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Um mergulho nos encantos da Grécia Antiga.

"A experiência deste livro e dos outros do autor é um mergulho na Grécia Antiga
e nos seus comentadores. Ele se debruça sobre o passado para tentar descobrir
quais as perguntas que os homens sempre se fizeram e como eles as
responderam. O professor Moreno já passou por muitas das perguntas da vida e
já se curou da arrogância dos que acreditam que existam as respostas certas,
mas sabe que existe uma história dessas respostas, e é nessa variedade de
experiências que encontramos a farta sabedoria que pode nos ajudar a
construir a nossa própria conclusão. Em resumo, ele resgata no passado os fios
para que possamos costurar as dúvidas que temos no presente. O resultado é
que saímos de suas páginas com um olhar mais acurado sobre o nosso tempo, os
nossos semelhantes e sobre nós mesmos."
Mário Corso
Clube SPA

Mário Corso[1]

Poucos consensos são tão unânimes: uma segunda língua é fundamental.


Quando nos aprofundamos em outra língua, descobrimos o intraduzível.
Damo-nos conta de que o quadro da realidade feito por outra língua é
distinto. Às vezes isso é visível em coisas prosaicas, como a maneira que
vemos as cores, ou em coisas mais complexas, como o modo que cada uma
dá conta de sensações e também da expressão de conceitos de um modo
que não nos ocorria.
O desa io de traduzir instala uma questão essencial: nem sempre há
correspondência, e esse é o melhor ensinamento da tradução. Ou seja, não
existem conceitos abstratos partilhados universalmente, o que existe é a
história de uma comunidade linguística e sua particular experiência de
circunscrever o real. Cada uma delas faz isso à sua maneira, cada qual lê o
mundo de uma perspectiva própria.
Essa mesma experiência ampli ica-se ainda mais quando estudamos
outra cultura e sua história. Só com a imersão em outra forma de entender
o mundo, de como é ou foi viver nela os pequenos e grandes sonhos,
podemos de fato olhar para a nossa modalidade e não tomá-la como
natural. Cada grupamento humano tem o seu jeito de hierarquizar valores,
de pensar a moralidade e os costumes.
Enquanto permanecemos monoculturais tendemos a ver nossa
experiência como o único modo, como a única e óbvia, ainda que
imperfeita, maneira de enxergar a vida e de nos conduzirmos nela. Apenas
o estudo ou a experiência de uma cultura distinta da nossa possibilita
chacoalhar o senso comum e desvelar a limitação da nossa compreensão. A
ideia de que possa existir um único ideal para todos os homens, ou uma
forma certa de levar a vida, ou ainda verdades gerais para conduzir a
humanidade, tudo isso ica sem sentido quando múltiplas experiências
humanas são confrontadas. O mundo deixa de ser um vetor evolutivo e
torna-se um mosaico complexo.
Já no primeiro mergulho percebemos que é necessário coragem
intelectual para conhecer outra cultura, pois suspendemos nossas
convicções e vemos nosso chão de certezas icar instável. Mas o
aprendizado é inestimável; a vertigem vale a pena, pois é a única vacina

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segura contra o fundamentalismo, o extremismo, a arrogância intelectual e


a contagiosa tolice do nosso mundo, tão cheio de si, que confunde domínio
técnico com sabedoria. Em síntese: conhecer bem uma segunda cultura
também é fundamental.
A cultura da Grécia Antiga, a mais estudada do Ocidente, é a que mais
dispõe de fontes históricas. A meu ver, o seu estudo é o que oferece mais
retorno intelectual e, ao mesmo tempo, como um brinde, mais encanto.
Embora tenhamos todos uma porção grega, já que uma das nossas mais
in luentes raízes é helênica, a cultura da Grécia Antiga é muito distinta de
tudo que nos tornamos – su icientemente distinta para ser esse espelho
invertido que nos proporciona um olhar para o presente que semeia
dúvidas sobre nossas verdades; su icientemente próxima para um texto de
trinta séculos nos comover com paixões que são como as nossas.
Nunca lembro exatamente quando me descobri grego. Coloco como
marco arbitrário a leitura de As Histórias de Heródoto. Vivi esse livro como
se fosse pessoal. Era a minha luta contra os persas, estava em cada batalha,
lamentando as perdas, enterrando os mortos, vibrando com as vitórias.
Sabia que ali fundava-se algo decisivo para a nossas civilização ser o que é.
Nunca mais parei; creio que são uns trinta anos de dedicação à causa da
Grécia. Li os clássicos e comentadores e tive a sorte, que aqui compartilho
com vocês, de ter um amigo que nunca me deixa sem respostas para os
detalhes e passagens obscuras desse universo fascinante.
Se você izer como eu, escolher a cultura grega como sua pátria
imaginária para se descentrar do nosso tempo e, só assim, perceber
algumas das mais importantes tramas invisíveis que nos norteiam, aqui
está um excelente guia desse labirinto. Poucos enfrentarão com sucesso os
dez séculos gregos clássicos, sua longa e complexa história e sua ainda
mais rica mitologia sem um cicerone erudito, e curioso. O professor
Cláudio Moreno há muitos anos vem ensinando com generosidade os mais
importantes passos para quem se lança na odisseia de conhecer a magia da
Grécia mítica.
A experiência deste livro e dos outros do autor é um mergulho na
Grécia Antiga e nos seus comentadores. Ele se debruça sobre o passado
para tentar descobrir quais as perguntas que os homens sempre se izeram
e como eles as responderam. O professor Moreno já passou por muitas das
perguntas da vida e já se curou da arrogância dos que acreditam que
existam as respostas certas, mas sabe que existe uma história dessas
respostas, e é nessa variedade de experiências que encontramos a farta
sabedoria que pode nos ajudar a construir a nossa própria conclusão. Em

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resumo, ele resgata no passado os ios para que possamos costurar as


dúvidas que temos no presente. O resultado é que saímos de suas páginas
com um olhar mais acurado sobre o nosso tempo, os nossos semelhantes e
sobre nós mesmos.
Como o autor nos avisa, existe uma Grécia alemã, uma francesa; cada
povo, cada comentador faz a sua imersão e resgata as joias que lhe
parecem melhores. Eu percorri muitas, algumas eruditas, outras populares,
mas em poucas achei um tom tão didático e erudito sem perder o rigor e
mantendo o encantamento. Essa é a Grécia do professor Moreno!
PS: eu só iz o prefácio em troca da promessa que depois de ter
contado a Ilíada, no seu monumental A Guerra de Troia, iria nos brindar
com sua versão da Odisseia. Esperemos.

[1] Psicanalista, membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). É autor de


Monstruário – Inventário de Entidades Imaginárias e de Mitos Brasileiros (Tomo, 2002) e, em
parceria com Diana Corso, Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis (Artmed, 2005) e
Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia (Artmed, 2010).

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N G

Há muito tempo troquei os contemporâneos pelos clássicos. Assim como


há quem busque suas respostas em Marx, no zen-budismo ou nas seções de
horóscopo, eu me sinto mais à vontade conversando com meus autores
antigos, especialmente os gregos, que nunca deixam de ser inspiradores.
Sua maior virtude é a de sempre permitir, generosamente, que eu os leia à
minha maneira – e não tenho dúvida de que o segredo da eterna vitalidade
da cultura grega sempre será essa riqueza extraordinária de abordagens
que ela possibilita. Como muito bem de iniu W. H. Auden, cada nação, cada
época redescobre a Grécia Clássica de uma maneira diferente, à sua própria
imagem. “Há uma Grécia alemã, uma Grécia francesa, uma Grécia inglesa”,
diz ele – para concluir, não sem certa maldade: “Pode ser até que exista
uma Grécia norte-americana”...
Passados dois mil anos, as histórias da mitologia e da literatura da
Antiguidade continuam iluminando todas as questões sobre as quais vale a
pena escrever – o nascimento e a morte, a família, o inevitável passar do
tempo, a arte e a beleza, e, como tema inesgotável, o amor, em todas as suas
formas. Como as profecias do oráculo de Delfos, estas histórias não
fornecem soluções claras e de initivas para tudo, mas servem para
despertar em quem as lê uma resposta pessoal para suas perguntas. Foi
exatamente assim – deste diálogo frutífero com as vozes do passado – que
nasceram todas as crônicas que compõem este livro.
O título é uma homenagem a Aulo Gélio, um romano de família rica
que viveu no segundo século da era Cristã. Gélio passou alguns anos
estudando em Atenas, onde coletou material para compor suas famosas
Noites Áticas – uma obra extensa, de vinte volumes, reunindo uma
in inidade de pequenos textos em que registra recordações de sua viagem à
Grécia, das coisas que por lá viu e ouviu, de mistura com apontamentos e
re lexões pessoais sobre as obras de oradores e escritores eminentes,
latinos e gregos, na maior parte seus contemporâneos. O título, segundo
ele, comemora as longas noites de inverno que dedicou, encantado, a
produzir sua riquíssima colheita. E foi por isso – não pela extensão da obra,
nem por sua qualidade, mas por compartilhar o mesmo encantamento que
Gélio deve ter sentido ao escavar na mina dourada da tradição – que resolvi
chamar este livro de Noites Gregas.

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Ao receber o Nobel de Literatura de 1957, Albert Camus proferiu uma


frase que gerou muita polêmica tanto na França quanto na Argélia, que
lutava então por sua independência: “Acredito na justiça, mas antes e acima
dela eu defenderia minha mãe”. Camus, um notório apoiador do direito
argelino à autodeterminação, marcava com estas palavras uma mudança
de initiva em sua atitude quanto ao con lito: continuava a condenar a fúria
repressiva do exército francês, mas passava a denunciar também a
violência indiscriminada dos nacionalistas árabes. O público estranhou a
frase, mas os extremistas de ambos os lados a detestaram – e com razão,
porque ela os acusava.
Trezentos anos antes de Cristo, na cidade de Corinto, o famoso
Timóleon já tinha aprendido, de forma muito mais amarga, a mesmíssima
lição. Quando jovem, o futuro estadista era diferente em quase tudo de
Timófanes, seu irmão mais velho, mas submetia-se de bom grado a seu
comando. Numa batalha contra as forças de Argos, Timófanes teve o cavalo
abatido bem no meio das linhas inimigas, e Timóleon, ao ver o irmão
desacordado no solo, tratou de protegê-lo com seu próprio corpo,
aparando no escudo e na couraça os golpes que lhe eram destinados.
Embora ferido, conseguiu resistir o tempo su iciente para que seus
soldados viessem socorrê-los.
Vencida a batalha, Timófanes, para a decepção de todos os coríntios,
que amavam a democracia, aproveitou o entusiasmo da tropa e proclamou-
se ditador. Timóleon ainda tentou demovê-lo daquele sonho doentio, mas
foi inútil. Envergonhado, sentindo-se responsável pelo acontecido, resolveu
tomar uma atitude drástica: acompanhado de dois amigos, voltou a
procurar o irmão e insistiu para que voltasse atrás. Vendo, porém, que era
tudo em vão, ele e os companheiros puxaram as espadas e mataram ali
mesmo o tirano usurpador. Muitos foram os que elogiaram a grandeza
daquele cidadão que considerava os laços com a pátria mais fortes que os
laços de sangue; outros, no entanto, icaram chocados com a frieza do
gesto, e o próprio Timóleon, sentindo que tinha cometido um ato ímpio e
abominável, mergulhou em profunda melancolia. Quando icou sabendo,
então, que sua mãe, estarrecida, tinha amaldiçoado seu nome para sempre,
retirou-se de Corinto e vagou por vinte anos pelos campos desertos,
fugindo a qualquer contato com seus semelhantes.

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Na solidão de seu remorso, Timóleon en im compreendeu o seu erro:


sonhando com uma sociedade melhor, tinha praticado um ato que o
transformava num odioso assassino. Pois era disso que falava Camus: as
ideias são muito importantes, e podemos discuti-las, noite após noite,
depois do jantar – mas nenhuma delas merece que se mate alguém em seu
nome. O que conta, mesmo, são as pessoas próximas a nós, esta pequena
parcela da humanidade concreta com que partilhamos nossa vida.

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Para Berenice Giannetti,


no seu aniversário.

Na Grécia Antiga, quase todas as esculturas eram feitas em bronze ou em


mármore. Os mestres se dividiam segundo suas preferências, mas era
tamanho o seu talento que, fosse com pedra, fosse com metal, nunca
deixaram de produzir obras-primas de qualidade, habituando o povo grego
ao convívio diário com a arte e a beleza.
Os que esculpiam o mármore, contudo, tinham uma superioridade
natural sobre todos os demais. Para fazer uma estátua, o artista do bronze
construía com sarrafos uma igura humana, com pernas e braços
estilizados, e ia “vestindo” esse esqueleto com argila até produzir uma
versão acabada da obra que imaginara, de onde então sairia o molde
necessário para a fundição de initiva. Seu trabalho, semelhante ao dos
pintores, era acrescentar camada por camada até atingir a forma
pretendida – exatamente o inverso, portanto, do caminho seguido pelo
artista do mármore, que precisava libertar, lasca após lasca, a forma que
estava encerrada dentro da pedra. Essa mesma ideia foi defendida, muitos
séculos depois, por Michelangelo, gênio do Renascimento: há uma
escultura escondida dentro de cada bloco de mármore; para que ela possa
vir à luz, o artista só precisa, com paciência e delicadeza, eliminar aquilo
que está sobrando.
Pois isso que o artista faz com o mármore, dizia Epicuro, nós
deveríamos fazer com nós mesmos. Como essas formas que jazem à espera
da mão que as liberte, vivemos encerrados no duro granito das convenções
vazias, dos desejos irrealizados e das esperanças enganadoras. “O sábio
deve esculpir sua própria estátua” é um preceito que nunca esteve tão atual
quanto agora, neste mundo de puro consumo e aparência. E não se trata de
louvar a renúncia e o sacri ício, mas de valorizar, com alegria, aquilo que
realmente importa, ou, como disse outro sábio, “não é que eu deva me
conformar com pouco, mas sim, se eu não tiver muito, que este pouco me
baste”.
Adeptos desse princípio, poetas e ilósofos deixaram suas receitas
pessoais para uma vida feliz, todas muito parecidas: uma casa cômoda,
fresca no verão, aquecida no inverno; a saúde, o bom tempo, a chuva

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generosa – lá fora; as lores na janela, as frutas da estação, a mesa farta,


com sabores simples e sinceros; a mente em paz, o sono tranquilo ao lado
de quem se ama; o olhar límpido das crianças; alguns amigos, com alma
semelhante à nossa; o sossego, na companhia de muitos livros e de muita
música. Não esperar nada dos poderosos; querer ser o que se é, e não
preferir nada mais; não temer o im, nem desejar que ele chegue; aprender,
em suma, a saborear o puro prazer de existir – isso é viver.

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É incomparável o legado que a Grécia nos deixou na literatura e na


escultura; da obra de seus pintores, contudo, não nos restou praticamente
nada, a não ser o título e o tema de alguns quadros famosos. Pela descrição
de seus contemporâneos, dá para ver que ainda estavam presos a um
ingênuo realismo, exigindo do pintor uma idelidade quase fotográ ica aos
objetos retratados.
Isso ica bem claro no clássico incidente entre Zêuxis e Parrásio, dois
mestres admiradíssimos, que se defrontaram num concurso para ver quem
era o melhor pintor. Quando Zêuxis descerrou sua tela, que representava
um cesto com belas uvas maduras, vários pássaros entraram no recinto,
atraídos pelas frutas. Orgulhoso desta aprovação inesperada, Zêuxis voltou
os olhos, curioso, para a tela de Parrásio, que ainda continuava coberta,
exigindo que abrissem a cortina para ver o que continha – quando então
percebeu, abismado, que aquilo que ele tinha tomado, desde o princípio,
por tecido, era na verdade a pintura que o rival tinha feito. Zêuxis, com
nobre humildade, proclamou-o então vitorioso, porque, se as suas uvas
haviam iludido os passarinhos, a cortina havia iludido a ele próprio, um
pintor experiente. O mesmo Zêuxis, anos depois, pintou um menino com
um cacho de uvas na mão; novamente os pássaros vieram voltejar em torno
do quadro, atraídos pelas frutas, o que arrasou nosso pintor. Desolado com
a própria incompetência, declarou, solenemente, que estava limitado a ser
apenas um bom pintor de uvas, pois, se também fosse bom com a igura
humana, os pássaros, com medo do menino, não teriam tido a coragem de
se aproximar da tela.
Com o passar dos séculos, no entanto, os pintores foram se tornando
verdadeiros artistas, preocupados em expressar um modo único de
enxergar a realidade; não sei o que os pássaros diriam de Van Gogh, mas
sei que ele mudou para sempre nossa maneira de ver um simples canteiro
de girassóis. À destreza da mão que maneja o pincel veio se juntar o olho e
a alma do pintor, e à história de Zêuxis podemos contrapor a de Velázquez,
que pintou, em 1650, o papa Inocêncio X. Quando o pontí ice viu, no retrato
pronto, a expressão tensa de seu próprio rosto, o cenho franzido, os olhos
quase ferozes, icou desconcertado; Velázquez havia captado com tal
maestria o lado oculto de sua personalidade que exclamou, numa crítica
que se tornou o melhor elogio: “Troppo vero”. Era iel demais.

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Por dez anos os gregos mantiveram Troia sitiada; por dez anos, dia após
dia, os portões da grande cidade se abriram para que os troianos saíssem
ao encontro do inimigo, guiados pela coragem exemplar de Heitor. Heitor
defende Troia, mas, acima de tudo, defende uma mulher e uma criança.
Sabe que o dia virá em que seus passos vão cruzar os passos de Aquiles,
seu implacável oponente – mas não pensa em outra coisa senão proteger
Andrômaca, por quem está disposto a morrer. E vai ser assim, sob o olhar
desesperado da mulher, do pai, da mãe e de todos os troianos, que ele vai,
inalmente, receber de Aquiles os golpes que o matarão.
A História nos mostra que não há nada como o amor para nos tornar
corajosos diante de um perigo mortal. Esse foi, sem dúvida, o segredo do
extraordinário Batalhão Sagrado de Tebas, uma tropa de elite que, para a
surpresa de toda a Antiguidade, enfrentou e derrotou o temível exército
espartano na batalha de Tégira. Este batalhão, também conhecido como
Batalhão dos Amantes, era formado por trezentos homens – na verdade,
cento e cinquenta casais de namorados, decididos, como Heitor diante dos
olhos de Andrômaca, a dar sua vida para salvar a de seu amado.
No combate daquela época, o homem via a morte de frente: no lugar
da destruição anônima e impiedosa dos mísseis e dos canhões, a luta era
sempre corpo a corpo, na distância máxima do comprimento da lança ou
do braço armado com a espada. A solidariedade entre os combatentes era o
fator decisivo entre a derrota e a vitória; um soldado sabia que o seu
escudo devia proteger a si e parte do corpo do companheiro a seu lado. Um
dependia do outro, e todos se moviam como se fossem um só. Com homens
que se amavam, lutando lado a lado, isso chegava à perfeição, permitindo,
como sugeria Platão, que “um simples punhado de bravos enfrentasse o
mundo inteiro”.
O Batalhão dos Amantes encontrou seu im na batalha de Queroneia,
quando enfrentou os exércitos de Filipe da Macedônia e de seu ilho, o
futuro Alexandre Magno. Acossados por um número muito maior de
combatentes, lutaram até o último homem. Conta a lenda que Filipe icou
emocionado ao ver todos aqueles corpos juntos, e, ao saber quem eram
eles, para lhes prestar a justa homenagem de um guerreiro, enterrou-os
todos no mesmo lugar, onde ergueu a estátua de um gigantesco leão de
mármore.

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Escavações modernas encontraram 254 esqueletos, lado a lado,


arranjados em sete ileiras; presume-se que os demais tenham sido feridos
e capturados pelos macedônios. O que nos serve de lição é que tanto
aqueles que os mataram, quanto os que desenterraram seus despojos em
momento algum duvidaram que ali estavam homens como eles, capazes de
morrer pela pessoa – ela ou ele, não importa – que tinham escolhido amar.

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Como dizia Montaigne, ninguém sai de mãos abanando quando lê alguma


página de Sêneca, o pensador romano que melhor escreveu sobre a
natureza humana. Como um diamante de um tesouro muito antigo, o que
ele disse há dois mil anos sobre nossa existência nunca vai perder seu
valor, como se vê no trecho abaixo, que parece ter sido escrito para todos
nós, os brasileiros de hoje – tanto para os mais jovens, que saem às ruas
com o entusiasmo de quem tudo quer mudar, quanto para os mais velhos,
que lamentam que este mundo não mais tenha remédio.
Sêneca, que conheceu muito bem os tempos de crise (foi homem
in luente na corte do imperador Nero!), descreve uma sensação que todos
nós conhecemos: “Nossos antepassados assim se queixavam, assim nós
também nos queixamos, e assim vão se queixar nossos netos e bisnetos:
todo mundo é corrupto, a maldade sempre vence e nossa sociedade
despenca velozmente pela ladeira que conduz à decadência! No entanto,
não há nada de novo acontecendo: tudo está como sempre foi, e assim vai
continuar. O que muda é a direção – ora um pouco mais para lá, ora um
pouco mais para cá, como as ondas do mar, que sobem mais ou menos na
areia da praia, dependendo da maré”.
Como se vê, tudo está em seu lugar. Que a voz da experiência tenha
um tom mais pessimista, nada mais natural – o que não impede, porém,
que uma das grandes glórias da juventude seja exatamente ignorar as
previsões dos mais velhos para lançar-se nas asas da esperança e da
imaginação. Não faz mal que, para uns, a Idade de Ouro tenha icado lá
atrás, enquanto outros jurem que ela nos espera lá adiante, no futuro.
Todos estão cumprindo o seu papel, e é necessário que assim seja.
Quanto ao futuro, aliás, sempre é bom lembrar o que nos conta Beda,
o Venerável, em sua “História Eclesiástica do Povo Inglês”: no século VII, no
início da Idade Média, um dos conselheiros do rei Edwin, da Nortúmbria,
criou, para descrever a condição humana, uma famosa metáfora que rezava
mais ou menos assim: “Nossa vida se assemelha ao curto voo de um
pardalzinho que atravesse a sala de banquetes, aquecida por um bom fogo,
onde Vossa Majestade e seus conselheiros estejam reunidos para jantar,
numa fria noite de inverno. A avezinha entra por uma porta e sai por outra;
enquanto voa pela sala, está livre da gélida tormenta e pode aproveitar a
luz e o calor da chama da lareira – mas logo estará lá fora, outra vez,

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mergulhando de novo no frio e na escuridão. Assim é a nossa vida, meu rei:


nós a temos por pouco tempo, e nada sabemos do que veio antes e do que
virá depois”.

