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FERNANDO DÍAZ-PLAJA

A VIDA QUOTIDIANA
NA ESPANHA MUÇULMANA

li)
ISBN 972-46-0678-3
lSl
(Ediçlio original: ISBN 84-7640-792-7)
\..9
Título original: Capa: Jorge Machado Dias, a partir 0-
La Vida Cotidiana en Ia Espana
Musulmana
da reprodução de uma iluminura muçulmana O
Edição n." OI 252010-0595
© Fernando Días-Plaja, 1993 Depósito legal n.? 87798/95 "t
Tradução: Artur Lopes Cardoso
Direitos reservados para Portugal por
Fotocomposição: D
Editorial Notícias
Rua da Cruz da Carreira, 4-B, 1150 Lisboa
Textype - Artes Gráficas, Lda.
Impressão e acabamento:
Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
1
~ EDITORIAL NOTíCIAS

U LThrrC~~ ~
RAÇAS E RELIGIÕES. A MISTURA DE AL-ANDALUS

.~
~ Eslavos e Berberes
~
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(.) Nas ruas, encontram-se, para além dos árabes puros, os eslavos e
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'"l::! os berberes. A sua origem encontra-se no Oriente, donde procediam
'@ os invasores.
ci' Os soberanos do califado omíada, no Oriente, contavam sobretudo
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'S: com o elemento árabe; este conseguiu conservar, durante toda a época
~ dos Omíadas, a prioridade sobre todos os elementos muçulmanos não
~ árabes no exército, na administração e em quase todos os restantes
:...
postos importantes.
...::~ Quando o califado omíada de Damasco foi substituído pelo de
~
Bagdade, começou a ter influência um novo elemento, na época dos
~
.8 califas: o persa; e, um século depois, iniciou-se a infiltração dos Turcos .
.~
Q... Mais tarde, outros elementos procedentes do Norte conseguiram impor
a sua autoridade em Bagdade e ter a primeira palavra no Governo do
país, sendo, ao fim e ao cabo, os principais factores que provocaram
a decadência do califado abássida.
A partir da época de al-Mutasim, começaram a chegar aos palá-
cios de Bagdade os «escravos brancos». Estes procediam, de um
modo geral, dos territórios bizantinos e, sobretudo, dos países
eslavos.
O número de eslavos nos palácios dos califas aumentou ao ponto
de a palavra «eslavo» se aplicar a todos os tipos de escravos brancos.
Estes mawalis (libertos - em geral, de origem cristã) recebiam
uma educação excelente e sólida no palácio do califa e chegaram a
constituir o corpo dos funcionários administrativos e até dos coman-
dos militares.

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A influência não se confinou, ao Oriente, tendo-se estendido tam-
bém a Espanha.
Com a chegada de Abd al-Rahman, o califado viu que não podia
impor a sua autoridade e concentrar o poder na sua pessoa sem entra-
var a influência da aristocracia árabe em Espanha; para tal, preci-
sava de contar com outro elemento e a sua escolha recaiu sobre os
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eslavos.
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C\l t::! Os eslavos de al-Andalus eram originários do mar Negro, da
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Calábria, da Lombardia, da Europa Central e até dos cristãos do Norte .
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Tal como no Oriente, havia dois tipos: os eunucos e os normais.
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-06 Os primeiros serviam para guardar o harém; aos segundos, eram con-
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fiados altos cargos civis e comandos militares. Quando eram trazi-
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dos para Espanha, ainda estavam na juventude; aprendiam rapida-
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mente as línguas dominantes em al-Andalus, o árabe e a românica,
"'" o ' e tornavam-se muçulmanos. O número de eslavos chegou a ser grande
c;:~ em Córdova (13750) e noutras cidades. Alguns eslavos redimiram-
Vl-
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~Ç,.. -se da sua condição social graças à sua cultura, enriqueceram e pos-
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5t'--. suíram terra.
ao' Contando com este elemento, Abd al-Rahman lII desferiu um golpe
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forte na influência da aristocracia árabe em Córdova, mas, ao mesmo
-o ~ tempo, ajudou a formar, na sociedade muçulmana, uma nova classe,
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o que viria a ter uma grande influência no desenvolvimento político
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~~ Os Berberes
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;;: ,::; Se a subida ao trono de Abd al-Rahman al-Nasir ajudou a formar


'c::;~ uma nova classe na sociedade muçulmana de Espanha, a chegada ao
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, t::! poder de al-Mansur ben Abi Amir instituiu outra: a berbere.
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Já existiam berberes em Espanha antes da época de al-Mansur,
t::! 2, pois havia uma corrente migratória constante do Norte de África para
s~'S Espanha. Estes berberes viviam no Oeste e no Sul de Espanha, sobre-
tudo nas regiões montanhosas. Nelas, tal como nas que haviam dei-
~
xado, podiam dedicar-se à criação de gado e à exploração das matas,
deixando que os Árabes, com a sua técnica avançada, tirassem par-
tido da planície fértil.
Apesar do número considerável de berberes em Espanha, estes
não tinham chegado a constituir uma classe social independente com
Possibilidade de influir na política do país. Foi Almançor quem se

