o estado de “Ser” é a nova normalida-
de, se bem que reificada pela realidade. Porque o equilíbrio não pode deixar
de compatibilizar o objecto do “insofrimento” agente com o princípio da
Realidade percipiente, que o mesmo é dizer que se equilibram terapeuta e
paciente num trajecto “vitalista” que destrona consecutivamente a visão clí-
nica fragmentária, tendencialmente dogmática, em nome de uma holistici-
dade sana.
O potencial holístico integra a realidade clínica na novidade contínua
duma patonormatividade neural, postural, heurística, que se obtém crescen-
temente pela acção espontânea, individuadora, sintetizadora, de um “Eu”
aberto à relação e eticamente desvelado. Tal objecto dispensa a prescrição
dogmática, potenciando o movimento, a força, que, agora, pode ser livre-

371
Luís Coelho

mente trabalhado pelo paciente-agente. A potência manifesta liberta-se natu-


ralmente duma estrutura flexível.
Obviamente, uma postura funcionante poderá implicar uma descom-
pensação para outrem, do mesmo modo que um terapeuta se pode placebeti-
zar à custa do desequilíbrio do paciente, ou que uma psique adequada pode
desadequar uma “physis”, mas isto é assumir, mais uma vez, a necessidade de
uma harmonia neural funcional e criadora que permita urdir inúmeras pos-
sibilidades de “Ser”.
Referências bibliográficas
1. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
2. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
3. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
4. Bobath B. Adult hemiplegia. Elsevier Health Sciences; edição original de
1970.
5. Bacon F. Novum organum. Porto: Rés; edição original de 1620.
6. Coelho L. Mézières' method and muscular chains' theory: from postural re-
-education's physiotherapy to anti-fitness concept. Acta Reumatológica Portu-
guesa. 2010;35(3):406-7.
7. Coelho L. Raquialgias: Modelos fisioterapêuticos e preventivos. Gazeta Médi-
ca. 2020;7(3).

O “Sentimento trágico da vida” de Miguel de Unamuno enquadra o tra-


jecto (des)equilibrante, precisamente, entre a Razão (materialista), denegadora
da imortalidade da alma (pessoal), e o Sentimento, a “vida” que não pode dei-
xar de acreditar na mesma imortalidade. A problemática do filósofo é menos
respeitante a uma suposta Ética Universal, espiritual, totalizadora (para a qual,
de qualquer modo, a razão poderia concorrer, mas talvez não tanto o materia-
lismo puro e relativista) do que a um Sentimento de vera imortalidade pessoal
da Consciência. Claro está que este Sentimento pode ser enquadrado materia-
listicamente, tal como podemos “materializar” a Razão “ideal”; por sua vez,
esta materialidade também se conforma à noção de vontade, até a ciência res-
ponde a um desejo. Ora, a par dos completamente pessimistas (materialistas) e

372
O FisióSOFO

dos idealistas, e assumindo, mais uma vez, que ninguém é “absolutamente”


seja o que for, é precisamente a “incerteza” que revela o “sentimento trágico da
vida”. Porque ninguém poderia viver absolutamente materialista/idealista, o
Sentimento de Unamuno encontra-se, justamente, na dúvida, no seu desejo,
que é, tal-qualmente, o desejo que alimenta um materialismo que, por sua vez,
exprime um desespero, uma dúvida relativamente à possibilidade de existência
de uma alma “independente”, e é, também, a dúvida pessimista, racional, a
gorar o caminho certificante do “querer” dos “crentes” na imortalidade. Por-
tanto, o sentimento trágico da vida remete para uma ambiguidade, para um
“querer” que pode contrapor ao que superficialmente se defensa, não para a
incredulidade, que denega qualquer caminho.

Uma defesa vitalista excessiva, neste contexto associada ao “insofrimen-


to”, poderá repercutir um estado de incredulidade, de doença, que descom-
pensa o Sujeito face à “vitalidade” racional, logóica. No pólo oposto, no “Inso-
frimento” pleno, podemos relevar a impassibilidade, que aproxima o ser da
morte, da indiferença. É certo que este é o estado mais criativo, aquele em
que o Homem recria os códigos, bem como o novo equilíbrio. Um equilíbrio
qualquer, uma Estrutura “racional” possível, pode compensar muitos indiví-
duos, aligeirando o seu “pathos”. A Estrutura em questão pode, já, ser um
modo de equilíbrio, mas este é, sobretudo, um estado patológico, aceite, de
dúvida entre a Estrutura terapêutica, racional e/ou salvífica, e a estrutura
própria, que subentende o desejo irracional na relação ambígua com a razão
logóica. A Vontade é, aqui, permanecer “escolhendo” entre o desejo mais
profundo e a necessidade de o trazer à prova “material”, é a incerteza que
formula o caminho, a ipseidade contínua num “porvir”.

Não é possível “escolher” verdadeiramente quando o indivíduo permane-


ce cerzido, em excesso, pelo desejo irracional, defensivo, nem quando o sujeito
sublima ou se “estrutura”, porque, aí, sugerem-se compensações “indiferen-
tes”, que poderiam ser, já, a resultante da escolha. O “sentimento trágico da
vida” é a dúvida com que é imprescindível viver. Compensações, sublimações,
defesas, mimetizam a “indiferença” de um Sujeito conduzido à Vida incrédula.
Também a Razão poderá gerar tal incredulidade “irracional”. A vitalidade

373
Luís Coelho

“consciente” é naturalmente ambígua, aquele equilíbrio é, apenas, uma dilui-


ção “espiritual” da dúvida, das oscilações, que, geralmente, remetemos à duali-
dade carnal, “material”. O “sentimento trágico da vida” é o “querer” ambiva-
lente, ele renuncia à própria certeza porque a Vontade precisa da relação dual
com o seu Objecto. Aqui, a saúde é o intrínseco “pathos”, a doença e a morte
os seus extremos.

A noção de Transcendência reforça o sentido moral do “Eu” e dos


povos, mas ela não exige, necessariamente, o acto moral. E quanto mais este
acto estiver contido num desejo de transcendência, menos moral ele é, a não
ser que possamos considerá-lo “moral” na sua egoicidade. Por outro lado,
podemos considerar que a razão, mesmo a empírica, pode elaborar a morali-
dade, como pode estar contra ela. E a Razão moral pode, ou não, levar à
Transcendência. Claro está que esta não é aceite pela empiricidade, mas a
última não é necessariamente incompatível com a Natureza “moral”. Cada
“ente” e cada movimento histórico faz variar aquela para além do ponto
onde seria possível retomá-la por completo. Obtemos vários Princípios,
emocionais e racionais, irracionais e empíricos, todos eles logicamente redu-
tíveis, e diversos modos de equilíbrio demiúrgico, soçobrando, sobretudo, o
“querer”, que é sempre “moral” e “racional”, na medida em que é “real”. O
“querer” colectivo impõe, obviamente, limites ao pessoal, a Razão poderá
conduzi-lo, mas, teoricamente, a transcendência não é a sua razão de existir.
Na prática, só essa crença pode, de facto, alimentar a moral colectiva, como a
moral pessoal. A Transcendência “em vida” e “consciência” culpabiliza o
sentimento de “querer”.

Prometeram-me a transcendência, agradeceram-me (com) a moral. É


injusto!

Segundo Unamuno, o verdadeiro objecto “transcendente” de vida é a


vivência “consciente”, a imortalização do “ser”, pelo que o “pathos” é a genuí-
na apetência, o seu excesso “apegado” torna o indivíduo frágil e defensivo,
possibilitando, também, o desequilíbrio, a descompensação, a doença, que é

374
O FisióSOFO

uma promessa de recuperação do “pathos” “normativo”, do apego sensato,


mas não necessariamente moral no sentido “colectivo”, é moral para o “Eu”,
mas sem o verdadeiro transcender mortificante, que só é defendido porque
facilita a vivência moral, impassível, mas esta não é o genuíno Objecto, se
bem que o mais seguro dos indivíduos poderia ser dado como pouco apega-
do à vida “consciente”, mas isto aproxima-o da morte, desloca-o da aventura
do (des)equilíbrio que (des)moraliza vários agentes de uma Moral repleta de
crédulos e descrentes racionais.

A ninguém ocorre que pode viver para além da morte no mesmo estado
de sofrimento que o matou. Pelo menos, a ninguém ocorre matar-se por isto.

Enquanto continuares a respeitar apenas quem te atrai não conseguirás


atrair quem te respeita.

{A dor da Fisioterapia (e da Filosofia)28}


O tracto fisioterapêutico afecto ao sofrimento artrálgico, para além de
ter muito em comum com o trabalho psicoterapêutico, possui um paralelo
com a Filosofia, em geral, e a epistemologia, em particular. Não é, portanto,
de todo incoerente falar, cada vez mais, de uma “fisiodinâmica” ou, até, de
1
uma “fisiodialéctica” , termos de perfeita obviedade epistémica.
Os termos são óbvios porque a dialéctica sempre foi essencialmente
materializável, senão redutível a uma “physis” que, de qualquer modo, inte-
gra o aspecto mentalista. Mas essa materialidade não evita que tudo se passe
nos termos de uma fenomenologia implicativa da relação terapeuta-paciente.
Este aspeito, obrigatoriamente, subjectivo, é “agente” e radica num gesto
terapêutico que produz uma resultante empírica, que, por sua vez, se traduz
em novel interpretação fenoménica. A interpretação “dinâmica” desloca os
conteúdos necessariamente subjectivos do terapeuta e isto esboça-se num
trabalho “paciente” que, acaso seja “desequilibrado”, fabrica a dor. O pro-
28
Referência: Coelho L. A dor da Fisioterapia (e da Filosofia). «Dor» (Associação Por-
tuguesa para o Estudo da Dor); 2021; 28(2):91-93.

375
Luís Coelho

blema ancora, sobretudo, na “agressão”, no excesso de alongamento e/ou de


reforço, com o potencial de esgotar a estrutura, com o concomitante enlace
de disfunção.
Há, claro, a tentação de grassar na analogia do corpo-mente: a zona
posterior do corpo é fundamentalmente anti-gravítica, inconsciente, “caver-
nosa”. O seu trabalho é contínuo, os músculos agem como um “todo”, em
2, 3, 4
cadeia muscular (seria mais apropriado denominá-la de cadeia neuro-
-mio-fascial), em modo semi-voluntário, espontâneo. É aqui que ocorrem as
grandes defesas ou compensações. Há muito que se considerou que esta
musculatura tem um potencial de achatamento das articulações, de lhes
modificar o alinhamento, mas isto inclui, provavelmente, o aspecto neuroló-
gico. A zona anterior do corpo seria, assim, fundamentalmente fásica, volun-
tária, consciente, afecta à relação “liberal” com o exterior. Um desequilíbrio
postural não se limita a uma fraqueza, a uma “corcunda” no aspecto, é, na
verdade, uma desarmonia entre os pólos sugeridos, o que inclui os pólos
terapeuta-paciente.
A acção terapêutica “agressiva”, incluindo o excesso de alongamento,
desloca, então, o complexo de defesas do paciente. Estas assumem o aspeito
de uma dor “manifesta”, que possui o poder de redesenhar a postura. A
novel postura traduz a “vontade de poder” (Nietzsche) do paciente, agora
agente de um Sistema que poderá ser redimensionado dinamicamente. Esta
transformação global pode produzir inúmeros outros pacientes, mas também
poderá equilibrar outros “agentes”. Nos excessos do terapeuta inclui-se, igual-
5
mente, a higiene postural , bem como todas as tentativas de activar conscien-
temente cadeias, complexos, de músculos que são de tracto involuntário.
Assim, a musculatura tónica exige, essencialmente, ser inibida, a sua força virá
da nova flexibilidade, do alongar do sistema de defesas. Todas as actividades
“agressivas”, grandemente “desportivas”, implicam essa flexibilidade, sem a
qual há maior probabilidade de se accionarem as defesas “álgicas”. Haver
maior capacidade de alongamento é subsistir maior robustez intrínseca, e isto
torna o Sujeito mais resiliente, mais “empírico”. Só depois de ser readquirida a
flexibilidade “inconsciente” poderá o indivíduo funcionar exteriormente com
menos dor e menor probabilidade de agressão. O excesso de tonicidade defen-
siva compromete, portanto, a relação da musculatura fásica com o ambiente,
na medida em que esta terá de vencer a resistência da primeira.
Inibir os músculos muito tónicos e reforçar os fásicos é a regra “reedu-
cativa” do equilíbrio, e isto implica um conhecimento discriminatório do

376
O FisióSOFO

corpo, ao mesmo tempo que o tratamos como um “todo” afecto à idiossin-


crasia. Fortificar sem grande discriminação aumenta o risco de desequilibrar
a Estrutura, repercutindo as compensações, deslocando patologicamente as
“energias” psicofísicas. Paradoxalmente, novel Estrutura pode advir de um
excesso “terapêutico”, mas, aqui, comporta um risco que rememora o mero
ímpeto de um caminho “normativo”, de um “fim” adequado, quando, a bem
ver, não é tacitamente possível supor uma “normalidade”. Mas é precisamen-
te esta a flexibilidade que se propugna, e que visa, na verdade, um equilíbrio,
que não tem de ser único e finalista.
Por vezes, o excesso dogmático, a presunção de verdade “una”, mina o
tipo de equilíbrio que aqui se defensa. Também ele desloca um complexo,
que é, no fundo, uma necessidade de compensação que acaba por gerar mais
desequilíbrio. Como não é possível garantir um equilíbrio sistémico absolu-
to, então parece ser mais razoável compor, precisamente, a equilibração do
alongar do dogma defensivo com a fortificação da liberalidade muscular. Isto
exige um terapeuta empiricamente sadio, pouco defensivo. Exige que este
esteja alerta aos seus intrínsecos excessos subjectivos, incluindo os que advêm
da própria ciência. Porque é, afinal de contas, esta, a sua manifestação “posi-
tiva”, que ajuda a controlar o exceder do dogma. A dor é, então, muito mais
do que a resultante do desequilíbrio entre Razão e empiricismo, é o ventre de
um novo equilíbrio, que subsiste no alerta e se reinventa na desmesura. Daí
que apagar completamente a dor possa ser contraproducente, porque ela
satisfaz as condições de harmonia, porque a sua ausência pode ter as mesmas
consequências que o seu excesso: a reinvenção das compensações, das defe-
sas, que, por sua vez, levam a mais dor.
O equilíbrio postural entre a estrutura racional e a empiricidade cientí-
fica é, assim, a própria dor afecta à vida. A sua supressão é impor o “insofri-
mento” pleno ao princípio da Realidade. É, curiosamente, semelhante ao que
ocorre com o efeito placebo, que, pelo seu “irrealismo”, pode gerar mais
desequilíbrio. A morte é a representação do insofrimento absoluto, mas exis-
te uma vida, que é figurada pelo princípio empírico, e pela vertente clínica
propriamente dita que a justifica.
Ora, o trabalho terapêutico é, assim, um exercício de vida, que não pode
prometer o puro insofrimento, na medida, também, em que não pode sub-
trair-se à “evidência”. Pode, apenas, equilibrar, que é, na verdade, aproximar
os pólos em jogo, repercutindo a impassibilidade do corpo-mente. O equilí-
brio terapeuta-paciente não pode dispensar a dialéctica, a dualidade, mas

377
Luís Coelho

pode aligeirá-la, que o mesmo é dizer que podemos aligeirar o trabalho mus-
cular, promovendo o equilíbrio postural. Este contribui para a verticalização
do “duo”, com obrigatória aproximação da “totalidade” cimeira e axial. O áxis
é o ráquis, que cresce, entrecortando, mesmo assim, as duas esferas necessárias
ao labor científico. Labor terapêutico, tendencialmente “igual”, mas de posi-
ções definidas, vitais à harmonia muscular. Porque, em qualquer postura, exis-
tirá uma parte mais defensiva e outra mais “activa”. Que os papéis sofram uma
inversão “transferencial” não é coisa rara, isto mostra a plasticidade do traba-
lho terapêutico; o terapeuta é, bem vendo, constantemente paciente do seu
paciente, pelo que as dores se partilham, mas deve subsistir o equilíbrio.
Claro está que, em matéria de conversão mente-corpo, tudo isto se
repete. Quando a “psique” dói em exagero converte-se na manifestação
somática. Se calamos o corpo completamente, obrigamos a psique a recon-
verter-se. E este (des)equilíbrio não pode ser reduzido à relação “dual”, ele
impõe-se a um Sistema mais vasto, que, por sua vez, se impõe ao complexo
terapêutico. Nada pode prevenir as desmesuras do exterior, mas o equilíbrio
em causa cria a robustez postural necessária. Trata-se, assim, do paciente do
Sistema passar a agente, quiçá terapêutico, do conjunto. Sem um “fim” preci-
so, porque a vida é desvelar e revelar em retorno perpétuo. Mas soçobra o
“Ser”, não espírito absoluto, nadificador, mas parte da Vida consciente.
Bem vemos que o dualismo terapêutico é crescentemente monista, mas
nunca assume completamente a unidade, senão quando já não há terapeuta
ou paciente, mas somente “Ser”. E, no entanto, do “espírito” só se poderá
cair na matéria, pelo que, mais uma vez, se implora o equilíbrio, que é uma
maneira de perpetuar a vida “insofrida”, perpetuamente crescível para o
exterior. As possibilidades futuráveis são inúmeras, mas somente a boa pos-
tura poderá patrocinar a evolução diferencial, criativa, plenamente empírica.
E isto implica que também a Razão “ideal” se deverá fazer polícia da clínica
grupal. Não se pretende alicerçar o equilíbrio na regra do conjunto, nunca se
perdeu de vista a especificidade, a idiossincrasia, o palco psico-físico onde
tudo acontece dinamicamente, fenomenicamente. Este é um corpo que fala, e
as suas dores são a sua sinfonia. Um corpo mudo (para o outro) é, frequen-
temente, um corpo inaudível para o seu dono. Quiçá não seja seu dono, mas
sim um escravo da percepção. Mas a percepção heurística só faz sentido num
corpo intencional, sem as muralhas que frequentemente desmantelam o
livre-arbítrio, fazendo ressoar a mesma inconsciência que adviria do apaga-
mento completo da dor consciente, das “dores do mundo” (Schopenhauer).

378
O FisióSOFO

Queremos, portanto, que o equilíbrio dual, o poder “terapêutico”, se


torne progressivamente unitário, para que não soçobremos perante a devassa
da interioridade que é tentação do modelo “biomecânico” de saúde. Ver o
corpo-mente como um “todo” é inibir o próprio dogma do cientismo frag-
mentador, que, comummente, preenche as necessidades de um sistema neo-
liberal e, até, mercantilista.
No pólo “ideal”, atemos o problema das terapêuticas dogmáticas place-
betizadoras, que, fornecendo o viático, perpetuam a “paciência” do paciente.
Há, aqui, vulgarmente, uma dupla vítima da subjectividade, o “terapeuta”
em conjunto com o paciente, mas isto é voltar à mesma problemática que já
expusemos.
Referências bibliográficas
1. Coelho L. O homem-Nada. Corpo, dialéctica e relativismo moral. Edições
Mahatma; 2016.
2. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
3. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
4. Coelho L. Mézières' method and muscular chains' theory: from postural re-
-education's physiotherapy to anti-fitness concept. Acta Reumatológica Portu-
guesa. 2010;35(3):406-7.
5. Coelho L. Postura e dor articular: Fisioterapia e epistemologia. Revista da
Sociedade Portuguesa de Anestesiologia. 2021;30(3):130-131.

{Acupunctura e efeito placebo: filosofia da dor29}


Na mesma medida em que a história da Filosofia (e da Espiritualidade e
religião) compreende uma dialéctica redundando o “sofrimento”, a medicina
e a fisioterapia não se excluem de se sofrerem e de arguírem da relação entre
a dor e o exercício da sua evicção. Por vezes, em medicina, como, parcial-
mente, na Filosofia e na religião, é o próprio processo vital que se pode
impor à necessidade de “sofrer”, o que remete para um dos paradoxos da
intrínseca existência.
O paradoxo estende a própria dualidade (psicanalítica) “prazer” vs.
“Realidade”, sendo que o (i)limite do “desprazer” não pode deixar de convir
29
Outubro de 2021, publicado em «Healthnews», Janeiro de 2022.

379
Luís Coelho

à morte. Mas, mesmo em Schopenhauer, não existe propriamente um convi-


te ao suicídio, mas a apologia à vivência sofrida, que é um modo de nos
irmos “matando” na aproximação à, defendida pela patrística, impassibilida-
de. Toda a dialéctica pressupõe, de qualquer modo, o duo “insofrimento” vs.
“vida”, e (também) porque existe um apego generalizado à intrínseca cons-
ciência psicofísica, Filosofia, religião e medicina sempre demonizaram a
“morte” concreta, ao mesmo tempo que procuraram aliviar tudo o que
ameaça a sua aproximação.
É verdade que certa filosofia dogmática se deixou atrair, bastante, pelo
objecto de mortificação do corpo, mas, mesmo aqui, existia um apego (empíri-
co) pela consciência, talvez nunca adequadamente assumido. Desse modo,
muitos Sistemas dogmáticos não puderam deixar de fornecer uma solução de
“salvação” concreta do Sujeito, que poderia fazer sentir-se no quadro somático
e vitalista. Não obstante, muitos desses Sistemas criaram uma visão do corpo-
-mente pouco “realista”, mais tarde quase ridicularizada por certo materialis-
mo. A crítica estendeu-se a Claude Bernard, cuja perspectiva “fisiológica” e
experimental se revia na fenomenologia do “real” corpóreo, não se querendo
subtrair, sequer, aos termos “espiritualismo” ou “materialismo”. O autor ata-
cou, fortemente, as lógicas subjectivas, bebidas da escolástica, e que alimentam,
mais, a abstracção, do que a concretude “física”.
E, no entanto, há, como epifenómeno da pós-modernidade e de um
certo regresso ao “Espírito”, uma resistência feroz à plena cientificidade, que
se revê, particularmente, na apologia de algumas “terapêuticas não conven-
cionais”. A sua defesa é, já por si, um buscar da satisfação interna, incluindo
certos aspectos ideais e societários. Na mesma medida em que podemos con-
ceber o exercício religioso como um placebo gigantesco, não poderá deixar
de se conceber o último como alicerce fundamental dos aspectos subjectivos,
como os que são arquitectados pelos modelos (de saúde) mormente abstrac-
tos. De algum modo, para certo “espiritualismo”, e, até, para parte da psico-
logia empírica, o placebo é o grande determinante, na mesma medida em
que está no fim “perceptivo” de tudo. Este “fim”, esta fenomenalidade da
vida (para Michel Henry), não pode, não obstante e em tempo moderno,
deixar de se conceber como receptáculo “físico”, onde, segundo, por exem-
plo, o pragmatismo de Peirce, só conta a resultante contabilizável, mensurá-
vel. Para parte do materialismo, tudo o que interessa é essa resultante, pelo
que secundariza o aspeito da abstracção fenoménica, o próprio sentir, que
filósofos antigos, e alguns modernos, assumiram ter origem superior, deiéti-

380
O FisióSOFO

ca. Obviamente, para o materialismo, essa é uma origem, no mínimo, irrele-


vante, pelo que o placebo espiritual a que tudo se resumiria só vale pela
resultante. E esta não é apenas (i)Racional, inclui o corpo como um todo, nas
suas vertentes descendente e ascendente.
E são também essas vertentes que devemos tomar em consideração em
toda a discussão em torno da “dor” e do sofrimento. Claro está que os mode-
los abstractos se implicam, mais, na questão do (in)sofrimento, na porção
mentalista da coisa, mas, concretamente, também dilucidam a intrínseca dor.
O caso pragmático do que a “acupunctura” revela é interessante porque
inclui todas as esferas e os paradoxos correspondentes. A teoria antiga que
subjaz à acupunctura não tem, obviamente, um equivalente “material”, é,
portanto, demonizada por muitos clínicos, mas isto não significa que uma
teoria “materialista” não possa subscrever o seu mérito no tratamento da
dor. A “Teoria do Portão” da dor, proposta por Melzack e Wall, em 1965,
continua a conter muitos adeptos e a satisfazer algumas das questões tratadas
relativas à dor/sofrimento. Sugere a teoria que certas formas de activação
sensorial, nomeadamente o estímulo das fibras grossas (A-BETA), podem
fechar o “portão” medular à passagem do estímulo nociceptivo, ao contrário
do estímulo das fibras finas (A-DELTA e C), que abririam o portão. Aduziu-
-se, logo, que as agulhas da acupunctura poderiam ajudar a controlar a dor,
pelo estímulo efectuado nas fibras grossas provenientes da pele. Curiosamen-
te, a teoria explica, parcialmente, o próprio efeito placebo, relacionado com
as influências provenientes dos centros superiores do Sistema Nervoso Cen-
tral, incluindo o papel dos opióides endógenos, e sua influência no mecanis-
mo do portão.
Assim, a acupunctura poderia satisfazer diferentes paradigmas, se bem
que não os proponentes das explicações clássicas, incapazes, por sua vez, de
satisfazerem o “modus” empírico. O próprio efeito Placebo ficaria a depen-
der de um mecanismo simultaneamente ascendente e descendente. Obvia-
mente, o mecanismo descendente afecta a medula e, portanto, o mecanismo
ascendente. Nos níveis superiores, o que “ascendeu” é aposto a uma referên-
cia, que integra experiências pretéritas.
Essas experiências ajudam a calibrar o aparelhado “inato” da Razão, e
esta vê-se envolvida nos mecanismos de acção e relação com o exterior. Por
sua vez, a relação ajuda a arrolar a referência (i)racional.
Ora, certos modelos de trabalho fisioterapêutico, ao exigirem demasia-
da flexibilidade, tanto miofascial quanto de referências nociceptivas, acabam

381
Luís Coelho

por fazer aumentar a dor, levando o paciente a compensar. O alongamento


desmesurado é afeito a um excesso dogmático do terapeuta, levando a mais
paciência álgica por parte do doente. Porque aquilo que satisfaz o terapeuta
pode insatisfazer o paciente, o último poderá querer compensar a um ponto
que remete para a esfera global e societária. Porque a dor acrescida exige o
ajustar das referências do paciente, e isto pode mexer com a esfera psíquica
mais generalizada, incluindo muitos outros indivíduos. Por outro lado, a
compensação psíquica pode criar novel exigência ao corpo, porque o leva a
exceder-se na flexibilidade referencial sensorial. Entretanto, a compensação
psíquica de uns poderá descompensar muitos outros, com a agravante da
(des)compensação física.
Vejamos, agora, porque o trabalho realizado estritamente no sintoma
pode realizar outro paradoxo. Aqui, o placebo poderá ter um percurso seme-
lhante ao do tratamento “local” da dor: o sintoma ausenta-se, convidando a
novel flexibilização das referências neurais, superiores, que pode não possuir o
acompanhamento tecidular adequado. De modo semelhável, promover o
movimento indolor é arriscar criar mais lesão. De certa forma, convém que
alguma dor, determinado alarme, permaneça dirigindo a relação sincrónica
das referências superiores com o estado do tecido periférico. Isto é, no fundo,
convidar à orientação empírica do processo do “sofrer”, equilibrando-a com a
componente descendente. A própria componente empírica inclui o equilíbrio
entre a vertente ascendente e a descendente, esta é a encomenda da ciência.
Assim, a acupunctura poderá representar um falso equilíbrio, porque,
mesmo assumindo que integra (i)razão ascendente com factor sensorial, tem
o demérito de não tratar a causa do problema. Isto é como viabilizar o factor
meramente subjectivo, sem atender à Realidade. Talvez a questão não se
coloque quando a dor se tornou, ela mesma, uma doença sem relação ime-
diata com a lesão. Aqui, o aspecto subjectivo recrudesce e ele pode, também,
relacionar-se com o funcionamento do “portão da dor”; precisamente por-
que uma dor transtorna as referências nociceptivas, o seu tracto pode levar
ao alívio dessa exigência. Mas, provavelmente, só se a mesma já não tiver
uma função sensorial tão inolvidável. A acupunctura poderá, assim, ter gran-
de préstimo no tracto da dor crónica, mas será mais arriscado usá-la enquan-
to meio único de controlo da dor “sensorial” propriamente dita.
Portanto, representa-se, aqui, o perigo do intrínseco placebo, que deve-
rá ser obtemperado pela empiricidade, não deixando, todavia, esta de permi-
tir redesenhar, levemente, as referências álgicas estruturais. O perigo para

382
O FisióSOFO

estas é sempre sensorial, “de fora”, mas a flexibilidade estrutural cria a robus-
tez. Impor um modelo terapêutico é trair as referências ascendentes, bem
como as descendentes, no formato de um “nocebo”.
Claro está que a “normalidade” referencial se revê no “comum” societá-
rio, qualquer ameaça surge de fora, mas a partir de dentro, de outro indiví-
duo, ou do próprio meio. A referência psicogénica estranha pode, então, ser
mais placebetária ou nocebetária. A flexibilidade, tanto ascendente, quanto
descendente, diminui o risco de transformação algésica. Menor flexibilidade
aumenta o risco de algo mudar, no limite é a própria referência “social” que
muda. Portanto, aumentar a flexibilidade miofascial e nociceptiva pode ser
vantajoso, mas há que aduzir certos limites, que são os da própria “normati-
vidade” idiossincrática e psicossocial.
Regressando à dualidade “placebo” vs. “empirismo”, reforça-se, mais
uma vez, a importância do referencial empírico, clínico propriamente dito,
porque ele é a própria “normatividade” em ambiente moderno. Apelar ao
placebo é, bem vendo, apelar à descompensação, porque muitos sabem que
ele é lesto e de pouca durabilidade. Nos que nele não acreditam, a eficácia é
menor. Os que mais acreditam nele, ou, pelo menos, no seu conteúdo abs-
tracto, são precisamente os menos psiquicamente robustos, tal-qualmente os
pós-modernos em ambiência científica. O método empírico serve, assim,
mais ao próprio empirismo normativo, não podendo, claro, desleixar-se o
aspeito psíquico, idiossincrático. De igual modo, o placebo idiossincrático
poderá sofrer da erosão empírica e sensorial consignada pelo “exterior”.
Impor um modelo poderia, aqui, passar por impingir um referencial norma-
tivo único, mas, para além da fraca legitimidade da coisa, poderá não se
ganhar muito com isso. No outro pólo, atemos a vertente definitivamente
dual, criando, quiçá, mais tolerância para todos os envolvidos no Sistema.
Ganha a própria “normatividade” com alguma tolerância face às terapêuticas
não convencionais, doutro modo, poderá desenhar-se uma forma de resis-
tência gritante, com envolvimento de muitos “inocentes”. Ganha, ainda
mais, o “todo” com o equilíbrio empírico permanente, que tem de contar,
obviamente, com uma moral mais ou menos estável, mas, também, com a
probabilidade de uma mudança mais ou menos sensível.
Se bem que a moral empírica implica alguma fragmentação lógica, a
bem do rigor “material”, esta distância nunca poderá ser de modo a abortar a
intrínseca “totalidade” terapeuta-paciente, no entanto, se avocá-la é, já, um
placebo, levá-la a um extremo destrói a própria liberdade dialéctica do Siste-

383
Luís Coelho

ma. Matar-se-ia o movimento, satisfazer-se-ia o “insofrimento”, extinguindo


as possibilidades de transformação do outro, por interferência contextual. A
re-solução completa do Sistema não é matéria clínica, no sentido equilibran-
temente empírico, é matéria dos deuses. A assertividade pura pode conter
tamanha perfeição. Só a “agressividade” vs. “passividade” pode fazer desdo-
brar o complexo inconsciente de intenções num desequilíbrio capaz de esti-
car a linha do absurdo consciente de transferências perpetuáveis. Em todo o
processo se trata de transformar o sofrimento somático numa dor conscien-
cializável, prestes a tecer-se na plasticidade de um “outro”.
Referências bibliográficas
1. Freud S. Para além do princípio do prazer. Relógio D'Água; edição original
de 1920.
2. Schopenhauer A. O mundo como vontade e representação. Rés Edições;
edição original de 1819.
3. Bernard C. Introdução à medicina experimental. Guimarães edições; edi-
ção original de 1865.
4. Henry M. O começo cartesiano e a ideia de fenomenologia. Phainomenon.
13:179-190.
5. Peirce C. A fixação da crença. Popular Science Monthly. 1877;12:1-15.
6. Melzack R, Wall P. The challenge of pain. Penguin Books Ltd; 1982.

Os que sabem que nada sabem têm o dever de evitar que os outros che-
guem a semelhante saber.

Só precisamos de ver um pouco para saber a maior parte. Imaginem se


fôssemos cegos.

{Cirurgia e Fisioterapia: dialécticas}


Diálogos e polaridades concorrem para um objecto “manual”, funcio-
nal, que comunica Cirurgia e Fisioterapia num eixo demiúrgico, unitário,
que, no seu aspecto final, parece suspender as primeiras contradições episté-

384
O FisióSOFO

micas entre as duas práticas. Faça-se a sua análise, bem como o caminho de
síntese, coisa não irrelevante para a compreensão da própria relação médi-
co/terapeuta - paciente.
Precisamente a última, por assentar numa díade onde avultam deslo-
camentos internos e transferências psicossociais, coloca o assento no que
alguns contrapõem à cirurgia: o facto de possuir um quadrante fortemente
“impessoal”, biomecânico, qualidade cruenta capaz de distanciar o objecto
“paciente”. Mas a Fisioterapia não é menos biomecânica e impessoal na sua
tecnicidade (não apenas manual), ela, tal como a cirurgia, não pode escusar-
-se ao seu papel “fisiológico”, sem o qual não passaria de pouco mais de um
placebo confortador; a relação “dialéctica” é o lugar da dicotomia cujos pólos
terapeuta/médico e paciente requerem o necessário afastamento objectivo,
arcaboiço do próprio modelo científico-positivo, sem o qual a intrínseca
relação psíquica não se perfaz.
Claro está que a qualidade psíquica parece avultar mais na relação tera-
pêutica contínua, sendo que ela põe em destaque uma série de itens “ideais”,
que assumem, particularmente na Fisioterapia, o papel de dogmas, que, às
tantas, a aproximam do fantasma da pseudociência.
1
Já Claude Bernard alertava para o excessos escolásticos da lógica inter-
na, passíveis de esculpir a teoria incompatível com o acontecimento fisiológi-
co. Mas a última não pode, de todo, ser denegada, é, na verdade, ela que aco-
de ao raciocínio clínico, e é a este, à sua qualidade observacional empírica
2
(Francis Bacon ), que acodem as grandes teorias, os sistemas de forte com-
ponente abstracta.
Consabidamente, a Fisioterapia pode e deve estender a Cirurgia nas suas
diversas dimensões clínicas, bem como em “actos” modelares: há que disten-
der as estruturas retraídas, as cicatrizes, quiçá o que a cirurgia acabou de
libertar, há que reforçar o que se enfraqueceu pela sutura, fazer o levante, o
equilibrismo, do acamado, deslocar o paciente apático, tudo isto fomenta os
ganhos da cirurgia, por vezes, é o único modo de funcionalizar os ganhos
operatórios. Guidelines são, muitas vezes, estabelecidas, parecem receitas,
mas são, a bem ver, uma forma de defender o clínico dos seus próprios
excessos dogmáticos, teoréticos, os quais transcrevem a desmesura do acto
terapêutico, colocando, frequentemente, a resultante cirúrgica em risco. E
não se trata, aqui, só de um problema de excesso de zelo, trata-se do facto de
o zelo poder urdir a própria descompensação interna, psíquica, que nenhum
placebo poderá contender no seu tempo útil.

385
Luís Coelho

Mas é justamente de compensação psíquica, de placebo, que trata o


excesso dogmático do terapeuta, prestes a causar a descompensação do seu
paciente. O excesso em causa é frequentemente urdido contra a própria
medicina, contra o seu suposto “cientismo”, levando alguns terapeutas a
seduzirem alguns pacientes no sentido de evitarem o tracto cirúrgico, um
pouco à imagem do que promana de certas terapêuticas não convencionais,
no seu intuito mais “alternativo” do que adjuvante.
Existe uma imagem “corpórea” que tem sido usada pelo autor deste texto
para criar a analogia perfeita. Como sabemos, a musculatura anti-gravítica,
muito presente na zona posterior do corpo, é de activação constante e “defen-
siva”, essencialmente involuntária. Tem sido, muitas vezes, reiterado que o
alinhamento articular depende, grandemente, do estado de retracção dessas
estruturas, das “cadeias musculares”, aliás, das cadeias “neuro-mio-fasciais”,
sendo que o excesso destes músculos seria, assim, mais relevante para a criação
de deformidades ou artroses do que o conjunto das actividades funcionais.
Aliás, dor e disfunção adviriam daquela desmesura, não sendo, de todo, acon-
3, 4, 5
selhável reforçar de qualquer modo.
Assim, desportos, como a natação, que muitos “receitam” ao paciente
com, por exemplo, raquialgia, deixariam de ser vistos como “panaceia”, sen-
do que a nova teoria, essa sim, viria substituir o intento salvífico da interven-
ção terapêutica.
Receitas, propaladas como médicas, e demonizadas enquanto científico-
-positivas, vêem-se, frequentemente, ser abaladas pela forte convicção dos
proponentes das grandes teorias. Ao invés, portanto, de ser defensar, por
exemplo, a higiene postural, afecta à receita “consciente” fortificadora, passa
a advogar-se a “reeducação postural”, que permitirá alongar o que aquele
sistema fortaleceria sem piedade. De facto, a musculatura posterior é de trac-
to semi-voluntário, mas defensar o seu mero alongamento é, de todo, insufi-
ciente, pelo que deve acrescer-se a dimensão neurológica. Claro está que
surge, entretanto, a pretensão de “estruturar” um indivíduo. O método que
se pretenderia “libertador” acabará por encurralar, terapeuta e paciente, num
vínculo dogmatizador, quiçá placebetizador. Assim, ao invés de uma cirurgia
de colocação de ortótese, pode, de algum modo, o terapeuta presumir-se
capaz de a tratar com recurso à “reeducação postural”. Se não surgirem
resultados palpáveis, é porque o método só poderá ser genuinamente mensu-
rado na sua importância no longo prazo. Se surgirem resultados rápidos, eles
podem não durar, ou podem implicar o pagamento de um preço em dor.

386
O FisióSOFO

Há, também, o caso paradigmático das hérnias discais. A teoria das


Cadeias musculares defensa, frequentemente, que estas são provocadas pelos
excessos miofasciais, mas o mecanismo de alongamento “mézièrista”, que
assenta, sobretudo, na posição de flexão, pode, precisamente, fazer aumentar
a hérnia, e subsequente dor. É verdade que a colocação de, exemplificativa-
mente, artrodese para estabilização da hérnia, poderá levar ao compromisso
funcional de outras áreas da coluna, mas isto não desculpa o excesso dogmá-
tico da teoria em causa.
A Teoria impõe, justamente, a ideia de Holisticidade, pelo que o corpo
deveria ser tratado como um “todo”, para prevenir as respectivas “compen-
sações”. O trabalho cirúrgico seria, portanto, encarado, como um processo
de compensação capaz de criar novas necessidades “substitutivas”. De modo
análogo, a relação com o paciente deveria ser cabalmente “holística”, atendo
a sua totalidade bio-psico-social, ao invés da sua componente localizável
mecanicamente. E tudo estaria bem se o próprio modelo “holístico” não
fosse, também ele, um modo de compensar. Pois, quem pode, verdadeira-
mente, garantir onde se iniciam/finalizam os processos posturais e compen-
satórios? Como deverá ser esculpida a Origem de toda a problemática, que,
para alguns, é emocional, senão espiritual?
Segundo a teoria mézièrista, existe uma tríade de compensações miofas-
3, 5
ciais: lordose + rotação interna dos membros + retracção diafragmática . É
ela que permite, por exemplo, que a retracção da secção superior da cadeia
muscular posterior seja compensada pela distensão da secção inferior da
mesma, e vice-versa. Uma hipercifose dorsal será, provavelmente, conse-
quente da lordose lombar e/ou cervical, o que faz com que a primeira possa
ser, quiçá, meramente “aparente”. Ela colocaria os ombros em risco de
desenvolvimento de artrose, do mesmo modo que a hiperlordose lombar
aumentaria o risco de coxartrose. A intervenção postural implica, assim, o
5
alongar das estruturas envolvidas. O processo é contínuo, exige tempo e (re)
avaliação constante. Pretende, talvez, cumprir, completar, o processo cirúrgi-
co pretérito, invocando o equilíbrio miofascial pleno. Mas, com obviedade,
nada durará sem o necessário equilíbrio neurológico, e, acaso, psicoemocio-
nal.
Ora, o excesso dogmático do terapeuta pode ser representado pela des-
mesura do alongamento, com consequência semelhante à do fortalecimento
indevido: a compensação por contracção. Esta implica a manifestação álgica,
que, por sua vez, demanda mais defesa compensatória, criando, talvez, a

387
Luís Coelho

“retracção” do paciente face ao método, ao dogma. Por seu turno, uma com-
pensação deste processo emocional, poderia fazer sobressair, novamente, a
dor. Porque ela não foi tratada “realisticamente”. Por outro lado, note-se que
mesmo o êxito em fazer dirimir a dor pode conter os seus riscos, porque a
ausência “empírica” de sintoma poderá convidar a novos excessos posturais
e/ou emocionais, perpetuando, como tal, o processo. Quanto ao terapeuta,
poderá vivenciar coisa análoga, muitas vezes compensando o próprio pacien-
te. Porque a ausência de dor convida, igualmente, ao exceder do método,
como da “persona” do terapeuta; porque o excesso de sintoma reproduz, no
terapeuta, a frustração emocional. Mas o Sistema não se esgota no duo tera-
peuta-paciente, invoca todos os outros clínicos, bem como o Colectivo
Social. Uma desmesura paradigmática pode levar a uma reacção “ressentida”
prestes a urdir novel moral, e esta é, bem vendo, tão legítima como qualquer
outra, se bem que ela conflitua com outros agentes, e também com a Norma,
no caso de se exceder. E a ausência de sintoma poderá, tal-qualmente, fazer
expressar as morais para além de um limite “natural” aceitável.
Portanto, o paradigma representa o dogma “ideal”, a idiossincrasia, que
pode ser aceite até determinado ponto, sobretudo se for funcional. Mas se ela
implicar dor para o agente, ou outros agentes, isto poderá fazer abortar a
metodologia. A manifestação sintomática é, assim, um alerta empírico, que,
epistemicamente, representa a Clínica nomotética, a Norma fisiológica. Assim,
ao invés de pretendermos, por um lado, a receita higiénica, ou, por outro, a
“reeducação” livre, mais receitaríamos o equilíbrio, ao qual não será, decerto,
estranha a harmonia social e do meio. E é, precisamente, do exterior que
surge o novo desafio empírico, se bem que o equilíbrio defendido cria novel
robustez pacificadora.
Logo, não poderíamos continuar a limitar-nos ao mero alongamento,
mesmo que realizado com moderação, é preciso invocar os métodos mais
“locais”, como a mobilização, a terapia manual e o reforço. Mas estes são
devidos especialmente à musculatura fásica, liberal, do corpo, àquela que está
feita para o movimento. No caso das “hérnias discais”, sobressai a importân-
cia do movimento em extensão (incluindo a terapia manual), bem como o
reforço da musculatura profunda. Estes são métodos mais locais, com resul-
tados mais “factíveis”. Eles contribuem para impor um limite aos métodos
“dogmáticos”. Um ráquis operado tem tudo a ganhar com o movimento, o
reforço, não devendo ser ameaçado pelo excesso de tensão, de estiramento. O
que não implica que devamos olvidar o papel da idiossincrasia.

388
O FisióSOFO

A propósito da última, devemos, agora, alertar para o excesso “cientifi-


cista”. Porque ele se inebria de “norma” clínica, da lógica nomotética, é
necessário fazer sobressair, constantemente, o papel da Razão, aliás, do racio-
cínio clínico, aplicado à intrínseca dialéctica terapeuta-paciente. Assim, tal
como a componente empírica limita a Racional, também esta deve, sempre,
ser lembrada, pela própria dinâmica “dual”. O dualismo terapeuta-paciente
é, igualmente, este equilíbrio, como a medida do seu controlo. O rigor empí-
rico cria a convergência obrigatória ao equilíbrio, incluindo o “social”, até
porque a ciência é, modernamente, o modelo dominante. Portanto, a par da
dança das compensações, é a vertente científica pura que deve dominar.
Note-se que, apesar de a ciência parecer menos atractiva, é ela que res-
ponde, de um modo mais realista, às necessidades do paciente. Se a dualida-
de pretérita é, igualmente, a dualidade “espírito” vs. “matéria” que reacorda
na “pós-modernidade”, é impossível não assumir a superioridade da “resul-
tante” material. Ela não se limita a sanar o sintoma, ela faculta a própria vida
que qualifica o sintoma. Assim, a distância clínica, que constantemente se
imputa à frieza do médico, é o preço a pagar pela esfera de uma resultante
que não pode limitar-se ao “insofrimento”. Mesmo no jogo das compensa-
ções sociais, quando a preferência pelo Sujeito de uns é alavancada pela pre-
ferência de outros pelo Objecto, é a segunda esfera que domina e aquela que
tolera mais liberdade pessoal e clínica.
Sabemos bem que o objectivismo científico e dual adia consecutiva-
mente o objecto Uno. Aliás, mesmo o objecto dos modelos, dos paradigmas
teoréticos, é de mote a dualizar a relação clínica. Mas esta é a esfera de uma
relação “terapêutica”, em que o objecto cientificista permite, precisamente,
equilibrar fisiologicamente o paciente, “matando-o” para a independência.
Paradoxalmente, são os grandes modelos que propõem a perpetuação do
“paciente”, na medida em que prometem mais do que dão. Se aquilo que
recebem é pouco mais do que um placebo, então eis que se espraia o domí-
nio maior das compensações, capaz de alimentar o Sistema até ao infinito.
Mesmo que o modelo clínico, nomotético, seja mais comedido no seu objec-
to, ele não deixa de prestar uma resultante palpável que, sempre, garante
algo. Atendendo a que também ele placebetiza, então o acréscimo do realis-
mo “científico” compreende um ganho mais consistente. O pior na esfera
holística vigora na sua inquebrável infinidade de compensações, com cariz
6
não falsificável (Popper ). Por vezes, o desejo dos modelos teoréticos é, bem
vendo, um querer permanecer doente. Porque, mesmo, e mormente, com os

389
Luís Coelho

seus excessos, a sua “dor” previne um sofrimento bem maior. Mas se é para
permanecer perpetuamente no encalço da solução terapêutica, mais vale a
garantia empírica, que, de qualquer forma, consente um acompanhamento
indefinido. Precisamente porque esta é uma solução importante, podendo
acordar, entretanto, a esfera emocional, terá o cirurgião/terapeuta de fazer as
vezes do terapeuta “holístico”. Bem vemos que não é possível escusar a dua-
lidade em jogo, como o seu equilíbrio.
Claramente, consta a perspectiva cínica segundo a qual o cirurgião sal-
varia, sobretudo, os proponentes do seu modelo, patologizando os holísticos.
Mas os últimos são igualmente bem-vindos a um modelo, que, de qualquer
modo, represa a singularidade clínica bem mais do que os paradigmas dog-
máticos. Entre a liberdade “material” e o dogma “pré-moderno”, a medicina/
fisioterapia fez a sua escolha aparentemente mais salvífica. De resto, há que
escolher entre um equilíbrio fátuo que pode durar indefinidamente e um inso-
frimento impassível. Mas isto seria como escolher entre a vida e a morte. E a
vida, neste caso, é a maioria empírica capaz de fazer frente ao futuro. Se lhe
adicionarmos a componente pacificadora, pode ser que o caminho futurável se
defina de outro modo. Mas, com mais ou menos mortificação, a dualidade é o
preço da consciência. Ela não poderá ser encarada, apenas, nos termos de um
cirurgião que dá vida e de um fisioterapeuta que dá a qualidade de vida, ela
exige que ambos os agentes sejam equilibradamente duais, vivos para o “sofri-
mento” da consciência dialéctica que o paciente vem desafiar. Alongar o dog-
ma e reforçar a liberalidade é o alvo “objectivo” de um (des)equilíbrio tenden-
cialmente pessoal, que abarca ambos os intervenientes. Não há como fugir ao
processo, é o destino do “clínico” de excepção ser a regra da vida.
Referências bibliográficas
1. Bernard C. Introdução à medicina experimental. Guimarães edições; edi-
ção original de 1865.
2. Bacon F. Novum organum. Porto: Rés; edição original de 1620.
3. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert; 1949.
4. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
5. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
6. Popper K. The open society and its enemies. Routledge & Kegan Paul, Ltd.;
1945.
Novembro de 2021

390
O FisióSOFO

Só quero fazer a indiferença, ser completamente inútil, que o mundo se


subtraia a mim plenamente ileso.

«– Espiritualista: Não é verdade que tudo É e não É ao mesmo tempo?


– Céptico: Sim e não!»

Nunca decidas nada sob pressão. Serás pressionado a decidir de novo.

Fiz amigos quando estava a sofrer. Melhorei e eles tornaram-se chatos.


Que chatice ter de sofrer.

Que alívio lembrar-me de morrer só quando preciso de me esquecer.

Um instante antes do mundo acabar tomarei a minha melhor decisão,


que é pensar no momento em que começou tudo a acabar. Tomara que o
começo não seja pensá-lo, poderia o mundo arrepender-se.

Sempre que alguém diz que ri por último morre alguém às gargalhadas.

Acreditar em alguém quando mais ninguém acredita, haverá coisa mais


inacreditável? É por isso que ela existe, para que possamos desconfiar-nos,
ganhando crédito. Crédito moral, a termos apenas quando somos inacreditá-
veis, mas, para isso, é preciso desistir de acreditar no Outro. A moral não
pode ser creditada, somente sublimada.

391
Luís Coelho

Fazia o contrário do que queria. Diziam que era irresponsável. Por isso
mesmo, não se traía.

Ele acreditava ser perseguido por fantasmas. Tinha razão: era persegui-
do por acreditar em fantasmas.

Forçam-nos a viver imoralmente, dizem que é o preço da salvação. Com-


pete-nos aproveitar as promoções, enganando a Roda da Fortuna.