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N ,

Durante muito tempo o homem pensou que era o centro do universo. Para
os antigos, que viviam nessa confortável ilusão, o irmamento estrelado
cobria nosso mundo como um manto protetor, e o Sol era um grande astro
domesticado que vinha todos os dias nos banhar de vida e de luz. Em
Roma, Plínio apenas lastima que nosso ouvido terreno não consiga captar a
música que os planetas produzem ao se mover nas alturas; daqui de baixo,
diz ele, o mundo desliza em silêncio, tanto de noite quanto de dia.
O avanço da ciência, contudo, veio abalar essa falsa sensação de
importância. Primeiro, foi Copérnico, a nos ensinar que o universo não tem
centro, e que a nossa Terra é apenas um entre os vários planetas que giram
em torno do Sol, que é uma entre os duzentos bilhões de outras estrelas da
Via Láctea, que é uma entre os cem bilhões de outras galáxias que cintilam
no universo... Segundo Freud, esse foi o primeiro dos três grandes golpes
que a ciência in ligiu em nosso narcisismo.
Se éramos um nada diante do cosmos, restava ao menos o consolo de
ser os reis da criação, muito superiores aos demais seres vivos; atribuímos
a nós mesmos uma alma imortal, proclamamos nossa descendência divina
e cavamos um abismo entre nossa natureza e a deles. Coube a Darwin
desfazer essa ilusão: biologicamente, somos como os outros animais, mais
próximos de algumas espécies, mais distantes de outras – nada mais do
que isso. Era o segundo abalo, mas não o derradeiro. Este veio com Freud,
ao descobrir que não somos senhores nem mesmo em nossa própria casa,
pois é o inconsciente, e não a razão, quem comanda grande parte de nossa
vida mental.
Tendo perdido, desta forma, o cetro, o trono e a coroa, muitos
aprenderam a lição e icaram intelectualmente mais humildes, dispostos a
repensar os limites da condição humana. Outros, porém, movidos por esta
inconsciente vaidade da espécie, encontraram uma nova maneira de
preservar a velha ilusão de importância, atribuindo-se o poder apocalíptico
de in luir, como uma divindade maligna, no próprio clima do planeta! Mas é
muita pretensão desta formiga pensante! A ação humana pode tornar o
meio ambiente insuportável para nós, poluir o ar, sujar a água e ameaçar
outras espécies – em outras palavras, a ação do homem pode vir a ser fatal
para o próprio homem. O planeta, no entanto, não sofre sequer um
arranhão com esses despropósitos; ele esfria ou esquenta quando o Sol

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quer, ou o oceano, ou os vulcões – como vem acontecendo há bilhões de


anos. A natureza já era imensuravelmente velha quando chegamos aqui; ela
não sabia que viríamos, nem saberá quando formos embora – e nem vai se
importar se isso um dia acontecer. Indiferente, a Terra vai seguir seu curso
silencioso pelo espaço in inito.

agosto•2021
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Os gregos levavam tão a sério a beleza e a arte que o nome de seus


arquitetos e escultores tem sobrevivido aos milênios. Pausânias,
certamente o tataravô de nossos guias de viagem, descreve dezenas de
templos e monumentos artísticos que embelezavam a Grécia Antiga;
segundo ele, a uma pequena distância das portas de Atenas, via-se um
túmulo sobre o qual haviam posto uma escultura representando um
guerreiro em pé, junto a seu cavalo. “Não sei nada sobre ele”, diz Pausânias
– e acrescenta, respeitosamente: “mas o homem e o cavalo são obra de
Praxíteles”.
O templo de Diana, em Éfeso, uma das Sete Maravilhas do Mundo
Antigo, não foi obra de um arquiteto só, pois levou duzentos e vinte anos
para ser construído, inanciado espontaneamente pelo tesouro de vários
reis e pela contribuição de cidades inteiras. Com uma área semelhante à de
nossos modernos estádios, tinha o imenso telhado sustentado por mais de
cem colunas de vinte metros de altura. Era tão magní ico que Xerxes, ao
passar por lá à frente do exército persa, não permitiu que sofresse dano
algum, rendendo assim sua homenagem à beleza e à força da criatividade
humana.
Este templo, porém, logo se tornaria vítima de uma das cenas mais
famosas do ressentimento: Eróstrato, um jovem e obscuro efesiano,
irresignado com sua irrelevância, revoltado por constatar que ninguém
haveria de escrever sua biogra ia – e por que o fariam, se não tinha nada
por onde merecê-lo? –, decidiu que, se não poderia entrar na História por
suas virtudes, tornar-se-ia famoso pelo mal que podia praticar. Assim, sem
remorso algum, aproveitando a escuridão da noite, provocou um incêndio
que destruiu completamente aquela maravilha que nem sequer conseguia
compreender. Preso, confessou, com a frieza dos maníacos, que sua única
intenção era atingir a celebridade com que sonhava e que lhe parecia di ícil
de alcançar por outros meios. Os cidadãos de Éfeso, chocados com aquela
selvageria, temendo que aquele exemplo nefasto encontrasse seguidores,
aprovaram um decreto que condenava à morte quem quer que
pronunciasse o nome do incendiário. Como se vê, foi uma tentativa vã; ele
acabou conquistando sua triste fama, pois passou à posteridade como
aquele que deveria ser esquecido...

agosto•2021
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Um cínico francês de iniu Eróstrato como “aquele sujeito que


queimou o templo de Diana para entrar na Enciclopédia Britânica”. Um
cínico brasileiro, ao ver que tornou-se moda apedrejar catedrais, queimar
veículos, emporcalhar prédios públicos e depredar praças e monumentos,
diria que os medíocres e desajustados redescobriram o caminho fácil para
chegar à fama instantânea e insigni icante – nem que seja no Facebook.

agosto•2021
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Para um grego antigo, as derradeiras palavras que alguém pronunciava


eram as mais importantes de toda sua vida. Em Troia, o guerreiro
agonizante, suspenso por um breve instante entre o mundo humano e o
divino, era ouvido com respeito por amigos e inimigos, pois sua fala tinha a
autoridade de quem já entrevia o outro lado. Homero, por exemplo, fez a
lança de Aquiles atravessar o pescoço de Heitor sem atingir sua traqueia, a
im de que ainda pudesse dizer alguma coisa antes que a alma deixasse seu
corpo.
O que aconteceu com Ulisses nunca mais se repetiu. Quando sua mãe
morreu, ele estava tão longe que sequer pôde ser informado; há dez anos
tinha deixado sua amada Ítaca para se juntar aos exércitos gregos, e desde
então nunca mais tinha recebido notícias de casa. Quando a guerra
terminou, na sua longa viagem de volta, entre os muitos perigos que
enfrentou, teve de descer ao mundo dos mortos para consultar Tirésias, o
adivinho, sobre o seu futuro e o de sua família – e lá, no meio das sombras,
avistou, aturdido, o espírito de Anticleia, que ele julgava ainda viva. Ela se
aproximou, carinhosa, feliz de encontrar o ilho assim, tão forte e saudável;
Ulisses, contendo as lágrimas, quis saber que doença a tinha arrebatado.
“Não foi doença, querido. Senti falta demais de tua ternura e de tua
vivacidade, e me deixei morrer. Volta logo para casa, que teu pai, tua
mulher e teu ilho te esperam ansiosamente”. Apesar da tristeza, Ulisses
saiu dali agradecido aos deuses por terem permitido aquele encontro
milagroso, sem o qual nunca teria colhido as últimas palavras da mãe e a
bênção de seu olhar.
Fora da mitologia, o romano, povo prático, adquiriu o curioso (e
assustador) hábito de usar o testamento para ixar as derradeiras palavras
dirigidas aos que icavam. Além de dispor de seus bens, o testador
aproveitava a oportunidade para revelar seus verdadeiros sentimentos
para com as outras pessoas, familiares ou não. A leitura era pública e atraía
um grande número de curiosos; como se pode imaginar, esses julgamentos
póstumos podiam fazer ou destruir reputações, pois supunha-se que o
autor, agora já fora de alcance, não mais teria a necessidade de esconder o
que pensava. “Os romanos”, disse um grego rabugento, “só dizem a verdade
depois que morrem”.

agosto•2021
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Alguns defendiam esse estranho costume como a preocupação


legítima de um povo que, conhecendo muito bem a fragilidade da vida,
procurava, pelo testamento, assegurar-se de que os outros haveriam de
ouvir o que ele tinha a dizer. Um ilósofo irônico como Diógenes, no
entanto, batendo o pó das sandálias, não deixaria de fazer a pergunta que
até uma criança faria: “Por que não disseram tudo isso antes que fosse
tarde demais?”.

agosto•2021
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Quando Zeus transformou Órion, o caçador, numa estrela, ele não se sentiu
sozinho, pois o céu de antigamente era habitado por dezenas de
personagens e animais mitológicos. O próprio Sol, a Aurora, a Lua – todos
eram divindades, maiores ou menores, que povoavam o irmamento graças
à imaginação de nossos antepassados.
Muitos foram os mitos criados para explicar os planetas e as
constelações. Um dos mais curiosos, talvez, é o que narra o nascimento da
nossa galáxia: Zeus, mesmo sendo casado com Hera, elegeu uma mortal
para ser mãe de um ilho especial, Hércules, a quem reservava um destino
glorioso. Para garantir que o bebê se tornaria um homem excepcional,
levou-o às escondidas para o Olimpo e deixou-o mamar em Hera, que
estava adormecida. Contudo, o pequeno Hércules sugava com tanta força
que a deusa acordou sobressaltada e, ao ver aquela criança agarrada a seu
seio, afastou-a com um gesto instintivo. Com o susto, o guloso deixou
escapar da boca um jato do leite divino, que atravessou o céu e deu origem
ao que chamamos até hoje, com justa razão, de Via Láctea.
Com o passar dos séculos, veio o declínio do mundo greco-romano –
e, consequentemente, de toda essa mitologia; com isso, tornou-se deserto
aquele céu tão densamente povoado. Todas aquelas criaturas familiares
desapareceram, restando apenas o Universo organizado por suas leis
imutáveis. Expressando o sentimento da nova época, o ilósofo Pascal, no
século XVII, confessava o temor que sentia diante do que ele de iniu como
“o silêncio eterno desses espaços in initos”.
Ora, se ao olharem para cima os gregos viam os deuses e Pascal via o
in inito, nós outros não vemos mais nada. Numa madrugada de 1994, um
violento terremoto abalou a Califórnia, destruindo cidades e rodovias e
provocando um blecaute em toda a região. Ao saírem à rua para avaliar os
danos, os californianos, talvez pela primeira vez na vida, viram-se
mergulhados na mais profunda escuridão. Pois naquela noite e nas que se
seguiram, a Defesa Civil recebeu incontáveis ligações relatando que depois
do terremoto havia surgido no céu uma grande e estranha nuvem prateada,
cheia de pontos luminosos – e só a muito custo as pessoas foram
convencidas de que a “nuvem” gigantesca e ameaçadora era apenas a Via
Láctea, que sempre esteve ali desde a origem do planeta.

agosto•2021
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Apesar de irônica, esta história serve para nos fazer pensar no preço
secreto que pagamos por cada avanço da tecnologia. A iluminação elétrica
veio aumentar nosso dia e melhorar nossa vida, é verdade, mas o clarão da
cidade moderna, ao nos privar do majestoso espetáculo do céu noturno,
tirou-nos também a oportunidade, renovável a cada noite, de sentir o
ín imo papel que representamos na ordem natural do Universo.

agosto•2021
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Embora fosse um simples mortal, Sísifo, rei de Corinto, foi o personagem


mais astuto da mitologia grega, capaz de enredar os próprios deuses em
suas tramas; alguns, inclusive, dão-no como o verdadeiro pai de Ulisses, o
que explicaria a inteligência excepcional do herói da Odisseia. Sua fama,
porém, não decorre dessas qualidades, mas, curiosamente, pelo castigo que
o Olimpo lhe impôs por suas artimanhas.
Seu grande erro foi sentir-se sempre superior aos deuses. A lição veio
de modo exemplar: quando morreu, foi condenado a um castigo
especialmente terrível, assim descrito por Homero no Canto XI da Odisseia:
“Seus dois braços levantam uma pedra gigantesca; então, com as mãos, e
também com os pés, ele tenta empurrá-la em direção ao alto de uma colina,
mas sempre que se aproxima do topo, o peso da pedra vence suas forças e
ela rola de volta à planície. Ele, porém, com os músculos retesados, com o
corpo banhado em suor, com a cabeça envolta numa nuvem de poeira,
começa a empurrá-la de volta” – para todo o sempre.
Este homem, condenado eternamente a carregar a rocha do
cotidiano, logo se transformou, para muitos ilósofos e escritores, na
perfeita imagem de uma vida que perdeu todo o sentido. Para os que ainda
compartilham os sonhos utópicos de uma religião ou de uma ideologia
(neste quesito, muito parecidas), a promessa de um futuro excepcional
alivia o fardo do presente e ajuda a suportá-lo. E aos outros – como o
verdadeiro Sísifo, aliás –, o que resta? Como encarar, a cada dia, o recomeço
deste suplício, cuja inalidade nos escapa?
Alguém sugeriu que tudo seria diferente para Sísifo se um deus
misericordioso viesse informá-lo de que aquele trabalho duro era a própria
razão de sua vida, quer gostasse ou não. A partir desse momento, sabendo
que sua missão neste mundo era simplesmente empurrar aquela pedra até
o alto da colina, Sísifo encontraria sentido – e até satisfação – em fazer algo
que antes parecia uma tortura insuportável.
É importante notar que esta suposição não muda em nada o quadro
que Homero descreveu. A mesma cena vai se repetir diante de nossos
olhos: o trabalho é o mesmo, a força exigida para realizá-la é a mesma, a
ausência de resultados signi icativos é a mesma, mas mudou a cabeça de
Sísifo e, com ela, tudo mudou. A diferença fundamental é que agora ele

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deixou de sofrer, pois aceita, como preço a pagar pelo inestimável dom da
vida, a tarefa de suportar o rochedo da humana condição.

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Muita gente acredita que convivemos com duas realidades distintas: de


um lado, o mundo concreto do nosso dia a dia; do outro, a linguagem que
usamos para falar sobre ele. Há, porém, os que defendem que tudo é uma
coisa só, e que a vida é – nem mais, nem menos – exatamente aquilo que
dizemos dela: o bom e o mau, o feliz e o infeliz, o falso e o verdadeiro não
passam de palavras que aplicamos à nossa experiência. Isso ica muito
claro nas duas pequenas histórias que seguem, colhidas nos clássicos para
sua ilustração e divertimento.
Plínio, o Velho, conta o incidente que envolveu Toranius Flaccus, um
conhecido mercador de escravos, e Marco Antônio, magistrado romano,
futuro amor de Cleópatra. Ocorre que o primeiro havia capturado dois
jovens escravos de rara beleza, tão parecidos que – embora um viesse da
Ásia e o outro dos Alpes – apresentou-os como gêmeos a Marco Antônio,
conseguindo na venda uma pequena fortuna. A fraude logo foi descoberta
porque os meninos, como seria de esperar, falavam línguas completamente
diferentes. Furioso, o magistrado fez vir o mercador à sua presença e o
cobriu de insultos, reclamando, principalmente, do preço exorbitante que
tinha pago pelos falsos gêmeos, que não poderia mais exibir aos
convidados.
“Pois não sei por que o senhor está se queixando” – respondeu o
mercador – “quando, na verdade, deveria me agradecer. Se tivessem
nascido da mesma mãe, a semelhança entre eles não seria tão espantosa –
mas assim, entre duas crianças provenientes de lugares tão distantes,
nunca foi visto nada igual. Eu não cobrei preço ainda maior só porque o
senhor é bom freguês – mas se quiser desfazer a compra, tudo bem.
Alguém certamente vai pagar bem mais caro”. Diante dessas palavras,
Marco Antônio trocou a indignação por um verdadeiro entusiasmo pela
fantástica aquisição que tinha feito, passando a considerar os dois meninos
como o seu bem mais valioso.
Montaigne, por sua vez, conta o caso daquele estrangeiro que saiu a
proclamar nos lugares públicos, ruidosamente, que, em troca de uma
considerável quantia, poderia ensinar a Dionísio, rei de Siracusa, um modo
infalível de descobrir qualquer conspiração que os súditos pudessem estar
tramando contra ele. O rumor chegou aos ouvidos do rei, que mandou
chamá-lo, pois queria aprender esta arte tão valiosa para sua segurança. O

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estranho então revelou o segredo: bastava entregar-lhe vinte quilos de


prata e sair anunciando que havia aprendido uma técnica especialíssima de
detectar levantes e conchavos. Dionísio entendeu o estratagema e mandou
seu tesoureiro entregar o que o visitante pedia, pois ninguém ia acreditar
que ele gastaria uma soma tamanha a não ser que tivesse realmente
recebido uma informação secreta de grande valor – e, com isso, levou ainda
mais medo aos inimigos que queriam o seu trono.

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Para deixar bem clara a diferença entre o nosso mundo e o mundo divino,
a imaginação dos gregos situou a morada dos deuses num lugar sagrado,
inatingível até para os pássaros, que icava além do mais alto cume do
Olimpo, acima mesmo das nuvens, quase perdido no céu. Enquanto a parte
humana da montanha era às vezes fustigada pela neve ou batida pela fúria
dos ventos, a parte divina era tão serena e tranquila que, dizem, as letras
escritas com o dedo nas cinzas dos sacri ícios demoravam um ano inteiro
para se desfazer.
Caso algum mortal pudesse sobrevoar a cidadela divina, ouviria,
cortando o silêncio daquela altitude, o canto maravilhoso das Musas e o
riso inextinguível dos deuses, reunidos no seu eterno festim. Debaixo de
um céu sempre azul, o Olimpo não conhecia a tristeza, pois os seus
moradores estavam livres do sofrimento e da morte. Zeus, o soberano
supremo, com seu riso fácil e generoso, tinha um bom-humor contagiante –
quando estava alegre. Quando estava irado, porém, tornava-se uma igura
formidável, sombria, assustadora mesmo para os outros deuses; furioso, o
senhor das nuvens abalava todo o irmamento com seus raios e trovões, e a
um simples franzir de seu cenho a terra toda tremia.
Quase todos os pensadores da Antiguidade – naquela época, nem
mesmo os deuses estavam livres de críticas – condenaram esta imagem
impulsiva que os poetas e artistas atribuíam a Zeus. Pois o caminho da
sabedoria não passava necessariamente pelo controle desses impulsos,
dessas paixões que dominavam o homem vulgar? Não vinha a
tranquilidade da alma da moderação do prazer, da impassibilidade diante
dos sofrimentos da existência? Com algumas raras (e notáveis) exceções, o
ilósofo devia ser sério e imperturbável, como Anaxágoras, do qual se dizia
jamais ter rido em toda sua vida. Ora, se era impossível conceber um sábio
rindo às gargalhadas ou cedendo a um ataque de cólera, o mesmo valia
para o senhor dos deuses, que deveria ter o decoro e a austeridade
compatível com sua importância.
Um pensador contemporâneo como Cioran, porém, não concorda
com esta ideia de que o verdadeiro sábio é o que consegue se manter
imperturbável. A atitude convencional de deixar em silêncio nossas paixões
e nossos desejos não nos liberta deles, nem nos livra – o que é pior – do
tormento de lembrar o que deixamos de dizer ou de fazer. A tradição pode

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considerar ridículo e degradante o espetáculo público dessas explosões,


mas às vezes é necessário mandar às favas essa sensatez esterilizante e
gritar a plenos pulmões a nossa indignação pelo que sofremos ou nossa
dor pelo que estamos perdendo.

agosto•2021
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Cada vez ica mais fácil deslocar-se de um ponto a outro do globo. No


Mundo Antigo, mesmo a viagem mais curta transformava-se numa
aventura de contornos imprevisíveis; hoje, ao contrário, visitamos com
facilidade os lugares mais distantes, já informados de tudo que vamos
encontrar – o clima, a comida, o caráter dos nativos e as coisas que
devemos fotografar. A não ser pelo capricho de algum vulcão intrometido,
tudo está previsto – menos, é claro, o que vamos descobrir sobre nós
mesmos.
O pior é que podemos partir sem partir. Há os que percorrem longos
trajetos de ida e de volta sem acrescentar uma gota à experiência ou ao
conhecimento com que saíram de casa; para eles vale o comentário de
Sócrates, quando foram lhe dizer que alguém, apesar das inúmeras viagens
que fazia, não tinha melhorado em nada: “Nem poderia, pois ele sempre
leva a si mesmo consigo”. Não se trata, é claro – como se fosse possível! – de
deixar para trás aquilo que somos, assim como nas férias deixamos nosso
gato ou nossa samambaia com o vizinho, mas de abrandar nossos
preconceitos, a im de enxergar com um jeito novo aquilo que for oferecido
a nossos olhos.
Esta é a verdadeira arte de viajar – abrir-se para o mundo, adotar
uma atitude atenta e receptiva para o espetáculo do universo. Os
pensadores gregos, por exemplo, visitavam o Egito sempre dispostos a
aprender; o contato com uma civilização muito mais antiga do que a sua
constituía, para eles, uma salutar lição de humildade e modéstia, virtudes
que consideravam indispensáveis para atingir a sabedoria. Foi com esse
mesmo espírito que os jovens aristocratas britânicos, do século XVIII em
diante, passaram a completar sua educação com uma peregrinação cultural
através do continente europeu – especialmente da Itália, por causa do
legado clássico e renascentista. Dependendo das posses e do tempo
disponíveis, esta viagem – signi icativamente denominada de “Grand Tour”
– durava de um a vários anos e era vista como um fator indispensável para
o crescimento interior dos jovens cavalheiros, futuros dirigentes do
império que dominava o planeta.
Nunca sabemos o que a viagem vai fazer por nós. Ela pode formar,
pode transformar, pode até nos conduzir para um inesperado desvio da
existência – como fez com Zênon, que viria a ser um dos mais importantes

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ilósofos estoicos. Aos trinta anos, trabalhando com o pai, transportava


mercadorias entre a Ásia e a Grécia, numa rotina deprimente. Um dia, seu
navio naufragou já perto de Atenas; nadando, Zênon conseguiu chegar à
cidade e subitamente se viu numa livraria, a folhear avidamente o livro que
Xenofonte escreveu sobre a vida de Sócrates. Encantado, exclamou: “Como
eu gostaria de conhecer um homem assim!”. “Pois então segue aquele lá”,
disse o livreiro, e apontou o ilósofo Crates, que casualmente passava por
ali. Num impulso, Zênon correu atrás dele e implorou que o aceitasse como
discípulo. Esse gesto mudou para sempre a sua vida; e quando
perguntavam como tinha sido sua última viagem como mercador,
costumava responder, agradecendo ao destino: “Tive uma péssima
travessia, mas um excelente naufrágio”.