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encarregou de os utilizar politicamente. Para a Guerra Santa que Mouros e cristãos
preparava contra os cristãos do Norte, não podia confiar nos ára-
bes tradicionais, que o desprezavam devido à sua origem humilde, A posição de Maomé perante o cristjanismo é ambjyalente. Por
nem nos eslavos, demasiado cultos para lhe obedecerem cegamente. m lado, em várias assa ens do Corão, reconhece os seus valores
Os Berberes, derrotados por Bulukin e refugiados em Ceuta, acei- uspirituais e exalta as suas rimeiras fi uras, começando por esus
taram com gosto a oferta de Almançor e constituíram o núcleo e nsto, a quem chama Profeta, Justo, Enviado e Fami lar e Deus,
disciplinado e corajoso de um exército que derrotou repetidas ~ias, Verbo Divino e Espírito de Deus, que Este infundiu em Maria,
vezes as forças cristãs, chegando a tomar e saquear Santiago de e atribui-lhe a assistência e o concurso do Espírito Santo e o poder
Compostela. dos milagres, admitindo todos os referidos no Evangelho e mais alguns.
No início da invasão muçulmana, as diferenças sociais não exis- Este respeito e veneração dos Muçulmanos abrange o seu precursor
tiam apenas entre os recém-chegados e os vencidos, cristãos ou judeus. João, os seus apóstolos e, sobretudo, a sua mãe Maria, que Maomé reco-
Os Árabes sentiam-se muito superiores aos seus irmãos de fé, os nhece como eleita entre todas as mulheres do Universo, livre de toda a
Berberes, que, no Norte de África, se incorporaram como auxiliares mácula e sempre virgem. O mesmo Maomé afirma, referindo-se ao
para a conquista. Quando se distribuíram as benesses dela, os pri- Evangelho, que é um livro revelado para servir de luz e de guia aos
meiros ficaram com os postos importantes do Governo e as quintas homens, tendo um dia descido do céu para esse fim; aos homens que
de regadio, deixando para os naturais do Norte de África o trabalho professam a sua doutrina chama quitabies, isto é, povo que tem um livro
de camponeses nas terras menos férteis do país. revelado, embora aplique o mesmo nome aos Judeus por terem a lei
O berbere era um ser de categoria tão inferior em al-Andalus antiga, ou seja, os livros de Moisés, distinguindo-os, com esta denomina-
que um legislador não hesita em ratificar essa opinião proibindo- ção, dos cáfires, ou infiéis, dos abadat-a!autám, ou idólatras, e assimi-
-lhes o uso do véu no rosto, sinal distintivo dos Almorávidas, na lando-os, no âmbito desse conceito, aos Muçulmanos por serem, tal como
altura senhores da Espanha, que devem ser tratados com honra e eles, muminúm, ou crentes. E chega a pôr estas palavras na boca de Deus:
respeito. Com efeito, se os mercenários e os Berberes usarem um «Ó Jesus! Elevarei os que se juntarem a Ti e abaterei os que Te desconhe-
véu e modificarem o seu aspecto exterior, haverá tendência para cerem.» E, além disso: «Os cristãos e todos os que crêem em Deus e
serem considerados pessoas de um meio social elevado e todos se no último dia e agem bem receberão de Deus recompensa, e não castigo.»
apressarão a manifestar-lhes estima e consideração, quando não são aversão pelos que não crêem num Deus único, isto é, os Roli-
dignos disso. teístas, compreende-se porgue fO!]lllLel~ye_se_9puseram duramente
O epigrama de um poeta anónimo descreve a atitude de desprezo a Maomé quando este iniciou o seu caminho de conversão do povo
do árabe perante o seu vizinho: !!:abe._Emcontrapartida, aqueles que acreditavam num só Deus e num
só livro sagrado tinham de ser considerados mais próximos da sua
«Sonhei que estava perante Adão: Pai dos homens», disse-lhe. doutrina, embora, naturalmente, as diferenças entre as duas religiões
«Dizem que a tribo berbere descende de Ti.» sejam essenciais; o Profeta põe-nas em realce noutras passagens do
Respondeu-me: «Se fosse verdade, repudiaria Eva.» Corão. Por exemplo, ~gundo ele, a crença em Jesus Ç,risto e na
Santíssima Trindade dilui a autoridade máxima de Deus em várias
O sentimento aristocrático, quase snob, desses conquistadores reflec- pessoas, deixando de ser único. De todas as formas, o islão é o ~mi-
tia-se no tratamento que dispensaram aos vencidos que podiam gabar- ~ho da salv,!ç!2;_9uem guer que siga outro, mesmoque ,il!§Pi!adº~~
-se de ser membros da nobreza goda. Os que, de entre eles, aceita- ~o sagrado, está errado e deve ser destruído.
ram sem reservas o jugo muçulmano conservaram as suas propriedades
Fazei a guerra aos que não crêem em Deus nem no Último Dia; aos que
e casaram as suas filhas com os filhos do deserto, que se orgulhavam não consideram proibido o que Deus e o seu Profeta proibiram; combatei,
desse sangue antigo a correr-lhes nas veias. Um famoso historiador entre os homens das Escrituras, os que não crêem na religião verdadeira até
vangloriava-se de ser descendente de «Sara, a Goda». pagarem o tributo pessoalmente e fiquem abatidos.

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É a famosa Guerra Santavque deu forma ao espírito dos Muçul-
manos durante os séculos e que agora, no final do século xx, torna a
aparecer na realidade quotidiana. Qual é o destino dessa guerra? Atacar
os infiéis «até que se submetam à nossa espada e escolham entre con-
verter-se ao islão e pagar uma contribuição ao Governo».
Esta alternativa, generosa em princípio, foi o que permitiu que os
Muçulmanos ganhassem terreno rapidamente na sua conquista do Norte
de África e de Espanha. Os submetidos satLam~ue não os persegui-
riam por causa das suas ideias e que. podeJiam_continuar a rezar aô
seu Deus, desde que pagassem um tributo ao novo Governo,_o aue
era um sacrifício pequeno, dadas as circunstâncias.
-
Há uma excepção cunosa a essa tolerância. Quando os vencidos
eram árabes, tinham de escolher obrigatoriamente entre o islão e a
morte, sem poderem manter as crenças anteriores. É provável que
Maomé considerasse que o seu próprio povo era eleito por Deus e
que, portanto, não podiam recusar a oferenda que lhes era feita.
Como eram tratados os conquistados?

[... ] não é permitido (dizem as Leis de Mouros) que matem as mulhe-


res, nem as crianças, nem os velhos sem força, nem os abades, nem os fra-
des eremitas, excepto se se defenderem ou se opuserem. No que se refere às
mulheres e às crianças (diz Almauardi), não é lícito matá-Ias quando forem
quitabíes, porque tal foi proibido pelo Profeta; mas que sejam reduzidas à
escravatura e distribuídas entre os captores, sendo lícito que as crianças sejam
resgatadas com dinheiro ou trocadas por muçulmanos cativos. Segundo alguns
jurisconsultos, devem ser mortos os monges e ermitões, mesmo que não
cometam actos hostis, porque costumam dar conselhos nocivos aos
Muçulmanos; mas outros são de opinião de que não devem ser mortos aque-
les que não tenham ajudado os guerreiros do seu país com exortações e con-
selhos. Todos os restantes que fossem capturados na guerra e se mantives-
sem politeístas podiam ser mortos, capturados e reduzidos à servidão, vendidos
e resgatados por dinheiro, à vontade do captor. As presas feitas no campo
de batalha ou no saque da população eram distribuídas entre os muçulma-
nos vencedores, tal como os cativos, reservando-se um quinto para o sultão
ou para o Tesouro público. E do que recolherem na cavalgada (dizem as Leis
de Mouros), leve o rei um quinto, e sejam divididos, no local ou vila do
acampamento, todos os despojos.