Eis como vivo num mundo de mortos-vivos: finjo-me de morto.

{Medicina e terapêuticas: Epistemologia (e) moral30}


O tempo pós-moderno tem-se incidido, peremptoriamente, na agrura
epistemológica que opõe “terapêuticas”, com a medicina a fazer relevar-se,
sobretudo, pelo método clínico, quiçá biomecânico, e as terapias “não con-
vencionais” a ultimarem, inclusivamente, a reactualização do discurso “espi-
ritual”. Mas, mais do que uma oposição metodológica, aquela agrura vem,
essencialmente, reactualizar a importância da filosofia epistemológica, bem
como da “ética”, assim como do equilíbrio que ela recruta necessariamente.
De facto, este é um equilíbrio sempre precário, que se faz de uma dialéc-
tica constante, histórica, entre a razão “ideal”, que fraqueja face à subjectivi-
dade “pessoal”, e a empiricidade, que se pretende “impessoal” e objectiva. A
Razão “ideal” dita a norma logóica primária, mas é precisamente quando
surge um excesso idiossincrático de uma lógica “totalizadora” que se expende
a compensação empírica, a manifestação somática e dolorosa. Por sua vez, o
excesso empírico, nomotético, pode ser compensado com a defesa racional.
Mas esta poderá ser de mote a re-racionalizar o Sistema global, criando uma

30
Novembro de 2021, publicado em «Healthnews», Janeiro de 2022.

392
O FisióSOFO

nova moral, obrigatoriamente manifestável empiricamente. A “razão” empí-


rica é dual e abarca um rigor de “divisão” do Objecto terapêutico, portanto, a
sua moral é necessariamente “dual”. Mas o seu Objecto “absoluto” não se
exclui de uma “totalidade”. É preciso dividir para voltar a unir. A moral
“ideal” exige a diluição da dualidade científica, a sua transformação num
cabal instante de “insofrimento”. Não é já isto medicina ou, até mesmo,
razão, é Ideal, que se subtrai constantemente ao rigor materialista.
Comummente, as terapêuticas “não convencionais” se têm feito porta-
doras do discurso “holístico”, falta-lhes, claro, o rigor dual capaz de esquivar
as suas fábulas e ilusões. De resto, verifica-se, aqui, um equilíbrio dialéctico
semelhante ao apresentado em cima: os “ideais” não convencionais excedem-
-se, fazendo recrutar a defesa empírica, esta, por sua vez, gera defesa “ideal”.
Se o tempo moderno permite o domínio da robustez científica, poderá ser de
mote a descompensar “idealmente” os “pós-modernos”, por outro lado,
como a descompensação é o princípio da sublimação dominadora, os “pós-
-modernos” poderão criar a dúvida “desequilibrante” nos modernos.
A “vida” histórica implica, fundacionalmente, a dialéctica em questão.
O perfeito empirismo exige a extinção da dúvida clínica, a partir dela, tudo
seria claro, distintivo, e a dor não se transtornaria sofrimento sem que a
medicina resolvesse eficazmente o desequilíbrio em causa. Mas o excesso
“clínico” pode, ainda assim, descompensar, fazer sofrer, os que precisam
mais de um apoio psicossocial. O que acarreta, por um lado, que tem de exis-
tir a tolerância clínica necessária ao “normal” funcionamento da dialéctica
sistemática, e, por outro, que a ciência tem de possuir um mínimo de recep-
tividade psíquica, de modo a não escusar as necessidades dos que procuram a
ajuda do clínico. Porque estamos em tempo “moderno”, e como a ciência
possui a sua robustez dominante, não é, de todo, vantajoso matar o seu rigor,
mas também é escusável perder os seus adeptos para a fábula pós-moderna;
no entanto, os que preferem a fábula devem ser respeitados, doutro modo,
reinicia-se o reino do Ideal, capaz de criar uma série de destroços. Não que
não exista adaptação empírica ao mesmo, mas o equilíbrio exige a natural
satisfação temporal de uma certa previsibilidade.
Pode, assim, a esfera clínica providenciar a dupla individualidade cientí-
fico-liberal e totalizadora, escusando os atropelos. Doutra maneira, resta a
transformação incessante e inacabável, mas mesmo esta é de mote a fazer-se
dentro de certos limites “naturais”. Para alguns, a transformação “biomédi-
ca” do Soma é, meramente, vantajosa para o sistema “liberal”, porque não

393
Luís Coelho

providencia um Estado de insofrimento puramente equilibrado e “resolvi-


do”, mas, e sobretudo na modernidade científica e “realista”, providenciar o
mero “insofrimento” sem ter em conta o princípio da Realidade empírica
parece, igualmente, pouco “resolvente” e efectivo. Claro está que não compe-
te, somente, à psicologia empírica conseguir equilibrar as variáveis em jogo,
aliás, também ela se tem, muitas vezes, feito valer pela armadilha da subjecti-
vidade – como acontece, frequentemente, no exercício psicoterapêutico e
psicanalítico –, é a tarefa de todo o clínico, no qual a subjectividade não é
deplorável, desde que não fira a valência “realista”.

À entrada da morte, apareceu-lhe uma graça nos lábios: lembrou-se,


subitamente, que tinha deixado uma panela ao lume brando das trevas.

O segredo da expectativa é esperarmos ser surpreendidos pela primeirís-


sima vez.

Só há uma maneira de as pessoas deixarem de acreditar em Deus: pro-


var que Ele existe.

Há filmes com boas pessoas baseados em desejos verídicos. Os factos


ficam para as sequelas.

Virá o dia em que a Inteligência se extinguirá, bem como os que dela se


vingariam no dia do exame de consciência.

No dia do exame de inconsciência, as respostas já estavam dadas. Hou-


ve, todavia, quem questionasse, marcando o ponto pelos faltosos.

394
O FisióSOFO

Quando o rico dá ao pobre está a dizer-lhe que o inveja. Só não faz do


pobre rico porque teme ter de prever os dias.

O Espírito é um sintoma, a Realidade um falso positivo. Quando esta dá


sinal, o Espírito nega-se.

A cruz não é a infância, é termos ressuscitado dela.

Se a ciência fosse perfeita, Fausto adoeceria.

A ciência é terapêutica: cria as suas próprias necessidades.

Não há razão suficiente para acreditar em Deus. É por isso que Ele exis-
te: para nos tornar ingratos.

É da natureza da ciência impor as leis à Natureza para não ser acusada


de plágio. Também é da minha natureza ter semelhantes liberdades.

Hoje, chocantemente, está tudo tal como se previa. O Homem está


sempre a espantar-nos.

Quando descobrires o ponto ideal em que algo se finaliza e outro algo se


inicia, nem sei que te chame.

395
Luís Coelho

A mente é como um pano do pó: quando está cheia, suja mais do que
limpa.

Que o horror do mundo seja uma “casa dos espelhos” não é de admirar,
mas que eu, grotesco, não me admire ao espelho, é ainda mais horrendo.
Tomara que, disto, houvesse um reflexo, mas tudo o que sei é o que “outro”
me contou, espelhando-se.

Explica-me, como se fosse burro, como pode um burro entender mais


do que um homem.

A minha mãe
Como já muitos sabem, aquando da cirurgia de colocação do eléctrodo
no cérebro (para DBS), para controlo dos sintomas do Parkinson, a minha
mãe teve um pequeno AVC. Terá sido da cirurgia? Outros factores podem ter
tido impacto? É difícil saber. Mesmo eles, no Hospital, têm dúvidas, e ela
ainda está em exames. Quando a vi no dia da cirurgia com toda aquela disar-
tria (dificuldades na fala) não ganhei para o susto. No dia anterior, a minha
mãe parecia adivinhar algo, quase que se despediu de mim. Mas eu nem disso
sou capaz, de me despedir da minha mãe. Chamem-me “menino da mamã”
à vontade, mas não estou pronto a perdê-la, e também não quero que me
devolvam uma mãe diferente, que a minha é a melhor. Sim, sou de apegos
“edipianos”, mas é assim mesmo. Mas, voltando ao tema de base, o fantástico
COVID + regras das visitas no Serviço de Neurologia do Hospital impedem-
-me de aprofundar uma avaliação neurológica. À primeira vista, os movimen-
tos e a cognição parecem preservados. O que é mais saliente é a paresia facial
e, sobretudo, a disartria. E, claro, uma vontade enorme de não repetir a expe-
riência. É a minha vontade, também. Agradeço os contactos de todos os que
se embrenharam no acontecimento, ela parece estar melhor, mas só quando
a tiver por perto passarei a pente fino toda a sua condição, para nada nos
escapar. Entretanto, ela já só deseja ter “alta”. O mais urgente para ela, agora,

396
O FisióSOFO

é a Terapia da Fala, que vale mais se for iniciada o “quanto antes”. Felizmen-
te, a sua fala é bem compreensível. Mas, como ela diz, o azar nas cirurgias
persegue-a. Pela minha parte, já vivi todos os sentimentos, desde tristeza até
à vontade raivosa de mudar o mundo, bem vendo, é um pouco como nos
dias normais. (02/12/2021)

A minha mãe (II) faz anos!


Todos se preocuparam tanto que devo, ao menos, despreocupar-vos um
pouco. A minha mãe está muito bem e já fez da Ala Hospitalar a sua “tenda”
de delícias e entregas, que ela é assim, diferente de mim, onde entra cria har-
monia, eu só entro para estragar. Mas nem hoje estragaria o dia dos seus anos,
são 68, mais coisa menos coisa, e é a primeira vez há muito que não me verá à
noite entre gulodices temporâneas. A sua voz ainda não está perfeita, mas já
anda a cantar os anos baixinho para não se anunciar com arrogo. Mas ela já
canta há muitos anos, só o Parkinson é que a fez passar de soprano para con-
tralto, ou para menina de coro, daquelas que fazem muitas marotices e têm o
Céu garantido. Assim, aqui fica a lembrança, que não há que esquecer “os tra-
balhos e os dias” épicos em hora de alvorada transformadora. (06/12/ 2021)

A minha mãe (III) voltou para casa


A desventura chegou, praticamente, ao fim. A minha mãe volta, desca-
belada, a casa. Com muito pouca disartria e uma leve cicatriz física, mas uma
cicatriz maior a outro nível. Nada nela de relevante contribuiu para o sucedi-
do. O melhor neste acontecimento foi o movimento dos familiares, amigos e
contactos, aos quais aproveito para agradecer a presença. Não sabemos o que
o futuro nos trará, mas a realidade clínica ainda continua muito presa ao
passado, com atrasos e desarmonias de toda a espécie. Se a minha mãe não
saísse hoje do hospital ainda acabava por fazer trabalho voluntário de “auxi-
liar” por lá. Quem me dera semelhante energia e tal capacidade de adaptação.
Se não fossem estas adaptações, talvez a realidade já tivesse sido forçada a
adaptar-se a nós, mas isso, claro, implicaria novos desafios para todos. Aca-
bo, por agora, o relato, sem saber se existirá sequela. Teme-se, claro, que esta
se torne um remake. Quanto à prequela, as versões são muitas e dificultam a
empresa. (13/12/2021)

397
Luís Coelho

Sou um livre despensador.


Se amas, não insistas.


Se és um homem de armas, não te armes.

O pior, mesmo, é estar a favor de tudo. Dirão que és do contra.

Analisemos a primeira parte da obra intitulada «O único e a sua pro-


priedade» (1844), de Max Stirner. A infância é-nos apresentada com os seus
deuses “concretos”, logo superados pela pressão irracionalista do viver. A
juventude rende-se, já, aos ideais, mas, rapidamente, os deuses que se transfi-
guram no “abstracto” são remetidos a uma distância celestial, a qualquer
coisa que tem de ser alcançada “racionalmente”. Só no homem adulto pode
consubstanciar-se, por completo, o intento da supressão das necessidades
próprias, “egóicas”, transcendido o período dos “ideais”. O “jovem” vende-se
ao Espírito transfigurador, o “homem” entrega-se ao seu próprio espírito. A
criança era “realista”, o jovem “idealista”, e o homem é “egoísta”. A nova
Humanidade rende-se à esfera da Consciência pessoal, o mundo é o próprio
Universo individual.
Historicamente, poderemos encarar o mundo antigo como “realista”,
no qual tanto a sofística quanto o cepticismo representarão um papel de
“objectivação”, espiritualização, capaz de facilitar a entrada no período cris-
tão de negação da realidade “exterior”. Os “modernos” cristãos não se limi-
tam, como os antigos, a adversar o mundo exterior, apartam-se completa-
mente dele. Já a Reforma, virá lançar a âncora a um novo individualismo,
tornando-se o “Espírito” um mero “nada”. Por sua vez, o liberalismo fará do
Homem o novo Deus, ficando o “ser humano” aprisionado por uma moral
de imanência. É, cada vez mais, a Razão que se faz sustentadora de Deus e da
moral. Mesmo que à custa de um Estado tendencialmente laico, mas nunca

398
O FisióSOFO

amoral. A razão é, igualmente, uma via de individualização do Espírito. Mas,


sobretudo, de desdeificação da moral, que, agora, se faz portar pelo Homem.
Isto implica, igualmente, uma transposição da moral “deôntica” para a moral
“consequencialista”, humanizada. Mais, significa fazer a moral revelar-se pela
Lei. O “egoísta” é, de qualquer modo, encarado como imoral, quando, a bem
ver, é o único verdadeiramente livre. Tanto a moral “suprema”, deiética, quan-
to a “liberal” remetem, obviamente, para um interesse pessoal. O altruísmo é o
respeito por um Ideal, por algo que se torna um “fim”, uma obsessão. O “ser
humano” é constantemente convidado a replicar o que o Colectivo lhe pede,
não se lhe permitindo a verdadeira liberdade “egóica”, aliás, bem mais ética e
autêntica. Adversar o espírito, a negação dos sentidos, é requerer a “nulida-
de” do “egoísta”, sua libertação, materialização. A determinada altura, a pri-
são “espiritual”, sobretudo no protestantismo, torna-se, essencialmente, repre-
sentacional, fantasmática, no fundo, superegóica, com um poder tão grande
ou maior do que possui a prisão mais tangencial operada pela Religião. A
liberdade fica, de algum modo, representada pelo “realismo” infantil e irra-
cional, pela idade em que não se processa, ainda, o juízo moral, a escolha entre
“bem” e “mal”, que, consabidamente, se entretece de condicionamento tem-
poral, contextual. O “egoísta” é o “desavergonhado” que não cede às represen-
tações, limitando-se a “ser” no planalto de um Nulo moral, em que a “dúvida”
perpétua, a indiferença, representa um papel de antagonismo da razão precisa,
que é, ainda, o vértice participativo do Ideal, pelo menos do que não remete
para a mera “revelação”. Aquela “subjectividade” é mais objectiva do que a
Objectividade tradicionalmente filosófica, logocêntrica, onde a razão represen-
ta um papel apriorístico, apodíctico, muitas vezes empiricamente desarrazoa-
do. Atemos, portanto, o pleno irracionalismo egóico, enquanto mote de movi-
mento empírico que assume o lugar do “Eu” no processamento “objectivo”.
Sabemos, então, que o Espírito, sobretudo do Cristianismo, não é, ain-
da, algo que se possua enquanto “propriedade”, é alguma coisa que se supe-
rioriza, e que nos controla. No tempo do liberalismo, o “Espírito” é traduzi-
do em (novos) conceitos, o Sagrado permanece e recria a distância ao “eu”
profano. Entretanto, o liberalismo traz o igualitarismo, que mata a liberdade
personalística, ao considerar o “quantum” de elementos de uma Nação, de
um Estado. Agora, o “livre” é o servidor da Nação. E a Razão é a moral toti-
potente, subtraindo o Direito ao “Eu” autónomo. O poder do liberalismo é,
por sua vez, o do dinheiro, que permite a valoração perante o Estado. A solu-
ção “comunista” passa por tornar todos miseráveis, transtornando a noção

399
Luís Coelho

de posse. A igualdade passa por todos serem trabalhadores uns para os


outros, na comutação das diferentes necessidades. Necessariamente devem os
salários ser iguais, para que todos valham o mesmo, na medida do que
ganham. E os trabalhos devem ser coisas acabadas, capazes de propiciarem
satisfação. O trabalho é, igualmente, o mote de afirmação do “ser”, sem o
qual este não possui identidade. O Socialismo possui, por isso, uma depen-
dência relativamente à perspectiva de uma Sociedade colectivizada de traba-
lho, onde cada um possui um dever. Já o Humanismo não perspectiva o
“interesse” na formulação do “homem” enquanto tal. Nem a propriedade. A
“liberdade do Espírito” recruta, necessariamente, o território do “privado”.
Por outro lado, a latitude “humana” do trabalho remete, também, para a
“consciência de si”. Mas esta não perde o seu pendor egóico. A obra extrava-
sa o campo meramente “humano”, abraça o “único” que há em nós. Quando
atemos a unicidade, todos são privilegiados, na medida da sua independên-
cia.

Para Bakunin («O conceito de liberdade»), o inimigo não é a Sociedade,


considerada como necessária à sobrevivência do Homem, o que periga exte-
riormente a continuidade é o Estado, o suposto “contrato social” (Rousseau)
enquistando a mordaça, a escravidão, e embotando o processo normalmente
solidário entre os homens. Este não é um anarquismo egoísta, como em Stir-
ner, é mais social, na medida em que acata a necessidade da simbiose, pelo
que se amaldiçoa, igualmente, a solidão mística, o egoísmo teológico, apolo-
gética do “Espírito”. O mecanismo “material” é a necessidade inquebrantável
de “ajuda mútua” (Kropotkine), a simbiose natural é a verdadeira “revolução
criadora” (Bergson) da Liberdade conjunta dos seres, aliás, do SER.

Não é, obviamente, possível confiar, por completo, na Ciência enquanto


ordenadora do plano social, o seu papel deve ser descritivo e ancora numa
abstracção que não é inclusiva do plano idiossincrático, inefável, do Humano
construtivo, modulador da Realidade “viva”. A ciência é demasiado estática,
o que quer que ela demandasse estaria, já, em transformação, o Real é incap-
turável, bem como a plenitude da Individualidade concreta, da ampla mate-
rialidade vitalista, interna, irredutível à Ordem de um qualquer Estado.

400
O FisióSOFO

Bakunin adversa o cinismo científico enquanto mote de uma Autorida-


de sapiente capaz de exercer o seu poder estatista. A verdadeira liberdade é
humanitária, implica-se na continuidade vitalista, a ciência é controladora,
dualizadora, implicativa de um poder “burguês” que se estende ao dinheiro.

Nenhuma ciência deve impor sua Autoridade, até porque nenhuma


abarca a “totalidade” que é, no contexto em causa, o conjunto epistémico do
Colectivo, no qual cada um recebe e dá segundo a sua especificação. Todos
contribuem para a Totalidade científica, a qual nada poderia sem a Sociedade
organizada, onde a Igualdade estabelece a necessária operacionalidade.

A divisão epistémica do trabalho, como da Sociedade, permite activar o


conjunto das consciências científicas, o rol de diferentes autoridades pessoais,
esta multiplicidade cria o movimento social, a dinâmica do Colectivo. Se a
ciência fosse totipotente, toda a Sociedade acabaria por medrar em previsível
escravatura. As forças “materiais” devem ser implicadas num movimento
perpétuo, o Estado representa a anquilose das consciências, quase sempre
preambuladas por uma Autoridade que constrói os mecanismos da sua per-
severação, como da nesciência dos “súbditos”.

A Ciência é encarada como um deus “relativo”, nunca completamente


realizável, e por isso, aquém de Deus absoluto, não aceitável de todo pelo
anarquismo, como qualquer Autoridade que se proponha infalível.

O destino da realização dos homens pode ser alcançado pela espontânea


revolução social, é um processo natural e, para ele, não convergem, somente,
elementos económicos, como é proposto pelo marxismo, mas, igualmente,
elementos culturais diversos que expressam a natureza de um povo. O Socia-
lismo anarquista pretende a libertação práxica dos “seres”, pelo que estes
podem assumir a sua intrínseca “propriedade”.

401
Luís Coelho

Quando, da vida, tiver perdido o paladar,


Não terei com que me curar,
senão o muro dos amantes,
para lá do qual terei murchado.

Ver-te, assim, como já não és,


pediria a Deus que te tornasses
a porta da trinidade sem pés,
se não fosses tu mesma uma deusa.

Compete-me dizer que resistir à morte não desiludirá Deus, Ele espera
que te torças por Ele no desejo pelo muro do amante correspondido.

Foi mau enquanto durou.


Ainda bem que foi bom,
parece-me agora,
que acabou.

O desenvolvimento de uma medicina adequadamente científica impli-


cou uma ruptura com a “escolástica” de uma Saúde dogmática em que o
homem constituía parte integrante de um “todo” moral e económico-social.
Se este “todo” é muitas vezes exaltado pela pós-modernidade, é certo que
nem esta seria possível sem a reacção “individualista” de uma medicina cen-
trada na “pessoa”.
A pós-modernidade demoniza, comummente, a pretensão economicista
de uma medicina focada no aspecto “biomecânico” do indivíduo, mas este é
o grau necessário de divisão cientificista requerido ao rigor que obsta aos
excessos fabulísticos do passado. Assim, a medicina científico-liberal marca a
reacção perante o intento totalizador, permitindo redesenhar a realidade,
que, entrementes, é demarcada por nova razão totalizadora. A holisticidade

402
O FisióSOFO

resulta, portanto, do próprio trajecto científico-descritivo, e este resulta da


primeira, constituindo-se, entretanto, uma regra dual, uma neurose perpé-
tua, que é, afinal de contas, a condição do movimento transformador. Mes-
mo que operando no “absurdo” (Camus), a razão “médica” responde conse-
cutivamente ao redesenhar da Razão, com a construção “pós-moderna” da
realidade científica. Existe, porventura, um certo respeito pela natureza pri-
mária, mas a transformação racional da realidade pode ser ilimitada, tradu-
zindo novel expressão do corpo-mente.
Quando se estabelece um equilíbrio entre a razão principesca e a reali-
dade científica, o movimento pode ser lentificado, esta é a Estrutura que
permite certa estabilidade, provendo à criação da “regra”. Mas a “queda”
idiossincrática acaba sempre por realizar-se, ela exprime a liberdade indivi-
dual. Por sua vez, o dogma reage conservadoramente, mas já não é possível
recuperar a antiga Ordem.

Não pronunciarás em vão o teu nome. Para que sejas Senhor, teu Deus.
Pronunciarás em vão teu nome. Para que seja Senhor, teu Deus.

{Medicina, Filosofia e Economia31}


O modelo biomédico não adversa, necessariamente, o conteúdo mais
“historicista” da Filosofia, é, na verdade, o que o finaliza e reinicia. E, cerce à
discussão epistemológica, a Economia possui, também, o seu lugar insepará-
vel. Aqui se processa a medicina como centro nevrálgico de um genuíno
1
mecanismo da complexidade (Edgar Morin ).
Comummente, a medicina tem sido avocada enquanto adversa ao
modelo psicossocial, mas a sua dualidade é a condição inalterável da cientifi-
cidade “positiva”. Esta traduz o “pathos” relativo a um Princípio dogmático
2
de uma medicina pré-científica (Popper ), afeita a uma escolástica, a uma
lógica interna dialéctica, relativisticamente burilável. Aqui, a razão totaliza-
dora encima uma realidade onde o “eu” possui pouca expressão. Já a reacção
científico-liberal permite encimar a individualidade clínica, a dor, a doença,
de um “eu”, que, por sua vez, implica o redesenhar da realidade epistémica.

31
Dezembro de 2021, publicado em «Healthnews», Abril de 2022.

403
Luís Coelho

A razão clínica consente equilibrar o dogma placebetário com o “Real”


materialista, mas é, igualmente, um factor de mudança, de transformação,
renovando, consecutivamente, a realidade racional, na medida em que,
simultaneamente, a inicia e finaliza. Assim, o aspeito holístico passa a consti-
tuir, essencialmente, a resultante de uma razão “positiva” economicamente
individualista, perpetrando-se a plena individuação ética, a partir da qual
todas as mudanças se farão no pleito de uma segurança “estatista”. O “esta-
tismo” conclui o liberalismo, mas este responde, constantemente, às muta-
ções racionais do Estado. É destino que da estabilidade se involua para nova
necessidade “positiva”, enquanto que a última possibilita compensar aquela,
e, na mesma medida, identicamente os diversos “estados” holísticos permi-
tem compensar o “todo” no caminho, sempre complexificável, para o Prin-
3
cípio dos Princípios (Fichte ). Esta caminhar é de “eterno retorno”, e a Saúde
é o próprio equilíbrio clínico estancando o processo.
O equilíbrio não demoniza a visão fragmentária do corpo frequentemen-
te imputada ao modelo “biomecânico”, porque esse é o percurso necessário da
“totalização”. É essencial que a moral clínica seja dual, e que o clínico tente
abster-se de se transformar com o paciente. A acção clínica já compõe um
mecanismo pós-moderno, recriando a realidade, que, entretanto, se preenche
de uma nova moral monista. Esta é a novel “normalidade” de “racionalidade
4
libidinal” (Marcuse ), em que o terapeuta se funde com o paciente, criando o
“excesso” subjectivo que logo se materializa na capital objectivação científica.
Do mesmo modo que o “espírito” se materializa, também o “Estado” colecti-
vista e dialéctico se cientifica na individualidade “dual”. E quantas “razões”
existirem, tantas ciências se compõem numa “queda” permanente em que os
modelos desempenham papéis obrigatórios e não exclusivos.
Da mesma maneira que a medicina permite compor, compensar, a
mecânica aparentemente divisa do corpo, também todo o processo racional
em questão permite compensar o Sistema mais abrangente, urdindo múlti-
plas possibilidades de Saúde, de “normalidade”, transcorrendo-se no “absur-
5
do” (Camus ). Bem vemos que os binómios Saúde vs. patologia, Estado vs.
indivíduo, Dogma vs. ciência são, somente, a configuração necessária de um
movimento neurótico, e são, que pluraliza os desafios da ciência médica.
O jogo de compensações é, similarmente, social, na medida em que o
excesso dogmático de uns produz a reacção cientificista de outros, que, por
sua vez, remete para a defesa dos dogmáticos, podendo nós obter, assim, um
Colectivo mais placebetário ou mais libertário, com cada um patologizando

404
O FisióSOFO

o outro. O “pathos” é assumível nos termos de uma “moral do ressentimen-


6
to” (Nietzsche ), a Saúde é fazer as pazes com o Princípio.
A Saúde é, tal-qualmente, permutar os esquemas, fazendo a medicina
conciliar-se com a Filosofia, do mesmo modo que a ciência médica deve
render-se, cada vez mais, ao seu objecto totalizador, psicossocial, compreen-
sivo, humanista e espiritual, sem que se perca o seu pleno vigor dual e racio-
nal, real e vitalista, responsável por fazer recriar consecutivamente o repto da
7
equação existencial da “vida” (como em Michel Henry ).
Referências bibliográficas
1. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Instituto Piaget; edição
original de 1990.
2. Popper K. The open society and its enemies. Routledge & Kegan Paul, Ltd.;
1945.
3. Fichte JC. Fundamentos da doutrina da ciência completa; Lisboa: Edições
Colibri; 1794/1795.
4. Marcuse H. Eros and Civilization - A philosophical inquiry into Freud.
Boston: Beacon Press; 1966.
5. Camus A. Le mythe de Sisyphe. Gallimard; 1948.
6. Nietzsche F. Humano, demasiado humano. Edição original de 1878.
7. Henry M. O começo cartesiano e a ideia de fenomenologia. Phainomenon.
13:179-190.

O meu terapeuta E.T. era um humanista. Faltavam-lhe os pacientes.

Não quis que fosse olho por olho, para não ficarmos cegos. Limitei-me,
assim, a partir-lhe os óculos, por motivos de tolerância.

Sê humano, e deixa que isso te mate.

405
Luís Coelho

Não me irrita não conseguir explicar o que é óbvio. O que me irrita é


ser demasiado óbvio para conseguir explicá-lo.

«– A: O “Dunning-Kruger” sempre existiu, mas utilizavam-se outras


palavras para o referir. Portanto, precisar de um conceito abonecado não será
prova de “Dunning-Kruger”?
– B: Talvez sejas tu que sofres de “Dunning-Kruger”!
– A: E tu és um modernista, suponho!... Sabes mais do que eu?
– B: “Dunning-Kruger” e água benta, cada qual toma o que quer.»

Um dia serei tão famoso que não temerei perguntar na rua “Quem sou
eu?”. Saberão responder-me melhor do que conseguirei encontrar-me.

Um dia serei tão famoso que não temerei mais perder-me de que me
encontrem.

Um dia serei tão adulto que temerei perder-me de vista. Pior seria
encontrarem-me.

Um dia um místico disse-me que era preciso que eu encontrasse mais o


Deus que há em mim do que o “eu” que há em Deus. Mas que tudo se faria
sem sequer ser necessário tentar. Queria chamar-lhe falso profeta, mas, pela
via das dúvidas, achei melhor nem tentar.

«– A: No tempo das fadas, eu era um ogre!


– B: Eras famoso?
– A: Pior, era bonito!»

406
O FisióSOFO

Deus, por seres tão absoluto, nunca te encontro onde estás. E tu estás
em todo o lado onde me encontro.

Que o Viagra melhora a memória, já todos sabíamos, que as pessoas só


se lembrem disso durante o sexo, é que me parece pouco criativo.

Quem é que tu pensas que és para decidir o que fazer com a tua vida? Se
pensas, não És!

Todas as manhãs são dia de São Nunca à tarde. Digo-o desde sempre,
quando desperto.

É bom que tenhas um problema, senão não saberás o que fazer com o
problema da vida. Isto não é aviso, ameaça ou promessa, é um “déjà vu”.

Num mundo em que ninguém respeita nada, educar alguém para res-
peitar os outros é violência infantil. Sugiro, então, que violentem as vossas
crianças, para que elas superem o trauma do mundo.

Há humoristas que se suicidam para serem levados a sério. Choro por


eles.

Há piadas sem graça que têm mil likes e ninguém se ri disto.

407
Luís Coelho

Dizem-me, sempre, que sou 5*, quando queria ser anã branca.

Para mim, tudo o que vem à rede é Espírito.

{Medicina, Psicopatologia e Filosofia32}


1
O sentido original, platónico , de Ciência, enquanto Conhecimento
racional abarca a totalidade epistémica que a Medicina, bem como a Fisiote-
rapia, não poderá elidir, nos termos da sua reflexão interventiva. De igual
modo, pensar a medicina é reflectir uma totalidade psicossocial, espiritual,
que, actualmente, se concebe no fundo de um Colectivo tantas vezes desar-
monizado.
A Estrutura racional, o Verbo/Logos primário, enceta pela inseparativi-
dade Filosofia - Ciência, a partir da qual qualquer dualização é concebida
pelo “espírito” enquanto dor, doença. De facto, é a ameaça que potencia a
neurose, a qual é, por sua vez, uma ameaça de psicose. De algum modo, a
própria ciência parece neuroticizar o “espírito”, se bem que o transtorna
“psicologia empírica”. Mas a neurose é, também, o modo de potenciar “posi-
tivamente” o aspeito científico, o qual, por seu turno, substancializa sua
intrínseca “Estrutura” (materialista), entretanto neuroticizada potencialmen-
te pelo relativismo pós-moderno. A pós-modernidade reactualiza o lugar do
“Espírito”, reconciliando-se com o dogma pré-moderno, pré-científico (Pop-
2 3
per ). Há, aqui, um manancial dialéctico , que parece não ter fim, e também
4
essa interpretação infindável remete para a neurose.
4 5
Se “tudo é interpretação” , se “tudo vale” , então há, apenas, neurose do
“eterno retorno”, mas isso não limita a possibilidade da ciência, da medicina,
conseguir equilibrar, estancar, epistemicamente o Sistema numa Estrutura,
que, já “per se”, harmoniza os pólos racional vs. empírico. A medicina, com
seu modelo científico-liberal, permite, então, burilar, terapeuticamente, a
Estrutura “livre” do “Ser”, e isto também concorre para o “Espírito”, e, no
entanto, a pós-modernidade poderá reagir-lhe de forma a criar outro “Espí-
rito”, no sentido dogmático do termo. Um dogma é, claro, um excesso, mas
o excesso terapêutico não é menos dogmático e gera a defesa. O equilíbrio

32
Publicado em «Healthnews», Janeiro de 2022.

408
O FisióSOFO

pode conceber-se como um modo de “razão”, de Estrutura, é o paradigma


moderno que o fará designar-se nos termos do “psicossocial” naquilo que
tem de mais “holístico”. Há uma proximidade entre a Estrutura harmónica e
racional e a Estrutura que é sublimada, enquanto efeito do atrito terapêutico.
Esta segunda reinicia a circularidade, patologizando outrem. Novel “razão”
remete para nova Realidade positiva, na qual se entrechocam novos equilí-
brios racionais e diaspóricos.
A razão “positiva” é mais libertária e individualista, confluindo para a
expressão dogmática duma razão “ideal”, mais totalizadora. O “Espírito” está
em todo lado onde os pólos se fundem, como em todo o processo da realida-
3
de , ele é a própria Saúde bio-psico-social. A última não deve ser traída pelo
rigor empirista, mas também este não deve movê-la com um mote “totalitá-
rio”. Outros modos de equilíbrio “real” consentirão outras formas de har-
monia epistémica, claro está que, no fim, o que interessa é a resultante “inso-
frida”, e, para esta, converge uma prescrição médica “consequencial” que
muda, identicamente, a cada momento. Da mesma forma que uma “razão”
terá de se afazer à realidade e vice-versa, até porque o equilíbrio não perde,
nunca, o seu pendor vitalista. O “Espírito” clínico não se conforma com uma
deôntica estática, mesmo esta está dependente dum jogo de consequências
“reais” resvalando pelas arquitecturas racionais.
Cabe à medicina ser uma ciência da totalidade, não se limitando ao
paciente, até porque nem este se limita a sê-lo, pelo que é, igualmente, tera-
peuta do seu médico/terapeuta, como do conjunto social no qual interfere
superegoicamente. A medicina é uma proa de radicalidade bio-psico-social,
elemento da pós-modernidade construtiva que não se comove com o deside-
rato de um Super-Homem.
O “Espírito” puro é, já, plena psicose, e é aqui que consta que tratar o
paciente é, de facto, matá-lo de amor, exaurir a vitalidade real e racional. Não
é o “mal”, porque este é necessário à vida.
Referências bibliográficas
1. Platão. A República. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian.
2. Popper K. The poverty of historicism. Routledge & Kegan Paul, Ltd.; 1957.
3. Hegel GWF. A ciência da lógica. Edição original de 1812-1816.
4. Foucault M. Les mots et les choses. Gallimard; 1966.
5. Feyerabend P. Against method. Verso Books; 1975.

409
Luís Coelho

Tive um caso com Deus. Foi arquivado por falta de provas.


(Ainda tenho um caso com Deus. Mas sou-lhe infiel.)

Persistência sem persuasão é caso de martírio. Resta saber para quem.

Sou tão bom que, quanto mais tento mostrar-me convencido, menos
consigo convencer.

Limito-me a falar de Liberdade. Se não me limitasse, não saberia do que


falar.

«– A: Querida, vi no DSM e concluí que sou obsessivo-compulsivo. Já


não tenho quaisquer dúvidas acerca disso.
– B: Se não tens quaisquer dúvidas, então não és obsessivo-compulsivo.
– A: Acredita que sou obsessivo-compulsivo. Sempre o fui, eu é que não
sabia.
– B: Já te disse que não és, estás é obcecado com essa ideia!
– A: Vês, até tu o dizes!
– B: Pronto, se o queres ser, então, és obsessivo-compulsivo!!
– A: Meu Deus, onde foste buscar essa ideia? É de mim, não é?
– B: Mas tu não disseste que o eras?
– A: Não tinha a certeza!
– B: Mas eu já te disse que não és!
– A: Agora estás a contradizer-te! Não estarás em negação?»
(baseado em dúvidas, eventualmente, verídicas)

410
O FisióSOFO

Tenho uma dúvida autobiográfica. Mas não a escrevo, para não a esque-
cer. Fico, assim, a dever-lhe a minha morte, para ser paga na próxima memó-
ria.

Fiz-te uma maldade. Mas não foi por mal. Foi para que te lembrasses de
retaliar-me. Mas, se te esqueceres, não te perdoarei o bem que não me fizeste
de amar-te.

O Espírito aí está, na reserva, à espera que uma guerra o faça despertar.


É a guerra da libido, e a reserva é o “Eros cosmogónico” (Hans Jonas), a par-
tir do qual o “pathos” sublima a potência “livre”, do “Aqui”, ou do “Além”
quântico, prestes a tornar-se novel Razão dominante, impassível, insofrida e
já elevando-se para a desaparição do Sistema. É a passagem ao Espírito, a
partir do manancial da Consciência. Mas a Estrutura implica nova “queda
livre” na razão neurótica. Esta queda é uma elevação, é um rodopiar das
razões transtornando-se no eixo do tempo, e o conjunto das razões é o Eros
transcorrendo-se infinitamente, na esperança de mimetizar o momento pri-
meiro. A Estrutura é uma “aproximação” lentificadora do tempo. A queda é
a razão “livre” que se empossa da multiplicidade para fazer variar o conjunto
dos atributos primaveris. Cada ciclo se alia a outros para criar um ciclo
maior, e o movimento é tomístico, pretendendo esgotar a Deidade. Querer o
perfeito Algoritmo “insofrido” é conseguir prever as entradas no Sistema, é,
também, conseguir prover à “libertação” espiritual, mas, sobretudo, à pleni-
tude insofrida do Aquém, que variará de instante para instante, com o jogo
das variáveis. O insofrimento inclui o conjunto das percepções relativas ao
“Espírito”, e importa a Unidade gigantesca de um só indivíduo, do que este
pode fazer despertar no conjunto, daí que um possa ser bem melhor do que
muitos, e este é, igualmente, o produto de um “pathos”, de uma singularida-
de quântica.

O processo espiritual brota da Consciência e possui, segundo Hans


Jonas, um vínculo evolutivo, não hegeliano, mas do que importa ao libera-
lismo, como à ciência que o conforma. Por outro lado, poderíamos conside-

411
Luís Coelho

rar que há somente movimento temporal feito de Estruturas que se vão reifi-
cando ciclicamente. Poderia, assim, não existir qualquer Sentido, ou pode ser
que não possamos, tão-só, desocultá-lo. Tentar fazê-lo é, já, obviar o produto
neurótico que enriquece o Sistema. A razão neurótica alicerça a grande
Estrutura, talvez à distância da Natureza, como do Espírito primaveril, a
partir da qual não poderíamos ocultar a potencial transcendência. Esta, bem
como a moral, não depende de um Deus judaico-cristão, aliás, a própria
moral não depende do Espírito, há, provavelmente, apenas “matéria”, pelo
que a Estrutura é, igualmente, matéria, estabilidade capaz de esboçar uma
moral, uma previsibilidade. Obviamente, tal Estrutura luciferina poderia ser
de mote a patologizar um crente à antiga, também ele poderá representar a
novel razão neurótica, apta a fazer ressurgir uma antiga estabilidade. Cada
moral apreende uma nova razão, e esta surpreende renovada Realidade.
Quando a realidade muda, muda, também, a percepção racionalizadora de
cada “ente”, tudo é um conjunto de forças materiais, mas, claro, esta é, iden-
ticamente, a percepção de um materialista, ele pode mudar, com a necessária
modulação racionalizadora. Uma transformação da realidade racional impli-
ca uma nova idiossincrasia na percepção de uma novel Ciência. A mutação
da razão é, também, a transformação do Passado, do que empreendemos no
Logos primário, ou, até, no Eros cosmogónico, no qual, supostamente, esta-
ria toda a reserva espiritual que a Vida permite exaurir na circularidade tem-
poral. Até um materialista sublimatório poderia constituir parte dessa reser-
va, quiçá surgisse tal “coisa” a partir do “nada”, que importa donde vem
tamanha “liberdade”, desde que ela fira a pureza do Sistema, da estabilidade
de um Espírito superconsciente, superegóico, societário? Aquilo que é subli-
mado, generalizado socialmente, evoca novel confiança, neste caso poderia
ser “empírica”, mas a maior fatia de Objecto seria a intrínseca transformação
do sublimado no “Espírito” ausente; no mínimo, teríamos alguma impassibi-
lidade carnal, e isto poderia ou não afrouxar a tentação do “espiritual”, que
seria neurótico e “material”, ainda assim, prestes a criar sua própria solução
societária, inclusa da crença de ser o vero “Espírito”, e a crença acrescenta-se
ao Sistema, fere o conjunto. Esta é a dialéctica hegeliana à distância de um
“Espírito Santo”, mas não exclusiva das pequenas Estruturas cíclicas, que,
possivelmente, se engrandecem tomisticamente no plano de uma Realidade
“viva” cada vez mais rica e soberba. A “vida”, o absurdo, é tactear perpetua-
mente o processo dialéctico, qualquer Algoritmo poderia conter uma solução
transtornadora da dualidade, mas há que prever, também, a necessidade de

412
O FisióSOFO

um “mal”, de uma queda neurótica, capaz de perpetrar o inevitável movi-


mento heurístico, mas isto é o que perpassa, projecta, a minha própria limi-
tação, do “corpo-mente”, que compõe sua intrínseca “razão de ser”, e a
minha é, para mim, todo o Universo, sou eu que construo a minha percep-
ção e que a coloco no pleito do corpo.

{Choy vs. Scimed: a aventura placebetária33}


A contenda “Choy vs. Scimed” criou, na opinião pública, uma fractura
ideológica que devia ser aproveitada para efeitos de discussão basilar acerca
das “ciências”. Muito nos diz, aliás, tal peleja sobre os próprios portugueses,
bem como do que os prende e motiva.
Não é, apesar de tudo, meramente nacional a, tão antiga, atracção pelas
terapêuticas de cunho “tradicional”. Atracção que vigora na devida propor-
ção do que estas terapias possuem de fabulístico. O “mito” opera bem mais,
precisamente, porque não se conforma à realidade. Mas será o efeito, neste
caso, da acupunctura mera ficção? Nem o placebo é ficção, ele implica uma
“injecção hormonal” que serve determinadas necessidades subjectivas. Ora,
bem sabemos que, no fim, o que interessa é, tão-só, o que sentimos, o grau
de “insofrimento”. Mas se atendermos a este em exclusividade, podemos
perigar outros aspectos da saúde, com repercussões a médio e longo prazo.
Vamos ser claros: não há qualquer evidência científica de que a acu-
punctura resulte no tratamento de patologias e estados internos. Aceitar o
que a move “estruturalmente” é, portanto, como aceitar certos aspectos do
dogmatismo, sem pura evidência “material”. Essa aceitação é, também, um
placebo. Abraçá-lo é criar uma ilusão perigosa. Porque, por ser “irrealista”, o
placebo é de duração ténue. Mais, por permitir “compensar” o paciente sem
chegar à causa do problema, pode ceder ao corpo a oportunidade para se
criar maior desequilíbrio. E isto é verdade, também para a possibilidade de a
acupunctura resultar no tratamento da dor. É aqui que a evidência ruma a
favor da acupunctura. Esta parece ser efectiva no tratamento da dor, para
além do placebo. Mas o motivo por que isso acontece reside no sistema ner-
voso, na forma como a acupunctura poderá resultar na diminuição do estí-
mulo de dor. Subsiste, aliás, aqui, um mecanismo semelhante ao do placebo,

33
Publicado em «Página Um», Janeiro de 2022.

413
Luís Coelho

porque este implica a acção “descendente” no mesmo estímulo álgico. E, do


mesmo modo, permanece o problema: diminuir a dor é retirar o “alerta”
necessário ao tratamento mais profundo do que a gera. Daí que, às tantas, se
tenha convencionado que a acupunctura poderia ser muito efectiva no tra-
tamento da dor crónica, quando o mecanismo profundo que a gera tiver sido
sancionado.
Portanto, quem faz uso da acupunctura poderá estar a incorrer numa
ilusão, que pode perigar a sua saúde. Claro está que cada um bebe da ilusão,
da crença, que lhe serve. E, como é óbvio, ela resulta melhor onde subsiste a
ignorância, bem como a fragilidade psíquica. Mas o que importa, também, é
saber se homens como o Pedro Choy chegam a ter mais “sabedoria” científi-
ca do que os seus pacientes. Porque um dos aspectos mais interessantes no
placebo é precisamente a forma como ele actua sobre os próprios terapeutas.
E se o terapeuta acredita genuinamente ajudará o paciente a acreditar cada
vez mais. Daqui só poderá advir uma espécie de comunhão. Mas a melhor
comunhão é aquela que cede a cada um dos seus membros a possibilidade de
um divórcio. Ora, para um espiritual crédulo, não há divórcio exequível ou
desejável. Tal ensejo configura uma total heresia.
No passado, homens como Francis Bacon representaram essa mesma
heresia, ao apresentarem os perigos da subjectividade “espiritual”. E estes
perigos, que são estendidos pela religião e, tal-qualmente, pelos médicos de
Molière, tiveram, e têm, na ciência moderna um franco opositor. Mas é
importante que a oposição não atinja um limite de “objectividade” tal que se
conforme novo dogma. Porque quando a ciência se comporta como uma
religião, perde-se, novamente, o senso, a distância. E, no entanto, é, de algum
modo, a distância “objectiva” que desagrada aos espirituais. Uma medicina
tamanhamente preocupada com diagnósticos e prescrições serve pouco os
interesses da subjectividade. E nem sempre um anti-depressivo resolve a
coisa. Muito menos aos que acreditam, inclusive, que o anti-depressivo escu-
sa a entrada no reino dos Céus. Já os mais adaptados à modernidade científi-
ca, não precisarão, talvez, de tal ajuda; não será, portanto, assim tão difícil
para estes tolerar os que requerem de alguma ilusão placebetária.
No entanto, os supostos “científicos” nem sempre representam a latitude
“segura” do Sistema. Parece que também os seus egos periclitam, e pretendem,
como tal, beber, e dar a beber à força, da sua pretensa “objectividade”. Não
fosse esta uma eventual incapacidade de se representarem subjectivamente.
Incapaz de tamanha “psicanálise”, bem como incapaz de qualquer tipo de

414
O FisióSOFO

preciosismo teorético e cultural, está aquele que alguns elegeram como


padroeiro da cientificidade. João Júlio Cerqueira devia ser estudado, já que o
próprio nunca foi capaz de estudar nada. Mas quem deveria ser puramente
objecto de estudos é a turba que o segue. Como pode um indivíduo filosofica-
mente pobre, sem nada publicado, sem qualquer tipo de experiência clínica e
de investigação, atrair tantos que se pretendem embaixadores do cepticismo?
Tão-somente, pela ausência de cepticismo. Porque se os que visitam a página
“Scimed” fossem, realmente, científicos, não perderiam o mais pequeno segundo
com aquilo. Há ciência a sério, por aí. Aquilo é uma atrocidade à ciência. E, no
entanto, é uma representação perfeita do que acontece quando a ciência se
torna, ela mesma, ideologia, ou seja, placebo dos supostos “científicos”. João
Cerqueira é o Pedro Choy da medicina. Provavelmente nenhum dos dois se
apercebe disso, e, por isso mesmo, desempenham, cada um, um precioso
papel, digno de um estudo sociológico.
A página “Scimed” conseguiu, tamanhamente, o que certa “ciência”
alcançou: adensar, ainda mais, a fractura social que, actualmente, opõe
modernos a pós-modernos. Ao invés de permitir o grau necessário de tole-
rância “terapêutica”, aquela página conseguiu reforçar, ainda mais, as certe-
zas placebetárias dos “crentes” acientíficos. Por isso mesmo, a página “Sci-
med” é a melhor amiga do Pedro Choy, a melhor providenciadora de clientes
à acupunctura e às “terapêuticas não convencionais”. Se eu sequer imaginas-
se que aquilo é “ciência”, entraria para uma seita, o que, de mais a mais,
poderia tornar-me fã da página em questão.
Fugir do aspecto cruento da ciência e abraçar a simpatia dum acupunc-
tor, que mais quererá o indeciso que poderá perder-se nesta confusão? Todos
os outros, que bebam do seu placebo, e, não obstante, isso não chega, é preci-
so gozar, achincalhar, lastimar, estigmatizar, mas quem o tem feito é preci-
samente o modelo dominante, o “científico”, nas mãos dos “entertainers” da
ciência, ajudando a fazer da “pseudociência” o parente pobre do Sistema,
entretanto ganhando adeptos que ajudarão a fazer dela o velho e portentoso
dogma.
Se não é possível conciliar, é preciso, então, tolerar, para que ambos os
pólos possam, um dia, comunicar (lembremos Habermas), assegurando o
equilíbrio perdido. Porque a ciência “plena” é duplamente objectiva e subjec-
tiva, grupal e idiossincrática. A tolerância é, sempre foi, o signo da liberdade.
E as duas permitem a dúvida, o real exercício do cepticismo. A Sociedade
actual deseja, tão-só, o extremismo polar. Ele nutre, obviamente, celeumas,

415
Luís Coelho

retóricas, rancores, que, sobretudo no tempo vigente, têm minado o terreno


da Verdade. Claro está que esta não é alcançável plenamente, e sabê-lo é,
igualmente, ser científico.
A conturbação em causa poderia ser muito saudável, não fosse a urgên-
cia de soluções para tantas vítimas dos dois pólos. Dito isto, parece-me que o
caso “Choy vs. Scimed” não beneficia nada nem ninguém. Quiçá pudesse
Pedro Choy ser menos sensível a um Cerqueira ego-teo-maníaco. Oxalá
pudesse João Cerqueira resolver o seu complexo de castração junto de um
bom psicanalista. Mas eu não sei se o Cerqueira considera a psicanálise pseu-
dociência. E isso é relevante para obter resultados tangíveis.

Vou pedir uma indemnização ao Estado por não reconhecer o meu


génio. Se tudo correr bem, vou levar uma abada.

Cão sofrido procura dono perdido. Chama-se “Algoritmo”, e já dispen-


sou o chip. Favor afixar nas Igrejas.

Assim como quem não quer a coisa, diz-lhe que preferes sonhar.

Há génios que não se entendem. Nunca me entendi, com eles. (Enten-


deste?)