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Na Itália, no Renascimento, a ligação comercial com terras mais


longínquas despertou também a curiosidade pelos animais que viviam nos
outros cantos do globo. As famílias de renome, que já mantinham em sua
corte um séquito de pintores, artistas e saltimbancos, passaram também a
demonstrar seu poder e prestígio com grandes coleções de espécimes
raros e valiosos. Além de apurados plantéis de cavalos, cães e falcões de
caça, formaram-se zoológicos particulares que incluíam o leão, a zebra e a
girafa, até então raríssimos na Europa. Um desses senhores, por exemplo,
orgulhava-se de sua rica coleção de leopardos, provindos dos mais
variados pontos do Oriente...
Não faltaram, é claro, os que se dedicaram a formar verdadeiros
zoológicos humanos. O famoso cardeal Hipólito Médici, por exemplo, exibia
uma coleção de bárbaros que falavam mais de vinte idiomas diferentes,
todos eles escolhidos entre os melhores representantes de seu povo: além
de incomparáveis ginetes mouros, do norte da África, havia arqueiros
tártaros, lutadores etíopes, mergulhadores indianos e turcos caçadores,
que sempre acompanhavam o cardeal em suas expedições. Quando faleceu
prematuramente, em 1535 – é Jacob Burckhardt quem conta, em A Cultura
do Renascimento na Itália –, seu caixão foi levado nos ombros por este
bando esquisito, que misturava a algaravia de suas vozes às lamentações
do cortejo fúnebre.
Essa exaltação da diferença entre os tipos humanos – que sempre
serviu, em todas as épocas, para argumentos racistas – veio perdendo força
desde o século XVIII, quando se proclamou que a Humanidade, embora
múltipla, é sempre uma só. A não ser por fanatismo delirante, hoje
ninguém ousaria negar que os homens – afegãos ou japoneses, esquimós
ou argentinos – sejam iguais uns aos outros. Por outro lado – e talvez por
consequência – começamos a compreender que aquilo que torna in inita a
variedade do zoológico humano é a possibilidade de cada um ser múltiplo
em si mesmo.
Isaac Singer, um dos autores preferidos de nosso Moacyr Scliar,
contava a história de um homem que, ao voltar de uma viagem a Vilna,
comentou com um amigo que os judeus deviam ser um povo notável, pois
tinha visto um judeu que, da manhã à noitinha, dedicava-se aos
ensinamentos do Talmude; um judeu que, durante o dia inteiro, só pensava

agosto•2021
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em como poderia enriquecer; um judeu que agitava o tempo todo a


bandeira da revolução, clamando contra a injustiça; um judeu que corria
atrás de qualquer rabo de saia que passasse – ao que o amigo replicou:
“Por que a supresa? A inal, Vilna é uma cidade grande, onde vivem judeus
de todos os tipos”. “Mas não”, disse o primeiro, “estou falando do mesmo
judeu”. Pois é: assim somos todos; assim é cada um de nós.

agosto•2021
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Plínio, o grande naturalista de Roma, dizia que o elefante era o mais


humano dos animais – e por várias razões. Primeiro, porque entendia a
língua do seu país, obedecia às ordens que recebia e lembrava muito bem
de suas tarefas. Depois, porque era sensível aos prazeres do amor e da
glória, e possuía, num grau raro até mesmo entre os homens, noções de
honestidade e justiça. Além disso, demonstrava extraordinária prudência,
pois, embora fosse corajoso, sempre procurava evitar as perigosas viagens
por mar, recusando-se a subir em qualquer navio sem que antes seu
tratador prometesse, solenemente, que um dia o traria de volta para casa.
Havia evidências indiscutíveis de que este nobre animal tinha uma
inteligência fora do comum e dela se orgulhava. Plínio conta que Mutianus,
que foi cônsul por três vezes, conheceu um elefante que, tendo aprendido a
traçar com a tromba todo o alfabeto grego, fazia questão de riscar na areia
macia a frase “Eu mesmo escrevi estas palavras” – e a este contrapõe o
exemplo daquele outro que, envergonhado por ter nascido com o raciocínio
mais lento, tinha sido surpreendido, à noite, revisando em segredo as lições
que o treinador lhe ministrava durante o dia...
Os leitores do passado aceitavam candidamente esses relatos de
Plínio. Não enxergavam o absurdo contido na simples ideia de um
paquiderme alfabetizado, nem indagavam como é que se descobre quando
um elefante está com vergonha, ou que método ele usa para revisar as
lições do dia anterior. O romano de dois mil anos atrás imaginava que os
animais eram muito mais próximos do homem do que realmente eles são,
atribuindo-lhes a capacidade de pensar e de entender a linguagem humana
– não muito diferente, aliás, de uma querida amiga minha que, ainda hoje,
mantém “conversas sérias” com o cachorro, certa de que basta falar bem
devagar para que o danado entenda frases repletas de orações condicionais
e de verbos conjugados no futuro!
Infelizmente, essa confusão entre os dois mundos nem sempre é tão
inofensiva. Há gente pregando por aí o im de qualquer limite, rebaixando o
homem e endeusando o animal, a quem atribuem “direitos”. Mas não veem
que são seres irremediavalmente diferentes? Eles têm lá seus sentimentos,
desenvolvem algumas habilidades, trocam mensagens básicas com os
demais membros da espécie – mas isso é tudo. Só nós temos a capacidade
de dizer não a nossos instintos, só nós podemos ter consciência de nós

agosto•2021
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mesmos (e disso o nosso rosto é a expressão mais visível) e só nós nos


preocupamos em de inir os limites éticos de nossa relação com os animais.
Eles não têm direitos; nós é que temos deveres para com eles, uma
responsabilidade que se tornou gravíssima no momento em que todos os
animais deste planeta – da foca ao tigre, da anta ao canguru – passaram,
tanto quanto o gato de nossa casa, a depender do bem ou mal que
decidirmos fazer.

agosto•2021
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O homem antigo acreditava que o corpo e a alma eram entidades distintas,


e que a função do primeiro era apenas servir de morada para a segunda.
Embora não concorde com essa velha divisão – para mim, são coisas
inseparáveis –, tenho de admitir que é uma bela metáfora, pois a estrutura
de nosso corpo é mesmo muito semelhante à de uma casa: a alvenaria da
carne é suportada pelas vigas dos ossos e pela tensão dos tendões,
enquanto a coluna vertebral é o pilar que faz o peso do conjunto apoiar-se
no alicerce dos pés. A pele é a cobertura externa; na cabeça, o teto, o sótão
e o telhado. No centro da casa, no fogo ancestral da lareira, o coração. É
nesse interior protegido que a alma vive e respira.
Nessa casa de nove portas, qual delas servirá para que a alma possa
sair? O homem primitivo acreditava numa saída especial, secreta, uma
abertura imperceptível no alto do crânio – a décima porta, que ligaria o
mundo interior ao mundo cósmico. Na casa, seria a chaminé, por onde o
sopro da alma podia subir livre aos céus para visitar lugares remotos,
voltando depois mais sábia e mais instruída. Há dezenas de relatos dessas
viagens, todas elas, como seria de esperar, ocorridas quando o corpo estava
prostrado pelo sono, por doença ou pela bebida. Plínio nos conta o curioso
destino de Hermotimo de Clazomene, que costumava deixar o corpo por
vários dias e só voltava depois de ter visto coisas desconhecidas e
conversado com pessoas a uma grande distância dali. Certa feita, por
traição de sua mulher, seu corpo foi entregue a inimigos, que simularam
um funeral e o cremaram dentro dos ritos de costume. Quando sua alma
voltou, era tarde demais, pois tinha perdido para sempre o seu invólucro;
para abrigá-la, os cidadãos de Clazomene, condoídos, construíram-lhe um
templo em que mulher alguma podia pisar, para punir a memória de sua
pér ida esposa.
Infeliz é aquela alma, no entanto, que se debate dentro de um corpo
errado. Ao se contemplar no espelho – a inal, os olhos não são as janelas da
alma? –, não reconhece aquele rosto que também a examina. Aquele corpo
não nasceu junto com ela, não cresceu junto com ela, e por isso ela sente
como se a tivessem instalado na casa de outra pessoa. O que devia ser um
lar passa a ser uma prisão, insuportável e vazia. Se ela tiver o talento de
Michael Jackson, vai lutar com todas as forças para encontrar, um dia, o
corpo que imagina ser o seu – vai tentar se aproximar, a cada nova cirurgia,

agosto•2021
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daquela imagem sonhada que vai, em vão, perseguir até a morte – pobre
almazinha errante, perdida no exílio da existência.

agosto•2021
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Dizem que Filipe da Macedônia, pai de Alexandre, muito cedo se


convenceu de que o destino do ilho era brilhar sobre todos os povos que
viviam debaixo do Sol. Como pai, era grato aos deuses por sua boa estrela;
todavia, sabendo que ninguém chega a comandar um império sem
aprender a comandar a si mesmo, procurou um educador excepcional para
a tarefa. O escolhido foi o próprio Aristóteles, que já era o maior pensador
de Atenas e que viria a ser, de certa maneira, o mestre de todo o Ocidente;
debaixo dessa tutela incomparável, Alexandre, além de tomar gosto pela
iloso ia, pela poesia e pelas artes, adquiriu um respeito natural por todos
os que sabiam mais que ele.
Ao longo de toda sua vida, Alexandre teve a sorte de encontrar outros
mestres com a coragem su iciente para apontar os seus limites. Ele era
apenas um menino quando aprendeu a tocar a lira – à semelhança de
Aquiles, o herói da Ilíada, sua obra favorita. Certa feita, quando seu
professor de música tentava ensiná-lo a dedilhar uma determinada corda
para obter a nota exata que precisava, pôs-se a resmungar, de mau humor:
“E se, em vez dessa corda, eu resolver tocar nesta outra aqui, faz alguma
diferença?” – ao que o professor respondeu, incisivo: “Para quem vai ser
apenas um rei, nenhuma. Agora, para quem deseja tocar corretamente, faz
toda a diferença do mundo”.
Já adulto, mesmo depois daquela espantosa expedição que durou
onze anos e que o fez senhor de um império que se estendia do Egito até a
longínqua Índia, Alexandre continuava respeitando a voz de seus mestres.
Contam que ele admirava tanto a obra de Apeles que tinha lançado um
decreto proibindo qualquer outro artista de pintar o seu retrato; além
disso, sempre que passava por Éfeso ia visitar o seu estúdio, e ali se deixava
icar por muitas horas, sentado junto à mesa em que jovens aprendizes
preparavam as tintas para a paleta do grande pintor. O problema é que
Alexandre, estimulado pelo ambiente, punha-se a tagarelar sobre as artes
plásticas, emitindo opiniões que deixavam bem claro que não passava de
simples amador – e assim ele fez até o dia em que Apeles – dirigindo-se ao
mais famoso guerreiro da Antiguidade! – pediu-lhe que icasse em silêncio,
pois estava atrapalhando os meninos, que não paravam de rir com seus
tolos comentários sobre pintura.

agosto•2021
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Envergonhado com a reprimenda do mestre, Alexandre – o homem


mais poderoso de seu século – simplesmente calou a boca. Na verdade,
Alexandre só tinha conquistado outros reinos porque tinha aprendido a
conquistar a si mesmo. Foi a educação, mãe da liberdade, que lhe forneceu
a rédea e o leme que todo ser humano necessita para conter seus impulsos
e governar sua vida.

agosto•2021
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É Plutarco quem nos conta, em sua Vida de Nícias: em 415 a.C., Atenas
promoveu uma desastrada expedição contra Siracusa, sendo
fragorosamente derrotada. A tragédia não podia ser mais completa: seus
navios foram totalmente destruídos, seus generais foram executados e
milhares de atenienses foram encerrados em pedreiras abandonadas que
serviam de prisão, vindo a morrer muitos deles por falta de água e
alimento. Alguns foram marcados com ferro em brasa e vendidos como
escravos – mas destes, paradoxalmente, muitos conseguiram retornar para
casa.
Quando chegaram de volta a Atenas, estes sobreviventes foram
agradecer a Eurípides por ter-lhes salvado a vida com suas peças geniais. O
autor de Medeia há muito convivia com prêmios e com aplausos,
acostumado que estava a vencer os festivais de dramaturgia, mas quis
saber de que maneira sua obra, desta vez, tinha conquistado uma
recompensa de tal magnitude. A explicação era tão simples quanto
fantástica: de todos os gregos que habitavam fora da Grécia propriamente
dita, os siracusianos eram os mais ardentes a icionados de suas peças.
Aliás, a paixão que eles nutriam pelo teatro dele já tinha icado
demonstrada quando, certa feita, ainda em tempo de paz, um navio de
Atenas, perseguido por piratas, tinha ido procurar abrigo no porto de
Siracusa. Da terra, uma voz perguntou se alguém a bordo podia recitar de
cor algum texto de Eurípedes – e a autorização para ancorar só foi
concedida diante de uma resposta a irmativa.
Esses fãs incondicionais, sempre que encontravam um ateniense que
pudesse reproduzir alguma passagem de sua autoria, pediam que a
repetisse tantas vezes quantas fosse necessário para memorizá-la. E tinha
sido assim – ensinando a seus captores todos os fragmentos que podiam
lembrar – que os prisioneiros tinham conquistado o respeito de seus donos
e, mais tarde, a própria liberdade.
É impossível imaginar uma cena dessas ocorrendo no século XXI: os
atenienses da pós-modernidade não teriam uma linha sequer para
compartilhar – o que, honestamente, não faria diferença alguma, porque os
siracusianos de hoje também não estariam interessados. A própria beleza
deste episódio, em si, é inacessível para grande parte do público atual, que
não consegue compreender por que cargas d’água alguém faria tanto

agosto•2021
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barulho por causa de um simples poeta. Podem me chamar de saudosista,


passadista ou ultrapassado, mas confesso que esta história sempre me
deixa melancólico, diante da constatação de que algo precioso e irrepetível
foi perdido aqui para sempre.

agosto•2021
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A !

“O mundo começou sem o homem


e vai terminar sem ele.”
Claude Lévi-Strauss

Os gregos, ao contrário dos romanos, só matavam animais para ins


religiosos ou para seu consumo próprio. Pitágoras e seus discípulos, então,
nem isso, pois acreditavam que as almas dos mortos podiam reencarnar no
corpo de qualquer ser vivo – ao que Tertuliano, crítico feroz desta doutrina,
redarguia, zombeteiro: “A ser assim, quem me diz que aquela carne que
chia no espeto não é uma posta da minha querida avozinha?”.
Os romanos, seus sucessores, logo aprenderam a matar por prazer.
Organizavam mirabolantes espetáculos no Coliseu em que milhares de
animais eram abatidos diante de uma plateia assanhadíssima. Num evento
tristemente memorável, Probus transplantou dezenas de árvores copadas
para a arena, criando ali uma espaçosa loresta, que povoou com mil
avestruzes, mil cervos, mil antílopes e mil javalis – todos mortos diante do
público. No dia seguinte, massacraram cem leões, um número igual de
leoas, duzentos leopardos e trezentos ursos. Depois, vinte zebras, dez
girafas, trinta hienas e dez tigres indianos; em seguida, os grandes
quadrúpedes: o rinoceronte, o hipopótamo e um majestoso grupo de trinta
e dois elefantes.
Esta demanda frenética atraiu um exército de caçadores de espécimes
selvagens; navios carregados de jaulas – arcas de Noé da morte e da
destruição – zarpavam de todos os portos do Mediterrâneo. Assim foi
exterminada quase toda a fauna do norte da África; assim desapareceu
para sempre o leão europeu, aquele que atacou os camelos de Xerxes,
quando os Persas invadiram a Macedônia em 480 a.C. Era comum na
Península Ibérica, na França, na Itália e na Grécia, onde forneceu a
vestimenta de Hércules; sabe-se apenas que o último exemplar conhecido
morreu no ano do nascimento de Cristo.
Eis um animal que nunca vamos conhecer – e, como ele, dezenas de
outros que se extinguiram não por fenômenos naturais, como os
dinossauros, mas pela simples e ilimitada estupidez humana. Assim
também foi o extermínio da alca gigante, o hoje desconhecido pinguim
boreal, outrora encontrável em gigantescas colônias nas águas geladas do

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Atlântico Norte. Em 4 de junho de 1844, Jon, Sigurdr e Ketil, três


pescadores islandeses, foram a uma ilha distante procurar exemplares que
um colecionador tinha encomendado. Jon matou um macho; Sigurdr matou
uma fêmea. Só Ketil voltou de mãos abanando, porque, sem o saber, as duas
alcas que seus companheiros haviam abatido eram as últimas do planeta!
As carni icinas romanas me deixam horrorizado, mas nada me impressiona
mais que o relato deste momento preciso em que algo de irreparável
aconteceu. Estas espécies que se extinguem são como os canários que os
mineiros de carvão levavam para o fundo da mina, a im de detectar a
existência de gás, pois sua morte anuncia que a nossa também não está
longe.

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Como presente de Ano Novo, ofereço esta instrutiva historieta relatada


por Plutarco: certa feita, Hieron, o tirano de Siracusa, reino da antiga Sicília,
acabava de tomar a palavra na assembleia quando foi interrompido
bruscamente por um opositor, que fez, em alto e bom som, uma declaração
humilhante: ia deixar o recinto porque, depois de anos de sofrimento, não
tinha mais estômago para aguentar o hálito pestilento do orador. Hieron
icou desconcertado, pois era a primeira vez que alguém dizia algo a esse
respeito; no entanto, os demais presentes baixaram a cabeça, con irmando
com seu constrangimento a surpreendente acusação.
Abalado, ferido em seu amor-próprio, Hieron também se retirou; no
caminho, deve ter colocado a mão em concha sobre a boca e o nariz para
conferir a força da fetidez, mas foi inútil, pois todos sabem que ninguém
sente o próprio odor com a mesma intensidade com que sente o do vizinho.
O vexame pouco a pouco foi se transformando em raiva e, ao chegar em
casa, no auge da irritação, repreendeu duramente sua mulher, acusando-a
por nunca tê-lo avisado do problema, que certamente devia ser crônico.
Ela, então, com uma indignação e uma veemência que pareciam sinceras,
respondeu que ele deixasse de ser rabugento; como é que ela ia saber?
A inal, nunca tinha sido beijada por alguém que não fosse ele, e por isso se
resignara, acreditando que a boca de todo homem adulto devia cheirar tão
mal quanto a dele. E im de discussão.
Imaginando-se que Filístide – este era o nome da ilustre senhora –
não estivesse sendo deslavadamente irônica, temos de admitir que ela,
coberta de razão, estava invocando em sua defesa o princípio universal de
que não pode existir conhecimento onde não houver comparação. Como o
índio da história do Millôr: ao aterrissar, o desastrado piloto quebrou o
trem de pouso, fazendo o aparelho dar uma volta completa na pista,
perigosamente inclinado para a direita; quando a asa tocou no chão, partiu
em dois pedaços e a turbina explodiu em chamas. Todos gritavam; o pajé,
contudo, que voava pela primeira vez na vida, achou tudo normal e
divertido. Só sentiu medo quando lhe explicaram, mais tarde, o que se
espera de uma aterrissagem normal.
Moral da história: aos trancos e barrancos, a dama de Siracusa e o
índio voador acabaram aprendendo um pouco mais sobre homens e aviões,
respectivamente. Seu conhecimento cresceu, bene iciando com isso os seus

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descendentes, que já não terão o direito de ser tão ingênuos. Todos


ganharam, ninguém perdeu – pois, como de iniu Ortega y Gasset, o nosso
verdadeiro tesouro é a soma de nossos erros, essa longa experiência de
vida que, há milênios, vamos decantando gota a gota.

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Isaac Asimov, um dos mais famosos autores de icção cientí ica, escreveu
diversas histórias sobre os possíveis efeitos da expansão da robótica entre
nós. No futuro imaginado por ele, todo robô deverá sair da fábrica com três
leis fundamentais implantadas em seus circuitos. As duas primeiras – um
robô não pode fazer mal a um ser humano e um robô deve obedecer às
ordens humanas – destinam-se a evitar que nosso planeta se torne um
pesadelo comandado pelas máquinas. A terceira – um robô deve ignorar as
duas primeiras regras se perceber que vai se destruir em vão ao tentar
segui-las – evita o sacri ício inútil desses mecanismos tão valiosos.
Nós outros, porém, mais livres porque imperfeitos, nascemos com
uma programação que nos permite ignorar essa regra e arriscar a própria
vida por algo maior do que nós mesmos. Às vezes, como mostra a Ilíada,
podemos agir assim pelo senso do dever: Heitor, o melhor dos troianos,
mesmo sabendo que vai levar a pior no confronto corpo a corpo com
Aquiles, o imbatível guerreiro dos gregos, não pensa em pedir clemência
ou, menos ainda, em fugir ao combate. Consola-o a ideia de que seu pai, sua
mãe e a cidade inteira, do alto da muralha, hão de guardar para sempre a
memória de sua honra e de sua coragem. Por isso, despede-se da mulher e
do ilhinho e desce à planície, ao encontro da morte certa mas da glória
eterna. Um robô não faria isso.
De todos os motivos possíveis, nenhum, é claro, pode se comparar ao
amor – para Dante, a força que “move o Sol e as outras estrelas”. Como a
misteriosa água-régia dos alquimistas, capaz de dissolver tudo aquilo com
que entra em contato, o amor sempre teve a propriedade de anular as
grandes e as pequenas leis. Assim Alceste, mulher de Admeto, ganhou o seu
lugar entre as grandes heroínas literárias quando consentiu em morrer no
lugar do marido, que a Morte tinha vindo buscar – da mesma forma que
milhares, antes e depois dela, puseram em risco a existência para salvar
alguém a quem muito amavam. Um robô também não faria isso.
Lastimamos o trágico destino de Heitor e de Alceste, mas não é di ícil
entender a corajosa decisão que tomaram, pois uma voz interior nos
sussurra que talvez izéssemos o mesmo, se tivéssemos o motivo. Agora,
quem poderá explicar o feito de Manuel González, o chileno voluntário que,
desa iando nosso pavor ancestral diante do sepulcro, enfrentou o risco de
baixar 600 metros até o fundo da mina para salvar os colegas? Mesmo na

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mitologia, os heróis que desceram ao mundo dos mortos estavam


convencidos de que poderiam voltar; para González, porém, não havia
garantia alguma de que não fosse se juntar para sempre aos mineiros
soterrados. Todos os que viram a cena sentiram-se ultrapassados pela
estatura desse herói. Nenhum de nós faria isso. Pois ele fez.