Os que se submetiam ao domínio muçulmano por capitulação, e


com a condição de pagarem a chizia, ou tributo por cabeça, deviam
Os cristãos conservam o seu culto e editam os seus livros. ser respeitados nas suas pessoas e também nos seus bens, pelos quais
Representação da Anunciação numa miniatura moçárabe
(Tratado de San Ildefonso sobre Ia Virginidad de María, 1067,
teriam de pagar, à parte, a contribuição predial, chamada jarach.
Biblioteca Laurenziana, Florença) O pacto, ou contrato original de submissão ao senhorio muçulmano,

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devia conter, segundo Sidi Jalil, quatro pontos: 1.0 O pagamento da
A forma como foi estatuída a 9J,pitulação entre os vencidos cris-
capitação; 2.° A sujeição aos estatutos ou leis do islamismo; 3.° Não ~iQ.sos muçulmanos e~á definida no tr<,p;adode Teodomi~
mencionar sem respeito e louvor qualquer coisa dessa lei; e 4.° Não
onde o chefe cristão não aceita as condições que lhe são impostas:
ser prejudicial aos Muçulmanos.
Qs cristãos que permaneceram fiéis à sua religião guando ~ b.r~bes Em nome de Deus, Clemente e Misericordioso: esta é a. carta de Abd
~vadiram a sua pátria chamam-se moçára~C..9nservam as suasjg~- al-Aziz, filho de Musa ibn Nusayra, e Teodomiro, filho de Gandaris, quando
Jas e os seus ritos e o tratamento ue recebem deQende de quem manda este se submeteu ao pacto de Deus, ao seu tratado de paz e ao que foi esta-
belecido pelos profetas e enviados:
em al- naus. e são os reis locais mais acomodatíciõs (por serem
Que gozará da protecção de Deus, glorificado seja; sob a protecção de
~éptiêõS)-en1matéria de religião, a sua situação particular é respei- Maomé, Deus o bendiga e salve;
tada; mas se o trono está ocupado pelas tribos almorávidas ou almóa- Que não alterará o seu estatuto nem o dos seus seguidores;
das que, de x em x anos, ..têm Que não se confiscarão as suas propriedades nem serão escravizados;
.--.-de afirmar o islão face à ~ameaça cristã,
~ sua sorte Eio,E.a~ode tratar-se de uma medida de pre- Que não serão separados das suas mulheres e filhos nem serão mortos;
Que não serão queimadas as suas igrejas nem espoliadas dos objectos
caução para que se não transformem numa «quinta coluna», em caso de culto que contêm;
de uma invasão cristã, como aconteceu em 1106, quando os moçára- Que não serão discriminados nem molestados devido às suas crenças
bes de Málaga foram expulsos para o Norte de África. Ou apenas por religiosas,
ódio religioso, como o sentido pelo almóada Abd al-Mu'Min, que, O pacto vigorará nestas cidades: Orihuela, Lorca, Valença, Alicante,
Hellín e Elche.
depois da conquista de Sevilha, em 1147, expulsou os bispos dessa
Que respeitará as condições do pacto e não faltará ao estipulado,
zona, que tiveram de refugiar-se em cidades cristãs, como Toledo e Cornprometer-se-á a cumprir o que lhe imponhamos e obriguemos;
Talavera. Outro rei, Yacub al-Mansur, vencedor em Alarcos, demoliu Que não acolherá nem dará asilo a pessoa alguma que tenha fugido de
todas as igrejas, bem como as sinagogas, dos seus reinos. nós ou seja nossa inimiga;
Que não permitirá nem fará mal a todo aquele a quem tenhamos outor-
Com maior ou menor tolexânG-ia-em-ndação aos seus costumes e gado a nossa protecção ou amán;
rezas, os moçárabes.yiveram, ao longo dos séculõS';' em convivência Que não nos ocultará qualquer notícia do inimigo que chegue ao seu

---
com os Muçulmanos, embora

~
Quan@ um cristã~con~rtia
...nQY..o.......1Lo.mtL=-,
sem:preem bairros separados.
ao islão - '!1!!~a1!:..l-.ou_ad~QP~d.2z_era
fazia-o p~a sempr~.!!!.esmo que a sua .conduta
conhecimento,

E seguem-se os impostos, com as medidas da época.


