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"A experiência deste livro e dos outros do autor é um mergulho na Grécia Antiga
e nos seus comentadores. Ele se debruça sobre o passado para tentar descobrir
quais as perguntas que os homens sempre se fizeram e como eles as
responderam. O professor Moreno já passou por muitas das perguntas da vida e
já se curou da arrogância dos que acreditam que existam as respostas certas,
mas sabe que existe uma história dessas respostas, e é nessa variedade de
experiências que encontramos a farta sabedoria que pode nos ajudar a
construir a nossa própria conclusão. Em resumo, ele resgata no passado os fios
para que possamos costurar as dúvidas que temos no presente. O resultado é
que saímos de suas páginas com um olhar mais acurado sobre o nosso tempo, os
nossos semelhantes e sobre nós mesmos."
Mário Corso
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Mário Corso[1]
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Por dez anos os gregos mantiveram Troia sitiada; por dez anos, dia após
dia, os portões da grande cidade se abriram para que os troianos saíssem
ao encontro do inimigo, guiados pela coragem exemplar de Heitor. Heitor
defende Troia, mas, acima de tudo, defende uma mulher e uma criança.
Sabe que o dia virá em que seus passos vão cruzar os passos de Aquiles,
seu implacável oponente – mas não pensa em outra coisa senão proteger
Andrômaca, por quem está disposto a morrer. E vai ser assim, sob o olhar
desesperado da mulher, do pai, da mãe e de todos os troianos, que ele vai,
inalmente, receber de Aquiles os golpes que o matarão.
A História nos mostra que não há nada como o amor para nos tornar
corajosos diante de um perigo mortal. Esse foi, sem dúvida, o segredo do
extraordinário Batalhão Sagrado de Tebas, uma tropa de elite que, para a
surpresa de toda a Antiguidade, enfrentou e derrotou o temível exército
espartano na batalha de Tégira. Este batalhão, também conhecido como
Batalhão dos Amantes, era formado por trezentos homens – na verdade,
cento e cinquenta casais de namorados, decididos, como Heitor diante dos
olhos de Andrômaca, a dar sua vida para salvar a de seu amado.
No combate daquela época, o homem via a morte de frente: no lugar
da destruição anônima e impiedosa dos mísseis e dos canhões, a luta era
sempre corpo a corpo, na distância máxima do comprimento da lança ou
do braço armado com a espada. A solidariedade entre os combatentes era o
fator decisivo entre a derrota e a vitória; um soldado sabia que o seu
escudo devia proteger a si e parte do corpo do companheiro a seu lado. Um
dependia do outro, e todos se moviam como se fossem um só. Com homens
que se amavam, lutando lado a lado, isso chegava à perfeição, permitindo,
como sugeria Platão, que “um simples punhado de bravos enfrentasse o
mundo inteiro”.
O Batalhão dos Amantes encontrou seu im na batalha de Queroneia,
quando enfrentou os exércitos de Filipe da Macedônia e de seu ilho, o
futuro Alexandre Magno. Acossados por um número muito maior de
combatentes, lutaram até o último homem. Conta a lenda que Filipe icou
emocionado ao ver todos aqueles corpos juntos, e, ao saber quem eram
eles, para lhes prestar a justa homenagem de um guerreiro, enterrou-os
todos no mesmo lugar, onde ergueu a estátua de um gigantesco leão de
mármore.
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Durante muito tempo o homem pensou que era o centro do universo. Para
os antigos, que viviam nessa confortável ilusão, o irmamento estrelado
cobria nosso mundo como um manto protetor, e o Sol era um grande astro
domesticado que vinha todos os dias nos banhar de vida e de luz. Em
Roma, Plínio apenas lastima que nosso ouvido terreno não consiga captar a
música que os planetas produzem ao se mover nas alturas; daqui de baixo,
diz ele, o mundo desliza em silêncio, tanto de noite quanto de dia.
O avanço da ciência, contudo, veio abalar essa falsa sensação de
importância. Primeiro, foi Copérnico, a nos ensinar que o universo não tem
centro, e que a nossa Terra é apenas um entre os vários planetas que giram
em torno do Sol, que é uma entre os duzentos bilhões de outras estrelas da
Via Láctea, que é uma entre os cem bilhões de outras galáxias que cintilam
no universo... Segundo Freud, esse foi o primeiro dos três grandes golpes
que a ciência in ligiu em nosso narcisismo.
Se éramos um nada diante do cosmos, restava ao menos o consolo de
ser os reis da criação, muito superiores aos demais seres vivos; atribuímos
a nós mesmos uma alma imortal, proclamamos nossa descendência divina
e cavamos um abismo entre nossa natureza e a deles. Coube a Darwin
desfazer essa ilusão: biologicamente, somos como os outros animais, mais
próximos de algumas espécies, mais distantes de outras – nada mais do
que isso. Era o segundo abalo, mas não o derradeiro. Este veio com Freud,
ao descobrir que não somos senhores nem mesmo em nossa própria casa,
pois é o inconsciente, e não a razão, quem comanda grande parte de nossa
vida mental.