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Diante de certas pessoas excepcionais, é fácil esquecer que todo mundo –


seja artista, seja gênio, seja herói – é feito do mesmo barro que nós. Foi isso
o que levou Plutarco a incluir, nas suas Obras morais, o tão conhecido
exemplo de Antígono, rei da Macedônia: quando Hermódoto, poeta
medíocre e bajulador, quali icou-o como “um verdadeiro deus”, digno de
ser “ ilho do Sol”, o rei respondeu, com um gesto de absoluto desdém: “Pois
isso nunca passou pela cabeça do criado que lava, todos os dias, o vaso da
minha privada”.
De todos os homens de gênio que o Mundo Antigo produziu, nenhum
foi mais respeitado em vida do que o lendário Arquimedes. Embora vivesse
isolado no pequeno reino de Siracusa, na Sicília, seu nome era pronunciado
com veneração tanto pelos gregos, seu povo, quanto pelos romanos, seus
inimigos. Vivia imerso no mundo abstrato das Matemáticas, mas muitas
vezes, na sua posição de sábio residente, teve de encontrar soluções
práticas para os problemas propostos pelo rei Hieron, que tinha por ele um
respeito quase sagrado.
Assim aconteceu com o Siracúsia, o gigantesco navio que Hieron tinha
projetado para ser o maior de todos os tempos, capaz de transportar e
alojar 600 passageiros. Seu casco demandou uma quantidade de madeira
su iciente para construir 60 navios de tamanho tradicional; seu luxo
também maravilhou os cronistas que conheceram a embarcação, pois era
dotada de jardins suspensos, biblioteca e ginásio de exercícios, além de um
pequeno templo dedicado a Afrodite. Seus porões acomodavam mais de
1.500 toneladas de carga, e seus reservatórios comportavam 80.000 litros
de água doce.
Não foi di ícil construir este gigante; a primeira contrariedade, no
entanto, surgiu quando tentaram tirá-lo do estaleiro para fazê-lo lutuar,
pois só então os engenheiros se aperceberam, alarmados, de que não havia
tração animal ou humana su iciente para arrastar aquela massa
descomunal. Arquimedes, ao saber do aperto, comentou que ele, sozinho,
poderia dar conta do problema. A frase chegou aos ouvidos do rei, que o
desa iou a provar o que dissera; Arquimedes, que há muito vinha
desenvolvendo um sistema de roldanas múltiplas, não se fez de rogado e
conseguiu, com mínimo esforço, fazer o Siracúsia deslizar até a água.
Maravilhado, Hieron então fez baixar, na hora, um decreto inusitado: “De

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hoje em diante, a ninguém será permitido contestar a palavra de


Arquimedes”. Este era sábio demais para dar ouvidos a semelhantes
exageros; despediu-se e voltou para casa, talvez para almoçar com sua
esposa, a quem deve ter descrito, em detalhes, a beleza das gaivotas que
tinha visto voar na beira da praia.

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Ninguém sabe, com certeza, o que acontece conosco quando a luz


inalmente se apaga e fechamos atrás de nós a estreita porta da vida. Essa
eterna questão já recebeu dezenas de respostas – nas mitologias, nas
religiões, nas crendices populares, nos sistemas ilosó icos –, mas estamos
tão longe de resolvê-la quanto estava nosso antepassado das cavernas.
Alguns raros escolhidos, contudo, alegam que já deram uma passada
pelo outro lado e voltaram para contar tudo o que viram por lá. Plutarco
menciona o caso de um tal de Arideus, habitante da Cilícia, famoso por sua
falta de escrúpulos. Tendo dissipado toda sua fortuna na juventude, vinha
levando uma vida de deboche e vilania, usando de todas as baixezas
possíveis para se tornar rico de novo. Ao perguntar ao oráculo se ainda
teria alguma chance de melhorar de vida, a resposta enigmática foi que só
depois de morto isso poderia ocorrer – e Arideus não esperou muito tempo
para entender o sentido dessas palavras, pois caiu do alto de uma
ribanceira, bateu a cabeça e morreu.
Três dias depois, no entanto, quando já se cumpriam os ritos para seu
sepultamento, voltou à vida, cheio de novidades. Não interessa a descrição
daquilo que viu do outro lado, pois segue o padrão de experiências
semelhantes, numa linguagem mais adequada para folhetos turísticos que
promovam viagens de ida e volta ao Além: luz, muita luz, feixes de galáxias
luminosas, miríades de estrelas cintilantes, sinfonia feérica de planetas,
mais luz, cores e brilhos indescritíveis, ondas de luz, cataratas de luz etc. (já
que, estranhamente, ninguém volta falando nas labaredas e no forte cheiro
de enxofre...). Interessa, isso sim, que Arideus mudou radicalmente depois
disso, tornando-se o homem mais virtuoso da Cilícia, bom pai e amigo leal.
Há quem diga que foi a visão daquele mundo luminoso – e o medo de
perdê-lo – o principal responsável por esta mudança. Eu, porém, que só
conheço este mundo em que vivo, pre iro acreditar que ele se corrigiu
simplesmente porque entendeu o valor de estar vivo. Miguel Esteves
Cardoso, autor português de primeira, que também passou por uma dessas
experiências de quase-morte, diz isso melhor que ninguém: “Ver o azul do
céu, essas merdas. E os dias. Começas a apreciar a vida, a respiração,
acordar bem-disposto, a água do banho”. Antes se comprava tudo; depois
do susto da morte, os prazeres são diferentes: “Traz uma humildade
absoluta”, diz ele, “que é a gratidão, no sentido de olha lá a sorte que eu

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tive! Saber apreciar isso de estar vivo! Os objetos pequenos, o cheiro das
coisas. A riqueza do mundo, sem precisares comprar seja o que for”. O
estarmos aqui. O estar vivo. Isso basta.

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Um dos temas mais explorados da cultura ocidental sempre foi a


fragilidade do homem diante da implacável passagem do tempo. Não são
poucas as histórias que nos obrigam a enxergar esta incômoda mas simples
verdade: nada existe para sempre – nem pessoas, nem impérios, nem
mesmo as montanhas de puro granito. Cedo ou tarde, a gente se dá conta
disso, e a literatura e a iloso ia se encarregam de descrever as mil
maneiras que existem de conviver com esta ideia.
Um exemplo famosíssimo foram as lágrimas de Xerxes, que Heródoto
imortalizou numa passagem de suas “Histórias”. Quando os persas se
preparavam para invadir a Grécia pela segunda vez, foram se concentrar
diante do estreito do Helesponto (hoje, Dardanelos), última barreira a
separá-los da Europa. Ali, conforme instruções, haviam construído um
trono de mármore branco no topo de uma colina, de onde o grande Xerxes
ia inspecionar suas tropas e dar a ordem de initiva de avançar. Daquele
ponto elevado, que permitia descortinar mar e terra ao mesmo tempo, a
vista era impressionante: as águas do estreito estavam coalhadas de navios
persas, enquanto, em terra, as incontáveis formações de soldados e
cavaleiros cobriam cada palmo da praia e da planície. Então Xerxes, que
assistia ao des ile cheio de orgulho por seu próprio poder, subitamente
irrompeu num choro incontrolável. Quando um velho conselheiro indagou
o que havia, ele respondeu, em lágrimas, que acabava de lhe ocorrer que
nem ele, nem qualquer daqueles homens – quase meio milhão! – estariam
vivos passados cem anos...
Melhor ainda é a história recolhida por Borges: o rei Davi pediu a um
ourives que criasse um anel que o lembrasse de não se deixar dominar pela
soberba nos momentos de júbilo, nem se abater nos momentos de tristeza.
“E como vou fazer isso?” – “Tu deverás descobrir – para isso és um artí ice”.
Ao sair do palácio, o velho, que não sabia como poderia satisfazer o
soberano, trazia o semblante tão angustiado que um jovem veio perguntar
que mal o estava a ligindo. Ao saber do que se tratava, o rapaz, sem hesitar,
aconselhou o velho a fazer um anel de ouro com a inscrição “Isso também
passará” – e assim fez o ourives. O jovem, dizem, era o próprio Salomão,
ilho de Davi, que assombraria o mundo com sua sabedoria.
Suas palavras parecem muito mais adequadas para resumir nossa
humana condição do que o triste lamento de Xerxes: queiramos ou não,

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tudo passará, e não somos donos nem mestres de nosso destino para
controlar o eterno vaivém entre a alegria e a tristeza, entre o infortúnio e o
bem-estar. Salomão, ao que parece, tinha entendido que essa passagem
constante entre o que foi e o que vai ser é, simplesmente, o que a gente
costuma chamar de “vida”.

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Só um ingênuo pode acreditar que suas palavras tenham, para os outros, o


mesmo valor que ele atribui. Um dia, se tiver sorte, a vida vai curá-lo dessa
perigosa inocência, e ele vai constatar, surpreso, que mesmo os ditos
comuns e os provérbios consagrados que ele usava com tanta segurança
podem ter uma interpretação diferente – às vezes até mesmo oposta –
daquela que lhe parecia ser a única.
“Pedra que rola não cria limo” – essa é uma verdade que a Natureza
há milhões de anos vem se encarregando de con irmar. E daí? O que a frase
quer dizer? Que eu devo me mover, devo me agitar para evitar a estagnação
(representada pelo limo), ou, ao contrário, que preciso me estabelecer,
criar raízes em algum lugar, para que o limo tenha o tempo necessário para
crescer? A inal, é um incentivo à mobilidade ou um elogio da vida estável?
Como uma lâmina de dois gumes, posso usá-la em ambos os sentidos.
Outro exemplo notável é “a palavra falada voa, a palavra escrita
permanece”, um dito que já era famoso em toda a Antiguidade. Eu sempre
tinha lido (e empregado) essa frase como um conselho para registrar as
coisas por escrito, a im de não perdê-las em algum desvão da memória.
Para mim e para milhões de outras almas deste mundo essa era uma
advertência contra a volatilidade da palavra falada; não me passava pela
cabeça a hipótese de que outros tantos milhões vissem nela um alerta
contra a escrita, esta técnica tão perigosamente indiscreta – até que li a
vida de Alexandre, contada por Plutarco.
Ao que parece, o grande conquistador estava em plena campanha
contra os exércitos persas de Dario quando icou sabendo que Aristóteles,
seu mestre e tutor, tinha decidido publicar seus tratados mais importantes.
Sem hesitar, escreveu-lhe então uma carta em que expressava sua
contrariedade: “Que vantagem terei sobre o resto dos homens, se as
valiosas lições que tu me deste vão icar ao alcance de todos? Sabes que o
conhecimento e a sabedoria me interessam mais que o poder e a riqueza”.
Essa era nova para mim: Alexandre não se importava com a transitoriedade
do que é falado, mas sim com a permanência do que é escrito! O que eu
sempre tinha considerado uma virtude da escrita era, para ele, o seu maior
perigo e desvantagem. Prisioneiro de minha própria interpretação, tinha
passado a vida toda usando a frase sem enxergar esta outra maneira de
entendê-la, que agora me parecia tão óbvia quanto válida!

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Pois aprendi. E aprendi também com Aristóteles; a resposta que ele


deu tranquilizou seu brilhante discípulo e ainda serve muito bem para
pulverizar esses insetos que hoje torcem descaradamente pelo im da
igura do professor: “Dizes que minhas obras deveriam continuar secretas
– e elas assim continuam: apesar de publicadas, não foram tornadas
públicas, pois só quem estudou comigo poderá compreendê-las”.

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São poucos os que recordam o nome de Mitrídates, mas todos nós


conhecemos pessoas que tragicamente com ele se parecem. Este
personagem passou para a História não por ser o rei do Ponto Euxino,
antiga colônia que os gregos fundaram no Mar Negro, terra do famoso
ilósofo Diógenes, mas por um estranho e sinistro comportamento que
resolveu adotar ao longo de toda a sua vida.
Mitrídates ainda era um menino quando descobriu que sua mãe e
outros membros da família pretendiam eliminá-lo com um veneno
discreto, fazendo com que sua morte parecesse natural. Vendo que seria
extremamente di ícil defender-se de um inimigo que morava sob o mesmo
teto e com o qual compartilhava o alimento de cada dia, decidiu que
precisava se tornar imune a qualquer espécie de substância nociva. Passou
então a estudar com a inco todos os antídotos conhecidos, testando sua
e icácia em prisioneiros condenados à morte. Depois de muitas tentativas,
chegou inalmente a uma fórmula única, composta de mais de cinquenta
ingredientes, incluindo o sangue dos patos que viviam no Ponto, cujo
alimento principal eram plantas que matariam qualquer homem que as
ingerisse.
Para sentir-se ainda mais protegido, engolia diariamente, depois da
dose habitual deste remédio, pequenas quantidades de veneno para
fortalecer o organismo contra uma possível armadilha dos assassinos. Não
se sabe se elas chegaram a ocorrer, mas o certo é que ele viu os inimigos
morrerem um a um, mantendo-se no trono até o dia em que, já perto dos
setenta, seu reino foi conquistado pelos romanos comandados por
Pompeu. Embora vencido, não poderia submeter-se às terríveis
humilhações que Roma in ligia aos prisioneiros reais; por isso, antes que os
soldados chegassem para prendê-lo, dividiu com a mulher e as ilhas o
veneno que trazia guardado no pomo da espada. Elas morreram em
seguida, mas ele estava tão habituado à substância que icou apenas
atordoado. Então, sem forças para enterrar a espada no peito, teve de
implorar que um soldado de sua guarda o matasse.
Por causa disso, Mitrídates virou palavra, o que é, por si só, uma
garantia de sua imortalidade: em todas as línguas do Ocidente, mitridatizar
signi ica aumentar a tolerância a um veneno pela ingestão contínua de
pequenas doses, um verbo feito sob medida para explicar o absurdo

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fatalismo com que aceitamos – no trabalho, na relação amorosa, no


convívio com os demais – abusos e agressões contra tudo o que o ser
humano tem de mais vital e importante. Sem revolta ou indignação,
passamos a tolerar tudo aquilo que antes nos fazia mal, engolindo o
veneno, gota por gota, até chegar à dose letal.

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Muito antes de Páris nascer, um oráculo inesperado anunciou que ele


traria morte e destruição para todos os troianos; por isso, tentando salvar
seu povo dessa terrível profecia, o rei mandou abandonar o recém-nascido
num lugar selvagem, contando que a fome, a sede e os animais da noite
izessem o que ele não tinha coragem de fazer. Como os oráculos, porém,
nunca podem ser contornados, Agelau, o servo encarregado da missão,
levou o bebê em segredo para sua cabana, onde o criou como um ilho.
Ignorando sua verdadeira origem, o menino cresceu na rústica vida
do monte, tornando-se um guardador de rebanhos como Agelau – e foi
nessa humilde condição que recebeu a visita que iria mudar seu futuro e o
de todo o seu povo. Acompanhadas de Hermes, o mensageiro do Olimpo,
surgiram à sua frente, vindas do azul in inito, três maravilhosas deusas –
Atena, Hera e Afrodite – que disputavam entre si o título da beleza
suprema. “Tu serás o juiz”, disse Hermes, entregando a Páris o troféu, uma
maçã de ouro maciço que trazia a inscrição “À mais bela”. Sabendo que seu
veredito, fosse qual fosse, atrairia sobre ele o ódio mortal de duas inimigas
poderosas, o jovem ainda esboçou uma tímida recusa, mas Hermes foi
taxativo: “És tu quem vai decidir, porque esta é a vontade de Zeus!”.
Páris, então, percebendo que os deuses lhe negavam a opção de não
escolher, passou a examinar as candidatas mais de perto; a beleza delas,
porém, estava tão acima dos padrões humanos que ele icou paralisado,
sem condição de julgar. Ao ver que o jovem hesitava, as deusas tentaram
conquistá-lo com ofertas sedutoras: Hera prometeu que o faria reinar
sobre todos os outros reis; Atena, que o tornaria o mais sábio dentre os
sábios; Afrodite, por im, que lhe daria o amor de Helena de Esparta, a mais
bela das mortais. Páris, que era jovem e sensível, preferiu Helena a todo o
resto.
Hoje sabemos que sua decisão teria trágicas consequências para ele, e
que todo seu povo seria exterminado pelos exércitos da Grécia – mas isso
não vem ao caso, pois, como qualquer ser humano que chega a uma
encruzilhada, estava condenado a escolher, sem ter garantia alguma de
estar no caminho certo. Além disso, não deixou que a ideia de tudo aquilo
que estava perdendo – o poder e a sabedoria prometidos por Hera e por
Atena – paralisasse o braço que entregou a maçã a Afrodite. Buridan,
ilosófo medieval francês, imaginou um asno que acabava morrendo de

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fome, imobilizado no meio do caminho entre o balde de aveia e o de


cevada; Páris, que não era um asno, arcou com o custo de suas escolhas e
foi viver ao lado de Helena.

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Exílio terrível foi o de Ovídio. O maior poeta da língua latina passou os


últimos anos de vida con inado numa das mais remotas províncias do vasto
império romano, longe da mulher e dos amigos. Por motivos
desconhecidos, o imperador Augusto condenou-o a viver o resto de seus
dias em Tomis, nos con ins do Mar Negro, onde Roma terminava e
começava a barbárie.
Tudo era selvagem naquele canto deserto do mundo. A água de beber
era salobra, não havia pomares, nem vinhedos, nem árvores de folhas
verdes – apenas estepes nuas, sem vida, cobertas até o horizonte por uma
macega raquítica. O frio era terrível; o solo icava congelado a maior parte
do ano, e o gélido vento do norte vinha derrubar as telhas das moradias. O
vinho solidi icava e tinha de ser cortado em blocos com uma machadinha.
O mar às vezes congelava; os gol inhos deixavam de saltar e peixes ainda
vivos podiam ser encontrados dentro de blocos de gelo.
A população provinha de tribos rudes, de nomes vários e
impronunciáveis. Vestiam-se como mendigos, tapados de peles até a
cabeça, armados de porretes ou arco e lecha. O cabelo descia-lhes até o
peito e jamais aparavam a barba. Alguns falavam um grego arrevesado, mas
Ovídio não encontrou quem conhecesse as palavras mais simples do Latim.
Tinham a voz áspera e o olhar truculento, e por quase nada viviam se
apunhalando uns aos outros. Como se não bastasse, havia as tribos
inimigas: no inverno, quando o rio Danúbio congelava, guerreiros a cavalo
caíam sobre as aldeias indefesas como bandos de aves de rapina. Esses
sinistros predadores rondavam incessantemente os muros baixos da
cidade, tornando os telhados das casas verdadeiros agulheiros de lechas
envenenadas.
Ovídio, que aos poucos tinha perdido a esperança de voltar a Roma,
expressou em seus poemas toda a tristeza que sentia. Quando icou doente,
lamentou não ter alguém a seu lado para consolá-lo ou ajudá-lo a suportar
o sofrimento; antes de morrer, passou-lhe pela mente a ideia terrível de
que ia ser enterrado lá mesmo, naquela solidão, icando seu espírito
condenado a vagar para sempre naquela terra tão inóspita.
Um exílio bem diferente é o que Stendhal descreve em suas obras:
seus personagens – talentosos, sinceros, idealistas – sentem-se
estrangeiros num mundo onde o merecimento pouco vale diante das

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intrigas, dos acertos clandestinos, das vigarices baratas. Incapazes de


tolerar imbecis e fazer corte a ricos e poderosos – condição indispensável
para o sucesso –, retiram-se para um país próprio e ensolarado, onde se
dedicam ao amor, à música, a certas paisagens preferidas, a bons livros, a
bons amigos e a conversas estimulantes. Esta receita de vida serve para
todos os que valorizam mais aquilo que são do que aquilo que possuem, ou
para aqueles que nunca se queixam e não gostam de se explicar – para bem
poucos, portanto, como já previa Stendhal.

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Franqueza e sinceridade eram os princípios básicos da famosa (e


curtíssima) democracia ateniense: para o bem de todos, o cidadão deveria
expressar, com destemor, sua opinião e suas críticas sobre a forma como o
governo estava conduzindo os assuntos da comunidade. Mesmo com o
risco de desagradar a muita gente, era melhor falar do que refugiar-se no
silêncio egoísta dos acomodados; esta atitude democrática, contudo,
raramente foi bem-vinda na história da humanidade, fosse o poder
exercido por um rei, um presidente, um sacerdote ou um chefe de partido.
Na prática, o cidadão logo percebeu que sua liberdade de opinar não podia
ser plenamente exercida, pois franqueza demais terminava complicando
sua vida e atraindo a represália do poderoso de plantão.
Foi assim que o senador romano Lúcio Vitélio – “um grande talento
para a lisonja”, segundo Suetônio – conseguiu sobreviver aos imprevisíveis
arroubos sanguinários de Calígula, um dos imperadores mais insanos da
história do Ocidente, psicopata perigoso que, ao beijar a nuca da esposa,
nunca deixava de lembrar-lhe, em tom carinhoso: “Não esqueça, querida,
que posso mandar cortar este pescocinho na hora em que eu quiser”...
Calígula, que se julgava igual aos deuses do Olimpo, mandou construir um
templo dedicado a si mesmo, onde planejava instalar a famosa estátua de
Zeus, assinada por Fídias, depois de trocar a cabeça original por uma
esculpida com suas próprias feições. Coincidência ou não, o navio que
deveria transportar a estátua foi fulminado por um raio, e isso o deixou tão
furioso que mandou construir uma máquina que imitava o brilho dos
relâmpagos e o som do trovão, para responder, de igual para igual, ao seu
desafeto divino.
Vitélio, que não era bobo, prestava-lhe todas as honras divinas,
dedicando-lhe as preces e os sacri ícios correspondentes. Seu golpe de
mestre, no entanto, veio no dia em que Calígula, que se gabava de ter um
relacionamento amoroso com a Lua, perguntou se ele os tinha visto no céu
fazendo amor; Vitélio baixou os olhos, como se perturbado, e, com voz
trêmula, balbuciou: “Mas um mortal como eu não consegue ver o que os
deuses estão fazendo, senhor!”.
Mesmo nas relações pessoais mais simples, em que não está em jogo
nossa própria pele, temos de admitir que muita sinceridade faz mais mal
do que bem, sendo quase sempre recebida como pura grosseria. A chave

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que abre todas as portas é o elogio – seja ele justo, exagerado ou até
mesmo indevido. Dane-se a iloso ia, que aqui ninguém está buscando a
verdade. Se quiser viver em paz com seu semelhante, faça como Casanova,
que disso entendia muito bem: diga à bonita que ela é inteligente, e à
inteligente que ela é bonita; dessa forma, todo mundo ica feliz.

