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Perda de identidade no processo migratório

Não há como sermos como éramos antes, mas talvez possamos ser melhores

Colocar o pé na estrada é uma aventura sem igual, nada estará em nosso controle,
nossas expectativas serão superadas, viveremos uma vida que jamais viveríamos se não
tivéssemos partido e no fim nos enxergaremos de uma outra forma. Toda essa magia
traz consigo a perda de identidade diante do processo migratório, afinal de contas,
morar fora é um convite a deixar de ser quem somos, para nos tornarmos um ser mais
evoluído e diferente.

Estou vivendo a experiência migratória desde 2019, tantas coisas já aconteceram, tantas
coisas já deixaram de acontecer e muitas coisas não saíram conforme o planejado, mas
todas elas me surpreenderam. Não há como morar fora e não ser constantemente
surpreendido e vou contar a vocês o porquê. Quando vivemos muito tempo em uma
única cultura, tendemos a acreditar que só existe uma forma de pensar, se comportar e
agir. Ao colocarmos o pé na estrada descobrimos que estávamos completamente
enganados todo esse tempo e que existe muitas possibilidades de sermos e existirmos
neste mundo.

Não encare suas experiências turísticas, de poucos dias em alguns países diferentes,
como uma verdadeira imersão cultural. Oficialmente ela não deixa de ser, mas digamos
que algo muito raso. Quando estamos a passeio ativamos o modo contemplativo, ou
seja, tudo pode ser lindo, precioso e sensacional, mas nós sabemos que a realidade é
bem diferente disso não é? Morar fora nos convida a nos desprendermos de quem
éramos para acolher um novo modo de sentir, perceber e compreender a realidade. É
nesse movimento que a perda de identidade vai se desintegrando, sem nos alertar que
pouco a pouco estamos deixando de ser quem somos.

A perda da identidade é um processo pelo qual todo imigrante passa, ou seja,


precisamos nos desfazer de quem éramos para caber em um novo mundo, com novas
exigências, com expectativas diferente, com regras desconhecidas, com necessidades
específicas, com valores incompatíveis e por fim, com um modo de ser completamente
incomum ao que estávamos acostumados. Talvez você esteja lendo esse texto e
pensando, “eu não perdi a minha identidade, estou exatamente como sou...”, será?
Como de costume, aqui vão alguns questionamentos para te auxiliar nesta reflexão:
Como você lidava com seus desafios antes e como lida hoje?
Como era seu senso criativo no passado e como ele tem se manifestado hoje?
Suas ideias fluem tanto quanto antes?
Sua velocidade para resolução de problemas permanece igual?
O que você tinha como força, que não a reconhece mais atualmente?

Vamos vivenciando a perda da identidade sem nos darmos conta, como se estivéssemos
em banho maria, ou seja, de repente olhamos para trás e percebemos que nosso antigo
Eu já não existe e com isso a saudades surge, nos transportando para as sensações que
tínhamos ao sermos como éramos antes. Começamos a lembrar da nossa coragem, da
nossa ousadia, da nossa astúcia, dos nossos ajustamentos para darmos conta, do famoso
jeitinho brasileiro, tão peculiar nosso. Morar fora nos revela que talvez a vida que
tínhamos não é era tão ruim, se calhar éramos nós que não a enxergávamos com amor e
acolhimento.

Esse texto é um convite especial para pararmos por um momento e olharmos para nós,
para tentarmos perceber quando foi que perdemos a nossa identidade ao morar fora. Não
encare essa reflexão como algo ruim, mas como um lembrete de que podemos
reestabelecer a conexão com partes do nosso antigo eu que ainda podem se encaixar nos
dias de hoje e nos conduzir para lugares ainda melhores e maiores. A depender da
cultura em que estejamos vivendo e das pessoas as quais estamos nos relacionando,
nada nos remeterá a vida que tínhamos e isso não é ruim, mas deves ficar atento para
não se adaptar tanto ao ponto de não se reconhecer mais.

Perdemos a identidade no processo migratório quando nos afastamos dos nossos


valores, princípio, costumes, formas de pensar, modos de agir, jeitos de se comportar,
assim como quando deixamos de ser quem verdadeira somos para “caber” no mundo ou
na vida de algumas pessoas. Morar fora é uma oportunidade para sermos ainda melhores
e não para sermos completamente diferentes do que um dia sonhamos. Compreenda que
ser diferente é maravilhoso, com tanto que isso esteja alinhado ao seu propósito e
objetivos de vida.
Se você está pensando em colocar o pé na estrada ou se já está de malas prontas e
passagem comprada, não se assuste com esse assunto. A reflexão surge como uma
oportunidade para você estar atento ao que todos os imigrantes estão sujeitos a passar e
que certamente você irá vivenciar. Se você me acompanha por aqui sabe que sempre
falo da importância do autoconhecimento, e não é porque sou psicólogo e atendo
clinicamente imigrantes e expatriados, mas é por ser um sujeito que colocou o pé na
estrada e que também passa por tudo isso o que escreve. Literalmente é com
conhecimento de causa, embasado nos preceitos da psicologia intercultural, a qual
também me debruço durantes as horas de estudo.

Se viver no passado já era difícil, imagine nos tempos de hoje. Não há mais espaço para
sermos estranhos na nossa própria casa, no nosso próprio templo, com a gente mesmo.
Compreender nossas reais necessidades, fragilidades e dificuldades vai te ajudar e saber
por onde ir, de onde deverá se retirar e de quem precisará se aproximar. O
autoconhecimento vai permitir o real resgate da sua identidade, para que você possa se
recompor e se realinhar, ajustando-se as novas necessidades e exigências as quais se
colocou.

Por fim, alcançaremos uma vida com mais intencionalidade, mais profundidade e mais
autenticidade. Nos afastando assim do superficial, do frívolo e de todo excesso que nos
impede de emergirmos. Todos querem o seu lugar ao sol, mas cuidado para não ser você
mesmo quem está buscando se esconder do calor, da luz e da vida. Somos mestres em
nos autossabotar e quando nos damos conta, parece que não há nada mais a ser feito,
mas talvez a gente só precise descansar um pouco e conversar com as pessoas certas.

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