Tendo perdido, desta forma, o cetro, o trono e a coroa, muitos
aprenderam a lição e icaram intelectualmente mais humildes, dispostos a
repensar os limites da condição humana. Outros, porém, movidos por esta
inconsciente vaidade da espécie, encontraram uma nova maneira de
preservar a velha ilusão de importância, atribuindo-se o poder apocalíptico
de in luir, como uma divindade maligna, no próprio clima do planeta! Mas é
muita pretensão desta formiga pensante! A ação humana pode tornar o
meio ambiente insuportável para nós, poluir o ar, sujar a água e ameaçar
outras espécies – em outras palavras, a ação do homem pode vir a ser fatal
para o próprio homem. O planeta, no entanto, não sofre sequer um
arranhão com esses despropósitos; ele esfria ou esquenta quando o Sol
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Quando Zeus transformou Órion, o caçador, numa estrela, ele não se sentiu
sozinho, pois o céu de antigamente era habitado por dezenas de
personagens e animais mitológicos. O próprio Sol, a Aurora, a Lua – todos
eram divindades, maiores ou menores, que povoavam o irmamento graças
à imaginação de nossos antepassados.
Muitos foram os mitos criados para explicar os planetas e as
constelações. Um dos mais curiosos, talvez, é o que narra o nascimento da
nossa galáxia: Zeus, mesmo sendo casado com Hera, elegeu uma mortal
para ser mãe de um ilho especial, Hércules, a quem reservava um destino
glorioso. Para garantir que o bebê se tornaria um homem excepcional,
levou-o às escondidas para o Olimpo e deixou-o mamar em Hera, que
estava adormecida. Contudo, o pequeno Hércules sugava com tanta força
que a deusa acordou sobressaltada e, ao ver aquela criança agarrada a seu
seio, afastou-a com um gesto instintivo. Com o susto, o guloso deixou
escapar da boca um jato do leite divino, que atravessou o céu e deu origem
ao que chamamos até hoje, com justa razão, de Via Láctea.
Com o passar dos séculos, veio o declínio do mundo greco-romano –
e, consequentemente, de toda essa mitologia; com isso, tornou-se deserto
aquele céu tão densamente povoado. Todas aquelas criaturas familiares
desapareceram, restando apenas o Universo organizado por suas leis
imutáveis. Expressando o sentimento da nova época, o ilósofo Pascal, no
século XVII, confessava o temor que sentia diante do que ele de iniu como
“o silêncio eterno desses espaços in initos”.
Ora, se ao olharem para cima os gregos viam os deuses e Pascal via o
in inito, nós outros não vemos mais nada. Numa madrugada de 1994, um
violento terremoto abalou a Califórnia, destruindo cidades e rodovias e
provocando um blecaute em toda a região. Ao saírem à rua para avaliar os
danos, os californianos, talvez pela primeira vez na vida, viram-se
mergulhados na mais profunda escuridão. Pois naquela noite e nas que se
seguiram, a Defesa Civil recebeu incontáveis ligações relatando que depois
do terremoto havia surgido no céu uma grande e estranha nuvem prateada,
cheia de pontos luminosos – e só a muito custo as pessoas foram
convencidas de que a “nuvem” gigantesca e ameaçadora era apenas a Via
Láctea, que sempre esteve ali desde a origem do planeta.
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Apesar de irônica, esta história serve para nos fazer pensar no preço
secreto que pagamos por cada avanço da tecnologia. A iluminação elétrica
veio aumentar nosso dia e melhorar nossa vida, é verdade, mas o clarão da
cidade moderna, ao nos privar do majestoso espetáculo do céu noturno,
tirou-nos também a oportunidade, renovável a cada noite, de sentir o
ín imo papel que representamos na ordem natural do Universo.
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deixou de sofrer, pois aceita, como preço a pagar pelo inestimável dom da
vida, a tarefa de suportar o rochedo da humana condição.
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Para deixar bem clara a diferença entre o nosso mundo e o mundo divino,
a imaginação dos gregos situou a morada dos deuses num lugar sagrado,
inatingível até para os pássaros, que icava além do mais alto cume do
Olimpo, acima mesmo das nuvens, quase perdido no céu. Enquanto a parte
humana da montanha era às vezes fustigada pela neve ou batida pela fúria
dos ventos, a parte divina era tão serena e tranquila que, dizem, as letras
escritas com o dedo nas cinzas dos sacri ícios demoravam um ano inteiro
para se desfazer.
