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ALBERTO DA COSTA E SILVA

ar

A Africa
e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

A
A gir
O u tros títu lo s da coleção:

O racismo explicado aos meus filhos, de Nei Lopes


A história do Brasil explicada aos meus filhos, de Isabel Lustosa
A Idade Média explicada aos meus filhos, de Jacques Le Goff
O século X X explicado aos meus filhos, de Marc Ferro
O teatro explicado aos meus filhos, de Barbara Heliodora
O título deste livro deveria ser A África explicada aos filhos dos
meus filhos. Aos meus netos, portanto. A Isabel, primeira e única,
a Bruno, Antônio Pedro, Alberto, João Marcelo, Miguel e Filipe,
que pedirão a seus pais que continuem com essas conversas e
lhes contem as suas experiências africanas, para acrescentar gra-
ça e cor ao que aqui vai escrito.
C opyright © 2 0 0 8 por Alberto da Costa e Silva

PROJETO GRÁFICO E CAPA


Mariana Newlands

ASSISTENTE DE DESIGN
Amanda Newlands

COPIDESQUE
Rebeca Bolite

REVISÃO
Tais Monteiro
Damião Nascimento

PRODUÇÃO EDITORIAL
Juliana Romeiro

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

S$7 Sa Silva, Alberto da Costa e, 1 9 3 1 -


A África explicada aos meus filhos j Alberto da Costa e Silva.
— Rio de Janeiro: Agir, 2 0 0 8 .
(Explicado aos meus filhos}

ISBN 978 -8 5 2 2 0 -0 8 9 7 -1‫־‬

x. África — História — Literatura infanto-juvenil. I. Título.


II. Série.
CDD: 9 6 0
0 8-2 8 0 0 CDU: 9 4 (6 )

08 09 10 11 12 ~~ ” ~ 8 7 6 5 4 3 2 1

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Agi r
Todos os direitos reservados à
AGIR EDITORA LTDA. — Uma empresa Ediouro Publicações S.A.
Rua Nova Jerusalém, 345 — CEP 21042235‫ — ־‬Bonsucesso — Rio de Janeiro — RJ
TeL: (21) 3882-8200 fax: (21) 3882-8212/8313
P r im e ir a conversa, 9

Segunda conversa , 21

Terceira conversa, 35

Q uarta conversa, 53

Q uinta conversa, 67

Sexta conversa, S3

Sétima conversa, 101

O itava conversa, 115

Nona conversa , 133

D écima conversa, 147

Leituras complementares, 158


Primeira conversa
N o s film e s , n a s histórias e m q u a d rin h o s, nos seriados de T V e
nos rom ances, a Á fric a é sem pre u m co n tin e n te m isterioso e m ágico,

onde são possíveis todas as a v e n tu ra s . A im a g e m q ue nos tra n sm ite m

d ia ria m e n te os jo r n a is e 0$ noticiários de rádio e televisão é outra: a


de u m a p a rte do m u n d o assolada p o r secas , fo m e s, epidem ias, guer-

ras e tira n o s .
Uma visão não desmente a outra, e ambas são incompletas.
Se uma região da África foi atacada por nuvens de gafanhotos
que devoraram todas as plantações, e nela há fome, nas outras a
colheita se fez normalmente, os celeiros estão repletos e há abun-
dância de comida. Se em determinado lugar há uma feroz luta
armada, noutros as crianças vão regularmente à escola, de roupa
limpa e sapatos lustrados. E a vida familiar transcorre normal-
mente, sem faltar alegria. Todos trabalham e produzem.
A África é um continente enorme, com uma grande diversi-
dade geográfica. Nela há de tudo: altas montanhas — algumas,
como Kilimanjaro, com os picos permanentemente cobertos de
neve; grandes desertos, como 0 Saara; florestas que parecem
sem fim, como a do Congo; grandes extensões de matas baixas e
de estepes (nome que se dá a áreas cobertas por capim e outras
plantas rasteiras); e zonas que estão sempre alagadas. Cerca de
metade do continente é formada, porém, por savanas, uma pai-
A l b e r t o da Cost a e Si l v a υ

mais belo e ágil do que o outro: o elande, o cudo, a impala, a pa-


lanca, o gnu, 0 sim-sim, 0 inhacoso, o guelengue e as numerosas
espécies de gazelas. São muitas, m u itíssim aÇ as^^ ^è n tre elas
se destacando a avestruz,^_a cegonha, o flamingo, 0 pelicano e
a águia-pesqueira. Mas floresta d o s grandes animais são menos
numerosos: a pantera, 0 crocodilo, 0 porco selvagem, 0 gorila e 0
chimpanzé. Nelas, predominam osjgássaros, os répteis, os peque-
nos mamíferos que vivem em árvores, os insetos e os vermes.

M a$ os film e s não m o stra m na s florestas a n im a is enorm es, com o

0 elefante e 0 h ipopótam o?
É verdade. O elefante vive tanto na floresta quanto nas sava-
nas. E 0 hipopótamo, onde haja rios e lagoas. A crescente deman-
da por marfim na Ásia e na Europa, desde a Idade Média, reduziu
muito o número desses dois animais — 0 dente do hipopótamo
era tão apreciado quanto a presa do elefante —, sobretudo depois
da introdução das armas de fogo pelos europeus. A caça preda-
tória fez enormes estragos entre outros mamíferos, felizmente
hoje protegidos em grandes reservas onde só se permite 0 uso
das máquinas fotográficas e das filmadoras.

N a ín d ia , 0 elefante é usado no transporte e n a guerra. O m esm o


aconteceu n a Á frica ?
Que se saiba, somente na Antiguidade, em Cartago, Axum e
Méroe. Cartago disputou com Roma, nos séculos III e Π a.C., a
supremacia no Mediterrâneo. O reino de Axum, na atual Etiópia,
já era importante no primeiro século da era cristã, e 0 de Méroe,
onde hoje é a República do Sudão, desde 0 século III. Mas nem a
12 A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

sagem na qual o relvado é interrompido por árvores baixas afas-


tadas umas das outras. Numa região, faz frio na maior parte do
ano. Noutra, predomina o calor úmido. E noutras, ainda, 0 calor
seco ou a absoluta falta de umidade característica do deserto. Nas
regiões costeiras do norte do continente e na parte meridional da
África do Sul, 0 clima é temperado, com as quatro estações bem
definidas, como na Europa.
Por quase todo lado, a ação do homem, durante séculos, al-
terou a paisagem, com roças e plantações, o pastoreio do gado,
caminhos, aldeias e cidades. E também com vegetais trazidos de
outros continentes. Da Ásia vieram o limão, a berinjela, a manga,
a cana-de-açúcar e a cebola. Das Américas, sobretudo do Brasil, a
mandioca, 0 milho, a batata-doce, o amendoim, o caju e 0 ananás.
O milho e a mandioca difundiram-se de tal modo que competem,
em muitos lugares, com os alimentos básicos tradicionais, como
o arroz nas duas Guinés, o sorgo e os diferentes tipos de painço
ou milhete nas regiões de savana, 0 inhame na Nigéria, ou a ba-
nana em Uganda.

N o e n ta n to , a p rim e ira im a g em que nos v em à m en te, q u a n d o

fa la m o s de Á frica , é a de u m a flo resta escura, que a lu z do sol n ã o


atravessa, e cheia de insetos e de a n im a is perigosos.

Que não deixam de existir. A fauna africana é, aliás, riquíssi-


ma. Em nenhum outro continente há tantas espécies de grandes
animais e em tão considerável número, mas é nas savanas que a
maior parte deles se encontra. Lá vivem os grandes mamíferos:
0 leão, 0 leopardo, o guepardo ou chita, a hiena, o rinoceronte, a
zebra, a girafa, 0 búfalo e os vários tipos de antílopes, cada qual
14 A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

índia, nem Cartago, nemAxum, nem Méroe domesticaram o ele-


fante, pois este não era gerado nem criado em cativeiro. O animal
era capturado ainda jovem, domado e treinado.
^ De forma permanente, a África só domesticou dois de seus ani-
mais nativos: a galinha-d’angola (pintada ou capote) e 0 jumento
— este, no Egito. Recebeu da Ásia os animais que o hom em pôs a
seu serviço: o boi, o carneiro, o cavalo, o camelo, o porco, a cabra.
Não conseguiu, para ficar num exemplo, selar a zebra ou atrelá-la
a um carro. Os europeus tentaram fazer isso no século XIX, e foi
um malogro completo: a zebra revelou-se não só indomesticávei,
mas também indomável, como, de resto, os outros mamíferos do
continente — até mesmo o íbex, uma espécie de cabra selvagem
existente na Etiópia. Os africanos conseguiram, é certo, ter animais
selvagens em cativeiro e até criá-los e amansá-los. Os neguses ou
reis da Abissínia ou Etiópia, até quase os nossos dias, criavam
ledes para exibi-los como símbolo de poder. O rei etíope, nas gran-
des cerimônias, apresentava-se aos seus súditos e aos emissários
estrangeiros ladeado por dois leões seguros por serviçais.

E u estudei as c h a m a d a s G uerras P únícas n a escola, N u n c a , po-


rém , p ensei em Cartago com o u m a p o tên cia africana, e sim , com o u m
p a is criado pelos fe n ic io s no m a r M editerrâneo,

Começou, de fato, como uma colônia fenícia, e era movida


por seus interesses no Mediterrâneo, mas ficava na África. Na
África do Norte. Para ser mais preciso, próxima à atual cidade de
Túnis, naquela faixa de terras férteis e de clima temperado que se
estende do Marrocos ao canal de Suez e está separada do resto da
África pelo deserto do Saara.
A l b e r t 0 da Cost a e S i l v a ÍJ

Esse deserto só passou a ser atravessado regularmente pelos


homens depois que os seus habitantes, os berberes, começaram a
utilizar o camelo, nos primeiros séculos da era cristã. Veloz, capaz
de ficar sem água durante dez a 15 dias, com cascos esparramados
que pisam bem tanto a areia fofa quanto 0 chão de pedra do deser-
to, podendo suportar cargas de 150 a 200 quilos, 0 camelo de uma
só corcova ou dromedário deu às tribos do deserto a possibilidade
de fazer o comércio entre as duas margens do Saara e de controlar
militarmente os oásis, os poços, as pastagens ralas, as minas de
sal e as rotas que percorreríam as caravanas. Estas eram poucas
e não chegavam a aproximar permanentemente as duas margens
do deserto. Por isso, aquela parte do mundo que os árabes viríam
a chamar de Bilad al-Sudan, ou Terra dos Negros, continuou por
muito tempo quase isolada do norte do continente. E será essa
África ao sul do Saara o tema de nossas conversas.

O rio Nilo não contribuiu para aproximar a África do Norte do


resto do continente? Não fo i uma espécie de corredor ?
Certamente, foi. Mas — atenção! — não era um caminho nada
fácil, pois é interrompido seis vezes por grandes cataratas. E mais
ao sul, há outro sério obstáculo à navegação. Onde o Bahr-el-Ghazal
ou ‫״‬rio das Gazelas‫״‬, proveniente do oeste, se junta ao chamado
Nilo das Montanhas, que desce dos Grandes Lagos, para formar
0 Nilo Branco, estende-se 0 chamado Sudd. A palavra Sudd sig-
nifica “barragem” e se aplica a uma vasta área coberta por uma
vegetação flutuante que muda constantemente de formato e é tão
densa que as canoas só passam por ela com enorme esforço de
seus tripulantes.
16 A A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

Apesar dessas dificuldades, houve, desde os tempos mais an-


figos, contatos, ao longo do Nilo e de seus afluentes, entre os
egípcios e os povos vizinhos, sendo muitas vezes difícil dizer se
determinado costume, idéia ou objeto se difundiu do Egito para
outras partes da África ou se teve origem ao sul do Saara e dali se
propagou para o país dos faraós.

Os africanos que viv e m ao norte do S a a ra são diferentes dos que


viv e m ao sul?

Os que vivem ao norte são predominantemente brancos, e os


que vivem ao sul, negros. Mas estes também são diversos entre
si. Um amara da Etiópia é tão distinto de um ambundo de Angola
quanto, na Europa, um escandinavo de um andaluz. E um jalofo
do Senegal é diferente de um xona de Zimbabué como um russo
de um siciliano.
Na região meridional do continente, há um complicador: os
chamados coissãs, que compreendem os bosquímanos e os ho-
tentotes. São povos baixos, pardo-amarelados, com face e nariz
achatados, olhos estreitos como os dos chineses, cabelos que de
tão encarapinhados mais parecem um gorro feito com grãos de
pimenta-do-reino, e falam línguas que possuem cliques ou esta-
lidos com valor de consoantes. Os coissãs ocupavam, no passado,
a maior parte do sul da África, mas foram sendo expulsos para
as áreas semidesérticas e desérticas, primeiro pelos negros e, de-
pois, pelos coloniz.adQr.es..hxancos.
A África é riquíssima de línguas e culturas. Falam-se no con-
tinente mais de mil idiomas. Mais de dois mil, segundo alguns
estudiosos. Algumas dessas línguas, como 0 hauçá e 0 suaíli, são
A l b e r t o do Costa e S i l v a 17

faladas por dezenas de milhões de pessoas e numa área geográ-


fica bem extensa. Outras, por uns poucos milhares. Numa área
onde predomina determinado idioma, pode haver pequenos boi-
soes de outro. Ou de outros. Muitas vezes dois grupos vizinhos se
expressam em línguas inteiramente diferentes. E podem ter valo-
res e maneiras de viver também distintos. Ou, ao mesmo tempo,
semelhantes e diferentes. Ou até conflitantes.

Você pode nos d a r um exem plo?


Posso. À mais oriental das cidadezinhas iorubás fica a pouco
mais de uma centena de quilômetros da mais ocidental das al-
deias ibos, na Nigéria. Entre os iorubás, 0 nascimento de gêmeos
é celebrado como um acontecimento positivo e a mãe é tida como
favorecida pelas divindades. Já entre os ibos, os gêmeos eram,
no passado, considerados uma abominação e abandonados na
floresta, enquanto a mãe tinha de se submeter a cerimônias de
purificação. E não param aí as oposições e as dessemelhanças
entre os dois povos. No plano político, enquanto os iorubás se
organizavam em cidades-estados, com um rei sagrado, entre os
ibos predominava a ausência de Estado, com as comunidades re-
gidas pelos conselhos de anciões.
Não só as culturas diferem de povo para povo, como se fo-
ram modificando ao longo dos séculos. Há, contudo, certos tra-
ços comuns a todas elas, de modo que se pode falar de um a
cultura africana como nos referimos a uma cultura européia,
ainda que sejam tão distintos os modos de vida em Portugal e
na Finlândia.
18 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

N ã o são ta m b é m diferentes os costum es dos pastores e os dos agri-


cultores?

Claro que sim. Alguns povos africanos, como os pigmeus das


florestas do Congo e os sãs ou bosquímanos das áreas semi-ári-
das da Africa do Sul, vivem da caça e da coleta de raízes, frutas e
mel. Outros, como os cóis ou hotentotes, os íulas e os massais,
da criação de gado. A maioria retira o sustento do cultivo da terra.
Mas os pastores, enquanto conduzem o gado de uma pastagem
para outra, colhem os frutos das árvores e 0 mel das colmeias
que encontram no caminlio, e suas mulheres podem cultivar ce-
reais em pequenos roçados. Os lavradores não só pescam, caçam
e recolhem o que lhes dá naturalmente a terra, como também
podem possuir cabras, ovelhas e bois.

P rovavelm ente , h a via ta m b é m u m a grande diversidade de organi-

zações políticas n a Á fric a .

É verdade. Alguns estados estendiam-se por amplos territó-


rios e eram formados por várias nações, sob 0 comando de uma
delas — e a esses estados chamamos impérios. Havia reinos me-
nores, com uma ou mais nações. E outros ainda menores, que
podemos comparar às cidades-estados da Grécia antiga. Essas
várias entidades políticas eram compostas geralmente de uma
família real, ou de duas ou mais famílias reais que se revezavam
no poder ou o disputavam pelo voto ou pelas armas. O rei coman-
dava uma nobreza privilegiada e com essa minoria compartia o
mando sobre os homens comuns e os escravos.
Em algumas sociedades, os ferreiros, os ourives, os escultores,
as oleiras e os bardos formavam castas profissionais. Chamamos
A l b e r t o da Co if a e Si l va 19

esses grupos de castas porque seus membros se casavam entre


si e eram desprezados pelas demais pessoas. Eram desprezados
mas, ao mesmo tempo, temidos, porque tinham o poder de alte-
rar a natureza. Os ferreiros transformavam o minério em facas,
pontas de lança e enxadas. Os escultores cortavam num pedaço
de madeira a imagem de um ancestral As oleiras faziam com 0
barro potes e gamelas. E os bardos, dielís ou gríots, que eram mú-
sicos, poetas e historiadores, davam uma função nova às palavras
quando compunham versos.

M a s h a v ia povos , com o 0$ ibos, que, com o você disse , n ã o p o s-


s u ía m reis ...
Nem reis, nem chefes permanentes, nem o que chamamos
de estados. A unidade social era a aldeia ou um pequeno agra-
pamento de aldeias, onde as decisões eram tomadas por um
conselho dos chefes das famílias que ali viviam e impostas, em
muitos casos, pelas associações de poder (as chamadas socieda-
des secretas), cujos membros usavam máscaras assustadoras e
mantinham a ordem, castigando os que se desviavam das nor-
mas costumeiras.
A maioria das sociedades africanas era altamente hierarquiza-
da. Nobres, plebeus, estrangeiros, escravos, homens e mulheres,
cada qual conhecia o seu lugar — nele ficavam desde 0 nasci-
mento e, em muitos povos, até após a morte, pois, de acordo com
suas crenças, o morto, se era aristocrata, continuava, no além,
aristocrata, e o escravo, escravo. Mas havia também sociedades
que se regiam pelo mérito, nas quais o poder do sangue se res-
tringía às estirpes reais, e tanto um plebeu quanto um escravo
20 A A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

podiam ascender às mais altas funções do estado, à fama e à opu~


lência. Em outras, era a riqueza que determinava a posição social
de cada indivíduo. E em outras, ainda, não havia diferenças, só se
distinguindo dos demais os idosos que formavam o conselho dos
anciões e, em caso de guerra, momentaneamente, aqueles tidos
por mais capazes para conduzir a luta.
Segunda conversa
Ontem estávamos falando das organizações políticas africanas.
Quando surgiram os primeiros reinos na Áfnca?
Não sabemos. Há mais de 5 mil anos, com certeza, pois data
dessa época a união dos dois grandes estados que havia no Egi-
to. Por volta de 2000 a.C., os egípcios se referiam ao reino
de Cuxe, na Núbia. E o reino de Axum já existia no primei-
ro século da era cristã. Não só os reinos surgiram muito cedo
na África, como alguns deles perduraram durante séculos.
Pode-se escrever uma história política com duração de muitos
séculos não só do Egito, mas também de outros países. A da
Etiópia, por exemplo, alonga-se desde Axum até a atual repú-
blica, com um a única interrupção da independência, durante
0 domínio colonial da Itália, que durou apenas cerca de cinco
anos, de 1936 a 1941. O reino do Benim, que ainda hoje existe,
integrado à Nigéria, tem mais de oito séculos de existência.
Assim como os emirados de Kano, Zária e Katsina, também na
Nigéria. Zanzibar foi um estado independente durante mais de
700 anos. Já outros, embora tenham sido poderosos, tiveram
pouca duração: o reino angúni de Gaza, em Moçambique, du-
rou pouco mais de 60 anos, e 0 sultanato fula de Macina, no
atual Mali, apenas 44.
Μ A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

Desses estados antigos, quais fo r a m os m a is fa m o so s?


Os que mais alimentaram a imaginação dos árabes e, mais
tarde, dos europeus foram Gana e Mali.

Esses âoís países n ã o existem a té hoje ?


Não são os mesmos, embora 0 antigo Mali se localizasse em
parte na atual República do Mali. O antigo reino de Gana tinha 0
seu núcleo provavelmente no sudeste da atual Mauritânia.
Quando a colônia britânica Costa do Ouro, que assim se cha-
mava porque era produtora desse metal, ficou independente,
em 1957, já adotara como novo nome o de Gana, carregado de
simbologia e prestígio, pois era o nome de um reino que entrou
na história como grande fonte de ouro. O Sudão francês tam-
bém foi buscar no passado o seu novo nome, Mali. Com isso,
esses estados recém-independentes procuravam mostrar que a
África tinha uma longa história, que 0 colonialismo procurara
negar ou esquecer.

Q u a n d o ex istiu 0 reino de G a n a ?
Gana aparece pela primeira vez num texto árabe do século
VIII, como o país do ouro. E é a abundância desse metal que fica
na nossa memória quando lemos a descrição do rei e de sua cor-
te, feita no século XI por Al-Bakri, outro árabe, natural de Córdo-
va, na Andaluzia. O soberano vestia uma ampla túnica e tinha na
cabeça um turbante encimado por um gorro bordado em ouro.
Trazia colares e pulseiras também de ouro. Atrás dele ficavam
dez escravos, com espadas e escudos ornamentados de ouro. De
ouro eram os arreios dos cavalos do rei. E as coleiras dos cachor-
A l b e r t 0 da Cost a t St i ua 25

ros. Conta mais Al-Bakri: que o rei amarrava um de seus corcéis


a uma pedra de ouro que pesava 14 quilos.
A mesma pedra de ouro vai reaparecer bem mais ao sul, no
alto rio Niger, na corte do rei do Mali. O grande viajante Ibn Ba-
tuta, que andou por aquelas terras entre 1352 e 1353, viu esse rei,
que tinha o título de m a n sa , dar audiência a seus súditos, de man-
to vermelho e gorro bordado em ouro, sentado em almofadas,
sob um grande guarda-sol encimado por um grande pássaro de
ouro. Estava cercado por seus chefes militares, com espadas e
lanças de ouro.
O relato de Ibn Batuta apenas confirmava 0 que já corria 0
mundo árabe e até a Europa cristã: que 0 Mali era um reino riquís-
simo em ouro. Isso ficara claro para os egípcios durante a passa-
gem pelo Cairo do m a n sa de nome Musa, em 1324. Ele entrou na
cidade a cavalo, precedido por 500 escravos, cada um deles com
um bastão de ouro. E gastou tanto, durante sua estada, sempre
pagando em ouro, que este perdeu valor. Num mapa-múndi dese-
nhado na ilha Maiorca, em 1375, por Abraão Cresques, o rei negro
aparece vestido à européia, com cetro e coroa, a oferecer com a
mão direita uma grande pepita de ouro a um berbere a camelo.

N ã o h a via u m pouco de exagero nesses relatos?


Talvez. Talvez os reis de Gana e do Mali não amarrassem o
cavalo numa grande pedra de ouro. Mas o fato é que a região da
África onde ficavam aqueles países foi, durante vários séculos,
até a descoberta do metal nas Américas, a grande fornecedora
de ouro ao mundo árabe e à Europa. Era para adquirir ouro que
as cáfilas, ou caravanas de camelos, atravessavam o Saara. E era
26 A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i í h o s

com ouro africano que se cunhavam moedas na Europa e no


Oriente Médio.

E de onde se tirava esse o u ro ?


De vários lugares. No caso do ouro que se comerciava em
Gana e no Mali, sobretudo de Bambuk, na forquilha formada
pelo encontro dos rios Falemé e Senegal, e de Buré, no alto Niger.
O ouro era obtido tanto no leito dos rios, pelo sistema de lavagem
na bateia, quanto em minas. Cavavam-se poços quadrados, com
uma profundidade que podia chegar a 20 metros. À medida que
a escavação descia, suas paredes iam sendo reforçadas por vigas
de madeira. Numa delas havia uma espécie de escada, por onde
desciam e subiam os mineiros. Estes cavavam túneis horizontais
em várias direções e uniam os poços entre si.
Não só nesses dois lugares se produzia ouro. A Núbia abas-
tecia o Egito desde o século XVI a.C. Do planalto de Zimbabué
descia até o porto de Sofala 0 ouro com que se cunhavam as mo-
edas no Índico. O ouro viajava enormes distancias — de Lobi e
do país axante, na atual República de Gana, ou de Zamfara, no
norte da Nigéria, até Tombuctu, na curva do rio Niger —, levado
pelos mercadores em pequenos saquinhos e até mesmo, quando
em forma de pó, dentro do pequeno tubo que existe nas penas
dos pássaros.

Pelo que nos disse, os africanos d o m in a v a m as técnicas de m ine-


ração do ouro.
E muitas outras técnicas. Como as agrícolas, por exemplo.
Num continente de solos em geral pobres e com chuvas escassas
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 2‫ך‬

e mal distribuídas, os africanos foram obrigados a desenvolver


práticas agrícolas complexas. Muitos povos conheciam as técni-
cas da irrigação, da rotação de plantios, da adubagem com esterco
animal e restos de cozinha, da construção de socalcos ou platafor-
mas nas encostas das montanhas, a fim de impedir a erosão do
solo e ali plantar. Misturavam também, na mesma gleba, diferen-
tes tipos de plantas, para assegurar a colheita de pelo menos uma
delas. Assim, se 0 ano fosse mal para o painço, podia ser bom ou
razoável para 0 sorgo ou o milho.

N a d a disso co m b in a , p o ré m , com a$ idéias p re d o m in a n te s sobre

os africanos do passado, e a té m esm o do presente. A im a g em que nos

p a ssa m deles é de selvagería e atraso .