Há monumentos que só se fizeram para serem deitados abaixo. Mas isto


não é para que as gruas se sintam em baixo.

O mundo só é uma redundância por falta de imaginação. “Só podia!”,


teria dito um deus, à escusa de se frustrar.

416
O FisióSOFO

Se eu soubesse que um charro me tornaria mais criativo, plantá-los-ia


no vaso da vizinha. Mas não utilizaria adubo, por não fazer sentido.

“Se disseres a maior verdade da pior das maneiras, perdes a razão”. Dis-
se o retórico. Deram-lhe razão. E ainda bem, porque já tinha perdido a dis-
cussão anterior.

Após a Criação, ao sétimo dia, um homem exclamou: “Eu não teria fei-
to melhor!” Logo Deus, na sua omnisciência, afogou o homem no futuro.
Mas não se preocupem. Porque o Filho do Homem já o tinha perdoado.

Num acesso de Inspiração, alguém me disse que tudo se devia a um


comprimido que me colocaram no chá. Só podia ser Imaginação: eu nem
bebo chá. Tenho pena de não ter visto de que era o comprimido. Porque, se
foi imaginação, só posso ter acertado na receita.

Fiz o que não devia só para que pudesse alimentar-me. Não obstante,
não pus o sal na mesa, para contrariar o gosto.

O que o banqueiro mais queria era que lhe assaltassem o banco. Só para
que lhe desculpassem a riqueza da casa. A casa, claro, é o banco. Mas não vou
pedir desculpa pelo acrescento. Já sou pobre que baste.

“Não há duas sem três!” Disse-lhe quando perdi os três.

417
Luís Coelho

Ou eu não me chame Luís se não hei-de lutar pelo direito a não ter
nome!

Vivemos tempos perigosamente infantis. É mais difícil dar um doce a


uma criança do que é fácil tirar-lhe o doce. Imaginem se fosse “Kinder sur-
presa”. Ainda me surpreenderia.

Há pessoas que fazem da ofensa o seu dia a dia. São inofensivas para
quem vive de noite.

Há pessoas que nos ofendem de dia a dia. Não nos surpreenderíamos se


passássemos a viver à noite de dia.

No caso “Choy vs. Scimed”, não me pronuncio. Porque, por mais que
tente, acham sempre que sou imparcial.

Sacrificarias a tua vida pela do mundo inteiro sabendo que, no segundo


seguinte, serias completamente esquecido? Não te sacrifiques a responder.
Mas sabe, desde já, que, se te matares, estás a fazê-lo pelo outro.

Quem lê para ser feliz não conseguirá fazer os outros serem felizes a ler.

O sentido mágico do Destino opera, não na Determinação que alivia, mas


no Improvável insaciável. É aí, subitamente, que o milagre se prevê inacreditá-
vel.

418
O FisióSOFO

A realidade da physis só se torna Dominante se enlaçar a verdade de um


Dogma, com mor conteúdo abstracto. Já aqui a physis começa a esboçar uma
compensação “psíquica”. O Dogma “physis” compensa os frágeis deste mode-
lo, bem como os “duais”, bissexuais, que se convertem ao novo Domínio.
Também neste contexto, o paciente – que pertence, provavelmente, ao domí-
nio abstracto – poderá ser convertido pelo terapeuta “normativo” à novel
Physis libertadora. Somente o excesso normótico fará com que o frágil da
“Psiké” sublime e conforme o novo Domínio abstracto. O “Domus” “Psiké”
está mais próximo da Razão “ideal”, o que pode conferir menor atrito relati-
vamente à última, o que, de mais a mais, poderá neuroticizar o terreno da
“physis”. Há, identicamente, uma possibilidade de a Razão “ideal” possuir
maior Domínio dogmático, o que cria, ainda mais, “dor” ao terreno “mate-
rial”. Os que periclitam entre Princípios far-se-ão, agora, converter à “Psiké”,
a qual tange os novos terapeutas “normativos” capazes de converter alguns
patologizados pelo Dogma. São, também, estes neuroticizados que sublima-
rão a nova moral “physis”, mais libertária. A Liberdade é, tal-qualmente, o
Espírito, que pode surgir aquando da compensação, satisfação. A “espiritua-
lização” imprevisível poderá ter o mesmo efeito que a mutação “livre”, acres-
centando confusão ao Sistema. Mas o que se acresce terá, sempre, um efeito
análogo, dialéctico. Qualquer Princípio, bem como qualquer compensação,
fará mimetizar a Natureza primeva libertadora. Mas se o Princípio for afecto
a “Physis”, ele não libertará na perspectiva do Espírito. Entretanto, se se pre-
tende comutar os dois aspectos, talvez seja necessário gerar uma fórmula
irrealista, que tangeria a mudança para cada elemento, instante e objecto.
Como não é possível saber o que é, de facto, superior, basta-se, assim, um
caminho do absurdo, onde se cambiam Princípios e dualidades diversos. O
Equilíbrio também mimetiza a Estrutura primária, já o movimento é um
outro modo de liberdade, porque pluraliza as possibilidades duais. Mas,
como a dualidade parte dos mesmos princípios plenos, que incluem a fonte
da mudança, não é, como tal, provável que nos afastemos, em demasia, dum
Princípio “Natura” mais principesco. Quando uma realidade “neurótica” se
sublima, a novel Razão abraça indivíduos já pertencentes ao Sistema. Esta irá
converter um número cada vez maior de indivíduos, incluindo as próximas
gerações. A Realidade conforma-se a ela, e uma nova Realidade implicará um
choque que, não obstante, compensará muitos adeptos “bissexuais”. A fonte
da mudança está nos fracos inconvertíveis, mas o que reforça o novo Domus
são os “indecisos”, o que, de alguma forma, nos rememora a importância da

419
Luís Coelho

“dor” enquanto foco de permuta paradigmática. Para enriquecer mais o Sis-


tema, em termos temporais, é preciso que surjam novos desafios empíricos,
novas mutações “racionais”, doutro modo, o fio bipolar será, sempre, muito
semelhante a qualquer coisa mais ancilar. As fases de transformação e subli-
mação são de forma a aumentar a distância entre os pólos, o Domus mais
inclusivo diminui essa distância, gerando algum equilíbrio. Os frágeis subli-
madores obedecem, apesar de tudo, ao seu Princípio infantilmente adversa-
do, a maior mutação surge, entretanto, dos convertidos por “estruturação”,
assumindo certas mudanças na Realidade. Isto modifica, um pouco, a Razão
dominante, e, como tal, a Realidade que ela “positiviza”. Entretanto, os que
possuem um Princípio sólido poderão permanecer pouco sensíveis à mesma
Realidade “exterior”, a não ser, claro, que esta sofra grande transmutação.
Abstraindo-se do Sistema estão, também, os que se convertem em “Espírito”,
os “livres” de facto, isto, apenas, tira força “determinadora” à Razão em cau-
sa. Se um Domus se torna menos operativo, também a reacção “dolorosa” é
menor, esta tolerância é, igualmente, um modo de equilibrar o Sistema,
dirimindo a sua força temporal. Pode, claro, escusar um Princípio, ou um Equi-
líbrio, melhor, mas há incessantemente um “melhor” possível, é impossível
sabê-lo, e isto se nos ativermos ao referencial “liberal”, numérico, porque
qualquer forma de razão idiossincrática poderá valer muito mais, podendo, ele
mesmo, conformar novel Razão dominante algoritmicamente superior. Mas
o “Superior” implica conhecer todos os instantes “insofridos”, bem como o
modo como estes trazem mais ou menos “insofrimento”. E para que exista
menor sofrimento é preciso um “mal”, até porque o Equilíbrio implica um
marasmo nadificador. É a região “imprevisível”, livre, que traz a nova Liber-
dade racional. O conjunto das diversas razões é o “multiverso”, a sua “totali-
dade” despolarizada é a Unidade. E esta cessa a dialéctica. Mas a última é
sempre Igual, porque todas as “dores” se adaptam ao seu fio condutor,
valendo exactamente o mesmo. Por sua vez, a dualidade persiste em cada
agente. O que significa que todos os Princípios se equivalem, o multiverso é a
Unidade jogando, escalarmente, com a nossa Consciência, criando a ilusão
da “diferença”, quando há, apenas, “repetição”. Tanto faz qual o lugar que
ocupamos no Universo, porque todos os lugares são o Centro, frente ao Infi-
nito, e este é a própria Unidade eterna esticando-se indefinidamente no tem-
po. A sua Razão “suficiente” é a Natureza limitadora de muitas pequenas
razões que se transcorrem, qualquer mutação está escrita no momento pri-
meiro, ou talvez surja espontaneamente no Sistema, a partir do Nada. Por-

420
O FisióSOFO

que este acompanha, perpetuamente, a Coisa. O que se acrescenta ao Sistema


enriquece-o, mas não o distorce completamente, porque isso seria trair, defi-
nitivamente, a relação de Causa-Efeito. Objecto do Espírito puro, como bem
sabemos, mas mesmo este é “concreto” e determinado.

Se vires alguém parecido comigo sou eu mesmo, antes de ser deus. O


resto é coincidência.

Se queres que alguém ouça a sua verdade, não o ouças. E se queres que
ele se oiça entre ruídos, não discutas com ele: não te ouvirias. Não digas
nada, já sei que não me darás ouvidos.

Se não queres dar-me ouvidos, dá-me a boca. Se não queres dar-me a


boca, não me dês o coração, que a promiscuidade tem ouvidos.

Estou de boca aberta: entrou a mosca do espanto, saiu a asneira da vida.

Era uma garota de programa. Programou-me. Mudou de emprego.

É favor livrarem-se de mim para que eu não possa fazê-lo.

Quando alguém se permite sacrificar por uma maioria que com tal con-
sente não está a fazer um favor a esta maioria, porque, em breve, a maior
parte dela será sacrificada pela possibilidade de vir a ser mais um “alguém”;
sobra, quiçá, aquele que não se importa de ser sacrificado, talvez por saber
que existe tal maioria. Quando, no entanto, a maioria estiver disposta a sacri-
ficar-se pelo “alguém”, não haverá sacrificado por que lutar, no devir, não

421
Luís Coelho

haverá, sequer, quem se sacrifique a pensar nestas (e noutras) coisas. Mas,


porque sou egoísta, penso em sacrificar-me e nas melhores formas de parti-
lhar o facto. Sacrificar-me-ia mais, se vos recomendasse ignorarem tudo o
que aqui disse. É por isso que o faço, só para que não esqueçam.

Quando deixamos alguém partir, não nos sacrificamos, alimentamo-


-nos da esperança. Sobretudo quando esperamos que a pessoa não volte.

Há quem diga que o pormenor nos retira do essencial. Eu digo que o


pormenor é o essencial. E não é invisível aos olhos. Mas é surdo como se
fosse.

É preciso termos o espírito do contra para deixarmos de estar contra o


espírito. E se és contra isto, não direi que és hegeliano.

História da Filosofia para parvos: Era uma vez uma coisa que se inven-
tou para fazer dos outros parvos. O fim? (Não, o fim é demasiado parvo para
ser contado.)

Queria um “espanta humanos”. Só tinham “espanta espíritos”. Ora, se


eu precisasse de “espanta espíritos” não precisaria do “espanta humanos”.
Mas agradeço o optimismo. Se bem que o vendedor me disse que era tudo a
mesma coisa. Valha-lhe o materialismo.

«– Psicólogo: Tenho um conselho para si!


– Eu: Quando a Psicologia for uma ciência exacta, saberei exactamente
onde pode meter o seu conselho.»

422
O FisióSOFO

Quem conquista e precisa de se explicar ainda não se conquistou.

Conseguiu mudar o mundo. Não conseguiu viver nele.

O Valor é tão raro que se torna mais fácil encontrá-lo num indivíduo
do que num conjunto deles.

Uma Deôntica começa, sempre, com algo de uma Razão natural, pro-
longando, talvez, o seu aspecto Ético, incluindo a Idiossincrasia, que é o que
possibilita a função “liberal”. O Liberalismo inclui o duo “Estrutura vs. fun-
ção”, e ele projecta-se num “maior número” Real, que, por sua vez, recalcitra
numa Deôntica. É preciso que o Real possua outra ameaça capaz de fazer
moldar a Razão dominante. E esta sublima o papel da moral. Que acarreta a
“consequencialidade” deôntica. E pouco interessa que esta seja “Espírito” ou
“matéria”, ela impõe, sempre, uma determinidade livre.

Claro está que a Deôntica adversa, um pouco, a Natureza, conferindo-


-lhe uma Razão que, por sua vez, se verá prolongada por um Real maioritá-
rio, que também a compensa, porque subscreve algo da Natureza. A tentação
de colocar a “Deôntica vs. Utilitarismo” nos termos do “Espírito vs. matéria”
é grande, mas o que importa, aqui, é, sobretudo, a determinidade pessoal (e
colectiva) dos modelos, a forma como eles se fazem sentir no Sistema, mas
isto é, apesar de tudo, materialidade “pragmatista”, e pensá-lo é, também,
pragmatismo, o próprio pensamento é “matéria”, ou melhor, determinidade.
Claro está que há a abstracção, o “ideal”, e a Estrutura cognitivo-emocional,
eles podem subscrever diferentes modelos, com as diferenças compensando-
-se ou adversando-se, ou compensando e/ou adversando o que é de “outrem”,
pelo que o Colectivo Racional muda constantemente, como mudaria o “algo-
ritmo de insofrimento”. Aliás, onde existe maior sofrimento, ou maior cons-
ciência, subsiste o maior “valor” consequencial, sobretudo se ele implicar

423
Luís Coelho

uma sublimação racionalizadora do Real. Tanto o instante quanto a Estrutu-


ra interna pesam no “valor” pessoal e societário, há, aqui, uma determinida-
de, não importa se “espiritual” ou “material”, é uma “moral”, ainda assim, e
o peso ser menor é haver mais liberdade, mas menos livre-arbítrio, quando
este é o “espírito” material potenciador do Real Espiritual, determinístico e,
igualmente, livre, porque pacificado na relação com o “todo”.

Há liberdade de pensamento. Mas pensa duas vezes antes de afirmares


que há liberdade de expressão!

Estado da avaliação fisioterapêutica na maioria das Clínicas: “O fisiote-


rapeuta não tem mãos a medir”. Não é um Estado de excepção, é um estado
de sítio. Resta meter os pés pelas mãos e correr a medir o futuro. É um exer-
cício de avaliação do passado, levando as mãos à cabeça, a correr pelo sítio de
excepção.

Se lutas para que gostem de ti, tem esperança: um dia, gostarás de ti.

Querida,
vais fazer-me o favor
de arranjar um amante,
preciso de recuperar-me
para a poesia,
sem ti, claro,
não será profecia.

Declaração de Rendimentos: Eu não rendo. Também não me rendo.

424
O FisióSOFO

O proletário: Eu rendo, por isso, não me rendo.


O ocioso: Eu não rendo, por isso, não me rendo.
O morto-vivo: Rendi-me, por isso, não me rendo.
O espiritual: Rendo-me.
O morto por completo: O Rendimento.

Declaração Mensal de Remunerações: Era anual e nunca te declaravas a


mim se te remunerasse.

Esperei por ti no cemitério. Como nunca mais chegavas, ia morrendo à


espera. Quando chegaste, morri de susto, parecia que tinhas vindo antes do
tempo. E, ali, nos amámos, e os mortos tiveram inveja. Por isso, andámos,
somente, de mãos dadas, subindo e descendo os descampados, e só te dizia,
entre esforços, que não se fazem cemitérios para os vivos. Era um egoísmo de
morte.

Desaparecimento: Fui visto, pela última vez, no vosso mundo. Se me


virem, não sou Eu. Se me ouvirem, não precisam de lavar os ouvidos. Se me
encontrarem perdido, enganem-me, doutro modo não seria possível, enga-
nados já vocês estão.

Tenho uma dúvida: Os “estóicos” eram “nerds” ou “jedis”?

«– Eu: Já fui um “nerd”, agora sou, apenas, um céptico!


– Yoda: O lado negro sinto em ti.»

O meu amor por ti é “ad hominem”! Mais do que isso, só depois de


casarmos.

425
Luís Coelho

Deus: Autor Desconhecido Indevidamente Identificado.


Ass.: Demiurgo, devidamente autorizado, que procura identificar-se; um
desconhecido a querer ser Deus.

É fácil fazer a dor diminuir. É mais difícil provar que fomos nós a con-
segui-lo. E é, ainda, mais difícil provar que a dor, de facto, diminuiu.

«– A: Admito, preciso de ajuda!


– B: Já falaste com um psicólogo?
– A: Sim, por isso é que preciso de ajuda.»

É preciso chegar ao fim para conhecermos o Princípio. E, com isto, pre-


tendia o “consequente” enganar o homem de princípios. Mas não era engano
nenhum, era o princípio do consequente, o engano foi meu, que trago comi-
go outros princípios.

Ele estava com a Alma em gelo. Já a carne, fervia em pouco espírito.

«– A: Andei a ler Foucault, «O Nascimento da Clínica»


– B: Não vás ao médico, que não precisas!...
– A: É precisamente isso; também o leste?
– B: Eu não te dizia?
– A: Mas foram as tuas palavras.
– B: Eu sou mais pelas coisas.»

Saber que o corpo tem um Espírito é andar de olhos fechados. Saber


que o Espírito tem um corpo é ter os olhos abertos. Saber que diria isto é
presciência. Tê-lo lido é cultura geral, e inútil.

426
O FisióSOFO

Tudo me resiste e isso é irresistível.

Todas as conversas vão dar ao amor. Pelo que nos compete desconver-
sar. Não por dever, mas por puro sadismo, que é desesperar por um embrião
que não consegue saldar a Alma.

O melhor da vingança está em pensá-la. O pior, em recordá-la.

Era preciso deixar de viver n/d/este país, para sermos o próprio país.
Faríamos com que a cauda da Europa passasse por hélice.

Criar a vergonha de um Ego é a melhor forma de impor um Espírito


pessoal. Que vergonha!

Eu cegava a olhos vistos. Era uma cegueira de vaidade. Viste? Não, não
viste. Não quiseste, por isso, pode ser que te envaideças de não partir para
onde Já não taparás o coito melífluo dos sentidos.

Violência obstétrica: é impingir a vida ao homem que se vê forçado a


violentar para permanecer vivo. O obstetra é um bebé, a mãe é quem o lem-
bra.

Pedi à Morte para me deixar escapar... à vida. Ela considerou-me mor-


to, para todos os efeitos: fez-me a vida negra.

427
Luís Coelho

A morte fez-me a vida negra. Quando vir a Luz, vou ter uma conversi-
nha com ela: não lhe direi Palavra, para a pôr no desemprego. A ver se ela
sente a vida na pele. E o pior é que ela não pode pôr-se termo, não a deixa-
rão, dirão que ela não tem o direito a escolher.

Num mundo de Culpa, não existir é perdoar. Experimenta fazê-lo num


mundo que se desculpa constantemente. É de morrer por mais.

Era assim que pretendia dizer-te que te amo: mostrar-te como posso
viver sem ti. E, no entanto, se puderes dar-me uma mãozinha, prometo dis-
pensar-te a cabeça.

Se te sentes dono de ti mesmo, alguma coisa está errada.


Não será a trela que está demasiado apertada?

Não sabes da conversa a metade. Imagina o que dirias se soubesses da


outra metade. Estaríamos conversados.

Ele não tem razão, ele é a própria Razão, por isso, pode mentir à vonta-
de, que estará sempre certo. Certo?

Era uma Verdade bem intencionada. Caíam os seus anjos do Céu, como
mentiras a morrer por mais.

O Utilitarismo só pode ser útil à Deôntica se souber manter o bico cala-


do. Doutro modo, mais vale matar, publicamente, o utilitarista.

428
O FisióSOFO

A prisão e o hospital têm algo em comum: a comida. Isso e a Humani-


dade, que é de cortar à faca.

Não sou mitómano, para isso era preciso que acreditasse em mitos, e eu
nem acredito na minha existência.

Há tolices que se pagam caras. Havia, por aí, um tolo que acreditava em
Deus. Deram-lhe, logo, um desconto, não fosse ele fazer dos outros tolos.

“Por culpa de alguém não se fia a ninguém.” Pôs o Cristo Jesus à porta
do Templo, depois de expulsar os vendedores. Mais tarde, o Cristo retirou
todos do Inferno, antes do Cristianismo começar a fiar os vendilheiros da
alma.

Andava triste com o mundo, desiludido com a pobre Alma rendida ao


materialismo. Alguém lhe disse sofrer de “depressão”. Reconciliou-se com o
mundo.

Fui mau até me apelidarem de “psicopata”. Agora é só dizer que sofro


daquilo e ficam, logo, com pena. Conclusão: já não compensa ser mau.

Quando eu era pequeno podíamos ser perseguidos à vontade, pois não


existia, ainda, a palavra “bullying”. Foi o esforço de muitos bons perseguido-
res que permitiu criar este precioso conceito. A eles também devemos o facto
de já me levarem a sério quando carrego a minha bisnaga de água e sabão.

429
Luís Coelho

O Padre António Vieira também não era, propriamente, um santo. Vi-o


no Aquário “Vasco da Gama” a fazer a apologia do Oceanário. A última vez
que alguém fez isto, impingiram-me um salmão de viveiro, quando eu me
tinha limitado a defender o Regresso à fonte.

Se alguém te disser que estás bem adaptado ao mundo, suspeita... Deve


ser um membro duma seita. Pior: pode nem precisar de te converter!

Se ele disser que compreende tudo por que estás a passar, dá-lhe a tua
compreensão. Mas não lho dês a entender, que ele não ia compreender.

“Compadece-te e não dês nas vistas.” A seguir a isto, fiquei na dúvida:


ou ia ser convertido ou ia ser assaltado. Graças a Deus, ainda hoje estou em
dúvida.

Chamam-me “frio”, que congelo nas emoções. Derreto-me logo!

Nunca deixes de acreditar em Ti, porque, no fim, verás que o que encon-
trares é inacreditável. Não acreditas? Já lá chegaste e ninguém me avisou? Não
acredito!

Se vires algum futuro por perto avisa, que eu sou “à antiga” e preciso de
dar corda ao relógio.

Num mundo onde pudesse disparar contra todas as pessoas que me


irritam, estaria morto de irritação. Se isto te irrita, não disparates.

430
O FisióSOFO

Ele era tão esperto que até ético se tornava. Arrepiei-me todo!

Ele achava que todos lhe deviam alguma coisa. E não é que até tinha
Razão? Só faltava darem-lha.

Era, assim, para o niilista amoral. De resto, até era má pessoa.

Tinha uma visão moral do mundo. E esperança! Coitado, foi-lhe atri-


buída 90% de incapacidade.

A missão dele era de se incompatibilizar com todos. Porque sabia bem o


que o Humano desvalia. Tirou, assim, um curso de Filosofia. Entretanto, teve
azar. Apaixonou-se e ficou a amar o mundo. Tornou-se, enfim, insuporta-
velmente irritante.

Queria dedicar-se ao Bem Universal. Pagou imposto.

«– A: Foi bom toda a vida. Todos o ignoraram. No fim, onde foi enter-
rado, até a árvore apodreceu.
– B: Foi para o Céu?
– A: Ia a caminho, mas, a certa altura, mudou de sentido, que não que-
ria ser enganado outra vez.»

Se achas que foste injustiçado toda a vida, experimenta ser Deus. É uma
eternidade de “má-fé”.

431
Luís Coelho

Descobriu o Valor da vida. Registrou a patente. Não se sabe bem por-


quê, morreu pobre.

A curva da felicidade é como a curva “comprimento-tensão”. Em dema-


sia, perde a força.

Se viveres uma boa vida, há uma coisa de que podes ter a certeza: a
maioria das pessoas continuará a não fazer ideia de quem és.

Somos continuamente massacrados pelo “ser humano” e ainda acha-


mos que a coisa se resolve com a Humanidade. E, ademais, vociferamos con-
tra os que sonham ser deuses. Que inveja!

Se fores o mais justo dos homens, serás facilmente esquecido. Mas se


fores um tirano, decerto alguém se lembrará de ti com saudade.

Parabéns (H)à Eternidade! Por não fazer anos.

«– A: Ele acreditava nas pessoas, vi-as cheias de futuro!


– B: Tinha esperança!...
– A: Credo, não! Era, só, esquizofrenia.»

Se morrer amanhã, sabes, então, que podes Sempre contar comigo. Se,
entretanto, estiver vivo, não apagues a mensagem, para não ter de a escrever
novamente.

432
O FisióSOFO

Amar-te é a minha rotina. Apaixonar-me por ti novamente, só por cur-


tos períodos de tempo. Porque se durar eternamente, vou acabar a amar-te
como sempre.

Não lamento não ter sido pai: se tivesse sido, poderia estar o meu filho a
lamentar-se por mim.

O mundo real rouba-nos constantemente à Ética. Não admira que alguns


se tornem ladrões: para manter a dignidade.

Mito ou Verdade? É um mito colocar as coisas nestes termos. Imagina


se fosse verdade: seria outro mito.

Num mundo onde o máximo de honestidade cria o pior dos destinos,


existe o dever de enganar o destino, honestamente.

E uma maçã caiu em cima de mim: a puta da Gravidade está podre; se o


outro não se tivesse lembrado disto dava-lhe uma pêra! (e quem leu isto esta-
va na lua, a pensar, quiçá, em viagens no tempo...)

Ele chorou tanto no funeral que ia jurar que era por não ter morrido.
Para a próxima, chore menos, que é preciso manter as aparências. São sete
palmos de lágrimas ou ainda o matam à pazada. Ora, ninguém quer morrer
sem a dignidade do estertor. Os bons não morrem no dilúvio ou à paulada.
Ainda têm tempo para pensar na melhor forma de dignificarem a morte,
lamentando o facto de não terem partido mais cedo.

433
Luís Coelho

Preparei o meu testamento: estás morto por saber o que lá pus, não
estás? Só por isso já vale a pena tê-lo feito, não vá eu morrer antes.

Esta vida de “eterno retorno” só tem uma coisa boa: os intervalos de


Nada. Dão para recuperar as energias e pagar a dívida aos falsos profetas.
Voltarei a juntar quando me pagarem a mim com qualquer “coisa”.

Há um perigo de informar sobre as tentativas falhadas de ejaculação ter-


rorista. Por mimetização, pode levar a muitos coitos interrompidos de frus-
tração. Por favor, partilhem a ejaculação desta informação. Não vá frustrar-
-me.

Se me dizes “Nunca duvidei de ti!”, responder-te-ei “Não te preocupes,


nunca duvidei de nós!”. Depois, confio que apagues esta informação, para
que nunca mais duvides de ti.

Duvida, sempre, de mim, pois, a mim, não me deixam fazê-lo.


Duvida de mim, para que não possa fazê-lo.

Numa sociedade podre, cada um de nós anseia pelo terrorista frustrado


que temos cá dentro. Infelizmente, nem isso a Sociedade permite: a sublima-
ção da autodestruição imbecil.

Pior que o terrorista frustrado é a frustração terrorista da Sociedade


imperante: é ela que cria os seus mecanismos de autodestruição.

434
O FisióSOFO

Quando deveríamos reflectir sobre o que move a tentação destrutiva,


cada um se preocupa mais em se destacar dum plano de Inocência que nunca
chegou, sequer, a existir, senão numa qualquer Razão Eterna.

A Durex promete preservativos cada vez mais finos. É para aumentar o


prazer com o risco de ver afinada a nova vida, num mundo fino e ácido.

O Inferno está cheio de intenções, boas ou más. O Céu limita-se aos


programas de acção compassiva. Não penses, não rezes, não desejes, e talvez
te safes.

«– A: Quem é seja quem for para dizer seja o que for?


– B: Isso é um argumento de Autoridade!
– A: ...»

Levamos anos a deixar-nos levar pelos anos: e, depois, compreendemos


que é assim mesmo, são precisos anos para desaprender o que o tempo ousa
compreender, que é não haver tempo para o que os anos sabem.

Desliguei o meu despertador sem dar por isso: Que inveja que eu tenho
daquele que o fez!

Queres uma opinião honesta? Se queres honestidade, não quererás opi-


niões. E lamento que o diga desta maneira, assim como vindo do Nada, qua-
se como se fosse verdade.

435
Luís Coelho

Tento, por tudo, ser impopular, mas há sempre quem tenha esperança
em mim: é desesperante!

A palavra certa nunca se encontra no sítio certo, se isso acontecesse não


estaria aqui a dizê-lo, mas também não ficaria sem palavras, que eu não sou
de acreditar à primeira vista.

Toda a ajuda é auto-ajuda. Excepto quando as coisas correm mal, aí já é


a consulta de psiquiatria, mas sem filas de espera.

Violência doméstica? Só na festa do pijama. Nas tentativas de desnuda-


mento. Por mais que tente descobrir-me acabo, sempre, a masturbar-me.
Mas confesso que o faço sem fantasias, para purificar o gesto.

Se a poesia rima, agradeçam ao acaso, que eu, por mim, nem teria feito
qualquer reparo.

«– A: Se queres que te diga, não te digo o que quero!


– B: Mas eu nem perguntei nada.
– A: Perguntasses!
– B: O quê?
– A: Não tens nada a ver com isso.»

«– A: O segredo do Mistério é o temor do que possa existir.


– B: Não há nada a temer, é tudo uma cortina de fumo.
– A: Bem que temia ser um temeroso passivo!»

436
O FisióSOFO

Num mundo onde alguns têm de temer por existirem tal como são,
temo sentir-me envergonhado por coexistir. Talvez porque não seja tal como
existo.

Uma máquina de fazer frases. Um holocausto de memórias. Uma Fénix


renascida do Nada.

Era um poema a voar, sem asas: todo o mundo era um Céu, encardido
de analogias.

Entre aficionados e detractores, andava o touro servindo de árbitro.


Pensando no bife do jantar, com molho de cogumelos. Ao deitar, a mama da
vaca, mugindo como deusa no parto da febre. Dormindo no prado, sem ove-
lhas tragando o sonho de uma vigília ininterrupta do Subconsciente anímico.

Nunca concordei comigo. Quando o fizer, darei à Luz uma fera. A


ladrar, sem morder a mama.

Li-me num livro. Não sei como acabei. Emprestei-me e não fui devolvi-
do. Espero não me ver num jornal, já sei que sou pós-verdadeiro, não preciso
de assustar ninguém.

Li-me num livro. Não sei como acabei. Devolvi-me à biblioteca. Não
me comprei na livraria, pela via das dúvidas. E para não ter de emprestar-me
sem ser devolvido.

437
Luís Coelho

Quando der uma queda saiba como cair. Não vá o Diabo tecê-las.
Cai no real, o Diabo és tu!, pensas que és algum anjinho?

Não basta que a Terra esteja num canto do Universo, é preciso que o
meu Universo esteja num canto da Terra, e, ainda assim, continuarei a pedir
desculpa ao mundo por, com ele, coexistir.

Universo, vamos acabar a nossa relação, o problema não és tu, nem sou
Eu, é o Humano que há em mim.

Ela sofria de mim. Dei-lhe uma folga. Estou melhorzinho, obrigado,


mas não sei a quem hei-de agradecer.

Gostaria de dizer que vou ter saudades tuas, Universo, mas, quando me
for, é para cuidar dos teus submissos, encher-me-ei de problemas e, note-se,
ajudarei, que é mais do que Tu fazes.

Vi-te, estremeci, fiquei à deriva, era só a placa, e uma vontade de te


morder, e um medo de me fundir, como se já não bastasse a lágrima de um
encontro à distância.

Já é possível um exoesqueleto, ou uma cadeira de rodas, controlado pelo


cérebro. Para quando uma mente controlada pelo cérebro?

“A Consciência provir do corpo? Isso é absurdo!”, disse-me o meu


“robot”, que anda muito saído da casca.

438
O FisióSOFO

A minha nova “Bimby” já vem com alma anexada. A menina que ma


vendeu disse-me que só lhe daria real uso depois de esgotado o tempo de
vida. Coitada, é dualista ou avariada.

“Essa Alma fica-te a matar!” Era o meu robot a bajular-me. Mas eu não
fui na conversa, que não tenho garantia.

A “marrar” ou “compreendendo”, ainda agora não compreendo como


escolhi entender-me: enfim, foi o destino que me marrou!

Negacionistas da guerra avizinham-se na fronteira da consciência. Decla-


ro-me, desde já, rendido! Senão...

Quando o milagre tiver os dias contados, virá o mistério para recontar


os dias. Conto com isso, no desconto da Hora.

Negacionistas do mundo uni-vos: Há um espectro a criar e uma Terra a


aplanar!

«– A: Quando é que vais salvar a Humanidade?


– B: Quando me apetecer!
– A: Mas a Humanidade precisa de ti!
– B: Vês?, estragaste tudo, agora já não me apetece.»

439
Luís Coelho

Abandonado por todos, não quis contradizer as pessoas e abandonou-se


também! Foi um sucesso tal que levou muitos a pedir-lhe a receita. Ele escre-
veu-a “à antiga”, só para iniciados nas escritas herméticas; se muitos fossem
bem sucedidos ele voltaria a querer abandonar-se.

Há que mudarmos para que nunca se cansem de terem saudades nossas.

«– Paciente: Sinto-me morto!


– Médico: Oh homem, anime-se! Você está mais vivo do que nunca!
– Paciente: Não me leve a mal, mas vou procurar uma segunda opi-
nião.»

Quando conseguir que todos discordem de mim, conseguirei mais do


que qualquer mestre. Infelizmente, há sempre alguém suficientemente com-
plexo para valorizar alguma ponta do que defendemos.

O “Ser Humano” tem uma tarefa importante para o futuro, e eu lem-


brar-me-ia dela se o futuro não ma tivesse roubado. Acontece isto desde que
me lembro: esquecer-me, consecutivamente, da dose de Culpa que deve orien-
tar todos os movimentos. Existe, apenas, o hábito de se dançar, desprezando
o que nos torna especiais: a obsessão perfeccionista da transformação.

Não era suposto este ano ser ainda melhor do que o anterior? Se assim
continuarmos, ainda se acabam os anos antes de podermos mostrar o que
pior temos. Seria uma desilusão não haver quem pudesse festejá-lo, e nós que
andamos há tanto tempo a preparar-nos, praticamente desde que há deuses.
(24/02/2022)

440
O FisióSOFO

Já podemos dizer “Nada de novo a Este” ou o liberalismo ainda é o “fim


da História”? Ai é cíclico? Então estamos perdoados. Ah, se estamos perdoa-
dos deixa de haver Ciclo?

Ele não olha a fins para atingir o meio. Até se tornava virtuoso, quando
se esquecia do que fazia.

“Dão-se explicações” do mundo. Preparação para o exame de consciên-


cia. Insatisfação garantida. Doutro modo, não devolveremos o seu dinheiro.

Era um voto de censura do Humano. Dirigido a mim. Para que fosse


para o Diabo! Usei-o como carta de recomendação a Deus. Tive entrada
imediata no Céu. E houve um anjo que me deu um raio de carta para a Ter-
ra, queria que eu fosse intermediário: mandei-o para o raio que o partisse.

O Humanismo mais perfeito é sem humanos.

A minha dieta é a Razão intermitente: por Nada, não precisas de agra-


decer; não convém, até, que o faças, para ver se não perco a intermitência da
memória, bem vês que, agora que o explico, já me vou perdendo.

Eles não fazem a mínima ideia do que estão a fazer. Limitam-se a fazer o
que sabem. Para não ficarem com uma ideia errada do mundo. Que pena
seria saberem o que fazem, ainda ficariam com um mundo baralhado de
ideias, um erro metabólico de trocas alimentícias.

441
Luís Coelho

Pai perdoa-lhes, porque eles sabem exactamente o que fazem. Não lhes
perdoes, por fingirem não saber. Já basta que Tu lhes faças o que não sabem,
tantos nascimentos imaculados, inesperados, em homens traídos pela memó-
ria num Sistema de néscias determinações infecundas.

Não é possível compatibilizar o Génio com o “bom feitio”. Porque quem


tem génio e se desfeia pelo mundo já faz um grande favor ao Homem, pedir-
-lhe mais seria obviar o falso profeta prestes a derramar a paz nos que não
prometem o Céu. E o pior é que podia resultar assim mesmo, com o falso
profeta a profetizar-se a (i)memória mais imaculada com entrada assegurada
no Paraíso dos feitos inglórios.

Diz não à Paz, para que a guerra não te doa: pode ser que apareça um
Herói e te surpreendas sereno. Pior, pode ser, até, que cresças com esse herói
e te tornes puramente Originário. Queres maior guerra do que a Criação
imediatamente acidental? É a paz mais difícil de suportar, porque não podes
declarar-lhe guerra com as palavras certas.

Pior do que a guerra inesperada é a Paz incendiária: nem te permite


declarar-lhe a guerra da Consciência profética; vês-te, logo, apagado pelo
Absurdo de um Universo sem palavra. E olha que, naquele Universo, nem
podes ver os teus irmãos a fingirem-se avatares de um mundo significativa-
mente igual, que se projecta no jogo da amplidão escalar onde a dor é amea-
çadoramente a mesma e a Paz subitamente (des)equilibrada.

Apanhar a Palavra certa no momento oportuno é uma sorte. Criar a


Palavra certa no momento acidental é um destino: dos que apanham das
palavras mantidas em colunas de guerra de uma Consciência emancipada.

442
O FisióSOFO

Nem guerra, nem paz. Faz Amor.

Enquanto colocares as coisas em termos de “Guerra vs. paz” estarás


fodido. Quando colocares as coisas em termos de Amor serás foda! Não, não
é “má criação”, é, mesmo, Boa!, das que não possuem consequências e resva-
lam para o Ser que pretende, bastas vezes, foder o mundo de perspectivas.

«– A: Está ligado à máquina, mas está morto!


– B: Mas nós não somos, também, máquinas?
– A: Sim, precisamente, também estamos mortos!
– B: Mas sinto-me tão vivo!
– A: É a máquina que está avariada.»

Não, não lhes perdoo não me terem dito que bebia dos mesmos defei-
tos, porque criaram o risco de me perdoar. Far-lhes-ei o favor de esquecê-los
para não ter de me desculpar. Punir-me é a melhor forma de os reconduzir à
lembrança imaculada.

Dói-me a consciência, por isso não te mordo. Mas se não me doesse não
teria razões para te morder. E não te vou mostrar a contradição, tenho medo
que me mordas. E eu não tenho a vacina para tal agonia, ainda podia pôr-
-me, aqui, a pensá-la. Assim, fico-me pela dor de dentes, talvez escreva sobre
ela, antes que se torne infecção ou dentadura.

Se soubesses o que eu sofro por ti, passarias a sofrer tu por mim. Assim,
antes que me peças para sofrer mais um pouco, terei a iniciativa de te escon-
der o Segredo, porque mais vale uma traição indolor do que sofreres por
teres sido traída. Por isso, não me traias, ficas, assim, avisada sem o saber.
Um dia, rir-me-ei de tudo, quando já não puder trair a minha precaução,
porque o Segredo serei eu mesmo (a)visado.

443
Luís Coelho

O que resolve a Guerra não é a Paz, é a sua expectativa. Quem to diz


não é teu amigo, mas que vais fazer tu, entrar em guerra comigo? Isso seria
ter esperança num Ser do outro mundo. Não tenhas, deste lado não há nada
para fazer. Ai não gostas do que eu digo? Temos pena!, mas nenhuma guerra.

“A realidade objectiva existe mesmo!”, disse ele. Mais um com teorias


da conspiração.

Ele disse-me acreditar num mundo objectivo. Pena que o mundo já não
acredite em mais teorias da conspiração.

«– A: A guerra não existe, é uma conspiração do capitalismo!


– B: Pacífico, meu, capitaliza, lá, esta ganza, que isso passa-te!»

«– A: LSD e passei a ver o mundo doutra forma!!


– B: Com mais cor?
– A: Não! Como uma relação entre Razão e empirismo
– B: E isso é bom?
– A: Por enquanto só estão a curtir...»

Ouvi dizer que podemos matar o Putin que não somos acusados de
homicídio. O que este (Super)homem tem feito pelos direitos humanos!...
(05/03/2022)

«– A: Pessoas que pensam como tu são perigosas!


– B: Ora essa, obrigado, o mérito é todo meu!»

444
O FisióSOFO

Conheci um russo que, afinal, era ucraniano. Ufa!, o que vale é que não
sou preconceituoso!

Era filósofo, mas toda a gente tem o seu feitio!

Queres ter o prazer de me conhecer? Eu não teria.

Sou pobremente excluído. Que luxo!

Dizia-me ele que não podemos chegar à Realidade objectiva. Mas, lírico
como é, há-de arranjar maneira de me impingir qualquer coisa melhor do
que a Imaginação permite. É a tragédia da Verdade superlativa.

Criarei, em breve, uma “rede associal” unicamente para cumprir o


esforço de guerra com paixões irrefreadas. Não me responsabilizo por blo-
queios de coração, que não tenho talento para ser “bypass”.

Uma vida não criativa é digna de ser vivida. Doutro modo, não perde-
ríamos tempo a viver. No máximo, justificar-nos-íamos continuamente pelo
acto de dar vida. À velocidade da Luz.

Fico à espera que a frase se venha em mim. Resta-me apanhar o conteú-


do, devindo-me.

445
Luís Coelho

Ama, como se fosses viver para sempre. Já te passou? Agora, não me


venhas pedir o “amanhã” ou chamar-te-ei falsário.

Achar que “vidas desbaratadas encarecem a vida” é uma tautologia é de


um novo-riquismo inexplicável. Pior que isto só a «Apologia de Sócrates».

Via-te, sempre, desfocada: ou amava-te, ou eras um quadro de Renoir.


Pus, entretanto, os óculos, e já nem te pareces com um Picasso. Resta fundir-
-me contigo até que, ambos, estejamos simultaneamente vivos e mortos. Nessa
altura, arrancar-me-ei de ti e saltarei tela fora, para o Indizível da Vida onde
permaneces incorrupta, à espera que me converta ao teu ruído profético.

Conheces as minhas Causas? Não mas dites, para não ter de pagar a fac-
tura. No fim, veremos quem tem Razão, por mim até podes ficar com ela,
para que a minha vida não se acabe nunca numa explicação incansável.

A vida não é um palco, é um patíbulo. E que bom que é ver as pessoas a


amarem-se num linchamento, só isso já vale pelo sacrifício.

Quando alguém me diz “Ouve o teu coração” fico, logo, com arritmias.
Sugiro que digam, antes, “Ouve o teu cólon!”. Que o meu anda obstipado
com conselhos.

Se Putin não existisse tudo seria permitido? Perguntou-me um amigo,


que diziam ser de esquerda. (10/03/2022)

446
O FisióSOFO

Quem escreve uma efeméride tenta, sobretudo, esquecer-se.

O maior direito de um doente está em considerar-se são. O maior dever


está em ter de o provar constantemente.

Cada um tem aquilo que desmerece. Só assim podem todos merecer-se


igualmente.

Quando não sigo religiosamente os meus instintos chamam-me besta.


Pior, pedem-me que reze por mais, animadamente. E quando me orgulho
pela bestialidade, ainda há quem reze por mim.

A paz sempre foi motivo de guerra. É por isso que negoceio, perpetua-
mente, os meus conflitos.

Há um qualquer tipo de unanimidade que estanca todas as tentativas de


crescimento. Na maior parte das vezes, chamam-lhe maturidade.

Estar morto não é prova de Eternidade, veja-se o caso da vida, que nem
se consegue provar num segundo.
Não, estar morto não prova nada, é por isso que degustamos a vida,
para tomar o gosto pelo tempo perdido.

Não há como nos justificarmos constantemente sem que o futuro se


adie e o passado se torne ignorante de profecias. Por isso, se te demoras, é
bom que coloques a culpa nisso, sem que a ouças proverbialmente.

447
Luís Coelho

A intenção é que desconta. O Céu é, sempre, uma desintenção, Ele surge


na desavença com o destino, ele é um futuro corrompido, um mal que o
tempo emprega na traição do que não poderia, jamais, ser traído.

Fiz-te bem e não era minha intenção. Queres melhor que isto? Só se não
tivesse feito nada. Mas, estando destinado a agir, vou-me fingindo para enga-
nar o Passado, que é a melhor maneira de recriar o mundo onde a intenção já
não é uma tentação.

Não perdi o jeito, só mudei o estilo de vida: agora, vão os outros viver
por mim, para que possa dar um jeito ao risco.

Segue, sempre, o teu coração: para que te percas enamorado de ti.

Faz, sempre, o que o teu coração manda. Preferencialmente com pace-


maker, que é uma garantia de validade.

Não sei como te amar. Avarias, constantemente, o meu pacemaker.

Livros de “auto-ajuda” são um bom investimento: alimentam a depen-


dência dos leitores e satisfazem a ressaca. Por sua vez, alguns dos “ricos” que
os escrevem tornam-se, igualmente, dependentes, e de um modo tal que
acabam por se estragar com livros de Filosofia.

Recebe-se recompensa! Por serviços prestados noutra vida.

448
O FisióSOFO

Faço involuntariado! Para viver mais lentamente.

O fermento da vida foi a morte de causas desnaturadas. Tem Graça, não


tem? Mas não o riso de Deus, porque se colocou, logo, prestes a cair no erro
de criar um sonho de empoderamento de um Eu, que nunca se contentou
com Ser na presciência imemorial.

Estava morta por se ver livre de si-mesma. Era o que a prendia à vida. E
ela sabia-o, por isso mesmo se matava pelo paradoxo, para coser a pele, a
fronteira, que a colocava no ponto preciso da Irresolução. Era aí que se sentia
livre, quando não podia pensar, sequer, em escolher.

Esquece-me. E isto não é um pedido, é uma ordem. Longe de mim lem-


brar-me de te fazer escolher-me por entre as trevas.

Quando eu quiser salvar-te de apuros dar-te-ei uma ordem fácil de


cumprir. Mas quando te quiser fazer o favor de Salvar-te não pedirei “por
favor”, apenas por obrigação para com um destino que continuas a tragar na
impossibilidade.

Longe de mim dar-te a escolher o meu presente. Seria um Presente enve-


nenado. Far-te-ei o favor de obrigar-te a relembrares o que vivemos num pres-
sentimento louco de lucidez.

Serei filho da mãe e ensinar-te-ei a sobreviver à ambiguidade. Se tudo


correr bem, tudo deixará de correr. Serás, assim, Presente irresoluto, capaz
de destruir todas as tentações de recobrimento ilusório da memória. Quando

449
Luís Coelho

deres por ti, já todos se deram a render. Não lhes faças o favor de decidir por
eles, deixa-os morrer de viver. E se quiserem enganar-te com a felicidade,
deixa-te levar, só para que possas dar-lhes um paraíso a termo (in)certo.
Ficar-se-ão por pouco tempo; se forem espertos aproveitar-se-ão do “termo”
para se porem a prazo na aprendizagem do incerto permanente, que é como
quem faz amor com o Absurdo.

Faz-me o favor de ser infeliz: para que possa ser indiferente.

O fio do raciocínio é fino e corta-se facilmente nas esquinas dos desafios.


Não penses que podes trazer uma corda, a não ser que seja para te enforcares:
não partirás o pescoço, sufocarás, agonizarás, com um vislumbre de prazer.
Tenho ganas desta mortandade patética das escolhas sibilinas, andamos, todos,
prevendo a morte de outrem, quando a nossa é tão apetecível, ela enlouquece o
futuro.

Com sorte, ainda serei apostado num futuro onde a Imaginação terá
sido esgotada. Não darei azar, darei Vida, que é bem pior.

Um dia acordei sem saber distinguir o sonho da realidade. Mas fazia


tudo parte do Sonho, um pesadelo monista onde o Nada (não) tinha lugar.

O pesadelo da Lógica é o tomismo das significações perpétuas. O seu


mérito é o círculo vicioso. Isso e o défice de imaginação.

Sinto muito mas quem não se ressente não é filho de boa gente, é órfão.

450
O FisióSOFO

Se alguma vez te amaste, ouve-me bem; doutro modo, nem terás como
ouvir.

Um “amigo” facebookiano pediu-me amizade. A sério!?! Que atrevi-


mento! Pensar que prometi casar com ele.

Achas bem que te tenha sofrido? Não tarda ainda me ponho a amar-te,
sem intenção.

Tudo o que fiz por ti foi sem intenção. Que mais posso fazer?

Um instante é para sempre. Num tempo que não durou.

Somos instantes perpétuos: tu és a rocha, eu sou o fóssil.

Procura-se quem não quer ser encontrado. Para relação a Um.

Vens ter comigo para uma relação paliativa: matas-me e ressuscitas-me


ao gosto da tua Salvação.

Há que sofrer a Impassibilidade. Para que a Salvação mate a esperança.


O Indefinido é um equilíbrio ténue, prestes a criar a polarização dos


artigos de uma guerra pela Nulidade impassível em que os pólos se encon-
tram e perdem a definição perfeita.

451
Luís Coelho

{As razões do “efeito placebo”34}


Se a Razão for, como acontece com Miguel de Unamuno, considerada
no seu plano estritamente “material”, é normal que o Espírito seja por ela
patologizado, o que pode levar a colocá-lo no plano da Fé, condimento fun-
damental da Teologia. Ora, isto possui uma analogia no “efeito placebo”,
variável, ponderada como, excrescente, e que, ademais, deve ser “materiali-
zada”, para que possa ser suprimida. Mas o “efeito placebo” também poderá
ser encarado como parte do reportório racional, enquanto variável que fun-
damenta o aspecto psíquico que inicia e finaliza o processo “terapêutico”.
Demonizado pelo positivismo, e igualmente pelo pragmatismo da “resul-
tante” fisicalista (Peirce, William James), o “efeito placebo” tem constituído
o alvo preferencial da crítica materialista face ao potencial efeito das “tera-
pêuticas”, em particular das “não convencionais”. Como se, de algum modo,
fosse possível reduzir o “sofrimento” ao seu objecto fisicalista, o materialismo
concebe a terapêutica, bem como a investigação, como um aspecto objectal
que deve excluir a intrínseca acção psíquica do “agente”, observador. No fun-
do, o materialismo crê que pode e deve existir uma “Observação” não partici-
pante. O que, obviamente, tende a ser problematizado pela psicologia, mesmo
a “empírica”. Assim, analogicamente, o excesso subjectivo compõe a “dor” do
próprio cientificismo, do princípio da Realidade, capaz, segundo o modelo
“materialista”, de ser expresso pela resultante fisicalista, observável. Mas, no
“fim”, há que contabilizar o “Todo”, e este é seguramente “bio-psico-social”.
Mas há, ainda, que ater a possibilidade de o Sujeito incluir uma parte
não contabilizável, uma abstracção “espiritual” não concebível na resultante
fisicalista. Esta seria, somente, a expressão consequencial da primeira. Por-
tanto, o Espírito projecta-se, indelevelmente, sobre a matéria, alterando-a,
criando-lhe a dor, que, por sua vez, se projecta, novamente, no Espírito. O
último é o Primeiro e dele sobressai o Verbo, que inclui o conjunto das
potencialidades “liberais”.
Contudo, se o Espírito é tamanhamente inclusivo, é certo que interessa
ao “materialismo” a criação de relações Causa-Efeito estritamente delineadas.
O que o materialismo implica na necessidade de uma Objectividade, que

34
Março de 2022, publicado no jornal «O Diabo», Agosto de 2022, e em «Biosofia»,
n.º 51, Centro Lusitano de Unificação Cultural, 2022.