Caso algum mortal pudesse sobrevoar a cidadela divina, ouviria,
cortando o silêncio daquela altitude, o canto maravilhoso das Musas e o
riso inextinguível dos deuses, reunidos no seu eterno festim. Debaixo de
um céu sempre azul, o Olimpo não conhecia a tristeza, pois os seus
moradores estavam livres do sofrimento e da morte. Zeus, o soberano
supremo, com seu riso fácil e generoso, tinha um bom-humor contagiante –
quando estava alegre. Quando estava irado, porém, tornava-se uma igura
formidável, sombria, assustadora mesmo para os outros deuses; furioso, o
senhor das nuvens abalava todo o irmamento com seus raios e trovões, e a
um simples franzir de seu cenho a terra toda tremia.
Quase todos os pensadores da Antiguidade – naquela época, nem
mesmo os deuses estavam livres de críticas – condenaram esta imagem
impulsiva que os poetas e artistas atribuíam a Zeus. Pois o caminho da
sabedoria não passava necessariamente pelo controle desses impulsos,
dessas paixões que dominavam o homem vulgar? Não vinha a
tranquilidade da alma da moderação do prazer, da impassibilidade diante
dos sofrimentos da existência? Com algumas raras (e notáveis) exceções, o
ilósofo devia ser sério e imperturbável, como Anaxágoras, do qual se dizia
jamais ter rido em toda sua vida. Ora, se era impossível conceber um sábio
rindo às gargalhadas ou cedendo a um ataque de cólera, o mesmo valia
para o senhor dos deuses, que deveria ter o decoro e a austeridade
compatível com sua importância.
Um pensador contemporâneo como Cioran, porém, não concorda
com esta ideia de que o verdadeiro sábio é o que consegue se manter
imperturbável. A atitude convencional de deixar em silêncio nossas paixões
e nossos desejos não nos liberta deles, nem nos livra – o que é pior – do
tormento de lembrar o que deixamos de dizer ou de fazer. A tradição pode
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daquela imagem sonhada que vai, em vão, perseguir até a morte – pobre
almazinha errante, perdida no exílio da existência.
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É Plutarco quem nos conta, em sua Vida de Nícias: em 415 a.C., Atenas
promoveu uma desastrada expedição contra Siracusa, sendo
fragorosamente derrotada. A tragédia não podia ser mais completa: seus
navios foram totalmente destruídos, seus generais foram executados e
milhares de atenienses foram encerrados em pedreiras abandonadas que
serviam de prisão, vindo a morrer muitos deles por falta de água e
alimento. Alguns foram marcados com ferro em brasa e vendidos como
escravos – mas destes, paradoxalmente, muitos conseguiram retornar para
casa.
Quando chegaram de volta a Atenas, estes sobreviventes foram
agradecer a Eurípides por ter-lhes salvado a vida com suas peças geniais. O
autor de Medeia há muito convivia com prêmios e com aplausos,
acostumado que estava a vencer os festivais de dramaturgia, mas quis
saber de que maneira sua obra, desta vez, tinha conquistado uma
recompensa de tal magnitude. A explicação era tão simples quanto
fantástica: de todos os gregos que habitavam fora da Grécia propriamente
dita, os siracusianos eram os mais ardentes a icionados de suas peças.
Aliás, a paixão que eles nutriam pelo teatro dele já tinha icado
demonstrada quando, certa feita, ainda em tempo de paz, um navio de
Atenas, perseguido por piratas, tinha ido procurar abrigo no porto de
Siracusa. Da terra, uma voz perguntou se alguém a bordo podia recitar de
cor algum texto de Eurípedes – e a autorização para ancorar só foi
concedida diante de uma resposta a irmativa.
Esses fãs incondicionais, sempre que encontravam um ateniense que
pudesse reproduzir alguma passagem de sua autoria, pediam que a
repetisse tantas vezes quantas fosse necessário para memorizá-la. E tinha
sido assim – ensinando a seus captores todos os fragmentos que podiam
lembrar – que os prisioneiros tinham conquistado o respeito de seus donos
e, mais tarde, a própria liberdade.
É impossível imaginar uma cena dessas ocorrendo no século XXI: os
atenienses da pós-modernidade não teriam uma linha sequer para
compartilhar – o que, honestamente, não faria diferença alguma, porque os
siracusianos de hoje também não estariam interessados. A própria beleza
deste episódio, em si, é inacessível para grande parte do público atual, que
não consegue compreender por que cargas d’água alguém faria tanto
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Isaac Asimov, um dos mais famosos autores de icção cientí ica, escreveu
diversas histórias sobre os possíveis efeitos da expansão da robótica entre
nós. No futuro imaginado por ele, todo robô deverá sair da fábrica com três
leis fundamentais implantadas em seus circuitos. As duas primeiras – um
robô não pode fazer mal a um ser humano e um robô deve obedecer às
ordens humanas – destinam-se a evitar que nosso planeta se torne um
pesadelo comandado pelas máquinas. A terceira – um robô deve ignorar as
duas primeiras regras se perceber que vai se destruir em vão ao tentar
segui-las – evita o sacri ício inútil desses mecanismos tão valiosos.