Mas, vejam. Quando portugueses e outros europeus come-


çaram, no século XV, a descer a costa africana, não predomina-
va neles a impressão de que entravam em contato com povos
primitivos e atrasados. Estranhavam os costumes dos negros,
mas não os olhavam com desprezo. Lastimavam que. deseonhe-
cessem a verdadeira fé, mas só se consideravam superiores por
serem cristãos.
Um visitante holandês do século XVII não escondeu a sua
admiração por Benim, uma cidade enorme, cortada por uma lon-
ga avenida, que lhe parecia mais larga do que a principal rua de
Amsterdã. Bem antes dele, os portugueses espantaram-se com
o tamanho de Ijebu-Ode e, mais ainda, com a sua muralha, que
em alguns pontos alcançava os sete metros de altura e tinha qua-
se r30 quilômetros de comprimento. Vasco da Gama, ao chegar
28 A A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

à costa oriental da África, encontrou portos cheios de navios e


de comerciantes de todas as partes do oceano Índico, bem como
cidades com casas parecidíssimas com as dos Algarves, em Por-
tugal: com terraços, de pedra e cal, e pintadas inteiramente de
branco. Para muitos marinheiros ingleses, já no século XVIÍI,
as habitações de barro socado e cobertura de palha que encon-
travam em Serra Leoa não eram piores do que as que conheciam
nas áreas rurais de sua terra.
Ao chegarem à África, os portugueses logo reconheceram,
por exemplo, a excelência do ferro que ali se produzia. Tanto que
o adquiriam para revendê-lo na índia.
Desde pelo menos 600 a.C, a África conhecia a metalurgia
do ferro. Os nativos adotavam uma técnica de pré-aquecimento
dos fomos (que só seria desenvolvida na Europa no século XIX),
que lhes permitia obter um ferro, e também um aço, de alta qua-
Made, comparável, e até superior, em alguns casos, ao que saía
das usinas européias. O produto africano apresentava, contudo,
uma desvantagem, que derivava da dimensão dos seus fomos:
suas barras eram pequenas. Por isso, na forja, os africanos fa-
ziam enxadas e facas, mas não grandes espadas. Nem capacetes.
Nem couraças.
Problema semelhante se passava com a manufatura têxtil.

Como a ssim ?
Os tecelões africanos produziam panos de algodão de ótima
qualidade, que desde 0 século XII eram exportados para a Europa
e, a partir do século XVI, para 0 Brasil — os famosos panos-da-
A l b e r t o da Costa e Si l v a 29

costa —, mas, como os seus teares eram estreitos, deles só saíam


tiras de no máximo 25 centímetros de largura.
Em muitas regiões da África, não havia família sem tear.
Fiava-se e tecia-se em casa, na intimidade de um pátio prote-
gido por muro ou cerca. Num conjunto de habitações de uma
família, os teares podiam chegar a meia dúzia. O número era
ainda maior em oficinas, nas quais, como em Kano, no norte da
Nigéria, trabalhavam familiares e escravos, a fim de produzir
para 0 comércio.
Em certos lugares, homens e mulheres fiavam e teciam; nou-
tros, só as mulheres. E havia dois tipos básicos de tear: 0 horizon-
tal e o vertical. Eram muito simples — feitos com alguns paus
fincados no solo e algumas cordas —, nos quais, porém, se ob-
tinham tecidos fortes e requintados. As tiras estreitas que saíam
do tear eram cosidas umas às outras com tamanha habilidade
que, em muitos casos, a costura podia passar despercebida. Con-
feccionava-se, assim, um pano com cerca de um metro de largura
e muitos de comprimento.

Só se fia v a e tecia 0 algodão?

Na maioria das regiões, usava-se 0 algodão, mas em outras,


como no norte da Nigéria, entre os fidas e os hauçás, teciam-se
também as lãs de ovelha e de camelo, e, em outras, ainda, como
no Congo e em Angola, a ráfia. A fazenda de algodão era em ge-
ral branca, e depois tingida ou estampada, sendo muito popular
a de listras azuis e brancas. Faziam-se também panos entrete-
cendo-se fios de diferentes cores, para criar motivos decorativos
JO A A f r i c a e xp l i c a d a aos meus f i l h o s

padronizados. Os axantes da atual Gana, depois da chegada dos


europeus, passaram a desfiar os tecidos de seda que deles adqui-
riam, para juntá-los aos fios de algodão e tornar mais brilhantes
os seus panos com desenhos elaboradíssimos e multicoloridos.
Atualmente, usam-se carreteis de linha de seda comprados na
Europa e no Extremo Oriente.
O chamado ‫״‬pano de palha” ou de ráfia não era, em geral,
usado como peça de vestimenta na região do Congo e de Angola,
mas, sim, como moeda. Passava de mão em mão até se desgas-
tar e puir, perdendo progressivamente 0 valor. Entre esses panos
de ráfia, alguns, em forma de um grande lenço quadrado, com
cerca de 65 centímetros de lado, feitos no reino do Congo, eram
tao finos e bonitos que mais pareciam, aos olhos dos europeus,
brocado, damasco e seda acetinada.
Os tecidos recebiam com freqüência belos bordados, como
ocorria e ainda ocorre na Etiópia e entre os mandingas, os nupes
e os hauças, ou aplicações com imagens feitas de outras fazendas,
como no antigo reino do Daomé e na atual República do Benim.

Eles sabiam fimdir outros metais?

Claro. De ligas de cobre, homo o bronze e o latão, os seus


escultores fizeram peças de grande tamanho, criaram obras de
arte que figuram entre as mais belas já saídas das mãos dos
homens. E isto desde possivelmente 0 século XI, em Ifé e em
Igbo Ukwu, e desde 0 século XV no reino do Benim. Até hoje
ainda se fundem placas de bronze e esculturas no reino do Be-
nim (que fica na Nigéria e não deve ser confundido com a atual
República do Benim). Em várias regiões da Africa, fabricam-se
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 31

requintadas jóias de ouro e prata, entre as quais merecem des-


taque as produzidas pelos axantes.

E ntão, ρ ο τ volto de 1500, 0 Á fric a conhecia técnicos sem elhantes

às européias?
Só em alguns setores. A África ao sul do Saara ignorava as
engrenagens, que nos moinhos substituíam, multiplicando, a
força hum ana e foram responsáveis, a partir do século IX, por
um a verdadeira revolução na vida econômica européia. Des-
conhecia, para dar um outro exemplo, a roldana, que permitia
até mesmo a um menino magricela tirar água de um poço. E
não sabia da engrenagem e da roldana porque não inventara a
roda nem a recebera de outros povos. Nenhum tipo de carro
rodava na África subsaariana. Em algumas poucas regiões, ha-
via asnos e bois de carga, mas, na maior parte do continente, o
que não descia ou subia os rios em canoas era levado à cabeça
das mulheres. Tampouco existiam na África ao sul do Saara
instrumentos corriqueiros como o serrote, a plaina, 0 tomo, 0
parafuso.

M as tu d o isso n ã o era conhecido n a Á frica ao norte do S a a ra , no

Egito e ao redor do M editerrâneo?


Era. O m ar Mediterrâneo foi, desde 0 início da História que
conhecemos, uma região de intenso comércio, de intensas tro-
cas de bens, experiências, invenções e idéias. Estava ligado pe-
los navios e pelas caravanas ao resto da Europa e à Ásia. Recebia
novidades tanto das ilhas Britânicas quanto da China. O que se
inventava num a terra distante não demorava a chegar ali.
32 A A f r i c a e xp l i ca d a aos me us f i l h o s

Se a Á frica b a n h a d a pelo tn a r M editerrâneo conheceu todas essas


coisas, p o r que elas não atravessaram 0 deserto?

Talvez, como já disse na nossa primeira conversa, porque as


caravanas fossem poucas e não chegassem a aproximar perma-
nentemente as duas margens do deserto. De cada uma das ci-
dades do norte da África que comerciavam com 0 outro lado do
Saara — e estas>. em cada momento histórico, não somavam uma
dezena — saíam apenas uma ou duas cáfilas por ano. E havia
anos em que não saía nenhuma.
Os camelos atravessavam 0 deserto com sal, tecidos de lã e
de linho, espadas, contas de Veneza e de coral, objetos de cobre
e outros artigos de luxo. Excetuadas as barras de sal, todos eram
bens de pouco peso e de grande valor. Como os camelos não se
adaptavam à savana nem, muito menos, à floresta, esses produ-
tos trocavam de mãos na borda do deserto.
Os comerciantes que iam levá-los para a savana e para a flo-
resta não eram os mesmos que tinham atravessado o deserto.
Alguns deles, é bem verdade, eram provenientes da África do
Norte e até do Iraque e da Síria, que se haviam instalado no
B ila d a l-S u ã a n em busca de riqueza ou como agentes de casas
comerciais com matriz no outro lado do deserto. Conheciam a
roldana e 0 serrote, mas não sabiam fazê-los nem encontravam
motivo para importá-los. Ninguém iria adquiri-los. Se manda-
vam buscar seleiros, para consertar as selas dos camelos e ensi-
nar a gente da terra a fabricá-las, não precisavam de quem sou-
besse construir carros de rodas, que não tinham condições de
competir com os camelos no deserto, nem eram de utilidade nas
savanas sem estradas e muito menos nas florestas. Talvez assim
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 33

se explique por que os mercadores muçulmanos difundiram a


sua fé, mas não as técnicas e as ferramentas de trabalho usuais
no m undo islâmico.
Uma novidade trazida por um a caravana muitas vezes não
voltava na cáfila seguinte. As novidades não chegavam com a
persistência e o volume necessários para vencer as resistências
à mudança em populações formadas em grande parte por cam-
poneses. Geralmente, estes não se mostravam propensos a abam
donar seus modos de trabalho tradicionais e so aceitavam o que
era novo, quando suas vantagens já tivessem sido provadas. Não
demoraram, por exemplo, a cultivar o milho, a batata-doce e 0
amendoim, trazidos do Brasil pelos portugueses, mas se apegam
até hoje à enxada de cabo curto, ainda que conheçam a de cabo
comprido, introduzida pelos europeus.
Acresce que os reis e os grandes chefes, tendo a seu serviço
um grande número de familiares, agregados e escravos, não ti-
nham maior interesse em instrumentos poupadores de trabalho.
Desejavam, das caravanas, os bens de luxo, para uso próprio ou
para presenteá-los aos súditos poderosos e assegurar sua fideli-
dade. E, mais ainda, as armas.
Alguns deles procuravam adotar as novas armas e as novas
táticas de guerra de que tomavam conhecimento, mas mesmo
essas tardavam a se difundir. A sela com estribos já era conhecí-
da pelos árabes desde 0 século VII, mas só quase 700 anos mais
tarde começaria a ser utilizada do outro lado do Saara. Surgem
então, na Africa ao sul do Saara — provavelmente, pela primeira
vez, no Mali —, as cargas pesadas de cavalaria, com guerreiros
protegidos por capacetes de ferro e cotas de malha e armados de
Terceira conversa
34 A Á f r i c a e xp l i c a d a aos meus f i l h o s

lanças longas e espadas. Como já era de praxe nas batalhas que


se travavam na Europa, na mesma época.

Vemos no mapa que a Arábia está quase colada à África. Por que
as técnicas e os instrumentos desenvolvidos pelos árabes ou por eles
conhecidos não atravessaram 0 mar Vermelho e 0 oceano Índico e se
difundiram pelo continente africano?
Os tripulantes dos barcos árabes, persas, indianos e indoné-
sios que comerciavam nos litorais africanos do Índico deixavam-
se ficar nas ilhas junto à costa. As populações mestiças, que se
formaram nessas ilhas e que se dedicaram principalmente ao
comércio, pouco influenciaram as do continente. Quanto aos
etíopes, que m antinham antiqüíssimas relações com a penínsu-
la Arábica, eles se isolaram, nas suas altas montanhas, do resto
da África.
Como eram as relações comerciais dos litorais da África banha-
dos pelo oceano Índico com os árabes, os persas, os indianos e os
indonésios?
No início da era cristã, um grego, ou egípcio convertido à cul-
tura grega, escreveu um livro, o Périplo do mar eritreu, com in-
formações para os navegadores e comerciantes sobre os portos
que havia na costa africana do Índico e as mercadorias que neles
se vendiam e compravam. Esse comércio vinha de muito antes,
envolvendo egípcios, gregos, etíopes e árabes.‫־‬E seria, depois, dis-
putado por romanos e persas.
Foi, porém, após a conversão da península Arábica e da Pérsia
ao credo de Maomé que esse comércio tomou maior vulto. É des‫־‬
sa época que as crônicas locais — como a Crônica de Quüoa, um
livro escrito provavelmente na primeira metade do século XVI
— datam a chegada dos primeiros grupos de imigrantes muçul-
manos e a fundação de colônias nas ilhas próximas ao litoral.
É possível que comerciantes estrangeiros já estivessem es-
tabelecidos em algumas delas, desde muito antes. E temos um
motivo para pensar assim. A navegação no oceano Índico era re-
guiada pelo fenômeno das monções ‫·ג‬De novembro a março, os
ventos sopram de nordeste para sudoeste; de maio a setembro,
no sentido inverso.
3S A Á f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

E nos meses de abril e outubro?

São meses de transição. Em abril, pode continuar a soprar o


vento de nordeste para sudoeste ou já começar 0 vento contrá-
rio. Em outubro, ou continua a soprar o vento do sudoeste ou
já principia o do nordeste. O importante é que os barcos a vela
tinham de acompanhar a direção dos ventos. Ora, nem sempre
uma embarcação originária do golfo de Cambaia ou de Omã con-
seguia chegar a um porto da África Oriental, como Quíloa, antes
de fins de fevereiro ou início de março. Passava, depois, algum
tempo a adquirir a quantidade desejada de ouro, âmbar, presas
de elefante, chifres de rinoceronte, carapaças de tartaruga, plu-
mas de avestruz, peles de animais selvagens, almíscar e outros
produtos aromáticos. Quando 0 barco completava a carga, já era,
por exemplo, fim de julho, e seria temerário empreender a via-
gem de volta.
Mercadores e marinheiros viam-se obrigados, então, a perma-
necer em Quíloa até maio do ano seguinte, à espera da monção de
sudoeste. Compravam^ alugavam pu construíam casas/1uniam-se
a mulheres da terra e ampliavam suas ligações comerciais. Alguns
viram as oportunidades que se abriam para quem ali se insta-
lasse de forma permanente ou semipermanente, adquirindo as
mercadorias e as armazenando, a fim de tê-las à disposição dos
navios logo que estes chegassem ao porto. E começaram até a ir
buscá-las, com seus barcos, em outros pontos da costa. Toma-
ram-se também fornecedores de alimentos aos navios estrangei-
ros e donos de plantações no continente defronte.
Os filhos e netos desses colonos com mulheres locais cres-
ciam africanizados, mas sem perder o contato com a pátria de
AJbert o da Cost a e Si i vc 39

seus pais e avós. Falavam um idioma banto, o suaíli, que se


tornou a língua de quase toda a costa, e adotaram os costumes
bantos, ainda que submetidos às normas do islamismo e im-
pregnados de traços culturais dos países de origem de seus an-
tepassados paternos·.
Não só comerciantes se instalaram nessas ilhas. Elas serviram
também de refúgio para persegpidos religiosos e políticos. As
crônicas e as tradições locais referem-se a príncipes e a hereges
árabes e persas foragidos de suas terras qu e foram criar cidades-
estados em diferentes pontos da costa indica da África. Quando
os portugueses lá chegaram, no fim do século XV, encontraram
em Sofala, Quelimane, Angoche, Moçambique, Quíloa, Mafia,
Zanzibar, Pemba, Mombaça, Gedi, Melinde, Lamu, Manda, Pate,
Brava, Merca e Mogadixo pequenos reinos chefiados por emires
e xeques mulatos ou negros, com populações que rezavam na
direção de Meca e seguiam os preceitos do islamismo.
Presentes na costa indica da África há quase um milênio, os
mercadores muçulmanos devem ter aprendido desde cedo a ir
buscar no interior do continente os produtos que desejavam ad-
quirir. É verdade que, transpostas as praias, na maior parte da
região a terra era hostil, coberta por uma vegetação espinhenta,
a nyika, na qual estava presente a mosca tse-tsé, transmissora
da doença do sono. A ambição da riqueza faria com que alguns
habitantes do litoral ameno se arriscassem a entrar nesse difícil
sertão. Entravam como mercadores, mas não contribuíram para
a difusão de novas técnicas, de novos instrumentos e de novas
idéias, a não ser o islamismo e, posteriormente, as armas de fogo,
que tornariam menos perigosa a caçada aos elefantes.
40 Λ A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

Você disse, em nossa conversa anterior; que os portugueses se es-


pantaram, ao chegar a essas cidades-estados, com 0 número de navios
e 0 volume de comércio que nelas encontraram.

Encontraram de fato cidades ricas de tudo o que mais dese-


javam: ouro, prata, pérolas, marfim, âmbar, sedas, damascos,
cravo, pimenta, canela, gengibre, noz-moscada, lacas, faianças e
porcelanas. Como está em Os lusíadas, de Camões, e em Décadas,
do cronista João de Barros. Nesses portos entravam e saíam todas
as semanas vários barcos, alguns muito grandes, em mãos de
marinheiros hábeis, que conheciam a bússola, quadrantes e car-
tas de marear. Para os portugueses tudo era motivo de surpresa e
pasmq. Já^para um comerciante muçulmano experiente, aquelas
cidades eram parceiras menores da grande rede comercial do ín-
dico e formavam o limite ocidental daquele que era então o maig
rico de todos os oceanos.

E 0 Atlântico, não tinha importância?

Até se descobrirem prata e ouro no continente americano e


se firmar a produção de açúcar no Brasil, 0 Atlântico ao sul do
trópico de Câncer era visto sobretudo como um caminho para
0 Índico, Descia-se a costa da África para se chegar à índia e à
China.
Na parte norte do Atlântico, havia, é certo, um comércio cos-
teiro muito antigo, desde 0 Marrocos até a Escandinávia. O Me-
diterrâneo fazia parte dessa rede comercial, e os navios saídos
do continente iam ter às ilhas Britânicas e à Islândia. Os barcos
dedicados à pesca do bacalhau podiam avançar ainda mais para 0
Alberto da Costa e Silva 41

ocidente. Para o sul, 0 Atlântico era, porém, até 0 início das nave-
gações portuguesas, um oceano vazio de barcos a vela.

Mas os portugueses não sabiam que havia ouro ao sul do Saara?


Sabiam. E, desde o início de sua aventura marítima, procura-
ram obtê-lo nas costas africanas. Tanto assim que, já na penúlti-
ma década do século XV, ergueram um castelo numa região onde
os grandes da terra usavam jóias de ouro e lhe deram um nome
que diz tudo* São Jorge da Mina, pois acreditavam que as minas
de ouro ficavam ali, bem próximas ao litoral.
Mais do que um estabelecimento militar, São Jorge da Mina
era ‫ רדונד‬enorme depósito comercial fortificado. Uma grande fei-
toria de pedra, como outras que seriam erguidas nas costas do
Atlântico e do Índico. Poucas, quando comparadas com as cerca-
óas por paliçadas ou por muros altos de barro, à africana.
Tanto aquelas quanto estas necessitavam, para serem ergui-
das, do consentimento dos reis e chefes locais, que recebiam
aluguel e tributos. Era raro, raríssimo, que o senhor africano
concedesse aos europeus o uso de terra para cultivo, de modo
que a gente da fortaleza ou da feitoria dependia da vizinhança
para alimentar-se — e, em alguns casos, até mesmo para se
abastecer de água. Os reis africanos em cujos domínios ficavam
esses estabelecimentos europeus tinham sobre eles firme con-
trole. Se os europeus os desgostassem ou deixassem de efetuar
os pagamentos devidos, simplesmente lhes cortavam não só 0
comércio com a gente local e os mercadores do interior, mas
também a comida e a água.
& A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

E os europeus não reagiam? Não tinham eles, nessesfortes, armas


mais poderosas como canhões e espingardas?

Tinham. Mas, no início, os canhões não dispunham de rodas


ficavam imóveis no alto dos muros e atirando numa só dire-
ção — e o número de soldados era sempre pequeno. Não havia
condições para tentar romper um cerco. E os africanos acabariam
submeter os estrangeiros pola fome. É preciso lembrar que
as armas de fogo eram, até 0 século XIX, !carregadas pela boca.
Primeiro, punha-se a bucha, depois, á pólvora e, finalmente, a
bala. Entre um tiro e outro podia passar tempo suficiente para
um bom arqueiro disparar meia dúzia de flechas, que em muitos
lugares eram envenenadas e só precisavam atingir de raspão a ví-
tima para matá-la. Se os europeus fossem muitos — 0 que quase
nunca era 0 caso —, eles poderiam fazer uma barreira de fogo
— uns alimentando as armas, enquanto outros atiravam e um
terceiro grupo se preparava para atirar —, mas, mesmo assim,
era difícil fazer frente a muitas centenas, quando não a milhares
de guerreiros africanos. Na realidade, os europeus só consegui-
ram, militarmente, uma superioridade nítida sobre os africanos
com 0 rifle de ferrolho e 0 rifle de repetição ‫—־‬e se fizeram imba-
tíveis com a metralhadora.

Você disse que os europeus eram sempre poucos nesses fortes efei~
tonas. Por quê?

Porque não tinham resistência às enfermidades tropicais. Já


se calculou que, de cada dez europeus que se instalavam na Áfri-
ca entre os séculos XVI e XIX, seis morriam no primeiro ano
— quando não nos primeiros meses — e mais dois faleciam nos
A} b er i o da Cost a e S i l v a 43

anos seguintes, atacados pot malária, febre amarela, parasitas


intestinais, varíola, doença do sono, esquístossomose, verme‫־‬da‫־‬
guiné e cegueira dos rios. O que não falta nos relatos dos respon-
sáveis por esses entrepostos, e também nos dos viajantes e dos
capitães de navios, são referências a mortes por diarréia e febres.
Os que viviam nesses estabelecimentos passavam boa parte do
tempo cuidando dos enfermos e enterrando os mortos. Pode-se
dizer que 0 mosquito, responsável pela transmissão da malária e
da febre amarela, foi 0 grande aliado do africano contra as ambi-
ções de conquista européias.

Se estavam, como você disse, à mercê dos africanos, por que os eu-
ropeus insistiam em fortificar esses estabelecimentos comerciais?
Para se protegerem! principalmente de outros!europeus./ Esta-
vam preocupados com os inimigos que vinham pelo mar. Com
a gente da terra, aspiravam à amizade ou, pelo menos, ao bom
entendimento necessário ao comércio. Era, aliás, comum que os
europeus que neles viviam formassem família com as mulhe-
res locais. Elas e seus filhos serviam muitas vezes de intermediá-
rios entre a feitoria e a cidade ou aldeia africana que a cercava.
O mesmo se passava com aqueles aventureiros ou degredados
que os barcos portugueses deixavam nas costas da África, que
receberam os nomes dê lançados òti tangomãosj e cujas histórias,
sob muitos aspectos, se assemelham às dos nossos Caramuru e
João Ramalho. Casavam com mulheres da terra, africanizavam-
se, ao mesmo tempo que as europeizavam, e serviam de agentes
comerciais para os reis e mercadores africanos e para os entre-
postos europeus.
44 A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

Eram eles dos poucos que conseguiam penetrar nas redes


mercantis africanas e viajar sertão adentro, pois os reis da costa
proibiam aos brancos o acesso ao interior e os negociantes afri‫״‬
canos guardavam cuidadosamente os segredos de suas rotas e
de seus mercados· Os que comerciavam com o ouro não infor-
mavam onde o obtinham e satisfaziam os curiosos dizendo, por
exemplo, que 0 adquiriam de uma gente feroz, com rabo e cabeça
de cão. Essa invencionice tomou tamanho jeito de verdade que
havia, ainda na metade do século XIX, quem andasse em busca
desses homens com rabo.

A mortandade entre os europeus que se instalavam na África era


enorme. Mas, pelo que entendí, aqueles que resistiam por alguns meses
às doenças ca$avam-$e em geral com africanas. O que acontecia com
as mulheres, quando os maridos morriam?

Essas senhoras ficavam com aquela parte dos bens do marido


que não era confiscada pelo rei da terra. E, mais importante ain-
_^a‫ ׳‬com as suas relações comerciais. Continuavam à frente dos
seus negócios. Muitas delas enriqueceram e se tomaram conhe-
cidas como donas ou nharas e sinharas, que são corruptelas, isto
é, alterações, da palavra portuguesa "senhora”..
O comércio local, nas feiras e mercados africanos, era, e con-
tinua a ser até hoje, dominado pelas mulheres. Quando elas se
ligavam, a portugueses ou a outros europeus, transmitiam a eles
0 conhecimento de como operavam esses mercados e sobre as
rotas que os ligavam ao interior. Aprenderam ao mesmo tempo,
com eles, as manhas do comercio com os brancos. Europeiza-
vam-se. Algumas se convertiam ao catolicismo e, na maioria das
A l b e r t o da Cast a e Si l va 45

vezes, procuravam marcar, na maneira de vestir, no uso de tur-


bantes e de crucifixos pendurados ao pescoço e na construção
de casas com janelas, telhado de duas águas e paredes pintadas
de branco, a diferença em relação ao resto do povo a que perten-
ciam. Mas dele não se dissociavam, até porque nas suas relações
familiares — e algumas delas eram de estirpe real ou aristocráti-
ca — residia grande parte de sua força. Não faltam exemplos de
nharas que, viúvas, se casaram novamente com europeus — e
algumas, mais de uma vez. Ficavam viúvas duas, três ou quatro
vezes e herdavam os negócios de todos esses maridos.

£ o que acontecia com osfilhos?


Eram educados nas duas culturas. Se a mulher era, por
exemplo, banhum e 0 pai era português, os filhos se transfer-
mavam em súditos do rei da terra e serviam em suas tropas,
mas se consideravam ao mesmo tempo portugueses. E as filhas
procuravam tornar-se também nharas.

As feítorias não serviram para romper 0 isolamento da Afiica e


para difundir as técnicas desenvolvidas na Europa?
Muitos africanos aprenderam nas feitorias a usar a roldana
e 0 carrinho de mão. Mas algumas gerações se passariam antes
que pudessem exercer os seus novos ofícios fora delas. Os chefes
africanos não tinham interesse pelo que consideravam extrava-
gâncias. Ou eram seletivos: acolhiam umas e outras não. Desde
0 início, procuraram obter armas de fogo e quem os ensinasse a
manejá-las. Contudo, deram pouca atença0 3os^carr0s de roda, ate
porque não tinham quem os puxasse: nas terras próximas ao lito-
46 A Á f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

TÚ, os cavalos eram caríssimos e morriam em pouco tempo. Os


carros podiam ser puxados por escravos, mas estes tinham melhor
emprego carregando as redes nas quais os reis, os nobres e outros
poderosos passaram a viajar, ou até mesmo a passear. Como vêem,
não adotaram 0 carro, mas não demoraram a utilizar a rede trazida
do Brasil, não para dormir, mas para viajar.

Foi assim por toda parte?