452
O FisióSOFO

poderá, no entanto, matar a riqueza do intangível e, também, do que se


exclui de uma especificidade “variável” que o materialismo concebe nos ter-
mos do máximo atomismo elementar. Analogamente, a Realidade pode matar
o Princípio do Insofrimento, que contém o aspecto “racional”. Comummente,
o materialismo faz uso do “reprodutível”, daquilo que é observável no con-
junto “médio” dos indivíduos, no que importa ao Grupo (“nomotético”),
mas há, aqui, um suprimir da verdade pessoal, idiossincrática, racional.
Para que serve esta necessidade de redução “material”, observacional?
Precisamente para não permitir que o Senso comum, assaz disfarçado de
“Espírito”, nos acometa com os seus excessos fabulísticos. Precisamente por-
que o “Espírito” toca no intangível, poderá existir a tentação de defender
qualquer coisa em que se acredita e que não resiste à prova “empírica”. Daí a
revolução científica perpetrada por Francis Bacon. Assim, o empirismo facul-
ta um certo rigorismo, mas este, quando comete – por sua vez – um excesso,
apaga o conjunto das relações racionais mais totalizadoras. Como se já não
bastasse o limite da própria Razão face ao Espírito. E, não obstante, pretende
o empirismo travar o uso da Razão pela Fé, mantendo-a no campo escrupu-
losamente “mensurável”.
Claro está que o Verbo exige o equilíbrio entre Razão e empirismo: a
primeira é reduzida pelo segundo, este vê-se engrandecer-se por aquela. Este
equilíbrio é, apesar de tudo, um Princípio em que a Impassibilidade consente
servir-se da dúvida. E esta é o próprio equilíbrio ténue, prestes a perder-se
para o arrazoado do movimento perpétuo, do ciclo constante entre Razão e
empirismo. Qualquer um dos pólos ambiciona cessar o movimento, assegu-
rando a Verdade, mas o equilíbrio remete para aqueles dois, também na
medida da nossa limitação do conhecer. Porque em estado de Espírito puro,
quando já Nada há a conhecer, aquele equilíbrio terá sido transcendido,
Sujeito e objecto tornaram-se Um só. Um Princípio mimetiza este último
estado, no Verbo que ele peja na sua descida ao plano empírico e relativo. O
movimento é neurótico, o Espírito é “psicótico”, o equilíbrio entre os dois é
o Verbo da relação íntima entre Princípio racional e empirismo.
Os dois últimos são, igualmente, o Princípio do prazer e o da Realidade.
O Insofrimento terapêutico projecta-se na Realidade empírica e esta naquele.
O equilíbrio é perturbado pelo exceder de um dos pólos. Quando a Razão se
excede produz um “pathos” empírico que se projecta sobre novel Razão.
O “efeito placebo” é considerado, comummente, como um excesso. Ele
pode, no entanto, calar a dor “empírica”, fazendo sobressair o estado de

453
Luís Coelho

insofrimento do Sujeito. Mas a total ausência de dor poderá implicar uma


falta de realismo, com consequências para a visão da plena Verdade. Por seu
turno, se a dor é demasiada, transforma-se a Razão em algo que supera o
Verbo iniciático. Existe, assim, uma relação entre Razão e Realidade, e cada
um se implica e compromete. A Razão traduz uma Realidade e esta projecta-
-se sobre aquela. A Razão placebetária poderá fazer fenecer o efeito da Reali-
dade, calando o movimento. A Realidade dolorosa desloca a Razão, recrian-
do a dinâmica.
A Razão é a Cognição agónica e descendente, a Realidade é aferente e
perceptiva. Esta consente redesenhar a primeira, que, por sua vez, se traduz
numa diferente “paciência” empírica. O que a dinâmica contínua tende a
produzir é a Razão diaspórica, bem para além do Verbo primário. Isto é
extrapolar a dor empírica, com consequências para a moral. Claro está que
esta dor possui a sua normativização racional. Mas, apelando à variabilidade
do Sistema, o “normal” racional de uns pode não ser o de outros. Daí que,
por exemplo, a Razão “ideal” dos proponentes das “terapêuticas não conven-
cionais” patologize a Razão “empírica” dos proponentes da medicina moder-
na. Mais uma vez, o equilíbrio passaria por cessar, um pouco, o movimento,
o que pode acarretar a supressão da dor transformativa. Mas este “estacio-
nar” é, identicamente, uma forma de ab-rogar a possibilidade de uma reno-
vação racional. E, porventura, cada paradigma dirá que a sua razão é que é
verdadeira, real. O combate dual incluirá, permanentemente, uma tendência
para o equilíbrio, que é um modo de monismo. Este não precisa de se conce-
ber como “espírito” ou “matéria”, é, simplesmente, uma forma de imediati-
cidade fenomenológica que reproduz, por um instante, o estado de Espírito
impassível, a abstracção, o Sentimento, independentemente de poder ou não
ser elementarizado atomisticamente.
O “eterno retorno” compõe a multiplicação “ad infinitum” de Verbos,
reprodutíveis dum equilíbrio. Este “absurdo” (Camus) existe na exacta medida
em que somos incapazes duma resposta final, plenamente espiritual. Mas o
equilíbrio placebetário mimetiza essa resposta, mesmo que ilusoriamente. É
um modo de verdade, mesmo podendo não ser a plena Realidade empírica e
espiritual.

Se é para te manteres jovem, reforma-te quanto antes. Talvez, até, antes


de nasceres.

454
O FisióSOFO

Aquilo que posso ambicionar no que não sou é a Saudade do que pode-
ria ter sido.

Se o Génio tivesse tempo para comunicar perder-se-ia a ver as horas.

Em tempo de guerra não se limpam as consciências. Porque são armas.


Em tempo de paz limpam-se as armas. Para esquecer a guerra.

Nenhuma forma de civilidade é tão imperfeita que faça com que outra
mais perfeita seja necessariamente melhor.

Na medida em que o Sacrifício é Ego passámos a ver os vilões como


heróis. Porque se sacrificam bem mais ao fingirem não terem Ego.

Quando nos esforçamos muito por sermos reconhecidos por alguém


acabamos não nos reconhecendo em ninguém, excepto nos Irreconhecíveis
que rapidamente nos disponibilizamos a reconhecer, para não sermos apa-
nhados em falso.

Não ter tempo para a vida é lutar para que o tempo não largue a vida.
Os bem sucedidos não darão pela sucessão das Eras, far-se-ão o mapa dos
acidentes funéreos, sem que a lamúria possa trazê-los à Eternidade dos arre-
pendimentos.

Se o significado da Vida é não ter Significante, não teremos onde nos


perdermos para uma procura infrutífera. Imagina, só, se arranjasses um pou-

455
Luís Coelho

so, um Universo: ias sentir-te ainda mais perdido; mas, ao menos, poderias
queixar-te à Autoridade. Não faria diferença que o vizinho respondesse por
ela, poderíamos fingir-nos ignóbeis.

Dar-me-ás um plano e eu dar-te-ei o Óbvio. E o Ócio! Se não baralhas a


coisa, se não te pulverizas nas escadas do mundo intranquilo, acabarás a dar
milho aos pombos. Não te queixes, depois, se fores subitamente multado.

Claro está que importaria saber se certos indivíduos jogam com o bara-
lho todo. Os mais loucos têm trunfos na manga.

O problema da Gordura da Vida está em que ela se satura de razões.


Escolhe, portanto, a Gordura insaturada, isto, claro, se não estiveres na dieta
da Razão, porque, aí, não há escolha possível e a Vida correrá freática a pedir
o consolo duma estação de Serviço empírico, onde o Espírito parece tão
ameaçadoramente salvífico.

No pão, só como a côdea. O miolo deixo-o para quando tiver necessi-


dade urgente de me explicar. Dar-me-ei sem sal, a ferir a precedência.

Tive uma branca! Não foi por querer, foi, aliás, por Necessidade de não
querer. Porque era feliz e sabia-o. Mesmo nos cinzentos.

Cuidai os vírus de Março! Atacam à traição e despertam guerras. Do


clima, nem se fala!

456
O FisióSOFO

Há, sempre, algum motivo que se submete aos motivos que nos fazem
andar. É por isso que vamos andando.

O mundo tem-me dado a entender que a tolerância é menos um dever


do que gratidão. Mas parte do mundo não o entende. Agradeço-lhe a tole-
rância.

A redução fenomenológica perfeita constitui a Unidade, quando, em


todo o Sistema, Sujeito e Objecto se igualam. Quando a “Causa” é parcial, a
Estrutura é meramente mimetizadora da Unidade, o que faz com que haja,
ainda, movimento incipiente, função dum escravo que reage nos termos
dum desequilíbrio. A Estrutura é empírica face a esse “escravo”, mas este é
igualmente “empírico” face à Causa. Este reduto de “empirismo” correspon-
de a uma secção do Colectivo cujo Princípio se estranha com o Princípio
mais abrangente. É esta estranheza que impõe a “dor”, a dualidade, ao Siste-
ma, acelerando-o no tempo, e convidando ao desequilíbrio. Esta “materiali-
zação” é, também, o que remete para novel Razão, porque o conteúdo do
Sistema se converte, pelo menos parcialmente, ao Princípio do estranho,
fazendo deste o novo Princípio abrangente, que, entretanto, já vai perdendo
adeptos para a nova estranheza principesca, o novo desafio “empírico”. Uma
materialização é, assim, o mote de uma espiritualização, mas esta não é, de
facto, “Espírito”, mas, somente, novel matéria mais abrangente. O Sistema
mais equilibrado lentifica-se na relação displicente com o tempo, mas, não
constituindo um Nada, compõe, ainda assim, um ingrediente mais no Siste-
ma, que, simultaneamente, cresce e se apequena, multiplicando os instantes,
as relações Razão » empirismo, que enriquecem a Unidade. É preciso que
todas as relações sejam vividas, tomisticamente, para se alcançar a plena Cau-
sa atomista, que é, como é óbvio, ter-se obtido o Fim, momento único no
qual é possível prever tudo e conceber toda a moralidade. Tarde de mais,
porque o Sistema já se completou, se isso não aconteceu é porque obtivemos,
ali, uma falsa razão totalitária, um Princípio parcial que irá, também, mate-
rializar-se. Quando a Razão se empiriza, está, de facto, a alcançar-se o produ-
to de uma Razão pretérita, minoritária, que, entretanto, se objectifica. A nível
“empírico”, todas estas relações descritivas são, aliás, compreensivas, e estas

457
Luís Coelho

são descritivas, porque a Causa não é Final. Quando o for, teremos a com-
preensão perfeita e Nada, e ninguém, a compreender. Tudo o que dizemos
afecta a “materialidade”, porque, quando atemos “Espírito” puro, obtemos o
equilíbrio mais perfeito, que só se perde ao regressarmos ao tempo, mas esta
materialização só pode ser explicada nos termos da sua “consequencialida-
de”. Obter, por sua vez, “Espírito” a partir da “matéria” é, igualmente, esgo-
tar a explicação. O esgotamento do trajecto “absurdo” repercute o FIM/Ori-
gem, já o “Nada” não possui qualquer ingrediente, ficando o resto para o
mistério que extravasa a nossa consciência. É possível que os ciclos Evolução
vs. involução existam até ao esgotamento das possibilidades arquetípicas,
pode ser, também, que o processo criativo seja “paralelo” e que, longitudi-
nalmente, haja mera repetição.

Portanto, a dor, o movimento, pressupõe que uma Razão minoritária


queira buscar seu Objecto, o que acarreta que uma parte do Sistema global se
rebelde, materializando um desequilíbrio em que Sujeito e Objecto global-
mente se distanciam. Novel aproximação implica que o Sistema recupere
uma maioria racional, mas se não existe unanimidade não há, ainda, Unida-
de. Mesmo que o rebelde seja “espiritual”, ele representa a dinâmica “mate-
rial”, a dualização, em que o “paciente” se distancia do terapeuta, avocando,
mais, a relação “dual”. Se o objecto é comum, esta “relação” despolariza-se.
O “estranho” é, por isso, uma parte do Real, mas o Colectivo dominante é,
também, a Realidade, dominante. E ambos são Sujeitos procurando realizar-
-se. Há, aqui, uma possível dualidade polar, que reinicia, constantemente, o
ciclo, a circularidade. Também é possível que a ascendência empírica acome-
ta a Razão dum modo tal que a nova Razão implique outro empírico com-
pletamente novo, mas, aconteça o que acontecer, tudo cabe no Princípio
pleno, e mesmo que algo se acrescente ao Sistema provindo do Nada, não é
possível falar desse passado, mas somente no manancial de transformações
cíclicas que enriquecem o multiverso, multiplicando-o, quiçá, infinitamente.
Agir terapeuticamente é propor novel Razão, mas esta é uma Realidade para
o “outro”: se ela é familiar, há pouca mudança; se ela é estranha, há um con-
vite à estruturação ou à sublimação da Razão percipiente, fazendo com que
esta se torne Agente, maioritária, o novo Colectivo “real”. Entre terapeuta e
paciente, Sujeito e Objecto, Razão e empirismo, há um ponto médio de

458
O FisióSOFO

transformação em que as razões se equilibram, este é um modo de “dúvida”,


dor, equilibrante e impassível, mas é, igualmente, um equilíbrio precário. O
que se obtém construtivamente daqui é a “escolha” que consubstancia um
equilíbrio mais vero e perdurável, mas o último implica sempre um Domí-
nio, uma maioria utilitária, fazendo, esta, o novo Princípio, que se contém
no Princípio pleno. A Causa maioritária é, também, descritiva e compensató-
ria, ela implica uma Estrutura que, apesar de tudo, sofrerá a agrura do
movimento, da articulação dual, dialéctica. Se uma Razão estranha se insi-
nuar sem que mobilize suficientemente a Realidade, ela criará um modo de
equilíbrio fátuo, uma dor mais intensa a pedir novel Razão mais harmónica e
que, possivelmente, se aproxime mais do Princípio pleno. Assim, a Razão
acaba, sempre, por convergir numa Realidade dominante, principesca e Uni-
versal. Esta razão/realidade é flexível e envolve um potencial de movimentos
dialécticos, o seu oposto é a dor, que, quiçá, quererá afectar aquela flexibili-
dade axial e raquidiana. Um fluxo de retracções miofasciais possui, prova-
velmente, um limite doloroso, real. O “pathos” constitui a própria viagem
dialéctica, a Saúde é o equilíbrio mais despolarizador e duradouro. Se é
Absoluto, não permitirá outras possibilidades dialécticas; se é relativo, deverá
ser crescentemente maioritário, o que não obsta à potencialidade de uma
razão minoritária sobressair, para fazer (re)criar o caudal de possibilidades
arquetípicas.

O equilíbrio mais duradoiro é aquele que se conforma mais à Realidade,


e, se ele é abrangente e não defensivo, não produzirá grande patologização de
uma minoria “real”. É preciso que a “minoria” se fortifique para que o “Domus”
reaja e crie a grande “escolha” do estranho, no sentido de exponenciar o seu
tracto real, permitindo desafiar a Razão preteritamente maioritária. Se a nova
razão estiver mais de acordo com a Realidade primeva é possível que o equilí-
brio esboçado seja ainda mais duradoiro, mas isto só acontece porque este se
entrega à verdade do Corpo. Flexibilizar a Razão é torná-la, precisamente, mais
tolerante à Realidade. Entretanto, se o equilíbrio é pleno e delongável, atrasa-se
a possibilidade de se viver o equilíbrio longitudinal, que depende da vivência
intermediada e cíclica de vários princípios demiúrgicos. Esta é a grande dialéc-
tica da Vida, ela é o Real sofrido, o “pathos” da Existência plena. Interromper o
seu trajecto é empreender o Equilíbrio ocioso e despolarizado da existência.

459
Luís Coelho

Envolve menos sofrimento mas reduz a realidade a uma Razão precisa. A


determinada altura, a Imediaticidade reduz, de tal modo, a relação do Sujeito
com o Objecto, que se torna, ela mesma, irrealista. A Unidade mata o sofri-
mento, mas reduz a expectativa da Vida real. A Razão desloca a relação com a
Realidade, permitindo o sofrimento vital responsável pelo prolongamento do
jogo de equilíbrios. Aqui a Realidade cresce e abraça outras possibilidades
racionais, o que, por sua vez, cria mais ameaça, e enriquece a resposta à mes-
ma.

Bem vemos que uma Razão demasiado dominante poderá sufocar a


Realidade, tornando o Sujeito menos adaptável ao Objecto. Do Real vem o
desafio. Se não existir Estrutura racional, o Sujeito é destruído. E o mesmo
acontece se a Estrutura sufocar o desafio exterior. O Equilíbrio perfeito mata
o sofrimento, na medida em que mata o próprio Sujeito na relação com o
Real vital. Por isso o equilíbrio nunca poderá ser absoluto, o “humano” é
necessariamente aquele que relaciona, de modo criativo, Razão e Realidade.

Claro está que o Sujeito Absoluto já não se coloca na relação com a vida,
ele é a própria Vida imediata. O Equilíbrio perfeito esgota as possibilidades
vitais. Se há ainda um real estranho, é preciso que a Razão se adapte, se coloque
nesta relação, o que não acontece se o Princípio for muito rígido. Este, se for
lato, conseguirá alguma adaptabilidade, mas existe um limite enquadrado na
estranheza “real”. A última obriga ao deslocamento racional, ao seu enrique-
cimento. Se a Razão é absoluta, ela envolve a própria Realidade. Na Consciên-
cia pura, o Real é pleno e deixa de existir. A vida exige a “consciência de” um
Real que possui alguma percentagem de estranheza. Se ele sai completamente
do potencial racional, é um pouco como se o indivíduo não tivesse Estrutura
ou que esta não permitisse a sua adaptabilidade. O “desequilíbrio” não pode
ser excessivo. Mas a sua ausência cancela o crescimento racional.

Se Sujeito e Objecto colapsam, o Equilíbrio é perfeito e Absoluto, cessa


a relação com a vida “real”. Se Sujeito e Objecto se polarizam exageradamen-

460
O FisióSOFO

te, o desequilíbrio torna a Razão inadaptável ao Real. Aqui o Real consome o


Racional, o indivíduo sucumbe. O equilíbrio relativo permite a vivência, esta
aumenta na polarização, diminui na despolarização. A vivência alimenta,
engrandece, a Razão, mas o excesso da primeira pode fazer a segunda sucum-
bir, por incapacidade de adaptação. O “materialismo” valoriza, sobretudo, o
papel da “relação”. Só nesta podemos referir a peculiaridade da ligação Sujei-
to-Objecto. No “Espírito”, já não há relação consciente, apenas Inconsciên-
cia, produto incompatível com a vida “real”, carnal. A Vida temporal é a
história da relação da Razão com o “real”. Quando existe Razão excessiva, o
Real reage. Quando é a Realidade que se excede, a Razão permite-se controlá-
-la, balizá-la.

O objectivo de lutarmos contra o envelhecimento não está em evitar a


morte, mas em fazer com que esta chegue sem aviso. Morremos felizes e
ignorantes. Por sua vez, quando nos sentimos envelhecer, podemos, sempre,
projectar uma festa de despedida, com a morte por convidada de honra. Se a
morte for sábia e não quiser aparecer, morrerei infeliz e só. Quanto à sabedo-
ria, serve de paliativo.

Só não partiu para outro mundo porque não arranjou um suficiente-


mente parecido com este, não fosse arrepender-se da escolha.

Estava indeciso entre partir e ficar. Partiu-se ao meio, mas, indecidida-


mente, não se ficou.

Nunca quis ter tempo para lembrar-me de me esquecer. Lembrei-me


agora, que já não era com tempo.

Assim como o Espírito pode ser controvertido pelo pólo de uma deter-
minidade “material”, também a “matéria” se vê equilibrada pelo pólo “espiri-

461
Luís Coelho

tual”. O ponto médio da circularidade possui a menor determinidade, quando


a maior está no desequilíbrio e constitui o elemento do “livre-arbítrio” que
recria a “agonia” do Indivíduo. A parte minoritária do Sistema será mais reac-
tiva e obterá maior reacção se for mais radical. Se ela é mais dual, então, terá,
mais rapidamente, convertidos ao outro pólo. E é assim que “Espírito” e
“matéria” se controlam constantemente, se reagem reciprocamente, replicando
um equilíbrio que, por sua vez, implica uma dualidade de movimento e Estru-
tura.

Uma tentativa de objectivização “material” de uma relação terapêutica


é, apesar de tudo, querer que o paciente se concretize no Objecto agente. Mas
se a agência é demasiado material, esta Unidade acaba por ser contraditada
pelo “Espírito”, que vem relembrar o “objecto” de que possui “alma”. Recria-
-se, assim, o binómio “Espírito - matéria”, em que cada um dos pólos progride
dialecticamente na relacionação com o outro.

Se achar que o limite do humor está no grau de pessoalidade da piada,


levarás isto a peito? É que, para mim, o que digo até é objectivo, excepto quan-
do sou eu o alvo das piadas. Tem graça, não tem? Ainda me hei-de rir disto
tudo, talvez noutra vida, quando a Alegria prometida por Meister Eckhart tiver
sucumbido face ao mesmo Nada que o mesmo autor refere comummente, o
que, até, tem muita piada, mas, somente, para os que se podem, ainda, ofen-
der-se.

Tudo vale! Excepto no humor (,) em que tudo é permitido.

O Sujeito maioritário pensa-se, sempre, enquanto Objecto, acossando o


sujeito “passivo” com a “moralidade”. A última implica, necessariamente,
dualidade, ela é obrigatória à Estrutura, à sua perseveração. E a Estrutura
constrói a sua reacção “liberal” no produto de um Indivíduo/sujeito recessi-
vo, que reage à moralidade da primeira. O “passivo” também se pensa objec-

462
O FisióSOFO

tivo, ele enquadra a Liberdade que deflagra na possibilidade de uma Unida-


de, que dispensa a moral. A Unidade extravasa a Universalidade, ela extingue
o movimento “terapêutico”. Ela é o próprio Corpo, no sentido que lhe pode
ser dado por um Nietzsche. Este Corpo é o Verbo repleto de Imediaticidade.
Mas há, aqui, porventura, um défice de Realidade. Quando o Imediato se
sujeita, a Realidade desprende-se na sua subjectividade reactiva. O Domínio
só é possível se existe um dominante e um dominado. São duas morais que
entrechocam, a dominante quer afirmar o seu ascendente “estrutural”, sem o
qual a segunda não poderá declarar-lhe a guerra na busca do Corpo/Espírito
imediato e já a repolarizar-se.

Na medida em que o Corpo/Imediato é Espírito, atemos um Real Ele


mesmo sem dualidade, pedindo à Razão para que o tempo venha ajudar a
assegurar o corpo. A Razão é dualizadora e remete para uma moral, em que o
Objecto “agente” moraliza, prescreve, e, aqui, a Razão é positiva e remete
para uma relação terapêutica “dual”, em que o paciente pode colocar-se na
esteira de uma Unidade despolarizada da moral. Se há necessidade de duali-
zar Observador e observado, é precisamente para que o Observador não pos-
sa contaminar o observado, para que se limite a prescrever-lhe as regras posi-
tivas de acção. Este “materialismo” pede de empréstimo ao “Espírito” a sua
moral, a sua objectividade. A própria dualidade “Espírito - matéria” relembra
o duo “terapeuta - paciente”, mas cada um dos agentes é dual e pretende
remeter para o Objecto, concebendo a possibilidade de uma Unidade, que,
necessariamente, precisa do dualismo.

Ser realista é um modo de pagar a Realidade às prestações. No entanto,


se pagares tudo de uma só vez, todos acharão que lhes ficaste a dever a mes-
ma Realidade; é o que a faz impagável.

O “efeito placebo” concebe-se, precisamente, como um equilíbrio Razão


» empirismo meramente temporal e fátuo. A determinada altura, o Equilíbrio
reforça o pólo, e, por conseguinte, o intento despolarizador Sujeito - Objecto.

463
Luís Coelho

Mas o Sistema Razão - Realidade minoritário adopta uma posição de força,


sublimando a sua Razão e puxando para si a Realidade como um todo. Os que
estão temporalmente equilibrados, ou seja, os “duais”, convertem-se, entretan-
to, a este novo eixo Razão » Realidade, porque a mudança real do Sistema pro-
vocava “dor” à pretérita Razão equilibrada. Assim, o movimento centra-se,
sempre, nos “duais”, convertíveis, verdadeiros feitores da Realidade dominan-
te. O ponto médio de conversão consiste no máximo desequilíbrio, na máxima
dúvida, neurose, ou seja, no maior nível de polarização. O Sistema tem de
pender para um dos lados para que subsista um equilíbrio lentificador, estabi-
lizador, do tempo. Portanto, a Estrutura é uma facção maioritária, utilitária,
esta é o Princípio a partir do qual é possível desenhar o mesmo movimento
que irá desafiá-lo.

Claro está que o desequilíbrio global é sempre induzido pelos que são
descompensados pelo Sistema Razão » Realidade dominante, especialmente
pelos que são pouco flexíveis e duais, ou seja, pelos que são “identitários”
inseguros. Mas o movimento global do Sistema depende, sobretudo, dos
duais, da migração destes para onde a Realidade prepondera, adaptando-lhe
o seu poderio racional pouco seguro de si. O pólo mais duradoiro depende
da força expressiva dos seus adeptos, normalmente, não deverá fugir muito
da “Physis” Universal. Enquanto existirem elementos frágeis e duais, a Reali-
dade vai permitir-se transformar-se irremediavelmente, dando, temporal-
mente, possibilidades às minorias, o que não apaga o lado Universal, a plena
maioridade moral. Um afastamento lato da “Physis” implicará, certamente,
uma excessiva polarização desestabilizadora.

Despolarização e polarização excessiva são dois modos diferenciais de


liberdade desestruturadora. A primeira dissolve Sujeito e Objecto, a segunda
multiplica o número de arquétipos num movimento “ad infinitum”. A “Phy-
sis” pode representar ambos, e a Razão vem para criar alguma estabilidade,
mas esta depende de algum grau de Domínio. A sua força depende da sua
flexibilidade, da sua capacidade de incluir mais Realidade. É, também, assim
que permitirá mais movimento/articulação livre. É preciso que uma minoria
possa atrair elementos “duais” para que esta ganhe poder e reactualize a

464
O FisióSOFO

“physis” da insegurança polar. A Razão dominante despolariza o Sistema e


atribui-lhe estabilidade.

Se em cada ente existe um duo Razão » empirismo, em que cada pólo se


coloca em linha com o outro nos termos de um equilíbrio “raquidiano”,
axial, essa polaridade poderá aumentar na medida em que uma Razão supe-
regóica, externa, pode fazer extravasar a parte empírica de modo a gerar um
Sujeito que poderá estar mais ou menos próximo de polarizar o Sistema tota-
lizador. Quando a parte empírica se porta deste modo, atemos uma forma de
dualização “material” que, às tantas, não serve a verdadeira “Physis”, porque
esta remete para um trajecto de equilíbrio que satisfaz a Razão dum modo
que poderá fazê-la considerar-se como tal dominantemente no tempo. Uma
“razão” temporal que não satisfaz grande parte da Realidade acabará por
considerar-se irracional. Claro está que para o relativismo extremo não existe
o “irracional”, qualquer “razão” pode ser obviada. Por sua vez, cabe ao mate-
rialismo puro obviar uma razão “substancial” relacionada com a concretude
de uma Natureza moral. Mas bem sabemos que uma razão deste tipo deve
ser contida por uma outra razão, platónico-kantiana, que, às tantas, produz
certa mediaticidade na relação com a Realidade. Sem ela não seria possível
prezar esse mesmo Real. De algum modo, ele produz o equilíbrio pleno entre
os pólos iniciais, mas este “equilíbrio” implica um desequilíbrio permanente
que se faz de aproximação e desaproximação polar. A “moral” é dúbia e
depende do lugar que ocupa no Sistema. De certa forma, todos os lugares são
legítimos, mas um que se considera mais legítimo terá, decerto, certa deter-
minidade, e esta afecta o próprio Sistema de modo construtivo, podendo
perturbar a relação polar de vários modos. Obviamente que a Determinidade
age no sentido de uma Liberdade, para que, na sua plenitude, já não haja
qualquer “moral”.

Portanto, a reacção empírica, diaspórica, do paciente poderá saldar


novel eixo Razão » empirismo, mas, como é a Razão como um todo que se
desloca, a nível sistémico, há, somente, um mover do pólo racional, o qual, à
partida, acarreta a reacção empírica do pretérito Sujeito. O Sistema possui a
sua preferência utilitária. Este é o verdadeiro eixo principesco. O qual depen-

465
Luís Coelho

de de uma “Physis”. Negligenciar esta seria cair no relativismo radical, per-


mitindo redesenhar permanentemente o Eixo do grande Sistema, aliás, para
além de limites “naturais”. Ainda assim, haveria, sempre, algo a que pudés-
semos chamar de Razão, e que, mesmo agora, é a efígie do Sistema, na medi-
da em que o encima para uma relação mediata com a Realidade Una. A dis-
tância da Razão à Realidade possui, então, um ponto de equilíbrio máximo,
que o relativismo prevê como impossível de se atingir. A um nível “algorít-
mico”, este equilíbrio constituiria um saldo, também ele, impossível de se
obter sem o pleno Fim. O tal equilíbrio não deixa, apesar de tudo, de exigir
uma Razão dominante, a qual impõe uma Estrutura empírica colectiva mais
ou menos estável. Esse Domínio é o equilíbrio entre “Deôntica” e “utilita-
rismo”, atingi-lo é, ainda assim, tanger um movimento periférico que pre-
tende acometer a moral. Mas o citado equilíbrio continua a ser polar, por-
que, se já tivesse ocorrido despolarização, não haveria senão Unidade.

A Razão miofascial pode, como sabemos, ser delongada, mas a Realida-


de é o ponto a partir do qual se estabelece o limite. Flexibilizar a Razão é,
obviamente, um modo de libertar o indivíduo para a acção, e, se esta se exce-
der, a Razão “contrai-se”. A contracção faz doer a realidade. A relação Razão
» Realidade não é, assim, infinitamente crescível, a Razão é, aliás, o ponto de
partida onde o “Ser” se efectiva no equilíbrio com a empiricidade. O “Ser”
não é plenamente monista ou espiritual, é um lugar de harmonia indolor,
mas que não coloca completamente de parte a agência de um “pathos”.

Uma Razão mais tolerante cria mais equilíbrio, porque serve mais Rea-
lidade, e porque absorve mais realidade “rebelde”, mas também existe a pos-
sibilidade de o equilíbrio ser estável e limitar-se a mudar de lugar e/ou con-
teúdo Razão » empirismo. Assim não há polarização ou despolarização, há,
apenas, movimentação do Eixo do equilíbrio no plano da Realidade empíri-
co-racional. Mas mesmo nesta perspectiva é possível conceber um limite,
sem o qual nos restaria viver uma possibilidade de equilíbrio vantajosa para o
“Eu” em oposição a um “outro”. Esta é a admissão de uma polaridade perpé-
tua, embora harmónica, em que a dualidade temporal opõe a vida, a função,
ao desígnio da morte despolarizadora.

466
O FisióSOFO

Nunca conseguimos ver-nos livres de alterar a Realidade. E tomara que


o dissesse quando ela se coloca a meu favor. Só não o faço para que não se
virem contra mim.

O placebo advém, comummente, de um terapeuta “inseguro” ou “dual”.


Se o paciente for “dual” poderá deixar-se placebetizar pela Realidade “agen-
te”, mas, se for “inseguro” não dual, fará a sua própria sublimação “real”, a
qual, por sua vez, poderá placebetizar um pretérito terapeuta “dual”, mas
talvez não o inseguro “não dual”, que reage consecutivamente. Quando o
placebo leva à reacção defensiva torna-se “nocebo”, mas este pode ser o pla-
cebo de muitos outros.

O Sujeito placebetizador é minoritário e atrai o paciente “inseguro”,


quando estes crescem em Unidade, já se perde a sua componente placebetá-
ria, passam a representar a Razão dominante e tolerante, não sem que uma
novel minoria lhes dê réplica “dual”. A dualidade placebetária representa o
Sujeito a partir do qual se revolve a queda. A queda é dual e concorre para a
ascensão. Claro está que o Sujeito minoritário não pode atrair os “inseguros
não duais” do outro lado, eles reagem por seu turno, quando perdem o apoio
da Realidade.

O Sujeito inseguro reage ao Placebo na zona do equilíbrio, a sua maio-


rização produz o Superego de um pretérito seguro, dualizando-o, quiçá, na
Ciência. Esta perde, temporalmente, a Unidade e busca, já, sua própria maio-
rização, a qual, por seu turno, faz cair a Razão “ideal” da sua Totalidade,
minorando-a, insecurizando-a, dualizando-a. Na queda “dual”, o Superego
desta estrutura placebetiza um outro da mesma lavra, produzindo Unidade, a
partir da qual só poderá sobressair a ciência “dual”, que reage defensivamente
perante o Superego “ideal”. Um Domínio começa a ganhar poder na medida
em que a minoria lhe reage. Quando ele é tolerante, existe maioria tranquila
e minoria estabilizada. Mas, havendo reacção minoritária, o Domínio perde a
sua tolerância.

467
Luís Coelho

Que ninguém diga que não está pior. Por minha saúde!

Andamos, todos, a discutir o lugar que os “trans” devem ocupar nas


competições olímpicas, que o mesmo é dizer que estamos todos em transi-
ção. Quando conseguirmos vencer-nos, vamos surpreender-nos a chegarmos
todos ao mesmo tempo à meta. Ninguém desejará receber a taça, o que não
será surpreendente.

O Verbo é uma projecção da Unidade, mas é, igualmente, o ponto de


equilíbrio entre razões com sentidos diferentes, dele se avança para novel
despolarização unitária, a partir da qual se refunde nova Razão moral. Esta é,
portanto, o ponto médio de uma razão que pretende assumir o Domínio em
relação com outra que luta para não perder o seu. Este ponto é o próprio
pensamento, a dúvida, que mimetiza a Unidade. Cada “razão” possui, claro,
sua própria dualidade “Razão - empirismo”, quando há uma ameaça, é a
Realidade de uma que desencadeia a reacção racional da outra. Esta reacção é
Ego a tornar-se Superego, com este a controverter a Realidade rival. O duelo
exige, sempre, pelo menos, dois termos, ele faz o Eixo de equilíbrio demiúr-
gico atido no processo da Consciência. A Unidade é a Inconsciência ou
Consciência pura, quando a Realidade já não contrapõe a uma (i)razão.

O pensamento é, sempre, recuo anamnésico, neurótico, quando o Ego


pretende sublimar o Superego. Mas o último é a própria Realidade despolari-
zada, já prestes a cair para novel “Ego cogitum”, que assume o trajecto para o
Espírito, sobretudo se ele implicar uma luta com uma Realidade ameaçadora.
A Realidade Total é inconsciente, nela a Unidade é plena, o seu oposto é a
própria dualidade de opostos racionais/reais, luta neurótica, liberal, que pro-
pende a Estrutura, a estabilidade.

468
O FisióSOFO

Bem e mal são, de facto, dois pólos necessários que constroem um equi-
líbrio mais ou menos isomórfico, pelo que fazer o bem é tão (in)útil quanto
fazer o mal, de qualquer modo, os papéis têm de ser representados, o “mal” é
a dualidade puramente obviada, desocultada, que reage, sempre, aquando de
uma Determinidade operante, crescente, que, de qualquer maneira, requer a
subjectividade, doutro modo, seria já o Objecto despolarizado. Assim, um
algoritmo de insofrimento seria, de todo, inútil, porque o “todo” é invariável,
quando um pólo se torna dominante, o outro reduz em tamanho, mas
aumenta na intensidade, como na reactividade. Obviamente, é o próprio eixo
de “normalidade” maioritária que cria a suspeita, senão a inaceitação, relati-
vamente ao que digo, e esse “choque” produz subjectividade, “mal”, uma
determinidade capaz de esculpir um “bem” à distância.

Mandei ontem, dia das mentiras, ao site “Polígrafo”, a seguinte pergun-


ta: É verdade que, hoje, o vosso site teve um record de visitas? Nem ontem
me responderam.

Ater as coisas no sentido de uma “contabilidade” é trazê-las para o ter-


reno da “materialidade”, mais do que isso é conter a “abstracção”, a esta
cedemos todos os territórios de dualidade “espiritual”, todos os equilíbrios
que se afastariam de um Verbo iniciático, o que quer que vejamos por lá não
é concebível nos termos do “atomismo lógico”, e isto, já por si, nos dualiza,
nos mergulha fundo no que, continuamos a ver como “menor”, ou “maior”,
depende do ponto de vista. Mergulharmos infinitamente é conceber a polari-
zação radical, mortificadora, aqui há Espírito, mas há, também, matéria, até
porque o mergulho remete para outra dimensão explicável, basta que esteja-
mos lá e não cá. Assim, o tomismo é atomismo constante, mas também
podemos conter outras formas de equilíbrio, que, aqui na nossa escala, se
concebem sempre como “finalismos” do “corpo-mente”, modos de nos uni-
polarizarmos. Quanto mais nos afastamos do equilíbrio familiar mais nos
dualizamos numa coisa maior, espiritual, romper com o equilíbrio é haver
polarização excessiva, mas isto é, somente, um modo de Nada prestes a
racionalizar-se em novel dualidade. Espírito e matéria, Razão e empirismo,
são exactamente o mesmo, e cada pólo se dualiza, ad infinitum, poderíamos

469
Luís Coelho

dizer que são as escalas que fazem a abstracção diferencial, mas, mais uma
vez, isto não equivale a nada, porque, equivaler é familiarizar, mantém-se,
portanto, o desenho de uma espiritualidade enquanto materialidade por
concretizar, são estas as nossas referências, que, de algum modo, nos vêm
relembrar que vida e morte são exactamente o mesmo.

Quem se explica procura determinar-se, impondo uma Razão moral,


mas há, sempre, um produto dual que alavanca a Razão para uma Unidade
inexplicável. Qualquer Unidade mais abstracta se dualizará ao seu modo,
mas mesmo isto é, já, ver as coisas nos termos da nossa escala “material”, no
cômputo do que nos é familiar. Procuramos, constantemente, modos de
determinação, para que nos coloquemos num pólo, mas este dualiza-se, e
isto também é “materialidade”, neurose, mas, igualmente, uma forma de
conceber o acesso a um pólo mais inalcançável, que, por sua vez, se dualiza.
Nada se determina sem que se liberte, sem que caia numa renovação sistemá-
tica do mundo, que vejamos o equilíbrio familiar como “bem”, isto é, tam-
bém, um “bem”, porque é trazer-nos à consciência familiar. Claro está que
assumir que a moral é sempre igual, que o que interessa é a posição no Sis-
tema, é, tal-qualmente, trazer determinidade capaz de polarizar, descompen-
sar, muitos outros, que, por sua vez, se podem ver em trabalhos de projecção
espiritual, materialização a pedir a Estabilidade.

O Caos é um conjunto de várias Ordens simultâneas. Apercebermo-nos


disso é Filosofia. O Destino, “Sophia”, é fugir. E as palavras poderiam ser
outras, a Liberdade também é simultaneidade, as palavras limitam-nos no
entendimento de que tudo sucede ao mesmo tempo, as escalas são exercícios
da Consciência, mas esta é Uno, que, na escala, é trazer-nos ao pólo preciso,
o qual é, simultaneamente, dualidade salvífica, tragando “razões” despertas
que atentam ao pólo. Explicar-nos não é compreender-nos, porque damos
sempre as mesmas voltas diferentes, querer agarrar o que é Estável, mesmo
isto é exercício da familiaridade arquetípica, de qualquer modo, que pode-
mos dizer que não se centre no “tido”?, mas o que dizemos e fazemos muda
constantemente, fugimos, portanto, à nossa frente, e é o “todo” que nos
empurra. Como reiterar a Ciência se nem nos conseguimos aguardar?

470
O FisióSOFO

A vida é, apenas, a maneira que a morte arranjou de não se suicidar.

Uma “filosofia” não sobrevive sem que conceba o seu oposto polar,
nem que seja como inimigo “dualizador”. Dualizar é racionalizar, afastamo-
-nos do equilíbrio para que o Equilíbrio permaneça. Mesmo com “lingua-
gens” diferentes, a busca é, sempre, de algo comum, de uma Razão que não
seja tão diaspórica que leve ao Nada, ao Absurdo pleno do Incompreensível.
Cada Filosofia, bem como o seu pólo oposto, constitui, assim, um aparelho
de Razão familiar, com capacidade para agregar, securizar, e, igualmente,
com a potencialidade de ditar o seu afastamento “dual”, desequilibrante, que
não deixa de justificar a primeira. Se a queda “dualizadora” não for exagera-
damente díspar, ela volta-se, sempre, sobre si-mesma, alterando o familiar,
desferindo o golpe da/à Identidade. Mais do que isso já é plena distância,
mas, assaz, simultaneidade.

De igual modo, o “Eu” não pode ser concebido identitariamente, ape-


nas, pela sua posição singular, ele precisa que a sua própria polarização crie
uma familiaridade estranha que volta a si-mesmo no Sistema. E tudo isto
ocorre em simultâneo, só se pode “Ser” sendo, mudando, alimentando o
conjunto com potenciais racionais mais ou menos díspares, mas não tão
dissemelhantes que percam a relação com a “Physis”, a matéria plena que é
Equilíbrio espiritual.

Quanto mais inveja o Sujeito tem do Objecto mais o Objecto se lhe sujei-
ta, que é um modo do Objecto se sacrificar. Mas a objectificação do Sujeito há-
de conhecer o dia de se sujeitar a novel dualidade. Graças a Deus, aliás, ao
Objecto, porque a dualidade é o fundamento do Sujeito, sem a qual se tornaria
Inconsciente. A queda é, sempre, para a consciência, mas, às tantas, se ele se
perde de vista, entrava-se na divisão polar excessiva, potência de morte, quan-
do a Razão se estranha. Seria preciso fazer-nos daquela escala para perceber-
mos que a Razão se aviva “novamente” num Sujeito emancipado.

471
Luís Coelho

Morremos, sempre, que compreendemos a vida. Se vos digo isto, é para


vos matar. Percebi isto quando morri à primeira. Agora, vou morrendo às
prestações, que é um modo de vos deixar matar-me.

Mais do que uma incompreensão lentificadora da aprendizagem, Com-


preender bem as coisas é, precisamente, lentificá-las. Compreendeste à pri-
meira? Ensina-me, agora, tu, para que não me apresse a explicá-las.

É a determinidade dual que surpreende a Consciência. Esta sofre do


Superego a tentação de a este se elevar. Quando a Realidade muda, os pólos
do Sujeito movem-se, ou no sentido de uma aproximação Consciente, ou no
sentido de um afastamento que alimenta o inconsciente carnal daquilo com
que o “Eu” se fará sofrer na linha do tempo. Este “pathos” consciente tende
para a Vida in-consciente, insofrida, “redução” insistente que alimenta o
“eterno retorno” de tentativas de crescimento plural de dualidades infinita-
mente insatisfeitas.

O “Ego cogitum” (Descartes, Husserl) é uma determinidade reactiva,


ele permite o “sofrer” que caminha para o “Nada” (Schopenhauer), Superego
(Freud) inconsciente, Liberdade a determinar outra dualidade insofrida.

Entre a Realidade imediata e a dualidade excessiva, jaz o “Eu” relacio-


nal, em que o equilíbrio entre a Razão e a Realidade se permite num domínio
“feliz”, insofrido e que não se coloca demasiado na Vida do colectivo. O
Corpo/Espírito absoluto é não haver relação, para ele concorre a Razão
moral, que, sendo excessiva, mata, igualmente, a capacidade relacional. Uma
Razão que se projecta vira-se frequentemente contra a vida, é a moral que é
demasiadamente mortificadora. Por sua vez, a “Physis” é a própria morte, a
Ciência pretende reconhecê-la, mas precisa, tal-qualmente, duma moral que

472
O FisióSOFO

evite a excessiva crueza do Imediato. A Liberalidade pede, sempre, o controlo


racional. Projectar uma Razão que se desloca em excesso da Realidade é não
consentir o equilíbrio.

O “seguro de si” é o indivíduo que vive na sua determinidade, mas não


se aparta completamente da relação, doutro modo seria livre, plenamente
EU, que condiz com a despolarização Razão » Realidade. Existe, claro, a
liberdade, conduzida pela determinação superegóica, de afectar a Realidade
com novel Razão, este processo “pós-moderno” coloca, frequentemente, o
“Todo” num outro equilíbrio, distancial face à “Physis”. A “Physis” plena
não comporta “razões”, é o Imediato, mas também podemos concebê-la
como a relação de equilíbrio peremptório entre Razão e Realidade, o que não
implica que não possam outros equilíbrios comportar-se como “Physis”.

É normal que o equilíbrio moral pós-moderno se coloque, muitas vezes,


contra a ciência. Ela é imoral na medida em que pretende relevar a própria
“Physis” sem relação mediadora. A moral moderna já concebe tal mediação
“dual”. Perante esta, o pós-modernismo pretende-se “Uno”, mas está, somen-
te, a projectar um Verbo moral que, de determinado modo, pretende servir
“utilitariamente” um conjunto maior de indivíduos. A maioridade de equili-
bração desenha novel equilíbrio Razão » Realidade, um novo Princípio, que,
de qualquer modo, se coloca à distância da Unidade. Esta é, já, a morte, ou a
polarização excessiva, quando a Realidade descompensa, plenamente, a Razão,
não permitindo qualquer modo verbal de funcionamento vitalista.

É da minoria polar, dual, que advém o ensejo revolucionário, este Sujei-


to atrai e compensa muitos outros, formulando um Domínio de “Ser”, que,
na medida em que se engrandece, despolariza-se, aproximando a consciência
dual do Superego que acaba por atrair. Nunca se perdem os pólos, porque
isso seria trair a consciência, aliás, a despolarização começa a implicar novel
dualidade, o Sistema nunca se tranquiliza, o “inseguro” inicia o novo Domí-
nio e o “dual” alimenta-o, fazendo mover o eixo da Realidade. Quanto mais

473
Luís Coelho

este eixo se afasta da Razão “egóica”, mais o Ego se neuroticiza, porque a


Realidade assume os modos do Superego, assim, o Ego explodirá e projectará
seu próprio Superego. A dualidade gigantesca é, na verdade, o intrínseco
binómio vida vs. morte, a Consciência é o seu fulcro e exige o movimento
constante, a proa “liberal” que ameaça com o próprio Nada. A maior segu-
rança é a da Determinidade interior flexível, pouco sensível à Realidade,
“Espírito”/Ego não defensivo, mas, ainda assim, “dual”, porque afecto à rela-
ção com o mundo; relação comedida, equilibrada, capaz de portar várias
“realidades”.

Toda a Filosofia se arranca do paradoxo da Consciência, veiculado pela


oposição “morte vs. vida”, toda ela se tenta recriar para além dos limites do
Princípio dos Princípios, temendo, ainda assim, tal invenção criadora, e, por
isso mesmo, voltando, consecutivamente, ao Princípio onde se pressupõe a
dualidade, como a multiplicidade desta que permite recriar as problemáticas
conscientes, recriar, portanto, a ilusão de algo “novo” mas que volta, sempre,
ao lugar familiar, à dualidade basilar que promete, constantemente, aproxi-
mar a Razão primária da Realidade displicente, que é o mesmo que afiançar a
morte, pois esta extingue a dualidade e resolve o processo da Consciência
dual. As palavras mudam, mas as coisas são, sempre, as mesmas, porque o
Princípio impõe um limite de Realidade, a “Physis”, e nós tentamos fugir
deste limite, criando, mas isso só leva a mais reclusão “dual”, e se mais acon-
tece, para que o expliquemos, voltamos, mais uma vez, à dualidade conscien-
te, todas as abstracções são “Espírito” resoluto, mas, se são mensuráveis, são,
ainda assim, corpo labutando na vida, que é um modo de trazer a morte
salvífica. A linha do tempo é uma aproximação escalar do que todos somos
na jornada consciente, mortificamo-nos para trazer o Princípio, que é sem-
pre familiar, ou seja, que sempre traz as balizas do in-momento conciliador,
do qual todos se pretendem arrancar para formular novel “normalidade”. A
Filosofia é a história de uma dualidade gigantesca, e dizer que isto é Hegel é
aventar o seu “Espírito”, novel “tese” de outro processo dialéctico, tragando-
-se escalarmente, mas, mesmo assim, na mesma escala de “materialidade”
fremente, da qual todos partem para punir o próximo na aproximação do
“Ego” ao “Ser”, onde todos se encontram, mas uns, mais do que outros, se
fazem seu “signo”, Cognição absoluta, Lógica Universal, neuroticizando outros

474
O FisióSOFO

caminhos lógicos, dialécticos, reais, onde a Imaginação copula com a geração


inebriante do Super-Homem. Mas este, na sua súmula de liberdade, quererá
reproduzir uma Razão, uma moral determinada, um terreno familiar, que,
em geral, reedita a intrínseca dualidade carnal, sem a qual só a morte pode
ditar os termos. E bem que o dita, a partir do Princípio imediato onde jaz,
em potência, todos os “Verbos” passíveis de mesclagem presciente, a psicolo-
gia empírica, as terapias científicas, mais não querem do que reproduzir a
“persona” verbal, mas sem que o indivíduo morra, porque essa “redução”
extingue a aventura dialéctica, e isso acaba com a vida, e nós agarramo-nos,
constantemente, a ela, e, por isso mesmo, morremos tal-qualmente, num
“eterno retorno” retumbante que não cessa de apreender o Sujeito na relação
infinitamente primaveril com o Ser.