desse a entender o contrário. Foi o que consideroolIfiljuiz dê-Sevilha,
quando lhe comunicaram 'que um grupo de conversos fugira dessa cidade E a ele e aos seus companheiros ou seguidores é imposta a capitação:
em direcção a terras cristãs. Foram perseguidos pela cavalaria, detidos Por cada homem livre:
e devolvidos à força a Sevilha. O aldalde decide que a sua fé é, agora,
a do islão e que não podem ser condenados apenas pela sua fuga. I dinar por ano,
I No entanto, alguns textos do tempo explicam que, em princípio, 4 almudes de trigo,
4 almudes de cevada,
r I os que se haviam mantido fiéis à religião dos seus pais inspiravam
4 gist de vinagre,
mais o respeito por parte dos Muçulmanos do que aqueles que se 4 gist de mosto de vinho,
I,\ tinham convertido, talvez apenas para não pagarem o imposto referido. 2 gist de mel,
Q-nome de, «moçárabex-signifiça «aquduue gllil.l:-~r 1 gist de azeite.
ár~, e isso aconteceu, maju.lQ qu~ dev~ ~ slla formade orar, er.? Por cada escravo, a metade.
virtude do prazer que tiveram em aceitar a língua dos conquistadores,
~ de: um século depois de terem sido resgatados das mãos dos (Seguem-se as assinaturas das testemunhas.)
Muçulmanos por Afonso VI, os moçárabes de Toledo continuarem a
(Joaquín Vallvé, «Espana en el siglo VIII.
escrever em castelhano com caracteres árabes.
Ejército y sociedad», AI-Anda/us.)
32
33
-_.
Em termos legais, uma yez admitidos os cristãos ...•••. na dimma, ou
--
protecção muçulmana, em virtude do pacto e da sujeição ao tributo,
ti
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as pessoas e vidás dos dimmies, ou submetidos, ficavam ipso facto .::
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sob a salvaguarda e protecção do Direito e do Governo muçulma- f}
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nos, ~ndo ser defendidos de toda a extorsão e agravo e atendi-
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dos justa e imparcialmente em qualquer reclamaçãO e ássunto seus;
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e se eles, as· suas ffiulheres, filhos e bens fossem roubados pelos '"o
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harbíes, ou inimigos de guerra, os Muçulmanos estavam obrigados .:::g
SC/J
a conseguir que fossem libertados como objectos colocados sob a .- o
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sua guarda. .::
Isto, em princí io arece ene oso, mas, na vida real da Espanha '~o-l o'.::"
muçu mana, continuava a haver um povo dominante e outro domi- ':l~
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nado, e a diferença fazia-se notar na convivência diária. Para começar. .. ~~
\ .;;; o,f
Segundo jl.-kgislaç..ã.1Lmu~ulIill!.na, os cristãos dimfl1Íf!.§.., ou moçá- o ,-
~ til
rabes, deviam tratar os .Muçulmanos com honra e reverência, levan- ~:::E
if( tando-se quando eles se aproximavam e cedendo-lhés o lugãr quando
desejassem sentar-se; nunca deveriam ocupar lugares de destaque nas
~-
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•.•..• C/J

reuniões, deviam deixar para os Muçulmanos o melhor lugar nos pas- J


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s~os e~s; nunca deviam ser os primeiros a saudá-los ou a dar- '"


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-lhes os bons-dias. o Q
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Ao que espirrava, em dimmi, não devia dizer-se yarhamuc Alau
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(Deus tenha piedade de ti), mas sim «Dirige-te a Alá pelo melhor ;:s
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'"

caminho», ou, simplesmente, «Que Ele te melhore». ....~ ~


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(Como se vê, a associação de ideias entre espirro e doença vem t: •..
~ .2!
de muito longe. Os cristãos adoptaram-na às suas crenças com a forma ~
(.)

de «Santinho!», que chegou aos nossos dias.) ~ :§


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----.
Mas as vestimentas também tinham de ser diferentes entre os dois
-
povos. Os cristãos deviam difêfênçar-se deles pelas suas roupas, arreios
-- <:I)

o .::;
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e modos; rapar apenas a parte anterior da cabeça e dividir o cabelo '~


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de forma diferente; usar sem alterações a forma antiga e corte dos '" t:
;:s ;:s
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seus trajes, sem poderem adoptar os elegantes envergados pelos ~~
Muçulmanos, nem o calçado muçulmano com rosetas, e, muito menos, "'~o....
envergar as vestimentas de luxo próprias dos xerifes e alimes, e não ~ ~
deviam trazer à cinta espadas nem outras armas, nem fabricá-Ias ou
s::::: ':l~
tê-Ias sequer em suas casas. Os cristãos de ambos os sexos estavam ~S
proibidos de montar ~ cavalo, devido ao carácter nobre desse animal; ~
...
apenas podiam montar mulas e burros. Também não lhes era permi- ~
tida a utilização de selas de montar e estribos, mas apenas de albar- ~
~
das; deviam montar todos como as mulheres, ou seja, de um só lado, C3
e nas ruas menos centrais e nos locais mais afastados e piores, onde