Não. No reino do Congo, que ficava no noroeste da atual re-


pública de Angola, temos uma história diferente. Desde a vinda,
em 1483, dos primeiros portugueses, os congos perceberam que
os recém-chegados dispunham de recursos técnicos muito mais
desenvolvidos e eficazes do que os conhecidos por sua gente. E
que deviam, por isso, contar com um deus poderosíssimo. Se pu-
dessem aprender com os europeus, os congos seriam mais fortes
que todos os reinos vizinhos.
O rei do Congo;, ou manicongo, Nzinga a Nkuwa\ converteu-
se ao catolicismo e foi batizado com o nome de D. João. Antes,
havia pedido ao soberano português que recebesse rapazes do
seu reino, para se educarem em Portugal e lhe mandasse padres
católicos, para instruir o povo na religião, e mestres de ofício,
para que lhe ensinassem as técnicas desejadas.
Tanto ele quanto seu filho e sucessor, D. Afonso, que foi um
católico fervoroso e culto, esperavam, com a ajuda portugue-
sa, modificar inteiramente o país. E o fizeram, mas de modo
muito imperfeito. A maioria dos congos converteu-se ao cato-
licismo, e muitos aprenderam a ler e a escrever. A aristocracia
abandonou os seus títulos tradicionais e adotou‫־‬os europeus:
AJí>erto da Cost a e S i l v a 47

os nobres passaram a ser barões, condes, marqueses e duques.


E a se vestir como portugueses. Fora da capital, Banza Congo
pu São Salvador, não se impôs, porém, a casa de tijolo e telha.
Nem se difundiram a ponte de pedra, o arado, 0 carro de roda,
os moinhos de água e vento, o barco com várias velas, o serrote,
a broca e tudo o mais que fizera a Europa adiantar-se técnica-
mente à África.
D. Afonso pretendia que os portugueses ensinassem aos con-
gos como construir um grande navio e manejá-lo, a fim de que
pudesse comerciar sem intermediários com a Europa. É evidente
que isso não interessava a Portugal, mas o monarca português
procurou atender aos demais pedidos do manicongo. Não era fá-
cil, porém, conseguir quem quisesse ir para 0 Congo. E boa par-
te dos que lá chegavam morria, meses depois, de malária, febre
amarela ou diarréia. Os que resistiam às doenças logo abandona-
vam q ensino e 0 exercício de seus ofícios e se transformavam em
comerciantes de escravos. Até padres e frades se fizeram merca-
dores de gente. Primeiro, para São Tomé e São forge da Mina.
Mais tarde, para o Brasil.
O comércio de escravos fez com que se frustrasse o projeto
de modernização do Congo. Fazer e vender cativos tomaram-se
a maneira mais fácil de enriquecer. Não só os portugueses, mas
também os aristocratas congos a isso se entregaram sem limites.
Era com escravos que os nobres congos conseguiam as armas e
os artigos portugueses a que se haviam acostumado, e tão grande
era 0 desejo por esses bens que, para obtê-los, passaram a vender
os próprios dependentes, os próprios congos.
48 A Á f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

D. Afonso sentiu o perigo que corria o seu reino, que se estava


despovoando. E escreveu, em 1526, uma carta ao rei de Portugal,
em que manifestava 0 desejo de que não mais se exportassem
escravos nem se importassem mercadorias portuguesas, exceto o
trigo para a feitura da hóstia e o vinho para a missa. Pediu mais:
que só fossem para 0 Congo missionários e professores.

Conseguiu de parar 0 comércio de escravos?


Não. Não só esse não cessou, como se expandiu, para atender
a uma demanda crescente, sobretudo depois que a fabricação do
açúcar começou a aumentar no Brasil. O próprio D. Afonso não
ignorava que, para se manter no poder, necessitava de armas e
de artigos de luxo importados, com os quais premiava a nobreza
que lhe era fiel. E sabia que não tinha com que pagá-los, a não
ser escravos. Continuou a proibir que se cativassem os congos,
mas não se opunha a que se reduzisse à servidão os angicos, os
ambundos e os iacas, por exemplo, que tinham fronteiras com
as suas terras.
Nas décadas seguintes, aumentou a exportação de gente. Ao
mesmo tempo, o Congo se encheu de escravos. Havia uma escra-
vidão antiga no país, mas era predominantemente doméstica: os
cativos aumentavam a forçá de trabalho de uma família e faziam
as mesmas tarefas que q dono, suas mulheres e seus filhos. Isso
se alterou radicalmente. O número de escravos passou a ser mui-
to maior do que o de pessoas livres, e estas passaram a viver do
trabalho daqueles. Quase toda a produção tornou-se dependente
da mão-de-obra cativa, com os donos apenas a vigiar os escravos,
quando não dispunham de feitores para isso. Até mesmo o exér-
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 49

cito pessoal do rei era formado por escravos. O Congo passou a


girar em torno da escravidão, e os projetos modemizadores fo-
ram esquecidos.
Os escravos seriam, aliás, um dos motivos da guerra, em
1665, entre o manicongo D. Antônio I e o governador de Luanda,
André Vidal de Negreiros — 0 mesmo André Vidal de Negreiros
que fora um dos líderes na luta contra os holandeses no Nordeste
do Brasil. A grande batalha deu-se em Ambuíla, e os portugueses
saíram vitoriosos. Nela, D. Antonio perdeu a vida.
Pode datar-se de então a decadência do reino do Congo. Mas
os portugueses não ocuparam, sequer parcialmente, o seu terri-
tório, porque não dispunham de força para isso. Voltaram para
Luanda, em vez de se dirigirem para a capital, São Salvador.

E 0 que aconteceu depois? Continuou a haver um manicongo?


No Congo, sucederam-se as disputas sucessórias, com os por-
tugueses procurando influir em algumas delas. O poder, porém,
fragmentou-se: não só às vezes havia mais de um manicongo,
como este, embora importante simbólica e ritualmente, passou a
ser o detentor de um título esvaziado de autoridade. O manicon-
go entronizado em São Salvador era reverenciado pelos congos,
mas quem mandava de fato, fora dos limites da capital, eram os
grandes nobres, os chefes hereditários das províncias. So a partir
de 1885, e após várias campanhas militares malogradas, os por-
tugueses conseguiram ocupar paulatinamente 0 litoral do antigo
reino do Congo. Três anos mais tarde, imporiam sua autoridade
militar e administrativa em São Salvador.
50 A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

Os portugueses levaram, portanto, quatro séculos para dominar


0 reino do Congo. Foi assim com os europeus em outras partes da
África?

Foi. Na metade do século XIX, os europeus tinham 0 contro-


le sobre uma parcela muito pequena da África ao sul do Saara.
Mesmo assim, um controle relativo, contestado nas áreas de
fronteira, uma fronteira que se alargava ou reduzia, conforme
as circunstâncias. Os franceses estavam instalados na cidade de
Saint-Louis, em seus arredores e na ilha da Goréa. Tinham tam-
bém algumas fortalezas no rio Senegal, cercadas de africanos
por todos os lados. As possessões portuguesas não passavam
de enclaves, alguns deles pequenos, como Cacheu e Bissau, e
até diminutos, como a fortaleza de São João Batista de Ajudá —
não maior do que uma chácara. O domínio sobre as terras que
hoje formam Angola, embora extenso, se restringia, no litoral,
às áreas entre a foz do rio/Lifune e a boca do Cuanza, e entre 0
rio Quiteve e a cidade de Benguela, a isso se somando, ao norte
do rio Congo, o entreposto de Cabinda. Para o interior, a fron-
teira avançava e recuava, mal chegando a 200 quilômetros do
litor ah Os limites da influência portuguesa eram marcados, no
interior; por alguns presídios, nome que se dava às vilas fortifi-
cadas que tinham por principal missão proteger os mercadores.
Esses presídios eram, porém, ilhas em territórios dominados
por africanos, e, sem o consentimento de seus reis e pagamento
de imposto, nesses territórios não se comerciava, nem por ele
passavam as caravanas. E o mesmo ocorria com os fortes que os
ingleses tinham na Costa do Ouro.
A l b e r t o da Costa e Si l v a 51

E no Índico?
A situação não era muito diferente. Tanto a ilha de Moçambi-
que quanto Sofala, Quelimane, ínhambane, Lourenço Marques
e outras possessões portuguesas tinham de lidar com a benevo-
lência ou a hostilidade dos emires e xeques das várias cidades-
estados muçulmanas vizinhas e não esquecer a proximidade
protetora do sultão de Zanzibar. Sobre o Zambeze, duas cidades,
Sena e Tete, hasteavam a bandeira portuguesa, e, ao longo do rio,
sucediam-se os prazos.
Esses prazos eram grandes extensões de terra concedidas pelo
rei de Portugal, pelo monomotapa (ou rei dos xonas carangas) e
outros chefes africanos a colonos portugueses e que podiam ser
‫ ־ ׳ ־'׳‬vsf"‫' ״׳״״‬ ‫ '־‬T
herdadas por suasjilhas, óm geral mulatas, desde que se casas-
sem com portugueses. Os titulares dos prazos, prazeiros ou pra-
zeiras, comportavam-se, porém, como chefes africanos. Se po-
diam acudir ao governador português de Moçambique com suas
tropas privadas dè soldados-escravos, ou chicunâas, não hesita-
vam em desafiar-lhe a autoridade.
No que hoje é a Africa do Sul, havia quatro grandes enclaves
europeus. Os ingleses tinham ali duas possessões: a do Cabo da
Boa Esperança, em permanente expansão para o norte e para
o leste, e a de Natal, no oceano Índico. No interior, havia dois
estados bôeres: a República do Transvaal e o Estado Livre de
Orange. Esses bôeres eram os descendentes dos holandeses,
franceses e alemães que se haviam instalado na África do Sul
desde o século XVI.
52 A À f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

Olhando 0 mapa, os espaços sob 0 domínio europeu, em 1850, não


chegavam sequer a 5% da África ao sul do Saara.
É verdade. E a situação só começou a mudar uns dez anos
depois. Sobretudo nas duas últimas décadas do século. Um após
outro, os grandes e os pequenos estados africanos foram caindo
em mãos européias. A conquista foi, porém, mais difícil e lenta
do que se pensa. G califado de Socotô, no norte da Nigéria, por
exemplo, só foi derrotado pelos britânicos 601:1903. E em muitos
lugares a resistência armada à ocupação européia aíongou‫־‬se por
vários anos mais.
Quarta conversa
A primeira obrigação de um africano era — e continua a ser
— para com a sua família. E não apenas para com aquela com-
posta por marido e mulher, seus pais, filhos, netos, irmãos e so-
brinhos, mas por uma família muito mais extensa — a linhagem,
formada por todos os indivíduos que possuem um antepassado
comum conhecido. Os vínculos de lealdade e os deveres de ajuda
podiam, no passado, ser ainda mais amplos e se estender, entre
alguns povos, (áo clã, ásto é, a todos os membros de várias linha-
gens que se consideravam descendentes de um ancestral mítico,
fósse ele um ser humano perdido na história ou criado pela ima-
ginação, ou um animal — um animal real ou fantástico.
Fortes ainda no campo e nas aldeias, essas obrigações de
cooperação e socorro entre os que pertencem à mesma linhagem
persistem, ainda que abrandadas, entre os habitantes das grandes
cidades. Assim, um rapaz que chegue a Abidjan, vindo de um vi-
larejo no interior da Costa do Marfim, procurará um parente que
lá viva, e este não deixará de abrigá-lo, por menores que sejam
os cômodos onde more, nem de auxiliá-lo financeiramente, se
necessário. Só em casos extremos alguém negará a um parente a
ajuda e a solidariedade.
Na África não se separa a pessoa de seu grupo. Por isso, anti-
gamente, entre muitos povos, a família era responsável pelos atos
56 A A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

de cada um de seus membros. Se um deles contraía um emprés-


timo e não o pagava, a família tinha de fazê-lo. E, se cometia um
crime, os seus parentes mais próximos podiam, juntamente com
ele, ser castigados — vendidos como escravos, por exemplo.

Tanto os parentes de parte de pai quanto os de parte de mãe?


Dependia de como se organizava a família. Alguns povos afri-
canos são como nós: uma pessoa faz parte ao mesmo tempo de
duas famílias, a da mãe e a do pai. Na maior parte dos povos,
porém, não é assim.
Em muitos deles, os filhos pertencem somente à família do
pai e seus antepassados são apenas os da linha paterna. Mas entre
outros ocorre o contrário: só a família da mãe conta. Ao primeiro
tipo de família chamamos patrilinear; ao segundo, matrilinear.
Na maioria dos povos matrilineares, a mulher morava com a
família do marido. Os filhos, quando chegavam aos cinco ou seis
anos de idade, se separavam dos pais e passavam a viver na casa
de um irmão da mãe, para se integrar à sua verdadeira família.
Eles seriam criados, portanto, pelas mulheres desse tio materno.

Pelas mulheres ou pela mulher?


Por suas mulheres ou por uma delas. Quase todas as socie-
dades africanas eram polígamas: os homens podiam ter várias
esposas. E é assim até hoje, exceto entre aqueles que seguem
zelosamente o cristianismo.
Os muçulmanos podem casar-se com quatro mulheres e ter
um número indefinido de concubinas. Já os adeptos das religiões
tradicionais africanas podiam ter tantas mulheres quanto permi-
A l b e r t o da Costa e S i l v a 57

tissem os seus recursos. <puanto mais esposas possuísse ■um in-


divíduo, mais rico e poderoso ele se mostrava.

Ter muitas mulheres era, então, um sinal de riqueza?


Não só um sinal dé riqueza, mas também uma fonte de rique-
za. Na maioria das sociedades africanas, a prosperidade de um
chefe de família dependia do número de dependentes — mulhe-
res, filhos, noras, demais parentes, agregados e escravos — que
tivesse a trabalhar para ele. Às mulheres cabia o grosso das la-
butas agrícolas. Os homens derrubavam as matas, mas eram as
mulheres que preparavam os campos com suas enxadas, semea-
vam, regavam e colhiam. Eram elas que cuidavam das criações de
aves, cabras e suínos. Fiavam, teciam, moldavam no barro potes,
pratos e travessas. E levavam 0 que produziam para vender nos
mercados. Além disso, faziam todas as tarefas de casa: cozinhar,
varrer, lavar roupa, ocupar-se das crianças.

O homem, pelo visto, não fazia quase nada. Ficava vendo as mu-
lheres trabalharem.
Os homens derrubavam as matas para abrir espaço para as ro-
ças. Construíam as casas e lhes reformavam os tetos e as paredes,
antes da estação das chuvas. Escavavam barcos nos grandes tron-
cos de árvores. Remavam. Cuidavam do gado bovino. Caçavam. E
eram soldados. Ainda assim, penso que as mulheres eram respon-
sáveis pela maior parte das atividades produtivas. Além de produ-
toras, elas eram também reprodutoras: com os filhos aumentava
o número dos componentes do grupo. Daí 0 valor que tinham
dentro da família, que cobrava caro para cedê-las em casamento.
5* A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

O homem que quisesse casar-se com uma mocinha tinha de pagar


por ela. Os europeus chamaram a isso 0‫ ״‬preço da noiva‫״‬.

Os homens, então, compravam as suas faturas esposas. Não te-


riam das, por isso, uma posição subalterna no casamento?
Não se entendia que o homem estivesse comprando a noiva.
Estava, isto sim, compensando a família pela falta que ela fa-
ria. Estava indenizando a família pela perda. O preço da noiva
não é, portanto, um costume que desmereça a mulher; ao con-
trário, a valoriza. Se o matrimônio malograsse e se seguisse 0
divórcio, a moça retornava para a sua família, que devolvia ao
ex-marido os bens que dele recebera, ou parte deles.
O que desejo deixar claro é que, na África, a mulher tem um
alto valor. E ela não vê sua importância diminuída numa família
polígama. É bem verdade que, nas regiões de islamismo mais
estrito, as mulheres ficam encerradas em casa e só raramente
saem à rua, cobertas por um véu e na companhia do marido. Em
quase todo 0 resto da África, porém, guardam uma grande inde-
pendência em relação aos homens.
Num conjunto habitacional familiar tradicional, há casas di-
ferentes para o marido e cada uma de suas mulheres. Estas são
senhoras de suas casas, nas quais o marido entra quase como
visitante. Elas podem ter a iniciativa do divórcio e participar da
escolha das outras esposas que tom e 0 marido. Geralmente,
guardam para si os produtos de suas hortas e os ganhos de seu
comércio — e convém não esquecer que as mulheres, sobretudo
na África voltada para 0 Atlântico, dominam o comércio a vare-
jo — e conservam, separados do patrimônio do marido, os seus
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 59

bens. Antigamente, entre os iorubás, as mulheres possuíam suas


próprias escravas, que não se confundiam com as do marido.

Se entendi bem, as mulheres podiam ser, em certas sociedades da


África tradicional, muito mais independentes do que as européias, até
bem avançado 0 século XX.
E talvez fossem também, em muitas sociedades africanas,
mais poderosas politicamente. Podiam não só, como na Europa,
exercer posições de autoridade — rainha, regente, sacerdotisa ou
alta funcionária de palácio — mas também ser um contrapeso
forte ao predomínio político masculino. No império da Lunda,
por exemplo, nada se decidia em conselho sem a presença e a
aprovação de uma chefa, a luconquexa, que representava as mu‫־‬
lheres. E no reino do Daomé, cada ministro homem tinha sua
equivalente, dentro do palácio, numa esposa do soberano, que o
vigiava e lhe controlava as ações.
A mulher podia ser tudo isso, mas, como ocorre em todas as
sociedades, era, antes de mais nada, mãe. E a africana é mãe tão
devotada que, em muitos povos, ao ter uma criança, se afasta
temporariamente do marido para se dedicar inteiramente ao fi-
Iho, até que 0 deixe de amamentar, aos dois ou três anos de idade.
E não era nem é incomum que a mulher, após o parto, ou mesmo
antes dele, procurasse para o marido uma nova esposa.

Por que não podia ela dividir-se entre os cuidados com 0filho e as
atenções ao marido? Uma coisa, entre nós, não exclui a outra.
Porque na África um grande número de crianças morria, e
ainda morre, nos primeiros anos, quando não nos primeiros me-
60 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

ses ou semanas de vida. Toda a dedicação é pouca para garantir


a sobrevivência do menino ou da menina. Não só a família, mas
também as vizinhas procuravam proteger a criança. E as outras
mulheres do pai do bebê eram, em geral, especíalmente cuidado-
sas e dedicadas.

Não havia ciúmes entre elas?


Havia, e não só do marido. Também dos filhos. As mulhe-
res competiam entre si pelas atenções do homem, e cada mãe
se esforçava para que os seus filhos fossem os prediletos do pai
e aqueles a ter os melhores destinos. A disputa podia ser aberta
ou dissimulada, e não excluía os golpes baixos. Formavam-se, às■
vezes, partidos entre as mulheres, duas ou três a somarem forças
contra as demais. Mas tampouco faltavam exemplos de solidarie-
dade entre todas elas, e era comum a ajuda mútua.

E os filhos das diferentes mulheres, criavam-se juntos ou sopa-


rados?

Nas famílias matrilineares, eles viviam juntos até o mo-


mento de irem cada qual para a casa do tio materno. Já nas
famílias patrilinear es, brincavam juntos no mesmo pátio, um
menino entrando na casa da mãe do outro como se fosse na
sua própria. Nesse convívio, combinavam‫־‬se e alternavam‫־‬se
rivalidades e afetos. Não era incomum que uma criança ou um
adolescente tratasse como mãe as outras esposas de seu pai.
E quando um a m ulher morria, uma das outras ou várias delas
adotavam o órfão.
A/i>erfo da Cost a e S i l v a 61

Era, fazia, morria. Você usa todo 0 tempo os verbos no passado.


Atualmente, não é mais assim?
Aqui, é; continua a seu Ali, já não é mais, a não ser de forma
modificada ou incompleta. Acolá, está deixando parcialmente de
ser. Os modos de vida dos diferentes povos africanos foram se
construindo ao longo dos séculos, num processo que privilegiava
a continuidade sobre a mudança. O impacto das influências eu-
ropéias, a crescente urbanização e o êxodo da solidariedade das
aldeias para 0 individualismo e a pobreza nas grandes cidades
apressaram, porém, a alteração dos costumes. Mas as antigas
maneiras de ser resistem onde, como e quanto podem. Assim,
quando eu usar 0 verbo no passado, tomem-no como também
no presente. Quando eu disser que os filhos das várias mulheres
de um homem se criavam juntos, e que era comum que um
deles fosse comer na casa da mãe do irmão, porque sabia que
ela tinha feito um prato de que gostava, entendam que era assim
no passado recente e continua a ser hoje em dia, na maior parte
dos lugares.

Devia ser divertido ter um grande número de irmãos. Sempre ha-


via alguém para topar uma nova brincadeira.
Os anos da infância dividiam-se entre folguedos e aprendizado
— um aprendizado prático, no qual as crianças acompanhavam
os pais nas labutas diárias. Ao chegarem à puberdade, eram afas-
tadas por um breve tempo do convívio da comunidade e, reclusas
em cabanas no meio do mato, tomavam conhecimento das tradi-
ções do grupo e eram submetidas a rituais de iniciação, entre os
quais podia incluir-se a circuncisão. Terminado esse período de
62 A A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

retiro, consideravam-se integradas à vida adulta. As cerimônias


de iniciação criavam vínculos estreitos para toda a vida entre os
meninos que delas haviam, juntos, participado. Consideravam-
se como irmãos.

Vejo que as crianças gozam, na África , de uma situação privi-


legiada.

As crianças e os velhos. A velhice é venerada. Os que têm


cabelos brancos possuem a sabedoria da experiência e estão mais
próximos dos deuses. Entre os iorubás, por exemplo, um jovem
não fala a um velho sem se ajoelhar, agachar ou curvar-se, sem-
pre com a cabeça mais baixa do que a dele. Em alguns povos,
pode até ter de deitar-se, de bruços, no chão.

Há, portanto, um respeito quase religioso pelas pessoas idosas.


Porque os velhos não demorarão a morrer e a se transfer-
m ar em ancestrais. E da ação dos ancestrais depende a felici-
dade de seus descendentes e, de certa forma, a própria harmo-
nia do mundo.
Quase todos os africanos acreditam num Ente Supremo, que
criou e governa 0 universo. Para aqueles, porém, que não são cris-
tãos nem muçulmanos, esse Deus está fora do alcance dos ho-
mens e não interfere em suas vidas. Quando aflitas, as criaturas
humanas recorrem a outras entidades, como os ancestrais e os es-
píritos da natureza, que, no universo invisível, permanentemente
ligado ao mundo dos homens, por estes zelam e deles cuidam.
São numerosas as religiões tradicionais africanas. Cada povo
tem a sua, com seus deuses, crenças e rituais próprios. Em certas
A l b e r t o da Costa e Si l va

áreas, sobretudo naquelas onde predominam os grupos sociais


sem chefias, é comum que cada aldeia possua divindades pró-
prias, e até cada família possa ter as suas, que só a ela protegem
e só ela venera. Em todas as religiões africanas, no entanto, ou
em quase todas, têm relevo os ancestrais, entre eles se destacan-
do aqueles que foram reisVO culto dos mortos é, por isso, ge-
neralizado, cabendo aos vivos, com seus sacrifícios, fortalecer o
poder dos que os precederam. É bastante difundida a crença na
reencarnação. E crê-se na possessão, isto é, que as divindades e
os antepassados divinizados podem vir até os vivos, descendo no ///
corpo dos seus fiéis.

Espere aí! A religião tradicional da Áfiica não é 0 culto aos orixás?


Os orixás eram venerados na África somente pelos iorubás ou
nagôs, um povo que vive no sudoeste da Nigéria e no sudeste da
atual República do Benim. Como outras religiões africanas, a dos
orixás era um conjunto de cultos locais, ligados a santuários pró-
prios. Quando os seus fiéis foram tirados à força de suas terras
e atravessaram 0 Atlântico, tiveram de se ajustar a uma situação
inteiramente nova, na qual os seus deuses viajaram com eles e,
inicialmente, só tinham altares em seus corações.
No caso da religião dos orixás, vários deuses jqcais j aj3e^ha-
viam tomadq^no^chamado lombo, ou terra dos iorubás, deuses
nacionais; Xangô,/por exemplo, um rei ancestral divinizado de
Oió, è Ogum, um rei ancestral divinizado da cidade-estado de Irê,
já eram venerados por outros iorubás. Mas a religião dos orixás
não se expandiu na África. Não conta com adeptos entre sereres,
banhuns, ibos, andongos, iacas, angicos, xonas, macuas, zulus
64 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

ou outros povos africanos, que a desconhecem. E se retraiu no


próprio Iorubo, sob o impacto do cristianismo e do islamismo.
:Foi nas Américas, a partir sobretudo do Brasil p de Cuba, que ela
se tornou uma religião universal, com deuses que não pertencem
exclusivamente a um povo, mas a toda a humanidade. No Brasil,
a religião dos orixás fez adeptos não só entre originários de ou-
tras nações africanas, mas também entre descendentes de guara-
nis, cariris, pataxós, fulniôs, portugueses, espanhóis, italianos e
muitos outros povos.
Sua história não é, assim, diferente da história do cristianis-
mo e do islamismo, que começaram como religiões locais — de
um punhado cie judeus'; num caso, e de unfgrupo de árabes, no
outro — e se expandiram pelo mundo.

Eu sei que tanto 0 cristianism o quanto 0 islam ism o se espalharam


rapidam ente pela Á frica do Norte. C om o fo i no restante do continente?

O cristianismo chegou à Etiópia possivelmente antes do sé-


culo IV e contínua até hoje como a principal religião do país,
aquela que, durante mais de um milênio e meio, lhe conferiu
unidade. Os três grandes reinos da Núbia (Nobácia, Macúria
e Alódia) tornaram-se cristãos no século VI jb permaneceríam
cristãos até serem destruídos pelos árabes, no fim do século
XV ou início do XVI. Por essa mesma época, como já narrei,
os reis e as elites do reino do Congo, por influência dos portu-
gueses^se converteram.a0'Catolicismo. Tanto na sua vertente
católica quanto nás, protestantes, õ cristianismo só começaria,
contudo, a expandir-se com vigor na África a partir da segunda
metade do século XIX.
A l b e r t o do Gosta e S i l v a 65

E 0 islamismo?
Como já disse, o islamismo chegou aos litorais africanos do
Índico muito cedo: possivelmente já no fim do século VII, cerca
de cinco décadas após a morte de Maomé. E talvez tenha através-
sado o Saara e começado a se difundir ao sul do grande deserto
cem anos mais tarde. Pouco a pouco, os muçulmanos foram ex-
pandindo a sua fé savana abaixo, até, já no século XIX, atravessa-
rem a floresta e chegarem às costas do Atlântico. Na África Indica
foram também ganhando espaço do litoral para o interior.