Fazemos, sempre, por nos expulsarmos da “dualidade”, e isso remete-


-nos, precisamente, ao mesmo, tomara que pudéssemos Criar, ascender a
terrenos mais inapreensíveis, mas isto também é desejo carnal, dual, mesmo
que ascendêssemos, não seríamos capazes de o compreender, porque fazê-lo
é revoltear em dualidade. Níveis maiores de Consciência seriam, de algum
modo, inacessíveis, querer compreendê-los é trazê-los para um terreno moral
familiar, e isto implica que queremos “sentir” moralmente sem que tenha-
mos que partir por inteiro. Toda a moral sofre de não ser Ética, Uno, doutro
modo não seria “moral”, razão demiúrgica, estaria, já, no destino, no Princí-
pio imediato em que a Consciência é pura e indual, note-se que há, constan-
temente, um desejo desta Consciência, mas que se vê dualizado pela necessi-
dade vitalista. E sabê-lo, querer sabê-lo, é, também, dualidade. A ascensão é o
território livre, mas em que a “queda” se presume, sem que se determine,
quem o diz está por cá, na “consciência de”. Quanto mais nos elevamos mais
nos colocamos para além do limite a partir do qual tentamos reduzir-nos,
empiricamente, ao imaginário “especulativo”. A empiricidade nivela tudo
pelo mesmo território do compreensível, mais do que isso é estar no “irra-
cional”, a fuga a este é, também, irracional, porque nos mata e nos projecta,
incessantemente, para a consciência, e a repetição do mesmo até à náusea,
não é tudo isto irracionalidade, busca infinitesimal dum Princípio onde nos
colocaríamos para além das balizas humanas, que isto de querer ser livre é,
também, um modo de fugir à dualidade, e bem que o queremos fazer mas

475
Luís Coelho

sem que morramos, sem que percamos a “consciência” familiar, este “eterno
retorno” implica, claro, infinitamente um “Outro”, sem o qual não existiria
mediação “dual”, onde um se “reduz” fenomenologicamente, outro “descen-
de”, se o Sistema é dual é porque é interdependente, doutro modo, os pólos
seriam “eles mesmos”, independentes, livres. Qualquer Filosofia prescreverá
uma Razão “ideal” que fará cair o Humano no mesmo jogo dialéctico, que
existam escalas, ou que tudo permaneça Igual, é o mesmo, é a mesma “mate-
rialidade”, a mesma racionalidade, para lá da qual a imaginação não conse-
gue quebrar as regras. Bem vemos que o paradoxo explica o que é simples, o
Verbo é uma tentativa de silenciar o “retorno”, mas, quanto mais nos apro-
ximamos dele, mais nos mortificamos, e isso, para alguns, é fugir à sua
determinidade, ao seu próprio “Verbo”, e todos possuem sua justiça, quem
me dera poder catapultar-me para além da mesma lógica, é o Princípio Uno
que me limita, nele está toda a multiplicidade, e, se algo mais existe, é estra-
nho a esse Uno, e à compreensibilidade, se se coloca para além das possibili-
dades, será unipolar independente, mas, se fere, é tragado à dualidade fami-
liar, que é o que acontece na tentativa de compreender o que nos transcende,
o Sonho é aviltante, o pesadelo são todos os sonhos por cumprir.

Tenho tido uma vida muito saudável. Mesmo para um morto.

Não me trates bem, trata-me retoricamente. Nesta idade já só procuro


ser convencido.

Dedico esta frase à memória dos esquecidos. Dedicaria mais, mas a


memória é mais curta do que a frase.

O meu partido faz hoje anos que se partiu. Dantes não fazia anos e era
sempre Hoje.

476
O FisióSOFO

Neste momento, os nossos pensamentos vão para o Eterno, que os reci-


cla e reenvia, sem qualquer utilidade senão a de fazer-nos achar o contrário.

O melhor num infinito rol de possibilidades universais é não ter de


parar para explicá-las. Se o fizesse não teria tempo para me dar a tal trabalho.

Claro está que o empírico dirá ser a Razão filha da Realidade, da Natu-
reza, mas algum pós-modernismo pretende colocar a segunda ao serviço da
primeira, não deixando, no entanto, de ir buscar à Moral o sistema de con-
trolo do Eixo temporal. E é certo que esta forma de Placebo poderá singrar,
mas é possível que a Realidade constitua a sua grande limitação. Aliás, mes-
mo a visão racional dos pós-modernos é limitada pela Realidade. Esta é aceite
mais absolutamente pelos empiricistas, que, entretanto, não recusam, neces-
sariamente, a ideia de que só vemos a Realidade que a Razão permite. E é aí
que se encontra a grande necessidade humana, também ela limitada pelo eixo
Razão » Realidade. Possibilidades maiores parecem pouco relevantes, se bem
que a Imaginação é, igualmente, filha da necessidade de tranquilização, a
qual, por seu turno, se coloca na dependência de uma despolarização Razão »
Realidade, mas isto é o que diz a nossa Razão familiar, as referências neuro-
lógicas. Bem sabemos que há, inclusivamente, a tendência dominante para a
Razão se adaptar à Realidade, obviamente, se a Realidade se alterar radical-
mente, a excessiva polarização poderá levar à morte da Razão, que, todavia,
já era seu objecto, isto, claro, novel presunção “familiar”. Quando a Realida-
de se altera profundamente, é possível que uma minoria racional mais bem
adaptada sobreviva para formular novel eixo Razão » Realidade, aqui as coi-
sas poderiam mudar um pouco, mas a minha Razão limitar-me-á na visão
desse novo manancial subjectivo, que, assumo, estaria adaptado a uma Reali-
dade a modos de produzir uma ligação “utilitária”. E o “útil” continua a ser a
relação sincrónica Razão » Realidade, que, de mais a mais, vem revelar o
“mesmo” de sempre, a potencial tautologia.

Portanto, certo pós-modernismo pretende colocar a Realidade ao servi-


ço da Razão, e esta ao serviço de uma Razão moral que, por sua vez, é filha da

477
Luís Coelho

relação mediada com a Realidade. A Realidade fez perdurar uma Razão utili-
tária que foi sublimada e criou a mediação com a própria Realidade.

O que irrita no Utilitarismo é a proximidade ao Imediato, traindo, por-


tanto, a Deôntica, mas irrita, também, o perigo de não se tanger uma Razão
moral, esta tem de existir enquanto tal, e sempre sem que o Imediato se torne
vero, que isso seria morrer, atraiçoar a Consciência. Crescer enquanto acto
de se despolarizar é um modo de criar a impassibilidade, mas de evitar, de
todo, o finalismo mortificador; a despolarização permite a Individuação éti-
ca, uma certa impermeabilização face ao Sistema, mas isso acalma a necessi-
dade de transcender. Por sua vez, o desejo é polarizador, reedifica a acelera-
ção temporal, distancia a Transcendência, pelo modo como alavanca uma
Razão moral que permite mediar a relação com o Real imediato. É funda-
mental que a aproximação Razão » Realidade não seja completa, doutro modo,
deixaria de haver moral. Perante a Impassibilidade sistémica, o “Adversário”
poderá reagir, mas isso implica, de alguma forma, uma certa reacção do Sis-
tema. O “Adversário” catapulta a sua própria Razão, que pretende assegurar
a relação pragmática com a Realidade. O Princípio é a razão de uma practici-
dade moral. A ciência “real” absolutista é despolarizadora, na medida em que
pretende representar, somente, a Realidade independente, o que, por sua vez,
mata a Razão.

O “seguro de si” é suficientemente “Si” para se assumir na proximidade


ao Colectivo, e sem que queira transcender. O inseguro é repleto de desejo,
dele provém a Consciência dual capaz de sublimar uma Razão que, de algum
modo, quer acolher mais Realidade. Se a aproximação Razão » Realidade se
tornar vera, pode ser que o Sujeito fique mais serenado, mas isto pode não
impedir que o “Outro” inseguro reaja, quando se vê polarizado face à Reali-
dade. O jogo dual é a própria Vida consciente. A “práxis” quer ser Realidade,
mas tal imediaticidade destrói o próprio intento “pragmatista”, o qual tende
a recrutar uma moral. Esta vive para ser Realidade, mas também lhe resiste,
doutro modo, o Princípio tornar-se-ia Fim, o Sujeito Realidade, e já não
haveria qualquer movimento consciente.

478
O FisióSOFO

O grande medo não está em perder a razão, mas em perder a Realidade.

Quem teme ser Sujeito sujeita-se a ser Objecto de si-mesmo.

Se não tens imaginação para mais não te queixes de ser imaginado.

Sujeito e Objecto são agentes que lutam, dentro do mesmo Sistema,


pela conquista de território Real, Imediato. O Sujeito quer ser tão “Ele mes-
mo” que acaba por polarizar o seu oposto, o seu Objecto, que, ainda assim,
teme. O Sujeito resiste, sempre, ao seu Objecto, mas dele necessita para a sua
certificação consciente e dual. O Objecto teme, também, o Sujeito, a subjec-
tividade, ele quer possuir o maior território de Realidade, mas acaba, por isso
mesmo, por lembrá-la de que ela se sujeita a um Agente. O desejo é uma
forma de temor e acarreta o seu oposto, só assim pode a Consciência adiar o
momento de ser pura e mortificadora. Quando o pólo se apura deixa de ser
“pólo” e passa a ser Uno, não deixando, todavia, de se consubstanciar enquan-
to Estrutura potencialmente materializável, separável, dualizável, condição da
Consciência temporal infinitamente crescível.

Se dizes que és bonito, e és mesmo bonito, dirão que a presunção é feia.


Se dizes que és feio, e és mesmo feio, dirão que a beleza é relativa. E ainda
dizem que o relativismo é presunçoso!...

Quando era pequeno procurava sonhos em caixas de cereais e pastilhas


elásticas. Agora, procuro a esperança no mercado negro. Mas não faz mal,
porque o que interessa é o caminho e não o destino. Que importa que o des-
tino seja como as voltas do tempo na penitenciária?...

479
Luís Coelho

O Facebook, agora, não avisa quando me dão Likes. É a prova de que


quem te avisa teu amigo não é. Daí que deixe, antes, a promessa: prometo
avisar-te sempre que te portares como um amigo; não posso fazer o contrá-
rio, porque tornar-me-ia uma melga.

Entre a espada e a parede, não se perdem as opções, só se perdem as


desculpas. A não ser que a morte esteja à esquina, indecisa entre esperar e
temer.

Quanto mais adoecia, mais esperança tinha. Depois, percebeu que era
ao contrário: quanto mais esperava, mais adoecia. Era a mesma coisa, viu,
depois, em desespero. E adiantou-se, enfim, à dor, para doer-se ainda mais
no atalho da contradição.

A Inteligência Emocional não está na definição da estratégia mas na


capacidade de tolerá-la. É por isso que só pode ser medida na resultante, por
assentar na arte do ludíbrio.

Quem vende sonhos às pessoas não se desilude: compra, sempre, o pesa-


delo mais barato. Doutro modo, não venderia, traficaria no mercado negro da
sociedade de mercado, que é o bazar em nevoeiro esparso.

Acreditar em Deus é estar em fila de espera. Acreditar em si mesmo é ter


data marcada, chegar a tempo e ser colocado na fila.

Ele assistiu à sua morte. No último fôlego, recuperou a vida.

480
O FisióSOFO

À seringa de Botox, limitei-me a dizer: “Com que cara vais dizer às pes-
soas o teu preço?” Enfim, lá me paralisou com a evidência.

Cegou e tornou-se um visionário. Imagina se tivesse, também, ficado


surdo: não teria ouvido para a inveja (nem boca para o orgulho).

Quem não se dá a escolher entre viver e morrer não vive a valer. Mas
quem escolhe não morre a valer.

O melhor do futuro está em fazer com que todos os momentos do pas-


sado sejam igualmente relevantes para esse futuro. Digo-o eu, justamente
agora, quando, lendo-me, determino o teu futuro. Se fosse condição suficien-
te, teria casado contigo.

O meu Boletim Astrológico diz-me que o acto de o ler determinará o


meu futuro. Tudo faria por isso ao evitar lê-lo, mas já o fiz e, dê as voltas que
der, já não posso alterar o meu destino.

Se quiseres matar-te, não digas a ninguém: as pessoas podem ficar com


inveja. Colocar-se-iam a debitar umas “deônticas”, o que faria com que qual-
quer um que quisesse matar-se tivesse de fazer disso segredo. E o Segredo
maior seria de que morrer por querer vale o mesmo que morrer por não que-
rer. Assim, ainda escapariam os que morrem sem querer.

Quando deixar de me preocupar com a sorte das escolhas passarei a ter


mais sorte nas escolhas.

481
Luís Coelho

O Homem é, sempre, tão incoerente... Eu já me contento com acertar


sempre que tento falhar.

{Morri-me: A “morte assistida”


ou o paradoxo da Consciência35}
Sempre que discuto a “morte assistida” morro mais um pouco. E por
ser “um pouco”, morro de morte sofrida e não de morte morrida. Assim,
posso voltar para contar como foi estar morto, doutro modo preferiria estar
morto de vez. Mas não me deixam “querer”, porque me dizem que só morto
desejaria morrer, porque os vivos querem sempre morrer às prestações. Mas
há prestações demasiado pesadas, e esperar morrer para poder escolher é, já,
ser moribundo. Aliás, se pudesse, realmente, escolher estaria morto por vol-
tar a viver. Mas acontece que é a proximidade da morte que me faz escolher
preferi-la à vida morrida. Dizem-me que não sou “objectivo”, mas como
posso sê-lo sem que me torne Objecto de mim mesmo? Ora, para consegui-
-lo é necessário viver, não vá a morte avisar-nos que existe um modo de des-
contar o tempo perdido. Disseram religiões e filosofias que antecipar a morte
é fazer batota. Elas convenceram-nos que morrer é o objectivo da vida e,
depois, arranjaram um modo de nos complicar o caminho: uns com a reen-
carnação, outros fazendo do matar(-se) um pecado. Ninguém quer ver o que
a Consciência frustra a si mesma: a Razão, que permite fazer viver mais e
melhor, apenas faz adiar o momento inevitável; ela existe, contudo, para dar
uma “razão” à vida, razão que a morte não perdoa. Se nos pusermos a ques-
tionar a moral, estaremos a admitir que a vida é irracional, que não vale a
pena sofrer a mais ínfima questão íntima. Então, para que não tenhamos
inveja, vendemos a Razão e criamos regras e “deônticas” para os mais in-
-conscientes. Mas sem que o indivíduo viva por “si mesmo” ele não poderá
regrar-se com liberdade. É obrigatório que se mate devagarinho, que cresça
sozinho, para que possa, um dia, desejar não morrer. A moral quer frustrar a
liberdade de cada um querer viver por si mesmo. E é por isso que convém
falar destas coisas às escondidas, porque cada um evolui como quer a expen-
sas do Colectivo. Só assim, próximo da morte, terá o Ser o último fôlego, que
35
Publicado em «Healthnews» e em «Página Um», Abril de 2022.

482
O FisióSOFO

é viver pela primeiríssima vez, que é ver que já não tem de escolher coisíssi-
ma alguma. Assim, torna-se parte da moral que o queria fazer viver à força.
Mas isto não é, já, estar morto? Pois claro que sim, mas ele pôde matar-se à
vontade, o que, de mais a mais, mata a moral, mas também a ressuscita. Ora,
ser livre, bem como perder o medo da morte, não mata a ética, é um seu
pressuposto. O mais que poderia acontecer é que as pessoas se matassem
cedo de mais. Frustrar-lhes o caminho pode, não obstante, servir-lhes de
mote. Mas se lhes dás palco, arriscas-te a assegurar, ainda melhor, a velha
moral restritiva. Não há, assim, necessidade de moralizar, mas, apenas de
deixar de dar palco à questão, que, ainda por cima, pode fazer sofrer até mor-
rer. Quem precisa, muito, da velha moral, tem, em absoluto, medo da liber-
dade de morrer, e isto mata, também; mata, aliás, quem ainda tem muito
para sofrer, para que possa, deveras, perder o medo de ser livre. Saber se o
sofrimento compensa ou não, esta é a grande questão, se soubéssemos res-
ponder-lhe em absoluto estaríamos mortos. Pretendem os moralistas res-
ponder-lhe, e eles falam pela morte, mas para matarem os outros à sua
medida. São tão “livres” mas não se livram de querer matar, que é uma for-
ma de se matarem para serem, finalmente, livres. Até lá, sofrerão a irraciona-
lidade, e o medo de poderem desejar matar-se antes de morrerem vivos o
ludíbrio da morte morrida.

Procura-se Ego para arrendar


Eu sou o Senhorio
Doutra maneira
não teria como pagar

Procura-se desaparecido que não precisa de ser encontrado. Dá-se recom-


pensa.

Procura-se desconhecido de si-mesmo para casar. Prometo não coscu-


vilhar.

483
Luís Coelho

Gosto de ti, por isso vou marcar-te um ponto de desencontro. Se te


apanhar em falso prometo mentir-me.

Só há uma forma de evitarmos fazer figuras de parvos: ser parvos toda a


vida.

Clonei um Deus, mas não é a mesma coisa: este nem se queixa de não
ser original.

Enquanto não tiver dinheiro para um implante capilar terei orgulho em


ser careca. Mas, quando for rico, terei orgulho na minha carteira: por ter
deixado de ser careca.

Quando aprendi, com a vida, a usar, somente, o essencial, veio o acessó-


rio para me usar nos trabalhos forçados.

Os relativistas morais não comem crianças ao pequeno almoço. Apenas


acham que o adulto também é criança. Mas só pensam em tal coisa quando o
pequeno almoço é tomado à hora do almoço.

“Ser humano” representa, para o filósofo, um insanável “conflito de


interesses”. E é por isso que isto que digo é interessante, porque causa confli-
to.

Seria preciso ofender excessivamente o Equilíbrio vital para que se alcan-


çasse um nível de polarização capaz de replicar diferentes princípios arquetípi-
cos, aqui é como obter diversos eixos de despolarização, sendo que cada um

484
O FisióSOFO

implica uma relação dual mais ou menos local, sistemática, em que mesmo a
Razão moral é neurótica, e tudo é, aliás, neurose, porque tudo requer movi-
mento, continuidade harmónica em que Sujeito e Objecto se igualam constan-
temente. A Razão neurótica de um “agente” é o nível mais despolarizado de
outrem, o Sujeito que cria resposta dual é, ele mesmo, sujeito a outrem, subjec-
tividade de um Outro. Cada elemento desempenha um duplo papel de Sujeito
e Objecto, e cada momento requer o Igual Real, Racional, em que tudo é certo
e tudo muda, mesmo assim.

Quem exige objectividade não é objectivo, tem, aliás, inveja da objecti-


vidade de outrem.

A dualidade moral é, igualmente, a dualidade de cada um dos elementos


do duo “corpo vs. mente”. O corpo é dual, mas também Imediato, e a mente
Una é mediata. A Razão moral é um Uno que se multiplica em diversas valên-
cias i-racionais, todas elas constroem o cômputo monista do percepto sisté-
mico finalista.

Claro está que o Espírito se poderá opor à Razão dual, mas esta pode
implicar uma reacção Unitária, do Ego tornado Ser. Esta é uma posição mate-
rialista, mas que, na mente de alguém, implicará algum acordo unitário, o que
não evita que corpo e mente constituam sempre uma Unidade material, aqui
atemos o Imediato em que cada elemento está sempre certo. A imediaticidade
corpórea contrasta com a dualidade moral, para esta teria de haver, de alguma
forma, um Ser e um ego, mas, mesmo aqui, as posições podem ser alternadas
de acordo com o papel desempenhado. O Ser compensa o Ego, puxando-o
para si, mas o Ego também pode fazer as vezes de Ser, egotizando o pretérito
Ser, e todos estes conceitos resumem-se a uma Substância, onde a moral iguala
a tendência do comportamento. O que confunde, por vezes, a compreensão é a
própria dualidade basilar envolvida na Consciência, e mesmo isto é somente o
que a mente alcança, pois que, noutros sistemas, diferentes mentes implicarão
fenomenologias diversas, e cada uma será Uno em si-mesma, naquilo que
permanece enquanto Coisa, por oposição ao significado que lhe imputamos.

485
Luís Coelho

Há quem nunca beije num primeiro encontro. Eu, cá, nunca me encon-
tro num primeiro beijo.

Temos de lhe dar o malefício da dúvida. Não vá não ter razão.

Está claro que a Razão moral é intrinsecamente “dual”, ela já previne a


Liberdade idiossincrática, bem como a “ética do fraco”, garantias concedidas
ao Domínio e que acabam por evitar a criação da “moral do ressentimento”.
Portanto, a dualidade racional é condição de evitamento de uma dualidade
maior e que transferiria o Eixo de Equilíbrio para um local mais displicente
dentro da própria “Physis”. A moral exige o “dual”, bem como a vida, sem a
dualidade não existe forma de o Imediato se transpor na linha do tempo,
haveria, apenas, Intemporalidade, Energia, movimento perpétuo, fazendo
lembrar a “Physis” plena, o corpo empírico antepondo o Percepto finalista
onde o Imediato é repercutido “dualmente”.

Assim, a Razão dominante abarca a mesma dualidade que a equilibraria


horizontalmente no tempo, e quantas dualidades existirem mais tempo have-
rá de equilíbrio transcorrendo-se com uma aparência de estabilidade, e, no
entanto, esse eixo temporal de equilíbrio implica, sempre, pequenos modos
dialécticos, um espírito no seu transformismo modelar, criando as necessá-
rias oscilações polares, o atrito que criará a consciência eidética, tética, que é
sempre a resultante do funcionamento paralelo de bastos sistemas. Naquilo
que há de “mente quântica”, o que é mensurável reverte para a dualidade
sistémica, para o Ciclo vital realista, ponto de encontro de tantos modos de
equilibração, o Espírito é o Princípio e o Fim de tudo, a aparência de imen-
surabilidade, materializável pelo “Eu” que, impondo a medida, afecta, trans-
forma, dualiza, fazendo vicejar o Sistema de dinâmica. E se o Sistema muda,
muda, igualmente, o “Eu” que o transforma, bem como o “quantum” abso-
luto de Insofrimento, na relação que, sempre, estabelece com o aparelhado
de vidas inconscientes. Estas são, também, o Absoluto corpóreo, idiossincrá-

486
O FisióSOFO

tico, fazendo arcar a Consciência de movimento, e os dois vivem de se apro-


ximarem e afastarem consecutivamente num jogo local, planetário, que vita-
liza a ilusão, a Razão que imputamos à Natureza para fazer “valer” a ideia de
que estamos bem além do Corpo, da sua concretude sem sentido. Atribuir
um Sentido à vida é conceder-lhe uma Razão moral, é necessário um Verbo
para que a multiplicidade de in-consciências possa fazer enriquecer o padrão
original. E sempre que alguém se acha dentro da razão está, na verdade, a
aproximar-se dela, de uma compensação placebetária, que, a nível totaliza-
dor, é Verdade mesmo assim, mas, potencialmente, à distância do Verbo
pleno, o que poderá acarretar a Razão maior do filósofo que não se exclui da
“Physis”, da Verdade “ela mesma”, quiçá rebelde ao “Domus”, ao Equilíbrio
conceptual, mas Verdade inexaurível que faz brotar a Concórdia, nem que
seja a idiossincrática, que é um modo de libertar o “Eu”, o “Ego cogitum”,
mas, claro, é essa mesma liberdade que cria a ilusão, o placebo, de uma toti-
potência consciente que seria, apesar de tudo, irreal, o corpo-mente procura,
sempre, um modo de (se) convencer, mas, perante isto, a dúvida poderá
parecer mais certa, até mais impassível, porque admite a dualidade natural da
Razão, mas, se há dor, é porque não existe Razão em absoluto, mas a des-
compensação é isso mesmo: um “pathos” de pensamento que procura uma
dualidade menor, uma maior concludência indolor, capaz de aproximar o
Inconsciente da Superconsciência, mas sem que os funda, porque isso mata-
ria, deveras, a Razão, o relativismo radical sabe que todas as razões se pros-
tram com igual ferocidade, é a dúvida perpétua, um absurdo de possibilida-
des, mas, mesmo aqui, há, constantemente, uma Estrutura em busca de “si
mesma”, e qualquer uma que surja faz revitalizar o Sistema, atirando-o para
uma divisão maior onde a Energia funde, se bem que isto é, somente, uma
perspectiva, bem como tudo o que digo, que se coloca nos termos de uma
materialização pessoal, dentro de nós tudo se assume como crença in-cons-
ciente, e esta é, até, capaz de burilar o sistema de medida, de construir a una-
nimidade, o que não é necessariamente mau, porque é uma forma de prag-
matismo, é um modo de criar utilidade, e, se a coisa pega, pode ser que o
Princípio se torne perene, dogmático, não poderia sê-lo sem que equilibrasse
boa parte do Sistema, mas isto é redundante, porque Ele cria o próprio Sis-
tema, mas há, claro, a possibilidade de uma Razão rebelde surgir e fazer des-
locar o mesmo Sistema, nele “Espírito” e “matéria” seriam, talvez, coisas dife-
rentes, porque até poderia mudar o significado das palavras, mas que fazer
sem que abandonemos os signos actuais, acabamos por fazer tudo a partir do

487
Luís Coelho

que conhecemos, do que é familiar, doutro modo, seríamos irracionais, absur-


dos.

Se me amas, ensina-me como fazê-lo.


Se te amas, não fales por mim. A não ser que seja para me ensinar a
fazê-lo.

Este será um ano de solstício assistido no equinócio do pensamento.

O suicídio seria a única resposta racional aceitável se a Razão não fosse,


também ela, afecta à dualidade neurótica que a implica, bem como o seu
oposto polar. Toda a Razão moral é neurótica precisamente porque se requer
na repetição incessante do erro de existir. A busca é inexaurível, a Razão é a
ilusão da estagnação, a dúvida é o artefacto filosófico mais concreto.

A morte e a vida estão ambas presentes no cômputo da Razão moral, o


pólo que esta projecta inclui a mesma dualidade, porque o movimento “phy-
sis” é o Imediato em que o Corpo é vivo e morto em simultâneo, ele perfaz,
entretanto, a nova Razão, a qual implica, constantemente, alguma relação
com a abnegação, tudo provém da natureza do próprio Corpo, do Bem ime-
diato que esculpe o seu oposto.

Ora, o Bem, o Imediato, o Insofrimento, só pode conceber-se na relação


dualizadora com um “mal”, que, face à Razão moral, se torna novel Imedia-
to, o qual se catapulta como Razão. É a dualidade da vida, da consciência,
passível de ser apreendida nas suas manifestações pela ciência positiva, mas
esta já se encontra no domínio da resultante, podendo ser o produto de uma
Razão que já dista da “Physis”. Por seu turno, essa ciência poderá compor-se
enquanto Razão, havendo, aqui, uma relação de mútuo acordo, que será a
Verdade, ainda assim, sendo difícil apreender a relação primária. Todas as

488
O FisióSOFO

relações “positivas” ver-se-ão tornar-se hipotéticas, não existe acesso à Razão


categórica, a ciência positiva aumenta a possibilidade de nos aproximarmos
do que é categórico, mas, bem vendo, apenas demonstra o que é a Razão
Dominante, podendo, até, construí-la, todas estas “razões” poderão ser argui-
das e manipuladas, sem que a Causa tome forma por inteiro.

Colocar uma pedra sobre o assunto é como colocá-la num sapato: ficas
sem par e ainda fazes sapateado.

A Razão moral apresenta-se, comummente, como caminho “ideal” para


o Objecto, cada “razão” possui esta potencialidade, aliás, cada Razão é Objec-
to de outras (i)razões, mas, enquanto caminho, pode ser que a Razão, que
parecia “Ideal” Objectivo, seja, apenas, mais uma (i)Razão, mas pode sempre
relevar o Objecto enquanto Razão dominante, tal como pode arguir a possi-
bilidade de uma Razão neuroticizada se tornar a nova Razão dominante. Há,
aqui, uma questão de preferência democrática, mas também pode acontecer
que uma Razão demasiado displicente se aparte completamente daquilo que
entendemos como “Razão”, que o mesmo é dizer que ela seria displicente
para a maioria, em ambos os casos poderia criar-se uma menor possibilidade
de Objectificação de uma maioria; quando uma Razão se afasta, assim tanto,
do Objecto maioritário dizemos ser “irracional”, porque mata o Sujeito na
relação com o Objecto. Tamanha morte é, igualmente, a do Objecto pro-
priamente dito, irrelacional, indual, que pode ser dualizado quando uma
outra razão se lhe opõe enquanto Objecto. A necessidade de ser “objectivo” é
requerer esse Objecto, ele implica a relação “dual” tendendo para um Objec-
to completamente Subjectivo. Este poderá compensar, placebetariamente,
muitos outros, mas só há, genuinamente, placebo se entendermos essa com-
pensação enquanto “irracional”, o que, de mais a mais, implica que aquele
Objecto não é o Objecto “Ele mesmo”, pelo que, como já dissemos, pode
aquele ser, por sua vez, compensado, placebetizado, por um Objecto maior.
Um sistema de compensação poderá, então, neuroticizar um Objecto Ideal,
que só se torna “Ideal” porque se sublima, porque o “neuroticizado” não é
Ideal, na medida em que não é dominante. Claro está que as ciências físicas
apelam a um Objecto absolutamente cru, a uma “Physis”, que, às tantas, é o

489
Luís Coelho

próprio Objecto irracional, ele implica um Sujeito suficientemente “distan-


te”, numa relação Sujeito-Objecto que arrisca a completa polarização, sepa-
ração, que é o Objecto “Ele mesmo” despedido do Sistema, e, quiçá, pouco
pragmático, pouco utilitário.
A Razão continua a ser o ponto preciso de equilibração entre Sujeito e
Objecto, mas como nunca sabemos se temos, de facto, a Razão nas mãos,
colocamos as coisas em termos de um equilíbrio entre a Razão “ideal” e o
empiricismo “positivo”, esquecendo, porventura, que a primeira cria o
segundo num sistema de Domínio, mas tanto faz que o faça, porque é o Real
à mesma, um real dominante e, por isso, pragmático. Se ele se afasta da
Razão “Ela mesma”, pode ser que o Sistema evolua, de algum modo, para um
Domínio mais conveniente ao corpo, mas ele nunca poderá materializar-se
por inteiro sem arriscar “matar” o Sistema, tornando a relação, bem como a
dor, inútil. Quando o Sistema é essencialmente “Physis” torna-se, às tantas,
Imoral, puro movimento, e, aqui, pedimos, de volta, o exercício da Razão
moral, actualmente recentrado pelo pós-modernismo, mas isto só acontece
porque aquela “Physis” não era, ainda, um pleno Absoluto, pelo que subsistia
uma minoria (i)racional, capaz de alavancar a sua Subjectividade. A “Physis”,
na sua imediaticidade, dificilmente placebetiza, porque ela já está no Objecto,
é requerida uma Razão, para fazer renovar o Sistema. Se os partidários da
“Physis” estiverem seguros na sua crueza, na sua objectividade, não temerão
tal Sujeito, mas, se o temem, é porque eles também representam uma Razão,
entretanto patologizada, e, quiçá, sublimada. Mesmo os mais seguros de si
poderão reagir face a uma novel Razão, se ela se tornar demasiado forte e/ou
dominante. Doutro modo, as “razões” mantêm o seu paralelismo, o seu com-
patibilismo, que é também uma forma de equilíbrio Sujeito-Objecto. Equilí-
brio que uma Razão sempre mimetiza ao colocar-se numa parte “média” do
Sistema, que é um modo de recolher a aceitação do mesmo.

Um terapeuta “Physis” é uma representação da Norma, face à qual o


“paciente” poderá reagir com sua Razão moral, que é uma tentativa de ser ele
a tornar-se Norma. No processo, pode o “terapeuta” tornar-se “paciente”, se
o pretérito paciente lhe criar algum ascendente. Claro está que o “conflito”
exige familiaridade, só assim pode haver relação Sujeito-Objecto, e razão
provendo-a. A pura estranheza é o próprio Objecto singular, o Sujeito idios-

490
O FisióSOFO

sincrático, vogando no Caos que a “Physis” tantas vezes representa. Mas ela
pode relevar uma Razão moral perante o Objecto Uno, pós-moderno, reque-
rendo seu próprio Domínio. O Sujeito só poderá sê-lo se existir um Objecto
suficientemente familiar, suficientemente distante. Uma razão demarca tal
relação, e exige a Unidade, mas esta torna a Razão obsoleta.

Se a Razão dominante é neuroticizadora é-o na medida em que já está a


perder o seu Domínio seguro, já está a dualizar-se, o seu pólo displicente é o
seu aspecto “paciente”, o seu objecto, o qual, sublimando-se, transforma-se
no Agente, num Objecto para outrem. Na medida em que se Objectifica, esta
pretérita razão neuroticizada domina e já se perde enquanto razão, porque se
aproxima do Objecto “seguro de si”. Em vida, este achega-se da morte, e
quanto mais o faz menos razão tem para o fazer, às tantas torna-se Ideal,
Independente, excluindo-se da parte egóica do Sistema. Domínio e recessivi-
dade são partes translocáveis de um Sistema dual. Cada Sujeito pode ser
Objecto e vice-versa. Um Domínio mais enxuto perde a dominância, face à
qual nada ocorre de significativo. Claro está que mesmo o “seguro” poderá
reagir neuroticamente face a um Objecto se coloca em pleno antagonismo.
Este Objecto tem de ser “distante”, ameaçador, mas, ainda assim, representa
uma Realidade onde o ameaçado se inclui. Se a Razão é demasiado estrangei-
ra age como “segura de si”, se ela se assusta, actua neuroticamente enquanto
Sujeito dual e objecto de um Sujeito mais abrasivo.

A Razão dominante é uma tentativa de Nada; quando ela começa a per-


der o seu domínio, isso ocorre na mesma medida em que uma outra razão
neuroticizada começa a alcançar o seu. O eixo temporal implica uma luta
entre a Razão e o Nada, quando a Razão se securiza plenamente vai deixando
de o ser, quando ela se neuroticiza, é como aparecer a Coisa a partir do Nada,
de modo a alimentar criativamente o Sistema. Se, face à Razão científica ten-
tando ser “Physis”, a Razão pós-moderna age como “coisa”, se, face à Razão
pós-moderna, a “Physis” impreca com a necessidade de haver Sujeito e
Objecto numa relação que, às tantas, é só Objecto, tudo isto implica que a
única relação genuinamente válida é a que a Razão coloca face ao Nada,
como face ao sentido neurótico, perante o qual expele, displicentemente, o

491
Luís Coelho

seu pólo heresiarca. A multiplicidade é o arrazoado de reacções possíveis face


a uma Razão que se coloca no Domínio da Realidade. Cada novo agente faz
por conquistar território à Realidade. Quando isto implica uma Razão dema-
siado “estrangeira”, pode ser que tenhamos migrado para o território do
Irracional, que é como quem diz que é incognoscível. Mas este pode repre-
sentar a Razão futura, sem a qual é impossível haver movimento criador.
Claro que a Criatividade tem a mania das grandezas e lá se coloca para além
de uma Razão, num lugar a partir do qual não haveria queda possível, se não
a dum vizinho chocado, neuroticizado, com sua própria moral pretendida-
mente dominante a trabalhar para ser Imoral. Queixarmo-nos de haver algo
incognoscível é termos com que nos entreter num mundo feito a pensar no
modo de nos tornarmos desconhecidos a nós mesmos. Até lá, cada ente terá
um duplo papel de Sujeito-Objecto, num plano em que o múltiplo se con-
funde com o Uno, dada a dificuldade em estancar racionalmente um proces-
so. E quando o fazemos é, quase sempre, para generalizar, para vermos as
coisas em termos de Grupo, de “Nomos”, aliás, a partir do nosso próprio
“Nomos”, que o mesmo é feito face ao Idiossincrático, perante o qual “gene-
ralizamos” a nossa própria idiossincrasia. Mas estas identificações são egói-
cas, são necessidades de sublimação de um Arquétipo, que ainda não é o
Inconsciente pleno, Colectivo, deiético, no qual todas as razões se pretendem
abstraídas, totalizadas, para um novo nível de Cognoscência, que vem reno-
var o caminho neurótico, onde o “estranho” se fará ouvir com uma “dor”,
que é um exercício de conquista do território empírico indolor, onde o pen-
samento jaz “Impassível”, prevendo o novo Sonho. E este é um pesadelo do
qual queremos despertar para um Sono mais duradoiro, quântico, onde a
Razão permanece adormecida mas a preparar-se para vir à Vida, processo
imprevisível, porque Livre de facto, e logo determinado neuroticamente pela
Necessidade de salvação. A vida arrepende-se rapidamente de não estar mor-
ta, e só não o faz quando, moribunda, já não clama a necessidade de viver.

A Estrutura permite a Liberdade, e tão mais permitirá quanto mais a


Razão for tolerante. Quando ela se excede, a nova liberdade poderá ser neu-
roticizada, e esta pensa-se “racional” e é-o na medida em que estrutura mui-
tos outros. Mas este langor racional terá o necessário desdito empírico, “novel”
Razão pretendendo ter a última palavra. Quando a flexibilidade miofascial é

492
O FisióSOFO

excedida, a dor remete para a desdita empírica, esta nova Razão trará a Reali-
dade para a sua zona indolor, a neurose pode abarcar temporariamente os
grandes territórios de segurança empírica, ela implica uma Razão que avança
de modo a mitigar-se na transformação do “pathos” em “Logos” e em “ethos”.

Há uns anos atrás, quando uma criança me perguntava o que fazia na


vida dizia que era um “quebra-ossos”! Acreditavam e respeitavam. Mais tar-
de, ao crescerem, bem viam que era um fisioterapeuta inofensivo. Assim,
desacreditam-me e desrespeitam-me. E o pior é que a compaixão manda-me
não mudar de profissão, mas hei-de arranjar um acordo de negócios com
algum outro banana, onde, no fim, ainda hei-de tropeçar.

Se me conhecesses bem gozarias comigo. E eu ajudaria.

É precisamente porque não sabemos qual razão é mais “racional”, que,


a determinada altura, defensamos o equilíbrio entre a Razão dominante e a
empiricidade, ou, se preferirmos, entre a Ordem positiva, empírica, e a Razão
idiossincrática. A Ordem positiva é, de qualquer modo, referente à empirici-
dade manifesta, social, mas esta pode não equivaler à Razão “real”. E o mes-
mo acontece com a Razão idiossincrática, mesmo quando se torna Razão
dominante. Pelo que qualquer forma de equilíbrio tende para o “utilitário”,
e, logo, pelo respeito por um Princípio salvífico, pragmático, que, ainda
assim, pode não salvar plenamente. E porque o não faz, revela-se (i)razão,
modelo possível – mas não terminante – de re-solução. Ele aplica-se a um
protótipo circular, de “eterno retorno”, mas em que o Domínio convida à
afectação de equilíbrio, exactamente entre Razão e Realidade (dominantes).
E o equilíbrio seria peremptório se não resvalasse para a “diferença” (Deleu-
ze), que é uma promessa de Igualdade. A diferença é a idiossincrasia neuróti-
ca, “livremente” determinada pelo Domínio a acelerar para novel Domínio.
Quando o faz, já neuroticiza a Ordem positiva, entretanto caotizada pela
nova ameaça. O Sistema circular perpetua-se numa relação dual, em que a
Razão cria, sincronicamente, o novo desafio. Diversos Princípios entrecho-

493
Luís Coelho

cam numa guerra evolutiva, involutiva, que visa equilibrar, minorar o nível
de dor, despolarizar, para que a razão terminante se mortifique ao ponto de
criar a sua própria durabilidade homeostática; mas este é, frequentemente,
um falso equilíbrio, a razão passa a irracionalidade, e tudo não passa de um
jogo de compensações, querer defrontar a Causa racional plena é, também,
querer esgotar o Sistema, como quem encontra o Sentido e a zona de recuo
absoluto, é, portanto, a nossa incapacidade que nos leva à necessidade de
equilibrar os pólos racionais cognoscíveis, equilíbrio que tem de integrar,
obrigatoriamente, qualquer outro tipo de eixo herético. Frequentemente, o
que estranha em demasia não (se) entranha, é outra defesa, inquirindo, pre-
cisamente, na Razão dominante, a sua “razão de ser”. A neurose é a regra, é
ela que age como “determinante” requestando o Indeterminado, que é,
somente, uma região de Determinidade pura, onde o Sentimento de Liber-
dade é absoluto. Isto, claro está, é semelhável à Ideia de Liberdade propria-
mente dita, podemos considerar que a zona em questão é a porta de entrada
para o Imperativo Categórico (Kant), e, não obstante, o Imperativo de hoje
pode ser “hipotético” amanhã, de qualquer modo, nada poderá provar-se
enquanto categórico, cada mente terá a sua própria Lei, mas o que se prova
nunca pode provir do Nada, mas pode agir enquanto tal. A neurose pessoal é
a Lei de cada um, a nossa consciência é, sempre, totipotente, o que a faz titu-
bear são as outras consciências, sujeitos, que adoptam o aspecto de Objecto,
infalivelmente possante. Quando uma consciência se vê fragilizada poderá
querer compensar-se com alguma outra que lhe seja familiar, mas isto é, já,
um modo de se objectificar, para tornar “outrem” seu sujeito. Se este proces-
so é voluntário, isso significa que ainda não é, completamente, Objecto, é
preciso que a sua acção enquanto “Superego” não seja voluntária para que o
“objecto” passivo se adopte como “agente”. Entretanto, este pode não conse-
guir roubar “Realidade” ao outro Agente, o que implica que se mantém na
faixa de insegurança. São os elementos constitutivamente “duais” que fazem
ponderar o Sistema. A Razão mais “forte” abraça mais Realidade, mas tam-
bém a normaliza e descura, dando a possibilidade à razão recessiva de se
tornar ainda mais forte, de modo a absorver mais elementos “duais”. Mas,
quando há passividade de ambos os lados, pode ser que as razões existam
paralelamente, alimentando, mutuamente, a mesma Razão dominante, que
não deixou de ser dual e “manifesta”, e que é, em simultâneo, toda a razão
que nos interessa. Haver quem tenha, realmente, mais razão não o torna
inevitavelmente dominante, crer que isso ocorre é a facécia do positivismo,

494
O FisióSOFO

há, talvez, uma probabilidade grande de tal suceder, dada a totipotência do


Corpo, mas só lemos nele o que a Razão permite, e é nesta que encontramos
a “razão de ser” do “sentir”, dum modo que tende para o Nada mas se perpe-
tua (i)racionalmente num Sistema, que, pelo acto de se perpetuar, é natu-
ralmente irracional. Logicamente, o relativismo, nesta perspectiva, parece
descomedido, e temos, sempre, que nos lembrar que partimos, constante-
mente, de alguma Razão (que está em relação dialéctica durável com a Reali-
dade/Razão dominante), aquilo que somos é permanentemente objecto de
uma confiança, crer na ciência e achar que esta é a verdade, também isto é
confiança, mesmo a “verificabilidade” positiva não nos poderá garantir nada,
e até a falsificabilidade popperiana possui os seus limites, porque a Razão é
totipotente e a Realidade é sua refém, e os “outros” que nos poderiam garan-
tir a Objectividade são-lhe, igualmente, reféns, como o são perante a nossa
Razão, que, de qualquer forma, sendo todo o mundo para nós, é sempre
Verdade, nem que seja alucinação, querer achar uma Verdade maior é estar
insatisfeito com a nossa, é, portanto, não conter a (in)Determinidade “neces-
sária”, quando ela existe, pode, claro, ser “neurose” face a uma Razão maior,
mas isso é o que diz esta razão, sobretudo quando recebe o aplauso do
Domínio. A Razão mais robusta parece ser a que se opõe ao Domínio sem ter
necessidade de se fazer ouvir, mas esta, para além de não ser inevitavelmente
vera, não é a que representa melhor o objecto filosófico. Este implica insolu-
ção “neurótica”, um vogar “dual” que resiste à Razão dominante, mas há,
quiçá, o condão de se securizar pela posição idiossincrática, em oposição ao
Domínio, como em Berkeley, aqui a “neurose” possui um pouco da impassi-
bilidade “céptica” do Nada que duvida, mas, se o faz, não é completamente
impassível, e ainda bem que o não é, o Caos da Imediaticidade não ensina
nada, é o destino e não o caminho, se ensina não é Caos é posição definida,
no entanto, quando se abraça uma Determinidade com a força de um Domí-
nio interno/externo, já a dúvida “cartesiana” se coloca numa Razão, que con-
sola mas, conjuntamente, afasta da Unidade, do Objecto. Que é coisa que
quase nunca pode ser escusada, sobretudo se atendermos ao facto de que não
é, nunca, do Nada que partimos; quando a consciência dá por si já é “de”
qualquer coisa, e já a criança se perde para o adulto definido, que tem horro-
res à sua criança fusional e incestuosa. É este o homem perfeito, na perspecti-
va higiénica, psíquica e fisicamente. Mas dele não virá a possibilidade de
compensar os “inseguros”, “duais”, que farão a nova Razão (in)securitária;
quando o fizer, pode ser que também ele se perca para o adulto, e se coloque

495
Luís Coelho

num plano de maior serenidade, equilíbrio, infalivelmente “manifesto”.


Outros terão saudades da criança que ele foi, talvez a “mãe” descontente, que
muitos diriam ser “narcisista”. Obviamente, o que digo não poderá deixar de
ser precavido pela “ipseidade” muito específica e idiossincrática do filósofo, a
mesma que é afecta à Razão moral e a assesta num plano “patológico”, na
medida em que não é “Physis”. A Razão moral não deixa de advir da “Phy-
sis”, da precisão de mediar o caminho para ela, a Ciência é sua dedução,
como poderia advir o cientista sem uma Razão moral que fosse, paradoxal-
mente, libertária? Mas toda a Razão impõe esse paradoxo, justamente para
complexificar o caminho para a sua extinção. Interessa, claro, que o caminho
valha a pena, e isso acontece sempre que o sofrimento é abreviado, mas isto
implica, obrigatoriamente, uma aproximação à Razão e à “Physis”. Se o
sofrimento é excessivo, ele não compensa, a não ser, talvez, para outros. O
“pathos” é uma (in)solução de conjunto, a liberdade individual tem, inces-
santemente, de ser colocada no plano do Colectivo, sem o qual ela nem
sequer se define. O Colectivo é, apesar de tudo, o lugar da pacificação mani-
festa, não sabemos se a liberdade heresiarca terá plena “utilidade” nos termos
da consecução de novel Princípio, não há modo de medir tal coisa, podería-
mos, até, dizer que o “sofrer” de determinados indivíduos valeria pelo “sofrer”
de muitos outros. O “pathos” filosófico parece valer sempre mais, mas, evi-
dentemente, no campo da consciência pessoal, os outros são, muitas vezes,
um número, uma abstracção. O nosso direito vale tudo, e as nossas incapaci-
dades são tratadas em termos de determinação; na Liberdade, somos um
“Eu”, na incapacidade, somos um Todo. Há, certamente, uma petulância
extrema no “Eu” filosófico, que carece de ser dominante e manifesto, e, em
simultâneo, se recusa a tal vexame. E, por isso, se coloca, logo, em termos de
uma “Physis”, de uma Imediaticidade, para, em situação de ameaça, fazer
apelo ao lado manifesto, positivo, científico, nem que seja numa ciência do
porvir. E este equilíbrio é o que propende, igualmente, certo “Ego cogitum”,
onde a Ciência se transtorna, plenamente, Realidade. O positivismo também
possui este funcionamento, mas empola o Objecto em oposição a um Sujeito
que se pretende independente. Se há demasiada subjectividade, o “Ego cogi-
tum” tritura a ciência, trá-la para o reino do Imediato, mas que, para os
objectivistas, é mera subjectividade irredutível à empiricidade pura; serviria
para certas ciências sociais e humanas, mas não para as exactas. Os partidá-
rios daquelas dizem que não há Objecto sem Sujeito, os partidários destas
dizem que essa independência existe. Se o Objecto é, de qualquer modo,

496
O FisióSOFO

comum, é possível alguma harmonia, e ela tem sido conquistada pela Razão
moral, que já recolhe alguma da sua objectividade do Corpo. As ciências
sociais fazem, bastas vezes, dela o seu objecto “práxico”, as ciências físicas
buscam nela uma fonte de contenção para o Caos da “Physis”. Onde é mais
difícil buscar a “diferença” é, justamente, na moral. O que se coloca muito
para além dela parecerá Indiferente. Mas é diferente precisamente pela indi-
ferença. Que não existe solução para a tentativa de permanecer na dúvida
“impassível”, ela parte de algo preciso e aterra, constantemente, em vários
locais, ambicionando não estacar em nenhum, para poder recusar a “posi-
ção”. É uma forma de Caos, de “Physis”, de absurdo, em que as oscilações
são tantas e tão rápidas que parecerão uma coisa coesa e estanque. Um pouco
como sucede com o Todo/Uno/Nada, mas o niilista fica-se pela ameaça, pela
dificuldade em tomar posição, buscando uma moral “justa” na empresa de
esgotar as variáveis, como se estas não o prendessem constantemente ao pas-
sado, à terra, frustrando, permanentemente, a (in)Determinação. Tudo neste
Ser dual é aparente e placebetário, tudo nele é superfície, é ele que determina
as grandes transformações, necessitando, para isso, duma moral que acaba
por renegar. Em certas alturas, a pressão social fá-lo-á escolher o caminho
dos Valores, mas o filósofo mais “desprezível” perder-se-á nas “linguagens”,
é um incapacitado social que se recusa ao orgasmo da completude, até por-
que essa não é racionalizável, cientificável, inteligível, e ele não pode escusar-
-se à aparência da Razão, perante a qual avilta, inalteravelmente, a outra apa-
rência, a da Razão manifesta e dominante. Recusando escolher, escolhe-se,
sempre, a si mesmo, dirá que é pelos outros, será certamente, quando, por
acaso, se obviar na postura definida, heterossexual, quando quiser deixar a
bissexualidade indiferente e cambaleante do demiurgo, carcaça de Deus homos-
sexual, incestuoso, pré-verbal, pré-Logos.