34 35
não pudessem incomodar os Muçulmanos, a menos que se tratasse de Quando dois cristãos, marido e mulher, se tornavam muçulma-
um velho ou inválido que disso necessitasse imperiosamente. no S , Podiam continuar unidos; mas não eram considerados valida-
ente casados se não renovassem o enlace de acordo com os ritos
Segundo a jurisprudência muçulmana, os cristãos deviam trazer na cabeça
uma lansúa (espécie de gorro ou chapéu) preta e grande, ou então uma ber- :uçulmanos. A conversão ao islão de um só cônjuge era suficiente
nita (barrete) ou tortur (boné grande e pontiagudo); ao entrarem nos balneá- para quebrar o vínc~lo; se o islamizante era a mul~er,. não podia
rios, deviam trazer ao pescoço uma medalha de chumbo ou cobre ou um ficar com o seu mando; mas, caso fosse este, podena ficar com a
guizo para nem ali serem confundidos com os Muçulmanos; como cinto, sua mulher. O muçulmano casado com uma cristã não devia impedi-
deveriam utilizar uma faixa de couro, crina ou lã, chamada zonnar (de zona-
-Ia de sustentar os seus filhos com alimentos proibidos pelo islão,
rium) ou custich, diferente 'do hizam usado pelos Muçulmanos e que costu-
mava ser uma faixa ricamente bordada. Quanto às mulheres dimmies, podiam como vinho ou carne de porco,.e muito menos de jLàjgrÚª __
p-ª!.~s
usar o zonnar por debaixo do izar, ou túnica exterior, embora alguns ule- práticas e devoções da sua religião. O filho destes casamentos mis-
más! fossem de opinião de que deveriam usá-lo por cima, para se distin- tos-devia seguir o pai" no que respeitava à religião e ~o pagamento
guirem melhor das muçulmanas; o seu calçado ou botins deviam ser um
da chizia e a mãe no que respeitava à servidão; mas a ed~ção do
branco e o outro negro e não seriam admitidas nos balneários sem trazerem
a sua medalha ao pescoço.
ííiiõp'ertencia sempre à mãe,-m'"esnrõqüe se~nfu):tiv~sSe islãiniZãdo.
Quando o pai se islamizava, os seus filhos menores deviam acom-
Como se vê, as regras eram severas, mas não nos esqueçamos que panhá-lo na sua nova crença; mas os adultos eram senhores de con-
estamos a falar de andaluzes, isto é, de pessoas que se não caracteri- servar a antiga.
zam pelo seu apego à estrita observação de uma lei. Todos os teste- Quanto às leis civil e criminal, os cristãos tinham total autono-
munhos da época são coincidentes em relação ao facÍõ "de-essas dis- mia, regendo-se pelas disposições a que estavam habituados desde o
posições restritivas serem, ~mi~d~, -~Jt:a morta e de, e~ceptg em algú~as tempo dos Romanos e Visigodos e o alcalde, ou juiz muçulmano, só
epocas de dureza dogmática, como a dos Almorávidas, os cristãos se intervinha se tal fosse pedido pelas duas partes em litígio.
vestirem e .deslocarem como muito bem queriam. _. Naturalmente, qualquer acto de um cristão contra os seus senhores,
A diferença social deveria reflectir-se também no lar. Uma casa como pegar em armas ou blasfemar contra Maomé, era julgado com
cristã não podia ser mais alta do que uma muçulmana e os moçára- severidade pela leÍ muçulmana.
bes também não podiam ter muçulmanos ao seu serviço. É evidente que a discriminação .J.!npQsta pelna.Árabes-em-Espanha
Em princípio, os cristãos também não deviam ocupar cargos admi- era sempre religiosa, mas nunca racist.a; bastava que um infiel, fosse
nistrativos que lhes dessem uma autoridade que lhes estava vedada, qual fosse a sua proceoêllcíã1tnica, se convertesse ao islão, para adqui-
mas, na verdade, isso aconteceu repetidamente, porque a sua eficácia rir de imediato todos os direitos cívicos dos Muçulmanos.
tinha mais peso do que o critério restritivo de alguns alfaquis (sacer- A isenção da chizia obtinha-se em qualquer altura em que se pro-
dotes) muçulmanos, sempre agarrados à pureza da fé e ao desprezo fessasse o islamismo com a fórmula ritual «Não há outro Deus para
que teria de sentir-se em relação aos infiéis. além de Alá, e Maomé é o seu enviado» e os servos melhoravam de
Quanto às relações entre homem e mulher, a legislação foi com- situação, chamando-se libertos de Alá.
preensiva desde o início e permitia que o maometano tomasse como
Quando os infiéis se convertem ao islamismo (escreve um alfaqui),
esposas ou concubinas (com poder de domínio) mulheres livres e hon- a sua sorte passará a ser a nossa, tanto na prosperidade como na adver-
radas quitabies, isto é, cristãs ou judias,l]2as não machusias, ou gentias; sidade, e os estatutos islâmicos passarão a ser-lhes aplicados, sendo as
era permitido também que todo o muçulmano, livre ou servo, tomasse Suas terras dar alislam (isto é, país muçulmano). Todas as infracções
como concubinas, mas não como esposas, escravas cristãs ou judias. dos pactos cometidas por um dimmi, mesmo que tivesse incorrido na
pena capital devido a elas, lhe eram perdoadas devido à sua conversão
Em contrapartida, não era permitido a_o~çristãoJ.Qmar ~2.Ysp~sa
ao islamismo. Ficavam também isentos do tributo territorial chamado

-
uma muçulmana ou tê-Ia como concubina, sob graves penalidades.

I
-
Ulemá - teólogo muçulmano. (N. do T.)
jarach quando, em virtude da capitulação negociada por eles ou pelos
seus maiores, gozavam do domínio pleno das suas terras com direito de
alienação.

36 37
Es~senções pecuniárias atraíram para o islamismo um grande É por esta razão que se aceita normalmente que as crianças seques-
~IoséliJos e, embora _o fisco muçulmano perdesse muito tradas nos ataques a uma povoação cristã sejam educadas segundo a
com elas, era dever dos califas e emires promover as conversões, por religião de Maomé.
todos..os meios possíveis. Quando o califa Ornar II, fervoroso muçul- A capitação, ou chizia, que, conforme vimos, estava estabelecida
mano, tomou várias medidas rigorosas em relação aos moçárabes do no Corão como obrigatória para todo o infiel submetido à força dos
Egipto, o seu vice-rei naquela região preveniu-o de que, caso fossem ocupantes do seu país, era bastante alta.
postas em execução, todos os dimmies egípcios se tornariam maome-
tanos e o Tesouro público perderia os rendimentos que eles pagavam. Paguem tributo os súbditos, cada varão maior, 4 dobras de ouro, e cada
Ao ouvir essas palavras, Ornar mandou castigar o vice-rei e disse: mais jovem, 40 adarmes de prata, mas não as suas mulheres, rapazes nem
«Considerar-me-ia ditoso se todos os dimmies se tornassem muçul- servos, e aliviem os pobres desse dever.
manos, porque Alá enviou Maomé como seu profeta e mensageiro, e
não como recebedor de tributos.» Ademais, havia a contribuição predial, de acordo com as proprie-.
Devido à mesma obsessão religiosa, os que acolhiam com bene- dades que tinham sido respeitadas no momento da conquista e outros
volência aqueles que se convertiam à «verdadeira fé» agiam com uma encargos de tipo mais pessoal,' como o de dar hospitalidade gratuita,
tremenda dureza para com os muçulmanos que se passavam para o durante três dias, a todo o viajante ou transeunte muçulmano; não dar
cristianismo, em relação aos quais não existia a menor piedade, mesmo asilo a espiões e denunciar a muçulmanos qualquer conspiração ou
que se mostrassem dispostos a pagar o imposto correspondente à sua fraude que se preparasse contra eles; manifestar-lhes a consideração
nova «situação» religiosa. Para eles, a pena de morte era obrigatória devida às suas pessoas e crenças; não lhes causar dano nem agravo
e apenas se discutia se tal castigo deveria ser aplicado de imediato ou algum; não dificultar a sua residência na vizinhança.
se seria melhor dar-lhes um prazo de três dias para ver se se arre- Embora isto, para começar, não fosse do agrado dos próprios
pendiam. . muçulmanos. t. verdade é que, apesar dos pesaresca.sítuacãosocíaí
A verdade é que tais convertidos eram poucos, proporção que se dos moçárabes não era assim tão penosa, como prova a quantidade
manteve ao longo da história, como podem testemunhar os missio- de cristãos gue colaboraranw:.JlllLo.s..se.u.s novos amos, ~na admi-
nários católicos que têm estado a trabalhar em terras muçulmanas, !li~ - até onde os deixavam chegar - C9J1JQ nas.J.e.tta.s-.e_nas
até aos nossos dias. A razão dessa pouca tendência resulta do facto ciências. - ---
de a religião muçulmana ser muito cómoda para o indivjduo. Para E se é certo que, em determinadas ocasiões, os ritos católicos pro-
além. de algumas proibições mínimas, como a carne de porco e o vinho vocavam a troça de alguns rapazotes, que chegavam a insultar e a ati-
~ mais sanitárias do que qualquer outra coisa -, das obrigações de rar pedras quando passava uma procissão cristã, outras vezes os poe-
jejum no Ramadão e da oração diária, o islão ~~uma3ida fácil, tas árabes extasiavam-se perante a cerimónia.
em que os instintos, sobretllaoos eróticos, são aceites amplamente
com as quatro esposas legítimas e todas as concubinas que o crente