Esses avanços do cristianismo e do islamismo devem ter-se dado à


custa das religiões africanas.
Assim foi, de fato. Mas as religiões africanas resistiram tenaz-
mente e continuam a resistir. E não só ao proselitismo das várias
formas de cristianismo e islamismo, mas também ao tratamento
discriminatório e até mesmo às perseguições a que foram sub-
metidas pelas administrações coloniais e, em vários países, pelos
governos que se seguiram às independências e que as identifica-
vam como fatores de atraso. Se perderam força nas grandes cida-
des, elas continuam, porém, vigorosas nas aldeias. E há aquelas
pessoas que, freqüentando a igreja, não deixam de fazer sacri-
fícios nos altares tradicionais. Além disso, tanto o cristianismo
quanto o islamismo apresentam-se muitas vezes africanizados e
a conviver tolerantemente com as demais crenças.
Quinta conversa
Ao chegarem, no fim do século XV, aos portos africanos do
Índico, os portugueses se encantaram com a semelhança das
casas que ali havia com aquelas a que estavam acostumados nos
, ■ - '‫" י ״‬ ?■ ‫^·״״‬ ,■‫׳״׳■׳‬ ' ‫ץ‬

Algarves: os mesmos terraços,.os mesmos .pátios internos e as


(m esm as paredes de pedra pintadas de branco. jíá os que foram
ter, pouco depois, à Etiópia, se não estranharam as casas dos
camponeses, de madeira e pedra e cobertas de colmo como as
do norte de Portugal, ficaram boquiabertos com o que encon-
traram de diferente.
Em Axum, toparam com sete obeliscos de vinte e poucos
metros de altura, de espessura estreita, como se fossem gran-
des lâminas de pedra. Imitavam prédios esguios de muitos pa-
vimentos, como os que até hoje existem no Iêmen. Na base,
apresentavam uma porta falsa, com imitação de aldraba e fe-
chadura, e para cima, bem marcados, cada um dos andares
com suas janelas. Para esculpir e erguer aqueles obeliscos, os
axumitas tinham de ser mestres nas técnicas de cortar e traba-
lhar pedras duras como o basalto, 0 granito e 0 mármore. Th
nham de arrancar das pedreiras monólitos imensos, de várias
centenas de toneladas, e transportá-los até o local onde seriam
esculpidos e levantados.
‫סך‬ A A f r i c a e x p l i c a d a aos meas f i l h o s

Para q u ê serviam esses obeliscos?

Ninguém sabe. Erguidos antes do século V, talvez fossem


monumentos funerários de uma religião anterior a conversão de
Axum ao cristianismo e representassem a morada dos mortos.
À admiração causada por esses obeliscos se seguiría, pouco
depois, o pasmo, quando os portugueses viram, perto da cidade
de Adelfa, as 11 igrejas cristãs cuja construção se deve a Lalibela,
um soberano etíope que teria reinado no início do século XIII.
O espanto foi tão grande que 0 primeiro a descrevê-las, o padre
Francisco Álvares, teve medo de que se tomassem as suas pa-
lavras por mentiras. As igrejas não tinham sido feitas como de
norma, erguendo-se paredes, pondo-se fileiras de tijolos ou de
pedras umas sobre as outras, mas cortando-se, escavando-se e
desbastando-se a rocha viva, para nela esculpir igrejas inteiras,
com abóbadas, naves e abside, pilares, arcos, janelas, degraus,
comijas e frisos. Em vez de erguer volumes sólidos, com 0 acrés-
cimo e a junção de materiais, os seus construtores abriram na
pedra enormes ocos, grandes espaços vazios.
A igreja de São Jorge é impressionante. Em forma de cruz
grega, ela parece mergulhar, com suas 12 paredes, num amplo
vao quadrado escavado na rocha. La embaixo, está o chão da igre-
ja. Seu teto tem quase a mesma altura que a superfície do terreno
onde cavaram 0 quadrado no qual ela se encontra.

Se e n ten d i bem , 0 piso da igreja está m u ito s m etros a b a ixo da


superflcie do solo .

Exatamente. Mas esse método de construir só se desenvol-


veu nas altas montanhas da Etiópia. No restante do continente
?1
A l b e r t o da Cosi a e Si iva

africano, predominou o que no Brasil se chama pau-a-pique,


bofetão ou sopapo. Faz-se um a armação de ripas ou varas entre-
cruzadas — uma espécie de gaiola — e preenchem-se os vazios
com barro socado.

Não é a chamada casa de caboclo? Já vi muitas delas, durante


as férias que passei na roça. Às vezes, cobre-se toda a armação com
barro, de modo que não se veem as hastes da madeira.
Só que, na África, a técnica podia ser mais elaborada. Ao ergue-
rem-se certas paredes que deviam ser mais resistentes, como as
de uma fortaleza, mesquita ou sobrado, misturava-se ao barro
o material, moldo ou pilado, dos cupinzeiros, a fim de lhe dar
uma consistência quase de concreto. Em muitas regiões, o barro
para os rebocos era amassado com azeite de dendê, manteiga de
carité ou outros óleos e alisado ao extremo, como se trabalhado
por mão de ceramista, para formar, tanto do lado externo quanto
do interno da parede, uma superfície dura, impermeável, quase
polida e bastante resistente à ação do sol, da chuva e do tempo.
Aplicava-se a mesma técnica ao piso, que podia também ser re-
vestido por uma massa de barro e estrume de boi. Graças a esses
processos de enrijecer e alisar o barro, as antigas mesquitas do
Sael e das savanas sudanesas apresentam tetos em abóbada, e os
santuários dos dogons, no atual Mali, e as casas dos mus guns ,
dos Camarões, são verdadeiras esculturas.
O predomínio dessa técnica não significa que a África seja
pobre de arquitetura. Ao contrário. Não só as formas de suas
edificações mudam de região para região e de povo para povo,
como podem ser variadas dentro da mesma área. Para mim, são
‫ך‬2 A Á f r i c a e xp l i ca d a aos me us f i l h o s

especialmente belos os prédios de dois andares construídos pelos


hauçás no norte da Nigéria, com a fachada coberta por arabescos
em relevo ou riscados no barro. Sao sobrados que nos dão tama-
nha impressão de leveza que parecem flutuar.
Já um agbo Üê — o “rebanho de casas” dos iorubás — parece
atarracado, com suas paredes grossas que não hesitam em inch-
nar-se. Chama-se agbo üê porque contém várias casas, uma ‘do
homem e as outras de suas diferentes mulheres. Numa constru-
ção retangular e comprida, com uma grande varanda, abriam-se
várias portas que davam acesso a cômodos sem janelas. Cada
um desses cômodos era uma morada. Se 0 dono era rico ou im-
portante, podia ter quatro construções retangulares compridas,
a se fecharem em quadrado, com um pátio central alpendrado.
E era no alpendre e no pátio que se passava a vida diária, que
se cozinhava, lavava roupa e ate mesmo dormia. O quarto sem
janela era lugar de refugio — nas noites frias e de chuva, por
exemplo — e de guarda de bens.
Nos palacios dos reis eram numerosos os pátios internos, e
os tetos das varandas eram sustentados por colunas de madeira
profusamente esculpidas. O mesmo ocorria no pórtico dos san-
tuários dos orixás.
Um poste de sustentação podia ser uma espécie de cariátide:
uma única figura monumental feminina. Um outro podia ser for-
mado por duas ou três imagens, uma sobre a outra: na base, por
exemplo, uma mulher ajoelhada a sustentar na cabeça, com as
mãos, um tabuleiro sobre 0 qual se mostra um guerreiro a cavalo,
que, por sua vez, agüenta em sua cabeça o peso de uma ancestral
sentada numa cadeira, acannhando os cabelos de duas crianças.
A lb e r t 0 da C o s ta e Si !‫סע‬ 73

Essas esculturas, lavradas, na maior parte das vezes, num


só tronco de árvore, são de uma força extraordinária. Tensas,
de grandes olhos esbugalhados, parecem conter toda a energia
do mundo. E é a isso que aspira a maior parte das esculturas
africanas. Máscaras ou imagens de corpo inteiro são represen■
tações ou receptáculos dos antepassados, dos espíritos da na-
tureza e de outros poderes que regem a vida. Pertencem ao
universo do sagrado. Ou, quando menos, tem motivaçao e fins
religiosos.

Todas?
Nem todas. Os escultores africanos faziam também peças
para o puro prazer estético. Como uma bela colher, a ter por cabo
11ma figura feminina. Além disso, nos grandes reinos, podiam
estar a serviço do Estado e do soberano e esculpir para a glória
destes. Como, porém, os reis eram seres sagrados, encarnações
de deuses ou intermediários entre as divindades e os homens,
é difícil, muitas vezes, considerar uma escultura de corte como
inteiramente despida de função religiosa.
No caso dos chamados bronzes do Benim, por exemplo, tudo
indicaria estarmos diante de uma arte de cprte, destinada a ce-
lebrar 0 poder e a grandeza do soberano. As grandes placas que
cobriam os pilares das varandas do palácio do obá nos mostram,
em alto-relevo e com uma profusão de pormenores, não só o rei
em seu esplendor, cercado por nobres e serviçais, mas também
guerreiros em plena batalha ou cenas da vida diária, como um
caçador a espreitar um passarinho no alto de uma árvore. Boa
parte da escultura do Benim, tanto em ligas de cobre quanto em
74 A A f r i c a e x p l i c a d a aos tneus f i l h o s

marfim — e estas são igualmente belas — destinava-se, porém,


aos túmulos dos reis mortos.
Sob 0 teto de palha que protegia esses túmulos, que eram
verdadeiros santuários, viam-se as cabeças em metal de obás e
rainhas-mães a servirem de base para presas de elefante fina-
mente trabalhadas, e, de corpo inteiro, leopardos, galos, músicos,
mercadores, cavaleiros e até mesmo soldados portugueses. Os
artistas benimenses queriam, sem dúvida, descrever o que viam,
guardar para sempre, numa escultura em redondo ou numa pia-
ca em relevo, um momento de glória ou a beleza de um instante.
Mas 0 destino da maioria de suas peças eram os altares nos quais
se cultuavam os reis mortos.

A q uele holandês ,que se espantou com 0 ta m a n h o d a cidade do


B e n im e com a largura de suas avenidas v iu essas esculturas?

Viu as placas em relevo, mas delas disse apenas que eram de


cobre, que revestiam de alto a baixo os pilares de madeira dos
alpendres do palácio do rei e que tinham por assunto feitos de
guerra. Mais tarde, outros viajantes nos deixaram testemunhos
da riqueza de esculturas nos túmulos reais. O resto do mundo,
porém, só tomou conhecimento da arte do Benim depois que os
britânicos, em 1897, conquistaram e pilharam a cidade, e boa
parte das esculturas foi parar nos museus europeus.

Q u a l f o i a reação dos europeus a essas esculturas?

De surpresa com a alta qualidade técnica da fundição das pe-


ças e do trabalhado quase em-renda da superfície do metal. Mas
poucos, pouquíssimos, foram, num primeiro momento, capa­
A l b e r t o da Cost a e Si l va 75

zes de perceber a extraordinária beleza de suas formas, pois era


distinta daquela a que estavam acostumados. Já quando, poucos
anos depois, eles tomaram conhecimento da escultura de Ifé, a
reação foi de assombro, misturada à descrença de que uma arte
que se assemelhava, em sua pureza de formas, à da antiga Grécia
pudesse ter sido produzida por povos que eram tidos por primi-
tivos ou bárbaros.
O próprio Leo Frobenius, 0 arqueólogo alemão que primeiro
revelou ao resto do mundo a arte de Ifé, chegou a acreditar que
estava diante do que sobrara da lendária Atlântida, ao encontrar,
em 1910, no bosque sagrado dedicado ao orixá do oceano, Olo-
cum, várias terracotas e uma cabeça em bronze que pareciam ter
saído das mãos de gregos da Antiguidade.
Mas não foram as esculturas de feições puras e serenas de
Ifé, nem as saídas das oficinas do Benim, tampouco as estátuas
em madeira de ancestrais feitas pelos hembas do Congo, que
não se afastavam do que consideramos realismo — isto é, da
reprodução do que os olhos vêem, ainda que a seguir certos
padrões fixos de beleza —, as que viriam a causar um impacto
avassalador sobre a arte de nosso tempo. Foram outras. O que
deslumbrou alguns jovens artistas europeus, no início do sécu-
10 XX — rapazes como Derain, Picasso, Matisse, Braque, Kir-
chner, Bracusi e Modigliani —, foram sobretudo as esculturas
de ancestrais e as máscaras de danças rituais daqueles povos
africanos sem estados poderosos, de formas tão distantes e até
contrárias ao que se fazia na Europa. Esses jovens pintores e
escultores deslumbraram-se com 0 que vinha da África e toma-
ram como exemplo as suas lições.
‫ך‬6 Â A f r i c a e xp l i c a d a aos meus f i l h o s

Foi com admiração e humildade que eles se aproximaram


daquelas máscaras de fatura delicadíssima feitas pelos dans da
Costa do Marfim e da Libéria, nas quais as feições se simplificam
numa testa abaulada, num nariz fino e ligeiramente arrebitado,
num queixo pontudo e numa boca entreaberta, tendo, no lugar
dos olhos, dois buracos redondos, se a representação for de ho-
mem, e duas fendas estreitas, se de mulher. Foi, porém, com es-
panto e entusiasmo que eles pararam diante de outras máscaras
dans, nas quais a delicadeza era substituída pela brutalidade das
formas. Pois aqueles mesmos artistas dans faziam outros tipos
de máscaras, que nos parecem ferozes e saídas de pesadelos.
Numa delas, por exemplo, 0 rosto alongado termina, sem quei-
xo, numa boca aberta enorme que, do mesmo modo que a testa
abaulada, se projeta para a frente. O nariz quase não se nota, de
tão pequenino, e, em vez de olhos, temos dois cilindros grossos,
ocos e salientes.
Em máscaras como essas, que encontramos entre tantos ou-
tros povos africanos, em vez de se imitar, reinventa-se o rosto
humano. Os olhos não procuram ter a forma de olhos, nem a
boca, a forma de boca. Um par de protuberâncias com fendas faz
a vez daqueles; e esta é simbolizada por uma espécie de repuxão
na madeira com um orifício quadrado. Um rosto, como em certo
tipo de máscara angico ou tequê, pode ser um simples disco com
a metade superior mais alta do que a inferior, dois simulacros de
olhos na parte de cima e dois na parte de baixo, e várias linhas
circulares a indicarem testa, sobrancelhas, pálpebras, face e boca.
Ou pode, nas ferozes alucinações saídas das mãos dos artistas
songies, do Congo, estar todo coberto de lanhuras coloridas a
A l b e r t o da Cost a e S i l v a

acompanharem os movimentos da madeira, que aqui se levanta


numa crista que se prolonga em nariz, ali se ergue em dois meios
cilindros para representar os olhos e, mais abaixo, num quadrado
a querer ser boca.

E n ão h a via m áscaras que representassem a n im a is?


Havia. Tanto animais reais, como antílopes, elefantes, búfa-
los, crocodilos, leopardos, macacos, diferentes pássaros e peixes,
quanto animais fantásticos, a combinarem traços característicos
de diferentes bichos. E também máscaras em que se juntavam
homem e animal, as mais simples apresentando um rosto huma-
no dotado, por exemplo, de chifres de gazelas.
Na maioria das máscaras, a imaginação se sobrepunha à
realidade. Como nas fan^sasjn,ás caras de antílopes dos bam-
bafas ou bamanas do atual Mali, de uma elegância e riqueza de
formas extraordinárias. Outras eram altamente,.simplificadas,
como as de cobras dos bagas de Guiné-Conacri, á colearem na
direção do céu. Tanto essas serpentes dos bagas quanto os an-
tílopes dos bamanas eram postos no alto da cabeça, como se
fossem um chapéu. E assim eram dispostas muitas máscaras
africanas, fá outras se colavam ao rosto e tinham orifícios para
os olhos.
O que vemos nos museus e nas coleções particulares de arte
africana são, quase sempre, peças incompletas, pois essas escul-
turas em madeira estavam presas a vestimentas de ráfia, couro,
penas, folhagem ou tecidos, que se arrastavam até os pés daque-
les que as usavam. E todo o conjunto era feito para ser visto em
movimento e ganhava na dança o seu esplendor.
78 A A f r i c a exp li cada aos !»eus f i l h o s

Q u a n d o é que a tu a v a m esses m ascarados?

Em diferentes momentos, conforme os costumes de cada


povo. Havia mascarados que representavam os ancestrais ou os
mortos recentes e apareciam nos cultos funerários. Outros se fa-
2;iam presentes nos ritos ligados ao cultivo da terra, e durante as
colheitas. Outros eram indispensáveis nas cerimônias de inicia-
çao dos jovens à vida adulta. Outros, sobretudo nas sociedades
sem Estado, faziam parte de grupos que mantinham a ordem,
reprimiam os crimes e castigavam os que atentavam contra a
harmonia da coletividade.

As pessoas com uns sabiam q u em estava coberto p o r essas m áscaras?


Sabiam. Porém sabiam mais: sabiam que, no momento em
que punha a máscara, 0 seu vizinho deixava de ser ele mesmo,
deixava de ser 0 vizinho, deixava de ser um homem mascarado
e se transformava na divindade, no antepassado ou no espírito
da natureza que a máscara representava. O mascarado era uma
entidade sobrenatural que descia no mundo dos vivos. Tirada a
máscara, ele voltava a ser um homem qualquer. Mas a másca-
ra continuava a ser tratada com toda a veneração. Era guardada
numa cabana especial, num lugar de culto, como um bosque sa-
grado, por exemplo.

A in d a hoje é assim ?

Em muitas comunidades, sim. Noutras, que adotaram os va-


lores do cristianismo ou do islã, as danças de máscaras trans-
formaram-se em festas e perderam total ou parcialmente o seu
caráter religioso ou até mesmo mágico.
A l b e r t o da Gosta e S i l v a 79

Você fa lo u e m d anças de m áscaras. O s m ascarados sem pre se apre-

se n ta v a m dançando?
Ou dançando ou em cortejos, a marchar em cadência, acompa-
nhados por diferentes tambores, agogôs, reco-recos, agüês, sansas,
pífaros, apitos e todo tipo de instrumentos musicais. Na maior par-
te da África, não há, aliás, momento algum de importância na vida
humana que não seja acompanhado de música e de dança.

Talvez p o r isso, q u a n d o se fa la em Á frica, logo p en sa m o s e m m ú -

sica e d a n ç a .
Até porque a África influenciou fortemente a música con-
temporânea, tanto a popular quanto a chamada erudita ou dás-
sica. Quase todos os ritmos populares difundidos do continente
americano para o resto do mundo — a começar pelo samba, a
rumba, o calipso, a salsa e o jazz — têm raízes africanas. Ou
melhor, foram criações, nas Américas, dos africanos e de seus
descendentes. O que esses só raramente preservaram neste lado
do Atlântico — e 0 fizeram na música dos candomblés e no jazz
— foi a riquíssima polirritmia de tantos povos africanos.
A música desses povos se assenta na percussão. Na variedade
extraordinária desses instrumentos. Sobretudo de tambores, de
todos os tamanhos e dos mais variados registros. Há tambores
que vão da mais aguda das vozes para a mais grave. E aqueles que
cantam e, cantando, falam. Como os tambores-falantes dos ioru-
bás, nos quais um bom músico consegue reproduzir a entonação
das palavras e das frases do iorubano. Como o iorubano é um
idioma tonal, quem ouve o tambor sabe o que ele está dizendo,
ou melhor, cantando.
80 A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

C om o é esse ta m b o r fa la n te ?

Ele é pequeno, em forma de ampulheta, de 50 centímetros


ou pouco mais de comprimento, com pele estendida nos dois
lados. As membranas do alto e da base são ligadas entre si por
um grande número de cordões de couro, que, quando premidos,
alteram a tensão das peles. O músico coloca 0 tambor horizontal-
mente debaixo do braço e bate nele com uma baqueta encurvada.
Conforme aperta as cordas do tambor contra 0 corpo, 0 músico
consegue uma grande variedade de tons em suas batidas.

E u sem pre pensei, ao ver os film e s e ao ler os livros âe T a rza n , que


era n u m a espécie de código M orse que os africanos en v ia v a m m ensa-

gens a d istância naqueles tam bores escavados e m troncos de árvores.

Talvez pudesse, em certos casos, ser assim. Essas mensagens,


quase sempre simples, podiam também ser cantadas nos gran-
des tambores.

E n tã o u m a b a tu ca d a correspondería n a Á frica a u m coral?

Digamos que sim. E que à polifonia da música européia cor-


respondería a polirritmia da africana. Pois o que caracteriza boa
parte da música africana é a polirritmia, ou seja, várias linhas
rítmicas a operar ao mesmo tempo. Quem não está acostumado
à música tradicional africana tem dificuldade em acompanhar
essa multiplicidade de ritmos, que parecem desenvolver-se inde-
pendentemente e se entrelaçar. Um ou dois tocadores de agogô e
alguns cantores a bater palmas, por exemplo, mantêm um ritmo
básico, imutável, enquanto cada tamborileiro desenvolve ao seu
jeito 0 seu próprio tema rítmico.
A l b e r t o da Costa e S i l v a 81

C urioso , 0 ta m b o r fa la n te dos iorubás não veio p a ra 0 B rasil .

Se veio, logo deixou de ser usado. Ficou esquecido. Como tan-


tos outros instrumentos africanos.
Vejam os exemplos do c h ip en d a n i e de outros arcos musicais
semelhantes, tão usados em Moçambique e em Angola. Deles, o
urucungo, chitende ou berimbau de barriga teve ampla difusão no
Brasil, ligado à capoeira. Já o ch ipendani, não. Ele se distingue do
berimbau de barriga por não ter uma cabaça como caixa de resso-
nância. É a boca do executante que funciona como tal, a abarcar
a tala do arco com os lábios.
Um outro caso, que me intriga ainda mais, é o do xilofone,
marimba ou balofon. Que o xilofone africano chegou ao Brasil,
chegou, pois uma gravura da primeira metade do século XIX nos
mostra, na rua, um músico negro a tocar num xilofone pendu-
rado ao pescoço. Mas não sei por que razão foi abandonado e,
durante muito tempo, esquecido, até retornar, como um instru-
mento requintado, nas orquestras modernas.
Os africanos trazidos à força para as Américas aqui encontra-
ram os instrumentos musicais europeus, e não tardaram em ado-
tá-los. Absorveram também a música que agradava aos senhores
e, misturando-a com a sua, inventaram novos gêneros e estilos
que mantiveram a essência africana. Mais do que a música tra-
diáonal africana, foi a criada pelos negros nas Américas a que,
no século XX, se difundiu por todo o mundo. Numa espécie de
viagem de volta, exerceu ela também grande influência sobre a
música que se passou a fazer nas cidades africanas.
Sexta conversa
Na metade do século XiX, a África era ainda um continente
cheio de segredos para a Europa e as Américas, e eram relati-
vamente poucos os africanos que sabiam alguma coisa sobre
os europeus. Estes conheciam os litorais da África e os cursos
inferior e médio de alguns de seus rios. Porém estavam, em
geral, em terra desconhecida a !‫ סס‬quilômetros da costa, ou a
menos. E a essa distância do litoral, não era incomum encon-
trar quem jamais tivesse visto um europeu ou dele só recebes-
se as mais. vagas notícias. Para uns, por exemplo, parecia mais
macaco do que gente, porque tinha 0 corpo com pêlos e era
quase sem lábios. Para outros, como andava de sapatos, não
possuía dedos nos pés.
Fora das áreas em que se haviam estabelecido como co-
lonos, no Senegal, em Angola, em Moçambique e na África
do Sul, os europeus tinham-se restringido a comerciar no
litoral. Os fortes existentes na Costa do Ouro, por exemplo,
eram entrepostos comerciais só diferentes dos demais esta-
belecimentos europeus por terem sido construídos em pedra.
Os próprios navios funcionavam como feitorias — feitorias
móveis que ancoravam em qualquer enseada onde houvesse
possibilidade de comércio.
86 A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

Já mencionei que os reis e chefes africanos dificultavam, quan-


do não impediam, que os europeus fossem vender e comprar no
interior. Tinham estes de se resignar a fazer negócios com os in-
termediários africanos, que traziam até as praias o ouro, o almís-
car, as peles, o marfim, as plumas e, sobretudo, os escravos. Pois
0 ser humano, desde que as embarcações européias começaram
a freqüentar os litorais africanos, foi-se tornando cada vez mais a
principal mercadoria por elas procurada.
Durante quase quatro séculos, para suprir de mão-de-obra
o continente americano, a África foi despojada de uma enorme
parcela de sua gente. Estima-se que cerca de 12,5 milhões de
pessoas desembarcaram à força nas Américas — entre 4 e 5
milhões no Brasil. Quando se considera que muitos dos escra-
vizados morreram na longa caminhada do interior até a costa
(uma caminhada que podia estender-se por meses), que outros
muitos faleceram nos barracões onde ficavam presos até a che-
gada dos navios, e que outros sucumbiram durante a terrível
travessia do Atlântico, percebe-se que a perda humana da África
foi muito maior.

N ã o havería ta m b é m que co n ta r os que m orrera m n o processo de


ca p tura?

Claro que sim. E não se pode esquecer que muitos dos que
eram submetidos ao cativeiro ficavam na África subsaariana,
como escravos. Sobretudo as mulheres e as crianças pequenas. Já
se calculou, aliás, que, para cada pessoa vendida para as Améri-
cas e para o mundo muçulmano, duas ou três permaneciam com
os seus captores ou eram comercializadas ao sul do Saara.
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 8y

Se n ão ouvi m al, h a via ía m h é m u m com ércio ãe escravos com os

países m u ç u lm a n o s .