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As fábulas de Esopo sempre trazem algum singelo ensinamento. Embora


os personagens sejam na sua maioria animais, é das fraquezas humanas
que nos falam essas pequenas histórias educativas. Nosso velho conhecido,
o lobo que veste uma pele de cordeiro para iludir o rebanho, simboliza os
que tentam mudar a aparência para simular algo que na verdade não são.
Neste jogo entre o ser e o parecer, a opinião de Esopo continua moderna:
censuramos os que não são autênticos, pois todo aquele que tenta parecer
o que não é deve ter alguma intenção suspeita ou algum motivo nem
sempre confessável.
O mundo da fábula, contudo, era simples e singelo; Esopo icaria
confuso se viesse a conhecer Cinderela, cuja história inverte o caminho do
lobo. O seu verdadeiro “eu” (seja lá o que isso quer dizer) estava escondido
sob uma aparência inexpressiva; foi só quando a fada boa forneceu uma
aparência luxuosa – o vestido, a carruagem, os sapatinhos e tudo mais –
que seu lado exterior passou a ser compatível com a princesa que ela
sempre tinha sido. O pobre lobo se disfarçou para esconder o que era;
Cinderela se disfarçou para tornar-se ela própria. O mundo, realmente, foi
icando mais complexo.
Agora não ingimos ser outra pessoa, pois estamos ocupados demais
em ingir que somos nós mesmos – seja para reforçar o modo como nos
imaginamos, seja para mostrar às pessoas que nos cercam a versão a que
elas se habituaram. O fotógrafo Richard Avedon deu um depoimento
impressionante sobre sua mais famosa modelo: “Marilyn Monroe era
alguém que Marilyn Monroe inventou, assim como um autor e seu
personagem. Durante horas ela cantou, dançou, piscou o olho, sorriu e tudo
o mais que se esperaria de Marilyn Monroe. Depois, seu rosto icou vazio”.
Em geral, não chegamos a este extremo, mas reconhecemos muito bem a
situação.
O mundo de Esopo virou de cabeça para baixo. Não existe mais um
limite nítido entre o ser e o parecer. Na peça “A importância de ser
Prudente”, de Oscar Wilde, o personagem, que sempre tinha usado o nome
falso de Prudente, descobre inalmente que este era mesmo o seu nome
verdadeiro. Ele diz à sua noiva: “É terrível para um homem descobrir de
repente que em toda sua vida sempre disse a verdade. Você me perdoa?”. A
resposta dela é perfeita: “Perdoo, sim – pois eu sinto que você vai conseguir

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mudar”. Nem o lobo nem o cordeiro escaparam da indecisão geral. Winston


Churchill comentou, a respeito de Clement Atllee, seu oponente político:
“Ele é um cordeiro na pele de um cordeiro” – enquanto um cordeiro pós-
moderno vai acabar confessando a seus pares: “Às vezes descon io que sou
um lobo vestido de mim mesmo”.

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De todos os seres vivos, o homem é o único que sabe que vai morrer. O que
acontece depois é um mistério insondável, mas nosso avô das cavernas, no
momento em que decidiu sepultar seus mortos, já trazia na cabeça as duas
questões decisivas: “De onde viemos? Para onde vamos?”. A humanidade
carrega essas perguntas no sangue, e a busca por respostas fez surgir a
ciência, as artes, a música, a religião e a iloso ia.
Os gregos mantinham sobre o assunto uma humildade prudente, pois,
embora fossem excelentes em tudo, sabiam, como ninguém, reconhecer a
pequenez do homem diante do vasto mistério do mundo. Quanto mais
estudavam, mais se convenciam de que os limites do universo, fossem ou
não in initos, icariam para sempre fora de nosso alcance. Falando sobre os
deuses, Protágoras expressou muito bem esse sentimento: “Não sei se eles
existem ou não, ou como é sua aparência, e isso por boas razões: porque
eles são invisíveis, e porque a vida humana é breve demais para descobrir”.
Séculos mais tarde, o mundo cientí ico, num acesso de onipotência
aguda, proclamou que não havia nada que pudesse escapar à luz
penetrante da razão. Se havia zonas obscuras, era por estarem envoltas
numa névoa provisória, que o vento higiênico da ciência haveria de
dissipar algum dia. Como dizia o astrônomo Kepler, no século XVII: “O
homem ainda não conhece todas as respostas”. Esse orgulhoso (e ingênuo)
“ainda não” era como um pedido de paciência – “Esperem, e tudo se
esclarecerá”. No século XX, no entanto, um gênio como Einstein rede iniu
nosso tamanho: vamos avançar cada vez mais na compreensão das leis da
natureza, mas o mistério último do Universo vai persistir – inatingível,
desa iador, maravilhoso. Falava como cientista; não era um homem
religioso.
É curioso ver como Freud – contemporâneo de Einstein e tão genial
quanto ele – esqueceu de incluir a alma feminina entre esses enigmas que
nunca serão desvendados. Em carta a Marie Bonaparte, sua amiga e
seguidora, o mestre confessou que, apesar de toda uma vida dedicada ao
estudo do tema, ainda não era capaz de resolver a eterna questão sobre o
que querem as mulheres. “Ainda não” – como se a mulher fosse um
continente desconhecido à espera do explorador capaz de mapear sua
geogra ia. Não lhe ocorreu, decerto, que, se isso acontecesse, a humanidade
estaria perdida. Este é um mistério que está fora de nosso alcance, como a

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morte ou o in inito, e que deverá permanecer sem resposta para que


homens e mulheres façam e refaçam incessantemente a mesma pergunta,
gerando assim o desejo que nos faz viver.

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Foi Chesterton quem percebeu a importância que tem o vidro – ou o


cristal, seu irmão mais nobre – no mundo dos contos de fadas. Além dos
inesquecíveis sapatinhos da Cinderela, há princesas que vivem em castelos
de vidro, há montanhas de cristal, e a pura Branca de Neve, envenenada
pela maçã, ica guardada num caixão transparente até que o príncipe a faça
reviver. Para Chesterton, o brilho desses artefatos lendários, que podem ser
estilhaçados por um gato travesso ou uma criada estabanada, servem para
nos lembrar da fragilidade de nossos sonhos. “Essas histórias da minha
infância”, confessa, “acabaram determinando o meu sentimento de mundo.
Eu sentia, e sinto ainda, que a vida resplandece como o diamante, mas é
quebradiça como uma vidraça”. Para ele, portanto, ser feliz – tanto aqui
quanto no país das fadas – exige um cuidado extremo e consciente para não
fazer o gesto desastrado que pode pôr tudo a perder.
Esta comparação perderia qualquer sentido se tivesse sido outro o
desfecho de uma história estranhíssima que, segundo Suetônio, ocorreu no
tempo de Cristo. Um homem que fabricava artefatos de vidro muito
apreciados em Roma conseguiu uma audiência com Tibério, a quem
entregou um presente digno do imperador, um vaso belíssimo, que foi
muito elogiado pela transparência das cores e por sua impecável execução.
Então, num gesto brusco, o artesão tirou o presente das mãos de Tibério e
o arremessou no chão com toda a força que tinha – e o vaso, em vez de
quebrar, retiniu na pedra como se fosse feito do mais duro bronze. Diante
dos olhos espantados da corte, o artista juntou-o do chão e o examinou
com cuidado: o único dano visível era uma amassadela na borda, que ele
prontamente corrigiu com os golpes delicados de um martelinho que
levava na cintura. Tibério, com ar grave, perguntou-lhe então se alguém
mais conhecia a fórmula daquele vidro inquebrável. “Ninguém, além de
mim”, foi a orgulhosa resposta do artesão – e sua sentença de morte,
porque o imperador mandou cortar-lhe a cabeça e destruir completamente
o ateliê em que ele trabalhava.
Para uns, Tibério, que os inimigos tachavam de pretensioso, foi
movido pela inveja; para outros, agiu assim para evitar que aquela
extraordinária descoberta reduzisse a nada o valor do próprio ouro. Nunca
saberemos seu real motivo, mas de uma coisa tenho certeza: fazendo o que
fez, eternizou essa pungente semelhança entre o vidro e a nossa vida.

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Quanto mais ino o cristal, quanto mais leve e transparente, maior é o


perigo de vê-lo se desfazer em pedaços – mas, por incrível que pareça, é
precisamente essa fragilidade, esse risco iminente de quebrar, o que torna
delicado e precioso cada momento que temos para desfrutá-lo.

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Florença, considerada “a lor do Renascimento”, tornou-se uma das


cidades mais bonitas do mundo por obra e in luência dos Médicis,
poderosa família de banqueiros e comerciantes. Por duzentos anos eles se
mantiveram no poder, nem sempre por vontade do povo, mas nunca
deixaram de acrescentar coisas belas à cidade, para o deleite de todos os
que viviam lá. Usavam sua fortuna para patrocinar artistas, arquitetos,
poetas e ilósofos, e mesmo seus opositores, que não eram poucos,
reconheciam a paixão que todos os Médicis – inclusive os piores – tinham
pela arte e pela cultura.
Sua contribuição à glória de Florença não cessou nem mesmo no
breve período em que uma insurreição popular os expulsou do poder, pois
uma escultura que estava no palácio da família acabou ganhando um lugar
de honra na praça central da cidade. Assinada por Donatello, a obra
representava Judite, famosa heroína bíblica, no momento em que executava
Holofernes, general do exército assírio; ao transferi-la para um lugar
público, os novos governantes faziam uma clara alusão ao regime recém-
instaurado, que vinha pôr um im na tirania dos Médicis. A inal, um povo
acostumado a conviver com Michelangelo, Botticceli, Maquiavel,
Bruneleschi, Tasso e muitos outros sabia exatamente o valor simbólico de
uma escultura como aquela.
Quando, anos depois, o duque Cosimo de Médici restaurou o poder da
família, não quis deixar o gesto sem resposta e encomendou ao grande
Benvenuto Cellini, seu protegido, um outro grupo, também de bronze, com
a igura de Perseu mostrando ao mundo a cabeça cortada da Medusa, com
sua terrível cabeleira de serpentes. A estátua, que seria colocada na mesma
praça central, também continha uma advertência muito clara: era assim
que ele, Cosimo, punia as víboras da rebelião, agora decapitadas. Os
esboços e modelos que Cellini apresentou a seu protetor foram aprovados
com entusiasmo; nove anos depois, no entanto, quando concluiu a obra, o
duque o recebeu com total frieza e desagrado, afastando-se dele para
sempre. Atônito, o artista, que nunca entendeu o que tinha acontecido,
atribuiu o fato a alguma intriga de invejosos.
Por que o Perseu desagradou ao duque? A resposta está num detalhe
assustador: a cabeça de Perseu é praticamente idêntica à cabeça
ensanguentada que ele ergue no ar. O per il é o mesmo, a expressão é a

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mesma, e os caracóis de seu cabelo parecem os anéis das serpentes da


Medusa. Assim, com tão pouca diferença entre o triunfante matador e sua
vítima, aquele Perseu não correspondia à imagem gloriosa que Cosimo
fazia de si mesmo. Com a sabedoria milagrosa dos artistas, Cellini havia
moldado o Perseu e a Medusa como iguras espelhadas, fazendo o
orgulhoso duque entender uma verdade intolerável para a lógica do poder:
homem algum pode apresentar-se como a encarnação do bem, pois em
todos nós um monstro e um herói vão conviver para sempre.

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N ,

Os gregos, grandes admiradores dos egípcios, não podiam entender como


um povo tão avançado podia cultuar deuses com a aparência de falcões ou
escaravelhos. Nos mitos da Grécia, a forma humana era imprescindível, e
todas as criaturas que misturavam o homem com o animal eram vistas
como monstros temíveis. Seres híbridos como a es inge, o minotauro, as
górgonas ou as harpias estavam predestinadas, por sua construção
aberrante, a provocar o terror à simples menção de seu nome; os próprios
centauros, embora não fossem tão assustadores – a inal, tinham rosto e
linguagem de gente –, também eram considerados perigosos, pois não
passavam de beberrões, arruaceiros cruéis e violadores de mulheres.
A única e especialíssima exceção foi o centauro Quíron – segundo
Homero, “o mais justo de todos” –, que vai se tornar a única igura de
professor que aparece em toda a mitologia. Ao contrário dos demais,
Quíron era respeitado por sua reputação de formar homens sábios e
íntegros. Os deuses haviam lhe ensinado a música, a poesia e a arte de
curar, e sua vida livre nos prados e lorestas da Tessália revelou-lhe os
segredos das plantas e dos animais. Era, como todo grande educador, um
agente da cultura e da civilização: mentor de Aquiles, de Teseu, de Jasão e
de vários outros heróis, transmitiu a seus pupilos o conhecimento da
natureza, as artes do homem e o amor pela justiça.
Para quem acha estranho que os gregos tenham atribuído este papel
tão importante justamente a um ser híbrido, lembro que o cavalo é o
símbolo por excelência de nossa vida inconsciente – e que o centauro,
portanto, é uma excelente metáfora para nossa humana condição: Quíron
representa a feliz aliança que as duas espécies celebraram quando o
homem ainda vivia em cavernas. Em todos os povos, em todas as épocas, a
relação entre o cavaleiro e sua montaria sempre simbolizou esta delicada
parceria entre instinto e razão que comanda nossa vida.
Para dirigir a explosão vital de nossos impulsos, temos a rédea da
cultura; a arte é usá-la com equilíbrio, aplicando a pressão exata para cada
situação. Rédea de mais ou de menos – como diria Quíron, se vivesse aqui
no pampa – acaba estragando o animal: nem tão solta que ele dispare, nem
tão curta que ele empaque. Quem conhece os campos da vida sabe,
inclusive, que às vezes, quando estamos perdidos, no escuro, é preciso

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con iar no cavalo que habita nosso inconsciente e deixar que ele decida
qual dos caminhos é o melhor.

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Assim como as dores que tenho nunca serão idênticas às dores do meu
vizinho, assim ninguém nunca saberá o valor exato que as coisas têm para
os outros. O que vale muito para Pedro pode nada valer para João... Em seu
diário de viagem, Colombo narra como os nativos do Caribe trocavam
pepitas de ouro por bugigangas sem valor. Um importante cacique icou
maravilhado ao receber um colar de contas de âmbar, um par de sapatos
vermelhos e uma garra inha de água de lor de laranjeira, que eram, para
ele, presentes dignos de um deus – enquanto verdadeiros enxames de
nativos, em suas precárias canoas, vinham rondar as naus espanholas em
busca de algum tesouro, especialmente os guizos, que chegavam a valer
quatro pedaços de ouro do tamanho de um punho. Colombo mostra-se
tocado com a ingenuidade daquela gente, sem pensar que talvez o cacique,
à volta da fogueira, faça sua tribo rir muito com a história daqueles brancos
que se desfazem de coisas tão belas e preciosas em troca de um metal sem
som e sem cheiro, tão inerte, inútil e comum quanto qualquer pedregulho.
Como exemplo dessa incomunicabilidade, William James conta uma
história verídica (e divertida): um viajante americano, no interior da África,
tendo encontrado por acaso um velho exemplar de um jornal de
classi icados de Nova Iorque, pôs-se a ler avidamente todos os anúncios,
coluna por coluna. Quando terminou, os nativos, que não sabiam o que era
leitura – e muito menos o que era um jornal –, izeram uma grande oferta
pelo misterioso objeto. Quando ele perguntou a razão de seu interesse,
responderam, impressionados: “Medicina. Para ver melhor” – porque essa
lhes pareceu a única justi icativa razoável para alguém dedicar tanto tempo
a mover os olhos para cima e para baixo ao longo daquela super ície
silenciosa.
Quem poderá avaliar o tamanho da minha satisfação? Ninguém, a não
ser eu mesmo. Por mais próximo que eu esteja de uma pessoa, ela terá de
se contentar com uma ideia aproximada do entusiasmo ou do prazer que
experimento – e não muito mais do que isso, pois as próprias palavras que
uso para expressá-los não signi icam exatamente o mesmo para ela e para
mim. Esta parte irredutível que cada um leva dentro de si é um ponto cego
nas relações humanas; quando nos damos conta disso, diz William James,
icamos mais humildes e mais tolerantes, perdendo aquele ar impiedoso
com que costumamos avaliar as escolhas que o outro faz. Divido com

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minha mulher uma gama tão grande de emoções e sensações que às vezes
até parece que já dançamos sem música – mas sou obrigado a confessar
que nem mesmo posso saber se o mate que compartilhamos tem, para ela,
o mesmo gosto que sinto...

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N É

Para a Amanda e o Filipe

As narrativas de viagem sempre nos fascinaram porque foi assim que


começou, para todos nós, esta aventura a que chamamos vida. Nascer foi,
a inal, nossa primeira viagem ao exterior, e aqui icaremos enquanto durar
o precioso tempo que o destino nos concedeu. Neste mundo agitado,
repleto de luzes e ruídos, todos – uns mais, outros menos – guardam,
saudosos, a memória profunda do paraíso acolhedor que nos abrigou ao
longo de nove meses. Alguns procuram por ele em terras e mares
longínquos; outros juram que ele se encontra muito mais perto do que
parece.
Talvez não seja coincidência que as duas histórias mais famosas que o
Mundo Antigo produziu neste gênero – a expedição dos Argonautas e o
retorno de Ulisses – descrevam os dois trajetos opostos. A primeira narra a
viagem mitológica de cinquenta jovens heróis, che iados por Jasão, que
deixam a Grécia no rumo da distante Ásia. Seu navio, o lendário Argo,
navega para o norte, passa pelo Helesponto (onde, algum tempo depois,
seria travada a guerra de Troia) e, depois de mil peripécias, chega ao Mar
Negro, inaugurando assim a rota que ligará o Ocidente ao exótico Oriente. É
uma jornada para fora, em busca da terra desconhecida que talvez esconda,
em algum vale remoto, o verdadeiro jardim do Éden.
Na segunda – a Odisseia, de Homero –, Ulisses segue exatamente o
caminho contrário. Terminada a guerra de Troia, ele ruma, com seus
navios, para o sul, na direção da Grécia. Faz dez anos que deixou, a
contragosto, o seu pequeno mas amado reino de Ítaca, e agora conta os dias
que faltam para chegar em casa. Os deuses, no entanto, não lhe são
favoráveis, e ele leva mais dez anos nesta viagem de volta, repleta de
perigos e armadilhas. O que o mantém vivo é a vontade inquebrantável de
rever sua casa e sua família – e o gênio de Homero nos permite
compartilhar a emoção de Ulisses quando reconhece a luminosidade
inconfundível do céu de Ítaca e reencontra seu ilho, sua mulher, seu pai,
seu cachorro iel e até as árvores que tinham plantado para ele quando
criança. É uma jornada para dentro, a volta de um guerreiro que, depois de
vagar por vinte anos em terra estranha, agora sabe muito bem onde mora a
felicidade.

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Fico com Ulisses: em minha casa sou feliz. Se não estou nela, estou
“fora” – jantei “fora”, passei o dia “fora”. Porta a dentro, contudo, estou num
universo acolhedor, seguro e confortável. Ela me protege sem me isolar; ela
é o meu oásis, não um lugar de fuga, pois se é dela que saio para enfrentar
o mundo, é a ela que retorno para refazer minhas forças. Nela eu me
reconheço, porque guarda por toda parte as marcas dos meus afetos; tudo
nela me acalma, me tranquiliza – mesa posta, café passado, riso de criança,
a voz de minha mulher perguntando se cheguei. Mortas as utopias, este é o
único sonho possível – e a coisa mais próxima que verei, estou certo, do
paraíso que perdemos.

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Em sua lendária viagem pelo Egito, Heródoto icou impressionado com o


tamanho colossal da es inge e das três pirâmides pousadas na vasta
planície de Gizé, mas não deixou de registrar a pequenez de Quéops e
Quéfren, os faraós que construíram as duas pirâmides maiores. O primeiro
foi governante brutal e sanguinário, que fechou os templos e pôs todo o
Egito a trabalhar para ele; o segundo tentou igualar a obra do irmão, mas o
país estava esgotado e ele teve de se contentar com uma pirâmide mais
baixa. O povo não os esqueceu, e os amaldiçoava sempre que ouvia seus
nomes.
Sobre o terceiro, no entanto, Heródoto pousa um olhar interessado.
Miquerinos, ilho de Quéfren, não aprovava os atos do pai; por isso, ao
assumir o trono, tratou de reabrir os templos e devolver a prosperidade ao
sofrido povo do Egito. A pirâmide que começou a construir – em grande
parte com recursos próprios – era muito menor do que as outras e só pôde
ser concluída por obra de seu sucessor. Heródoto testemunha que nunca
houve, em tempo algum, governante que fosse mais respeitado pelo povo.
Era natural, portanto, que Miquerinos icasse surpreso quando
vieram avisá-lo de que os deuses só lhe davam mais seis anos para viver.
Inconformado, o faraó protestou junto ao oráculo: se o pai e o tio, odiados
por todos, tinham aproveitado a vida até a última gota, por que ele,
bondoso e magnânimo, deveria ser punido? Por isso mesmo, foi a resposta
do oráculo. Os deuses tinham condenado o Egito a 150 anos de sofrimento;
Quéops e Quéfren tinham colaborado com sua quota, mas ele estava
estragando tudo...
Diante desta negra profecia, Miquerinos então decidiu viver o dobro –
doze anos – nos míseros seis que lhe restavam, e ordenou que acendessem,
todas as noites, milhares de tochas em seu palácio. Dessa forma, criava um
novo dia para desfrutar, enchendo cada minuto com música e com prazer, e
fruindo, como um raro licor, a brisa perfumada dos bosques nas margens
do Nilo, acompanhado de sua mulher, que até hoje aparece, nas estátuas
encontradas em seu túmulo, abraçando-o carinhosamente pela cintura.
Apesar dessa eterna festa, sentia que os dias e as horas fugiam por
entre seus dedos como a areia de uma ampulheta – e quantas vezes, ao
caminhar pelos jardins do palácio, não deve ter ouvido o vento sussurrar,
por entre as folhas das palmeiras, o aviso de que seu im estava próximo?

agosto•2021
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Morreu seis anos depois, sentindo-se vítima dos deuses, clamando contra a
injustiça desse prazo tão curto que lhe tinham concedido, sem saber que,
mesmo que lhe dessem mais cem ou duzentos anos para viver, haveria de
lamentar, como todos nós, quando chegasse a hora do derradeiro pôr do
sol.