--
possa manter.
O islão não fazia esforços nem exercia pressões para co!!..verter
Memória poética de uma festa nocturna
celebrada pelos moçárabes de Córdova

Q..in:fiel, mas, se no território que dominava, havia um ser com pouca


Conta-se, no Mathma, que Abú Amir ben Xoaid esteve certa noite numa
capacidade intelectual para poder escolher a sua religião, como uma das igrejas de Córdova, a qual estava atapetada com ramos de mirto e ornada
criança, os alfaquis, ou sacerdotes, diziam que esta apenas podia com panejamentos de festa e convívio. O toque dos sinos alegrava os seus
ser a sua. Ouvidos e o fogo do fervor iluminava-o com o seu brilho. Nisto, apareceu o
sacerdote com os adoradores de Jesus Cristo, envergando ornamentos admi-
Há três causas pelas quais as crianças se tornam muçulmanas: pela con- ráveis, cessando então os regozijos e o júbilo. (Porque ia começar a missa.)
versão ao islamismo de um dos seus pais; pelo cativeiro, quando estão sepa- Não bebiam água com os cálices, tirando-a antes das pias com as pal-
radas deles, e por se encontrarem em território muçulmano. - mas das mãos.

38 39
Deteve-se no meio deles (o sacerdote) inspirando-Ihes fervor e bebendo
dos seus cálices, que lhe ofereciam um aroma muito fragrante sempre que
os levava aos seus lábios com a mais doce libação. Concluída a cerimónia,
retirou-se com os seus companheiros noctumos.
E quantas vezes aspirei no templo o aroma do vinho da juventude mis-
turado com a idade provecta do sacerdote!
Nuns mancebos que se viam ostentando alegria, modestos e humilhados
perante o seu magnate.
"," O sacerdote, querendo prolongar a minha permanência, entoava repeti-
'C
damente os seus salmos em meu redor.
::2'" Brindavam-me com vinho alguns jovens ruborizados pelo pudor, seme-
'" lhantes à terna gazela que o olhar do seu amo envergonhou.
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r:/) Comungavam com ele aquelas crianças delicadas, e dava-lhes vinho e,
(1):::::;..
"O ~ para comerem, carne de porco.
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.!:!l ~ (Ibn Jacan, Almathmah, apud Almaccari, I, 345.)
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U'"<::$
Como se vê, o autor, como bom muçulmano, surpreendia-se com
-ti 3 o uso do vinho e da carne de porco, duas coisas proibidas pela sua
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religião.
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Os moçárabes aproveitavam a sua dupla personalidade para ser-
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~~ virem de intermediários entre os d.oiLmundos religioso-políticos.
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Muitas vezes, foram utilizados pelos califas de Córd<wa para o desem-
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ao-.
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, penho de missões diplomáticas nos reiw. cristãõs. Os seus chefes
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julgavam, com razão, que a coincidência de linguagem e religião
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\...);E com os visitados lhes permitia desempenharem com mais eficácia a
~ .'" sua missão.
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~ o Também souberam servir os seus novos senhores no exército, onde \
~ ~. lutavam, sem faltarem à lealdade devida aos seus chefes, contra os )
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seus irmãos cristãos.
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r::~ Com as minorias entre muçulmanos acontece o mesmo que
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§~ com os que vivem entre os cristãos. Uma tolerância geral para
~:.... com os que obedecem a outras religiões, inclusive com a autori-
Cl zação para frequentarem os seus templos e orarem em paz, dá
s::
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lugar, por vezes, a violentas perseguições. Do mesmo modo que
~ um frade fanático podia levar a população cristã ao assalto da
ci:
alfama, os alfaquis sentiam-se, sem muita reflexão, inimigos fero-
zes dos que seguiam Cristo na Espanha muçulmana; de um modo
g~ral, essa atitude hostil parte dos homens do deserto que tinham
~lndo consolidar a causa islâmica, que alguns reis de taifas quase
tInham deixado cair em mãos cristãs. Os Almorávidas dão ordens
severas contra a vida de uma dessas minorias. Como, por exem-
plo, esta sobre ...