E desde muitos séculos. Calcula-se que, entre os anos de 650


e 1600, cerca de 8 milhões de pessoas foram conduzidas à for-
ça para 0 mundo islâmico — para a Africa do Norte, 0 Oriente
Médio e os países do Indico. Se estendermos o período até 1905,
0 número chegaria a 17 milhões. Esse número, porém, corres-
ponde a 12 séculos e meio de tráfico, e os milhões do comércio
transatlântico de gente a apenas quatro. O impacto desde último
foi, portanto, muito mais violento. E pior ainda quando se sabe
que a metade desses africanos foi trazida para as Américas num
único século, q XVIII, è pouco mais de um terço, nas primeiras
seis décadas do XIX. Entre 8 e 10 milhões foram, portanto, de-
sembarcados no continente americano em cerca de 150 anos.

Como se passava de h o m e m livre a escravo?


A maioria dos escravos era de prisioneiros de guerra. Muitas
dessas guerras tinham motivos políticos: embora não se desti-
nassem a produzir escravos, os vencidos ou eram massacrados
ou caíam em cativeiro, muitos deles passando, em seguida, às
mãos dos mercadores.
Havia, porém, um outro tipo de guerra, cuja finalidade era
obter escravos, como, por exemplo, as campanhas militares mo-
vidas anualmente contra os vizinhos pelos reinos de Borau e do
Daomé, e as “guerra santas‫ ״‬contra os pagãos do estado islâmico
de Futajalom. Esse tipo de guerra, do mesmo modo que a prática
de razias, ou ataques de surpresa aos vilarejos de povos militar­
88 A Áf r i ca e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

mente fracos, tornou-se mais freqüente à medida que aumentou


a procura de escravos pelos europeus. Eram guerras e razias pro-
vocadas pelas pressões dessa demanda. E é de se imaginar que
nelas morresse tanta gente quanto aquela capturada. Ou mais.
Havia quem fosse escravizado por motivos políticos. A facção
vitoriosa, em vez de matar os adversários, os exilava, e com lucro,
ao vendê-los para a outra margem do Atlântico. Havia aqueles,
sobretudo crianças, que eram seqüestrados quando tomavam
banho de rio ou brincavam fora das cercas que protegiam as al-
deias. E aqueles que eram capturados, sem resistência, no meio
de uma viagem. E mais ainda: os que eram condenados à escra-
vidão, muitas vezes com toda a família, por crimes como assas-
sinato, agressão armada, furto, adultério e feitiçaria. Q número
desses condenados foi aumentando, porque os reis e chefes, de-
sejosos de atender à demanda dos mercadores — que, quanto
mais era atendida, mais crescia —, passaram a aplicar a pena de
escravizaçao a delitos insignificantes.

O que sem pre m e intrigou é p o r que os africanos escra viza va m os


próprios africanos e os v e n d ia m aos brancos.

Os africanos não escravizavam africanos, nem se reconhe-


ciam então como africanos. Eles se viam como membros de
uma aldeia, de um conjunto^ de aldeias, de um reino e de um
grupo que falava a mesma lín gua, tinha os mesmos costumes e
adorava os mesmos deuses. Eram, ainda que pudessem ignorar
estes nomes — que muitas vezes lhes eram dados por vizmhos
ou adversários—,.mandingas, fulasrbijagós, axantes, daomea-
rios, vEis, iacas, caçanjes, lundas, niamuêzis, macuas, xorias — e
A l b e r t o da Cost a e Si !‫ מ‬a S9

escravizavam os inimigos e os estranhos. Quando um chefe efi-


que de Velho Calabar vendia a um navio europeu um grupo de
cativos ibos, não estava vendendo .africanos nem negros, mas
/'ibos^uma gente que, por ser considerada por ele inimiga e bár-
bara, podia ser escravizada. E quando negociava ur^fiquq)con-
denado por crime, vendia quem, por força ^ sentença^ deixara
de pertencer ao grupo.
O comércio transatlântico de escravos era controlado pelps gram
des da terra,, pelos poderosos da Europa, da África é; das Américas.
Fazia parte de um processo de integração econômica do Atlântico,
que envolvia a produção e a comercialização, em grande escala, de
açúcar, algodão, tabaco, café e outros bens tropicais, um processo
no qual a Europa entrava com 0 capital, as Américas com a terra e
a África com o trabalho, isto é, com a mão-de-obra cativa.

Mas, se não estou enganado , a grande g a n h a d o ra era a E uropa, e


a Á frica só perd ia n o processo.

Você está certo. Mesmo que algumas áreas do continente afri-


cano se enriquecessem e se tomassem poderosas em conseqüên-
d a do comércio de escravos, 0 enriquecimento e o poderio eram
passageiros e ilusórios.

E ntão houve sociedades africanas que enriqueceram e se fortalece-

ra m co m 0 tráfico?

Houve. Os grandes reinos, como Futa Jalom, Axante, Daomé,


Oió e Lunda, que produziam com suas guerras grande número
de escravos. Os estados médios e pequenos, da costa (como os
reinos fantes, Porto Novo e Onim ou Lagos) ou do interior (como
90 Λ A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

Macoco, Matamba e Caçanje), que, além de capturar escravos,


serviam também de intermediários para os europeus.
Graças às armas de fogo obtidas com a venda dos cativos, es-
ses reinos tiveram seu poder militar consideravelmente aumen-
tado e puderam se impor sobre os vizinhos, que reduziram à vas-
salagem. Neles, cresceu a população, sobretudo a escrava, pois
não vendiam a maioria das mulheres que aprisionavam e nelas
geravam, conforme o caso, novos escravos ou novos membros do
reino. Houve também um afluxo de soldados mercenários para
esses estados e de todo o tipo de gente atraída pela riqueza que ali
se aparentava ou pela generosidade do soberano.
Enquanto nesses reinos a população crescia, outras áreas da
África-foram se despovoando. Podia-se, no fim do século XVIII,
andar dezenas ou até centenas de quilômetros sem encontrar
uma única aldeia. Tudo havia sido dizimado pelos caçadores de
escravos. Muitos dos sobreviventes de razias saíram de suas ter-
ras e foram refugiar-se nas montanhas rochosas, nas ilhotas no
meio de lagos, nos pântanos e nas florestas mais densas. Houve
pequenos povos que desapareceram para sempre: seus nomes
figuram nos documentos do século XVII ou do início do XVIII e,
pouco depois, somem dos textos.

Você disse que 0 fo rta lecim en to desses reinos que se d ed ica ra m ao

com ércio de escravos f o i ilusório. P or quê?


Porque o comércio de escravos, além de violento e cruel, era
também antieconômico. Rapazes e homens no esplendor da ca-
pacidade física, indispensáveis para 0 aumento da produção em
sociedades sem máquinas, eram trocados por armas e por bens
A/!i>ert«> da Cost a e S í/ua 9*

supérfluos ou de luxo, quando não inúteis: algodões da índia, se-


das da China, brocados da Pérsia, contas de Veneza, conchas das
Maldivas, chapéus emplumados, aguardentes, vinhos, tabaco,
artigos de cobre, caixas de música, grandes espelhos com moldu-
ras douradas, candelabros de prata, cadeiras de balanço, camas
com dossel de damasco, nas quais ninguém dormia, penteadei-
ras para as quais não havia uso e carruagens requintadas que só
saíam, puxadas por escravos, das cabanas onde eram guardadas
quando o rei queria mostrar quanto era rico.
Em ocasiões especiais, por exemplo, 0 dada ou rei do Dao-
mé fazia retirar de seus depósitos os melhores dos seus bens e
os exibia num longo cortejo, do qual participavam centenas das
suas mulheres, vestidas com os melhores tecidos e enfeitadas de
colares de coral e braceletes de prata.
Quanto às armas de fogo que recebiam, elas eram, na maioria
dos casos, quase sempre de modelos que tinham deixado de ser
usados pelos exércitos europeus. Assim, no fim do século XIX, 0
grosso do poder de fogo africano baseava-se em espingardas de
carregamento pela boca.

Mas essas a rm a s, em bora a n tiq u a d a s, n ã o d a v a m aos estados a fii-


canos que as p o ssu ía m v a n ta g e m sobre os dem ais?

Davam, nos conflitos entre povos africanos. Revelaram-se,


contudo, pouco eficazes quando os países da Europa, no último
terço do século XIX, decidiram conquistar a África. Foram, aliás,
os reinos africanos envolvidos no comércio de escravos os primei-
ros a serem dominados pelos europeus. E isto porque, de início,
92 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

a intervenção militar européia, sobretudo a britânica, assumiu a


forma de combate ao tráfico de escravos.

C om o f o i isso?

No fim do século XVIII, aumentou na Europa, principalmente


na Grã-Bretanha, a pressão popular pela extinção do comércio de
escravos, como primeiro passo para a abolição total da escravatura.
Como resultado dessa grande pressão humanitária, em 1807, em
Londres, o Parlamento aprovou uma lei, com vigência a partir do
ano seguinte, que proibia aos súditos britânicos 0 tráfico de escra-
vos. A Dinamarca já o havia vedado, desde 1802, aos seus nacionais,
e outros países seguiríam 0 exemplo britânico: os Estados Unidos
em 1808, a Suécia em 1813, os Países Baixos um ano depois. A
França, após voltas e contravoltas, acabaria por tomar definitiva-
mente ilegal o tráfico de africanos em 1818. Ativos, até pouco além
da metade do século, continuariam os portugueses, os brasileiros ê
os espanhóis, sobretudo a partir dos portos do Brasil e de Cuba.
Ao mesmo tempo em que reprimia os seus súditos — em
1811, comerciar com escravos tomou-se um crime punido com
a pena de morte —, a Grã-Bretanha passou a empenhar-se para
que todos os países restringissem ou eliminassem o tráfico tran-
satlântico de negros.

E studam os no colégio que a pressão sobre 0 B rasil fo i enorm e. Os


ingleses chegaram a apreender navios nas águas territoriais brasilei-
ras e a té e m nossos portos.

Se era assim em relação a um país governado por um impe-


rador com laços familiares com as grandes casas reais da Euro­
A l b e r t o da Costa e S i l v a 93

pa, imaginem como os britânicos e os outros europeus tratariam


os reis e chefes africanos, que eles tinham por bárbaros. Houve
todo tipo de trapaça e violência, tudo sob o pretexto, primeiro, do
combate ao tráfico de escravos e, depois, da liberdade de comér-
cio. Comandantes de navios, cônsules instalados em certos por-
tos africanos e missionários cristãos convenciam reis, régulos e
chefes africanos, quando não os forçavam, com os canhões dos
navios apontados para suas aldeias, a assinar tratados pelos quais
se comprometiam a não mais comerciar com escravos ou se pu-
‫ ת‬ham na dependência — sob a proteção, era como se dizia — de
países europeus. Muitas vezes, os líderes africanos não tinham
conhecimento do verdadeiro conteúdo desses documentos, pois
o que liam para eles era uma tradução falsa ou incompleta.
O combate ao tráfico de escravos foi acompanhado não só por
um grande entusiasmo pela catequese cristã, mas também pela
convicção que tinham os europeus de que estavam mais adianta-
dos, política, econômica e socialmente, do que os demais povos,
e de que tinham o dever de conduzir os mais atrasados pelos
caminhos do progresso.

E n ã o esta va m realm eníe m a is adia n ta d o s?


Do ponto de vista técnico, sim. A Europa atravessava, aliás,
uma fase de extraordinária expansão econômica. Necessitava de
matérias-primas e de mercados, sobretudo para os produtos que
saíam em quantidades cada vez maiores de suas indústrias. A
África dispunha de muitas dessas matérias-primas, como o algo-
dão, as ceras, a goma arábica e os óleos vegetais, principalmen-
te de coco, de amendoim e de palma ou dendê. E podería vir a
94 A A f rica e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

produzir, como realmente se verificou, outros bens agrícolas de


grande valor, como o cacau e o café, introduzidos pelos europeus.
O caso do café é curioso: nativo da Etiópia, onde era cultivado e
vendido para o mundo árabe, não se difundira para o resto da
Africa. Ali só chegaria no século ΧΪΧ, por influência européia.

Esse óleo de p a lm a ou de dendê era 0 m esm o a ze ite de dendê co m


que fa z e m o s 0 va ta p á e outras com idas b aianas?

O mesmíssimo, usado tradicionalmente na culinária, em al-


gumas regiões da África (sobretudo no golfo do Benim, na baía
de Biafra e em Angola), da mesma maneira que nós. Na África,
era, porém, também empregado como combustível, para alumiar
as casas, em pequenas lâmpadas de barro.

Era p a ra uso culinário que os europeus esta va m interessados no

a zeite de dendê?

Não. O azeite de dendê não entrou na cozinha européia, na


qual dominava o óleo de oliva — o azeite doce dos portugueses.
O que sucedeu foi que os europeus encontraram novos empre-
gos para os óleos vegetais. O de dendê passou a ser usado como
lubrificante de máquinas, no fabrico de velas, na produção de
glicerina, na fundição do estanho e na indústria de sabonetes.
Como conseqüência, a demanda por óleo da palma, desde a pas-
sagem do século XVIII para ο XIX, não parou de expandir-se
num a Europa crescentemente mecanizada e que, pouco a pou-
co, começava a se acostumar a lavar os pés antes de dormir, as
mãos e o rosto mais de uma vez por dia e a tomar banho de vez
em quando.
A l b e r t 0 da Cost a e S i l v a 95

Além disso, os europeus estavam convencidos de que a Afri-


ca seria um grande mercado para os produtos de sua indústria
a partir do momento que se civilizasse, isto é, que adotasse as
crenças, os valores e os modos de vida dominantes na Europa.
Contavam para isso com a ação dos missionários cristãos e dos
comerciantes europeus, Mas tinham pressa, e tanto aqueles
quanto estes não pareciam ohter os resultados que deles se es‫־‬
peravam. As conversões ao cristianismo eram poucas — em sua
maioria de escravos — e, além de ser diminuto o número de alu-
nos nas escolas dos missionários, os aristocratas mantinham os
seus filhos longe delas. Quanto aos comerciantes europeus, eles
não conseguiam ter acesso direto aos produtores africanos e se
queixavam não só das limitações que os reis e chefes africanos
impunham à liberdade do comércio, mas também das altas taxas
e impostos por eles cobrados.
\O s interesses europeus conflitavam com os dos dirigentes
africanos. Se os chefes africanos ambicionavam manter fe-
chados seus territórios, para preservar a soberania que neles
Vl\s... . .. . , ............................................................

exerciam, os europeus almejavam abri-los ao trânsito de seus


mercadores e missionários, instalar neles entrepostos fortifica-
dos e navegar sem restrições pelos cursos d’água. Enquanto os
africanos não viam razão para alterar suas estruturas políticas,
administrativas, judiciárias e religiosas, os europeus, conside-
‘rando‫־‬as bárbaras e mesmo cruéis, pretendiam substituí-las
pelas suas ou, pelo menos, purificá-las. Era para eles inconce-
bivel que os africanos preferissem as suas crenças tradicionais
ao cristianismo e não se convencessem com a pregação dos
missionários. È ficariam ainda mais estarrecidos; se soubessem
96 A Á f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

que aqueles que queriam converter consideravam a religião dos


cristãos doentia e absurda.
Não demorou muito para que, na Europa, falassem cada vez
mais alto e para ouvidos mais receptivos os que argumentavam
que nem a cristianização, nem a expansão do comércio, nem o
abandono de costumes bárbaros — como os sacrifícios humanos
e os suicídios rituais — se dariam enquanto os europeus não
assumissem o controle político da África.

S e rá q u e o u v i h e m ? O s a fric a n o s p r a tic a v a m sa crifício s hu~


m anos?

Não eram nisso diferentes de outros povos — dos antigos gre-


gos, por exemplo, mais do que admirados, venerados na Europa
do século XIX. Na África, não havia nada mais valioso do que o
ser humano, e era 0 que havia de mais valioso 0 que se ofertava às
divindades. Entre alguns povos, o sacrifício humano era o mais
solene de todos os ritos da fé. Não podiam compreender como se
pudesse querer aboli-lo. Seria como proibir aos católicos a missa.
Condená-lo e, pior ainda, impedi-lo, como faziam os europeus,
era um sacrilégio.
Os europeus também se horrorizavam com a prática, entre
certos povos^do suicídio ritual. Quando morria um rei ou um
grande dignitánoTsuas mulheres, ou algumas delas, e seus prin-
cipais servidores 0 acompanhavam no túmulo, a fim de conti-
nuar a atendê-lo no outro lado do mundo. Suicidavam-se. Quem
deixasse de fazê-lo caía em completa desonra, tomava-se um ré-
probo, um amaldiçoado.
A l b e r t o da Cosia e Si l va 97

N ã o havia, p o ré m , q u em fosse m orto contra a vontad e p a ra acom -

p a n h a r 0 rei?
Havia. E não só para acompanhar o rei. Ou os aristocratas.
Entre algnns povos, um chefe de família que fosse dono de es-
cravos teria alguns deles sacrificados no seu túmulo. E, se não os
possuísse, não seria de se estranhar que os seus parentes com-
prassem ao menos um, para ser enterrado com ele.

E n tendo a dificuldade de u m cristão em aceitar essas práticas. De-

v ia m provocar repulsa e indignação n a E uropa .


Tanto que foram usadas para justificar agressões armadas.
Como foi o caso da conquista britânica do reino do Benim, em
1897. As razões do ataque foram outras — a recusa do obá ou rei
a aceitar o protetorado e a abrir 0 seu território ao comércio britâ-
nico —, mas a expedição punitiva contra o Benim ganhou o apoio
da opinião pública européia, por se dizer destinada a acabar de
vez com os sacrifícios humanos.
Nos relatos sobre a campanha militar não se destacaram os
ataques contra as aldeias benins, que eram impiedosamente in-
cendiadas. Toda a ênfase foi posta no grande número de indiví-
duos sacrificados que se viam presos, de braços abertos, ao longo
do caminho, nas copas das árvores.
O que pareciam ignorar os britânicos é que eles próprios
eram, em última análise, culpados por esses sacrifícios sangrem
tos: os mortos eram numerosos porque, num momento de crise
tão aguda, se haviam multiplicado as oferendas aos deuses, a fim
de lhes aplacar a ira e fazer com que parassem o avanço das tro-
pas invasoras.
9S A A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

Essu expedição p u n itiv a não fo i, n a verdade, u m a guerra de con-


q u ista ?

Essa e muitas outras, e com os mais variados pretextos. Veja


0 caso do reino de Gaza, que ficava ao norte do rio Limpopo, em
Moçambique. Em 1894, um chefe ronga levantou-se em armas
contra os portugueses de Lourenço Marques (atual Maputo). Der-
rotado, refugiou-se do outro lado do rio, na corte do grande rei
de Gaza, Gungunhana. Os portugueses exigiram que este lhes
entregasse o chefe ronga e, diante da recusa, decidiram castigá-
10. Ao lhe invadir as terras, viram desfazer-se o poder, tido como
enorme, de Gungunhana, porque os guerreiros tsongas deserta-
ram em massa de seu exército. Era esta, aliás, a fraqueza do reino
africano: estava formado por um grupo dominante angúni que se
impusera militarmente sobre as massas tsongas.
Desde 0 século XVI, os portugueses e, trezentos anos mais
tarde, os franceses, britânicos e alemães souberam usar os povos
mais fracos contra os mais fortes que desejavam submeter. Alia-
ram-se àqueles e somaram os seus grandes números aos contin-
gentes, em geral pequenos, de militares europeus. Além disso,
recrutaram africanos para as suas tropas ou com eles constituí-
ram unidades especiais. Como os tirailleurs sénégalais, os fuzilei-
ros senegaleses formados pelos franceses no Senegal Ou como a
polícia militar hauçá, empregada não só na Nigéria, onde foi cria-
da pelos ingleses, mas em outras partes — na Costa do Ouro, por
exemplo, na campanha contra o reino axante. Os britânicos orga-
nizaram essa tropa libertando escravos hauçás de seus senhores_
iorubás, treinando-os como soldados europeus e lhes dando, de
certo modo, na vida diária, autoridade sobre os antigos donos.
A l b e r t o da Cost a e Si l va 99

Mas voltemos ao Gugunhana. O objetivo real da campanha


militar não era dar uma lição no rei de Gaza, e sim, a conquista
do território ao norte do Limpopo. Gugunhana foi deposto, le-
vado para Portugal como prisioneiro, vindo a morrer em 1906
numa prisão nos Açores, e o que fora o seu reino passou para 0
domínio português.
Na realidade, Portugal, que tinha uma presença de séculos em
Moçambique, passara a ter os seus chamados ‫״‬direitos históricos
sobre aquelas terras contestados por outros países europeus, que
impuseram, na Conferência de Berlim sobre a África Ocidental,
de 1884 e 1885, a doutrina de que só se podia reivindicar como
possessões no continente africano territórios sobre os quais se
tivesse “controle efetivo", ainda que esse controle fosse mais apa-
rente do que real. E Portugal teve de se apressar em assumir esse
controle, pela ameaça ou pelo uso efetivo das armas, não só em
Moçambique, mas também em Angola e na Guiné.
Sétima conversa
No último terço do século XIX, possui? colônias passou a ser,
para os países europeus, um requisito para se afirmar como po-
tência. Por isso, na corrida por territórios na África, iniciada pela
França e pela Grã-Bretanha, logo se envolveram a Alemanha, a
Itália e ate mesmo um indivíduo, Leopoldo II, o rei dos belgas.
-Atuando independentemente do governo de seu país, Leopoldo
conseguiu para si, como uma espécie de propriedade particular,
0 enorme e riquíssimo território que viría a se chamar Estado
Livre do Congo.
À medida que se caminhava para 0 fim do século, tomou-se
cada vez mais agressivo o avanço europeu sobre as terras africa-
nas. Um após outro, foram sendo vencidos os estados africanos
que podiam opor-se a esse avanço, graças à vantagem que davam
aos europeus o canhão de campanha montado sobmròdaa; 0 rifle
de ferrolho e de repetição, a metralhadora e, em alguns casos, a
cavalaria. É bem verdade que alguns reis africanos dispunham
também de rifles modernos e de pequenos canhões, porém em
número insuficiente ou nas mãos de soldados despreparados
para usá-los.
Apesar disso, a conquista da África'não foi tarefa simples[ nem
rápida. Muitas vezes, os europeus sofreram reveses. Como na
batalha de Isandhlwana, por exemplo, em janeiro de 1879, quan‫־‬
104 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

do cerca de 25 mil Zulus do rei Cetshwayo derrotaram as tropas


britânicas, que somavam 16 mil homens, sendo 7 mil europeus e
9 mil africanos. O exército zulu era disciplinadíssimo, uma ver-
dadeira máquina de guerra, e, apesar da inferioridade em armas
— contava apenas com as ;tradicionais lanças de ca'bo curtcj( es-
cudos de couro e espingardas carregadas pela boca —, venceu
novamente os britânicos em Rorke’s Drift, Eshowe e Hlobane,
antes de cair em Ulundi, em julho daquele ano.
Se os britânicos acabaram por dominar a Zululândia, os ita-
lianos tiveram de adiar por quarenta anos a conquista da Etiópia,
depois da derrota que sofreram em Adua, em março de 1896.
Nessa batalha, os exércitos do negus Menelik praticamente hu-
milharam os 17 mil homens comandados pelo general Oreste
Baratieri.

Tanto n u m caso q u a n to no outro as vitórias africanas fo r a m sobre


tropas num erosas e bem arm adas.

É verdade. E mesmo quando não logravam vitórias espetacu-


lares como essas, os africanos faziam os europeus pagarem caro
pelo atrevimento das conquistas. Em vários lugares, estas só se
efetivaram após repetidas e frustradas tentativas. A uma vitória
sucedia uma derrota, seguida por uma nova vitória e uma outra
derrota. Em certas regiões, a conquista só se completou após vá-
rios anos de repetidos combates. No caso do chamado império
diula (de Samori, 16 anos — de 1882 a 1898.
Esse império ocupava a porção orientai da atual República da
Guiné, parte do sul do Mali, um pedaço de Serra Leoa e outros
do noroeste da Costa do Marfim. Estendia-se, portanto, por uma
A l b e r t o da Costa e Si l va 105

ampla área, e era um império recente, criado por um chefe mili-


tar de gênio chamado Samori. Este, desde cedo, compreendeu a
importância da cavalaria e dos rifles modernos, e procurou obter
cavalos do Sael e da Africa do Norte em troca dos escravos que
fazia em suas campanhas, e conseguir rifles de ferrolho, e até
mesmo de repetição, dos ingleses do litoral da Serra Leoa. Tinha
duas mercadorias a lhe oferecer: marfim e ouro — 0 ouro da re-
gião de Buré, que estava sob seu controle.
Com armas modernas, conhecedor do terreno e contando
com a extrema mobilidade de seus exércitos, Samori ganhou
mais batalhas contra os franceses do que perdeu. Mas tinha cons-
ciência de que cada vitória apenas adiava a sua derrota definitiva,
pois via aumentarem as tropas francesas enviadas contra ele. Em
18 9 ^to rn o u a decisão de abandonar o seu território para o iriimi-
go e deslocar para o leste os seus exércitos. Com eles, não tardou
a construir pela força das armas um novo império, que viria a es-
tender-se, no norte da Costa do Marfim e da Costa do Ouro (atual
Gana), do rio Sassandra até o Volta.
Durante algum tempo, os franceses, talvez por ignorarem o
seu paradeiro, 0 deixaram em paz. Mas as tropas do Samori não
repousaram, pois ele teve de lidar com.a resistência, e a insubmis-
são dos povos sobre os quais se impusera. Tentou compor-se com
os europeus, mas seus novos territórios estavam, por assim dizer^
no ponto de encontro das ambições dos britânico^e dos france-
ses. Os britânicos, que haviam derrotado ó^áxantes ^avançavam
para 0 norte, com 0 objetivo de dominar Gonja e os estados grun:
xes e mossis. Já os franceses pretendiam juntar as conquistas
feitas no Mali e na Guiné — nas quais se incluíam os territórios
106 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

que haviam tomado a Samori — aos seus estabelecimentos na


Costa do Marfim·
Os britânicos, reconhecendo em Samori um adversário peri-
goso^ deixaram de vender a ele armas de fogo, e esse, que perdera
0 domínio de Buré, não dispunha mais de ouro para convence-
los de que valia a pena comerciar com ele.
Em 1897, recomeçaram as escaramuças e as batalhas com os
franceses, que avançavam para leste. Novamente, as tropas de Sa-
mori lograram vitórias que antecipavam derrotas. Em meados de
1898, ele decidiu encaminhar-se, em plena estação chuvosa, para
uma região montanhosa e coberta de florestas do oeste da atual
Costa do Marfim. Ali, acompanhado por um pequeno contingen-
te, foi surpreendido pelos franceses, que o capturaram. Samori
foi exilado para o Gabão, onde morreu de pneumonia em 1900.