O indivíduo “amaldiçoado”, culpabilizado, pela Razão moral, é, fre-


quentemente, o agente de uma determinação que sente ser “estrangeira” face
a “si mesmo”, ele dirá não ter culpa de ser o que é ou de fazer o que faz, até
porque a “escolha” implica uma certa clareza no sistema de determinidade.
Todos nós nos solidarizamos com o “culpabilizado” na medida em que,
também, tememos vir a pertencer a tal minoria, e, por isso mesmo, admiti-
mos a existência de uma Razão minimamente compassiva com a liberdade

497
Luís Coelho

egóica. No entanto, esse “ego” não deixa de preterir esta Razão, pode, até,
pretender uma outra, mas que não é necessariamente vantajosa. A Razão
moral possui, precisamente, esta ambiguidade: pune e redime, em simultâ-
neo, o “estranho” ao Domínio, o que, de mais a mais, é uma extensão da
própria dualidade. Entretanto, o “amaldiçoado” poderia e/ou deveria cum-
prir o caminho necessário de enlace com a Razão dominante, só aqui poderia
abraçar algum tipo de altruísmo, que, de qualquer modo, é menos prescritivo
do que “natural” e egóico para o, actualmente, “Ser”. Pode, no entanto, o
Sujeito neuroticizado conceber uma moral nova, com maior ou menor capa-
cidade de enlaçar uma maioria, este intento poderá, até, ser minorado, preci-
samente pelo conteúdo “compassivo” da moral dominante, é o ensejo de
culpabilizar que cria o repúdio egóico do “outro”, que o mesmo considera
justo, até porque provindo de uma determinação “estranha”. Dentro dele, ele
é o seu Objecto “total” e o seu intuito é totipotente, não poderá deixar de
agir deste modo, e é a tolerância que pode, precisamente, tranquilizar o seu
intento. Pode, também, constituir o modo de se transformar a “dor” no pro-
cesso necessário de crescimento, se bem que, logicamente, o “Eu” culposo
poderá achar que este é um caminho desnecessário, inútil. Poderá abreviá-lo,
e pode, tal-qualmente, criar novel moral dominante, que, é, a bem ver, outro
modo de abreviar o sofrimento. Aqui, atemos um “mal” que se torna útil a
novel domínio, como se fosse outra forma de “dores de crescimento”, a
resultante pode implicar o domínio polar de um “mal” que arrisca a Trans-
cendência, sendo esta como a Liberdade polar em vida, que se mune de uma
(in)determinidade e avança, compensatoriamente, para outra (in)determi-
nidade. O conjunto das compensações recria o desenho vitalista de um Abso-
luto que pretende conceber-se entre determinadas balizas demiúrgicas, com
estas a aterem, precisamente, um centro de domínio e uma periferia de cul-
pabilidade, e a periferia é o polarizar maleficente, futuramente beneficente.
Claro está que todo o “Ego” se sente com “direito a” e ele possui-o, mas,
obviamente, há, sempre, um Domínio que o castiga e desmotiva, gerando,
ainda mais, culpa, e alimentando um círculo vicioso que o alicerça num “mal”
cada vez maior, num pecado cada vez mais vero, num trajecto que parece
cada vez mais “patológico” e “sensível”, em que tudo se empreende como
“inimigo”. O círculo vicioso empurra este sujeito para um nível cada vez
mais periférico e minoritário, até que ele se transforme numa coisa irrelevan-
te, podendo, claro, acontecer que, um dia, uma mudança qualquer na Reali-
dade leve o Sistema para a sua proximidade, dum modo tal que leva a reco-

498
O FisióSOFO

nhecer a benignidade do sujeito, a um ponto tal que pode, até, estender esse
“bem” a um passado que, supostamente, o injustiçou. Mas não é o passado
que se enganou, é o presente que modifica o passado a seu jeito. O passado
andava enganado, porque também foi presente de outro passado. E o presen-
te tal-qualmente enganado/enganoso projecta, desde já, um futuro igualmen-
te enganado, com novas vítimas, que são os da antiga Estrutura e sem grande
segurança ou flexibilidade “dual”, que criarão, eventualmente, outras víti-
mas, mas apenas se replicarem o seu padrão num mundo que, entrementes,
não o reproduz, o que faz, portanto, com que surja uma nova geração pato-
logizada. Esta, entretanto, pode ser evitada se a geração for segura da sua
estrutura ou cambiar esta com a Realidade, porquanto, abraçada. Os insegu-
ros são, sobretudo, os que são abalados na “estrutura base”.

O sofrimento pode, portanto, ser encarado como uma via para a Razão
moral ou para edificar outra moral, em ambos os casos o terapeuta pode
intervir, restando os outros em que o sofrimento parecerá inútil, e é aqui que
o suicídio cria o seu ascendente. No entanto, na medida em que afecta a
Razão moral, poderá implicar-se nos que a esta já não são completamente
devedores, pode, portanto, o suicídio de alguém ser fonte de crescimento
para outrem, no sentido de outra moral, mas, se se pretende a pura liberdade
egóica, corre-se o risco de preterir a vida em favor dum mal escolhido por si
mesmo, aliás, pela preguiça de viver. Muitas vezes, ser favorável à “morte
assistida” ou ao suicídio é, precisamente, uma resultante do sofrimento aten-
dido como inútil, até porque é impossível saber se ele vai levar a algum
Objecto pragmático (e parece não fazer sentido sofrer apenas para aprender a
morrer), mas não deixa de haver, aqui, uma certa egomania, até porque se
esquecem todos os outros que poderiam sofrer com o processo; no entanto,
como já dissemos, esta liberdade egóica não pode deixar de fazer parte do
sistema de “tolerância”, compaixão, da Razão, nem que seja por mero intuito
“terapêutico”. A compaixão implica, sempre, alguma “queda”, algum sub-
-nivelamento moral, doutra maneira ela não seria precisa para nada, mas,
quando ela é imposta, poderá ter o efeito oposto; mesmo que essa imposição
resultasse para algum sujeito (porque o produto poderia compensar o pro-
cesso), é muito provável que outros indivíduos acabassem sendo chocados,
patologizados, na sua subjectividade.

499
Luís Coelho

Eu não sou o indivíduo que está a escrever esta frase. Muito menos
quando acabar de a escrever. E tu não és quem a leu, nem o que barafusta
com o facto.

O meu comunismo é melhor do que o teu. O meu é um segredo: só to


conto depois de morreres.

A Razão moral é uma regra “recomendável”, afecta ao Grupo, que con-


tém, precisamente, os excessos da Razão idiossincrática. Esta é a Unidade
terapeuta-paciente, como o Ser, e ela transpõe, constantemente, a moral
grupal e dual, mas apenas se representa a si-mesma, como todas as outras
razões idiossincráticas, onde o excesso subjectivo afasta da Realidade nomi-
nal, é a Realidade íntima, mas irrelevante para muitos outros. Assumi-la
implica, necessariamente, um quantum de in-sofrimento, mas mesmo este é
obrigatoriamente idiossincrático e a Regra vem admoestar, muitas vezes, a
sua relevância, a sua necessidade. O quantum empírico, estatístico, também
não reflecte a Realidade, aliás, ele não se implica na esfera íntima, não fala
por ninguém, é, somente, um reflexo da Razão dominante, positivo e socio-
látrico, em que a Cognição ascende o palco somático e físico que seria reque-
rido puramente à “Physis” ela mesma, ao Númeno. O último atém a Razão
moral e dominante enquanto mediador “carnal”, mas esta pode afectar-se
com a própria realidade “positiva”, que, aliás, poderá ser a esfera pós-
-moderna, práxica, espiritual, última palavra em termos de Domínio psico-
-físico, prestes a sofrer a agrura da transformação empírica. O conjunto Razão
idiossincrática + Razão dominante + Razão moral constitui uma possibilida-
de de aproximação à Realidade psico-física, Verdade nominal que não pode,
genuinamente, ser alcançada, que o mesmo seria finalizar todo o processo de
transformação, abreviando, completamente, o sofrimento, como o dilema
afecto à necessidade deste para a assunção dum plano maior, onde a Cons-
ciência se estatui numa subtilidade, sublimidade, capaz de complexificar o
quantum global de Insofrimento, transtornando o Sistema, mas dando-lhe,
ainda assim, um outro significado.

500
O FisióSOFO

A Filosofia é isto mesmo: uma viagem de “eterno retorno”, circular,


perpetuando as perspectivas do “mesmo”. Se considerarmos que este é o
Númeno, todas as outras “imediaticidades” são, meramente, fenomenais. Há
a imediaticidade idiossincrática, que pode ser o “Ser”, ou a Unidade Sujeito-
-Objecto, fenómeno puro, que, ainda assim, não é a Verdade crua da Reali-
dade “ela mesma”. Há, também, a imediaticidade sociolátrica, uma Unidade
psicossocial colectiva, que se atém como “resultante” pragmática. Esta afecta
a Razão idiossincrática, o Ser, e vice-versa. O Ser suspende a Deôntica, estatui
a Ética, e, logo a seguir, reconstitui o “ethos”, expressando novel Razão moral.

O Objecto terapêutico, espiritual, é a desocultação egóica do Ser, o que


implica retirar a camada superconsciente do que jaz na profundidade, na
imediaticidade, no Corpo/Espírito inconsciente, nominal. Neste estado de
Espírito, não morrem, no entanto, as transformações exteriores, aliás, o esforço
de “estruturação” pode implicar a mudança da Realidade, a qual poderá espar-
gir-se defensivamente, convidando à recriação da camada superconsciente no
Ser. Transformações várias não podem ser abreviadas, só quando o “Todo” se
finalizar pode o Ser pleno, nominal, colectivo, ser desvelado. O cômputo social
é, apesar de tudo, superficial, superegóico, ele recria, constantemente, o “ethos”,
no seio do qual o objecto placebetário jaz enquanto mote oportunista, porque
satisfaz compensatoriamente o “Eu”, que faz por cobrar o que pode à Realida-
de.

A ilusão de que a liberdade moral é alcançável é a condição de exercício


dessa mesma liberdade. E esta é, precisamente, a inCondição plena, onde,
obviamente, a indeterminação permite a moral nominal. Aqui tudo parece
categórico, até que uma Determinidade vem colocar a hipótese de traição à
moralidade, processo quase sempre justificado pela Determinação “ela mes-
ma”, que, entretanto, se coloca como nova moral. Os “outros”, que são, por-
ventura, demonizados por este processo, farão relevar a sua moral “perfeita”,
bem como a liberdade plena de a prosseguir, mas eles já estão, também, a
obedecer a uma determinação, a uma ameaça “empírica”. É, constantemente,

501
Luís Coelho

assim que as coisas procedem, com a intrínseca ilusão que a própria Deter-
minação coloca como condição absoluta, e é igualmente essa que permite
conceptualizar a grande psicose do Sistema, a qual inclui um múltiplo feixe
de neuroticidades morais. Quando a “patologia” é demasiado grande, a tole-
rância, a leniência, reage de modo a permitir essa neuroticidade quase psicó-
tica, como quem a coloca de lado; é preciso que a determinidade não se
exclua plenamente do Sistema para que este a atenha enquanto ameaça.
Aquilo que se afasta muito psicotiza ou releva de outra moral que, entretan-
to, cai na pretensão de recrutar a sua própria razão moral. Ater uma morali-
dade absoluta é a última defesa do Homem enquanto animal superior, com
ela se pretende universalizar aquilo que, precisamente por ser Universal,
possui pouca expressividade determinística. É a “diferença” que encena a
mudança, é, também, ela que desafia plenamente uma moral que é projecta-
da para o Superior, para um terreno de Liberdade perfeita, que, não obstante,
precisa da razão carnal para se fazer sentir como “coisa” moral. Os adeptos
desta razão, desta liberdade, dirão que o materialismo não os compreende,
mas essa “liberdade” de sentimento é constantemente o que personifica a
Moral atida como suprema e categórica. Quanto à dúvida, é esta que, de
algum modo, perfaz a verdadeira compleição filosófica, porque é ela que
produz a queda da razão perfeita, daquela coisa que já é quase Sabedoria.
Nenhum sábio duvida da sua moral, se o faz, a Sabedoria torna-se Filosofia,
capaz de produzir a resposta perfeita, que é transcorrer todo o eixo de mora-
lidades na psicose do absurdo. Caminho perfeito não existe, e virá quem
apregoe um outro nível ou escala de abstracção “espiritual”, mas, mesmo
aqui, só poderemos contabilizar outras razões carnais que se colocam dialec-
ticamente entre a sua inDeterminidade securizadora e a ameaça neuroticiza-
dora. E a ameaça é permitida no domínio da tolerância da própria Razão
primeva, bem como numa razão moral que quer prevenir a sua possibilidade
diacrónica. A tolerância é, assim, a condição de serenar a inDeterminidade,
bem como a de lhe esculpir a transformação numa outra determinidade,
como num outro eixo de Realidade “psicótica”.

O meu lugar no mundo é uma máquina do tempo.

502
O FisióSOFO

A Razão moral é “práxica”, “pragmática”, na medida em que se prescre-


ve enquanto mote de inDeterminidade, mas atingi-la plenamente, bem como
o seu fundo de Imediaticidade Espiritual, implica, necessariamente, uma
vivência bem mais do que prescritiva. Esta vivência é o “pathos”, no fim do
qual obtemos a Determinidade capaz de dispensar as “razões”. Quanto mais
nos aproximamos da Razão moral, menos razão temos para lhe achegar, e
menos necessitamos da Razão como um todo. A Razão prescritiva é a neces-
sidade de um Sistema minimamente homogéneo, maioritário, mas é obriga-
tório transcender a prescrição se queremos, de facto, operar racionalmente.
Que o mesmo é dizer que é obrigatório transcender a dualidade moral, de
forma a abraçar um melhor modo de Imediaticidade “libidinal”, a partir da
qual a dúvida converge no renascimento de uma razão moral dual, prestes a
reiniciar a jornada neurótica, que é tão mais neurótica quanto se afasta do
Princípio, podendo, quiçá, travestir-se de outros Princípios, mais aparentes,
que mimetizam a relação com a Unidade moral. Qualquer “compensação” é
uma ameaça de estabilização racional/moral, para o próprio pode não consti-
tuir mero Princípio aparente, para ele será, talvez, a melhor forma de apro-
ximação à Razão moral, e isto inclui o intento sublimador, que faz por con-
quistar Realidade, de modo, mais uma vez, a diminuir a “tensão”, a dor, na
aproximação à Razão primeva. Sempre que um qualquer Princípio se con-
quista ou sublima, produz-se o “prazer”, que mais não é do que o dirimir da
dor; esta recompensa tende para o seu intrínseco esgotamento, a Razão é
serena e produz o Ócio, se ainda há alguma dualidade pode ser que o Sujeito
aja de modo a reiniciar o processo, que, mais uma vez, evolui para a dirimição
da dor. Quanto mais “livre” o Ser se tornar menor será o desejo, a recompensa
é diluída pela “Graça” (Malebranche) e o indivíduo transcende (em vida). Na
medida em que é um processo temporal, diríamos que a recompensa é afecta
ao “Adversário”, mecanismo que recai, de novo, na necessidade de buscar a
Razão, diz o relativismo que “tudo vale” na medida da apreensão i-racional,
não deixando, todavia, de permanecer uma “Physis”, uma Razão Universal,
bem como uma Razão dominante, variáveis expressivas e que podem ter
“peso” na equação do Insofrimento. Mas uma razão diaspórica, ao conquistar
Realidade, pode ater alguns aspectos que lhe conferem certa inDeterminidade.
Claro está que a maior diáspora, a maior Liberdade, seria a da Razão irraciona-
lizar-se por completo na “Physis”, na Imediaticidade, que é o advento da psi-
cose, como de tudo o que transcende empiricamente o Sistema. Sistemas dife-
rentes são Princípios neuroticizadores dissemelhantes, cada um tenderá para o

503
Luís Coelho

seu intrínseco esgotamento, que é facilitado por uma Regra, entretanto torna-
da Dogma. É, também, esta Razão moral que obvia todas as outras que a desa-
fiam. É função da sua tolerância, que reside no intento, na possibilidade, de
qualquer residente na Razão primeva. Claro está que o Dogma apresenta a
prescrição como medida de um Destino, mas é função da liberdade desafiá-lo
para que o mesmo seja alcançado, mesmo que pela medida de outra razão,
passível de ser prazenteira. Se esta razão é ou não ilusória, é muitas vezes difícil
dizê-lo. Ela age como “real” e profunda, mas pode ser, somente, o caminho
para uma coisa mais “real” ainda. Se o tempo dirá a verdade, tal também não
pode ser garantido, como se o sofrimento compensa ou não, abreviar o cami-
nho pelo suicídio é um direito, mas igualmente ilusório porque projecta a
Consciência viva para um estado que já não a inclui. Querer fazer fenecer o
sofrimento em vida pode ser, tal-qualmente, ilusório, porque tal coisa implica
fenecer, igualmente, a zona de prazer. Aliás, se o indivíduo supostamente
“livre” cria saudades do visado prazer é porque, afinal de contas, não era livre,
ainda tem necessidade de se dualizar para que possa visar, mais uma vez, a
Unidade i-racional, no seio da qual já não almejará a transcendência factual,
que, de resto, irracionalizaria, de todo, o Ser, esgotando todas as morais.

Ora, o Imperativo Categórico é a inDeterminidade de cada um, mas, para


outros, é a plena inDeterminidade comum. Quem se afasta desta produz a
tensão que poderá ser dirimida com um Princípio mais ou menos compensa-
tório, e, aqui, pouco interessa se é ou não um Imperativo, é o seu, e, no entan-
to, pode ser que ele se venha a compensar com um outro, tornando o anterior
“hipotético”, mas tudo isto são classificações, questões de linguagem, qualquer
Princípio age como possibilidade categórica, poderá até acontecer que ele se
assemelhe à Razão dominante buscada efusivamente pelo Eu inseguro, no jogo
da instabilidade recompensatória. Onde se coloca o Domínio, atemos o Prin-
cípio categórico, mas o primeiro pode mudar, o que faz do segundo “hipotéti-
co”. A instabilidade é a função do filósofo, que age para se compensar. Quando
o faz, atinge, simultaneamente, a sua profundidade e a sua superficialidade
dominante. A viagem cessa e a estabilidade cessa o pensamento. Se, entretanto,
quisermos ater a Razão moral como “constante”, poderemos colocar na zona
da instabilidade o cômputo epistémico, o qual procurará sua certeza na moral.

504
O FisióSOFO

A segurança egóica é um modo de estabilizar o movimento, e este é a


certeza do filósofo, um “dual” por natureza, que se move na zona do “mal”,
buscando o “mal” absoluto, que é a Inconsciência nadificadora. Quando um
indivíduo se encontra é muito provável que tal profundidade se exerça na
superficialidade do Domínio, onde a Razão é natural e já não precisa de ser
prescrita ao próprio. A neurose plena é haver várias razões para desafiar a
Razão dominante, esta é uma forma de irracionalidade. O Imperativo é da
natureza da ablução do Irracional, mas, para o espiritualista, é irracional o
caminho que mimetiza o Imperativo. Este seria do estado da “matéria” e o
seu prazer seria ilusório, maquiavélico. Para a “materialidade”, não importa a
origem da InDeterminidade, ela é, sempre, da natureza da compensação, o
Sentimento é, obviamente, imensurável, mas, precisamente por isso, não
pode ser “reduzido” ou categorizado moralmente.

Resolver a questão do Livre-arbítrio sempre foi caso de vida ou de mor-


te. Estaria morto por vos resolvê-la se não vos matasse ao fazê-lo. Ficamos,
assim, condenados a não condenar.

Não podemos dar-nos ao luxo de afirmarmos que o livre-arbítrio não


existe. Excepto quando já não quisermos fazê-lo. Precisamente porque a
Liberdade é um luxo a que não podemos aspirar.

O indivíduo que quer ser livre não se verá livre de “si mesmo” enquanto
o desejar. É preciso que acredite ser livre e se mova de modo a confirmá-lo
quando já não houver Ego para o fazer. Se deseja matar-se não deseja, muitas
vezes, matar o Ego, mas, somente, o sofrimento. No acto de morrer talvez
possa ver como se trai a si mesmo, morrendo de vez e perdendo de vista a
Felicidade que pensava vir a encontrar.
Não é possível negar, de todo, o acto de se ser livre, porque o próprio
“viver” pede liberdade no acto de a negar. E enquanto o fizer, livre não será.
Ninguém é tão livre que se livre de desejar a plena Liberdade. Quando
lha prometemos, iludimo-lo, porque o que lhe é prometido não condiz com

505
Luís Coelho

o que ele constrói dentro de si. Se o desejo se torna Realidade, talvez possa,
ainda, viver o momento em que se arrepende da escolha, por ter, de facto,
escolhido abandonar-se, abandonar o Ego, a “relação com”, a “consciência
de”. O que obtém mata a auto-consciência, pelo que o “matar-se” não salva
ninguém, senão de “si mesmo”.
Quando convencemos as pessoas de que possuem liberdade moral, que-
remos, em última análise, criar um certo isomorfismo (moral), certa identi-
dade. O objecto é poupar moralmente o “outro”. Mas isto faz-se à custa de
apagar as fronteiras do Ego dum modo inicialmente “terapêutico”, mas que
pode levar à plena morte do Ego. O objecto do isomorfismo moral é a morte,
tão-só. Porque a Impassibilidade já constitui uma aproximação a este estado.
Não acreditar na moral de abnegação aumenta a probabilidade de agirmos
egoicamente, aqui o sofrimento acresce-se para todos, mas aumenta também
a probabilidade de recompensa afecta ao retorno à moral. Retorno que está
implícito no próprio liberalismo, a “morte” pede o regresso à Razão.
A liberdade no sentido nietzschiano também pode pedir o Espírito,
mas, aqui, não havendo moral abnegadora, é mais difícil respeitar o “outro”
e que este respeite o “Eu”, assim, a ameaça torna-se regra, há mais movimen-
to, mais prazer “material” e diaspórico, mais distância à morte, e, ao mesmo
tempo, maior probabilidade de morte. O único modo de adiar a morte está
em aproximarmo-nos, suficientemente, dela. O moralista, muitas vezes, pres-
creve a moral, para que o “outro” morra sem se aperceber, e ele mesmo não
lhe segue as pisadas, conhecendo o paradoxo e manipulando-o a seu gosto.
Mas o Sistema acabará por se virar contra ele.

Prometer a “liberdade” é permiti-la enquanto caminho, isto facilita os


partidários da Razão moral, bem como outros que são “duais”. Coagir
moralmente é uma das formas preferenciais de gerar a fuga do isomorfismo
moral, o “outro” avança empiricamente e poderá esboçar e sublimar a sua
própria moral dominante, que, às tantas, se candidata a funcionar como
Imperativo Categórico. O “eleitor” principal é a própria Realidade. O Impe-
rativo tem de conter “estabilidade”, doutro modo, nunca passará de “hipóte-
se”. Mas o Imperativo também tem de permitir suficiente aglutinação, só
assim poderá dominar, e o Domínio é sempre para proteger os Egos do
movimento brusco e ameaçador. A Razão moral convencional possui várias
razões de sucesso, a maioridade utilitária é uma delas, por questões de Cultu-

506
O FisióSOFO

ra, mas também por questões da ordem da defesa dessa Cultura. Claro está
que poderíamos burilar outras possibilidades racionais e principescas, que
teriam de ser livres, pelo menos na intenção, porque o produto é de morrer,
e se o sucesso é (quase) absoluto, é provável que a dissidência surja para fazer
mover o Sistema numa luta que sabe estar perdida, dada a sua condição
minoritária. O “menor” sobrevive se o Domus for suficientemente tolerante,
que é o mesmo que dizer que o “menor” é permitido, e, por isso mesmo, não
sublima com a mesma força, o mesmo grau de ameaça empírica.

A uma Estrutura contrapõe-se um “movimento” neurótico, que é, de


alguma forma, o projectar de uma razão entretanto amaldiçoada. Esta razão
pode ser aquela mesma Estrutura polarizando-se. Portanto, atemos o conflito
“racional”, em que colocamos, dum modo meramente imagético, uma Razão
enquanto Domínio in-consciente, proximal ao Corpo/Espírito, e outra razão
como a própria dualidade “materialista”. O Domínio é “natural”, a neurose é
duvidar dessa Natureza, e a reacção é no sentido de recuperar o Domínio,
seja por sublimação polar, seja por compensação dual, quando o Sujeito neu-
roticizado abraça o Domínio maior. A dúvida é a representação da própria
Razão, o Domínio é o Irracional tomando conta do Sujeito, é a Natureza
inDeterminada, em que o movimento é avantajado e estanca. Quando o
Domínio duvida de si poderá querer responsabilizar um outro, que, por sua
vez, duvidando, racionaliza-se, e, aqui, pode ser responsabilizado, mas isto é
o que o outro Domínio diz, que é o mesmo que estar a responsabilizar-se,
exigindo moral. Mas não há responsabilização possível para o Domínio natu-
ral, que se sente no “Si”, na abstracção, duvidando, por conseguinte, do
outro. A maior dúvida remete para a compensação “dual”, mas a acção visa,
sempre, matar essa zona de tensão. A força de um Domínio é, naturalmente,
uma abstracção, mas, para o outro, um “quantum” empírico, que o mesmo é
dizer que só o “número” vale, mas isto é o materialismo a falar, o que não
invalida a visão quase “sobrenatural” de uma grandeza “espiritualista”. Duvi-
dar dela é, igualmente, querer abraçar a dualidade materialista, fazendo “des-
cer” tudo ao “quantum” “normal” de um Sistema, de um plano unívoco, que
se reduz, constantemente, ao jogo perpétuo das dualidades. A dualidade cor-
po-mente é disso exemplo, mesmo esta reduz-se “dualmente” em perpetui-
dade a novas dualidades, soçobrando, quiçá, a dualidade da “Physis”, que
coloca a Razão em oposição à Natureza ruidosa. Também na “relação” é o

507
Luís Coelho

“outro” que representa o “ruído”, o atrito, e se este existe é porque há, já,
avanço do “Eu” do Estado natural de Ser indómito para o estado de “Eu”
neuroticizado, dualizado pelas razões, responsabilizado a escolher novel
estado de Natureza indómita. A dualidade da “Physis” é representada pela
dualidade da própria Razão, que se expressa no movimento dubitador, que
um outro pretende responsabilizar, e que se perde no Domínio natural e,
portanto, irresponsável, in-consciente. A aproximação ao Domínio irrespon-
sabiliza o “Eu” no “Si” e em relação ao “outro”, o seu “movimento” é o seu
Superego tomando as rédeas, pelo que (se) responsabiliza. A Culpa é expres-
são de uma dualidade compensatória, a “escolha” dum Domínio é a Descul-
pabilização, o processo é atido no sentido de irracionalizar, tornar Incons-
ciente, o que, entretanto, já não é atido enquanto escolha, mas como coisa
natural, Justa, Domínio seguro Irresponsável. É como se o movimento “racio-
nal” evoluísse no sentido de uma Vontade in-consciente, pelo que o grande
Imperativo é Categórico na medida em que se torna Vontade, e a dúvida é,
sempre, “hipotética”, carnal, responsabilizadora, mas, apenas, se existe dúvi-
da, porque a segurança espelha o Domínio, e a dúvida maior é dualização
indómita, processo sempre responsabilizador, mas que a Vontade dilacera
nos termos, materialísticos, da Inconsciência. Bem vemos que os lugares
operados no Sistema se correspondem, bem como a imagem de uma duali-
dade racional, que é a da própria “Physis”, e que existe dentro de nós, na
relação que o Superego estabelece com a in-consciência. Claro está que apli-
camos uma maior responsabilização segundo a dúvida iniciada por uma
Estrutura “maior”, onde a grandeza é tornada, materialisticamente, “núme-
ro”, e onde ela se espelha dualmente no movimento do “menor” aplacando a
Culpa no abraçar de um Domínio natural.

Saber se o Domínio se presta ao “número” ou a uma grandeza abstracta


é questão de metafísica, mas o que interessa perceber é que há um “quan-
tum” natural ao Eu que é representado pelo Ser irresponsável, inConsciente,
inDeterminado, quando ele responsabiliza ou é responsabilizado, o movi-
mento de “dúvida” é a própria Consciência, Razão, tomando forma, duali-
zando-se para se compensar no Domínio, que é “manso”, e tão manso quan-
to a tolerância de uma nova polarização permite. O Domínio é a Vontade, a
Razão é responsabilidade projectada, o movimento quer desfazê-la, recupe-
rando o Domínio. Razão ideal e Razão material são, um pouco, como duali-

508
O FisióSOFO

dade consciente e o próprio movimento. O Espírito é a Estrutura, como a sua


razão moral e o movimento de apropriação do Domínio.

Perante a autenticidade da Razão dominante, podemos chegar a duvi-


dar da nossa Razão, que o mesmo é dizer que fomos sacudidos pela Culpa,
mas pode a nossa Razão ser suprema, e bem que a Razão moral o é, em
ambiente de “mater”, mas isso é o que ela própria diz, e talvez a pura Univer-
salidade. Mas é normal que duvide de si face à Razão dominante, mas tam-
bém ela o é, ou pelo menos “torna-se”, recuperando a envergadura que a
caracteriza e transtorna Domínio. A sua dúvida é a sua consciência culposa, é
ela que esculpe o movimento de apropriação de novel Domínio.

Assim, o Espírito Imediato é a própria Vontade, o Domínio Inconscien-


te, o que o adversa é a intrínseca Razão moral, que é da natureza da dualida-
de, da liberdade responsável, mas, claro, a liberdade maior é recuperar a
Irresponsabilidade indómita, a Vontade maior, que sempre concebe como a
sua, materializando tudo o resto. É, aliás, o materialismo que projecta a Von-
tade autêntica e indual sobre o Domínio da Razão dual, mas é, igualmente,
da natureza da matéria propor-se à dualização, ao desafio da Estrutura
dominante.

A “relação” moral dualizadora é materialidade face ao Espírito, face,


portanto, à matéria indual, indómita, que, no convívio com outras razões,
dualiza-se, mais uma vez. A Razão “espiritual” responsabiliza outrem como
quem conquista Realidade. O “outro” pode converter-se a essa Razão, mas
pode, também, compensar com outra, ou sublimar-se, a resultante é novel
“Pater”, prestes a perder-se, a materializar-se, a multiplicar-se, em dúvida,
num conjunto de possibilidades duais. O processo é, sempre, igual, a maiori-
dade decide o Domínio Inconsciente, o pensamento resiste-lhe, fazendo con-
cessões a outros domínios.

509
Luís Coelho

O Equilíbrio inConsciente do Ego é o equilíbrio polar do Ser, que apro-


xima o Superego do Id, e se estende dualmente na Consciência moral, a qual
despolariza a relação anterior, projectando o Id/Superego exterior que lhe
trará o desafio. A Razão moral pretende, sempre, defender o Imediato, ao
mesmo tempo que o temporaliza, dualiza, ao antecipar um outro Real, que
pretende controlar, compensar. O outro possui, igualmente, o seu Incons-
ciente protectivo, a sua própria capacidade de defesa racional, que consiste,
mais uma vez, em conquistar a Realidade, aproximando-a do Id, assumindo,
plenamente, a Imediaticidade amoral, onde as dualidades racionais se colo-
cam numa relação de maior distância e temporalidade, afecta a uma maior
estabilidade empírica.

A razão moral corresponde a uma dualidade exterior que se coloca


internamente, egoicamente, no Superego, e na relação que este estabelece
com o Inconsciente. O ponto de partida é polar e o avanço ainda mais pola-
rizador, é a Razão moral externa que força a interna a reagir-lhe, dum modo
que não deve superar a primeira, com o objecto de alcançar, novamente, a
Inconsciência. A Razão moral externa respeita ao Colectivo e age de modo a
evitar o atrito deste. A Razão moral interna é egóica, satisfaz-se, contudo, na
limitação exógena, que já está contida no seu Princípio, atingir o Objecto
inconsciente pode, ainda assim, modificar a matriz da Razão moral, de
ambas as razões morais. Cada “razão” expele seu movimento liberal de real-
cance da primeira, ela é a consciência transcorrendo-se dualmente e, em
simultâneo, de forma despolarizadora. O Objecto in-consciente principia e
finaliza o processo. Primeiro há um afastamento, mas se este é excessivo, o
indivíduo perde a “razão” dual, moral, a relação de equilíbrio do inconscien-
te com a Superconsciência, a vivência subjectiva e imediata possui as suas
balizas, se as superar em demasiado há uma polarização excessiva, se as coisas
ocorrerem dentro de determinado limite, há a possibilidade de novel despo-
larização. Dizemos que o indivíduo é livre moralmente quando se move den-
tro dos limites morais estabelecidos, e que se torna perfeitamente Livre ao se
relançar no Objecto, que já não é completamente igual ao inicial; do mesmo
modo, a liberdade do Sistema precisa da Estrutura que age “moralmente” no
sentido da sua preservação, mesmo que ela mude por efeito de um Sujeito
não há-de ser muito diferente do que já era. A relação Ego vs. Colectivo é o
binómio inConsciente vs. Superconsciência, em cada um reside uma razão

510
O FisióSOFO

natural, necessariamente dual, que, afectado pelo outro, avança defensivamen-


te, estruturando-se, compensando-se, sublimando-se, conquistando realidade,
o que mais se defende é mais dual, talvez porque, para ele, a ameaça é mais
vera, a sua liberdade fenoménica reside no intrínseco movimento de reapro-
priação do Ser indómito, mas, sobretudo, no produto de aproximação Incons-
ciente, irresponsável, do Imediato, que, em vida, implica uma aproximação
polar, um serenar do Ego pela adjunção do Colectivo interno, ou seja, pelo
irracionalizar da dualidade racional, moral, que cria a Vontade do Domus. A
“racionalidade libidinal” só se torna moral, porque o seu pólo Colectivo se
opõe a ela, desferindo o golpe do movimento de reconquista do Ser.

Bem vemos que o dualismo «Espírito/mente vs. corpo» só podia ser


consequente à Razão, porque é seu objecto dualizar, tarefa da mente, e, por
isso mesmo, a Razão se coloca, comummente, do lado da “mente”, assestan-
do o corpo no lugar dum mero “substrato”, mas o Objecto máximo é o Espí-
rito enquanto Uno corpo-mente, que é o Imediato contemporâneo do pró-
prio dualismo, porque ele reside na mente, na sua abstracção, no Espírito
“consciente”, mas é passível de ser mensurado na medida Una da matéria
completa, total, que inclui todas as mentes. A Razão é o movimento dual que
remete para a sua própria supressão, ela regra a sua desaparição, para isso
dualiza o caminho empírico, como uma mente moral e responsável, tecendo-
-se face ao “Outro”.

Que a Razão tenha obviado o Uno enquanto “Espírito”, Consciência,


não é de espantar, faz parte da sua tarefa “mental”, abstracta, daí que o dua-
lismo tenha predominado como arquétipo do Espiritualismo, e do raciona-
lismo, o Sujeito mental dualiza por natureza, ficando o monismo a represen-
tar, bastas vezes, o materialismo impensante, e é ele que reforça a ideia de
que o Imediato é o Corpo, mas, obviamente, também este é uma representa-
ção da mente, imagem unitária, monista, que é permanente, o seu dualismo
racional e moral é, tão-só, um dicotomizar necessário à perseveração in-
-consciente. Poderíamos, até, dizer que o dualismo corpo-mente é uma defe-
sa fundamental do Espírito, do Corpo, para que este subsista, o monismo é a
sua consequência inexpugnável.

511
Luís Coelho

A dualidade moral é relacional, ela impõe uma razão moral perante um


“Outro”, sem este é impossível conceber o próprio dualismo mente-corpo,
ou Sujeito-Objecto. A mente é o Espírito, o “Eu”, logo dualizando-se para
poder prever a alteridade empírica. O pólo do Corpo é a própria Unidade
colocando-se à vista da Razão, a razão pessoal é Unidade para um “outro”,
que, perante o “Eu” se dualiza também. O Espírito é extinguir a dualidade no
Inconsciente, Espírito ou Corpo, tudo depende da perspectiva, mas a dúvida
é sempre colocada pela Razão, que não pode subsistir sem o seu conteúdo
“neurótico”, dual, que é, igualmente, condição da sua superação. O dualismo
racional é o processo nominal do Espírito, de uma abstracção que “dói”
empiricamente num destino “exterior”. Várias razões, várias abstracções e/ou
espíritos são modos diferenciais de dualização moral, que possuem no avan-
ço “livre” o trabalho necessário de regresso à inDeterminidade ética, onde a
Substância toma forma. Mas a Substância sempre lá esteve, a dualidade racio-
nal é um modo de ver a coisa, modo esse já por si dualizador, como dualiza
tentar compreender a Substância. O movimento libertador opõe-se à própria
Razão, despolarizando mente e corpo, Sujeito e Objecto, que é o que aconte-
ce quando a compensação suspende a dúvida, e é o que acontece sempre no
Percepto que nunca deixou de ser “Physis”, mas que, às tantas, requer a Razão
para poder produzir o “auto-conhecimento”, a “consciência de”, mecanismo
materializador, que exige a dualidade racional capaz de polarizar, novamen-
te, as facetas do processo fenomenológico. Cada instante, cada Imediato, é o
momento Uno, não importa se é “espírito” ou “matéria”, mas pensá-lo é a
Razão dualizando, temporalizando, numa linha fenoménica de unidades “mate-
riais”. Mas pensar é, tal-qualmente, esgotar, querer “reduzir” fenomenologi-
camente o “Eu” num único instante impensado e impensante.

O acto imoral de um indivíduo pode ser atido pelo mesmo como perfei-
tamente legítimo, como parte da sua própria Indeterminidade ética, o mora-
lizador é quem se afasta desta, quem se coloca na zona de dor, quem pede
responsabilização perante a sua própria Culpa. É o moralizador que se duali-
za. Quando o moral sente que é obrigado a fazer algo que o trai moralmente,
este também se dualiza, também se afasta da sua indeterminidade. Claro está
que não existe pura Indeterminidade, sempre reagimos racionalmente a algo

512
O FisióSOFO

exterior, e sujeitamos um objecto à nossa razão reactiva, dualizadora, apli-


cando àquele o nosso movimento moral que, ainda assim, tende para o esgo-
tamento racional, para a aproximação despolarizadora do território empíri-
co, que é sempre representado pelo Todo Objectal em que nos projectamos.

Ora, a Razão existe, apenas, para poder despolarizar-se e repolarizar-se,


para se tornar irracional - na medida em que da sua indeterminidade se afas-
ta, percorrendo a zona de dor - e para regressar a si mesma de modo a trans-
cender-se para o Irracional mais puro, onde as razões permanecem em latên-
cia à espera que o fluxo de consciência “dual”, relacional, as arranque do
Paraíso inConsciente. A razão mais poderosa tem, também, o maior poder
para se perder, na defesa perante outra razão, ou na Irracionalidade enquan-
to imediaticidade fenoménica. Também possui maior poder sobre o Sistema,
criando múltiplas possibilidades de transformação do mesmo, operada pela
transmigração de subjectividades dolosas.

A dualidade racional «Espírito vs. corpo» é o correlato das compensa-


ções mais paradigmáticas: o avanço “material”, do corpo, o movimento neu-
roticizador, a pedir o “Objecto” necessariamente dual, e não dual porque
Objectal, e o avanço “espiritual”, evocando a vertente holística, psicossocial,
que é um outro modo de Objectificação. Mas o último, por ser “subjectivo”,
espiritual, presta-se a excessos difíceis de “medir”, trata-se do conjunto de
abstracções irredutíveis que, logo, pedem a elementarização material, e esta é
outra forma de objectivar o “espírito”, mas estes pequenos corpos são com-
pensações, como as do espírito, que redundam na dança das transformações,
e cada um parece implicar um Sujeito neurótico, portanto, a perder a sua
inDeterminidade, e um Objecto empírico que se pretende conquistar, um
“Outro”, que é puro Sujeito e aparenta ser Objecto, “Todo”, mas também
este se perde para o “mal” materializador, para o intento objectificador, que
quer compensar de qualquer modo, desde que possa dirimir o desconforto
“egálgico”, que tudo é, ainda assim, (des)compensação egóica, o “Ser” é a
Unidade que se perde procurando-se, a cada instante lá no fundo, onde a
pura inDeterminidade despende do tempo, o “Ser” é também o conjunto dos
“seres”, das transformações afectas ao Verbo primevo, onde tudo jaz em

513
Luís Coelho

latência, e o “Ser” é, apenas, o momento primeiro, tudo o resto é “resposta”


polarizadora, determinada e determinadora, a Razão é a sua voz dual mais
modelar, mas outras razões são possíveis para formular novos motes trans-
mutativos, a linha do tempo imprime este “Ser” transcorrendo, na relação,
proveniente do Verbo, ou da Liberdade, com o exterior, com a totalidade
corpórea e imediata, que é o pano de fundo onde vogam as liberdades, falsas
liberdades, mas se fossem verdadeiras, limitar-nos-íamos a aduzi-las no seu
palco equilibrante, no aspeito indeterminado, esta é Liberdade mesmo assim,
Imperativo Categórico a absorver o conjunto devasso de hipóteses psicofísi-
cas, razões de uma esperança, que é haver inDeterminidade absoluta, como
se isto não esgotasse a “consciência de”, o Ego, a própria Vontade, que,
entretanto, teria matado a Representação, a Vontade que é “Physis”, Verdade
plena, parindo o Verbo dual, onde a razão “ideal” foge de si mesma para o
lugar da “Physis” correlacional, mas o acesso a esta é filtrado pela própria
razão, que quer, sempre, voltar ao “Si”, à “Physis” indubitada, tentar aceder a
esta desloca, ainda assim, o “Ser” do seu Equilíbrio, a dor empírica já pede
espírito, com sua indeterminidade difícil de mensurar, vejamos, no entanto,
que a Verdade é a mesma e que os diferentes aspectos epistémicos são, somen-
te, perspectivas da Verdade, querendo, ainda assim, esculpir a moral, como
quem trabalha o barro, despindo-a da abstracção e tragando-a no aspecto
“mensurável”, na fricção “material” com a Realidade.

Obviamente, precisamente porque as razões se estendem relativistica-


mente são “irracionais”, porque não são “Uno”, mas são i-razões identitárias,
possibilidades de Uno, verbos legítimos, estas razões são, como sabemos,
feitas de emoção, sentimento, que é, também, o que as torna “relativas”,
condenáveis aos olhos da Verdade, da “Physis”. O fisicalismo pretende, pre-
cisamente, manter-se nas relações proximais mais facilmente decifráveis e
estabilizáveis, o produto psicossocial já é “relativo”, porque afecto a múltiplas
variáveis, daí que o mecanicista não acredite, muitas vezes, no Holismo, por-
que o considera mais venal do que o fisicalismo, que garante mais verosimi-
lhança. Claro está que poderíamos dizer que o mecanicista foge dos senti-
mentos, tal como poderíamos dizer que o “outro” se entrega a fantasias da
subjectividade, em ambos os casos há dialéctica i-racional, aproximações e
desaproximações da Unidade plenamente (i)racional. Mas, assumindo que a
vida é incompatível com o Absoluto, há, somente, i-razão, subjectividade

514
O FisióSOFO

mais ou menos reinante que se ocupa da Verdade, sempre, relativa, e que


pretende, todavia, exprimir-se num comportamento “observável”, empírico.

Ver, sem mediação, a Realidade plena implica notar todas as variáveis


no seu “Todo”, cientificar, racionalizar, reduz esta visão, acometendo-a com
certa subjectividade, mas pretender o Imediato poderá ser de mote a subjec-
tivizar ainda mais o Objecto, que o mesmo é dizer que não estaríamos no
Imediato, mas ainda na “razão”. Querer o Objecto a todo o custo poderá
matar o caminho necessário, no qual a razão desempenha um papel fulcral.
Não queremos matar o Objecto antes de tempo, e a ele não chegamos nunca,
o Absoluto está interdito ao Humano, a este resta casar a razão subjectiva
com a pretensão de objectividade afecta à relação científica e dual, que, ainda
assim, não pode subtrair-se à subjectividade racional, aliás, i-racional. Não
devemos esquecer que o desejo de conhecer o Objecto mata-o, para termos o
Objecto, temos de nos matar a nós, mas aí já não há dualidade Observador -
Observado, conhecimento possível.

Claro está que o Objecto, o Uno, é o instante desejado, mas ele é inalcan-
çável, e é por isso que tentar chegar ao primeiro racionalmente implica, neces-
sariamente, a irracionalização do Sujeito, aliás, do Objecto, que o mesmo é
dizer que o Imediato é, sempre, falso, ou, pelo menos, infalsificável (Popper).
Daí que o conhecedor imediato não possa, muitas vezes, provar aquilo que
presume Óbvio, mesmo o esforço para o fazer transtorna, transforma, o Óbvio
noutra coisa, e aquilo que é “comum” é o que pretende ser objectivo, mas não
se larga, aqui, o “conhecimento de”, o Observador tenta, claro, afastar(-se)
(d)o Objecto, mas arrisca-se a vê-lo com cada vez menos pormenor. Quanto
mais objectivo tenta o conhecimento ser, menos Objecto possui. Quanto mais
Objecto pensa o Sujeito possuir mais o Sujeito é possuído pelo Objecto, a Sub-
jectividade é um processo aferente que parte do Objecto-Sujeito.

A relação “moral” é a razão obrigatória na ligação com o Objecto, ela é


necessariamente dual, formal, implicando alguma distância. Quando o Sujei-
to se aproxima do Objecto, pode perder-se a moral, ele é o Objecto. Em

515
Luís Coelho

ambos os casos o Objecto pode ser modificado, pelo que, no instante seguin-
te, novas relações serão estabelecidas.

Quando a Realidade se aparta do Sujeito pode gerar-se descompensa-


ção, e, assim, o Sujeito tenta apropriar-se do Objecto, num esforço de despo-
larização equilibradora, mas não pode deixar de o transtornar. O Objecto é o
seu Absoluto, mas, depois de alterado, poderá relativizar-se face a um outro,
que, por sua vez, poderá querer controlar com sua inerente subjectividade.
Pode, igualmente, implicar-se pouco no Objecto ao tentar, meramente, conhe-
cê-lo de modo “não participante”, aqui a transformação é essencialmente
racional, ou seja, o Objecto no Sujeito não deixa de poder transformar-se,
mais uma vez para despolarizar as posições de ambos.

A ciência é uma tentativa de objectivização da Realidade, mas se esta lhe


foge ao controlo, se esta a agride, é normal que o “realista” se subjectivize,
tentando controlar, bem mais, o Real. Há, aqui, uma despolarização Sujeito-
-Objecto, mas não é absoluta, o Sujeito afecta a Realidade, este processo
simultaneamente despolariza e polariza os referidos, porque o Sujeito que se
empreende na Realidade ousa modificá-la, relativizá-la, fugindo do Objecto,
mas, em simultâneo, construindo-o, e, neste instante, é outra parte da Razão/
Realidade do Sistema que poderá ser patologizada, submetendo o seu pró-
prio controlo racional, ora pela esfera do corpo, do evitamento da subjectivi-
dade, ora pela esfera do espírito “subjectivo”, o conjunto das razões tange
uma dinâmica insaciável, em que Sujeito e Objecto desempenham ambos os
papéis, numa tentativa de se fundirem por inteiro, tentativa nunca concluída,
a despolarização é sempre incompleta, se bem que o Sistema pode aquietar-
-se na proximidade da despolarização absoluta, mas este aproximar é, igual-
mente, travado pelo próprio Sujeito, que teme perder-se, o seu apego egóico
repolariza Sujeito e Objecto, é o processo de controlo subjectivo, em que,
bem vendo, o Sujeito se torna objecto do Objecto. Enquanto construtor da
Realidade, a tendência para a unificação é também dualizadora, porque a
resultante é Objecto para outrem, o qual poderá, tal-qualmente, projectar a
sua subjectividade, conquistando elementos da realidade. A zona de equilí-
brio coloca-se, algures, entre a objectividade menos distante e a subjectivida-

516
O FisióSOFO

de moderada, mas veja-se que o que, na objectividade, aproxima e intima é


precisamente a mesma subjectividade que acaba por repolarizar o Sistema,
criando a necessidade de novel distância. À medida que esta aumenta, gera-se
o risco de Sujeito e Objecto se perderem de vista. No extremo oposto, a Sub-
jectividade fusiona-se com o Objecto, que é, igualmente, um modo de se
perderem de vista. O mecanismo “racional” é vitalista, organicista, na medi-
da em que se dirige para a Unidade, travando a fundo quando esta começa a
exigir o ascendente do Objecto estranho. Para que o Sujeito se torne Objecto
é preciso que se renda por inteiro, terá de ser totalmente compassivo, um
pouco como um terapeuta que cede o lugar ao “paciente”, entretanto, dei-
xando este de ser paciente para passar a agente. Mas mesmo aqui não existe,
verdadeiramente, Unidade, somente se trocaram as posições, e o Objecto
“paciente” transforma-se no Sujeito, ora mais compassivo e “empírico”, ora
mais agónico e espiritual.

O objecto “empírico” é como dor que se traz ao Insofrimento, deslo-


cando a Subjectividade para a dualização racional, ao mesmo tempo que
existe uma materialização, libertação do pólo físico, objectivo, que absorve a
dor no Insofrimento. É destino do espírito doer até se materializar.

Se matarmos preventivamente os nossos medos ainda acabamos a matar


o tempo pensando na melhor forma de sermos assassinados.

Morte prevenida vale por duas vidas: para que a dúvida não reencarne.

A morte preventiva é a própria vida.

Quando precisas de um seguro para morrer de velho, morrerás de novo.

517
Luís Coelho

Assegurou-se de que não levava nada consigo para a outra vida. Só isso
o distraiu de partir indesejado. Não chegou onde queria, continua, sem que-
rer, a caminhar.