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Quando a ilha de Clístenes, o tirano de Sícion, chegou à idade de casar,


uma proclamação foi divulgada por todos os reinos que compunham a
Grécia: todo jovem que se julgasse digno o bastante para desposá-la
deveria submeter-se a um ano inteiro de provas e entrevistas, ao cabo do
qual seria conhecido o nome do felizardo. Em sessenta dias, a lor da
juventude grega estava reunida em Sícion, onde o rei havia destinado um
estádio e um ginásio especialmente para a seleção do seu futuro genro.
À medida que iam chegando, Clístenes interrogava-os sobre sua
família, sobre a cidade de onde provinham, sobre seus hábitos e sobre sua
educação. Para conhecê-los ainda melhor, manteve-se junto deles a maior
parte do ano, observando suas conversas, seus exercícios e, sobretudo, o
seu comportamento nos festins que ele próprio organizava. Embora todos
os pretendentes fossem do mais alto quilate, o mais aquinhoado parecia
ser Hipóclides, ilho de uma extensa linhagem de heróis atenienses.
No dia ixado para o anúncio, o soberano deu uma grande festa para
toda a população. Quase ao inal do banquete, Hipóclides, para o qual se
voltavam todas as atenções, aproveitou que o lautista tocava uma ária bem
compassada e começou a dançar, o que fazia com muito gosto e evidente
satisfação. Entusiasmado, mandou vir uma grande mesa para o meio do
salão e sobre ela continuou dançando, primeiro à moda de Esparta, depois
à moda de Atenas; inalmente, arrebatado pela música, apoiou a cabeça na
mesa, equilibrou-se com as pernas para cima e, com extraordinária
maestria, pôs-se a movimentar-se em todas as direções, seguindo o
compasso da lauta.
Clístenes, que já estava chocado com as primeiras danças e fazia um
grande esforço para ocultar a aversão diante daquele espetáculo, não pôde
mais se conter quando viu seu candidato favorito gingando e rodopiando
com as pernas para o ar, e exclamou, indignado: “Jovem, perdeste a noiva
dançando!” – ao que o ateniense retrucou, alegremente: “Pois Hipóclides
não dá a mínima!”.
Heródoto conta que, com o tempo, essa resposta curta e espontânea
acabou se tornando uma expressão popular no mundo grego. Para uns,
servia como crítica à irresponsabilidade dos jovens; para outros, no
entanto, era uma a irmação de liberdade, de independência diante da
opinião dos outros. Não foi por acaso que o discutido T. E. Lawrence,

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tradutor da Odisseia e agente secreto britânico, mais conhecido como


“Lawrence da Arábia”, entalhou esta frase no alto da porta de sua casa de
campo, a indicar que, se não podemos eliminar as preocupações – já que
isso é privilégio dos deuses –, devemos lutar para tornar nossa vida mais
leve, deixando de levar tão a sério o julgamento que os outros,
inevitavelmente, haverão de fazer sobre nós.

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Se me pedissem uma frase de inspiração, dessas que se escrevem no


mármore dos monumentos, dessas que o pai deixa para o ilho como
herança valiosa, eu não hesitaria em escolher um dos meus provérbios
árabes preferidos: “O mundo não prometeu nada a ninguém”. Juntando a
ele as duas histórias abaixo, eu formaria um conjunto básico que, a meu
ver, ensina tudo o que se precisa saber sobre o sentido da vida.
A primeira vem de um ilme injustamente esquecido, Zulu, de 1964:
entrincheirado num pequeno hospital de campo, no meio da vastidão
africana, um pequeno destacamento do exército britânico (casacas
vermelhas, capacetes brancos) se vê cercado por uma multidão enfurecida
de mais de quatro mil guerreiros zulus, que lutam para se libertar do
império colonialista da Rainha Vitória. Habituados à rígida disciplina
militar inglesa, os soldados, orientados pelos o iciais, erguem barricadas e
tomam todas as providências possíveis para defender sua posição e sua
vida, mas pressentem que a formidável desproporção entre as forças –
quase quarenta por um – aponta inexoravelmente para um trágico
desfecho. Para tornar pior o que já estava muito ruim, refugia-se entre eles
um missionário inglês que, aterrorizado, toma meia garrafa de uísque e
começa a anunciar, em altos brados, que o im de todos está próximo.
E aí vem a cena a que me re iro: um jovem soldado, o inexperiente
praça Cole, talvez o que mais sofre com as negras previsões do missionário,
quando vê os guerreiros se aproximarem, ameaçadores, em posição de
ataque, não consegue conter o pavor e exclama: “Nós vamos morrer! Por
que nós? Por que justamente nós?” – E, a seu lado, o duríssimo sargento
Bourne (representado por Nigel Green, com suíças estupendas) olha-o
paternalmente e responde: “Porque somos nós que estamos aqui, meu
ilho!”.
A segunda vem do Descanso dos Caminhantes, de Bioy Casares, uma
historieta que, apesar de escrita bem aqui perto, na Argentina, parece ter
saído daqueles tesouros com que a sabedoria oriental vive nos
surpreendendo. Um pai diz ao ilho: “Devemos amar a vida” – e juntos
percorrem este mundo e atravessam a existência, encontrando, por onde
passam, a maldade, a estupidez, a avareza, a avidez e a mesquinharia dos
homens. Por toda parte, o espetáculo é o mesmo: governos despóticos,
ricos vaidosos e egoístas, pobres invejosos e cruéis. Um dia, o pai agoniza

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nos braços do ilho, que faz, inalmente, a pergunta por tanto tempo
contida: “Pai, por que devo amar esta vida?” – ao que o pai responde, com a
simplicidade das horas extremas: “Porque é a única que temos”.

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T !

Se você quer atrair a atenção de seu semelhante, procure desenvolver a


sprezzatura (os dois ZZ soam como em pizza), termo criado no
Renascimento italiano para designar a arte de fazer os outros pensarem
que é muito fácil para você o que é di ícil para eles. Ironicamente, alcançar
esta falsa espontaneidade, premeditada em seus mínimos detalhes, dá um
trabalho danado, mas se você conseguir passar a impressão de que faz tudo
sem esforço, sempre vai despertar a cobiçada admiração de seu próximo.
Um rei desta arte foi Lúculo, político e aristocrata romano, famoso
por sua fortuna. Uma tarde, no Fórum, foi surpreendido por dois amigos,
também senadores, que perguntaram se ele lhes faria um favor muito
especial. “O que quiserem”, respondeu, sorridente, com sua elegância de
sempre. “Pois queremos jantar na tua casa hoje à noite – mas tudo sem
cerimônia, é claro; vamos comer aquilo que comes quando não tens
convidados”. Como imaginavam, Lúculo pareceu perturbado: balbuciou
uma desculpa, ensaiou, não muito convicto, uma ou outra objeção, e
terminou sugerindo que eles escolhessem qualquer outra noite da semana,
quando teria o maior prazer em recebê-los. Os dois, no entanto, felizes em
pegá-lo desprevenido, mostraram-se irredutíveis: a inal, o que era um
simples jantar para quem oferecera o que quisessem?
Apanhado na palavra, Lúculo inalmente concordou, mas pediu que o
deixassem ao menos avisar por um escravo que ele hoje jantaria no “Apolo”
– um dos tantos salões de sua mansão. Os amigos concordaram, sem saber
que tinham caído na esparrela: os nomes correspondiam a diferentes tipos
de jantar que Lúculo havia combinado previamente com seu intendente,
que agora sabia qual era o menu, qual a coberta de mesa e quanto deveria
gastar em enfeites, em música e em outras atrações. Quando o grupo
chegou, três horas depois, aguardava-os um banquete de luxo e requinte
indescritíveis. Os dois convidados mal conseguiam encontrar palavras de
elogio, tão atônitos que icaram diante daquela opulência – enquanto
Lúculo, para aumentar ainda mais o secreto prazer que sentia,
desmanchava-se em desculpas, alegando, com ar de embaraço, que teria
preparado uma recepção mais digna se soubesse que teria visitas...
A mulher que se maquia com tamanha sutileza que parece natural
(“Acordei assim...”) e o alfaiate londrino que consegue fazer um terno
caríssimo sem aparência de novo praticam a sprezzatura. Para quem

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escreve, então, ela é a virtude suprema. Quer produzir um texto que pareça
simples ao leitor? Então aprenda a comer, nos bastidores, o pão que o
diabo amassou: costure e recosture os parágrafos, refaça as frases mil
vezes, quebre a cabeça em busca da palavra exata e da ordem precisa – e
sem queixas, porque tudo o que é fácil de ler é di ícil de escrever. E vice-
versa.

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Se perguntássemos a um grego onde icava o umbigo do mundo, a resposta


natural seria em Delfos, perto do Monte Parnaso, sede do famoso oráculo
de Apolo. Para determinar este ponto central, Zeus um dia ordenou que
duas de suas águias imperiais levantassem voo de pontos opostos do
mundo – uma do extremo leste, a outra do extremo oeste –, e a trajetória
das aves tinha se cruzado, como era de esperar, bem sobre o território da
Grécia. Os chineses, no entanto, que estavam longe dali e não conheciam os
deuses do Olimpo, juravam que o centro do mundo icava na China, que
eles mesmos denominavam, sugestivamente, de “Império do Meio”– em
torno do qual se distribuíam os outros povos conhecidos, todos eles
bárbaros e inferiores. Assim, enquanto perdurou a concepção de que a
Terra era chata e redonda como um disco, todos os povos, de todas as
latitudes, reivindicaram o privilégio de ocupar o centro. Quando icou
demonstrado que nosso planeta tem a forma de uma esfera, a simples
aplicação da geometria acabou com essas ilusões de superioridade.
No entanto, à semelhança daqueles deuses da Índia que descem à
Terra nos mais variados feitios, a estultice humana é imortal e tem muitas
faces: o umbigo do mundo, hoje, é o próprio indivíduo, personagem quase
mitológico que passou a ser cultuado como uma resposta possível à atual
(e passageira, como todas as outras) crise de valores e de projetos
políticos. Mimado em toda parte, ele agora age como se fosse o centro do
universo. Todas as teorias relativistas estão aí para mostrar que só ele
conta; o que é boa literatura, boa música ou boa poesia, o que deve ser
ensinado na escola, o que é certo ou errado na conduta de um político –
tudo ica reduzido, em sua homenagem, a uma questão de simples opinião.
Num mundo desses, cada um se enxerga como o ator principal, obrigado a
coabitar com uma multidão de igurantes – eles também persuadidos de
que são os verdadeiros donos da verdade.
Como acredito que a melhor vacina para esse tipo de autoengano
sempre será o humor, recomendo, para aqueles que assim se iludem, o
discurso orgulhoso do pato, o qual, segundo Montaigne, também tem todo
o direito de se proclamar o centro da criação: “Tudo isso foi feito para mim;
a terra me serve para andar, o sol para me iluminar, as estrelas para
orientar meu destino; o vento me é confortável, assim como também são as

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águas. Não existe ninguém que os céus favoreçam mais: eu sou o eleito da
natureza”. Leiam-no todos os dias – mas façam-no diante do espelho.

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No início dos anos 70, poucos meses depois que o homem pisou na
super ície virgem da Lua, exploradores de cavernas inalmente entraram
numa galeria perdida das grutas de Niaux, no sul da França, famosas por
abrigar um grande número de pinturas do período paleolítico. A formação
de um lago subterrâneo tinha fechado completamente os pontos de
entrada desta parte da gruta, deixando-a inacessível por mais de 10.000
anos; agora, aproveitando que o nível do lago havia baixado, técnicos
bombearam água para fora dos túneis e ingressaram pela primeira vez
naquele grande e silencioso salão.
Ali, numa das paredes de rocha, a mão hábil de um longínquo
antepassado havia traçado, a riscos de carvão, as iguras perfeitamente
reconhecíveis de cavalos e bisões, similares às que geralmente se
encontram nesses sítios pré-históricos. O grande achado, no entanto,
estava no chão: ao longo dessa parede, uma larga faixa de areia intocada
guardava as marcas dos pés dos últimos seres humanos que haviam
passado por ali antes que alguma mudança geológica selasse aquela
caverna. Os rastros, tão nítidos como se datassem de ontem, indicavam que
três crianças, por volta de seus dez anos, haviam entrado naquele salão,
caminhando lado a lado – talvez até de mãos dadas –, acompanhadas de um
adulto, o qual, ao que tudo indica, seria o autor dos desenhos.
O que fariam essas crianças ali, tão longe da entrada principal?
Antropólogos sugerem algum ritual importante, provavelmente um
momento solene de despedida da infância em que os futuros caçadores
ouviriam da boca de um adulto experiente os segredos da vida e da morte
de suas futuras presas ou dos predadores de sempre. Como um professor
faz com seus alunos, tratava-se de transmitir o saber acumulado da espécie
para que a geração seguinte pudesse seguir o seu ciclo e fazer o mesmo
com seus ilhos e netos, atividade fundamental para qualquer sociedade
humana que deseje sobreviver.
Aqui talvez esteja a causa dos problemas da escola moderna: se
estamos em crise, é exatamente porque, em algum lugar do caminho,
perdemos a certeza sobre o que deveríamos transmitir aos que vêm depois
de nós. Seduzidos pela ideia de outros mundos possíveis, esquecemos,
como muito bem lembrou Hannah Arendt, que o duro compromisso de
quem ensina é com o mundo presente, com o qual, inclusive, podemos não

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concordar. Temos o direito de pensar num mundo diferente e lutar por ele,
mas nossas crianças, como as da caverna de Niaux, precisam, antes de mais
nada, que os adultos as tornem aptas a enfrentar as feras que, neste exato
momento, estão rondando lá fora.

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E ainda tem gente que não se deu conta de que o ser humano é um só! A
cena mais famosa do documentário Corações e Mentes, de 1974, deixou o
mundo inteiro chocado: diante da câmera, o general Westmoreland,
comandante geral das operações americanas na Guerra do Vietnã, a irma,
impassível, que a vida não tem para os orientais a mesma importância que
tem para nós – e a tela mostra, em seguida, em dramático contraponto, o
desespero de uma mãe norte-vietnamita que tenta se atirar na cova em que
o corpo do ilho vai ser enterrado. A intenção do general era desumanizar o
oponente, tornando mais aceitável o bombardeio sistemático de aldeias
indefesas, mas sua lógica perversa foi instantaneamente anulada pela
imagem terrível daquela pobre mãe, que sofria como sofreria qualquer
mãe, em qualquer tempo, em qualquer lugar.
Pai e ilho? Pois seja do outro lado do mundo, seja no passado
longínquo, pai sempre foi pai, ilho sempre foi ilho – como podemos ver
neste quadro doméstico que nos soa tão familiar: “Onde te meteste? – Em
lugar nenhum; não saí. – Não saíste? E por que icas zanzando por aí, como
um vadio? Anda, pega tua mochila, vai para a escola e te apresenta ao
professor. Faz anotações na tua tabuinha e recita tuas lições. Quando
terminares, volta para casa, sem vagabundear pelas praças e pelas ruas.
Ouviste bem o que eu disse? – Sim, ouvi. Se quiseres, até repito. – Então
repete, para eu ver. – Já vai; não estou com pressa. – Anda, repete! – Tu me
mandaste ir à escola, recitar as lições e anotar a matéria nova; depois,
voltar direto para casa. Não foi isso? – Foi. Isso é importante, meu ilho. Eu
nunca te obriguei a trabalhar em nosso campo, nem a ajudar nas despesas
da casa, como os teus colegas. Se seguires nosso exemplo, o meu e o de teu
avô, só terás a ganhar”. E assim seguem os dois neste diálogo atualíssimo,
encontrado pelos arqueólogos em escavações na Suméria, escrito em
tabuinhas de argila há mais de três mil e quinhentos anos.
Certo e errado? A linha que separa um do outro pode variar segundo
a época e o local, mas a Humanidade parece compartilhar de um fundo
comum de valores. Em outro texto quase tão antigo – uma prece do Livro
dos Mortos do Egito, em que a alma pede a clemência de Osíris –, temos
uma ideia bem clara do que o homem sempre soube o que não se deve
fazer: “Venho diante de vós, Grande Deus, Senhor da Verdade e da Justiça.
Eu sou puro! Eu sou puro! Deixai minha alma ir até vós, pois não cometi

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crime algum. Não fraudei meu semelhante, não atormentei a viúva, não
menti no tribunal. Não fui negligente, nem ocioso. Não impus jornada
excessiva a meus trabalhadores, nem usurpei a terra dos outros. Não
desviei a água do campo do vizinho, nem tirei o leite da boca da criança.
Não causei fome ou qualquer sofrimento a meu próximo. Não matei”. Item
por item, a lista vale até hoje.

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O P

Não conheço quem não tenha imaginado, um dia, encontrar uma garrafa
trazida pelas ondas, contendo a mensagem que algum desconhecido
con iou aos imponderáveis caminhos do mar. É impossível icar indiferente
diante de um achado fascinante como esse, pelo simples mistério que
aquela folha de papel enrolado pode esconder. Pois essa também é a magia
dos mitos da Grécia, que vagam há milênios pela correnteza do tempo:
embora sejam traçadas com uma tinta muito antiga, estas histórias sempre
oferecem algum tipo de resposta valiosa, seja qual for a época ou o leitor.
Vejam a lenda de Procusto, salteador assassino que atuava nos
caminhos que cruzavam a Ática. À primeira vista, parece uma história de
puro terror, típica de homens que, como os gregos, acreditavam que os
lugares ermos e as estradas desertas sempre ocultavam algum perigo
monstruoso. Este bandido sanguinário oferecia pousada aos viajantes
solitários e, à noite, depois de amarrá-los, deitava-os no leito mortal que
até hoje leva seu nome. Tomado por uma sinistra obsessão, deixava todas
suas vítimas exatamente do mesmo tamanho do leito: os homens mais
baixos morriam com o corpo estirado pela força de roldanas, e os mais
altos tinham o excesso decepado a golpes de machado. Teseu, um dos
grandes heróis da mitologia grega, passou por ali e fez com que Procusto
provasse de seu próprio veneno, e em dose dupla: obrigou-o a deitar
atravessado, e não ao comprido, e atorou-lhe os pés e a cabeça.
Mais uma vez os mitos nos ajudam a conhecer melhor os recônditos
mecanismos da natureza humana. Esta história nos previne contra o perigo
embutido em todo regime autoritário, que, acreditando possuir a verdade
absoluta, exige a nossa total adesão a seus princípios – é o leito de Procusto
ideológico. Ela também condena aquela tendência conhecida de rebaixar os
bons e hostilizar os que ultrapassam os outros em cultura e saber, tentando
reduzi-los aos padrões da maioria – é o leito de Procusto cultural.
Kempfer, viajante e cientista do século XVII, relata que conheceu na
Pérsia um funcionário que todos os anos media as mulheres do harém para
descobrir as que não se enquadravam nas dimensões determinadas pelo
sultão, obrigando-as a engordar ou a emagrecer, conforme fosse o caso – é
o leito de Procusto da beleza. Nosso século, no entanto, tem no mundo
feminino uma curiosa reversão deste mito: o Procusto original e todos seus
seguidores tinham de obrigar as vítimas a deitar no leito terrível; hoje,

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basta publicar as fotos certas, com as pessoas certas, e todas as mulheres


irão, por vontade própria, em ila nem sempre organizada, submeter-se a
toda espécie de suplício que as faça icar parecidas com a imagem que a
Moda, este novo Procusto, de iniu para elas.

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Dentre as inúmeras histórias, verdadeiras ou inventadas, que a


Antiguidade nos legou, talvez nenhuma seja tão conhecida quanto a visita
que Alexandre Magno fez a Diógenes, o ilósofo maltrapilho, no ano de 336
antes de Cristo. Nunca teremos um relato de initivo deste encontro notável,
já que nem um, nem outro deixou qualquer registro das palavras que
trocaram naquele dia. Foi a partir do depoimento de algumas testemunhas
que escritores, pintores e historiadores construíram, ao longo dos séculos,
uma verdadeira teia de versões, que diferem no detalhe mas concordam no
principal.
A divergência entre os vários relatos não conseguiu diminuir a
importância da cena, pois ali se encontraram, frente a frente, um grande
ilósofo e um grande guerreiro. Nada podia ser mais simbólico: de um lado,
um dos maiores sábios de toda a Grécia, que passou a vida demonstrando
sua aversão por qualquer espécie de poder; do outro, o jovem macedônio,
que seria conhecido e respeitado por todo o Mundo Antigo como o maior
chefe militar de todos os tempos. É Plutarco quem conta: tendo
conquistado a Grécia, Alexandre, que já conhecia o renome de Diógenes, foi
a Corinto para vê-lo. Os políticos locais receberam-no com honras de chefe
de Estado, assim como os ilósofos – menos Diógenes, que parecia não dar
a mínima para sua presença na cidade.
Alexandre, magnânimo, não se importou em inverter o protocolo,
indo ele mesmo, com uma pequena comitiva, procurar o ilósofo, que
tomava sol no meio da rua, num subúrbio da cidade. Ao ver o grupo que se
aproximava, Diógenes soergueu-se sobre os cotovelos e itou serenamente
o rei, que o saudou polidamente e perguntou se poderia fazer alguma coisa
por ele. “Sim”, respondeu Diógenes, “sai da minha frente, que estás fazendo
sombra para mim”. Alexandre icou tão impressionado com aquele
despojamento e aquela corajosa altivez que, no caminho de volta, teria
confessado aos companheiros, que riam da excentricidade do ilósofo:
“Pois eu, se não fosse Alexandre, juro que gostaria de ser Diógenes”.
Lições como esta sempre deixaram bem claro que, para os antigos, a
sabedoria na vida não signi ica necessariamente profundos conhecimentos
teóricos, mas antes um inconfundível espírito soberano, capaz de resistir
serenamente às sereias do poder e da ambição, que sempre atraem os
incautos para os recifes da incerteza. Alexandre, que, antes de ser soldado,

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tinha sido discípulo dileto de Aristóteles, deve ter compreendido


perfeitamente o que Diógenes, à sua maneira, acabara de lembrar: o
conhecimento é um sol que nos aquece; o poder, este, sempre será uma
sombra.

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Todos os guerreiros de Troia tinham o mesmo pesadelo: um dia eles iriam


se defrontar com o temível Aquiles, que os deixaria estendidos no pó
ensanguentado da planície. Por isso, quando ele anunciou que não queria
mais combater, os troianos receberam a notícia com um alívio indescritível.
A euforia, porém, durou pouco, pois com a morte de Pátroclo, seu amigo
querido, Aquiles retornou com muito mais ferocidade.
Ao vê-lo de volta, os troianos fogem como podem, e muitos, no
desespero de escapar da morte, livram-se das couraças e dos capacetes e
mergulham nas águas do rio. É inútil, pois Aquiles os fere, um a um, com
sua lança certeira, enchendo a praia de corpos que se debatem como peixes
agonizantes. Neste momento, para sua surpresa, reconhece um dos
fugitivos: nu, tremendo de medo, está diante dele um dos ilhos de Príamo,
o jovem Licaon, o mesmo que ele próprio, há menos de duas semanas,
tinha capturado e vendido como escravo na ilha de Lemnos. Era o destino:
um amigo de Príamo, ao ver o prisioneiro, tinha pago seu resgate para
devolvê-lo secretamente a Troia – e agora estava ali, outra vez aos pés de
Aquiles, implorando pela vida, pois nem tivera tempo, nem oportunidade
de fazer algum mal aos gregos. Aquiles, então...
E foi bem nesta passagem da Ilíada que o pai interrompeu a leitura,
com um ar desconcertado, explicando ao ilho que aquela tradução de
Homero tinha uma lacuna e omitia o desfecho da história. O menino tremia
de frustração. Então não icaria sabendo o que Aquiles ia fazer com o pobre
Licaon? E isso era justo? O pai, que também parecia desapontado,
informou, em tom casual, que ali, na mesa, havia uma edição em grego e um
dicionário. E se eles próprios tentassem decifrar, no original, o restante da
cena?
Pegando a mão do ilho, fez que deslizasse o dedo pelas linhas,
enquanto ele lia em voz alta o texto grego. Abrindo o dicionário, os dois se
puseram a procurar o signi icado das palavras, tentando uni-las em frases
que izessem sentido na história. Pouco a pouco, Aquiles voltou a se mover,
no ponto interrompido: “Não chores, amigo, pois Pátroclo morreu, e ele
valia muito mais do que tu; eu próprio, ilho de uma deusa, em breve
encontrarei o meu im” – dito o quê, atravessou-o com a espada.
O menino estremeceu, tomado pelo horror da cena; o pai, sensível,
tratou de acalmá-lo, propondo, suavemente, que aprendesse de cor aquelas

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linhas para nunca mais esquecer a serena crueldade da mensagem de


Aquiles. À noite, o menino, que cresceria para se tornar o incomparável
George Steiner, encontrou em seu quarto a sua primeira Ilíada, da qual
nunca mais se separou. Seu pai havia entreaberto a porta de um mundo
inteiramente novo – di ícil, no início, quase incompreensível, mas tão
fascinante que justi icava todo o esforço necessário para entendê-lo. Era
um verdadeiro professor.