Em 3900, a Á frica negra j á estava toda sob 0 controle dos europeus?


Não. Ainda que estivesse perto disso. Eram independentes
, ‫י‬ w \ ·‫זין‬..7 ^ _ \
não so ã Etiópia e a\Libéria, Uma república fundada para abrigar
ex-escravos e descendentes de escravos norte-americanos, mas
também vários reinos africanos, que só seriam conquistados na
primeira ou no começo da segunda década do século XX. Como
jrU adah.que ficava no leste da atual República do Chad e só se
submetería aos franceses em 1912; 0 califado de Socotô, no norte
da Nigéria, vencido em 1903; |0 império canúri de Bornu, junto
ao lago Chade, ocupado pelos britânicos em 1904; o reino de Ba-
mum, na atual República dos Camarões, que se tornou um pro-
tetorado alemão em 1902; ou os vários reinos ovambos, no sul de
Angola, só submetidos pelos portugueses entre 1907 e 1915.
A l b e r t o da Cost a e Si l va 10 ‫ך‬

Tendo sido tão fo r te a resistência à conquista européia, os africanos


a ceita ra m com resignação 0 d o m ín io colonial?

Alguns, sim; outros, talvez a maioria, não. E já no dia se-


guinte à captura ou submissão de um rei africano, sucediam-se
os atos de desobediência e se começava a preparar as revoltas.
Cito algumas: as dos andebeles e xonas, em 1896 e 1897, n0
que é hoje a República de Zimbabué; a dos timenés de Bai Buré,
na Serra Leoa, em 1898; o movimento Maji Maji, na atual Tan-
zânia, em 1905 e 1906; o grande levantamento zulu, em 1906;
as rebeliões, em 1915 e 1916, dos baribas do oeste da Nigéria e
doléste da atual República do Benim, contra os ingleses e com
tra os franceses, que baviam dividido entre si os territórios que
àqueles pertenciam.

N ã o f o i fá c il, p o rta n to , p a ra os europeus , 0 controle e a a d m in is-


tração dessas vastas conquistas.
Com certeza, não. E não só por causa da inconformidade
dos nativos com 0 domínio estrangeiro ou da reação contra im-
postos como a odiosa taxa por cabana — que 0 africano pagava
para morar na sua casa e na sua terra — , ou contra a obrigato-
riedade de prestar serviço, sempre que convocado, na abertura
de estradas ou como carregador nas caravanas. Na realidade, a
África mostrava-se muito mais complexa do que pensavam os
europeus e exigia, para se tornar o El Dorado que tinham imagi-
nado, um volume de investimentos, que nem sempre estavam
dispostos a fazer, em portos, ferrovias, estradas de rodagem e
linhas telegráficas, além de hospitais e escolas.
10& A Á f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

E não demoraram as decepções. A África não se revelou a cur-


to prazo um grande mercado para os produtos industriais euro-
peus. O seu ritmo e os seus padrões de consumo eram diferentes
e>se os tecidos estampados de algodão gozavam de boa procura,
eram pouquíssimos os africanos que tinham uso para talheres
de alpaca, botas, sapatos e quase todos os demais bens que saíam
das fábricas européias.
Até pouco antes da Segunda Guerra Mundial, os países euro-
peus que se lançaram na aventura imperialista esperavam que
as colônias que haviam adquirido na África pagassem com seus
impostos por sua administração — 0 que não acontecia, È pare?
cè não terem previsto que seria complicado e caro manter ne-
las tropas e um funcionalismo público em número adequado.
Sem a concessão de vantagens — principalmente de avanços na
carreira — era difícil convencer um bom servidor público a ir
para a África. E, mais ainda, para o exercício de funções menores.
Sobretudo porque, apesar dos avanços da medicina — o uso do
quinino, por exemplo, ajudava a conter os estragos da malária
—, a maior parte da África era considerada ‫״‬o túmulo do homem
branco‫״‬. Houve algumas áreas de clima ameno, como a Rodésia
do Sul (atual Zimbabué) e o Quênia, que atraíram imigrantes
europeus — gente que desejava construir uma nova vida no con-
tinente africano. Elas se somaram a regiões onde a presença de
colonos já era antiga, como Angola, Moçambique e África do Sul.
Mas, mesmo no caso de Angola e de Moçambique, 0 número de
portugueses que para lá se dirigiam era muitíssimo menor do
que 0 daqueles que preferiam emigrar para o Brasil.
A l b e r t o da Cosia e Si l v a log

C om o os europeus resolveram esse pro b lem a ? C om o p u d e ra m com

p o u ca gente a d m in istra r suas colônias , alg u m a s delas enorm es?

De várias maneiras, mas sempre, ou quase sempre, utilizan-


dose de africanos. E não só nas funções menores ou médias do
serviço público, da polícia e das tropas militares. Valendo-se até
mesmo das estruturas de poder africanas, dos reis./ dos emires' e
dos chefes.
- ‫ ־‬Üm governador britânico, Frederick Lugard, defendeu e pôs
em prática, na Nigéria do Norte, o que se chamou de indirect n ã e
ou governo indireto: a rainha Vitória era a soberana daquelas ter-
ras, mas quem tomava decisões sobre 0 dia-a-dia de seus povos
eram os emires e os seus representantes, que guardaram qua-
se todas as funções executivas e judiciárias que tinham antes da
conquista européia. Em suas cortes, instalava-se um agente poli-
tico britânico, com funções de conselheiro, mas que evitava intro-
meter-se no manejo da administração ou nas decisões da justiça.
O emir julgava, de acordo com a xariá, ou direito islâmico, não
só os casos civis, mas também os criminais, podendo aplicar até
mesmo a pena de morte. Neste último caso, a sentença tinha,
porém, de ser confirmada pelo governador britânico. Era 0 emir
quem recolhia os impostos, ficando com uma parte para custear
a administração local e enviando a outra para a Coroa britânica.

Se e n ten d í b em , 0 em irado africano c o n tin u a v a a existir com to -


dos os seus fu n c io n á rio s tradicionais.
Com seus funcionários^que esauviam em árabe ou, com os
caracteres árabes, em hauçá eemfulfulde, a língua dos fulas.\Cada
. '· Ç____ _____ ___— ·-------
emir dispunha até mesmo de polícia ármada para impor a ordem.
310 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

Esse sistem a só se aplicou à N igéria do N orte?

Não. Estendeu-se a outras colônias britânicas na África. Ao


sul da Nigéria, onde os reis e os chefes não eram muçulmanos,
e à Gâmbia,, à Serra Leoa e à Costa do Ouro, por exemplo. Sua
aplicação só não foi plena naquelas possessões como a Rodésia
do Sul e o Quênia, onde havia um grande número de imigrantes
brancos, que passaram a ter representação no governo colonial e
a orientá-lo em favor de seus interesses. "

Esses chefes africanos p o r m eio dos quais a Coroa b ritâ n ica gover-
n a v a 0 seu im p ério n a Á frica era m os m esm os que se h a v ia m oposto
pelas a rm a s à conquista européia?

Com algumas poucas exceções, não. Os lideres da resistên-


cia eram depostos e exilados. Para substituí-los, os britânicos es-
colhiam um príncipe que fosse um dos sucessores naturais do
deposto ou um outro que tivesse direito de concorrer ao trono.
Só era posto na chefia quem por nascimento pudesse ser chefe.
Os britânicos estavam sempre atentos ao caráter sagrado que ti-
nham muitos dos reis africanos, como o obá do Benim, 0 oni de
Ifé e 0 asantehene ou soberano dos axantes.
Às vezes, um povo não aceitava o chefe que lhe era imposto, e
os britânicos tinham de escolher um outro ou ir buscar no exílio
o que haviam destituído.

O p a p el do agente político britânico j u n t o aos em ires o u aos chefes


tra dicionais era som ente de conselheiro?

Era também por intermédio dele que o Governo britânico


dialogava com os altos dignitários africanos. Se, por exemplo, se
A l b e r t o da Costa e Si l va Ill

pretendia abrir uma nova estrada, cabia-lhe disso informar o rei


ou o chefe da região e lhe solicitar, se necessário, auxílio para
conseguir a mão-de-obra. Não devia, porém, intervir nos assun-
tos locais, exceto para impedir que se praticassem atos como os
sacrifícios humanos e os suicídios rituais. Em última análise, o
governador britânico era o chefe dos emires e dos reis, e estes
continuavam a mandar nos seus súditos.
O indirect rule funcionou bem porque tinha antecedentes na
África, porque os africanos estavam acostumados com esse sis-
tema de governar povos conquistados. Era assim que o m a n sa do
Mali, o ãsquia de Songai e tantos outros soberanos controlavam
os seus impérios ou mesmo reinos, quando estes últimos eram
formados por diferentes povos: cada um desses povos mantinha
os seus chefes tradicionais e os seus costumes, e se auto-admi-
nistrava. Lugard, portanto, governou a Nigéria como se fosse um
imperador africano.

E os outros europeus , com o f a z ia m ?


Os portugueses também usavam chefes como intermediários
na administração de suas possessões. |das sempre num nível
subalterno e sem que tivessem autonomia.]Eram funcionários
do Estado português, encarregados de cobrar impostos, recru-
tar trabalhadores e manter a ordem. Poucos podiam .dizer que
tinham direito ao mando, que' eram chefes tradicionais. Quase
todos eram pessoas escolhidas pelos administradores portugue-
ses porque os conheciam bem e contavam com sua lealdade. Um
sargento das tropas coloniais, um intérprete ou o cozinheiro de
um capitão podiam ser impostos como'!chefes,’^ égulos'qu\sobas\
112 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

a povos que não os respeitavam como tal, mas lhes obedeciam


por temor.
Os belgas, tanto no Congo quanto em Ruanda e Burundi, ado-
taram também a administração indireta: procuraram governar
por meio dos reis e chefes locais.
Já os franceses seguiram um sistema que não era muito di-
ferente do português, embora procurassem manter as chefias
tradicionais e nelas se apoiar. Havia vezes, porém, em que pri-
vilegiavam dentre os candidatos com direito a exercê-las aquele
que soubesse se expressar em francês. E, em certos lugares ê oca-
sioes, não hesitavam em fazer rei ou chefe um homem comum,
um plebeu em quem tivessem confiança. Os seus chefes funcio-
navam como auxiliares dos funcionários franceses e eram em '
geral simples “paus-mandados” como os dos portuguesesTHavíi''
exceções. Como 0 m oro n a b a ou rei dos mossis, no Alto Volta,
atualmente Burquina Fasso, que, embora súdito dos franceses,
comandava a sua gente.

E os alem ães?

Os alemães pareciam inclinar:se para o sistema britânico, mas


perderam suas colônias ao serem derrotados na Guerra de 1914‫־‬
1918. Tanganica passou a ser administrada pela Grã-Bretanha. O
Sudoeste Africano (hoje Namíbia), pela África do Sul. Ruanda e
Burúndi, pela Bélgica. A Togolândia foi dividida entre a França e
a Grã-Bretanha {e hoje, a parte francesa é a República do Togo,
enquanto a britânica se incorporou a Gana). Os franceses ficaram
a cargo dos Camarões, com exceção de uma faixa ocidental relati-
vamente pequena, que coube aos britânicos.
A l b e r t o da Gosta e S i l v a 113

Você disse, h á pouco , que os africanos e ra m forçados a obedecer a

esses reis e chefes im postos pelos franceses e portugueses , m a s que não

os respeitavam ...
Não só não os respeitavam como muitas vezes escolhiam, en-
tre os que, por nascimento, tinham direito a reinar e a chefiar, um
rei ou chefe oculto, cuja identidade era mantida em segredo para
os europeus. A ele pagavam, escondido e de bom grado, tributo,
submetiam-lhe os seus problemas, para que os aconselhassem,
e as suas disputas, para que as julgasse, e dele esperavam que
sacrificasse aos deuses e aos ancestrais e que cumprisse todos os
ritos que asseguravam a prosperidade do povo.

A s colônias tin h a m u m governo central. Entre os seus fu n c io n á rio s

h a v ia africanos o u e ra m todos europeus?


Havia africanos, sim. Sobretudo nas funçóes menores. Mas
também nas médias. Os administradores coloniais procuravam
auxiliares entre os mulatos e os africanos europeizados, aqueles
a que chamavam pejorativamente ‫״‬pretos calçados‫ ״‬e “negros de
calças". E, no golfo do Benim, contaram com a ajuda de dois gru-
pos que merecem menção especial: ps “sarôs‫\״‬è os “agudas”:

Q u e m era m esses “sarôs”?


Eram ex-escravos que haviam sido libertados dos navios ne-
greiros pelos britânicos e por estes levados para Freetown, em
Serra Leoa, onde muitos deles se converteram ao cristianismo,
aprenderam inglês e adotaram modos de vida europeus^ De
Freetown, eles se espalharam pela costa e formaram uma espécie
de burguesia, na qual os britânicos recrutariam muitos dos fim-
114 A Á f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

\ 1'‫ך״‬
cionários das suas colônias. A palavra fsarô’\ se aplica também
aos seus descendentes.

E os “a guâás”?

Os “agudás‫״‬, ‫״‬amarôs‫ ״‬ou, como eles preferem chamar-se,


“brasileiros‫ ״‬eram ex-escravos que haviam retornado do Brasil
para 0 golfo do Benim, sobretudo no século ΧΪΧ. Abrasileirados,
falando português, muitos deles sabendo ler e escrever ou do-
minando profissões de que necessitavam os europeus — eram
mestres-de-obra, pedreiros, marceneiros, pintores, alfaiates,
costureiras —, tornaram-se também parte da burguesia colonial
na Nigéria, no Togo e na atual República do Benim. Reuniram-
se em bairros próprios, como o Brazilian Quarter, de Lagos, e 0
Qtiartier Brésil, de Ajudá, e difundiram nesses países os modelos
de arquitetura prevalecentes no Brasil, as festas populares como
0 bumba-meu-boi e 0 Carnaval, 0 terno branco, comidas como a
feijoada, o cozido, o peixe com pirão, o mocotó e.a cocada! ■instru:
mentos de música como o violão, o cavaquinho, o pandeiro e o
. prato‫־‬e‫־‬faca. Hábeis comerciantes, muitos deles enriqueceram e
mandaram seus filhos estudar na Bahia, na França e na Grã-Bre-
tanha, de onde voltaram professores, médicos, arquitetos, enge-
nheiros e advogados. Não poucos dentre eles exerceram funções
importantes nas administrações coloniais, e alguns figuraram
entre os primeiros defensores das independências africanas.
Como Casimir dAlmeida e Luís Ignácio Pinto, no antigo Daomé
(atual República do Benim), e Sylvanus Olympio, que foi 0 pri-
meiro presidente do Togo.
Oitava conversa
Quando comparado com o s s é c u lo s de existência de alguns
reinos africanos — o do Benim, por exemplo, com oitocentos
a n o s, e o de Zanzibar, com setecentos —, o domínio colonial eu-
ropeu parece de breve duração. Se em alguns poucos lugares,
como Luanda, se alongou por quatro séculos, noutros mal die-
gou aos 60 anos. Apenas duas gerações separam, por exemplo,
a derrota, em 1900, dos axantes — que, no auge do poder, con-
trolavam quase toda a Costa do Ouro — da independência desse
país, em 1957, com o nome de República de Gana.
Foi curto, em quase toda a África, 0 domínio europeu, mas
teve um impacto enorme sobre 0 continente. Nos últimos anos
do século XIX e na prim eira metade do século XX, a África
teve de se adaptar rapidamente a novas formas de governo, a
novos meios de transporte — ao barco a vapor, à ferrovia, ao ca-
minhão, à bicicleta e ao aeroplano —, à energia elétrica, a drás-
ticas mudanças no tratamento das doenças, à escrita, à leitura, à
escola que dava acesso ao conhecimento desenvolvido na Euro-
pa e a uma enorme gama de aparelhos e instrumentos, como,
por exemplo, a máquina de costura portátil, que não demorou a
chegar ao centro do continente e alterou para melhor a vida das
famílias. O mesmo aconteceria, mais tarde, com 0 rádio de pilha,
que foi adotado com enorme velocidade por toda parte.
u8 A Á f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

E n a agricultura, fo r a m m u ita s as m u d a n ç a s?

Foram. Não só se introduziram novas técnicas, como os po-


deres coloniais estimularam ou .impuseram o cultivo de vegetais
gue interessavam às indústrias européias. O africano, que estava
acostumado a produzir para 0 consumo de sua família e a ofe-
recer o excedente no mercado mais próximo,,passou a plantar e a
colher em grande escala para vender aos europeus. Conforme a re-
gião, ele se tomou produtor de amendoim, de dendê, de copra, de
algodão, de sisal, de cacau, de café, de tabaco e de chá. Não que a
África desconhecesse o cultivo para exportação: bastaria lembrar
as vendas, desde séculos, de grãos para 0 Saara, as grandes plan-
tações de sorgo e milhetes de Songai, as de dendezeiros do reino
do Daomé e as de cravo do sultanato de Zanzibar. Eram, porém,
exceções, e 0 que era exceção passou a ser prioridade.
Também a exploração de minerais sofreu enormes mudanças.
Continuou-se a obter ,ouro pelos métodos tradicionais em Buré e
em Lobi, mas em Witwatersrand, na África do Sul, se retirava o
minério em quantidades antes nunca vistas, com novas técnicas,
novas máquinas eum a numerosa mão-de-obra. Passou-se a explb‫־‬
rar em grande escala as reservas de ferro, cobre, estanho, manga-
nês, bauxita, fosfatos, carvão, prata e diamantes. E várias regiões da
África se revelaram ricas em petróleo e em minerais considerados
raros ou essenciais como o urânio, o titânio e o zircônío.

E as cidades? T a m b ém se m o d ifica ra m ?

Sobretudo as próximas ao litoral. Algumas, como Luanda e


Lourenço Marques (hoje Maputo), tinham sido concebidas como
cidades européias, mas não tardaram a ser infiltradas pela cidade
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 119

africana. Ficaram meio européias e meio africanas. Outras, como


Lagos, contavam com pequenas áreas, como 0 Brazilian Quarter
ou bairro dos brasileiros, com ruas e casas de desenho europeu
ou europeizado.
Com a chegada do funcionalismo colonial, construíram-se nas
capitais das colônias as residências dos governadores, os edifícios
para abrigar os serviços administrativos e conjuntos de mora-
dias para os servidores europeus. Criaram-se nas principais cida-
des bairros para os europeus, que dispunham, em geral, de água
corrente e esgoto, ainda que de fossa ou a céu aberto. Com 0 tem-
po, os tipos de casas introduzidos pelos europeus — e também, no
golfo do Benim, pelos retomados do Brasil — foram se difundindo
entre os africanos de posse e aqueles que mandavam os filhos es-
tiidar nas escolas dos missionários ou do governo colonial.
Foram os habitantes das cidades litorâneas ou que serviam de
capital das colônias os que primeiro sentiram que haviam passa-
do, em suas relações com os europeus, de parceiros a subordi-
nados. Não mais eram tratados como iguais, e sim como subàl-
ternos. Como pessoas naturalmente inferiores. Os próprios reis
tinham agora de recolher impostos para os que, até bem pouco
tempo, lhes pagavam tributos e taxas.

C om o os europeus p a ssa ra m a se considerar superiores aos africa-

nos, im a g in o que qualquer tenente ou pequeno fim c io n á rio europeu


n ã o hesitasse e m tra ta r m a l u m africano fo r m a d o em m ed icin a n a

França ou n a G rã-B retanha.


Isso era freqüente. A ocupação da África coincidiu com o auge
do prestígio na Europa e nas Américas das teorias, aceitas então
120 A A f r i c a e xpl i cada a o s meus f i l k o s

por muitos como científicas, que sustentavam a desigualdade das


raças humanas. O branco seria não apenas diferente do negro,
mas física e mentalmente muito superior a ele. Havia mesmo
quem pensasse que 0 negro não era um homem completo.
Acresce que, na mesma época, tornaram-se geralmente acei-
tas pelos homens de cultura e pensamento, e se fizeram popula-
res, as teses que explicavam a história da humanidade como uma
evolução constante, na qual um sistema social mais eficiente e
complexo substituía um outro, que se esgotara ou entrara em
decadência. Não só as sociedades mais fortes se impunham so-
bre as mais fracas, como todas percorriam, ao longo do tempo,
percurso semelhante, indo de uma fase da evolução a outra. Do
matriarcado ao patriarcado, por exemplo, ou do governo dos sa-
cerdotes ao dos reis, ou ainda, como projeção para 0 futuro, do
capitalismo ao socialismo. Nesse processo evolutivo, a Europa
estava no patamar mais alto, e cabia aos demais povos procurar
alcançar 0 seu nível de desenvolvimento.

O africano sería, a ssim , d u p la m e n te inferior, p o r ser negro e p o r


pertencer a u m tipo de sociedade considerada atrasada. Os europeus

lhe e n sin a v a m essas teorias nas escolas? E os africanos , será que as


a ceita va m ? O u reagiam contra elas?

Convencer 0 africano de sua inferioridade fazia parte do pro-


cesso de dominação. Se o negro não podia mudar a cor da pele,
tinha de se comportar como se fosse branco. Mas mesmo aqueles
africanos que admiravam e procuravam imitar os europeus sa-
biam, pelas práticas do dia-a‫־‬dia, que não eram inferiores a eles.
E foi esta certeza o que levaram, ao voltar para a terra natal, os
Albert o da Costa e Silva 121

africanos que foram lutar na Europa, na Primeira e na Segunda


Grandes Guerras: os brancos não eram mais corajosos, nem fi-
sicamente mais resistentes, nem mais rápidos de inteligência,
nem melhores soldados do que eles.
Não foram poucos os africanos de algumas posses — os que
ganharam dinheiro, por exemplo, nas atividades comerciais ou.
no cultivo de cacau, algodão ou dendê — que mandaram seus
filhos estudar na Europa ou nos Estados Unidos. Estavam con-v
vencidos, do mesmo modo que muitos dos africanos que traba-
lhavam como funcionários nos governos coloniais e nas grandes
empresas européias ou se educaram nos colégios locais, de que
0 seu mundo tradicional estava desmoronando e de que o futuro
pertencería àqueles que dominassem os conhecimentos que de-
tinham os europeus.
Os rapazes africanos regressavam à África conscientes de
que haviam disputado de igual para igual com os brancos as
melhores posições nos estudos e nos esportes. Não retomavam
apenas formados em arquitetura, contabilidade, direito, enge-
nharia, farmácia, medicina ou teologia, rp.as sabendo como se
organizavam e funcionavam, na Europa e nas Américas, os gru-
pos de pressão, os sindicatos e os partidos politicos. Levavam
na bagagem a certeza de que se podería transformar a colônia
em que haviam nascido em país independente, com a estrutura
política da França, da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos ou da
União Soviética. Muitos voltavam imbuídos das idéias socialis-
tas, principalmente das marxistas, e estavam convencidos de
que, com um planejamento semelhante ao que fora posto em
prática na União Soviética, poderíam, em pouco tempo, desen­
122 A Á f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

volver social e economicamente a África e colocá-la no mesmo


plano da Europa·
Entre esses jovens que estudaram fora do continente contam-
se vários dos que lideraram as lutas pela independência, como
Nnamdi Azikiwe, Kwame Nkhrumah, Léopold Sedar Senghor,
Félix Houphouet-Boiny, Mário Pinto de Andrade, Agostinho da
Silva, Amílcar Cabral e Jomo Kenyatta· Outros se formaram nos
embates sindicais, como Sekou Touré, ou nas universidades que
se abriram, após a Segunda Guerra Mundial, na Nigéria, na Cos-
ta do Ouro, em Uganda, na Rodésia do Sul e no Senegal· E mui-
tos eram grandes ou pequenos empresários e saíram do comér-
cio para a política. Todos, ou quase todos, estavam fortemente
influenciados pelo pensamento político europeu. As principais
exceções eram os muçulmanos devotos, que, na África ao sul do
Saara, desejavam refazer 0 tipo de Estado preconizado pelo Islã.

Q uais fo r a m os p rim eiros e 0$ ú ltim o s países a se to m a r e m inde-


p en d entes?

Os primeiros foram a Líbia, em 1951, a Tunísia, 0 Marrocos e


o Sudão, em 1956, Gana, em 1957, e a Guiné-Conacri, em 1958.
Os últimos foram: em 1974, as colônias portuguesas (Guiné-Bis-
sau e Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique);
em 1980, a Rodésia do Sul, que passou a se chamar Zimbabué;
e, em 1990, o Sudoeste Africano, com o nome de Namíbia. A
maior parte das independências deu-se em i9 6 0 e 1961, e foi 0
resultado da ação política e da negociação. Em alguns casos, essa
negociação só se deu após conflitos armados, como ocorreu no
Quênia, com o movimento Mau Mau. Noutros, como os de Gana
A l b e r t 0 da C o s t a e S i l v a 123

e da Nigéria, que se tomou independente em i960, desde 1951 já


havia governos locais eleitos pelo povo e responsáveis pela admi-
nistração interna do país.