Código de Ética: quanto mais descodifico menos ético me torno.

Olho por olho, dente por dente: Kant enganou os relógios.

Mais vale roubar do que pedir para roubar. Excepto quando roubamos
a dignidade alheia. Para isso basta pedir.

Cada instante retrata uma Imediaticidade dual, um estado de arte, mais


dualidade implicará o instante imediatamente seguinte, dois instantes fazem
um domínio, que vale pela quantidade, segundo o materialismo, que é um
instante abstracto, uma grandeza “espiritual”. Quem conceptualiza um Sis-
tema necessariamente o dualiza, e é dualizado pelo Sistema, a dividir-se entre
o Sujeito patologizado e o Objecto compensatório, dois pólos, dois instantes,
que se correspondem, são simultâneos e, ao mesmo tempo, diferentes. O
“pathos” pode objectivar-se, mas haverá Sujeito compensatório, razão moral,
que o mesmo é dizer que o instante se dualizou, racionalizou, e a Razão é
dual por natureza, empreendendo-se num movimento bipolar que tende
para o Objecto imediato. O Objecto é, igualmente, a própria divisão dual,
como cada um dos pólos, o Sujeito imediato mediatizando-se no Objecto e o
Objecto imediato mediatizando-se no Sujeito. Sujeito e Objecto são a mesma
coisa, é a visão dualizadora que os dissocia, não deixam, contudo, de ser
Uno, e o mesmo Uno é pólo, que se chuta empiricamente na objectificação
do Sujeito. A massa minoritária dualiza-se, necessariamente, em Sujeito e
Objecto, o Sujeito é primário e quer ser Objecto, até lá será “pathos”, e se a
subjectividade é dominante é a própria razão moral que domina e se imedia-
tiza, não levará muito tempo a pedir o Objecto imoral de empréstimo. Bem
vemos que o Sistema é, apenas, um modelo onde todos os elementos se cor-

518
O FisióSOFO

respondem, haver modelo é, já por si, dualizar a Unidade, o Imediato onde


Sujeito e Objecto permanecem em latência, para se relacionarem no “pathos”,
que é o da consciência, onde a dualidade também se ressalva de números, de
um quantum de possibilidades utilitárias, toda a Deôntica é Utilitarismo,
basta que não haja Uno e somente dois instantes, é a diferença que faz o
número, até lá tudo é imediato, é o materialismo que coloca tudo em termos
de “quantidade”, operando no mesmo plano, e isto inclui a quantificação do
abstracto na relação com o Empírico, as razões lutam, competem, e há uma
que faz o Domínio, aproximação ao Uno, que, precisamente por não ser Uno
é dual e se diversifica, todas as morais fazem parte do Sistema, mas existe
uma preferência, um Domínio, e também uma Universalidade, mas mesmo
esta inclui a “diferença”, patologizado pelo que advoga ser livre, mas este
também se agarra à Razão, se a empiricidade o desestabiliza. Quem faz andar
o Sistema são os inseguros e os duais, o resto é Impassibilidade, onde jaz a
maior aproximação ao Uno. Cada compensação é, igualmente, uma aproxi-
mação unificadora, e ela conta como tal, não é compensação, só dizemos que
o é por sabermos, tardiamente, que não se tratava do Imediato ou até mesmo
de uma Razão, pelo que tudo pode ser racional e tudo é obrigatoriamente
irracional porque tudo é aparência temporal, nada é por si, a Razão pura está
na inDeterminidade, tudo o resto é “hipotético”, razão moral e neurótica,
necessariamente dependente de um Objecto, e mais o parecerá quanto menos
dominante for, é que o “quantum” objectal dá o aspecto de Universalidade, e
o minoritário parecerá imoral, mas é, também, o “bom”, o Objecto i-moral,
é a própria dualidade que faz com que tudo seja transitório e que cada coisa
seja Sujeito e Objecto em cada instante e mente, mas isto é o materialismo
que o diz, a defesa “espiritualista” quererá ver o Imediato em si mesmo, que
o mesmo é dizer que já se objectiva, mas há, somente, um Sujeito reificando
um Domínio, que o bem e o mal se correspondam é coisa da polaridade sis-
témica, representatividade consciente que se perde na Consciência pura e
imoral, a moralidade é a necessidade cognitiva de qualquer representante do
Sistema, cada um terá “razão” a seu jeito e fará por fugir do “pathos” i-moral
para enlaçar um “pathos” maior que, por sua vez, enlaça uns tantos proséli-
tos de uma coisa obrigatoriamente crescente, e crescer é dualizar-se, porque
um pólo pede, constantemente, o equilíbrio com o outro, o que significa que
a maior displicência é a maior moralidade, mas isto só é verdadeiro na Uni-
dade.

519
Luís Coelho

Um “pathos” constitui um movimento i-racional de apropriação do


EU, como dum Todo dominante. A dualidade torna-se Unidade. A dualida-
de é a própria razão dualizadora e, entretanto, ideal, mas a conter, desde
sempre, a potencialidade polar expressável no movimento dialéctico que
inclui o Domínio e o pólo “liberal”, que possui a liberdade que o próprio
“pathos” lhe dá, e que visa parar a liberalidade na conquista de um Real, de
uma Razão dominante, que, necessariamente, ganha estatuto moral. O Domí-
nio é contemporâneo da minoria patologizada e para esta tende, na sua libe-
ralidade, como tende, obrigatoriamente, para si-mesmo. Há uma peleja i-
-racional que tende a fazer sobressair uma razão face a outra, processo dual
que prediz cada instante sequente, num mecanismo determinado e que, por
isso, possibilita várias razões/morais, sem que a Unidade se conquiste, até
porque esta é a inDeterminidade permanente, o pano de fundo de simulta-
neidade onde decorre o jogo competitivo, a luta pela “maioria”. Bem e mal,
razão maioritária e razão minoritária, correspondem-se e significam-se num
elo temporal, em que a moral dominante já prenuncia o movimento here-
siarca. Haver quem considere imoral uma razão dominante é haver razão
singular atentando a esse Domínio, mas o “pathos” envolvido é não ter alcan-
çado, completamente, esse Domínio, onde a proximidade ao Uno reproduz a
Impassibilidade, que, mais tarde, veremos ter sido mais uma ilusão, talvez
porque novel objecto empírico traduz outro movimento na rota do absurdo.
As coisas são elas mesmas e o seu contrário, e é a dualidade mental que o diz,
porque o imediatista verá, talvez, a unidade da coisa, este até pode ser o sen-
timentalóide, que, ao criticar a objectividade de outrem, já está a dualizar-se,
como a querer dualizar o “objectivo”, que deixa de o ser na dualidade para
abraçar a sua expressão de Objecto depois de dinamizado no “pathos” de
onde nunca sairá, porque o Objecto contém, sempre, o germe da dualidade,
que o mesmo é dizer que todo o Objecto é temporal, determinado, relativo, e
aquilo que o moraliza é o juízo, necessariamente subjectivo, porque, doutro
modo, seria Categórico e livre, e é-o na subjectividade, mas, somente, na
Unidade temporal, aliás, na “não Unidade”. A moralidade é questão de juízo,
vontade, normativo, maioritário, mas a Vontade maior é já não existir moral,
Objecto categórico, a partir do qual só poderá haver “queda” na subjecção
moral. Portanto, a moral é, sempre, subjectiva, e depende, obrigatoriamente,
dum processo dual, e cada “avaliação” será um movimento livre – aliás,

520
O FisióSOFO

determinado – no sentido de conquistar o Objecto maioritário, defesa para a


auto-conquista, ensaio de impassibilidade unitária.

Razão dominante e razão minoritária são, assim, expressões mentais,


tudo o que é empírico e exterior só se torna verdadeiro no fenómeno, que o
mesmo será dizer que há diversas razões morais, e que elas são sempre “cren-
ças”, no máximo compensam, parecendo reais e nominais, o Sujeito, objecti-
ficando-o. O Domínio é moral pela “quantidade”, mas esta é, apenas, inter-
na, como a dualidade que vemos no “outro”, que, é, bem vendo, nossa,
mesmo dentro de nós tudo se expressa pela quantidade, pela luta pela con-
quista da realidade “negativa”, cada instante traduz uma possibilidade unitá-
ria, mas, por serem várias possibilidades, a fenomenologia subtrai-se ao Real
absoluto, porque só neste poderá haver puro Domínio imoral.

O aparato de i-razões pessoais cria a linha temporal do “Ser”, pode ser


que, num momento, esteja mais próximo da Unidade, e, noutro, mais dis-
tante, mas, no “fenómeno”, que é absoluto, um “fim em si”, o indivíduo é
sempre livre e imediato, as condições de decisão são afectas ao contexto
interno/externo (na relação com a Estrutura), e elas são obviamente “deter-
minadas”, porque partem de algo “relativo”, distante da Unidade, mas tam-
bém são livres, proporcionando a criação de outras possibilidades racionais,
quiçá dominantes, que poderão, entretanto, afectar o aparato racional de
“outrem”, a sua subjectividade, e, como tal, o cômputo de trajecto para a sua
Unidade, que é o que importa para o Sujeito, mais do que o Colectivo, que,
apesar de tudo, também deverá estar representado i-racionalmente no Sujei-
to. A liberdade relativa é, portanto, afecta à Razão “relativa”, se fosse possível
descortinar, plenamente, uma Razão absoluta, pode ser que fosse desejável
forçar à conquista pessoal da Liberdade implicada por ela, o produto poderia
compensar as prováveis consequências temporais do processo, mas a verdade
é que aquilo que muitas vezes se faz é projectar a razão pessoal, bem como
uma razão colectiva, que não deixa de ser meramente uma razão possível. Se
queremos respeitar a Unidade do indivíduo não podemos deixar de respeitar
o seu cômputo indeterminado de razões, que não seria necessário se o mes-
mo sujeito já estivesse prenhe da sua inDeterminidade. É o “relativo” que

521
Luís Coelho

cria as razões para alcançarmos a Liberdade. Se fôssemos completamente


livres e “imediatos”, não teríamos razões para sê-lo. O que não implica que
algum nível de Universalidade não possa ser exigido, mas nem sempre é fácil
decidir quando o indivíduo ultrapassou, completamente, a fronteira da irra-
cionalidade, porque, como já dissemos, a razão “estranha” é considerada,
bastas vezes, irracional, aliás, todas as razões são irracionais na medida em
que não são Unidade, e todas são racionais na medida em que permitem
chegar, mais ou menos depressa, a alguma Unidade. A liberdade pessoal é,
por isso, a boa condição i-racional e/ou de vontade para prosseguir um
caminho que pode, ainda assim, implicar uma diáspora racional colectiva,
não sendo, portanto, estranho que o Colectivo inicial se faça representar por
alguns “moralistas” defensores daquele, que é como quem diz que projectam
o seu intrínseco Domínio para favorecerem a sua própria unidade. Mas o
processo é, também já, dual, porque expressa uma ameaça, e o objecto está
em dualizar, objectificar, o “outro”, tentando, quiçá, convertê-lo, mas conse-
guindo, talvez, que seja o “outro” a objectificar o pretérito sujeito, inverten-
do-se os papéis, como se invertem constantemente, o que, certamente, vem
pronunciar, ainda mais, o relativismo, com este a corresponder ao manancial
de razões que se faz resistente ao Uno pelo apego i-racional, egóico, do Ser à
procura ávida de uma impassibilidade vitalista, que, ainda assim, não descura
alguma dualidade, como certa projecção sobre a alteridade, jogo perpétuo,
também ele dual, entre razões com diferentes relações de proximidade com o
Uno, e com a Razão colectiva e a alheia. Há, claro, no Sujeito razões que se
aproximam e delineiam uma Estrutura, que é sempre mais ou menos respei-
tada, e tanto mais o é quanto explora a riqueza do mundo empírico, e testa e
controla a ameaça, gerando novas possibilidades “exteriores”, que poderão
constituir uma ameaça para outros agentes, na medida em que desafiam as
suas intrínsecas razões, diversificando o palco interno, criando novas “razões”
de decisão “livre”, tendencialmente mais livre, com a capacidade de serenar o
proscénio fenoménico, unificando, progressivamente, as razões na Estrutura
basilar, que se empreende no movimento “absoluto”, impensado, espontâ-
neo, libertador.

A fenomenalidade é a continuidade sempre “indeterminada” da Cons-


ciência, reflecti-lo é impor uma razão dualizadora, mas ela sempre lá esteve,

522
O FisióSOFO

na dualidade fenoménica, aliás, por não abandonarmos o seu “escopo”, nos


mantemos reduzidos a um caminho pouco criativo, a maior criatividade,
claro, é a própria Unidade indual, mas esta ressente-se de razões para se bus-
car constantemente. A Razão é, portanto, um caminho determinístico, que se
impõe e que suborna a verdade, por mais que tentemos afastar-nos dela,
somos dela reféns, ou seja, somos reféns do determinismo, que, a propósito
nos condiciona a buscar-nos na liberdade, mas, como pretendemos manter a
consciência, nunca nos libertamos plenamente, e o ensaio foi “ponto” ilusó-
rio na continuidade incessante. O problema do “relativismo” é a proximida-
de da morte, e é, também, esta que limita o nosso caminho de descoberta
displicente, não entendemos que o que sabemos sobre o novo caminho
depende dos antigos caminhos racionais, mas, de qualquer modo, deles care-
cemos para nos defendermos da destruição, a morte é a consequência possí-
vel de uma busca polarizadora, como quem transcende e se liberta plena-
mente, ou seja, como quem larga o cômputo das razões. Também o estado de
dúvida repercute este caminho de trevas, é ele que nos polariza no trajecto de
descoberta de novas possibilidades racionais, e isto é, já, transcender, mas
também arriscar o caminho do Colectivo, sua sanidade moral, daí que a
Razão moral dominante queira, constantemente, cessar a descoberta indivi-
dual, uma estruturação a partir do Colectivo pode, realmente, pacificar o
Sujeito, mesmo que ela seja forçada pode compensar tardiamente, se bem
que é, sempre, preferível fazer o caminho do destino para a origem, da ilusão
para a razão, assim há uma apropriação racional mais familiar e suave, estas
compensações e/ou estruturações poderão gerar estabilidade, e isto é, tal-
-qualmente, permitir a inDeterminidade, a pacificação fenoménica, mas,
claro, a ameaça empírica pode, sempre, vir trazer uma novel potenciação
racional. Claro está que aquilo que se afasta da Razão moral, do Colectivo, é
considerado ilusório por essa Razão, mas certo “materialismo” dirá que per-
siste o direito de descoberta de novel Razão, e que a sua inDeterminidade
vale como Liberdade espiritual, mas é a Razão primária que nos cria esta
mesma ilusão de que buscamos, somente, a inDeterminidade, e diz-nos essa
mesma Razão que esta verdade é Universal e provém da “Physis”, atentar a
esta certitude é, igualmente, arriscar as “trevas”, o mal potencialmente mortí-
fero, mas é possível que certa unidade pessoal dependa desse caminho, e
tolerá-lo é permitir que não exista excessiva dualização, que o mesmo não
aconteceria se tentássemos estancá-lo moralmente, pelo que se produziria
uma região de determinidade polar capaz de projectar um movimento racio-

523
Luís Coelho

nal passível de converter uns tantos e de mudar o Sistema global, é um


“direito” da Liberdade, e será liberdade espiritual, ainda assim, mas dirá certo
“Espírito” que é correr risco de morte, e, por dizê-lo, também este “espírito”
se dualiza, neuroticiza, para arriscar um movimento de apropriação daquilo
que o mesmo “espírito” remete para uma Liberdade mais vera, e, no entanto,
por ser “espírito” é perpetuamente “fenómeno”, ilusão “material”, tentação
de Verdade, que a “Physis” providencia, se bem que isto é a certeza da Razão.
Que tudo isto é resultante da dualidade racional é a Razão que o afirma,
outra poderia dar azo a uma maior certeza, mas pode ser que subsistisse, aí,
somente, uma maior libertação fenoménica, maior proximidade à “Physis”,
mais compensação ou estruturação passível de serenar a busca racional, a
descontinuidade que a Razão providencia ao fenómeno, o mesmo que garan-
te, igualmente, a continuidade, como a dúvida capaz de a estancar com a
ilusão de uma renovação do caminho neurótico para um terreno de trans-
cendência que, apenas, permite multiplicar racionalmente o território do
absurdo. Que tentemos escapar a tudo isto, é imperativo da Razão, nomea-
damente de a transcender, mas o “risco de morte” é, também, eterno retor-
no, na medida em que pode fornecer-nos novos trabalhos, novas ilusões, que
a antiga Razão dirá constituírem exercícios de apropriação primária.

É precisamente porque um movimento polarizador remete para a ilusão


que o concebemos nos termos do “relativismo”, mas esta é a denominação
da Razão moral dominante, aquele movimento é, no entanto, uma possibili-
dade de Unificação, tão legítima como outra qualquer, mas isto é o que diz
certo “materialismo”, mas se, seguidamente, defensamos que a polarização
remete para uma inDeterminidade perfeitamente legítima, estamos, ainda
assim, a depender da mesma Razão familiar, primária, como se, aquando do
movimento, fôssemos buscar a defesa racional. Há, sempre, um medo de
destruição, e a Razão moral muitas vezes nos equivoca, nem sempre perce-
bemos que o movimento polar é a acção da própria Razão sobre o Sistema,
daí que a polarização seja, simultaneamente, uma despolarização, e estas
“imagens” valem apenas enquanto imagens, também elas dualizadoras, a
pedirem a pacificação “espiritual”, que, somente, reside no fundo, inapro-
priável pela Razão, pelo que o Espírito é, bem vendo, a região da própria
relativização polarizadora cambiando uma dinâmica de trevas, que a Razão

524
O FisióSOFO

primária torna incognoscível. O Espírito é, portanto, o máximo relativismo,


até lá veremos, somente, grandezas, “razões”, posições possíveis e legítimas,
que são outro modo de relativizarmos o “Espírito”, que se coloca, comum-
mente, no Princípio indeterminado, inapreensível, que todos pensam assu-
mir, desvelar, na autoapropriação indual, logo caindo em nova ilusão da
“matéria”.

Se tens a certeza de que tudo é relativo, então podes ter a certeza de que
nem tudo é relativo, mas se duvidas disto não desesperes, qualquer polariza-
ção tende para a sua rápida consumação indeterminadora, esta capacidade
do Sistema se fazer render pela Razão familiar limita a empresa filosófica,
porque dissolve a dúvida, onde reside o Princípio mais vero, o Princípio dos
Princípios, que a Razão moral empreende, muitas vezes, como morte, e é,
precisamente, o seu risco que nos dualiza e assegura novel Razão pacificado-
ra. Se conseguirmos tolerar melhor a dor, a dúvida, conseguiremos desafiar
mais o Sistema, mas também pode acontecer que nos expulsemos do mesmo,
o que, de mais a mais, é tragar novel Razão, menos familiar, e que pode, qui-
çá, empreender-se naquilo que a minha familiaridade não quer aceitar, preci-
samente por lhe trazer a dolorosa dúvida.

A Razão moral cria a zona de dúvida, na medida em que a tolera e, simul-


taneamente, demoniza. Aquela zona reinicia o processo racional, mediante
simultânea polarização e despolarização, mecanismos contemporâneos, por-
que atemporais, e que querem o mesmo que a Razão familiar: cessar o movi-
mento neurótico. Até aqui a Razão da diáspora prolonga a Razão primária,
porque a serve no Objecto de pacificação, mas pode ser que exista uma área tão
periférica que permita “irracionalizar” a Razão, trazendo-a, como à Realidade,
para um novo território ôntico, com sua própria regra moral. Claro está que a
Razão primária resistirá a este processo, o que pode estimulá-lo ainda mais,
decerto que fugir completamente ao Verbo poderá conter as suas desvanta-
gens, então é necessário fazê-lo devagarinho, e também seria devagarinho que
o movimento oposto se poderia obviar, para evitar a “fuga” defensiva. O “mal”
é, então, este Reino de trevas, capaz de potenciar novel “Verbo”, pouco cómo-
do, certamente pouco “democrático”. Os “maus” compreendem-no e pedem a

525
Luís Coelho

compreensão da Razão dominante. Eles são livres no Direito a tal Liberdade,


mas parte dessa liberdade é afecta à própria Determinação da Razão moral.
Esta estimula-a no preciso instante em que a demoniza.

Engatei-me num bar. Quando acordei, apercebi-me da asneira.

“Mais vale só do que mal acompanhado.” Esta frase acompanha-me


para todo o lado.

“Com o mal dos outros posso eu bem.” Só porque discordo com ele,
não respondo por mim.

Feitas as contas, eu só sou Eu mesmo aproximadamente, porque, ao


pormenor, vejo-me constantemente aos pontapés à minha matemática inter-
na. Querer contabilizar também é coisa da dualidade, do cientificismo, e isto
igualmente aflige a Consciência. Sobretudo se sou afecto à abstracção, ofen-
dê-la é dualizar-me, e isto recria o movimento dual, que é um conjunto infi-
nitesimal de lâminas de consciência, o cômputo total não é mensurável, é um
plexo de massas de Consciência que se dispõem na cadeia do In-sofrimento,
medir é particularizar, mas, cá dentro, há apenas uma multiplicidade feno-
ménica que se transtorna a cada in-momento, também me vejo a reflectir o
“Todo”, isto é a parte a querer ser “Todo”, mas nunca deixei de o ser, o Sen-
timento é irremediável, irredutível, razão e ciência são mediações, pensá-las
é, já, dualizar-me sem que me divida alguma vez, claro está que o instante
provém do passado irreprimível, e também do reprimido, e do recalcado,
esta imediaticidade é, sempre, vera, mas apenas para o instante, para o EU,
porque há sempre um “outro” que nos mede e nos reduz à emoção pessoal, à
subjecção particular, porque não servimos ao Nós científico, que é coisa da
razão dominante, afecta à convenção, e pensá-la é consciência, como praticá-
-la na inauguração da mesma Unidade que a quer vencer e suprir. Se esta
Unidade não mata a razão é por necessidade do “Eu”, que mesmo cá dentro

526
O FisióSOFO

me vou somando no “bem” e no “mal”, que se intermedeiam para gerar a


vicissitude da vida consciente. A dualização moral é o mecanismo de defesa
preferencial, ele é a obrigação do Eu consciente, do Sujeito tornado Ego per-
severante.

A ideia que temos de Deus é um arredondamento. Sempre que nos


lembramos disso é uma chatice dos diabos. Diria para o esquecermos mas só
agora me lembrei disso.

O trabalho de reflexão filosófica é de desgaste rápido. Sugeriria uma


pensão de invalidez.

Se a Consciência for um tumor irradiando-me,


raios o partam
(O que ela disse não fui eu)

Mais vos digo que me contrataram para sofrer as “dores do mundo”,


mas há um cláusula de rescisão, e eu já teria abdicado disto, mas fica-me a
doer a consciência.

Se te dói a Consciência, não desesperes. Depois de religião, lobotomia e


livros de “auto-ajuda”, surgiu um novo remédio: Sofrer! Os resultados estão
comprovados cientificamente: quem sobreviveu melhorou. (Foram usadas
escalas com uma margem de erro absoluta.)

Quando alguém pede amizade (no FB) para vender coisas, não terá aca-
bado, precisamente, de vender a amizade?

527
Luís Coelho

Foi preso por ocultação de cadáver moral. Era um atentado ao pudor.

Há filmes de terror tão maus que até assustam.

“Compreender não é perdoar” é o que diz quem pede perdão por com-
preender.

Compreender o imperdoável é descrever à velocidade da Luz.

“Aquilo que o coração não vê os olhos não sentem.” Dizia a “tábua


rasa” quando se apaixonou pelo prego. E o prego entrou em parafuso.

Ninguém põe o amor em cheque. Excepto quando é em branco. Por-


que, aí, já vale tudo.

A prova maior de salubridade mental está em convencer os outros de que


somos, realmente, loucos. Normalmente, por mais que me esforce, dizem-me,
apenas, que pareço um.

Não vejo a hora de não ter tempo. Para que o tempo não se acabe. E
possa fazer-se continuamente no desejo de que se extinga. E por se extinguir
no desejo, não morre na intenção.

528
O FisióSOFO

Desculpa, era sem intenção, para a próxima faço pior.

Sentirmos é sentir-nos. Sinto-me muito por dizê-lo.

Filosofar é, cada vez mais, um comportamento de risco.

Sofre de honestidade aguda, pelo que, para não ser um perigo para
outros, devemos considerar que representa um perigo para si-mesmo.

Vê o que mais ninguém vê, excepto o que está à frente dos olhos, que
não faz diferença alguma.

Querida, esta é aquela altura do ano em que faço mais um ano do que
tu. Não te preocupes, far-te-ei uma espera tal que o tempo não mais se lem-
brará de nós.

Declaração de guerra ao amor à guerra: se não existe, declarar-me-ei.

Vai e não voltes. A não ser que seja para ficares.

Serei, facilmente, dador de órgãos, mas só se a minha morte for convin-


cente. Caso contrário, considerem que me assaltaram por motivos de força
maior.

529
Luís Coelho

Já disse várias vezes que a Realidade nunca se repete. Cansa tanta Ori-
gem.

Assusta-me que não consiga encontrar um filme de terror capaz de me


assustar.

A questão derradeira é a das próprias fronteiras racionais, soluções de


continuidade que se imprecam em nós, e nas coisas que estão em nós, elas
vêm lembrar-nos que não nos possuímos inteiramente na Unidade quântica,
a qual dispensa todas as barreiras cognitivas, mas, bem vendo, o instante é,
sempre, um “imediato” fenoménico da consciência, e ele inclui a visão do
mundo como instante de sofreres, aproximando-os quiçá, mas isto é o que a
consciência “instantânea” vê, que o instante seguinte verá algo diferente, a
semelhança é a da determinidade temporal, e a da urgência da simbiose dos
sofreres, que permite tecer matrizes diferenciais de consciência, é numa delas
que se entroniza a minha, e a outra do momento sequente, e esta i-Razão
prescreve moralmente a posição das outras, define-as, dualiza-as na diáspora
que as faz um “mal” distancial, mas cada uma delas é consciência egóica
também, i-Razão identitária concebendo a definição própria, e a dos outros,
que permite abraçar simbioticamente a “diferença”, diluindo-a, adensando
uma massa racional que opera utilitariamente, processo inerente à sobrevi-
vência moral, e a massa une-se a outras criando um elo maior ainda, por
dentro é Unidade consciente, o “fora” é empírico e ameaçador, e é isso que
força a definição moral, a necessidade de previsão, e, portanto, de determina-
ção interna, as fronteiras urgem para logo se dissiparem no anelar crescível
de uma i-Razão maior, outras que operem de modo densamente diferente
oferecer-se-ão como universos diversos, incapazes, talvez, de ameaçarem,
para que isso ocorra é preciso que o Sistema seja comum, que as razões
entrechoquem, doutro modo, serão razões estrangeiras, paralelos “sofrimen-
tos”, polarizações radicais, que, mais tarde, se poderão oferecer num qual-
quer entendimento, e é neste que pode existir “melhor” ou “pior”, claro está
que a Razão familiar se oferece, provavelmente, como “bem”, amaldiçoando
a outra até que a anele em novel familiaridade consciente, cada “mundo” só
possui valor segundo determinada perspectiva, é “esta” consciência que per-

530
O FisióSOFO

mite validar as diferenças, defini-las, e o acto de o fazer dualiza o mundo,


projecta outro que impende na mesma consciência, já dissemelhante, já
transtornada numa nova dinâmica, e, por isso mesmo, o “sofrer” pessoal é
outro, mas também todos os outros “sofreres”, que jogam os papéis segundo
a fórmula basilar da Consciência, ora se unem e adensam e enterram em
unidade, ora se definem e superficializam na consciência superlativa, pode
ser que esta recrie todo o processo, a união pacifica, mas projecta novel
mundo de definições morais, de consciências que podem ser regras bem dife-
rentes, cada uma prescreverá um outro modo de ver, o Universo nunca se
repete, mas, se explicamos alguma coisa, é porque projectamos a possibilida-
de de uma “repetição”, e de uma “previsão”, mas isso é o que diz esta cons-
ciência, e, provavelmente, a que se lhe segue, e outras que com esta se fami-
liarizam porque algo em comum possuem, a diferença maior é a própria
empiricidade estrangeira, e essa parece-se com um sofrimento mais vero,
mas, em si mesmo, será um universo benfazejo, individual, esgrimindo outro
olhar, novel regra capaz de potenciar outra “episteme”, o esquema básico
não varia, mas isso é por falta de imaginação, a Filosofia repete-se, mas isso é
por comodismo racional, moral, consciente, que o mesmo se traz à vida e à
necessidade de superação, doutra maneira haveria Imediaticidade incons-
ciente, e há, ainda assim, no plano da fenomenologia pessoal, e a analogia diz
que isto é sofrer menos, é ater maior globalidade, melhor relação com o
“exterior”, mais equilíbrio, e que o maior sofrimento é, continuamente,
estrangeiro, e, no entanto, também isto é “objecto” capaz de nos dualizar,
que é o que nos acontece quando dualizamos, definimos, necessidade da
consciência vitalista, capaz de haurir um mundo de fronteiras artificiais, e as
razões potenciam-nas sempre, diversificando-as ininterruptamente, e as fron-
teiras são as palavras, as linguagens, porque as coisas estão lá sempre, iguais a
si mesmas, resvalando nas escalas, na escadaria da consciência que as precipi-
ta no tempo, enriquecendo as definições, as línguas, possibilitando outros
mundos, outras razões, matrizes crescentes e descendentes, e as definições, as
medições, transformam as razões do mundo, e, se nos apartamos da cons-
ciência familiar, ficaremos, acaso, impossibilitados de congeminar a realida-
de, de tecer a analogia, fracassaremos e, pior, seremos como autómatos na
profundidade etérea da indiferenciação moral, que é, no mínimo, a incapaci-
dade de urdir os “outros” como tal.

531
Luís Coelho

Instantes diferentes implicam acontecimentos subjectivos incompará-


veis, o Sistema muda constantemente, não havendo, sequer, “melhor” ou
“pior”, porque cada elemento do Sistema possuirá uma “razão” diferenciada,
uma regra bem díspar. Há, somente, uma tendência para qualificarmos as
coisas como proximais, familiares, mas isso resulta do trabalho da nossa
consciência, e da forma como ela “constrói” o passado, bem como o futuro.
Claro está que, se nos centrarmos excessivamente na “diferença”, o nível de
imprevisibilidade obtido encerra, derradeiramente, a discussão; para que esta
exista, para que possamos ter consciência “vital”, é necessário colocar as coi-
sas em termos de uma semelhança, só esta permite definir e moralizar. À
partida, tudo o que consciencializamos é tragado no mesmo Sistema, poden-
do ocupar posições diferentes em tempos diversos. O Sistema é, igualmente,
a sua representação em nós, pelo que a Razão dominante é, também, o que
persiste em nós. Os diferentes membros do Sistema são, tal-qualmente, cons-
ciências divergentes, com sua própria noção de “bem” vs. “mal”.

O “pathos” dual é, de algum modo, a vivência da polaridade em que um


dos extremos é o Domínio ético, onde o juízo moral é pacífico e a transfor-
mação é aceite, e o outro extremo é a dualidade propriamente dita, em que o
juízo moral é dominante e a razão se neuroticiza em busca do pólo pacifican-
te. Atemos, aqui, duas posições diferentes no mesmo instante, ou dois ins-
tantes relativos ao mesmo sujeito neurótico. A segurança é a Vontade, em
que o Sujeito possui sua Individualidade ética capaz de se adaptar à mudan-
ça, ao rumo por entre razões. A insegurança é o juízo moralizante, a busca
por um Domínio que jaz internamente na potência do indivíduo. Catapultar
uma moral implica reificar um Domínio, uma visão escalar grosseira que
funde um conjunto de intenções. Nela o indivíduo se pacifica, recriando o
instante volitivo perfeito. Mas é a razão neurótica que exprime melhor a
individualidade moralmente pormenorizada, a visão íntima e idiossincrática
passível de dualizar plenamente o mundo. A Razão neurótica inclui, portan-
to, os dois pólos da razão moral, a Vontade é a sua Estrutura “quântica”.

O Ego tem medo do Outro, a “Alma” é o Outro.

532
O FisióSOFO

Se não existissem touradas não existiam touros (diz o falsário)


Se não existisse sofrimento não existiam homens (diz o honesto)
Os homens são touros (diz o inválido)

Serei logofílico e atrairei todas as razões necessárias à minha moral, e


com a resultante amansarei os honestos que nos permitem vogar desmereci-
damente num universo de absurdos em que as razões se atropelam para
matar a possibilidade da desilusão derradeira, que é perceber que não há
razão alguma para vogar, que o mesmo é dizer que podemos ser tudo o que
quisermos, sem o queixume da Culpa, tudo é válido e verdadeiro num fluxo
de possibilidades maiores, interessa, sobretudo, que ninguém entenda isso,
porque viver é estar na aproximação, sempre inconseguida, da Verdade, é
pretender a competição perpétua requerida à segurança egóica, tudo é, ape-
nas, convite à auto-segurança, à convicção de que somos melhores, claro está
que o “melhor” nunca poderia existir perante uma Totalidade, prepondera a
“maioria” doméstica e familiar a recriar a ilusão de uma busca infindável, e
que bom que é sê-lo, não fosse o Diabo trazer-nos solução, seria a ditadura
logocêntrica, e, no entanto, cada um faria por se justificar ainda assim, até
porque a Razão idiossincrática tem sempre razão, face a ela todas as outras
são “estrangeiras” e disformes, mesmo quando ela diz que todas as outras são
veras e aceitáveis, isto é jogo de razões “gravíticas”, existe uma dança de
poder e Eros, encontros e desencontros.

Domínios diferentes constituem, também, instantes diversos de Razão


familiar, no “real” ou na “percepção”, pode ser que a Razão idiossincrática
domine em diferentes instantes, mas também poder acontecer que seja mais
dominante num instante do que noutro, mas isto poderá ocorrer, apenas, na
mente de uma outra Razão “familiar”, e conforme a sua percepção, teremos
mais ou menos Domínio desta Razão, porque as razões são relações, a moral
dominante é a incidência temporal e “gravítica” de uma Razão, mas nem isto
a faz “melhor” ou “pior”, e, no entanto, ela é pragmática, utilitariamente,
melhor, sobretudo se assim for encarada, isso coloca-lhe uma gravitas que,
ainda assim, remete, igualmente, para uma resultante mensurável, mas isto é

533
Luís Coelho

já pedir de empréstimo outra “episteme”, do materialismo, e uma destas que


entravamos coloca-nos ainda mais no seio da gravitas, e a sua capacidade de
atracção é a Racionalidade libidinal, face à qual a estranheza atenta no
“poder”, perante o qual pode a anterior perder-se, dualizar-se, reduzindo,
então, sua gravitas, este é um desenho escalar, espiritual, mas também pode-
mos colocar tudo nos termos duma linha temporal na qual todos se repre-
sentam egoicamente, e todos se propõem neuroticamente na Idiossincrasia,
face à qual tudo o mais é empírico, superegóico, displicente, ameaçador.
Quando nos reduzimos ao mesmo plano, ficamos dependentes de uma con-
fiança capaz de recriar constantemente o Sentido temporal da vida, esta é
para ser vivificada pelas aproximações perspectivísticas, levar as coisas ao
Domínio mais íntimo é apressar a desilusão passível de nos ferir com as fron-
teiras, que só podem ser destruídas pelo toldar das escalas, Aqui, onde a esca-
la mais tímida é a pura continuidade.

Em terra de egos quem vê o outro não está a ver bem a Coisa.

Que o Sentido não é a meta, que é, bem vendo, o infindável correr para
a meta, isto convém que não se saiba, para que o Sentido continue operando
maciçamente, mas, mesmo que se soubesse, não deixaríamos, por isso, de
correr à frente do Destino, tentando enganá-lo, que é, aliás, o que acontece
quando confundimos Escalas, que as diferenças são isso mesmo, perspecti-
vas, um dançar constante, pretendemos aprofundar-nos sempre mais, mas
seremos, apenas, reis do nosso pouso, vicejando face à diferença alheia, que-
rendo obstaculizar com nossa gravitas, mas esta nem sequer vale para além
da resultante.

Conceber o Espírito é ater a possibilidade de uma gravitas que se impõe


qualitativamente, mas Ele não exclui as quantidades, como a lógica e a redu-
ção perpétua, em grande medida tudo se implica numa quantidade, há,
somente, domínios dentro de domínios, instantes diferentes são domínios
diversos, como estases em diferenciáveis escalas, pode ser que alguém domi-
ne o Saber duma escala, mas haverá, sempre, outra, a esperança advém do

534
O FisióSOFO

desaguisado do conhecimento, podemos, num instante, permitir-nos esgotar


uma escala, no instante seguinte, podemos estar aquém de exaurir o seu pro-
duto, o conjunto implica-se num Domínio familiar, que se obtém por agre-
gação escalar, é ele que enforma a moral, velando outra possibilidade escalar,
o processo é infinitesimal, o que já reforça a ideia de que é algo “material”,
quantitativo, e isto nem sequer se coloca contra a Liberdade, esta, apenas,
tornaria o Sistema mais complexo, mas conhecê-lo exige a Determinação,
que é, igualmente, visar o conhecer duma Escala, e o limite do próprio
conhecer escalar, incluindo as razões de uma infinidade tomística que não
pode ser saciada, e ainda bem que não pode, não é bom conceber o limite,
mas, claro, a ilusão do “conhecer” implica a necessidade da sua “ilimitidade”.
Com ou sem liberdade, a moral não exige um Divino, um Sobrenatural, ela
permite-se no território material, nos domínios que se concebem e que pro-
duzem a ilusão de uma gravitas, cuja “espirituação” se alimenta de mais
matéria, e da diferença da materialidade displicente, também ela capaz de
fortificar-se contra o adversário, mas a verdadeira força é a aglutinação, que
implica, sempre, algum isomorfismo tético e epistémico, mas há, indefini-
damente, níveis crescentes de Domínio, e níveis crescíveis de adversidade
empírica, o processo é a materialização máxima da Deidade desespiritualiza-
da, querer reduzir tudo isto a um limite previsível é ceder à tentação atomis-
ta, mas nem o atomismo vero poderia matar a criatividade do Sistema sem-
pre redesenhável, apesar de determinável virtualmente, medir é, já, modificar
o Sistema, mitificá-lo para novel viagem de auto-descoberta, há, constante-
mente, compreensibilidade insaciável do Todo Eu, e este inclui seu próprio
in-momento dominante de segurança egóica do Saber, seguido, talvez, do
instante inseguro em que o “Eu” se presta a compensar-se com o Outro
Superegóico, e os instantes reduzem-se, escalarmente, a outros instantes,
vários níveis de (des)culpabilização noemática que vão parindo o momento
em crescendo de uma escala cada vez mais ampla, libidinal, em comunhão
com o Número mais puro, e este é o próprio Númeno, a fenomenologia
tomística, erótica, sempre redesenhável.

A genética do futuro é sem passado. Para que nada se transforme sem


que se crie.

535
Luís Coelho

Se não me engano, o direito de enganar é proporcional ao direito de ser


enganado. Salva-se o erro, que não tenho direito a desenganar.

«– A: Agora que descobriste toda a Verdade sobre o mundo, como é que


consegues viver contigo mesmo?
– B: Sobrevivo, para responder-te.»

«– A: Foges de mim sempre que te digo as verdades. Vais continuar a


evitar-me?
– B: Tanto que até parecerá mentira!»

Age, sempre, como se te lembrassem de ti daqui a cem anos. Mas tem de


ser Sempre, para que nunca se lembrem de ti.

Agradeço a todas as pessoas sem as quais não seria possível estar, aqui, a
agradecer-lhes o facto de não se mostrarem agradecidas por tudo o que
poderiam agradecer-me. Não vos agrada? Grato!

Ouvi dizer que o caso de difamação que hoje acaba gerou vários outros
casos de difamação. Não foi do exemplo, foi de discuti-lo sem exemplo. 01/
06/2022

Amar-te-ei até à difamação! Para que não sejamos infames.

Para deixar a nossa pegada, é preciso que a poeira assente. Doutro modo,
seremos pó.

536
O FisióSOFO

{Fisioterapia e Farmacologia: Epistemologias36}


Discutir o modo como áreas diferenciadas da Saúde se podem intersec-
cionar é aventar a possibilidade de uma discussão, bem mais profícua, sobre
modelos epistemológicos de intervenção clínica, não podendo, a determina-
da altura, evitar recapturar velhos confrontos, cismas, e verdades, por vezes,
difíceis de digerir. Claro está que o profissional da sua área evitará confrontar
o seu próprio esquema interior, mas se a discussão e o confronto são urgen-
tes, é precisamente para que não continuemos a negar o obrigatório ponto de
harmonização epistemológica em Saúde. Mesmo que isso implique sacrificar
determinadas certezas, labutando pelo conhecimento das limitações pessoais
e profissionais, acervo fundamental duma acção clínica ética e, até, “eviden-
te”.
O esquema básico é conhecido: profissões de saúde como “Fisioterapia”
ou “Psicologia Clínica”/”Psicoterapia” têm requerido um modelo epistemo-
lógico, dito, “biopsicossocial”, a partir do qual tenderam a descartar-se da
proximidade com um paradigma mais precisamente “biomédico” ou “clíni-
1
co” (na acepção de Foucault ), que considerariam demasiado “localizacio-
nal”, “biomecânico”, “analítico”, e limitado na compreensão adequada dum
“Ser” multivariado, incluso de uma vertente “psicossocial” que não pode ser
descartada. A necessidade de “partição” é um pouco corporativista, não sen-
do de negligenciar alguma animosidade do fisio/psico/terapeuta perante a
abordagem farmacológica, atida como “impessoal” e “artificial”. Cursos delon-
gáveis daquelas profissões chegam a ocultar, completamente, a importância
da farmacologia, podendo, aliás, convidá-las à substituição da última, enca-
rada como “inútil”. Também é patente, já que falamos nos “cursos”, aspergi-
rem tais profissões nos seus prosélitos o culto dos métodos, dos Sistemas, das
abordagens atidas como racionais e vistas, correntemente, como salvíficas no
tracto do Sujeito multivariado. Ora, tal tracto geral é, na verdade, muitíssimo
perigoso, e este perigo é o de todos os dogmas que, bem vendo, são paralelos
à existência humana e (i)racional.
Desde sempre, e a época pandémica tal exemplifica, que se vem duali-
zando um caminho (i)racional que opõe (i)racionalistas a empiristas, idealis-

36
Referência: Coelho, L. Fisioterapia e farmacologia: Epistemologias. Acta Farmacêu-
tica Portuguesa. 2022; 11(1).

537
Luís Coelho

tas a cientificistas, dogmáticos a experimentalistas, e, como se já não fosse


suficientemente caricatural tal dicotomização, cada elo se fortifica dogmati-
camente, sacrificando-se ambos perante a necessária objectividade racional.
Sabendo nós que a “patologia” evoca, necessariamente, diferentes vertentes,
cada um obstará à que lhe parece mais irrelevante, e constituirá a necessária
luta, que, ademais, é uma luta pela auto-afirmação. Esta peleja reforça, ainda
mais, a componente subjectiva, placebetária, da terapêutica, e o placebo
envolve ambos os pólos «terapeuta vs. paciente». Mas estes pólos rememo-
ram, igualmente, a dicotomia que se estabelece entre o “agente” terapêutico,
quiçá, dogmático, e o “paciente” empírico, que acusa a “dor” na medida do
2
excesso do primeiro. Em outro artigo referi que a polarização em causa era
excelentemente representada pelo tracto fisioterapêutico das raquialgias, pelo
“estado de arte” da sua intervenção, que, envolve, justamente, ambas as com-
ponentes (i)racional e empírica. Mas a coisa não se basta nisto, o corpo, a for-
ma como o poderemos “construir”, é um exemplo perfeito da referida polari-
zação, bem como da referida intervenção.
Podemos imaginar que a linha do ráquis dualizaria uma área posterior,
fortemente postural, constituída, grandemente, por músculos de acção cons-
tante e anti-gravítica, e que compõem uma “cadeia muscular” com tendência
para a tensão e o encurtamento, e uma área anterior, fortemente “liberal”,
3, 4, 5
focada no movimento . A Estrutura posterior assegura o funcionamento
da anterior, mas o excesso de encurtamento da primeira pode fazer do
movimento um processo disfuncional e doloroso. Claro está que, aqui, já
processamos a teoria “racional”, segundo a qual a postura interfere na função
e pode provocar a dor. A última é o referencial empírico da teoria. E esta é a
própria cadeia muscular, o plexo “subconsciente”, que fomentaria o sintoma.
Nela se incluem, também, as diferentes variáveis psicossociais, que, aliás,
poderão encurtar e, consequentemente, “doer”. Curiosamente, o excesso
terapêutico, o exceder do alongamento, tem, precisamente, o mesmo efeito:
“dor”. Que o mesmo será dizer que o terapeuta pode ceder ao dogma, impli-
cando o paciente no processo. Se existe equilibração postural, é de esperar
função indolor, diríamos, ainda, que subsiste uma harmonização «terapeuta
vs. paciente». Mas se o dogma se espraia, aumenta a polarização «terapeuta
vs. paciente», com cada um reagindo defensivamente. E a defesa encurta a
“postura” (i)racional. E cria o sofrimento empírico. E este gera, ainda mais,
defesa. Nova defesa, novel postura, pode ser que o ser se adapte empirica-
mente, reduzindo o grau de sofrimento. Mas, para isso acontecer, é preciso

538
O FisióSOFO

que o sintoma seja dirimido, nada obsta, por exemplo, ao medicamento.


Uma compensação psicogénica poderia ser, também, de azo a harmonizar a
nova postura racional com o “insofrimento” empírico. De algum modo,
concebemos, aqui, a possibilidade dum novo equilíbrio «Razão descendente
vs. empirismo ascendente», que, a nível psicossocial, poderia gerar toda uma
nova “sociologia clínica”, submetendo a novel Razão a um conjunto de
“convertidos” ao novo equilíbrio. Isto, claro, não aconteceria, decerto, sem
que uma outra parte do Sistema viesse a sofrer empiricamente.
A partir daqui, o nível de relativismo e subjectividade poderá levar-nos
muito longe, poderia modificar-se toda uma “episteme” (Foucault), consti-
tuindo-se novel equilíbrio onde as terapêuticas, incluindo a medicação,
teriam de ser adaptadas à nova realidade “racional”. Pode ser mero saudo-
sismo, mas há a possibilidade da nova dinâmica não compensar de todo o
esforço do Sistema. Claro está que o dogma quererá vender-se, mas nada nos
garante que poderíamos alcançar algo “melhor”. E se é para obter algo neu-
rologicamente comparável, talvez não compense trair a ordem primeva do
corpo. O que nos (re)direcciona de volta para a Estrutura básica e para o
necessário respeito empírico da mesma. É preciso notar que apesar do dogma
prescrever, bastas vezes, um objecto a abarcar, este poderá não passar de uma
simples etapa do caminho. E o mesmo acontece com a trama psicossocioló-
gica, pelo que, de certa forma, uma intervenção é, apenas, uma compensação.
E isto é ainda mais real no que respeita ao contexto do que é multivariado. A
complexidade do “Ser” tem sido advogada por muitos terapeutas para reme-
ter às limitações da farmacologia face às terapias psicossociais, mas é exacta-
mente o nível de relativismo dessa complexidade que constitui a fraqueza
desses paradigmas. No campo do Holístico, cabe tudo o que quisermos, e
vários equilíbrios poderão permutar-se. E como estamos sempre aquém da
Verdade, até porque esta é, de todo, inalcançável, toda a acção é compensa-
ção, e a intervenção psicológica, mesmo a legítima, será, fundamentalmente,
um placebo. Não é por acaso que tantos psicólogos e psicoterapeutas conce-
bem o placebo como intervenção legítima.
Às tantas, compensação por compensação, será, muitas vezes, preferível
recorrer a algo que seja, apesar de tudo, mais objectivo, algo que não nos
afaste muito da ordem empírica do corpo. E é aqui que se posicionam mui-
tos fisioterapeutas e clínicos. As compensações são, de qualquer forma, inex-
tinguíveis, nada é completamente “resolvente”, a transformação é implacável
e, perante ela, há que adensar a objectividade, sob pena de cairmos no caos.

