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PONTA GROSSA
2001
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PONTA GROSSA
2001
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SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................vi
ABSTRACT................................................................................................................vii
INTRODUÇÃO.............................................................................................................1
CAPITULO I - SANTO AGOSTINHO — VIDA E OBRA............................................4
CAPÍTULO II - O CONCEITO DE LIBERDADE HUMANA.......................................16
1 O CONCEITO EM SENTIDO GERAL...................................................................16
2 NOÇÃO DO PROBLEMA DA LIBERDADE NA HISTÓRIA...................................17
3 SENTIDO FUNDAMENTAL DA LIBERDADE HUMANA.......................................20
CAPÍTULO III - A LIBERDADE HUMANA EM SANTO AGOSTINHO......................27
CONCLUSÃO............................................................................................................42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................45
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RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
teve, porém, a intenção de elaborar um sistema filosófico, mas, na sua obra quer ser
antes de tudo um teólogo.
O estudo do pensamento agostiniano não é uma tarefa fácil. Agostinho era
um pastor e não um acadêmico, isso explica porque seu pensamento não se
encontra ordenado de forma sistemática, e porque sua terminologia por vezes
carece de precisão: ele não tinha a preocupação de estruturar sua doutrina ao modo
dos escolásticos, pois a finalidade de suas obras não era o ensino acadêmico. Seu
intuito era simplesmente anunciar a verdade do Evangelho, combatendo os erros e,
instruindo na fé o rebanho que lhe foi confiado. Sua doutrina sobre a liberdade
humana é um dos frutos desse seu empenho.
Agostinho trata da liberdade humana sobretudo no seu sentido próprio, isto é,
enquanto liberdade interior. No seu pensamento a liberdade considerada como
simples ausência de coação é insuficiente, tampouco, é suficiente considerada como
liberdade de escolha ou livre-arbítrio, embora esses conceitos sejam elementos da
liberdade cristã a que se refere.
Sendo a liberdade um bem tão precioso e desejável convêm que se tenha
dela um conhecimento verdadeiro, como o propõe Santo Agostinho.
Tratar-se-á, neste trabalho, de expor quem foi Santo Agostinho e qual a
irradiação de sua obra, num segundo momento far-se-á a abordagem do conceito de
liberdade em sentido geral e, finalmente, se analisará o pensamento de Santo
Agostinho acerca da liberdade, situando-o no pensamento filosófico geral acerca
desse conceito.
Este trabalho foi realizado mediante pesquisa bibliográfica.
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CAPÍTULO I
Esse livro mudou o alvo das minhas afeições (...). Imediatamente se tornaram vis, a meus
olhos, as vãs esperanças. Já ambicionava, com incrível ardor do coração, a Sabedoria
imortal. (...) me deleitava, naquela exortação, o fato de essas palavras me excitarem
fortemente a acenderem em mim o desejo de amar, buscar, conquistar, reter e abraçar, não
esta ou aquela seita, mas sim a própria sabedoria (1988, p. 60).
Todo o esforço que determinantemente me impusera a fim de progredir nesta seita ruiu por
completo logo que conheci aquele homem [Fausto], mas não de tal forma que dos
maniqueístas me separasse radicalmente. Com efeito, não encontrando outro caminho
melhor que aquele por onde desesperadamente me lançara, resolvera contentar-me com ele,
até que brilhasse outra via de preferível escolha (AGOSTINHO, 1988, p. 104).
Preferindo a doutrina católica, já sentia, então, que era mais razoável e menos enganoso
sermos obrigados a crer o que não demonstrava, quer houvesse prova, mesmo que esta não
fosse para o alcance de qualquer pessoa, quer não houvesse. Seria isto mais sensato do que
zombarem da crença os maniqueístas, apoiados em temerária promessa de ciência, para
depois nos mandarem acreditar em inúmeras fábulas tão absurdas que não podiam prová-las
(AGOSTINHO, 1988, p. 121).