Nós outros, porém, mais livres porque imperfeitos, nascemos com
uma programação que nos permite ignorar essa regra e arriscar a própria
vida por algo maior do que nós mesmos. Às vezes, como mostra a Ilíada,
podemos agir assim pelo senso do dever: Heitor, o melhor dos troianos,
mesmo sabendo que vai levar a pior no confronto corpo a corpo com
Aquiles, o imbatível guerreiro dos gregos, não pensa em pedir clemência
ou, menos ainda, em fugir ao combate. Consola-o a ideia de que seu pai, sua
mãe e a cidade inteira, do alto da muralha, hão de guardar para sempre a
memória de sua honra e de sua coragem. Por isso, despede-se da mulher e
do ilhinho e desce à planície, ao encontro da morte certa mas da glória
eterna. Um robô não faria isso.
De todos os motivos possíveis, nenhum, é claro, pode se comparar ao
amor – para Dante, a força que “move o Sol e as outras estrelas”. Como a
misteriosa água-régia dos alquimistas, capaz de dissolver tudo aquilo com
que entra em contato, o amor sempre teve a propriedade de anular as
grandes e as pequenas leis. Assim Alceste, mulher de Admeto, ganhou o seu
lugar entre as grandes heroínas literárias quando consentiu em morrer no
lugar do marido, que a Morte tinha vindo buscar – da mesma forma que
milhares, antes e depois dela, puseram em risco a existência para salvar
alguém a quem muito amavam. Um robô também não faria isso.
Lastimamos o trágico destino de Heitor e de Alceste, mas não é di ícil
entender a corajosa decisão que tomaram, pois uma voz interior nos
sussurra que talvez izéssemos o mesmo, se tivéssemos o motivo. Agora,
quem poderá explicar o feito de Manuel González, o chileno voluntário que,
desa iando nosso pavor ancestral diante do sepulcro, enfrentou o risco de
baixar 600 metros até o fundo da mina para salvar os colegas? Mesmo na
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tive! Saber apreciar isso de estar vivo! Os objetos pequenos, o cheiro das
coisas. A riqueza do mundo, sem precisares comprar seja o que for”. O
estarmos aqui. O estar vivo. Isso basta.
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tudo passará, e não somos donos nem mestres de nosso destino para
controlar o eterno vaivém entre a alegria e a tristeza, entre o infortúnio e o
bem-estar. Salomão, ao que parece, tinha entendido que essa passagem
constante entre o que foi e o que vai ser é, simplesmente, o que a gente
costuma chamar de “vida”.
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que abre todas as portas é o elogio – seja ele justo, exagerado ou até
mesmo indevido. Dane-se a iloso ia, que aqui ninguém está buscando a
verdade. Se quiser viver em paz com seu semelhante, faça como Casanova,
que disso entendia muito bem: diga à bonita que ela é inteligente, e à
inteligente que ela é bonita; dessa forma, todo mundo ica feliz.
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De todos os seres vivos, o homem é o único que sabe que vai morrer. O que
acontece depois é um mistério insondável, mas nosso avô das cavernas, no
momento em que decidiu sepultar seus mortos, já trazia na cabeça as duas
questões decisivas: “De onde viemos? Para onde vamos?”. A humanidade
carrega essas perguntas no sangue, e a busca por respostas fez surgir a
ciência, as artes, a música, a religião e a iloso ia.
Os gregos mantinham sobre o assunto uma humildade prudente, pois,
embora fossem excelentes em tudo, sabiam, como ninguém, reconhecer a
pequenez do homem diante do vasto mistério do mundo. Quanto mais
estudavam, mais se convenciam de que os limites do universo, fossem ou
não in initos, icariam para sempre fora de nosso alcance. Falando sobre os
deuses, Protágoras expressou muito bem esse sentimento: “Não sei se eles
existem ou não, ou como é sua aparência, e isso por boas razões: porque
eles são invisíveis, e porque a vida humana é breve demais para descobrir”.
Séculos mais tarde, o mundo cientí ico, num acesso de onipotência
aguda, proclamou que não havia nada que pudesse escapar à luz
penetrante da razão. Se havia zonas obscuras, era por estarem envoltas
numa névoa provisória, que o vento higiênico da ciência haveria de
dissipar algum dia. Como dizia o astrônomo Kepler, no século XVII: “O
homem ainda não conhece todas as respostas”. Esse orgulhoso (e ingênuo)
“ainda não” era como um pedido de paciência – “Esperem, e tudo se
esclarecerá”. No século XX, no entanto, um gênio como Einstein rede iniu
nosso tamanho: vamos avançar cada vez mais na compreensão das leis da
natureza, mas o mistério último do Universo vai persistir – inatingível,
desa iador, maravilhoso. Falava como cientista; não era um homem
religioso.