40 41
A conduta dos sacerdotes cristãos acerdotes. Pelos nossos pecados, passou a nossa herança para mãos alheias e
s nossa casa para gente estrangeira. Bebemos as nossas águas em troca de
[ ... ] ~inheiro e temos de comprar as nossas próprias madeiras. Já não há quem nos
Há que proibir às mulheres muçulmanas a entrada nas vergonhosas igre- redima das mãos dos infiéis, que, oprimindo o nosso pescoço com um jugo
jas, porque os sacerdotes são uns libertinos, adúlteros e corruptos. gravíssimo, procuram exterminar, dentro dos limites do seu império, a linha-
Deve proibir-se às mulheres dos francos que entrem na igreja, excepto gem cristã. Já só nos p~rmitem exercer a .n~ssa~religião à medida dos ~eu~
em dia de oração colectiva ou de festividade religiosa, porque comem, bebem caprichos; já nos angustiam com uma servidão tao dura como a do farao; ja
e fornicam com os sacerdotes, não havendo nenhum destes que não tenha nos extraem, por força pura, um tributo insuportável; já impõem um novo
duas ou mais daquelas para passar a noite. imposto à cerviz dos miseráveis; já, privando-nos de todas as nossas coisas,
Entre eles, isso é costume, porque converteram em ilícito o lícito e con- procuram des.truir-nos cruel~ente; já, em resumo, fu.stigando a Igreja cat~lica
sideraram lícito o ilícito. com vários tipos de opressoes e perseguindo de diversas formas a grer do
Deve ordenar-se aos sacerdotes cristãos que se casem, como nas dioce. Senhor, julgam que com os nossos males prestam um grato favor ao seu Deus.
ses do Oriente, ou autorizá-Ios a fazerem-no, caso o pretendam. Se recusa- Quanto mais não glorificaríamos nós o Senhor se, abandonando a nossa apa-
rem casar-se, não deverá permitir-se que, em casa do sacerdote, haja mulher, tia, incitados pelo exemplo dos nossos mártires, os imitássemos esforçada-
nem velha nem de qualquer idade. mente, deixando de suportar o jugo desta nação ímpia! Mas a nós, míseros,
Devem ser obrigados a circuncidar-se, como lhes impôs al-Mutadid diz-nos: misturaram-se com as gentes e aprenderam as suas obras e adoraram
Abbad, porque seguem, segundo eles mesmos afirmam, as tradições de Jesus os seus ídolos. Ai de nós, que consideramos um deleite o viver sob a domi-
(exaltado e preservado seja!), e Jesus circuncidou-se. Têm, para o dia da cir- nação gentia e não nos recusamos a estreitar os vínculos com os infiéis e com
cuncisão deste, uma festa em que o exaltam, e (no entanto) não o imitam. a mesma forma de proceder participamos, frequentemente, nas suas profanações!
Cheios estão os calabouços com catervas de clérigos; as igrejas vêem-
-se privadas do sagrado ofício dos seus prelados e sacerdotes; os taberná-
Quanto aos livros dos Muçulmanos: culos divinos expõem o seu horror com o seu desalinho e solidão; a aranha
estende as suas teias pelo templo; reina no seu espaço o silêncio mais pro-
Não se devem vender ao judeu nem ao cristão livros de ciência que não fundo. Confusos estão os sacerdotes e ministros do altar, porque as pedras
sejam da sua própria lei, porque eles traduzem os livros de ciências e atri- do santuário se vêem espalhadas pelas praças e já se não entoam os cânti-
buem-nos às suas próprias gentes e religiões. cos divinos na reunião dos fiéis; o santo murmúrio dos salmos perde-se no
mais recôndito das prisões; nem ressoa no coro a voz do salmista, nem a do
leitor no púlpito; nem o diácono evangeliza o povo, nem o sacerdote asperge
o incenso nos altares. Ferido o pastor, conseguiu o lobo dispersar o rebanho
A vocação para mártir católico e ficou a Igreja privada de todo o ministério sagrado .

Como vimos, a situação dos cristãos em al-Andalus não era cómoda, .falavJas deste tipo, ao caírem em ouvidos de.pessoas sensíveis e
mas também não era infeliz, dado que o Governo lhes reconhecia a prá- românticas, tinham de produzir um efeito fulminante, e assim acon-
tica da sua religião e a sua diferente maneira de viver, incluindo o uso tece~. com duas raparigas, Flora e Maria, que, depois de o ouvirem,
do vinho. Por isso, o moçárabe mantinha-se, em geral, calmo, conhece- decidiram procurar o martírio pela sua fé. Como, para tal, não bas-
dor dos seus direitos, mas também dos limites que estes tinham. No tava observar a religião cristã, uma coisa perfeitamente tolerada pelos
entanto, de vez em quando, surgia o fanático, que, nos seus inflamados Muçulmanos, tinham de comparecer perante o alcalde e declarar, em
discursos públicos, procurava levantar o moral dos cristãos subjugados, voz alta, que Maomé era um impostor e um adúltero, o que fizeram
lembrando-lhes a sua fé e atacando aqueles que aceitavam, sem protes- sem hesitações. A tolerância muçulmana em relação às crenças alheias
tar, o predomínio de outra religião (falsa) sobre a sua (verdadeira). O mais atingia o limite quando se ofendia a própria e foram condenadas a
conhecido destes profetas que ansiavam atingir o martírio foi Eulógio. retratar-se da sua blasfémia ou a sofrerem a mort;;:- caminho que esco-
Inflamava deste modo os seus seguidores e criticava os acomodatícios: lheram com o apoio de Eulógio, que as animou ao martírio numa carta
que passou à história da religião católica. - - - -
A cristandade espanhola, outrora tão florescente sob o domínio dos Godos,
caiu, pelos altos desígnios de Deus, em poder dos sectários do nefando Profeta, Ó irmãs minhas em Jesus Cristo! Não deixeis de ter perante os olhos da
arrebatada por eles a formosura das suas igrejas e a alta dignidade dos seus alma a paixão do nosso Redentor e, meditando nela constantemente, consi-

42 43
derareis nulo todo o suplício temporal. Pois, embora seja áspero e amargo,
é breve e está perto do seu fim. Considerai tais tormentos o vosso mais glo-
rioso troféu e o cúmulo da vossa felicidade, pois, passando por isso, as vos-
sas almas, como o ouro que se prova com o fogo, se purificarão cada vez
mais, tornando-se dignas dos prémios e honras eternas. Nos maiores bens e
goZOSdo mundo há sempre um fundo de amargura e um vazio, porque pere-
grinamos longe do Bem supremo; procuremos, pois, em Deus, a paz e a satis-
fação da alma. Vós estais adiantadas no caminho que conduz ao Bem com-
pleto e sumo: tereis, pois, de redobrar e acender cada vez mais os piedosos
afectos para com Deus, de insistir nos santos propósitos e de meditar nas
palavras divinas. Desejamos contemplar Deus livremente; antes, é preciso
purificar. Portanto, rogo-vos, virgens santas, não deixeis perder a coroa pre-
parada para vós, nem que a tentação de qualquer bem mundano vos afaste
da caridade de Jesus Cristo ... Rogo-vos, irmãs bem-aventuradas, que não
desistais da empresa começada nem fraquejeis na luta, porque o prémio não
é dado aos que começam, mas sim aos que perseveram ...
Vós, ó virgens santas, uma vez que, esforçadas guerreiras, saístes à lide
pública, opondo-vos com intrépida confissão ao inimigo da justiça diante dos
soberanos e príncipes do mundo, tereis de lutar e morrer, porque este tipo
de combates se glorifica com a morte. Com ela, sim, trocareis as coisas ter-
renas pelas celestes, o mundo pela glória, e dareis um exemplo altíssimo
Tipos de judeus do século xv para alento e ensino da Igreja Católica ...
(pormenor do retábulo de Santa Clara e Santa Catarina, lnenarráveis são e magníficos no mais alto grau os prémios que vos
Catedral de Barcelona) aguardam. Porque, ao mesmo tempo, recebereis do Senhor a dupla palma da
vossa puríssima virgindade e do vosso glorioso martírio. Lá no céu sairá
para vos receber a Santíssima Virgem e venerável Rainha do Mundo, Maria,
acompanhada por um vistosíssimo coro de virgens, e com ela estarão tam-
bém os fortíssimos soldados de Cristo, vossos irmãos e companheiros. Perfeito,
Isaac, Sancho, Pedro Walabonso, Sabiniano, Wistremundo, Habencio, Jeremias,
Sisenando, Paulo e Teodomiro, que vos precederam com o ensino da fé, vos
abriram a porta por onde deveríeis entrar no reino celestial do vosso Esposo,
que amastes ao ponto de morrerdes por Ele; apressai-vos a ver com delícia
a face d' Aquele a quem servistes em verdade e por quem morrestes para
viver eternamente. Recebei já a recompensa do vosso trabalho e colhei os
louros do glorioso combate.