M as não houve casos em que a independência f o i co nquistada pe-

las a rm as?
Houve. Na Argélia, com uma guerra que durou oito anos, de
1954 a 1962. O conflito armado se alongou ainda mais nas co-
lônias portuguesas. Em Angola, a guerra anticolonial estendeu-
se de 1961 até a independência, em 1974. Na Guiné-Bissau, as
ações armadas de vulto começaram em 1963. Em Moçambique,
em 1964. E foram guerras duríssimas.
f:Na maior parte da África, porém, como já disse, as indepen-
dências foram obtidas pela ação política. Pacificamente. E repre-
sentaram um momento de grande euforia no continente. Tudo
parecia possível com a libertação. Até mesmo aqueles países com
poucos recursos naturais apostavam num futuro de progresso.
Os anos do pós-guerra, que antecederam a maioria das inde-
pendências, e os que vieram imediatamente depois delas foram
— digamos assim — felizes para a maior parte da África. A sua
população aumentou consideravelmente, com a diminuição da
mortalidade infantil, a erradicação da varíola e os novos conhe-
cimentos médicos de prevenção e combate à malária, à doença
do sono, à tuberculose, à sífilis, à febre amarela, à xistossomose,
ao verme-da‫־‬guiné, à cegueira dos rios e a outras enfermidades.
Multiplicaram-se as escolas primárias e secundárias e surgiram
várias universidades. Aumentaram as tiragens dos jornais, e as
estações de rádio podiam ser ouvidas até mesmo nas pequenas
124 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

aldeias. Tudo isso se assentava num grande aumento da demanda


e dos preços dos produtos africanos de exportação. O cacau, por
exemplo, trouxe a prosperidade a Gana, à Costa do Marfim e à
Região Oeste da Nigéria. Os investimentos externos aumentavam
cada vez mais nos setores de mineração, as descobertas de petró-
leo se sucediam em diferentes locais do continente, ê surgiam em
alguns países as primeiras indústrias modernas — de cerveja, de
tecidos, de produtos alimentícios, de sabão e de cigarros.
Eu disse que as independências tinham sido um momento
de grande euforia na África. Foram, realmente. Mas não para o
Congo belga, onde se assistiu a uma descolonização que seria
desastrada, se não tivesse sido trágica.

O que se p a sso u no Congo?


Em 1908, o Congo deixou de ser propriedade do rei Leopoldo
II e se tornou colônia da Bélgica. Uma colônia enorme — das
maiores que os europeus tinham na África — e riquíssima em
recursos naturais: cobre no Catanga tiioie, Chabaj, diamantes no
Cassai, estanho em Kivu, e ouro, cobalto, zinco, tungstênio^lém
de borracha, dendê, algodão, sisal e café. O governo e os grandes
capitais belgas ampliaram a exploração desses recursos, fizeram
da capital da colônia, Léopoldville (a atual Kinshasa), uma cidade
de aspecto europeu, investiram na saúde e na educação. Mas ape-
nas na educação primária, da qual o Congo teve a melhor rede na
África. A preocupação belga parecia ser a de formar apenas fim-
cionários menores para a administração e as grandes empresas.
Tanto assim que não se preocupou com as escolas secundárias.
Tirando os seminários católicos, elas praticamente não existiam.
A l b e r t o êa Costa e Si l va 125

E os poucos Congoleses mandados para a universidade na Bélgi-


ca só receberam os seus primeiros diplomas em 1959, um ano
antes da independência.
Após a Segunda Grande Guerra, os políticos belgas se con-
venceram de que 0 colonialismo na África tinha os anos conta-
dos. Era necessário preparar as independências do Congo, de
Ruanda e de Burundi. Lentamente. Com todas as cautelas. E
estavam a pensar que tinham todo 0 tempo do mundo, quan-
do, no início de 1959, Léopoldville foi sacudida por três dias de
violentos tumultos, com a multidão a atacar e saquear prédios
públicos, lojas comerciais e missões católicas. Os manifestantes
eram majoritariamente da etnia conga (os bacongos) e seguiam"
as palavras de seu líder, Joseph Kasavubu, que havia muito tem-
po pregava a independência. Sentindo-se incapaz de enfrentar
uma revolta armada, 0 governo belga resolveu transferir o poder
político aos Congoleses 0 mais rápido possível.
A campanha pela independência não era, porém·,· apenas
baconga, nem -se· restringia às grandes cidades. O sentimento
antibelga estava presente nas aldeias, que ressentiam os pesa-
dos impostos, a obrigação de cultivar algodão, dendê ou café e
de extrair borracha nas florestas, 0 recrutamento forçado para a
construção de estradas e outras obras públicas e 0 aliciamento
para trabalho nas minas.
A repulsa ao domínio belga foi acompanhada pelo aumento
da fidelidade de cada pessoa ao seu grupp, ao seu povo, à sua
etnia ou à sua nação. Àntes de se verem como Congoleses, os in-
dívíduos se sabiam azandes, congos, cubas, lubas, luenas, luluas,
lundas, mongos, pendes. Proliferaram as agremiações políticas
126 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

regionais e étnicas, e de tal modo que, em 1960, nas eleições


para a formação do que viría a ser 0 governo a que os belgas en-
tregariam o podej:, concorreram mais de cem partidos, j
Entre esses, um dos que tinham adeptos em quase todo 0 país,
liderado por Patrice Lumumba, foi o mais votado, mas apenas
0 suficiente para obter 33 das 137 cadeiras no parlamento. Para
formar um governo aprovado por fraca maioria, Lumumba teve
de se aliar a alguns de seus adversários em potencial. Kasavubu
foi eleito, pela Assembléia, presidente da República, e Lumum-
ba, primeiro-ministro. Moise Tshombé, cujo partido ganhara por
ampla maioria as eleições no Catanga, foi feito governador dessa
província — uma província responsável por cerca de 50% das
exportações do país.
Em 30 de junho, o Congo tomou-se independente. Quatro
dias depois, tropas congolesas se amotinavam contra os oficiais
belgas, que deveríam continuar no comando até que houvesse
um número suficiente de oficiais Congoleses que os pudessem
substituir. As tropas queriam, porém, que a independência atin-
gisse imediatamente o exército e que os Congoleses fossem che-
fiados por Congoleses.

E m ú ltim a análise , os sargentos q u eria m ser prom ovidos a coro-

nets, e os cabos , a capitães .


E foi isso o que ocorreu, pois Lumumba, para acalmá-las, ce-
deu às exigências das tropas.
Algo semelhante se passou na administração pública, porque
a maioria dos funcionários belgas que deveríam continuar por
Albert o da Costa e Silva 12‫ך‬

algum tempo a servir à nova república, apavorada com as notícias


de atrocidades praticadas pelas tropas revoltadas, fez as malas
às pressas e voltou para a Bélgica. Os seus auxiliares Congoleses
assumiram, como puderam, os sens410stos^Ninguém passou 0
serviço a ninguém, e o caos se instalou na administração.
Na administração e no país, onde os acontecimentos se suce-
diam com enorme rapidez. Ainda não havia terminado o motim
das tropas em Léopoldville, e Tshombé, com o apoio dos belgas,
proclamava a independência do Catanga e sua separação do Con-
go. Logo em seguida, o sul do Cassai, sob 0 comando de Albert
Kalondji, fez o mesmo. O governo de Léopoldville apelou para as
Nações Unidas, que prontamente enviaram para o Congo uma
força militar de paz, tendo como um de seus objetivos assegurar
a unidade do país. A força das Nações Unidas não teve, porém,
um interlocutor com autoridade, pois o país estava sob dois co-
mandos, o do presidente e 0 do primeiro-ministro, que dispu-
tavam o poder entre si. Não se passaram dois meses e meio da
independência, e Kasavubu destituiu Lumumba de suas funções.
Este revidou, anunciando a deposição do presidente. Em novem-
bro, Lumumba foi preso e, logo em seguida, assassinado.
Os partidários de Lumumba, sob a chefia de Antoine Gizenga,
instalaram um governo em Stanleyville (atual Kisangani) — e o
país, dividido\em quatro^se viu cada vez mais como um impor-
tante cenário da chamada Guerra Fria, que se travava pela supre-
macia mundial entre os Estados Unidos e a União Soviética. Os
americanos ficaram do lado de Kasavubu e Tshombé, enquanto
os soviéticos apoiavam os lumumbistas.
128 j4 Á f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

A s d isputas degeneraram e m confrontos arm ado s?

Houve violentos e ferozes confrontos armados, e estes se te-


riam transformado numa grande guerra civil, não fosse a presen-
ça das tropas de paz das Nações Unidas. E estas não puderam
deixar de intervir na luta interna. Para começar, contra os separa-
tistas do Catanga. Em janeiro de 1963, após vários combates, que
se repetiram ao longo de todo um ano, Tshombé declarou o fim
da secessão catanguesa.
O país continuou tumultuado, com os lumumbistas tentando
recuperar o poder e os vários grupos étnicos alimentando com
suas dissensões as revoltas armadas, até que, em novembro de
1965, um golpe militar entregou 0 poder ao general Joseh-Désiré
Mobutu, que nele permaneceu, como ditador e com um novo
nome, Mobutu Sese Seko, até 1997.

Os dias e os anos que se seguiram à proclam ação d a in d ep en d em

cia do Congo fo r a m , pelo que nos contou, tu m u ltu a d o s e dram áticos.


Esse tipo de situação se repetiu em outros países africanos.

No Sudão, no Chade, em Ruanda e em Burúndi.


No Sudão, ós sulistas, cristão^ ou adeptos de religiões afri-
canas, se-rebelaram contra a supremacia política dok'nortistas
^muçulmanos, Jjue lRes queriam impor um governo islâmico e
a xariá. Essa revolta armada, com períodos de trégua, continua
até hoje.
No Chade, tivemos a mesma situação, invertida. Foram os
cristãos sulistas os que, na independência, conquistaram o po-
der e não souberam ou não quiseram compartilhá-lo com os nor-
tistas muçulmanos. As duas partes se guerreiam desde 1965, e
A l b e r t o da Cost a e S i l v a ug

embora, após duas décadas de combate, os islamitas tenham 10-


grado tomar conta do poder central, não se impôs um ambiente
de segurança e de paz.
Em Ruanda e em Burundi, os tútsis, que eram e são minori-
tários, mas haviam tido secularmente e até a independência, em
1961, a supremacia política, se recusaram a aceitar que a maioria
hutu exercesse 0 poder. Desde 1959, se repetem massacres de
tútsis por hutus e de hutus por tútsis.
Mas a maior, a mais sangrenta e impiedosa das tragédias ain-
da estava por vir: a guerra de Biafra,

Foi n a N igéria , não fo i?


Foi. Quando da independência da Nigéria, 0 país dividiu-se
em três regiões ou estados federados: a Região Norte, que com-
preendia mais da metade do país, e, ao sul, a Região Oeste e a
Região Leste. Embora fossem numerosos os povos com distintos
idiomas e culturas — baribas, nupes, cambaris, curamas, tives,
bomus, igalas, !!domas, edos, urrobos, ijós, efiques e algumas de-
zenas mais —, em cada urna das três regiões predominava um
grande grupo ■
‫־‬A os hauçás f z o m sua aristocracia íula, na Norte,
os iorubás na Oeste eos íbos na Leste ~‫״‬v e cada um deles formou
a base de um diferente partido político, que nas eleições saiu
vitorioso em sua unidade da federação. O controle do governo
federal estava fadado, contudo, a ficar sempre nas mãos dos nor-
listas, uma vez que à Região Norte cabia a metade das cadeiras
do parlamento.
Os sulistas não podiam deixar de se ressentir com 0 que con-
sideravam como o fortalecimento do poder dos emires muçulma­
13° A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h a s

nos}que contrastava com 0 fato, cada vez mais evidente, de que era
nas Regiões Leste e Oeste que se geravam as riquezas do país.
Dentro de cada uma das três Regiões havia, por sua vez, um
forte descontentamento: os povos minoritários sentiam que ti‫־‬
nham nelas uma voz muito fraca — ou não tinham voz alguma.
Além disso, viam-se desfavorecidos, num sistema social em que
a primeira fidelidade e a primeira obrigação eram para com a
família, a aldeia, a linhagem e 0 clã. Sabiam-se excluídos das dá-
divas do poder. E essas cedo se mostraram generosas, pois todos
esperavam de quem estivesse no mundo que premiasse os seus.
Os povos minoritários começaram a reclamar uma nova divisão
política do país, na qual pudessem ter o seu lugar.
A euforia da independência não demorou a ser corroída pela
insatisfação. A anunciada prosperidade custava a chegar, e a luta
política degenerava repetidamente em violência.
Em janeiro de 1966, um grupo de sete majores do exército,
dos quaisfseis eram íboá^ deu um golpe militar extremamente
sangrento, com o assassinato do primeiro-ministro, Abubakar
Tafawa Balewa, de vários políticos importantes, inclusive do prin-
cipal líder nortista, 0 Sardauna de Socotô, e de suas famílias. Um
dos objetivos do golpe era terminar com o federalismo na Nigé-
ria, que se transformaria numa república unitária. Com isso não
podiam concordar os hauçás, nem os iorubás, nem os demais
povos, que interpretaram 0 movimento militar como uma tenta-
tiva ibo de monopolizar o poder.
Os ibos, que não cabiam, de tão numerosos, nos seus terri-
tórios tradicionais a leste do rio Niger, haviam-se espalhado por
quase toda a Nigéria. Por toda parte, prosperaram, como artífi-
A l b e r t o da Cost a e Si l v a ip

ces e comerciantes, competindo com a antiga rede mercantil dos


hauçás. Em muitos lugares, eram vistos com inveja e desconfiam
ça. O golpe transformou inveja e desconfiança em medo e ódio.
Nas principais cidades nortistas, os ibos foram atacados pelas
multidões enfurecidas. Cerca de quinhentos foram mortos.
Em julho de 1966, houve um contragolpe militar e mais de
duas centenas de oficiais ibos foram assassinados. E, em setem-
bro, os hauçás e outros nortistas procederam a uma matança dos
ibos — calcula-se que entre 6 mil e 8 mil tenham sido mortos
— e a sua expulsão da Região Norte. Cerca de 1,5 milhão deles,
aterrorizados, fugiram como puderam para a íbolândia.
O novo governo, comandado pelo general Yakubu Gowon,
dividiu o país em 12 estados, atendendo assim às reivindicações
dos grupos étnicos minoritários. Três dias depois, em 30 de
maio de 1967, o coronel Ojukwu, governador da antiga Região
Leste, anunciou a separação dela da Nigéria, com o nome de
República de Biafra.
' Següiu-se uma guerra feroz, que durou dois anos e sete meses
e meio. Embora Biafra fosse muito populosa e rica em petróleo,
a desproporção de forças era enorme. Nem a fome — e as cenas
de fome comoveram o mundo — conseguia abalar a resistência
heróica dos ibos e seus aliados ao avanço das tropas nigerianas.
Finalmente, em janeiro de 1970, os biafrenses se renderam in-
condicionalmente.
Os vencedores foram generosos. Não só não negaram aos
vencidos o elogio da coragem, como procuraram incorporar os
ibos, com todos os direitos, à Nigéria que renascia da guerra.
Nona conversa
A Á frica que reconquistou a independência era m u ito diferente

daquela anterior à colonização, não era?


Era, ao mesmo tempo, diferente e semelhante. Nas aldeias,
sobretudo naquelas que não ficavam próximas às ferrovias e às
estradas de rodagem, e até mesmo em alguns bairros e em algu-
mas casas das cidades, pouco mudou. As maneiras de alimentar-
se, de morar, de vestir, de trabalhar a terra e de conviver, assim
como 0 uso do tempo, as relações familiares e os ritos funerários,
continuaram as mesmas ou apenas parcialmente se modifica-
ram. Já nas cidades e nas áreas onde foi forte a presença do co-
lonizador, novos modos de vida se misturaram aos antigos ou os
substituíram. Apareceram novas profissões, com seus compor-
tamentos próprios. Impuseram-se novos tipos de roupas (como
0 temo com gravata, para os homens), novos modelos de casas,
que passaram a ser mobiliadas de forma diferente (com poltro-
nas e sofás, mesas, cadeiras e cristaleiras, camas, guarda-roupas
e cômodas), novas comidas (como o pão de trigo, por exemplo),
novos tipos de relações sociais. Em várias cidades, ruas à euro-
péia, mais largas e retas, tomaram o lugar das mais antigas, es-
treitas e sinuosas. O idioma do colonizador tornou-se a língua
de prestígio, o idioma oficial ou um dos idiomas oficiais do novo
país. Tomou-se também o traço de união entre as mais distintas
136 Λ A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

etnias, embora sem deslocar línguas francas como 0 hauçá e 0


suaíli. E, em muitas regiões, o cristianismo, tal como já havia fei-
to e continuava a fazer o islamismo, substituiu os antigos deuses
e 0 culto aos antepassados.

C o m a independência , não houve u m a revalorização d a Á fiic a


tradicional?

Houve. Sobretudo nos meios artísticos e intelectuais. Assis-


tiu‫־‬se a um renascimento da música, da dança e do teatro tradi-
cionais. A história do continente foi revista com entusiasmo. E
procurou-se recolher a poesia oral, fosse antiga ou nova, lírica ou
épica. Convém não esquecer, porém, que os escritores africanos
de maior relevo se expressavam e se expressam no idioma do
antigo colonizador. O senegalês Léopold Sedar Senghor foi um
dos maiores poetas de língua francesa do século XX, e em ffan-
cês escreveu o grande romancista guineense Câmara Laye. Os
nigerianos Chenua Achebe e Wole Soyinka, este último detentor
do Prêmio Nobel de Literatura, criam suas obras em inglês. E o
angolano Luandino Vieira, em português.
Já a posição dos políticos foi na maioria dos casos contradito-
ria. Valorizavam as tradições e 0 passado. Mas como tradição e
passado. Quase todos eles queriam mudar a África, dar-lhe uma
nova vida, corrigir os costumes, substituir as antigas estruturas
e instituições sociais pelos modelos recebidos da França, da Grã-
Bretanha, dos Estados Unidos, da União Soviética, da China ou
da Alemanha Oriental. Continuavam, sem que este fosse 0 seu
desejo ou disto tivessem consciência, a ver a África com os olhos
dos colonizadores.
A l b e r t o da Costa e Si l va ‫ג‬37

Tinham um projeto pessoal para emendar ou reorganizar os


seus países. E, ao começar a executado, depararam, em muitos
lugares, com a competição das chefias tradicionais. Nem todos
tinham força suficiente para dissolvê-las, como fez Sekou Touré
na Guiné-Conacri, para neutralizá-las ou simplesmente ignorá-
las. Era impensável governar 0 Alto Volta {hoje, Burquina Fasso)
sem o apoio do moro naba, ou rei dos reis dos mossis, ou a Nigé-
ria sem reconhecer o poder de mando do sultão de Socotô e dos
emires nortistas, e 0 prestígio do obá do Benim e dos reis ioru-
bás, que continuavam a contar com a fidelidade de seus súditos.
Com todo o seu enorme carisma, Nkrumah, em Gana, acabou
por perder a queda-de-braço com o qsantehene, ou rei dos axantes,
e os sobas moçambicanos ajudaram a prolongar por quase duas
décadas uma guerra civil na qual se puseram contra o governo de
Maputo, que os quis marginalizar.
Na maior parte dos casos, contudo, os políticos que fizeram as
independências lograram neutralizar ou domar as chefias tradi-
cionais. Como também conseguiram em pouco tempo impedir 0
funcionamento efetivo de qualquer grupo de oposição. Por quase
toda a África instalaram-se regimes de partido único. Cada país
tinha seu chefe, que não podia ser contestado.
... De que iria ser assim já havia sinais às vésperas das indepen-
dências. Tinha sido a ação de líderes locais o que impedira que
se concretizasse 0 projeto de Léopold Sedar Senghor de manter
unidas após a independência, numa federação ou numa confe-
deraçao, as colônias que os franceses haviam juntado na África
Ocidental Francesa e na África Equatorial Francesa. O mesmo
egoísmo político impediu que se tornasse realidade o sonho de
A A f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

Nkrumah de uma federação compreendendo todos os estados


africanos. Ou, para começar, um bom número deles.

Se e n te n d í bem , cada u m desses líderes qu eria m a n d a r n a su a


terra, não queria co m p etir co m os outros n u m espaço m u ito m a is
a m p lo .

^ E o idealista que havia batalhado pela independência rendeu-


se ao realista, cujo projeto passou a ser 0 de se perpetuar no po-
der. Para tal, jpoiou-se naqueles em que tinha absoluta confían-
Ça, os de sua etnia a sua gente —, nos habitantes da capital e
das grandes cidades, na polícia e nas forças armadas, geralmente
recrutadas nas regiões mais pobres do país. Ê passou a governar
com eles e para eles.
v.; Nesses países, o número de cargos públicos e o custo do go-
verno não pararam de crescer. E eram cada vez maiores as exigên-
cias de consumo e prestígio das elites e das classes médias da ca-
pitai. Para sustentar tudo isso, aumentavam-se os impostos sobre
as populações do campo e se retirava delas parte de seus ganhos.
Em vários países, 0 camponês era obrigado a vender ao governo
a sua safra de cacau ou de café por um preço muito inferior ao vi-
gente no mercado internacional, e o governo, que monopolizava^
as exportações daqueles produtos, ficava com a diferença.

A insatisfação no cam po devia ser grande.

Era. Como também entre as várias etnias afastadas das van-


tagens do poder. Daí que a oposição ao governo central, quando
toma a forma de levante armado, apareça como um conflito entre
diferentes etnias e entre campo e cidade.
A l b e r t o da Cost a e S i l v a m

Como disse há pouco, o exército era geralmente recrutado nas


áreas mais pobres do país. Embora os oficiais pertencessem ao
grupo dos privilegiados, em muitos deles foi crescendo a indig-
nação pelo abandono em que se encontrava a sua região natal e
pelo não-cumprimento das promessas da independência. E cul-
param os líderes civis por isso. Do descontentamento resultou
uma série de golpes armados — o primeiro, em 1963, depôs Syl-
vanus Olympio, do Togo — e a substituição de presidentes civis
por militares escolhidos nos quartéis.
Os militares revelaram-se, em geral, incompetentes para go-
vemar, quando não tiranos ou psicopatas. Vejam-se o tenente-
coronel Jean-Bedel Bocassa, que se fez coroar imperador da Re-
pública Centro:Africana, 0 general Idi Amin Dada, em Uganda,
e o sargento Samuel Doe, na Libéria. Houve algumas exceções,
como os generais Yakubu Gowon e Murtala Mohammed, na Ni-
géria, e o tenente Jerry Rawlings, em Gana, que foram hábeis
políticos e bons administradores.
Fosse com militares ou com civis, a África esteve por vários
anos entregue a ditadores. Em alguns países, vigorava uma
espécie de semidemocracia, com uma oposição consentida e
controlada, um regime que era, em última análise, um governo
autoritário.
A única saída para os insatisfeitos e também para aqueles que
tinham ambições de poder passou a ser a luta armada. Alguns
países foram castigados por ferozes guerras civis, que, em certos
casos, foram alongadas por interesses extracontinentais. A Guerra
Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética alimentou, por
exemplo, as guerras civis em Angola e em Moçambique.
‫ נ‬4 <‫כ‬ A Á f r i c a e xpl i cada aos meus f i l h o s

Essa situação d u ra a té hoje?

Na maior parte do continente, não. A democracia, com a plu-


ralidade de partidos e 0 respeito à diversidade de opinião, foi-se
impondo na África, como um ideal a ser atingido, no correr da
última década do século XX. E, se ainda assistimos a guerras civis
e tragédias como as de Ruanda, Burundi e Darfur, tivemos tam-
bém motivos de esperança e de fé no continente. Basta lembrar 0
fim do a partheid na África do Sul.

O que era 0 apartheid?


A p a rth e id era um sistema rígido de segregação racial, de se-
paração entre brancos e negros, que teriam lugares separados
onde morar e manteriam suas culturas próprias. Os contatos
entre os dois grupos deveríam restringir-se às relações de tra-
balho, nas quais os brancos estavam destinados a ser os patrões
e os negros, os empregados. Proibia-se o casamento de brancos
com negros, mestiços ou asiáticos. A separação racial deveria
ser completa: um negro não podería sequer rezar na igreja de
brancos. Teoricamente, cada grupo teria direito a seu desenvol-
vimento próprio. Assim, todo o ensino, do primário ao univer-
sitário, era segregado: havia estabelecimentos para os brancos
e outros para os negros. Sucede que, na divisão do território
entre brancos e negros, os brancos ficaram com as melhores
terras, além do controle das minas de ouro e diamantes. Na
lógica do a p a r th e id , cabia aos brancos a riqueza e aos negros, a
pobreza. E estes últimos não eram cidadãos. Não podiam votar
nem ser votados.
A l b e r t o da Costa e Si l v a ip

Q u a n d o com eçou 0 apartheid?


Oficialmente, em 1948. Mas tinha raízes muito antigas. Des-
de o início da colonização européia no Cabo da Boa Esperança e
seus arredores.
Os primeiros europeus — holandeses, alemães e huguenotes
franceses — começaram a se estabelecer no Cabo na metade do
século XVII. Não tardaram em se expandir pelo interior, em bus-
ca de novas pastagens para o gado. Nessa expansão, deslocaram
para as áreas semi-áridas os primitivos habitantes da terra, os
bosquímanos e hotentotes, quando não os submeteram à servi-
dão. E, no deslocamento para leste, acabaram por entrar em con-
tato e conflito com os grupos negros, principalmente os xosas,
que se espalhavam do nordeste para 0 sudoeste.
No início do século XIX, os britânicos tomaram a Colônia do
Cabo à Companhia holandesa das índias Orientais, e começaram
a contrariar os interesses dos antigos colonos, que se considera-
vam com direito a escravizar os bosquímanos, os hotentotes e os
negros. Havia-se desenvolvido entre eles a teoria de que consti-
tuíam uma raça de senhores, que eram o povo escolhido por
Deus para povoar aquelas terras. Eles não mais se consideravam
europeus — a maioria não tinha mais laços com a Europa —,
mas africanos, ajrikaners (ou africânderes, em português), falan-
do uma nova língua, 0 africâner, derivado do neerlandês.
Inconformados com o domínio britânico, os africânderes,
também chamados bôeres, saíram, com suas carroças puxadas
por bois, seus escravos e seus rebanhos, das fronteiras da Colônia
do Cabo e subiram 0 planalto, na direção do nordeste e do norte,
onde, na metade do século, fundariam o Estado Livre de Orange
142 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

e a República Sul-Africana, mais conhecida como Transvaal Um


pouco antes, a Grã-Bretanha havia se apossado de Natal, na costa
do Índico.
Dois‫־‬importantes acontecimentos — a descoberta de diaman-
tes, em 1867, em Kimberley, na Colônia do Cabo, próxima à fron-
teira de Orange, e 0 início da exploração de ouro, em 1886, em
Witwatersrand, no Transvaal — iriam alterar radicalmente a vi-
são que os britânicos tinham dos territórios do sul da África. Até
então, eles eram considerados como de enorme importância es-
tratégica, para proteger e abastecer os navios na rota para a índia.
Com a descoberta de diamantes e ouro, em quantidades dantes
desconhecidas, aquelas terras passavam a ser as mais cobiçadas
da África. Conquistar aos bôeres 0 Transvaal tornou-se a obses-
sao de Cecil Rhodes, que aspirava a que os domínios britânicos
na África se estendessem ininterruptamente do Cairo ao Cabo da
Boa Esperança.
Rhodes, riquíssimo, além de controlar as duas Rodésias e ser
um dos três principais acionistas da empresa que explorava as
minas de diamantes de Kimberley, era 0 governador da Colônia
do Cabo. Sua ação junto ao Governo de Londres e suas intrigas
na África foram em grande parte responsáveis pela guerra que
estourou em 1899 e se estendeu até 1902, entre as duas repúbli-
cas bôeres, de um lado, e a Grã-Bretanha, de outro.
Transvaal e Orange foram militarmente derrotados, mas
acabaram por sair vitoriosos no plano político, pois, quando os
britânicos resolveram, em 1908, juntar Cabo, Natal, Orange e
Transvaal num só país, a União da África do Sul, os africânde-
res conseguiram que prevalecesse a sua posição de que o poder
A l b e r t o éa Cost a e S i l v a M3

político devia ser privilégio dos brancos. É bem verdade que, no


Cabo, continuavam a votar, por cumprir os requisitos de alfabe-
tização e renda, perto de 15 mil coloureds ou mestiços e cerca de
7 mil negros, mas um dispositivo do documento resultante da
Convenção Nacional que consagrou a União estabelecia que isso
podería ser mudado, mediante dois terços de votos do parlamen-
to e do senado. E, com efeito, proibiu-se 0 voto aos negros em
1936 e aos mestiços vinte anos depois.
Ao longo do tempo, a situação dos negros, dos mestiços e
também dos asiáticos — sobretudo indianos e seus descenden-
tes — só piorou. Os brancos consideravam-se, por conquista, os
donos da terra, e os demais não tinham por que ter voz em seu
governo. E o racismo era doutrina do Estado.