É curioso ver como Freud – contemporâneo de Einstein e tão genial
quanto ele – esqueceu de incluir a alma feminina entre esses enigmas que
nunca serão desvendados. Em carta a Marie Bonaparte, sua amiga e
seguidora, o mestre confessou que, apesar de toda uma vida dedicada ao
estudo do tema, ainda não era capaz de resolver a eterna questão sobre o
que querem as mulheres. “Ainda não” – como se a mulher fosse um
continente desconhecido à espera do explorador capaz de mapear sua
geogra ia. Não lhe ocorreu, decerto, que, se isso acontecesse, a humanidade
estaria perdida. Este é um mistério que está fora de nosso alcance, como a
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con iar no cavalo que habita nosso inconsciente e deixar que ele decida
qual dos caminhos é o melhor.
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Assim como as dores que tenho nunca serão idênticas às dores do meu
vizinho, assim ninguém nunca saberá o valor exato que as coisas têm para
os outros. O que vale muito para Pedro pode nada valer para João... Em seu
diário de viagem, Colombo narra como os nativos do Caribe trocavam
pepitas de ouro por bugigangas sem valor. Um importante cacique icou
maravilhado ao receber um colar de contas de âmbar, um par de sapatos
vermelhos e uma garra inha de água de lor de laranjeira, que eram, para
ele, presentes dignos de um deus – enquanto verdadeiros enxames de
nativos, em suas precárias canoas, vinham rondar as naus espanholas em
busca de algum tesouro, especialmente os guizos, que chegavam a valer
quatro pedaços de ouro do tamanho de um punho. Colombo mostra-se
tocado com a ingenuidade daquela gente, sem pensar que talvez o cacique,
à volta da fogueira, faça sua tribo rir muito com a história daqueles brancos
que se desfazem de coisas tão belas e preciosas em troca de um metal sem
som e sem cheiro, tão inerte, inútil e comum quanto qualquer pedregulho.
Como exemplo dessa incomunicabilidade, William James conta uma
história verídica (e divertida): um viajante americano, no interior da África,
tendo encontrado por acaso um velho exemplar de um jornal de
classi icados de Nova Iorque, pôs-se a ler avidamente todos os anúncios,
coluna por coluna. Quando terminou, os nativos, que não sabiam o que era
leitura – e muito menos o que era um jornal –, izeram uma grande oferta
pelo misterioso objeto. Quando ele perguntou a razão de seu interesse,
responderam, impressionados: “Medicina. Para ver melhor” – porque essa
lhes pareceu a única justi icativa razoável para alguém dedicar tanto tempo
a mover os olhos para cima e para baixo ao longo daquela super ície
silenciosa.
Quem poderá avaliar o tamanho da minha satisfação? Ninguém, a não
ser eu mesmo. Por mais próximo que eu esteja de uma pessoa, ela terá de
se contentar com uma ideia aproximada do entusiasmo ou do prazer que
experimento – e não muito mais do que isso, pois as próprias palavras que
uso para expressá-los não signi icam exatamente o mesmo para ela e para
mim. Esta parte irredutível que cada um leva dentro de si é um ponto cego
nas relações humanas; quando nos damos conta disso, diz William James,
icamos mais humildes e mais tolerantes, perdendo aquele ar impiedoso
com que costumamos avaliar as escolhas que o outro faz. Divido com
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minha mulher uma gama tão grande de emoções e sensações que às vezes
até parece que já dançamos sem música – mas sou obrigado a confessar
que nem mesmo posso saber se o mate que compartilhamos tem, para ela,
o mesmo gosto que sinto...
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Fico com Ulisses: em minha casa sou feliz. Se não estou nela, estou
“fora” – jantei “fora”, passei o dia “fora”. Porta a dentro, contudo, estou num
universo acolhedor, seguro e confortável. Ela me protege sem me isolar; ela
é o meu oásis, não um lugar de fuga, pois se é dela que saio para enfrentar
o mundo, é a ela que retorno para refazer minhas forças. Nela eu me
reconheço, porque guarda por toda parte as marcas dos meus afetos; tudo
nela me acalma, me tranquiliza – mesa posta, café passado, riso de criança,
a voz de minha mulher perguntando se cheguei. Mortas as utopias, este é o
único sonho possível – e a coisa mais próxima que verei, estou certo, do
paraíso que perdemos.
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Morreu seis anos depois, sentindo-se vítima dos deuses, clamando contra a
injustiça desse prazo tão curto que lhe tinham concedido, sem saber que,
mesmo que lhe dessem mais cem ou duzentos anos para viver, haveria de
lamentar, como todos nós, quando chegasse a hora do derradeiro pôr do
sol.
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nos braços do ilho, que faz, inalmente, a pergunta por tanto tempo
contida: “Pai, por que devo amar esta vida?” – ao que o pai responde, com a
simplicidade das horas extremas: “Porque é a única que temos”.