539
Luís Coelho

Há, então, clínicos que preferem estabilizar a condição dolorosa com verten-
tes terapêuticas meramente anti-sintomáticas. Mas, aqui, mais uma vez, caí-
mos na possibilidade de proporcionar novas “liberdades” ao corpo passíveis
de complexificar o quadro “causal”. Medicamentos analgésicos administra-
dos sem um tratamento adequado da causa do problema poderão promover
novo sofrimento racional e, por consequência, empírico. Ora, o paradoxo
não deixa de exprimir o “estado de arte” de intervenção clínica de muitos
profissionais em muitas condições. Assim, talvez o único modo de dirimir a
polarização vigente esteja na necessária equilibração dos modelos: as dores
precisam dum trabalho “causal” e de um outro, anti-sintomático, sem que
qualquer um deles seja excedido. A algia filosófica tem, desde há muito,
compatibilizado Razão e empirismo, por vezes dum modo desarmónico. A
harmonia entre a cadeia racional e o movimento empírico permite, não obs-
tante, fazer crescer a linha raquidiana, pacificando o “Ser” na despolarização
Sujeito-Objecto, Terapeuta-paciente.
A harmonização entre holisticidade e cientificidade é, de resto, o mote
de qualquer boa terapêutica, isto se pretendemos “estabilizar” o Ser, escu-
sando o perigo da transformação desnecessária. Aliás, só há vera Razão se
houver acordo com a empiricidade, o placebo é demonizado porque é “irrea-
lista”, mas o seu carácter só se desvela na medida em que o preteritamente
racional se revela irracional. Claro está que, de certo modo, tudo é racional e
irracional ao mesmo tempo, justamente porque tudo é compensação. Aqui, é
6
o próprio “relativismo dogmático” (Popper ) que brota e pretende ver-se
estabilizado pelo rigor empírico, e dirá o dogma que este fenece a possibili-
dade de transmutação, e o paradoxo não cessa, mas, como já vimos, a tera-
pêutica medicamentosa está envolvida, irmãmente, nos dois pólos, porque
pode estabilizar, mas pode, também, proporcionar a compensação transfor-
madora. E assim como um terapeuta, ou um farmacêutico, poderá aliar
polarmente as diversas vertentes epistémicas, isto não será em desprimor de
se aliarem as diferentes áreas terapêuticas, conluiando esforços clínicos.
O terapeuta sabe, por exemplo, que um alongamento primoroso pode
reflectir-se numa dor neuropática, sabe que pode acrescer-lhe o movimento,
o trabalho de força, mas sabe, tal-qualmente, que um medicamento poderá
minorar a dor e a inflamação, possibilitando mais função. A farmacoterapia
alia-se, reiterando-se essencial. Também o farmacêutico não esquece as variá-
veis psicogénicas, simplesmente as coloca num plano paralelo. E este plano,
excedendo-se, pode convidar ao abandono do mesmo fármaco que permite

540
O FisióSOFO

tolerar, francas vezes, uma psicoterapia. Mais difícil seria tolerar “ad infini-
tum” uma terapia dolorosa, com a promessa da salvação vindoura. Nem
todo o sofrimento se justifica. Não parece razoável estender indefinidamente
uma terapêutica sem o adequado suporte empírico. Há transformações tão
sofridas que se tornam incompatíveis com a vida “funcional”. Quando a
mutação é exagerada, acaba por ocorrer uma polarização Terapeuta-paciente
passível de banir os elementos do Sistema. Como se a nova Razão fosse, de
todo, estranha, familiarmente irracional.
Diante dos excessos compensatórios, o prescritivismo farmacológico
pode parecer securizante – também ele seria, quiçá, um placebo –, mas não
deve, todavia, perder-se a riqueza dialéctica, que não é impossível para a
Farmacologia, no fundo, o que se pede é o jogo compensatório da vida exa-
minada, a dialéctica constante, mas cerzida pelo equilíbrio (psico)somático.
Os excessos da própria ciência são de mote a produzir a necessidade placebe-
tária, a tolerância, a flexibilidade, é o melhor remédio.
Referências bibliográficas
1. Foucault M. Les mots et les choses. Gallimard; 1966.
2. Coelho L. Raquialgias: Modelos fisioterapêuticos e preventivos. Gazeta Médi-
ca. 2020;7(3).
3. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
4. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
5. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem; 2008.
6. Popper K. The open society and its enemies. Routledge & Kegan Paul, Ltd.;
1945.

A minha hipocondria levou-me ao veterinário. Fui tratado como um


animal. Saí satisfeito, com receita e nova consulta marcada.

Aquele vendedor é um vendido. Vê lá que só vende o impagável a preço


de saldo.

541
Luís Coelho

{Oncologia e Fisioterapia:
Epistemologia da dor e função37}
A relação da Oncologia com a Fisioterapia é dual como todas as relações
vitalistas, mas um equilíbrio as comunica, bem como as suas componentes
epistémicas, o seu binómio «Insofrimento vs. função», de resto o binómio
que caracteriza a harmonia que se estabelece entre a medicina curativa e a
paliativa, e entre a ciência médica e a Fisioterapia, que se desvela na sinergia
empírica que sempre defendemos.
Essa sinergia está bem patente na própria Fisioterapia, no modo como
esta “ars” compatibiliza a dimensão psicossocial dos métodos de maior ampli-
tude abstracta com a vertente científica das técnicas que se aplicam perfeita-
mente ao modelo “biomecânico” em Saúde. Aliás, a harmonia empírica e
biomecânica só pode ser obtida no esforço concomitante de aplicar ao “curto
prazo” funcional a urgência da teoria, se não houver equilíbrio, o Insofri-
mento não pode ser funcional ou, até mesmo, vital.
Certa Fisioterapia pretende, bastas vezes, fazer sobressair o seu aspecto
psicossocial, aplicado ao (in)sofrimento, esquecendo que a vida, que a pró-
pria medicina alopática, exige o traçado empírico da dor, a algia do equilíbrio
passível de escusar as piores consequências. Sabemos que alguns métodos
dogmáticos podem prometer a salvação, pela extinção da dor, ou, quiçá,
fazendo-a sobressair, mas são muitas vezes estes que mais ameaçam a quali-
dade da vida, até pelo modo como pretendem sobressaltar-se face à medicina
medicamentosa, como se fosse possível negar a química da vida.
Mas haver química é haver uma harmonização clínica representada pela
própria linha média raquidiana, que, de algum modo, divide uma zona pos-
1, 2, 3
terior do corpo, rígida e hipertónica , “locus” das grandes teorias, duma
zona anterior, liberal, afeita ao movimento. Os excessos dos métodos “poste-
riores” poderão matar o equilíbrio álgico, seja porque o calam, seja porque o
exacerbam, criando, assim, um risco para a própria vitalidade, destruindo a
função urgente da máquina relacional. É verdade que o excesso também
4
pode fazer urgir um novo equilíbrio, uma nova relação “erótica” da Estrutu-
ra com a função, como da Razão com a Realidade displicente, mas este é um
risco que nem sempre vale a pena correr. Por vezes, o caminho para o “inso-

37
Junho de 2022, publicado em «Healthnews», Outubro de 2022.

542
O FisióSOFO

frimento” poderá, tão-só, matar. Pelo que é preciso que a Fisioterapia sempre
se acautele na sua apologia da “qualidade de vida” face à simples “vida”, não
vá matar-se a dualidade, que, bem sabemos, deve, continuamente, prevale-
cer, na dialéctica da existência.
Uma função indolor é, claro, o objecto mútuo de Medicina e Fisiotera-
pia, e estas não podem excluir-se da harmonia raquidiana, que é de crescer
“espiritualmente”, se a teoria for adequada à função cientificadora. Nisto,
também a Fisioterapia deve ser questão “de vida ou de morte”, paralelamente
à Medicina, com seu binómio constante trabalhando para a Unidade, que é,
tal-qualmente, o Uno “terapeuta-paciente”, e a harmonia entre o aspecto
psicossocial, e até placebetário, e o aspecto profusamente biomédico, que se
consubstanciam, prevenindo as compensações desadequadas, as dores/sofri-
mentos que poderiam ser evitadas. O sofrimento mais genuíno é, aqui, a dor
inútil, que certos dogmas pretendem muitas vezes alavancar, mais tarde sen-
do, acaso, traídos por um equilíbrio global mais disfuncional, que, ainda
assim, compõe o seu intrínseco trajecto dialéctico e equilibrante. A Unidade,
de qualquer modo, não é a morte da relação clínica, é, apenas, a harmoniza-
ção da autonomia do seu desiderato crescente, que, infelizmente, terá, algum
dia, a sua finalização independente.
Todo o processo em causa não pode expulsar-se da realidade clínica, a
própria Filosofia é Saúde, ou, talvez, a doença da Saúde, as narrativas são,
também, as dos profissionais, que sofrem clinicamente com o paciente, são –
eles mesmos – pacientes, percipientes dum equilíbrio que deve evoluir para
um esquema do Corpo que integra e é integrado, constantemente, numa
Unidade maior, numa psicossociologia clínica que não se subtrai ao rigor da
sua elementaridade biomecânica.
Referências bibliográficas
1. Coelho L. Raquialgias: Modelos fisioterapêuticos e preventivos. Gazeta Médi-
ca. 2020;7(3).
2. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
3. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
4. Freud S. Para além do princípio do prazer. Relógio D'Água; edição original
de 1920.

543
Luís Coelho

{Otorrinolaringologia e Fisioterapia: Posturas38}


Se à Fisioterapia científica interessa a relação que se estabelece entre a
“postura” e o estado funcional das suas componentes “neurais”, ao fisiotera-
peuta “postural” interessará, bastas vezes, mais prover o papel da postura, da
relação entre as Cadeias musculares, no funcionamento dos “receptores”
1
podal, ocular e mastigatório (Bricot ), bem como na forma como estes afec-
tam a “representação” da primeira nas estruturas corticais e subcortcais.
Aliás, é provável que muitos fisioterapeutas lembrem, concomitantemente, o
papel do equilíbrio ascendente, olvidando, quiçá, o papel da descendência
“neural”.
Mas a descendência é tão ou mais importante para o funcionamento do
sistema músculo-esquelético do que o dogma “postural” permite muitas vezes
alavancar. Ideias ultrapassadas relativas ao fortalecimento dos extensores do
tronco e à Higiene Postural (que é actuar conscientemente sobre músculos
que funcionam na base de um colectivo neuro-mio-fascial essencialmente
2, 3
inconsciente) não sofrem grande evolução se o paradigma mézièrista não
integrar a função neurológica, incluindo a propriocepção. Aliás, os excessos
daquele modelo são do âmbito do alongamento desmesurado da musculatu-
ra posterior, considerada fundamentalmente hipertónica, que é o mesmo que
admitir que um dogma se sobrepõe à urgência da função, multiplicando as
necessidades compensatórias. E, no entanto, podem as últimas fazer vigorar
outros modos de equilíbrio, outras relações entre a descendência neural e
tónica e a ascendência sensorial e proprioceptiva. Não podemos considerar
que um equilíbrio absoluto é passível de ocorrer, mas sabemos que um
doseamento das compensações não pode negligenciar o papel dos receptores
no modo como enformam uma representação que, por sua vez, influi no
equilíbrio muscular.
A harmonia deve, assim, ser empírica, na medida de um duplo sentido,
não sendo, muitas vezes, possível saber onde tudo começa ou acaba. Os recep-
tores em causa são, apesar de tudo, localizações precisas do encadeamento das
Cadeias musculares, com estas a modificarem os seus funcionamentos e vice-
-versa, e todos desenham aquilo com que um novo “princípio” reinicia o ciclo.
Para que o círculo vicioso não crie dor ou disfunção não compensáveis, em
alguma parte do Sistema há que providenciar a “compensação”, soçobrando
um longo caminho para a investigação longitudinal relativa ao imenso caudal
38
Junho de 2022, publicado e «Healthnews», Setembro de 2022.

544
O FisióSOFO

de variáveis que, de qualquer modo, se convidam perpetuamente ao (des)equi-


líbrio constante entre teorias e experiências, no domínio interdisciplinar,
entretanto enriquecido, de médicos e terapeutas.
Tal objecto abre novos capítulos na relação entre a Otorrinolaringologia
e a Fisioterapia, que devem poder fazer a ponte entre uma dinâmica teorizan-
te e a prática, até casuística, dos profissionais, sobrepondo, sempre, a dúvida
“céptica” à tentação dogmatizadora ou, até mesmo, corporativista.
Referências bibliográficas
1. Bricot B. Posturologia (3ª edição). São Paulo: Ícone Editora; 2004 (edição
brasileira).
2. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
3. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.

Já não se faz um Agora como antigamente. E, agora que me lembro, já


nem sei como era sair daquele tempo.

Podes conhecer-me, mas só até ao fim do prazo de validade. Depois


dessa data, quando te vir na rua, saberei que não morri de amor.

Ultimamente, com tantos “coachers”, tenho-me sentido desalentado.

Era um professor a seduzir os alunos. Para o objecto do conhecimento.


Os alunos fizeram queixa. Pior: gostaram do que viram.

O professor gostava do que ensinava, não de quem ensinava. Os alunos


aprenderam. Se não fosse inacreditável também ensinaria.

545
Luís Coelho

FB. A julgar pelos comentários que vêm a seguir, já não ponho aqui
nada, que é para aprenderem a não julgar pelas aparências.

Num país que não acredita em si mesmo, o mínimo que eu posso fazer
por vocês está em não vos dar esperanças. O resto é surpresa.

Foi preciso encontrar-te para saber que me procurava.

{O método Pilates: novo dogma da Fisioterapia}


Centrado na “contrologia” corporal e segmentar, sobretudo pela via do
trabalho abdominal profundo, o Pilates tem assumido um espaço destacado
no mundo da Fisioterapia, ao ponto de substituir boa parte do assomo clíni-
co, com o risco de que o primeiro venha, em breve, a revelar todas as suas
limitações.
Prometido como método global, o Pilates tem algo dos vetustos méto-
dos dogmáticos e, também, algo das metodologias científicas, ele promete o
equilíbrio centrado nos mecanismos de trabalho “low impact” que devem
ser, igualmente, um modo de harmonizar o alongamento das estruturas
hipertónicas, “dogmáticas”, com o reforço da musculatura anterior, “liberal”.
Este é o objecto da acção postural, já tantas vezes defendida pelos métodos de
orientação mézièrista, que advogam que deve existir, especialmente, uma
1, 2, 3
inibição da musculatura excessivamente tónica, das Cadeias musculares .
Aqui, o Pilates desempenha um papel fundamental no reforço das estruturas
profundas. Mas poderá basear-se num equívoco, se não tiver ocorrido, pri-
meiramente, uma inibição do que é excessivamente “forte” e “inibe” a mus-
culatura abdominal. O Pilates, geralmente preconizado, arrisca-se a fazer,
precisamente, o contrário, pelo que nunca poderá ser realizado sem um pla-
no de equilíbrio “holístico”.
Claro que existe uma desconfiança científica pela holisticidade, daí que
não propugnemos os excessos de “alongamento” dogmático subjacentes à
teoria das Cadeias musculares, mas também a desmesura cientificista, “ante-
rior”, do Pilates se arrisca a desinibir o que já é excessivamente forte. É aí que

546
O FisióSOFO

o Pilates se converte em novel dogma, fazendo as vezes das metodologias


mais abstractas. Claro está que, mesmo neste contexto, o Pilates não pode
prometer reeducar, verdadeiramente, a postura, é um método muito menos
efectivo do que é propugnado, mais rapidamente a força envolvida deforma e
obstipa, o que nos remete, identicamente, para o funcionamento do pavilhão
pélvico. Mas os achados funcionais não podem ser negligenciados, apenas se
pede uma nova atitude que integre o método num “Todo”, simultaneamente
estrutural e funcional, postural e agónico, inclusivo do melhor que tanto o
dogma “posterior” quanto a ciência futurável nos poderá dar.
Se bem que afecto a uma atitude científica nomotética, o trabalho,
entretanto “revolucionado”, de grupo, em Fisioterapia, não pode exercer, da
melhor maneira, o equilíbrio clínico, que, ainda assim, exige algum cuidado
pela idiossincrasia. Porque o equilíbrio é “individual”, há posturas diferentes,
modos diversos de relacionamento do dogma estrutural com a função agóni-
ca. O referencial neurológico desempenha, aqui, o papel de grande decisor da
equilibração, que poderá, em diferentes pacientes, implicar uma intervenção
bem díspar. No campo da urologia, não é raro encontrar pacientes com
desequilíbrios bem visíveis, centrados, grandemente, no encurtamento da
cadeia muscular posterior, qualidade paradigmática do sexo masculino, e que
contribui para dificultar a prática do Pilates, tornando-o mais forçoso e into-
lerável. Nada do que se pretende quando se advoga o Pilates como um bom
método de treino do pavilhão pélvico, mais sustentável no seio de um equilí-
brio, que, ainda assim, também parece provir do dogma, mas que possui o
melhor do mesmo, que é, tal-qualmente, uma maneira de defendermos a
importância, constante, de harmonizar o treino muscular e funcional duma
forma que abdique de incrementar a força onde ela não faz falta.
Sem que o Pilates seja repensado, parecerá que ele serve, apenas, a saúde
feminina, ginecológica e obstétrica, demonizando o seu papel na saúde andro-
lógica, precisamente onde se carece de maior flexibilidade muscular, postural
e epistémica, ou seja, onde se carece dum novo enquadramento da relação da
Fisioterapia com a intervenção andrológica e urológica, susceptível de criar
um território novel de investigação – científica, filosófica e antropológica –
prestes a despontar.

Referências bibliográficas
1. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem, 2008.

547
Luís Coelho

2. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;


1949.
3. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
Junho de 2022

{Psiquiatria e Fisioterapia: Posturas39}


A comunicação entre Psiquiatria e Fisioterapia numa analogia, teorética
e pragmática, meta-consciente não se esgota na questão epistemológica ou
ética, estende-se à presunção dum novo equilíbrio relacional que se traduz na
proposta de redesenhar, constantemente, a normalidade.
Que a mesma esboce um estado de arte logóico, disso não duvidamos, e
ele é o próprio equilíbrio que se estabelece entre a “ars” teorética e a prática
empírica, dualidade que rememora a relação terapeuta-paciente, a qual cami-
nha, consecutivamente, para o seu intrínseco esgotamento. Mas, para que
isso aconteça, é necessário que o duo «Estrutura vs. função», não sendo olvi-
dado, seja convidado a representar-se no jogo da empatia terapêutica e epis-
témica.
A Estrutura é, obviamente, necessária ao processo, a sua ausência é a
psicose, como se, na zona posterior do corpo, não subsistisse o esforço duma
musculatura semi-consciente, que nunca relaxa por completo, e que remete
1, 2, 3
para as Cadeias musculares , cujo trabalho depende da qualidade “flexí-
vel”. É a ameaça empírica que traduz a defesa dessa musculatura, ela é essen-
cial à sobrevivência tónica, mas o seu excesso implica a perda da capacidade
de contracção, levando, também, à urgência de esforçar, crescentemente, a
musculatura “liberal” da parte da frente do corpo, repercutindo as defesas e
tolhendo o corpo, bem como a relação.
Mas o excesso hipertónico não depende, somente, do défice de alonga-
mento da musculatura, é, igualmente, consequente à necessidade imperativa,
excessiva, do próprio alongamento, excesso, por sua vez, do dogma, que, na
Fisioterapia, aparece, acaso, representado pela teoria da “reeducação postu-
ral”. Isto porque o alongamento desmesurado alimenta novel defesa, o que,
porventura, poderia consubstanciar um novo equilíbrio postural, e, portan-
to, uma relação renovada com a Realidade. E, no entanto, se este equilíbrio
39
Julho de 2022, publicado no jornal «O Diabo», Setembro de 2022.

548
O FisióSOFO

for menos vantajoso, parecerá que esta relação racional é, fundamentalmen-


te, placebetária, capaz de exaurir a ligação com o exterior, bem como a
intrínseca capacidade de flexibilização referencial.
Atemos, logo, o papel do dogma terapêutico, que, ainda assim, consubs-
tancia um excesso clínico, passível de “doer”, de causar o sofrimento meto-
dológico e ético, capaz de burilar novel (des)equilíbrio. Isto, claro, não deve
mortificar a necessidade de ater a dor enquanto marcador empírico da quali-
dade terapêutica, o seu excesso é como a sua ausência, poderá recriar o equi-
4
líbrio num círculo vicioso “absurdo” , que, de mais a mais, constitui um outro
modo de neurose.
Haver equilíbrio é possibilitar o alongamento moderado do dogma,
permitindo gerir a dor, a defesa, e facultar a relação “empática”, aqui é admi-
tida a ligação terapeuta-paciente, que é como quem diz “Sujeito-Objecto”,
redução fenomenológica passível de pacificar o processo clínico.
Esta “paz” é a harmonia entre o que o dogma tem de científico e a pró-
pria empiricidade paciente, só aqui pode o Uno terapeuta-paciente avultar,
em postura e “espírito”, fortificando a precisão epistémica de relacionar,
constantemente, a necessidade psicossocial e a obrigação da prova. Este é um
terreno que é comum à Psiquiatria e à Fisioterapia, sobretudo numa pós-
-modernidade que reproduz, recria, dogmas, falácias, bem como modos dife-
renciais de relação terapêutica bastas vezes equivocada, em que, às tantas, é o
clínico que se torna paciente dum Sistema desorganizado, desequilibrado.
Reconhecer a carência placebetária do clínico defende este duma prática
meramente escolástica, em que o raciocínio se afasta da unidade empírica, na
qual podemos afirmar as melhores respostas terapêuticas, que não se conso-
mem numa promessa infatigável de equilíbrio, nunca plenamente alcançável.
Como sempre, tanto a Psiquiatria quanto a Fisioterapia vêm sofrendo do
excesso dogmático, que pede, frequentemente, o impossível ao paciente, care-
cendo, portanto, do obrigatório realismo empírico.
O último não é completamente consciente, ele implica, similarmente,
que a harmonia entre Estrutura e função, se faça dum modo espontâneo, à
custa de inibir as forças desnecessárias. Haver harmonia é subsistir postura
funcional, estrutura apta a agir. A postura psicossocial é convidada a “sofrer”
levemente o que a pode fazer crescer empiricamente. Num tempo e espaço
realistas, evidentes, em que o clínico se autoriza medir, para além de narrar o
que a relação terapêutica lhe permite. Trata-se muito mais do que trazer a
hipertonia inconsciente à superfície consciente, porque este equilíbrio é

549
Luís Coelho

silencioso, repleto de leveza, e, aqui, sim, atemos o princípio espiritual, “ver-


bal”, que é aproximar a unidade clínica da transcendência, sem colocar em
risco a faculdade de estancar a possibilidade de um fôlego adaptativo, fun-
cionante, que compromete o clínico, também na medida em que este cresce,
se constrói, e constrói a “ciência do espírito” na relação incessante com a
necessidade de flexibilizar o jogo das mundividências científicas.
Aceitar a ligação impartível entre o “psicossocial” e o “clínico” exige que
a nova atitude funcional radique num “insofrimento” da dualidade equili-
brada de Psiquiatria e Fisioterapia, e que transpõe, em muito, a mera obriga-
toriedade de psicologizar o somático. A acção terapêutica tem de criar a
“escuta activa” dos novos modelos de complexidade clínica e relacional, sem
os quais não será possível ater o Soma num novel formato superconsciente, a
prometer novos equilíbrios da Razão com a Realidade, do Logos com a Doxa,
5
e destes com o Sentimento com menor logocentrismo .
Referências bibliográficas
1. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem, 2008.
2. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
3. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
4. Camus A. Le mythe de Sisyphe. Gallimard; 1948.
5. Derrida J. Gramatologia. Edição original de 1967.

Importante, mesmo, é que os pais saiam aos seus filhos.

Quando deixar de ter contas para pagar, direi o que penso do mundo.
Até lá, estarei ocupado.

Quando deixei de me fazer entender fiquei preocupado com a possibili-


dade de ficar impune. Mas não passou dum desentendido, que a imunidade
de rebanho tem os seus próprios anticorpos.

550
O FisióSOFO

Eu sou mais do género de não ter sexo. Não é Ideologia, é mesmo ser
virgem.

Morreu durante o dia, superconsciente, vítima de doença desprolonga-


da. Não rezem por ele, já basta que o fizessem na vida morrida. Torçam pelo
seu Inferno, que é melhor que o nosso.

Não me identifico com a Realidade porque não me identifico na Reali-


dade. Tomara que fosse imaginário.

Estava, indeciso, entre a vida e a morte. Socorreu-se dum “coacher”.


Ainda jaz, por Aqui, um belo epitáfio.

As minhas palavras são mais belas quando as vejo impressas. Mas as


minhas palavras não são mais belas quando as vejo impressas, porque as
minhas palavras não podem ser impressas. Só eu me imprimo, me esborrato
nas palavras, para que não soçobre nada.

{Oftalmologia e Fisioterapia: Posturas}


A maior deficiência postural é o excesso. Excesso de postura, que, às
tantas, ausenta o equilíbrio, imputando à fraqueza muscular o que é, apenas,
fraqueza de perspectiva. E esta não pode ausentar a medicina de cunho mais
neuronal, a visão da ciência alopática que equilibra, muito particularmente, a
Oftalmologia com a Fisioterapia de maior amplitude.
A amplitude é a tolerância postural, porque o “posicionamento” depen-
1, 2, 3
de, sobretudo, da flexibilidade da cadeia muscular posterior , e da relação
desta com a mobilidade, função, anterior. A postura, entretanto, recruta a
posição ocular, e esta, em conjunto com a actividade de outros receptores –

551
Luís Coelho

4
mastigatório e podal – cria a aferência que o corpo consome e a postura
exprime. Os receptores são a voz da ascendência “sensitiva”, deles provém a
riqueza do mundo exterior, ou seja, a fonte de um novo equilíbrio postural,
que, constantemente, se conforma “activamente” pela vertente “agónica” da
relação dos centros superiores com o que é seduzido pelos “sentidos”. A dua-
lidade epistémica demarca a harmonia, o desequilíbrio é polarizador e con-
vida à tensão “posterior”. Cabe ao terapeuta propiciar o “alongamento” neu-
romuscular, mas, se este se exceder, os músculos “enfartam-se” e surge a
“angina”, a algia, bem como a disfunção, que é o oposto da despolarização
terapeuta-paciente (agente-percipiente, Sujeito-Objecto). Reforçar ou alon-
gar excessivamente é providenciar a ligação desarmónica com o meio, pode,
até, ser que o “excesso” da musculatura óculo-motora “recrie” a deficiência
postural, mas a maior deficiência, a vera cegueira, provém de olvidar o aspec-
to neuronal, que é, seguramente, o grande agente do estado muscular. E, para
ele, o equilíbrio é o que propicia a função indolor, que, de mais a mais, com-
patibiliza a recepção terapêutica com a nova atitude neuromuscular, o estado
do Objecto músculo-esquelético com o da verdade do Sujeito cognitivo.
A dualidade reitera a relação equilibrada do fundo epistemológico que
inclui fisioterapia articular e medicina neurológica, mas, atendo à riqueza do
mundo terapêutico, é preciso criar a aceitação de outros equilíbrios, de
outras posturas “correctas”, que, ademais, permitem desafiar a própria esta-
bilidade científica, compondo uma nova visão, novel fisiologia, que, mais
uma vez, não pode esquecer o papel dos “centros superiores”, e do receptor
visual, que é, ainda assim, o fulcro das “cadeias musculares”, do eixo raqui-
diano que tende para o crescimento espiritual, fazendo ressentir renovadas
formas de equilíbrio álgico, em que o caminho para o Insofrimento é cum-
prido na novel visão cega, lucidez da actividade céptica, inclusa de terapeutas,
médicos e outros pacientes, na abrangência do que parece esperar a nova
Fisioterapia, em substituição da via frequentemente passiva, que tem gerado
5
a deficiência postural de uma clínica que resvala, consecutivamente, entre os
6
excessos dogmáticos das teorias e os excessos fortificadores do “labor” cien-
tificista.
Assim sendo, cabe à Fisioterapia genuinamente harmónica apreender
do olhar da Oftalmologia aquilo que poderá consignar o seu equilíbrio empí-
rico, o que demora a acontecer na obrigatória promessa epistémica. Não
basta que existam fisioterapeutas “oculares”, “neurológicos”, ou ortoptistas,
porque é a própria Ortodoxia que precisa de aprender a flexibilizar-se, refor-

552
O FisióSOFO

çando o lugar da clínica bio-psico-social, e escusando todas as abordagens


pouco evidentes que, constantemente, desafiam o equilíbrio epistemológico e
profissional em Saúde. Haja, assim, uma relação renovada entre as artes, os
“pathos”, sendo que dela queremos esboçar não a regra cega, mas a cegueira
de dogmatismos, a lucidez orbital, a evidência óptica e reflexiva, a filosofia da
refracção angular e sistémica.
Referências bibliográficas
1. Coelho L. O anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao
conceito de reeducação postural. Quinta do Conde: Contra-Margem, 2008.
2. Mézières F. La révolution en gymnastique orthopédique. Paris: Vuibert;
1949.
3. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris: Maloine; 1981.
4. Bricot B. Posturologia (3ª edição). São Paulo: Ícone Editora; 2004 (edição
brasileira).
5. Foucault M. Les mots et les choses. Gallimard; 1966.
6. Marcuse H. Eros and Civilization - A philosophical inquiry into Freud.
Boston: Beacon Press; 1966.
Agosto de 2022

O meu coração, também, já chegou ao Brasil. O resto do corpo vai a


caminho. Quanto ao Espírito, ainda indeciso, teve um enfarte.

Hoje, que andei com más companhias, acho-me irresistível. Por isso
chamei-te, para que me resistisses.

Admito e aponto: Se não fosses o meu braço direito, seria canhoto.


Confusa?... Não fosses surda.

Preso por ter cão e preso por não ter. Em resumo: sê cão!

553
Luís Coelho

A “morte” chegou a perguntar-me “se era a minha vez”,


ela estava morta de cansaço e eu cansado de morrer.
Disse-lhe que era a minha vez de viver,
ela despachou-me com a mentira,
Fingia-me de morto,
deixou-me adormecer.

Que todos nos persigam, não é mau,


que um poema nos escape, não é bom, mas é melhor
que ser um poema a escapar-nos da morte.

Fiz de tudo para ser amado, e nada para ser aceite,


E ainda me vieram pedir conselhos
de como amar sem ser correspondido.
Ignorei-os, com amor.
Ouvi dizer que, para amar, é preciso ignorar como se faz,
Isso ressente-os,
depois, andamos a escrever pequenas notas
e a convencê-los de que não são versos,
mas apontamentos para um artigo.

Ele sentia-se perseguido, e, só para contrariar, perseguia-se, ressentido.

A sua felicidade será debitada em breve. Por favor, não responda a esta
mensagem. Sobretudo com um “sorriso” :).

554
O FisióSOFO

Era um bom companheiro e melhor filósofo. Quando ficava feliz, amua-


va, para não gerar constrangimentos. Mas quando o chamavam de “indiferen-
te”, chegava-lhe a mostarda ao nariz e era capaz das maiores delicadezas.

Na noite das bruxas, a Morte virá avisar-me que voltará no dia das
mentiras. Fiquei confuso a agradeci o trabalho de me mentir piedosamente.
Não era assim que queria morrer, a fazer contas à vida.

Quem se vê grego a ler um estóico tem de ser espartano para falar com
um. Se saber esperar é uma virtude, desesperar por um estóico é santidade.

Curso de (Pedagogia para a) Gestão de 125 euros. Investimento: 125


euros. 08/09/2022

“Quem diz é quem é.” Foi com esta frase que se destruíram muitas
identidades e se desvelaram muitos traumas. Deveria ser um “mantra”.

A faca não corta o queijo


E tinha toda a Razão
Resta o beijo
com que darei a lição.

Ando a trabalhar para ser Sem-abrigo, mas não consigo arranjar lugar
em Lisboa. É injusto que não possa viver no meu lugar de trabalho.

Só peço que não me dês tudo o que te peço. De qualquer modo, só te


peço o que não quero. Para que sejas tudo o que quero pedir.

555
Luís Coelho

A minha experiência diz-me que a experiência se desdiz. E tem toda a


Razão. Eu que o diga.

“Quem não sente que uma grave doença o assalta está mentalmente doente.”
(Hipócrates)

Dei-me como desaparecido na esquadra mais próxima. Prenderam-me.


Já me sinto outro.

Perdi-me, ontem, na rua. A quem teimava em encontrar-me, pergunta-


va se era com intenção. Só eu parecia despropositado.

Fizemos Amor, mas foi sem intenção. Doutro modo, seria pecado.

Já te vi melhor. Mas, agora, estás perfeita.

Ouve: quando fores capaz de me compreender, avisa-me, que é para eu,


finalmente, me preocupar. (Fica o aviso para não ter de o fazer depois.)

Abriste a boca e saiu asneira. Mas quem ficou com a mosca fui eu. E
ainda dizem que o mundo é injusto!

Não há nada mais contranatura do que a Ética. Devia ser proibido.

556
O FisióSOFO

Tentei ser um homem melhor, não consegui. Pior, ainda me disseram


que tinha feito o meu melhor.

Se Deus não existisse, seria preciso inventar-me.

Sou um céptico: só acredito se deixar de ver.

Eis o que li num livro de profecias: Este livro terá sucesso suficiente para
você estar a lê-lo. Pena que o leitor não possa dizer o mesmo.

A morte, aceito-a bem. Só não aceito ter de morrer.

Desconfiava de tudo e de todos. Sobretudo de si mesmo. Não fosse trair-


-se.

Fiz um exame de consciência e ia chumbando: tinha muitas questões


traiçoeiras.

A minha memória surpreende-me... com coisas de que nunca me lem-


braria. É falta de ser criativo.

Como futebolista, eis o meu “coming out”: Espero que me respeitem:


sou árbitro. Mas sempre quis ser fiscal de linha.

557
Luís Coelho

Com os anos, a memória deixa de ser o que era: as pessoas deixam de


conseguir esquecer. E quando se lembram de o fazer, arrependem-se.

Teremos, sempre, Paris. Porque nunca lá estivemos.

Podemos deixar de falar de Deus depois de Auschwitz? Poder, podemos,


mas não seria a mesma coisa.

«– Médico: Lamento, mas o seu familiar faleceu.


– Familiar: Não me leve a mal, mas vou pedir uma segunda opinião.»

Só não percebe o que eu digo quem quer. Imaginem se não quisessem.


Não posso admitir que me compreendam, eu ainda sou muito novo para
isso.

Se pensas que falas comigo dessa maneira ainda tens muito para pensar.
Já eu não tenho maneiras, pelo que me dispenso de ti, não vá lembrar-me de
ter modos.

Sabia a matéria toda na língua. Pelo que o professor o mandou para a


rua, que temia pelo seu Espírito.

Li-te: era inacreditável. Ainda vais a tempo de fazer pior.

558
O FisióSOFO

Acreditas-me? Mas que mal fiz eu a Deus para não me desacreditares?


Se, ainda, me disseres que me amas, é que eu me passo e fico calado de vez.

Não tenhas esperança, fá-la! Ah, não queres trabalhar? Ainda há espe-
rança para ti. Reservei-a no restaurante mais próximo, faço questão de te
servir, a sobremesa fica para mim.

Ai ele tem tido sucesso? Quem é que o mandou ser pau-mandado?

Nada me deixa mais impotente do que ver um anúncio para a disfunção


eréctil. Não fosse isso, acabaria com o Viagra.

Esteve, sempre, calado: O que queria, ele, dizer com aquilo? Se ainda
disparatasse não se perdia tudo.

Ouve bem, porque é a primeira vez que vou dizer isto, e irei repeti-lo
tantas vezes quantas as necessárias para te convenceres que é a última. Não,
não sou criativo, sou apenas Filho de Deus.

É preciso muito “má-fé” para se ser intelectualmente honesto. Sobretu-


do quando somos acreditados.

Toda a gente, aqui, percebeu excepto tu. Qual é o teu Segredo?

559
Luís Coelho

Caros Condóminos, queiram largar a Terra, para que seja feita a respec-
tiva manutenção. Levem os vossos haveres, e, à saída, esqueçam o caminho
de regresso. Sim, é verdade, vocês são, apenas, inquilinos.

Sou suspeito, mas não gosto lá muito de mim.

Que alívio ter doído!

É, para mim, pacífico que “Deus” seja um bom “nome de guerra” para
fazer a paz. Até porque tem diminuído o Factor de Impacto.

Filmes da minha vida? Aqueles que me fizeram pensar que o filme era
eu. Quem me dera que fosse sempre assim, sozinho na sala, personificando-
-me.

Hoje nada farei contra vós, para evitar desagradar-vos, não quero dar-
-vos esse prazer.

O que me impede de dar o meu melhor é o “bom senso”, assim limito-


-me a vender-mo, tentando melhorar-me.

Quando a NASA despenha uma sonda num asteróide para o desviar da


nossa rota, está a fazer um favor a quem? Não lhes pedi nada, e nada devía-
mos ao asteróide. E nem um agradecimento, muito menos a quem pensas
que o merece.

560
O FisióSOFO

Dei-te o coração, mas o que perdi foi a cabeça.


Pensarei, agora, na guilhotina
para quem te mereça.

O Eterno Presente é um presente envenenado: Sou imune.

Só não perdes a cabeça porque ela não está agarrada ao pescoço. Não
fiquei com o resto, era demasiado belo para isso.

Depois de ter experimentado todas as posições sexuais, tive de me ren-


der à evidência: nasceu nove meses depois.

Tinha experimentado todas as verdades só para não ter de dar razão ao


Real. Por fim, lá cedeu, mas o Real não quis reatar a relação.

Para quê perder tempo com a vida quando se pode passar a Eternidade
a servir de desculpa aos outros para não viverem atempadamente? Sai dessa,
não te apresses a viver, morre às prestações.

Se achas que a tua vida perdeu o sentido, dou-te um novo: explicar-me


como viveste quando a vida tinha sentido.

A grande prova da vida: não ter como provar que se arranjou um modo
de sobreviver sem uma âncora. Todos acham que me drogo. E, infelizmente,
as análises à urina são “inconclusivas”.

561
Luís Coelho

Se sentes que este é o pior dia da tua vida, não desanimes: piores dias
virão.

«– A: Qual é a diferença entre um fisiologista do exercício e um fisiote-


rapeuta?
– B: O fisiologista prescreve o exercício ao paciente. Já o fisioterapeuta
faz o exercício pelo paciente.»
(diálogo semificcional, que vou fingir não ter ouvido)

«– A: Qual é a diferença entre um fisiatra e um fisioterapeuta?


– B: O fisiatra prescreve e o fisioterapeuta interpreta livremente.»
(outro diálogo semificcional, que vou continuar a fingir não ter ouvido)

«– A: Qual é a diferença entre o Pilates clássico e o moderno?


– B: O primeiro cansa, enquanto que, no segundo, é o terapeuta que fica
cansado.»
(ainda outro diálogo semificcional, que vou continuar a fingir não ter ouvido)

O teu suor arrepia-me. Partilhemos um lenço, para que não possamos


seduzir-nos.

As pessoas querem morrer muito velhas, ao mesmo tempo que são


sempre mais novas do que a idade lhes permite, e ainda dizem que o Huma-
no não compreende o paradoxo da vida. Há agências funerárias menos incoe-
rentes: enganam-se na idade dos mortos, e colocam, ao lado, no cartão, sem-
pre a mesma citação de Santo Agostinho. Tenho, aqui, o cartão duma que
nos mata aos cem anos e, ainda, nos faz um desconto.

562
O FisióSOFO

Um padre “coacher” que faz musculação e um padre pedófilo são duas


santas redundâncias. Mas o impopular sou eu. Dizem que é pelo que digo,
não pelo que faço.

A Morte veio, e eu troquei o Xadrez pelas Damas, não fosse o bispo


tecê-las e ficar sem a Rainha. Não, não é ironia, e isto não é um aforismo, é
para deixar a Morte confusa enquanto lhe engulo umas peças.

Há coisas que são tão improváveis que só podem ter acontecido.

Há coisas que, não tendo explicação, levam-nos a explicar-nos ininter-


ruptamente. É para testar a nossa resiliência originária.

«– A: Eu sou Aquele que Sou!


– B: Mais um com lugares comuns.
– A: Eu tenho vários nomes e lugares!
– B: E, pronto, já é franchise.»

Ser humano e agir em prol do Humano: Há, lá, melhor forma de ferir a
“Lei das Incompatibilidades”? Só por isso sou “trans”, em breve assumirei
novel espécie.

Que nunca digam que me vendi: vou patentear-me. Mas isso não podem
dizê-lo, seria pouco original.

563
Luís Coelho

Na rua da Verdade, todos os lugares são para deficientes. Imaginem o


atrasado mental que sou, não consigo estacionar, detendo-me na avenida do
instante.

Na rua, quando passas, finjo, sempre, que não me vejo. Resulta tão bem
que foges, logo, a procurar-me.

Se o seguro morreu de velho, o inseguro mata-se, todos os dias, por ser


velho.
Quando o seguro morrer de velho, o inseguro matar-se-á de o não ser.

Naquele ninho de amor, imitava a tua assinatura melhor do que a minha.

Não olhas onde vês? Observa-me, vês como nunca me verifico, como
fico com as melhores vistas?

Nenhum dinheiro no mundo paga o sonho de (se) ser rico. Basta saber
que uma esmola vale um pesadelo.

Que aldrabe as pessoas, isso é lá com ele, mas que seja estúpido, é into-
lerável.

Culinária. Todas as receitas têm um ingrediente secreto: o provador.

Nada na doença é tão caro quanto a Saúde.

564
Índice Remissivo
Abraham H. Maslow, 365, 366, Emil Cioran, 127
367, 368 Étienne Bonnot de Condillac, 132
Agostinho de Hipona, 162, 562
Agustina Bessa-Luís, 31, 32 Félix Guattari, 123
Albert Camus, 39, 272, 278, 290, Flávio Justino, 140
403, 404, 405, 454, 550 Francis Bacon, 49, 89, 190, 270,
Antonio Gramsci, 361 278, 290, 315, 316, 343, 372,
Aristóteles, 131 385, 390, 414, 453
Arthur Schopenhauer, 112, 230, Françoise Mézières, 86, 88, 89, 90,
234, 276, 278, 342, 344, 365, 91, 92, 93, 94, 95, 100, 270, 277,
378, 380, 384, 472 284, 287, 290, 314, 316, 319,
Auguste Comte, 13, 14, 15, 16, 17, 337, 372, 379, 390, 541, 543,
20, 46, 350 545, 548, 550, 553
Friedrich Nietzsche, 38, 194, 276,
Baruch de Espinosa, 18, 24, 25, 32, 278, 291, 325, 327, 342, 344,
33, 36, 37, 38, 49, 283, 290 345, 360, 364, 367, 376, 405,
Basílio de Cesareia, 144 463
Bergson, 195 Friedrich Schiller, 198
Blaise Pascal, 226, 230, 231 Friedrich Wilhelm Schelling, 244,
Boécio, 164, 165 276, 278, 283, 290
Bronisław Malinowski, 123
Gaston Bachelard, 322
Carl Jung, 172, 180, 187, 189, 190, Georg Wilhelm Friedrich Hegel,
194 48, 123, 124, 125, 198, 275, 278,
Charles Sanders Peirce, 361, 380, 409, 474
384, 452 George Berkeley, 121, 128, 129,
Christian Wolff, 247 323, 495
Cícero, 138 Georges Bataille, 304
Clarice Lispector, 311 Gilles Deleuze, 123, 259, 493
Claude Bernard, 343, 347, 349, Gilles Lipovetsky, 198
354, 380, 385
Giovanni Boccaccio, 209
Claude-Adrien Helvétius, 132
Gottfried Wilhelm Leibniz, 12,
246, 247, 284, 290, 291, 327
David Hume, 121
Guilherme de Ockham, 224
Edgar Morin, 25, 403, 405 Gustave Le Bon, 362
Edmund Husserl, 223, 364, 365,
472 Hans Jonas, 411

567
Henri Bergson, 400 Karl Popper, 47, 89, 95, 96, 97, 98,
Herbert Marcuse, 48, 113, 114, 273, 278, 290, 343, 389, 390,
194, 195, 197, 198, 199, 213, 405, 408, 409, 515, 540, 541
275, 278, 291, 296, 304, 404,
405, 553 Ludwig Feuerbach, 361
Herbert Spencer, 18, 109
Martin Heidegger, 127
Immanuel Kant, 25, 38, 120, 171, Max Stirner, 398, 400
246, 247, 248, 249, 250, 251, Meister Eckhart, 462
494, 518 Michel Foucault, 206, 243, 254, 260,
Imre Lakatos, 350 265, 271, 277, 278, 291, 355, 356,
409, 426, 537, 539, 541, 553
Jacques Derrida, 344, 550 Michel Henry, 364, 365, 380, 405
Jacques Lacan, 123 Miguel de Unamuno, 372, 373,
Jean Baudrillard, 97 374, 452
Jean-Jacques Rousseau, 212, 321, Mikhail Bakunin, 361, 400, 401
322, 400
Jean-Paul Sartre, 127, 252, 290 Nicolas Malebranche, 230, 231,
Jeremy Bentham, 52, 58 234, 235, 503
Jesus Cristo, 139, 140, 147, 149, Nicolau Maquiavel, 61
151, 152, 154, 156, 157, 159, Novalis, 198
164, 216, 217, 218, 237, 276,
277, 289, 351, 353, 429 Orígenes, 139
João Escoto Erígena, 164 Oscar Wilde, 55
Johann Gottfried von Herder, 198 Oswald Spengler, 109, 290
Johann Gottlieb Fichte, 242, 243,
Paul Feyerabend, 163, 176, 273,
283, 290, 404, 405
278, 351, 409
John Locke, 66, 128
Paul Ricoeur, 273, 278
John Searle, 47
Paul Watzlawick, 314
John Stuart Mill, 52, 58
Paulo (de Tarso), 139
José Ortega Y Gasset, 19
Piotr Kropotkine, 107, 400
Julien Offray de La Mettrie, 273,
Pirro, 136
278, 283, 290
Platão, 48, 131, 132, 323, 409
Jürgen Habermas, 39, 130, 415
Plotino, 136, 139
Karl Mannheim, 364 Protágoras, 163
Karl Marx, 123, 320, 361, 365 Pseudo-Dionísio (o Areopagita),
139

568
René Descartes, 24, 25, 472 Thomas Kuhn, 51, 93, 290, 351

Séneca, 293 Voltaire, 327


Sexto Empírico, 136
Sigmund Freud, 123, 195, 274, Wilhelm Reich, 123
278, 364, 365, 384, 472, 543 William James, 38, 452
Sócrates, 323, 446
Sören Kierkegaard, 251, 272, 278, Xenofonte, 323
290
Zygmunt Bauman, 198
Tertuliano, 140
Theodor W. Adorno, 98
Thomas Hobbes, 212

569
OBRAS DO AUTOR

«O Anti-fitness ou o manifesto anti-desportivo. Introdução ao conceito de


reeducação postural» (Contra-Margem, 2008)
«Corpo e pós-modernidade» (Esfera do Caos Editores, 2012)
«O Corpo e o Nada. mini-ensaios teofilosóficos» (Apeiron Editores, 2013)
«As Metamorfoses do Espírito. Sobre o mal, a psicologia da filosofia e o Super-
-Homem» (Apeiron Editores, 2013)
«A Clínica do Sagrado. Medicina e Fisioterapias, Psicanálise e Espiritualida-
de» (Edições Mahatma, 2014)
«A Obsessão de Sophia. Dialécticas em poemas e aforismos» (Apeiron Edi-
ções, 2014)
«Crítica da Razão Espiritual (Dialéctica e Obsessão)» (Edições Mahatma, 2015)
«O homem-Deus. Notas sobre o relativismo, o mal e o Nada» (Edições Mahat-
ma, 2015)
«O homem-Nada. Corpo, dialéctica e relativismo moral» (Edições Mahatma,
2016)
«A Síntese (im)Perfeita. Sobre o tempo, a culpa e o Nada» (Edições Mahat-
ma, 2017)
«A Razão Neurótica. Um livro de auto-desajuda» (Manufactura, 2019)

ARTIGOS “PEER-REVIEW” (SELECÇÃO, ATÉ 2010)

Coelho, L., & Oliveira, R. (2004). Lombalgia nos adolescentes: Identificação


de factores de risco psicossociais. Estudo epidemiológico na região da grande
Lisboa. In J. L. Pais Ribeiro & I. Leal. (Eds.), A psicologia da saúde num mun-
do em mudança. 5º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde (Actas) (pp.
199-205). Lisboa: Instituto Superior de Psicologia Aplicada.
Coelho, L., Almeida, V., & Oliveira, R. (2005). Lombalgia nos adolescentes.
Factores de risco psicossociais. Estudo epidemiológico na região da grande
Lisboa. Revista Portuguesa de Saúde Pública, 23(1): 81-90.
Coelho, L., & Oliveira, R. (2005). Low back pain in adolescents – Identifica-
tion of psychosocial factors. Epidemiological study in Great Lisbon area. in

571
Proceedings World Congress AIESEP “Lifestyles: the Impact of Education
and Sport.” Edições FMH (pp.153-162).
Coelho, L., Almeida, V., & Oliveira, R. (2006). Bases de intervenção do fisio-
terapeuta no doente com espasticidade: paradigmas e abordagens de acção
clínica. Sinapse, 6(1): 18-29.
Almeida, V., Coelho, L., & Oliveira, R. (2006). Lombalgia inespecífica nos
adolescentes. Identificação de factores de risco biomorfológicos. Estudo epi-
demiológico na região da grande Lisboa. Re(habilitar) – Revista da ESSA, 3,
65-86.
Coelho, L. (2006). Abordagem às deformidades posturais na infância e ado-
lescência: um novo paradigma. Acta Pediátrica Portuguesa, 37(6), CIII.
Coelho, L. (2007). O treino da flexibilidade muscular e o aumento da ampli-
tude de movimento: uma revisão crítica da literatura. Motricidade, 3(4), 22-
-37.
Coelho, L. (2008). O efeito da variável tempo de estiramento estático na fle-
xibilidade muscular: uma revisão sistemática da literatura. Revista Portuguesa
de Fisioterapia no Desporto, 2(1), 45-57.
Coelho, L. (2008). O método Mézières ou a revolução na ginástica ortopédi-
ca: o manifesto anti-desportivo ou a nova metodologia de treino. Motricida-
de, 4(2), 21-39.
Coelho, L. (2008). Abordagens de fisioterapia no tratamento da paralisia cere-
bral: principais paradigmas. Acta Pediátrica Portuguesa, 39(3), LII-LIII.
Coelho, L. (2008). Abordagens e paradigmas de fisioterapia neurológica: uma
revisão. Re(habilitar), 7, 65-118.
Coelho, L. (2008). O método Mézières ou a revolução na ginástica ortopédi-
ca. Acta Reumatológica Portuguesa, 33, 372-373.
Coelho, L. (2009). A fisioterapia e o serviço nacional de saúde: a realidade
incontornável. TDT online, Março/Abril, 4-5.
Coelho, L. (2009). Podemos confiar na ciência?... A importância da epistemo-
logia e a especificidade das ciências da saúde. TDT online, Julho/Agosto, 4-6.
Coelho, L. (2009). Lombalgia nos adolescentes: Identificação de factores de
risco de natureza biomorfológica. Estudo de levantamento na região da grande
Lisboa. Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia, 17 (I) 15-31.

572
Coelho, L. (2010). Mézières' method and muscular chains' theory: from pos-
tural re-education's physiotherapy to anti-fitness concept. Acta Reumatológi-
ca Portuguesa, 35(3), 406-7.
Coelho, L. (2010). A Reeducação Postural segundo Mézières e suas implica-
ções para a Fisioterapia: a “revolução na ginástica ortopédica. TDT online, 1,
4-8.
Coelho, L. (2010). Os efeitos da “reeducação postural global”. Uma revisão
sistemática da literatura. TDT online, 4, 10-17.

573

Você também pode gostar