Os negros, os coloureds e os asiáticos certam ente não se co n fo rm a ‫־‬


ra m co m esse regim e de exclusão. E devem ter reagido contra ele.

Foi assim, de fato. A história das reações à segregação racial e


à exclusão da cidadania dos negros, mestiços e asiáticos é também
antiga. Confunde-se com a própria história da África do Sul. Não
só os bosquímanos, os hotentotes e os bantos lutaram tenazmente
contra a conquista de suas terras pelos europeus, como, depois,
nas terras conquistadas, negros, mestiços e asiáticos se esforçaram
repetidas vezes para se organizar em defesa de seus direitos.
Datam da penúltima década do século ΧΪΧ as primeiras en-
tidàdes não-brancas com características de partido político. E de
1912, a organização que viria a se transformar no Congresso Na-
cional Africano (ANC), destinado a ser o principal condutor da
luta contra a supremacia branca e o apartheid. A ação dessas orga­
144 A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

nizações era rigorosamente controlada pela polícia, que reprimia


violentamente as manifestações públicas por elas promovidas,
bem como todo tipo de greve ou agitação.
Ficou como exemplo da selvageria da repressão o ataque da
polícia a um comício em Sharpeville, em março de -1960, quando
foram mortas a tiros 69 pessoas, e feridas 178, que reclamavam
a abolição da obrigatoriedade de portarem passes de autorização
os negros que entrassem nas cidades e áreas brancas, onde mui-
tos deles, por sinal, trabalhavam. O governo decretou estado de
emergência e pôs fora da lei 0 ANC e demais organizações polí-
ticas que se opunham ao regime do apartheid. Naquele ano e no
correr dos seguintes, muitos de seus líderes foram presos, entre
eles Nelson Mandela, condenado em 1964 à prisão perpétua.
Vinte anos mais tarde, apesar da violenta revolta de Soweto,
um arrabalde de Johannesburgo, e da repressão armada que pro-
vocou uma indignação internacional tão intensa como quando
do massacre de Sharpeville, 0 regime do a partheid parecia ina-
balável E o governo sul-africano se mostrava pouco sensível ao
seu crescente isolamento internacional. No entanto, 0 apa rth eid
já não tinha futuro e começava, sem que muitos o percebessem,
a se desfazer.

Por quê?

Por várias razões. Para começar, a relação numérica entre a po-


pulação branca e a não-branca havia mudado consideravelmente,
em detrimento da primeira. O número de habitantes quase tripli-
cara em trinta anos: de 13 milhões para cerca de 35 milhões. Esse
crescimento se devera sobretudo aos negros. Em 1951, os brancos
A l b e r t o da Costa e Si l va H5

compunham 21% da população; em 1986, eram apenas 14%; e


para 1990 se previa uma percentagem ainda menor.
Enquanto isso, a economia crescera, mas chegara a um ponto
em que seu dinamismo dependia da plena incorporação, como
produtores e consumidores, de toda a população. As indústrias
não poderíam continuar a expandir-se apenas com a mão-de-obra
qualificada branca. Esta não era mais suficiente para atender às
necessidades de crescimento da indústria e dos serviços, e os ne-
gros foram ocupando lugares cada vez mais especializados nas
fábricas e nos escritórios. Conseqüentemente, aumentaram os
seus salários e 0 seu poder de convencimento e pressão.

Fico p en sa n d o e m com o seria dificil m a n te r a segregação dentro de

u m escritório ou n a lin h a de m o n ta g e m de u m a fá b rica .


E as cidades que deveríam ser brancas passaram a receber
todos os dias um número cada vez maior de negros que nelas
tinham trabalho.
A segregação racial tornara-se .um empecilho ao crescimento
econôn^T Á Iém disso, fizeram-se mais drásticas ainda, depois
da revolta de Soweto, as sanções econômicas impostas pela comu-
nidade internacional à África do Sul, dificultando enormemente
as suas exortações e importações. O resto do mundo queria 0
fim do a p a rth eid .
A pressão política internacional aumentou com a queda do
Muro de Berlim e o término da Guerra Fria, pois deixava de haver
o perigo, para os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental,
de cair a África do Sul sob o domínio de um partido político que
lhes fosse hostil e pusesse em risco a rota estratégica do Atlân-
146 À Á f r i c a e x p l i c a d a aos meus f ü h o s

tico ao Índico. Entre os próprios africânderes, cresceu 0 núme-


ro, dantes ínfimo, daqueles convencidos de que era impossível
a existência de um país que negava a cidadania a quase 90% de
seus habitantes. E as eleições de 1989 mostraram que 0 consenso
branco se desmanchara.
O novo presidente, F. W. de Klerk, abriu a porta para as mu-
danças: legalizou 0 ANC, libertou o seu líder, Nelson Mandela, e
o teve como seu principal interlocutor no processo de desman-
telamento do apartheid e de transição para um novo regime po-
lítico. Nas eleições de 1994, com plena participação dos negros,
mestiços, asiáticos e brancos, Mandela foi eleito presidente da
República, juntamente com um parlamento multipartidário e
multirracial.
Havia quem apostasse que as mudanças na África do Sul não
se fariam sem violência, sem um acerto sangrento de contas.
Não foi isso 0 que se viu. Graças principalmente à atuação de
Mandela, os humilhados e ofendidos durante tanto tempo mos-
traram-se generosos e conciliadores.
Décima conversa
S em p re que a televisão m ostra u m a cidade a frica n a ao su l do

S a a ra , parece que todo 0 m u n d o está nas ruas .

Ou, melhor: que só está em casa quem não pode estar na rua.

Tem-se, a lém disso, a im pressão de que todo 0 m u n d o está com

pressa.

E falando em voz bem alta‫ ״‬.


Mas quem vinha às carreiras pára diante de um amigo e se de-
mora nos abraços e nas gargalhadas. Por toda parte há gente ven-
dendo coisas: roupas, sandálias de couro, panelas de alumínio,
legumes, verduras, fruta s, peixe seco, galinhas, vinhos franceses,
livros de arte, cestas, colares de contas, caixas de ferramentas,
esculturas em marfim, rádios portáteis, tecidos e panos pintados
à mão. A correr entre os automóveis e as motocicletas. Em barra-
quinhas. Ou sobre esteiras estendidas no chão.
Aqui, um barbeiro corta o cabelo de um cliente, com a cadeira
em plena rua. E também na rua, mais adiante, um alfaiate gira a
roda de sua máquina de costura. Parece, às vezes, que entramos
numa daquelas gravuras feitas por Debret, com cenas do Rio de
Janeiro do início do século XIX. Mas a bela surpresa para o visitam
te que chega à África pela primeira vez é ver uma jovem delicada-
mente a escanchar nas costas uma criança pequenina e a prendê-la
‫ג‬5 ° A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

ao corpo com um longo pano de estampado idêntico à da roupa


que veste. Quando é mãe de gêmeos, pode amarrar da mesma
maneira o segundo menino à barriga. E lá vai caminhando com
uma elegância incomparável, de mãos livres, tendo à cabeça, para
fazer o seu comércio, uma grande bacia de alumínio, de ágata ou
de plástico, pesada de maços de cigarros, frascos de amendoim,
garrafas de bebida, cajus, bananas ou abacaxis rosados.

Essas im agens de alegria nas ruas co n tra sta m co m o utras, que nos
m o stra m crianças fa m in ta s , quase re d u zid a s a olhos e ossos, e fa m í-
lias vivendo refugiadas das guerras d v is e n a m a io r das m isérias.

Como disse na nossa primeira conversa, ambas as imagens


são igualmente verdadeiras. Pois, na África, não faltam proble-
mas. E grandes problemas. A maior parte do continente é for-
mada por terras pouco férteis, com chuvas escassas ou mal dis-
tribuídas. Muitas regiões são castigadas por secas periódicas. A
fome é, por isso, historicamente, uma ameaça constante. E doen-
ças graves sempre afetaram as suas populações. Quando os afri-
canos começavam a se alegrar com vitórias nesse campo — a
erradicação da varíola, por exemplo —, surgiu um novo flagelo,
a aids, cujo avanço não foi contido a tempo devido, em grande
parte, às atitudes de políticos e de religiosos que negavam a exís-
tência do drama ou se opunham às medidas de prevenção.
Muitas das atribulações africanas se agravaram, aliás, não só
pela ambição de seus políticos de se perpetuar no poder e de exer-
cê-10 de modo absoluto e pela violência, mas também por deci-
soes equivocadas ou por omissão de seus governantes. Na ânsia
de industrialização ou em busca de prestígio, desperdiçaram-se
A l b e r t o da Costa e Si l va 151

recursos instalando usinas siderúrgicas onde não havia minério


de ferro nem carvão, construindo palácios luxuosos e uma cate-
dral maior do que a igreja de São Pedro, em Roma, ou adquirindo
navios de guerra e caças a jato. O caos político, com seus conflitos
armados, e a incompetência administrativa explicam em grande
parte 0 fato de ter a República Popular do Congo uma renda,per
ca p ita inferior a 200 dólares anuais, apesar de ser um dos países
africanos com maiores riquezas naturais: cobre, diamantes, co-
balto, madeiras, borracha, café, cacau e dendê, além de enorme
potencial hidrelétrico.

Pelo que nos disse a té agora, h â m u ita diferença em riq u eza e

po ten cial econôm ico entre os países da Á frica.


C om o sucede, aliás, em todos os continentes. Entre os 53 esta-
dos independentes africanos, alguns possuem abundantes recur-
sos naturais, como África do Sul, Angola, Nigéria, Gana, Gabão
e Botsuana, e outros deles se mostram pobres, como Gâmbia,
Niger, Maláui e Somália. Alguns apresentam expressivas taxas de
crescimento econômico, como Botsuana, Gabão, Angola e Guiné
Equatorial. Outros, dantes prósperos e com a economia em cres-
cimento, sofreram os efeitos dos maus governos ou de repetidas
crises políticas e estacionaram, ou até mesmo regrediram, como
foi o caso do Zimbabué, que há pouco tempo ainda tinha uma
agricultura altamente eficiente e produtiva.

Q u a is são esses 53 estados?


Vamos ver se me lembro de todos eles. Acompanhem no
mapa da página 8.
1$2 A A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

Na África do Norte: Marrocos, Tunísia, Argélia, Líbia e Egito.


Na África Ocidental: Mauritânia, Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné,
Guíné-Bissau, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Burquina
Fasso, Gana, Togo, Benim, Nigéria e Niger. Na África Centro-
Ocidental: Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, República do Con-
go, República Democrática do Congo e Angola. Na África Central:
Chade, República Centro-Africana e Zâmbia. Na África Oriental:
Sudão, Etiópia, Eritréia, Djibuti, Somália, Quênia, Uganda, Ru-
anda, Burúndi, Tanzânia, Maláui e Moçambique. Na África Me-
ridional: Zimbabué, Namíbia, Botsuana, África do Sul, Lesoto e
Suazilândia. Faltaram ilhas que são estados independentes: Cabo
Verde, na África Ocidental; São Tomé e Príncipe, na África Centro-
Ocidendal; Madagáscar, Comores, Maurícia e Seicheles, na África
Oriental. Algumas, como 0 arquipélago de Cabo Verde, Maurícia
e Seicheles, estão distantes do continente, no meio do oceano. E
não devemos esquecer o Saara, antigo Saara Ocidental, reconhecí-
do por vários países como 0 54a estado africano, mas que o Marro-
cos considera parte de seu terrritório e dele tem o controle.
Essa divisão em África do Norte, África Ocidental, África Cen-
tro-Ocidental, África Central, África Oriental e África Meridional é
a mais corrente. Eu tenho a minha: a África do Norte, que sempre
fez parte do universo político e cultural do mar Mediterrâneo e fi-
cou, durante muitos séculos, separada do resto do continente pelo
Saara; a África Atlântica, que realizou com as Américas a maior
parte das trocas culturais; e a África Indica, na qual predominaram
as relações com a Ásia. A África Atlântica seria a Costa dÁirica dos
portugueses; a África índica, o que chamavam de Contracosta.
Proveio da África Atlântica, e mais especificamente da África
Centro-Ocidental e da África Ocidental, a maior parte de nossos
A l b e r t o da Costa e S i l v a 153

antepassados africanos. Isso não quer dizer que não tenham sido
trazidos de outras regiões. De Moçambique, é claro, e de outras
partes da África Oriental, sobretudo depois de 1750. Mas, se en-
contrarmos alguém que veio da Etiópia ou da atual República do
Sudão, será motivo de surpresa.
A migração forçada mais numerosa e mais estendida no tem-
po — cobrindo três séculos — teve por origem os Congos e An-
gola. Dessa ampla região, vieram para o Brasil congos, ambun-
dos, angicos, iacas, libolos, imbangalas, lubas, lundas, luchazes,
luluas, holos, quis sarnas, ovimbundos, ganguelas, lovales, lózis e
membros de muitos outros povos a que chamamos bantos. Cada
um deles fala uma língua distinta e tem costumes diferentes dos
demais. Mas são considerados bantos porque os idiomas que fa-
lam pertencem à mesma família lingüística, a banta, do mesmo
modo que os que se expressam em português, castelhano, cata-
lão, francês, italiano e romeno são denominados latinos.
Outra área importante de migração para o Brasil, principal-
mente no século XVIII e primeira metade do XIX, foi o golfo do
Benim, a região formada por Togo, República do Benim e Nigé-
ria. Dali e de seu vasto interior vieram pão só fons e iorubás, mas
também guns, gás, evés, mahis, hauçás, baribas, nupes, gruncès,
bornus e um grande número de povos .menores. Da chamada
\ 1
Costa do Ouro recebemos fontes è axantes.
Mais antiga foi a participação do Senegal, da Gâmbia e dos pa-
íses da Alta Guiné (as duas Guinés e a Serra Leoa). Ela começa no
século XVI, perde vulto no decorrer do XVII e volta a ter algum
relevo na segunda metade do XVIII. De lá vieram, sobretudo
para o Maranhão e 0 Pará, mandingas, jalofos, sereres, bfjagós,
pepeis, susus, limbas, banhuns, balantas e beafadas.
1$4 A A f r i c a e xp l i ca d a aos meus f i l h o s

Você está se esquecendo de M oçam bique.

Não estou, não. Já ia chegar lá. Em seus portos foram embar-


cadas não só pessoas originárias do que hoje é o seu território,
mas também da Zâmbia, do Maláui e, em menor escala, do sul
da Tanzânia e de Zimbabué. E eram macuas, macondes, maravis,
tongas, cheuas, bembas, bisas, lolos, xonas e outros mais.
Do que estava me esquecendo é da baía de Biafra, na Nigéria,
de onde vieram ibos, ibíbios, ijós e efiques.

É curioso: não se vê a m a io ria desses nom es nos nossos livros âe

história,

Porque os africanos trazidos para o Brasil aqui receberam, em


geral, 0 nome dos portos ou das regiões onde foram embarcados.
Assim, minas, calabares, cabindas, congos, angolas, benguelas e
moçambiques, conforme subissem ao navio na costa a leste do
forte de São Jorge da Mina, no Antigo ou no Novo Calabar, em
Cabinda, na foz do Congo, em Luanda, em Benguela ou em qual-
quer dos portos de Moçambique.
Importante é saber que esses africanos pertenciam a numero-
sas nações diferentes, cada qual com sua cultura própria. Alguns
desses povos, por serem mais numerosos ou se terem concentra-
do em certas regiões do país, tiveram participação mais intensa do
que outros na formação da cultura brasileira.

O nde essa participação se m ostra m a is evidente?

É difícil dizer. Em quase todas as áreas. Freqüentemente, a


presença africana está de tal maneira mesclada a formas de ser,
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 155

fazer e viver européias e ameríndias, que é difícil distinguir 0 que


é puramente africano.
O que é certo é que os nossos antepassados africanos trouxe-
ram para o Brasil os conhecimentos e as técnicas que desenvol-
veram ao longo dos séculos. Como já vimos, a casa popular do
interior do Brasil ainda hoje é feita por um processo de constru-
ção africano: 0 sopapo, pau-a-pique ou bofetão, que se somou a
técnica semelhante transplantada de Portugal e deslocou a taipa
de pilão, que lá prevalecia.
Os africanos sabiam como trabalhar os solos dos trópicos
e introduziram no Brasil um bom número de vegetais, como,
por exemplo, o dendê, a malagueta, 0 quiabo, o maxixe, 0 jiló, os
inhames, várias espécies de bananas, diversos tipos de abóboras
e de feijões, o tamarindo e a melancia. Difundiram, ademais, nas
terras brasileiras, 0 cultivo do arroz e 0 seu uso como prato diá-
rio. A eles se deve também o uso do leite de coco nas comidas. A
sua contribuição para a culinária brasileira foi importantíssima,
a tal ponto que muitos dos pratos que temos como característica-
mente nossos são de origem africana: 0 vatapá, 0 caruru, 0 mun-
gunzá, 0 abará, 0 acarajé, o efó e muitos mais.
Na criação de gado, continuaram no Brasil a prática, de que
eram mestres na África, de criá-lo em enormes espaços abertos, a
levá-lo de um lado para outro incessantemente, sempre em busca
de novos pastos. Foram os vaqueiros negros e mestiços, a conduzir
os rebanhos, dos primeiros a entrarem pelo Brasil adentro e inicia-
rem a saga de povoá-lo, enquanto se expandiam os seus Hmites.
Os africanos trouxeram também para 0 Brasil suas técnicas
de produzir e trabalhar 0 ferro. Durante muito tempo, foi graças
A A f r i c a e x p l i c a d a aos meus f i l h o s

a elas que o país pôde ter suas primeiras indústrias rudimentares


de preparo direto do metal.
Foram, no Brasil, grandes ourives e nos deixaram um belo
legado de jóias em ouro e prata de excepcional qualidade, mui-
tas delas produzidas segundo modelos africanos, porque tinham
como mercado as mulheres negras, que adquiriam jóias não ape-
nas como adorno, mas também como forma de pecúlio.
Antes de tudo, porém, deve-se aos africanos 0 rápido avanço
da mineração do ouro no Brasil. Sabiam como encontrar 0 metal,
a batear os rios e a cavar minas com galerias subterrâneas.
A participação da África na construção do Brasil e de seu povo
começou muito cedo, desde a segunda metade do século XVI. A
África está presente nos ditos, histórias e canções que repetimos
ao longo da vida; nos brinquedos infantis tradicionais, nos bi-
chos-papões que povoavam os medos de nossa meninice, nas fes-
tas e danças populares, na maneira como nos cumprimentamos,
no jeito de estar em casa e na rua — em suma, em quase tudo.
Já vimos como as religiões de origem africana se expandiram no
Brasil. E como a África impregnou a nossa música.
De que a presença africana em nossa cultura é profunda, tal-
vez 0 melhor testemunho esteja no português que falamos, no
idioma no qual expressamos o que pensamos, sentimos e somos.
As línguas africanas, especialmente o quimbundo (ou idioma dos
ambundos), 0 quicongo (ou língua dos congos), 0 umbundo (ou
idioma dos ovimbundos) e o iorubá, marcaram profundamen-
te não só o vocabulário do português do Brasil, mas também a
sintaxe, ou a construção das frases, e a fonética, ou a maneira
como pronunciamos as palavras. Poucos se dão conta de que os
A l b e r t o da Cost a e S i l v a 157

verbos cochichar, cochilar, fungar, xingar e zangar, os substan-


tivos bagunça, cachaça, caçula, cafuné, camundongo, carimbo,
fuxico, fuzarca, garapa, lengalenga, molambo, quitanda, quitute,
sunga e tanga, os adjetivos capenga, dengoso, encabulado e zon-
zo e numerosíssimos outros termos que usamos no dia-a‫־‬dia são
de origem africana.

E 0 que fa z e m os portugueses, q u a n d o tê m de z a n g a r co m 0 caçula

dengoso que estava cochilando d u ra n te u m a lengalenga com o esta?


Eles se irritam ou se aborrecem com o benjamim manhoso
que dormitava durante esta conversa enfadonha.
Mas algumas das palavras de origem africana que usamos já
entraram, por influência brasileira, no vocabulário dos portugue-
ses. Outras chegaram a Portugal, e desde o século XVÍ, direta-
mente da África. Sobretudo de Angola, Cabo Verde, Guiné, São
Tomé e Moçambique, países nos quais se fala, além de línguas
africanas, 0 português.

Pelo que nos d iz, p o d em o s encontrar a Á frica em cada m o m e n to

de nossas vidas.

No nosso dia-a-dia e, mais importante ainda, em nossa gen-


te. É raro um brasileiro adulto cujos bisavós já viviam no Brasil
que não tenha pelo menos um antepassado africano. A África
está, portanto, no sangue da grande maioria do nosso povo. E,
ainda que disto muitos não tenham consciência, na alma de
quase todos.
Ai i>erf 0 éa Cosia e Si l va ‫ג‬59

________. U m rio ch a m a d o A tlântico: A Á frica no B rasil e 0 Bra~


sil n a Á frica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / UFRJ, 2003.
Lo v e jo y , Paul E‫ ״‬Escravidão n a Á frica. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 2002.
Mello e Souza, Marina de. Á fric a e 0 B rasil africano. São Pau-
10: Ática, 2006.
O l iv e r , Roland. A experiência africana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.
Pr i o r e , Mary Del e Venâncio, Renato Pinto. A ncestrais: U m a
in trodução à história da Á fric a A tlâ n tic a . Rio de Janeiro: Elsevier,
2004.
T hornton , John. Á frica e os africanos n a fo rm a ç ã o do m u n d o
atlântico. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
W e s s e l in g , Henk L. D iv id ir p a r a d o m in a r: A p a r tilh a da
Á frica . Rio de Janeiro: UFRJ / Revan, 1998.
Leituras
compl ement ar es

Eis uma relação de livros em português sobre a África, que


ajudarão a melhor compreender 0 continente:

Ap p ia h , Kwame Anthony. N a casa âe m e u p a i. R,io de Janeiro:


Contraponto, 2007.
Bru n sc h v ig , Henri. A p a rtilh a da Á frica Negra. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
Cascudo , Luís da Câmara. M ade in Á frica. São Paulo: Global,
2001 (1â edição: 1965).
C osta e Silva, Alberto da. A e n x a d a e a lança: A Á fr c a antes
dos portugueses, ψ edição, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006
(1â ed., 1996).
________ A m a n ílh a e 0 libam ho: A Á fr c a e a escravidão, de
1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
________. Francisco F ã ix de S o u za , m ercador de escravos. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2004,
________. U m passeio pela Á fr c a (com ilustrações de Rodrigo
Rosa). Rio de Janeiro / Salvador: Nova Fronteira / Centro de Es-
tudos Afro-Orientais, 2006.
A coleção Explicado aos m eus filh o s
mostra como alguns dos assuntos
e das questões mais importantes de
nossas vidas podem e devem ser dis-
cutidos de forma simples e clara. Es-
pecialistas em diversas áreas criam
diálogos e situações entre pais e filhos
para esclarecer temas históricos e da
atualidade em textos pensados para
combinar prazer e aprendizado.

A lberto da C osta e S ilva nasceu em


1931, em São Paulo. Ensaísta, histo-
riador e poeta, é um dos mais impor-
tantes especialistas brasileiros em
África. Foi embaixador do Brasil na
Nigéria e no Benim. É membro da
Academia Brasileira de Letras desde
2000. Entre seus principais livros
estão A e n x a d a e a lança: a Á frica an-
tes dos portugueses {1992}, A m a n ilh a
e 0 libam bo: a Á frica e a escravidão , de
1500 a i j o o (2002) e U m rio ch a m a d o
A tlântico: a Á frica no Brasil e 0 Brasil
n a Á frica (2003).
Até metade do século XIX, a Africa era ainda um conti-
nente cheio de segredos para a Europa e para as Américas.
Da mesma forma era relativamente poucos os africa-
nos que sabiam alguma coisa sobre 0 «homem branco»
■ que achavam parecidos com macacos, por causa da
quantidade de pelos no corpo, ou que nào tivessem de-
dos nos pés por isso usavam sapatos. Ainda hoje, 0 con-
tinente ainda guarda uma aura de mistério em função de sua
imensa diversidade. Abriga desertos, montanhas, flores-
tas, savanas, a fauna mais rica do planeta, além de se di-
vidir em mais de dois mil idiomas entre as mais diversas
etnias. Em A Africa explicada aos meus filhos, 0 historiador
Alberto da Costa e Silva revela alguns desses mistérios e
como a cultura africana está presente em nossos ditos,
histórias e canções.

A 9 789688 874103
A gir

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