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escreve, então, ela é a virtude suprema. Quer produzir um texto que pareça
simples ao leitor? Então aprenda a comer, nos bastidores, o pão que o
diabo amassou: costure e recosture os parágrafos, refaça as frases mil
vezes, quebre a cabeça em busca da palavra exata e da ordem precisa – e
sem queixas, porque tudo o que é fácil de ler é di ícil de escrever. E vice-
versa.
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águas. Não existe ninguém que os céus favoreçam mais: eu sou o eleito da
natureza”. Leiam-no todos os dias – mas façam-no diante do espelho.
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No início dos anos 70, poucos meses depois que o homem pisou na
super ície virgem da Lua, exploradores de cavernas inalmente entraram
numa galeria perdida das grutas de Niaux, no sul da França, famosas por
abrigar um grande número de pinturas do período paleolítico. A formação
de um lago subterrâneo tinha fechado completamente os pontos de
entrada desta parte da gruta, deixando-a inacessível por mais de 10.000
anos; agora, aproveitando que o nível do lago havia baixado, técnicos
bombearam água para fora dos túneis e ingressaram pela primeira vez
naquele grande e silencioso salão.
Ali, numa das paredes de rocha, a mão hábil de um longínquo
antepassado havia traçado, a riscos de carvão, as iguras perfeitamente
reconhecíveis de cavalos e bisões, similares às que geralmente se
encontram nesses sítios pré-históricos. O grande achado, no entanto,
estava no chão: ao longo dessa parede, uma larga faixa de areia intocada
guardava as marcas dos pés dos últimos seres humanos que haviam
passado por ali antes que alguma mudança geológica selasse aquela
caverna. Os rastros, tão nítidos como se datassem de ontem, indicavam que
três crianças, por volta de seus dez anos, haviam entrado naquele salão,
caminhando lado a lado – talvez até de mãos dadas –, acompanhadas de um
adulto, o qual, ao que tudo indica, seria o autor dos desenhos.
O que fariam essas crianças ali, tão longe da entrada principal?
Antropólogos sugerem algum ritual importante, provavelmente um
momento solene de despedida da infância em que os futuros caçadores
ouviriam da boca de um adulto experiente os segredos da vida e da morte
de suas futuras presas ou dos predadores de sempre. Como um professor
faz com seus alunos, tratava-se de transmitir o saber acumulado da espécie
para que a geração seguinte pudesse seguir o seu ciclo e fazer o mesmo
com seus ilhos e netos, atividade fundamental para qualquer sociedade
humana que deseje sobreviver.
Aqui talvez esteja a causa dos problemas da escola moderna: se
estamos em crise, é exatamente porque, em algum lugar do caminho,
perdemos a certeza sobre o que deveríamos transmitir aos que vêm depois
de nós. Seduzidos pela ideia de outros mundos possíveis, esquecemos,
como muito bem lembrou Hannah Arendt, que o duro compromisso de
quem ensina é com o mundo presente, com o qual, inclusive, podemos não
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concordar. Temos o direito de pensar num mundo diferente e lutar por ele,
mas nossas crianças, como as da caverna de Niaux, precisam, antes de mais
nada, que os adultos as tornem aptas a enfrentar as feras que, neste exato
momento, estão rondando lá fora.
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E ainda tem gente que não se deu conta de que o ser humano é um só! A
cena mais famosa do documentário Corações e Mentes, de 1974, deixou o
mundo inteiro chocado: diante da câmera, o general Westmoreland,
comandante geral das operações americanas na Guerra do Vietnã, a irma,
impassível, que a vida não tem para os orientais a mesma importância que
tem para nós – e a tela mostra, em seguida, em dramático contraponto, o
desespero de uma mãe norte-vietnamita que tenta se atirar na cova em que
o corpo do ilho vai ser enterrado. A intenção do general era desumanizar o
oponente, tornando mais aceitável o bombardeio sistemático de aldeias
indefesas, mas sua lógica perversa foi instantaneamente anulada pela
imagem terrível daquela pobre mãe, que sofria como sofreria qualquer
mãe, em qualquer tempo, em qualquer lugar.
Pai e ilho? Pois seja do outro lado do mundo, seja no passado
longínquo, pai sempre foi pai, ilho sempre foi ilho – como podemos ver
neste quadro doméstico que nos soa tão familiar: “Onde te meteste? – Em
lugar nenhum; não saí. – Não saíste? E por que icas zanzando por aí, como
um vadio? Anda, pega tua mochila, vai para a escola e te apresenta ao
professor. Faz anotações na tua tabuinha e recita tuas lições. Quando
terminares, volta para casa, sem vagabundear pelas praças e pelas ruas.
Ouviste bem o que eu disse? – Sim, ouvi. Se quiseres, até repito. – Então
repete, para eu ver. – Já vai; não estou com pressa. – Anda, repete! – Tu me
mandaste ir à escola, recitar as lições e anotar a matéria nova; depois,
voltar direto para casa. Não foi isso? – Foi. Isso é importante, meu ilho. Eu
nunca te obriguei a trabalhar em nosso campo, nem a ajudar nas despesas
da casa, como os teus colegas. Se seguires nosso exemplo, o meu e o de teu
avô, só terás a ganhar”. E assim seguem os dois neste diálogo atualíssimo,
encontrado pelos arqueólogos em escavações na Suméria, escrito em
tabuinhas de argila há mais de três mil e quinhentos anos.