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William James, psicólogo e pensador americano, sempre fez questão de


frisar, ao longo de toda sua obra, que nunca chegaremos a captar realmente
o que nosso semelhante pode estar pensando ou sentindo – especialmente
se nos basearmos apenas naquilo que podemos enxergar. Como
espectadores, somos verdadeiros iascos na hora de avaliar o drama dos
outros, pois nosso olhar e julgamento, condicionados por nossos próprios
valores, não conseguem perceber os sentimentos secretos que animam o
comportamento alheio.
James ilustra essa ideia com um belíssimo exemplo que foi buscar nas
memórias de Robert Louis Stevenson, o autor de O estranho caso de Dr.
Jekyll e Mr. Hyde (que ganhou, no Brasil, o título caricato de O médico e o
monstro). Na pequena obra-prima intitulada Os portadores de lanternas,
Stevenson relembra, saudoso, as férias que costumava passar numa
cidadezinha do litoral da Escócia, cheia de trilhas selvagens, grutas e
penhascos à beira-mar – um local que “parecia ter sido criado
especialmente para a diversão de meninos”. Das inúmeras recordações que
guardou dessa época dourada, nenhuma lhe foi mais preciosa que a
sensação de portar uma lanterna.
Entenda o leitor que estamos na metade do século XIX e que estas
lanternas primitivas queimavam óleo de baleia. Eram de construção muito
simples: tinham a forma cilíndrica de um pequeno lampião, mais ou menos
do tamanho de uma lata de ervilhas, dentro da qual ardia uma chamazinha
vacilante; para deixar a luz sair, bastava abrir uma pequena portinhola
redonda que icava na lateral. Pois nas últimas semanas do verão, quando
as noites já eram escuras como piche e os ventos traziam as primeiras
chuvas frias do outono, Stevenson e seus amigos saíam com as lanternas
presas ao cinto, protegidas debaixo do capote.
Não eram práticas nem úteis: a luz produzida era ín ima, o metal
icava muito quente, a fumaça do óleo queimado que subia por dentro da
roupa era nauseabunda. Nada disso, porém, estava em questão: para um
menino daqueles, a essência da felicidade consistia em sair no negror da
noite, sozinho, com o casaco abotoado até o pescoço, exultando
simplesmente por saber, “no mais profundo de seu ingênuo coração, que a
lanterna estava lá”. As pessoas que os viam passar assim, sujos e molhados,
deviam fazer o mesmo que nós, injustos e arrogantes, quando nos pomos a

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julgar a vida de outra pessoa e as decisões que ela toma – esquecendo que,
por escuro que nos pareça o caminho escolhido por ela, é possível, se não
provável, que ela traga no cinto, escondida de nossos olhos, a sua própria
lanterna.

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O V G

W. H. Auden dizia que cada nação constrói a sua própria imagem da


Grécia Antiga. Existe uma Grécia alemã, uma francesa, uma inglesa, todas
elas diferentes. Até num mesmo país coexistem várias Grécias. Imaginem
um professor de Filoso ia Antiga, casado, conservador. Tem três ilhas e
raramente sai à noite. Cultiva um jardim e aprecia longas caminhadas
solitárias. Detesta estrangeiros, literatura moderna e barulho. Sua
preocupação atual é a saúde da esposa. Agora, imaginem um professor de
Literatura Clássica, solteiro e ateu. De família rica, não dá a mínima para
política e promove excelentes almoços para seus alunos. Gosta de viajar e
de colecionar estatuetas. Detesta as garotas, os pobres e a culinária inglesa.
Sua preocupação é manter a forma ísica.
Para o primeiro, o mundo grego lembra razão, moderação, controle
emocional, ausência de superstições; para o segundo, lembra alegria e
beleza, a valorização dos sentidos, a ausência de inibições. Ambos sabem
que seus respectivos pontos de vista são parciais. O primeiro não pode
negar que muitos gregos cultuavam mistérios religiosos e tinham hábitos
que a cultura moderna costuma condenar; o segundo tem consciência de
que alguns ilósofos eram puritanos extremados – mas o vínculo emocional
com a Grécia de seus sonhos, formado ao longo de uma vida de estudo, é
mais forte do que seu conhecimento. Não pode haver prova maior da
riqueza e da profundidade da cultura grega do que este poder que ela tem
de atrair todos os tipos de personalidade.
Como a Grécia, assim a arte. Um bom exemplo são os sapatos
pintados por Van Gogh. Dentre os vários pares que ele pintou, um deles, em
particular – Sapatos velhos, de 1886 – foi visto de modo muito diferente
pelo ilósofo Martin Heidegger e pelo crítico de arte Meyer Schapiro. Para o
ilósofo, são os sapatos do camponês ancestral, marcados pela umidade
fecunda da terra revolvida pelo arado, dos eternos sulcos onde é lançado o
grão que nunca deixará de brotar. Para Schapiro, são os sapatos de um
caminhante – na verdade, do próprio pintor, que abandonou sua casa para
viver, até a morte, o exílio de uma longa marcha infeliz e solitária.
Para o primeiro, não importa a história pessoal do pintor; sua tela,
como toda a arte, permite que se vislumbre o mundo sob a luz clara e
misteriosa das origens; para o segundo, Van Gogh retratou em sua pintura
a fadiga de todos nós, condenados a esta dura viagem sem abrigo e sem

agosto•2021
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repouso. Na verdade, não importa; como a Grécia de nossa imaginação,


estes sapatos – sejam de andarilho, sejam de camponês – já pertencem a
um mundo mais rico, aberto à interpretação de todas as épocas e
sociedades. Estão lá, e isto basta.

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Os dois espetáculos mais populares na Grécia – o teatro e as olimpíadas –


eram, cada um à sua maneira, momentos feitos sob medida para que o
grego observasse a si mesmo e pudesse, quem sabe, entender os limites da
condição humana. Nas tragédias, o espectador recebia, por mais variadas
que fossem as histórias, a mesma eterna mensagem: o homem é um quase
nada diante das forças que agem sobre ele. Os jogos, por outro lado,
forneciam-lhe a visão de um lugar ideal em que, ao contrário deste mundo,
o mérito e a perseverança eram recompensados com rigor e com justiça.
Era só por isso – pela rara e preciosa satisfação de dar o máximo de si
e ver reconhecido o seu esforço pessoal – que os jovens participavam das
olimpíadas, pois, assim como hoje, a premiação era meramente simbólica.
No começo era uma simples maçã, fruta dedicada a Apolo; depois passou a
uma singela coroa feita com um ramo verde de oliveira. Heródoto, grande
historiador e viajante incansável, registra o espanto de Xerxes e dos
generais persas ao descobrirem que os atletas gregos não disputavam as
provas por riqueza ou por poder, mas por um mero galho de árvore torcido.
Este espetáculo perderia todo o seu valor cívico se o público e os
concorrentes não tivessem certeza absoluta da lisura dos resultados.
Ésquines, que disputava com Demóstenes o título de melhor orador de seu
tempo, de iniu muito bem a importância deste ponto: “Então você acha,
amigo, que alguém iria perder tempo em se preparar para o pugilismo ou
para as outras provas duras da olimpíada se a coroa fosse atribuída não ao
melhor atleta, mas àquele que fez mais intrigas e conchavos para obtê-la?
Não mesmo. Mas como os resultados são justos e a recompensa é rara e
preciosa, os jovens vão continuar a submeter-se à mais severa disciplina
para enfrentar este nobre desa io”.
Não faltaram, é claro, tentativas de burlar o sistema – boxeadores que
compraram seus adversários, cocheiros que sabotaram os carros dos
concorrentes –, mas esses casos isolados eram punidos de uma maneira
exemplar: os atletas desonestos eram multados numa soma considerável,
usada para custear as “Zanes”, estátuas representando a igura de Zeus, que
traziam o nome do infrator gravado em seu pedestal. Estas estátuas, todas
iguais, formavam uma galeria implacável bem na entrada do estádio,
imortalizando, na pedra e no bronze, o nome dos trapaceiros. Hoje, dois mil
e quinhentos anos depois, não chegamos a esses extremos, mas ainda

agosto•2021
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reside aí o grande fascínio que exerce sobre todo o planeta o espetáculo


das olimpíadas: saber que, por um breve momento, luminoso e
emocionante, as costumeiras leis do vale-tudo, da fraude e da corrupção
icaram suspensas.

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É com uma ponta de inveja que Aulo Gélio, um dos mais pitorescos
cronistas da Antiguidade, registra o amor extraordinário de uma mulher
por seu marido – segundo ele, “superior àquelas paixões que a literatura
imortalizou, superior a tudo aquilo que se possa esperar da ternura
humana”. Por vinte e cinco anos, na cidade de Halicarnasso, capital de uma
das províncias do império Persa, Mausolo levou uma vida feliz ao lado de
sua rainha, Artemísia. Além de esposo dedicado, era amado por seu povo e
temido pelos inimigos – as duas qualidades essenciais dos bons reis de
antigamente.
Em perfeita harmonia, o casal se dedicou a embelezar sua cidade,
enchendo-a de esculturas famosas e de templos e edi icações de mármore
polido. Quando Mausolo morreu, Artemísia mandou emissários à Grécia
para contratar os arquitetos, escultores e artesãos de renome que
quisessem participar da construção de um túmulo grandioso para o
marido, ao qual esperava se juntar em pouco tempo – um monumento que
eternizasse o amor de um pelo outro e a dedicação de ambos à arte e à
beleza.
A construção tinha quase cinquenta metros de altura e ostentava
elegantes colunas em toda a volta, entremeadas com relevos assinados
pelos mais célebres artistas gregos. Mas como nem mesmo o sólido
mármore resiste ao implacável des ile dos anos e dos séculos, Artemísia
resolveu construir outro monumento, desta vez com o material mais
duradouro de todos, e promoveu um concurso literário. O prêmio, uma
elevada soma em ouro, atraiu a Halicarnasso oradores e ilósofos tão
famosos quanto Isócrates e seu discípulo Teopompo, que celebraram, por
escrito, a memória de Mausolo.
Pois ela tinha razão; o túmulo, apesar de aclamado pelos
historiadores como uma das sete maravilhas do Mundo Antigo, não chegou
a nossos dias. Mil e quatrocentos anos depois, já abalado por sucessivos
terremotos, foi descoberto por cruzados da ordem dos Cavaleiros de São
João, que entraram no sepulcro e, depois de admirarem por algum tempo
as belíssimas colunas e as cenas representadas nos relevos, quebraram
tudo, moendo o mármore para alimentar os fornos em que faziam cal.
Artemísia, no entanto, tinha conseguido romper para sempre a barreira do
esquecimento, legando para todas as línguas do Ocidente a palavra

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mausoléu, que imortalizou o nome de Mausolo – agora sim, um


monumento imperecível de uma rainha apaixonada por seu rei e do amor
que os uniu.

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Q !

Na terra em que existe um poder absoluto – seja rei, sultão, marajá ou


mandarim –, o tom de voz e o emprego do tempo são duas grandes
diferenças entre quem manda e quem obedece. O imperador fala baixo, e
cabe ao súdito inclinar-se ainda mais para frente, espichar o pescoço e
aguçar o ouvido; dizem os manuais da corte que o súdito perfeito, então,
esse nem precisa ouvir, porque adivinha a vontade de seu soberano. A
repartição do tempo, o tecido mais precioso de todos, também segue esta
hierarquia natural: um rei não costuma esperar; os outros que esperem por
ele.
Quanto mais esclarecido for o monarca, menos ele irá exercer esses
privilégios autocráticos – e, sendo ele o paizinho do povo, mas
principalmente de seus ilhos, tratará de desenvolver essa veia democrática
naqueles que deverão, um dia, suceder-lhe no trono. Para educar os futuros
reizinhos, existem várias histórias, fábulas e parábolas especialmente
concebidas para esse im, quase todas trazidas do Oriente, seguindo a
mesma rota da seda e das especiarias. Uma delas – o rótulo diz que vem da
Pérsia, mas nunca se sabe... – conta que um príncipe, como costuma
acontecer naquelas paragens, libertou um gênio da garrafa em que estivera
aprisionado há milênios e, como recompensa, foi-lhe concedido pedir o que
quisesse. “Quero ser poupado dos momentos desagradáveis da vida”, ele
disse. O gênio, habituado aos tolos pedidos que os humanos costumam
fazer, entregou-lhe então um gordo novelo de io de seda: “Aqui está o io
da tua vida. Quando ela te parecer penosa ou aborrecida, basta desenrolar
alguns metros, e o mau momento vai icar para trás”. Encantado, o jovem
príncipe passou a recorrer ao novelo sempre que desgostava de alguma
situação ou tinha pressa de saber o que ia acontecer. Assim, em poucos
meses, chegou ao im do novelo e morreu.
O trágico inal era necessário, já que a história se destinava a incutir
um pouco de prudência nos jovens leitores reais. O pior é que lições desse
tipo continuam sendo oportunas, pois este século XXI, embora livre de
monarcas verdadeiros, assiste ao nascimento de uma espantosa realeza
infantil. No universo instantâneo em que vivemos, o adulto tornou-se um
simples súdito da criança imperial, vivendo para satisfazer os seus
mínimos desejos – e sempre o mais rápido possível! Com medo de
contrariar seus pequenos príncipes e princesas, foge a seu dever de educá-

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los, esquecendo que ele próprio só aprendeu o valor (e o prazer) das coisas
porque seus pais tiveram a coragem de acostumá-lo ao gosto da frustração,
amargo como todo o bom remédio. O jovem Luís XIV, ao ver que sua
carruagem chegava exatamente no momento em que punha o pé no
vestíbulo, exclamou, atônito: “Quase tive de esperar!”. Mas ele era rei. Ele
podia.

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Para o professor Veblen, sociólogo americano do início do século XX, um


dos traços que os ricos e poderosos usavam para se distinguir dos demais
era o espaço exagerado que detinham para seu uso exclusivo. Isso
explicaria as casas faraônicas, as salas de jantar gigantescas, os jardins que
pareciam parques e a preferência marcante pelo golfe, esporte que ocupa
muitos hectares de terreno aprazível para a diversão de um pequeno grupo
de jogadores bem-afortunados. Agora, um século depois, tudo nos faz
acreditar que houve uma mudança nos símbolos de prestígio, pois foi o
silêncio – ao se tornar um recurso natural escasso e di ícil de encontrar –
que se transformou automaticamente no objeto de desejo e ostentação
daqueles que podem desfrutá-lo.
Nosso homem comum, aqui, coça a cabeça: ele entende a inveja que
nossos antepassados sentiam pelas grandes mansões e pelos magní icos
gramados dos ricaços, mas não vê vantagem alguma no silêncio – bem pelo
contrário. Ele é moderno e acha que é natural que tudo faça barulho, pois é
sinal de que tudo está “funcionando”. Seu mundo ressoa por toda a parte
com carros, aviões, cortadores de grama, alarmes – todas as máquinas e
aparelhos que a tecnologia lhe deu para tornar sua vida melhor. Em sua
casa, o rádio e o aparelho de som criam um pano de fundo familiar,
enquanto a TV, sempre ligada, transmite, diretamente do inferno, o mugido
insuportável da vuvuzela. O único silêncio que ele conhece – e detesta – é o
da falha mecânica ou da queda de energia, mas este, para seu alívio,
felizmente dura pouco.
Pois não devia ser assim. O silêncio, tanto quanto a boa água e o ar
puro, sempre foi um bem precioso. Ele nos faz falta e nos revigora. Os sons
do mundo exterior exigem nossa atenção imediata e nos fazem seguir o
luxo dos dias sem cair em grandes angústias, o que não é ruim, mas
precisamos do silêncio para restabelecer contato com nosso mundo
interior, reencontrar nossos sentimentos, rever nossos projetos e refazer
nossas perguntas – condição indispensável para viver com intensidade a
dor e a alegria dos momentos decisivos da existência.
Na Ilíada, Homero descreve a maneira como os soldados, na planície
de Troia, se dirigem para o campo de batalha. Os troianos, diz ele, vêm para
a luta em meio a uma tremenda algazarra, qual uma revoada de pássaros
barulhentos; os gregos, porém, avançam em profundo silêncio, recolhidos,

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enchendo-se de força e de coragem para dar, quem sabe, o passo


derradeiro. Cabe a nós escolher entre as duas atitudes, ou, o que seria
melhor, alternar entre elas. Eu não desdenho o mundo fácil e reconfortante
do som ambiental, mas meu amor à leitura me faz preferir o outro lado,
pois, como disse um dia Stefan Zweig, um livro é uma porção de silêncio
que nos traz alívio e repouso.

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E você acredita, leitor, que é possível saber o que o futuro nos reserva?
Pois todos os povos da Antiguidade, de um jeito ou de outro, acreditavam –
e levavam isso muito a sério. Para eles, a janela para espiar o futuro estava
na interpretação adequada dos sinais que algum deus enviava cá para
baixo, como recompensa para seus seguidores mais devotos.
Como era de esperar – considerando quem eram os ilustres
remetentes –, o primeiro lugar onde procuraram estes sinais foi o céu, o
que tornou o homem antigo um grande observador dos fenômenos do
irmamento. Raios, relâmpagos e trovões, cometas, eclipses e arcos-íris,
tudo podia encerrar um signi icado oculto, importante para tomar uma
decisão ou prever aquilo que estava por vir.
Depois voltaram-se para as aves, mensageiras naturais entre os dois
mundos – e o voo das águias de Zeus e dos falcões de Apolo, a direção
imprevisível dos bandos de abutres no céu, o pio da coruja e o canto da
cotovia tornaram-se objeto de estudo de uma verdadeira ciência de
adivinhação. Vieram em seguida os especialistas em ler a trajetória da
fumaça que subia do altar dos sacri ícios, a conformação do ígado dos
animais abatidos e outras insigni icâncias do gênero. Você icaria
espantado, leitor, se soubesse quantas batalhas Roma adiou simplesmente
porque as galinhas sagradas se recusaram a comer os grãos oferecidos
pelos sacerdotes!
Até hoje há muita gente que toma o acidental e o imprevisto como um
sinal, uma manifestação sensível de um mundo além do nosso. Não os
condeno, nem aprovo – cada um enxerga o que quer num céu cheio de
estrelas. Só estranho que não vejam que o normal, o de sempre, o familiar
também pode ser sinal de algo, talvez bem mais importante. Pessoas que
são capazes de ler a con iguração das folhas de chá ou a ordem caprichosa
com que as cartas saem do baralho, que podem ver o destino da Babilônia
traçado nas entranhas de um cabrito, como diria Borges, não conseguem
encontrar sentido algum no que está bem na sua frente...
Lacarrière conta que, ao viajar a pé pela Grécia, teve uma verdadeira
iluminação: de repente, do nada, sentiu-se parte de um todo – as árvores, o
som claro e distinto de um galho que se quebrava, as vozes dos
camponeses, cujas palavras mal conseguia distinguir à distância. Então,
“como a luz que se extingue entre as árvores ao anoitecer”, esse “algo” foi

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sumindo e a tarde se tornou apenas uma bela tarde como as outras. O sinal,
porém, era muito claro, a lembrar que o homem e o mundo, mesmo que
por instantes, podem formar um conjunto perfeito, indissolúvel, sem outro
signi icado além do eterno luxo da vida.

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Os deuses do Olimpo são quase iguais aos humanos. Em tudo são


parecidos conosco. Como nós, eles também adoram reunir-se à volta de
uma mesa para comer e beber com os amigos – não a carne, o pão e o
vinho, rudes produtos da terra, mas a ambrosia e o néctar, alimentos
divinos que o homem desconhece. A música também os encanta: vibram
com a voz melodiosa das Musas e os sons da lira de Apolo. Repousam como
nós: a noite escura vai encontrá-los na paz de seu leito, e a Aurora dos
dedos róseos faz romper a claridade da manhã para todos, deuses e
homens, indistintamente. Quando choram, vertem lágrimas salgadas como
as nossas; quando fazem amor, compartilham dos mesmos luidos e das
mesmas umidades.
Em contato com o ferro a iado, sua pele se rompe como a nossa, e a
dor do ferimento é sentida com a mesma intensidade. Pois Homero não nos
conta o quanto sofreu Afrodite ao ser ferida durante a guerra de Troia?
Para salvar Eneias, seu ilho, que estava prestes a ser abatido pelos gregos,
ela tinha se aventurado no ponto mais aceso do combate; furioso por ver
sua presa escapar, Diomedes não hesitou em atingir o delicado pulso da
deusa com um pontaço de lança, fazendo-a desferir um grito lancinante.
Cega pela dor, Afrodite bateu em retirada; a pele alvíssima de seu braço
começava a enegrecer em torno da chaga aberta, de onde jorrava não o
sangue abundante dos mortais, mas o líquido claro e perfumado que corre
nas veias dos deuses.
São quase idênticos a nós. Quase – não fossem duas diferenças
essenciais. A primeira é sua perpétua juventude: eles nascem como
qualquer um, crescem até uma determinada idade e estacionam ali,
inde inidamente – Zeus será para sempre um homem adulto, na força da
idade, enquanto Apolo nunca deixará de ser um jovem imberbe; no Olimpo,
os dias não envelhecem. A segunda, muito mais decisiva, é a imortalidade,
porque os deuses, “os que nasceram para sempre”, são eternos como o
Tempo. No mundo divino, a morte é desconhecida.
Por causa disso, um pensador antigo sugeriu que é natural que os
deuses tenham, a respeito da morte, uma grande curiosidade – talvez até
uma ponta de inveja. Assim como água não tem muito sabor para quem não
conhece a sede, assim os deuses, que não precisam morrer, não conseguem
perceber o quanto a vida tem valor para quem sabe que vai perdê-la.

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Nenhum dos imortais do Olimpo pode entender a sabedoria das palavras


de Bobbio, quando de ine nossa humana condição: os que levam a morte a
sério levam também a vida a sério – aquela vida, a minha vida, a única que
tenho.