(ln Documentum Martyriale, de Santo Eulógio,


trad. esp. de Simonet, Historia de los Mozárabes.)

Os Judeus'

'" E depois havia os Judeus, presentes na Península desde o tempo


dos Romanos, quando Adriano acabou com a rebelião hebraica con-
tra o Império Romano e os expulsou da Palestina.
Grupo de guerreiros árabes do século XV
(pormenor do retábulo dos santos Cosme e Damião, Instalados em Espanha, tal como noutros países ocidentais, des-
Catedral de Barcelona) pertaram a aversão daqueles que substituíram os Romanos na Península,

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os Godos. Estes empenharam-se em cristianizá-los, voluntariamente
ou pela força, e os que se recusaram a ser baptizados foram vítimas
de sucessivos decretos persecutórios. O Fuero Juzgo", do século VII,
dispunha que o pai judeu que se recusasse a baptizar seu filho rece-
beria 100 chicotadas, perderia as suas propriedades e teria a cabeça
rapada. Em 681, Eurico deu-lhes um ultimato mais grave: os Judeus
tinham de converter-se ao cristianismo ou abandonar o país no prazo
de um ano. A dificuldade de levar a bom termo essa ordem impie-
dosa obrigou o Governo a limitar-se a impor multas avultadas. Em
694, um concílio chegou a extremos maiores. Todos os judeus tinham
de ser vendidos como escravos, exceptuando os seus filhos menores A RUA, A PRAÇA, O MERCADO
de 7 anos, que seriam educados como cristãos.
O decreto era feroz, mas, felizmente para a raça oprimida, a exis-
tência dos seus tiranos estava mais ameaçada do que a sua. Em 711, A organização das cidades, na Espanha muçulmana, estava tão
os Muçulmanos chegavam a Espanha e destruíam o poder godo para adiantada para a época que, quando nelas entraram os vencedores cris-
todo o sempre. Como é natural, os perseguidos judeus acolheram com tãos, a respeitaram, bem como os nomes árabes! ligados à sua ima-
entusiasmo os recém-chegados, colaborando para facilitar a sua entrada gem. Continuaram a ser governadas por um alcalde (alcaide), ajudado
nas diferentes cidades hispânicas. por um aguazil, que prendia os infractores dos regulamentos munici-
A partir de então, a sua existência mudou totalmente e puderam pais caso não pagassem as alcavalas, ou impostos. Podiam ser arte-
viver, se não respeitados - continuavam a pertencer a outra religião sãos, como alfareros (oleiros) ou joyeros (joalheiros), que desenha-
«falsa» e, por isso, pagavam imposto -, pelo menos tolerados nos vam ajorcas (pulseiras), arrecadas ou objectos de marfim, ou os que
seus bairros próprios. O seu tradicional sentido para as finanças per- curtiam o cordovão ou faziam badanas.
mitiu-lhes aceder à administração de numerosas empresas e até à con- Mas também deixaram os nomes básicos da construção urbana.
fiança de vários califas, de que foram ministros. As suas especiali- Desde o conjunto aldeia, arrabalde, até ao ambiente e interior dos edi-
dades eram a medicina e a diplomacia, sendo utilizados muitas vezes fícios. A eles fomos buscar alcova, açoteia, gelosia, tabique, azulejos.
como enviados dos califas a países estrangeiros. Na ciência e na filo- A água suja escoa-se por esgotos e algerozes, construídos por alveneres.
sofia, deixaram nomes ilustres, como Maimónides, de Córdova, Ben A praça vulgar é chamada, no árabe utilizado em Espanha, rahba,
Ezra, de Tudela, ou Avencebrol, de Málaga. mas, se houvesse nela um comércio provisório ou lojas permanentes,
Nos seus bairros, e por razões óbvias de segurança, as ruas esta- era designada pela palavra suq, donde procede zoco (mercado), que
vam mais protegidas do que as muçulmanas, com várias portas que chegou até aos nossos dias.
eram fechadas à noite. A precaução estendia-se às casas particulares, As praças, tal como as conhecemos, eram poucas nessa Espanha.
que, em vez de pátios unifamiliares, dispunham de um central, em «Todo o interior murado de Málaga está comprimido e aglome-
redor do qual se agrupavam várias residências. rado», diz Ibn al-Jabite, no século XIV. «Toda a cidade está travada
Tal como na sociedade muçulmana, dispunham também de um bal- e, ao mesmo tempo, distribuída simetricamente, como uma teia de ara-
neário colectivo, aonde se dirigiam para a higiene semanal. nha ... As ruas estão inundadas de gente e, nos mercados, aglomeram-

---
-se as lojas.» E o notário maiorquino Pedro Llitrá, que entrou em

. I. ~o caso das palavras com origem árabe, quando o vocábulo castelhano e português
COITIC.\dlam na origem, aparece apenas o vocábulo português. Quando assim não ocorre,
2 Fuero Juzgo - nome de urna compilação de leis. (N. do T.) Inanhvemos o vocábulo castelhano, acrescentando a tradução portuguesa. (N. do T.)

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