Certo e errado? A linha que separa um do outro pode variar segundo
a época e o local, mas a Humanidade parece compartilhar de um fundo
comum de valores. Em outro texto quase tão antigo – uma prece do Livro
dos Mortos do Egito, em que a alma pede a clemência de Osíris –, temos
uma ideia bem clara do que o homem sempre soube o que não se deve
fazer: “Venho diante de vós, Grande Deus, Senhor da Verdade e da Justiça.
Eu sou puro! Eu sou puro! Deixai minha alma ir até vós, pois não cometi
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crime algum. Não fraudei meu semelhante, não atormentei a viúva, não
menti no tribunal. Não fui negligente, nem ocioso. Não impus jornada
excessiva a meus trabalhadores, nem usurpei a terra dos outros. Não
desviei a água do campo do vizinho, nem tirei o leite da boca da criança.
Não causei fome ou qualquer sofrimento a meu próximo. Não matei”. Item
por item, a lista vale até hoje.
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O P
Não conheço quem não tenha imaginado, um dia, encontrar uma garrafa
trazida pelas ondas, contendo a mensagem que algum desconhecido
con iou aos imponderáveis caminhos do mar. É impossível icar indiferente
diante de um achado fascinante como esse, pelo simples mistério que
aquela folha de papel enrolado pode esconder. Pois essa também é a magia
dos mitos da Grécia, que vagam há milênios pela correnteza do tempo:
embora sejam traçadas com uma tinta muito antiga, estas histórias sempre
oferecem algum tipo de resposta valiosa, seja qual for a época ou o leitor.
Vejam a lenda de Procusto, salteador assassino que atuava nos
caminhos que cruzavam a Ática. À primeira vista, parece uma história de
puro terror, típica de homens que, como os gregos, acreditavam que os
lugares ermos e as estradas desertas sempre ocultavam algum perigo
monstruoso. Este bandido sanguinário oferecia pousada aos viajantes
solitários e, à noite, depois de amarrá-los, deitava-os no leito mortal que
até hoje leva seu nome. Tomado por uma sinistra obsessão, deixava todas
suas vítimas exatamente do mesmo tamanho do leito: os homens mais
baixos morriam com o corpo estirado pela força de roldanas, e os mais
altos tinham o excesso decepado a golpes de machado. Teseu, um dos
grandes heróis da mitologia grega, passou por ali e fez com que Procusto
provasse de seu próprio veneno, e em dose dupla: obrigou-o a deitar
atravessado, e não ao comprido, e atorou-lhe os pés e a cabeça.
Mais uma vez os mitos nos ajudam a conhecer melhor os recônditos
mecanismos da natureza humana. Esta história nos previne contra o perigo
embutido em todo regime autoritário, que, acreditando possuir a verdade
absoluta, exige a nossa total adesão a seus princípios – é o leito de Procusto
ideológico. Ela também condena aquela tendência conhecida de rebaixar os
bons e hostilizar os que ultrapassam os outros em cultura e saber, tentando
reduzi-los aos padrões da maioria – é o leito de Procusto cultural.
Kempfer, viajante e cientista do século XVII, relata que conheceu na
Pérsia um funcionário que todos os anos media as mulheres do harém para
descobrir as que não se enquadravam nas dimensões determinadas pelo
sultão, obrigando-as a engordar ou a emagrecer, conforme fosse o caso – é
o leito de Procusto da beleza. Nosso século, no entanto, tem no mundo
feminino uma curiosa reversão deste mito: o Procusto original e todos seus
seguidores tinham de obrigar as vítimas a deitar no leito terrível; hoje,
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julgar a vida de outra pessoa e as decisões que ela toma – esquecendo que,
por escuro que nos pareça o caminho escolhido por ela, é possível, se não
provável, que ela traga no cinto, escondida de nossos olhos, a sua própria
lanterna.
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O V G
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É com uma ponta de inveja que Aulo Gélio, um dos mais pitorescos
cronistas da Antiguidade, registra o amor extraordinário de uma mulher
por seu marido – segundo ele, “superior àquelas paixões que a literatura
imortalizou, superior a tudo aquilo que se possa esperar da ternura
humana”. Por vinte e cinco anos, na cidade de Halicarnasso, capital de uma
das províncias do império Persa, Mausolo levou uma vida feliz ao lado de
sua rainha, Artemísia. Além de esposo dedicado, era amado por seu povo e
temido pelos inimigos – as duas qualidades essenciais dos bons reis de
antigamente.