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T E

Lacarrière nos conta que, durante a Segunda Guerra, na França ocupada,


gostar de Atenas ou de Esparta de inia rigorosamente a posição política de
seus colegas de escola. Atenas simbolizava a liberdade, a resistência contra
o obscurantismo de Hitler, do qual o mundo não conhecia a metade;
Esparta, por outro lado, atraía os que admiravam a força do poderio nazista
e a resistência e bravura incontestáveis do soldado alemão. Voltavam assim
a se ver, frente a frente, duas sociedades que há mais de dois mil anos
fascinam o Ocidente, representando dois modelos opostos que sempre
dividiram a preferência de nossos corações e mentes.
Apostando na autodeterminação democrática de seu povo, Atenas, ao
assegurar a liberdade dos cidadãos e encorajar as artes e a iloso ia, tinha
criado uma sociedade avançada, econômica e militarmente in luente.
Esparta, por sua vez, tinha chegado também a uma posição invejável, mas
seguindo um caminho praticamente oposto: o Estado planejava todas as
etapas da vida do indivíduo, regulava sua educação, seus hábitos e sua
alimentação, e determinava, inclusive, o local e a frequência das relações
conjugais. As crianças não eram educadas pelos pais, mas sim pelo Estado,
que os preparava para integrar, mais tarde, a força guerreira que tornou
Esparta poderosíssima.
Para acostumar o corpo às intempéries, andavam descalços o ano
todo, sempre envergando o mesmo tipo de roupa sumária. Seu único
alimento era o famoso caldo negro espartano, que, embora nutritivo, era
considerado intragável pelos poucos estrangeiros que o provaram. Os
jovens que não se satis izessem com sua ração eram incentivados a roubar,
pois isso preparava os futuros soldados a lutar pela sobrevivência; se
descobertos, eram severamente punidos, não pelo ato em si, mas por ter-se
deixado apanhar. Quando chegavam à adolescência, idade da revolta e das
paixões, eram soterrados por uma carga espantosa de exercícios e
submetidos a uma disciplina ainda mais rigorosa, deslocando-se em grupos
pelas ruas, em absoluto silêncio, sem desviar os olhos do caminho, como
verdadeiras estátuas sem voz. Quando chegavam à maioridade, estavam
prontos para fazer parte do exército mais famoso de todos os tempos.
Não escreviam, não faziam arte nem ilosofavam, e nada saberíamos
sobre eles se os povos com que lutaram não tivessem escrito a sua história.
Enquanto existiram, privaram-se do essencial – o amor conjugal, os laços

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familiares, a beleza da arte, o prazer do estudo e da re lexão – para levar


uma vida de caserna, eternamente militantes de um Estado autoritário e
despersonalizador. Como lembra Lacarrière, todos esses sacri ícios não
levaram a resultado algum; Atenas continua viva entre nós por seus poetas,
dramaturgos, ilósofos, artistas e oradores, mas de Esparta não restou
absolutamente nada – nem ao menos suas ruínas.

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Nos mitos da Grécia Antiga, os amores entre deuses e mortais, embora


muito frequentes, nunca duravam muito tempo – não por inconstância das
partes, mas sim por um simples problema literário: como é impossível
existir um relacionamento duradouro entre uma divindade atemporal e
alguém que caminha para o im inevitável, quase todos esses amores
terminavam de maneira abrupta, não com a morte do parceiro humano,
mas – e aqui brilha a paixão que os gregos tinham pela vida – com sua
transformação em outro ser, o que, de certa forma, também o tornava
imortal.
Vejam Hélio, o deus do Sol, que se apaixonou por Leucótoe, uma
princesa da Pérsia. Lá de cima, conduzindo pelo irmamento os seus
fogosos cavalos alados, o deus só tinha olhos para ela; enamorado, atrasava
sua trajetória no céu de inverno, tornando os dias mais longos para ter
mais tempo para contemplá-la. Uma noite, quando a Lua, sua irmã, já
brilhava serena, o Sol assumiu a aparência da rainha-mãe e assim entrou
nos aposentos da princesa, que iava e bordava na companhia das outras
donzelas. “Deixem-nos a sós; quero falar com minha ilha”, disse ela,
dispensando-as.
Quando se viu sozinho com ela, o deus então se apresentou: “Eu sou
quem mede a extensão dos anos; eu tudo vejo, e todos os homens veem por
meu intermédio; eu sou o olho do mundo. Eu te amo!”. Aturdida pela
surpresa e pelo calor daquelas palavras, a jovem deixou cair o fuso com que
iava o linho; o deus, então, sem hesitar, assumiu sua verdadeira aparência,
e Leucótoe, trêmula diante daquela visão esplendorosa, deslumbrada com
tanta luz, acabou se entregando docilmente.
Uma irmã, porém, cheia de ciúme porque também amava Hélio, não
hesitou em contar ao pai que a princesa já não era mais donzela. Impiedoso
e brutal, o rei não quis ouvir a explicação da ilha – ninguém resiste a um
deus, dizia ela – e mandou sepultá-la, viva, numa profunda cova. Quando o
deus soube disso, ainda tentou usar seus raios para libertar a pobrezinha,
mas era tarde demais: Leucótoe, sufocada e esmagada, já era um corpo sem
vida. “Mesmo assim tu vais chegar aos céus”, jurou o Sol, desconsolado – e,
impregnando com o néctar divino a terra que a cobria, fez nascer ali uma
planta de folhas aromáticas: nascia assim o arbusto do incenso, e, a partir
daquele dia, de todos os templos da Grécia, de todos os templos do mundo,

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a alma perfumada de Leucótoe subiria para se encontrar com seu amado,


como ainda faz até hoje.

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Os antigos garantem que um conselho irme e sincero de um amigo, de um


ilósofo ou de um oráculo pode ser decisivo nos momentos mais di íceis.
Alguém que nos diga a coisa certa na hora certa pode nos devolver a calma
e a con iança que estamos a ponto de perder, ou evitar o pequeno deslize
que nos levaria ao desastre. Uns poucos, por conta própria, conseguem
fazer os dois papéis ao mesmo tempo, conselheiro e aconselhado, mas
esses são muito raros e dignos de admiração.
Pois vejam Ulisses: quando ele voltou para casa, vinte anos depois de
ter partido para a guerra de Troia, um perigo ainda maior o esperava
dentro de seu próprio palácio: tomando-o por morto, dezenas de chefes
guerreiros se apresentaram para disputar o seu lugar no trono de Ítaca e
no leito de Penélope. Aqui começa a segunda parte da Odisseia:
praticamente sozinho, contando apenas com a ajuda de Telêmaco, seu ilho,
e de mais alguns servidores leais, ele precisa travar uma batalha sangrenta
para se livrar deste pequeno exército invasor. Sua única vantagem é a
surpresa, e Atena, sua deusa protetora, transforma-o temporariamente
num velho e alquebrado mendigo, a im de que ele possa se aproximar do
palácio sem ser reconhecido.
Ali o desmando é geral. Ignorando as sagradas leis da hospitalidade,
todos maltratam o recém-chegado. Os criados tentam enxotá-lo e os
pretendentes o insultam, atingindo-o com ossos e com restos de comida.
Eles humilham e ameaçam Telêmaco, que tenta defendê-lo, mas o jovem os
convence a deixar que o velho durma no palácio. Nunca em sua vida Ulisses
lutou tanto para controlar sua ira, mas sabe que o menor gesto pode traí-lo
e acarretar sua morte e a de seu ilho. À noite, deitado em velhos pelegos
que estenderam no vestíbulo, ouve o riso debochado das criadas de
Penélope que vão dormir com os pretendentes, seus verdadeiros senhores.
Por um segundo, o sangue sobe-lhe à cabeça e pensa em matar todas elas, o
que poria tudo a perder. Atena não está ali para acalmá-lo, mas ele
consegue dar ouvidos a sua voz interior: “Aguenta, amigo. Já passaste por
coisa muito pior do que essa”. Ele se controla e aguarda o dia seguinte,
quando então, no momento certo, seu plano acaba lhe trazendo a vitória.
Esta voz de si para si mesmo é a marca dos destemidos. Que o diga
Turenne, o grande marechal de Luís XIV: apesar de ser veterano de muitas
guerras, sempre sentia medo no início de cada batalha. De longe, seus

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homens ouviam-no gritar, enquanto mergulhava no aceso do combate: “Tu


tremes, carcaça? Pois tremerias ainda mais, se soubesses para onde estou
te levando!”. Confesso que eu morro de inveja.

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Além da compaixão pela dor e pelo desespero de nossos semelhantes, as


terríveis imagens da tragédia japonesa trazem à tona, também, uma
verdade que teimamos em manter longe de nossos pensamentos: o que
chamamos de catástrofes – terremotos, furacões, ondas gigantescas,
avalanches – são processos tão naturais e corriqueiros para o planeta
quanto o são, na escala humana, os bocejos e os espirros.
Esses fenômenos naturais acontecem sem hora marcada. Neles, nada
mudou, desde as primeiras descrições de que dispomos, e nada ocorreu no
Japão que já não tivesse ocorrido alguns milhares de vezes. Quatro séculos
antes do nascimento de Cristo, por exemplo, na Grécia Antiga, a cidade de
Hélice desapareceu em poucas horas, juntamente com todos os seus
moradores. O primeiro golpe foi em plena noite, quando todos dormiam:
um terremoto avassalador fez ruir todas as casas, sepultando nos
escombros a maior parte da população. Depois, quando o sol raiou,
rompendo a custo a grande nuvem de pó e de cinza vulcânica, veio o
segundo: quando os poucos sobreviventes, em estado de choque,
cambaleavam em direção ao porto, ainda sem entender o ocorrido, uma
onda descomunal levantou-se à sua frente e abateu-se sobre eles,
sepultando no mar o que ainda sobrava da cidade. Os únicos que restaram,
dizem, foram alguns pescadores que tinham partido no dia anterior; ao
voltarem, à tardinha, mal e mal puderam entrever, debaixo da água, as
ruínas do que fora Hélice. Desta vez, como disse o poeta, “foram os barcos
que assistiram ao naufrágio das casas”.
Depois disso a História registrou centenas de ocorrências
semelhantes, mas nenhuma tão devastadora quanto o terremoto de Lisboa
em 1755 – não pela violência ou pelo número de vítimas que fez, pois
houve outros bem maiores e mais terríveis, mas pelo abalo de initivo que
causou em nosso ingênuo amor-próprio. Até então se imaginava que
alguma culpa dos homens fosse o responsável por essas catástrofes, e isso,
por paradoxal que possa parecer, dava algum sentido à fúria do terremoto
ou do tsunami. Minha casa ou minha cidade tinha sido arrasada por algo
que eu tinha feito ou deixado de fazer. A culpa atraía a punição – uma
equação trágica, mas fácil de entender.
A destruição de Lisboa, no entanto, deixou claro que a Natureza,
alheia aos conceitos humanos de justa recompensa e castigo, não distingue

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culpados de inocentes. É inútil buscar algum sentido em seus caprichos. No


fundo, sabemos disso, mas a ideia de conviver com forças tão poderosas e
tão indiferentes aos nossos projetos é insuportável demais, e encontramos
mil maneiras de esquecê-la – até que a terra trema outra vez.

agosto•2021
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Nenhum pensador grego deixou de se ocupar com uma questão muito


simples, mas essencial até hoje: o que nós temos que o animal não tem?
Entre as várias respostas – a capacidade de rir, de fazer geometria, de usar
as mãos, de andar ereto e de sentir vergonha, além da disposição para fazer
sexo a qualquer momento ou estação (inclusive, se bem me entendem, com
seres de outras espécies) –,
uma foi unânime: só nós temos linguagem. O animal não fala, não faz
promessas, não mente, não tem crenças nem faz ironia, não tem ideia do
futuro e não conhece o “se” das hipóteses, conceito que nos torna donos
imaginários de todas as possibilidades do universo.
É verdade que nas fábulas ele fala, às vezes até demais, mas usando
nossa voz e nossa gramática; o lobo e o cordeiro, o corvo e a raposa são
seres humanos que Esopo e La Fontaine disfarçaram para melhor criticar
nossos costumes. A própria mitologia grega, tão rica em prodígios, tem
raríssimos bichos falantes. O mais famoso foi Xanto, um dos cavalos de
Aquiles, que resolveu tomar a palavra para avisar que em breve seu dono ia
morrer – manifestação tão incomum que os deuses imediatamente o
emudeceram, para que não esquecesse que aos animais não foi dado o dom
de falar.
Conosco é diferente; podemos conversar com eles. Certos animais – o
cavalo, o gato e, acima de tudo, o cachorro – terminaram se tornando
nossos parceiros e con identes. Contrastando com a efêmera e frágil
natureza das relações humanas, eles oferecem – especialmente o cão – o
tesouro de uma devoção completa, de um vínculo que só se romperá
quando morrer um de nós, e por isso os elegemos como o ouvido ideal para
as mais íntimas re lexões. Não é um diálogo entre as espécies: ao falar com
meu cachorro, é comigo mesmo que eu falo. Há quem a irme que ele pode
me entender, mas, mesmo que o faça, sei que guardará para sempre um
discretíssimo silêncio.
Pois no livro Amazing Dogs, lançado este ano, o professor Jan
Bondeson descreve a delirante experiência da Tier-Sprechschule, criada na
Alemanha entre-guerras, que “ensinava” os cachorros a falar. Dizem que
um desses “alunos” articulava claramente “Mein Führer”, enquanto outro,
que usava as patas para indicar o alfabeto, confessava seu desprezo pelos
franceses. Hitler e muitos de seus cientistas apoiaram a pesquisa com

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entusiasmo, pois o ideário nazista considerava fundamental a integração


do homem com a natureza, especialmente com os animais. “E onde ica a
moral da fábula?” – pergunta Gaudí, meu pequeno shih-tzu – “Por acaso a
adesão daqueles homens maus tornou menos nobre a nossa causa?”. É
claro que não, inquieta criatura. O problema é bem outro: enquanto os
nazis abarrotavam os trens da morte com o povo judeu, não houve dia em
que a imprensa alemã não manifestasse sua grande preocupação com o
destino dos cães abandonados por aquela gente toda...

agosto•2021
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Assim como Esopo usava histórias de animais para re letir sobre a


natureza humana, muitos escritores antigos se dedicaram, com a mesma
intenção educativa, a colecionar passagens da vida de personagens
famosos. Aeliano, por exemplo, nos conta que Hanon, o cartaginês,
inconformado de se ver preso aos limites a que nos submetemos todos nós,
simples mortais, encerrou num viveiro um grande número de pássaros que
imitam a voz humana e os treinou a dizer uma só frase, em alto e bom tom:
“Hanon é um deus!”. Satisfeito, libertou-os em diversos pontos do reino,
crente que a força desse testemunho acabaria convencendo todos os seus
súditos – mas os pássaros, mal alçaram voo para a liberdade, voltaram a
piar com a voz natural de sua espécie, esquecendo para sempre o nome
daquele vaidoso.
Ateneu, outro desses cronistas de costumes, imortalizou a loucura de
Menécrates, médico da corte do rei Filipe da Macedônia. Considerado por
todos um excelente pro issional, deixou a fama e o renome subirem-lhe de
tal maneira à cabeça que acabou mergulhando num singular delírio de
grandeza. Como assegurava a vida de seus pacientes, sentiu-se merecedor
do mesmo tratamento que os próprios deuses recebiam – sacri ícios,
libações, preces e procissões –, e começou a se apresentar como o próprio
Zeus em pessoa, exigindo que todos o tratassem como o senhor supremo
do Olimpo. Os portadores de epilepsia tinham de assinar um contrato em
que se obrigavam, em caso de cura, a servi-lo como escravos em suas
fantasias. Vestia-os então como Apolo, Hércules ou Hermes e des ilava pela
cidade com seu manto púrpura e sua coroa de ouro, seguido por aquele
obediente cortejo de deuses e semideuses.
Um dia, no auge da loucura, escreveu a Filipe uma carta em que
deixava clara a diferença entre os dois: “Zeus Menécrates a Filipe:
saudações. Tu és o rei da Macedônia, mas eu sou rei da Medicina. Tens o
poder de tirar a vida de qualquer um, mas só eu tenho o poder de salvar os
doentes e permitir que tenham uma vida mais longa e saudável. Por isso, os
macedônios apenas te respeitam, mas a mim eles veneram, porque sou eu,
Zeus, que lhes garanto a própria vida”. Filipe, que não era de muita
conversa, limitou-se a responder: “Filipe a Menécrates: vai te tratar!”.
Para completar a lição, o rei convidou o médico para um magní ico
banquete, durante o qual desferiu um derradeiro golpe naquela vaidade

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desmedida: enquanto aos demais convidados eram oferecidos pratos


requintadíssimos, ele recebia apenas a fumaça perfumada do incenso, pois
– como lhe explicou Filipe – os deuses não pertencem a este mundo e não
devem, portanto, conhecer esta fraqueza tão humana a que chamamos
“fome”. Menécrates então deixou para sempre a cidade – envergonhado,
quem sabe, ou, como dizem uns, indignado pelo sacrilégio cometido contra
sua divina pessoa.

agosto•2021
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X A

Talvez por conhecer muito bem a natureza humana, os gregos nunca


deixaram de condenar qualquer tipo de excesso; sua literatura e sua
mitologia estão repletas de reis e de heróis que foram punidos por
ultrapassar os devidos limites no trato com os deuses e com seus
semelhantes. Todos esses infelizes cometeram o mesmo crime:
embriagados pelo poder, romperam o equilíbrio natural das coisas com sua
desmedida (assim os gregos chamavam essa perigosa loucura) e atraíram
sobre sua cabeça o castigo inexorável das forças superiores que regem o
universo.
Pois uma estranha notícia que nos chega da Venezuela sugere que
Hugo Chávez faz pouco caso dos clássicos: neste inverno, numa noite de
julho, diante das câmeras da TV estatal, técnicos e funcionários do governo
abriram o sarcófago de Simón Bolívar, o libertador das Américas. Falecido
em 1830, o herói descansava no Panteão Nacional, em Caracas, onde
estaria até agora se Chávez não o tivesse exumado para, segundo ele,
determinar seu DNA e investigar a verdadeira causa de sua morte. A cena é
macabra e constrangedora: ao som do hino nacional, os peritos tiram a
tampa do caixão e vão removendo o invólucro de chumbo; aos poucos,
exposto à luz, aparece o esqueleto do libertador, com aquela expressão
atônita dos que já conheceram os segredos da morte. No áudio, Chávez diz
– entre a metáfora e o delírio – que recebeu, no fundo da alma, a
con irmação do próprio Bolívar: “Sim, sou eu!”. Agradecido pela frase
ambígua, o presidente, então, promete ao pai da pátria um novo panteão e
um ataúde de ouro. “De ouro!”, repete, com o dedo levantado...
Por atravessar esse limite entre os dois mundos, Cambises, rei da
Pérsia, enlouqueceu. “Ele abriu tumbas antigas e contemplou os mortos!”,
diz, com espanto, o historiador Heródoto. Xerxes, também persa,
mergulhou no mesmo abismo: ao profanar o túmulo de Belos, encontrou o
corpo num caixão de vidro, mergulhado em óleo aromático. Ao lado, uma
coluna ostentava um terrível aviso: “Ai daquele que, tendo aberto este
túmulo, não encher todo o caixão!”. Como faltava mais ou menos um palmo
de óleo para atingir a borda, Xerxes, apavorado, mandou que o
completassem; no entanto, por mais óleo que vertessem, o nível não se
alterou nem um centímetro. Vendo a inutilidade de seus esforços, Xerxes
desistiu, mandou fechar o túmulo e se foi, extremamente preocupado. A

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predição logo se cumpriu: Xerxes marchou contra os gregos à frente de um


gigantesco exército, mas foi derrotado sem glória; ao voltar, veio terminar
seus dias da forma mais miserável, assassinado, enquanto dormia, pelo
próprio ilho. Muitos reis aproveitaram a lição e contentaram-se em
mandar nos vivos, o que já não era pouco. Os mortos, esses, eles deixaram
em paz.

agosto•2021
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Quando eu era menino de escola, as aulas de História me ofereciam um


animado cortejo de execuções, assassinatos e outras barbaridades – dos
cristãos no Coliseu à fogueira da Inquisição, da guilhotina de Paris ao
esquartejamento de Tiradentes. O passado me parecia cruel, mas
fascinante e simples de entender, já que tudo se dividia em apenas duas
categorias: havia os bons e os maus, a recompensa e o castigo.
Quando estudei a democracia de Atenas, ouvi falar pela primeira vez
do ostracismo, castigo que não mereceu a minha a atenção por não ter
sangue nem morte. Os atenienses escreviam em pequenos cacos de
cerâmica – os óstracos – o nome da pessoa que desejavam punir, e o
condenado, em vez de ser executado, devia apenas cumprir um exílio de
dez anos, ao cabo dos quais poderia voltar. Que graça tinha isso?
Só muito mais tarde, lendo Plutarco, entendi que o ostracismo não
era a punição por alguma falta ou crime, mas sim o rebaixamento de um
homem cuja importância e in luência o faziam destacar-se entre os seus
pares. O banido pagava por suas qualidades, pois sua a culpa era ter fama
demais, talento demais, ou sucesso demais. Alegava-se que o exílio destes
homens era uma segurança para a democracia – mas, no fundo, como diz
Plutarco, era apenas uma satisfação concedida aos invejosos.
Este foi o destino de Aristides, chamado “o Justo”, que teve um grande
papel na guerra contra os persas. Honesto como ninguém, dedicou sua vida
a aumentar o renome de Atenas, sem buscar riqueza ou glória pessoal. Ora,
o povo não podia tolerar tamanha perfeição, e logo surgiu o rumor de que
ele tinha icado importante demais; foi o que bastou para que os atenienses
votassem então seu ostracismo – segundo Plutarco, disfarçando, com o
pretexto de evitar a tirania, a verdadeira inveja que o seu nome inspirava.
Na hora de votar, dizem que um lavrador, humilde e analfabeto, estando
perto de Aristides, pediu-lhe que escrevesse “Aristides” em seu voto. “E por
quê? Este homem já fez algum dano ao amigo?”, perguntou Aristides,
espantado. “Nada”, respondeu o rústico, “e eu sequer o conheço – mas não
aguento mais ouvir chamá-lo de justo!”.
Aristides nada mais disse, porque amava a democracia; escreveu seu
próprio nome no óstraco e o devolveu ao camponês. No caminho para o
exílio, no entanto, deve ter pensado amargamente na história de Periandro,
rei de Corinto, que foi perguntar a Dênis, o duro tirano de Siracusa, qual a

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melhor maneira de se conservar no poder. Dênis levou-o para um passeio


no campo e, enquanto andavam, ia cortando, com golpes de seu bastão,
todas as espigas que sobressaíam das demais. O recado era claro: eliminar
todos os cidadãos de destaque também era, por ironia, a grande arma dos
tiranos.

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