Em perfeita harmonia, o casal se dedicou a embelezar sua cidade,
enchendo-a de esculturas famosas e de templos e edi icações de mármore
polido. Quando Mausolo morreu, Artemísia mandou emissários à Grécia
para contratar os arquitetos, escultores e artesãos de renome que
quisessem participar da construção de um túmulo grandioso para o
marido, ao qual esperava se juntar em pouco tempo – um monumento que
eternizasse o amor de um pelo outro e a dedicação de ambos à arte e à
beleza.
A construção tinha quase cinquenta metros de altura e ostentava
elegantes colunas em toda a volta, entremeadas com relevos assinados
pelos mais célebres artistas gregos. Mas como nem mesmo o sólido
mármore resiste ao implacável des ile dos anos e dos séculos, Artemísia
resolveu construir outro monumento, desta vez com o material mais
duradouro de todos, e promoveu um concurso literário. O prêmio, uma
elevada soma em ouro, atraiu a Halicarnasso oradores e ilósofos tão
famosos quanto Isócrates e seu discípulo Teopompo, que celebraram, por
escrito, a memória de Mausolo.
Pois ela tinha razão; o túmulo, apesar de aclamado pelos
historiadores como uma das sete maravilhas do Mundo Antigo, não chegou
a nossos dias. Mil e quatrocentos anos depois, já abalado por sucessivos
terremotos, foi descoberto por cruzados da ordem dos Cavaleiros de São
João, que entraram no sepulcro e, depois de admirarem por algum tempo
as belíssimas colunas e as cenas representadas nos relevos, quebraram
tudo, moendo o mármore para alimentar os fornos em que faziam cal.
Artemísia, no entanto, tinha conseguido romper para sempre a barreira do
esquecimento, legando para todas as línguas do Ocidente a palavra
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Q !
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los, esquecendo que ele próprio só aprendeu o valor (e o prazer) das coisas
porque seus pais tiveram a coragem de acostumá-lo ao gosto da frustração,
amargo como todo o bom remédio. O jovem Luís XIV, ao ver que sua
carruagem chegava exatamente no momento em que punha o pé no
vestíbulo, exclamou, atônito: “Quase tive de esperar!”. Mas ele era rei. Ele
podia.
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E você acredita, leitor, que é possível saber o que o futuro nos reserva?
Pois todos os povos da Antiguidade, de um jeito ou de outro, acreditavam –
e levavam isso muito a sério. Para eles, a janela para espiar o futuro estava
na interpretação adequada dos sinais que algum deus enviava cá para
baixo, como recompensa para seus seguidores mais devotos.
Como era de esperar – considerando quem eram os ilustres
remetentes –, o primeiro lugar onde procuraram estes sinais foi o céu, o
que tornou o homem antigo um grande observador dos fenômenos do
irmamento. Raios, relâmpagos e trovões, cometas, eclipses e arcos-íris,
tudo podia encerrar um signi icado oculto, importante para tomar uma
decisão ou prever aquilo que estava por vir.
Depois voltaram-se para as aves, mensageiras naturais entre os dois
mundos – e o voo das águias de Zeus e dos falcões de Apolo, a direção
imprevisível dos bandos de abutres no céu, o pio da coruja e o canto da
cotovia tornaram-se objeto de estudo de uma verdadeira ciência de
adivinhação. Vieram em seguida os especialistas em ler a trajetória da
fumaça que subia do altar dos sacri ícios, a conformação do ígado dos
animais abatidos e outras insigni icâncias do gênero. Você icaria
espantado, leitor, se soubesse quantas batalhas Roma adiou simplesmente
porque as galinhas sagradas se recusaram a comer os grãos oferecidos
pelos sacerdotes!
Até hoje há muita gente que toma o acidental e o imprevisto como um
sinal, uma manifestação sensível de um mundo além do nosso. Não os
condeno, nem aprovo – cada um enxerga o que quer num céu cheio de
estrelas. Só estranho que não vejam que o normal, o de sempre, o familiar
também pode ser sinal de algo, talvez bem mais importante. Pessoas que
são capazes de ler a con iguração das folhas de chá ou a ordem caprichosa
com que as cartas saem do baralho, que podem ver o destino da Babilônia
traçado nas entranhas de um cabrito, como diria Borges, não conseguem
encontrar sentido algum no que está bem na sua frente...
Lacarrière conta que, ao viajar a pé pela Grécia, teve uma verdadeira
iluminação: de repente, do nada, sentiu-se parte de um todo – as árvores, o
som claro e distinto de um galho que se quebrava, as vozes dos
camponeses, cujas palavras mal conseguia distinguir à distância. Então,
“como a luz que se extingue entre as árvores ao anoitecer”, esse “algo” foi
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sumindo e a tarde se tornou apenas uma bela tarde como as outras. O sinal,
porém, era muito claro, a lembrar que o homem e o mundo, mesmo que
por instantes, podem formar um conjunto perfeito, indissolúvel, sem outro
signi icado além do eterno luxo da vida.
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T E
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