Fiz da Vossa criação uma única e imensa massa, diferenciada em diversas espécies de
corpos: uns, corpos verdadeiros; outros, espíritos que eu imaginava sob a figura de corpos.
Eu a supus não com a sua própria grandeza, porque não a podia saber, mas com a que me
agradou, porém, limitada de todos os lados. A Vós, Senhor, infinito em todas as direções,
imaginei-Vos a rodeá-la e penetrá-la de todas as partes, como se fôsseis um único mar em
toda a parte e de todos os lados infinito na Vossa imensidade, tendo dentro de si uma
esponja da grandeza que nos aprouvesse, mas rodeada e inteiramente cheia de um mar
imenso. (...) Dizia: ‘Eis Deus e eis o que Deus criou! Deus é bom e, por conseguinte, criou
boas coisas. E eis como Ele as rodeia e as enche! Onde está, portanto o mal? Donde e por
onde conseguiu penetrar? Qual é a sua raiz e a sua semente? (AGOSTINHO, 1988, p. 145).
Essas dúvidas materialistas puderam ser resolvidas com a ajuda dos filósofos
platônicos. Agostinho não teve primeiramente um contato direto com a obra de
Platão, mas conheceu-o através do egípcio Plotino (205-270), filósofo da escola
neoplatônica de Alexandria. Leu a sua obra Enneades [Novenários], que consiste
numa sistematização do pensamento helênico antigo. Na leitura desses escritos
constatou que embora não encontrasse ali o cristianismo, havia muitos pontos de
contato. Impressionou-se, sobretudo, com sua metafísica do espírito (BOEHNER, P.
GILSON, E., 1982, p.146).
Deparastes-me, por meio de um certo homem (...) alguns livros platônicos, traduzidos do
grego em latim. Neles li, não com estas mesmas palavras, mas provado com muitos e
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numerosos argumentos, que ‘ao princípio era o Verbo e o Verbo existia em Deus. Todas as
coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi criado. O que foi feito, n’Ele é vida e a vida era
a luz dos homens; a luz brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam. A alma do
homem, ainda que dê testemunho da Luz, não é, porém, a Luz; mas o verbo — Deus — é a
luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Estava neste mundo que foi
feito por Ele, e o mundo não o conheceu. (...) Do mesmo modo, li nesse lugar que o Verbo
Deus não nasceu da carne, nem do sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus
(AGOSTINHO, 1988, p.151).
Em seguida, aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração, conduzido por Vós.
(...) Entrei e, com aquela vista da minha alma, vi, acima dos meus olhos interiores e acima do
meu espírito, a Luz imutável. Esta não era o brilho vulgar que é visível a todo o homem, nem
era do mesmo gênero, embora fosse maior. Era como se brilhasse muito mais clara e
abrangesse tudo com a sua grandeza. Não era nada disto, mas outra coisa muito diferente de
todas estas. (...) Quem conhece a Verdade, conhece a Luz Imutável, e quem a conhece,
conhece a Eternidade (AGOSTINHO, 1988, p.151).
Depois de ler aqueles livros dos platônicos e de ser induzido por eles a buscar a verdade
incorpórea, vi que ‘as Vossas perfeições invisíveis se percebem por meio das coisas criadas’
[Rm 1, 20]. Sendo repelido (no meu espírito), senti o que, pelas trevas da minha lama, não
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me era permitido contemplar: experimentei a certeza de que existíeis e éreis infinito, sem
contudo Vos estenderdes pelos espaços finitos e infinitos (...) Sabia que todas as coisas
provêm de Vós, pelo motivo único e seguríssimo de existirem. Sim, tinha a certeza disso.
Porém, era demasiado fraco para gozar de Vós! (AGOSTINHO, 1988, p. 162).
Lancei-me avidamente sobre o venerável estilo (da Sagrada Escritura) ditada pelo vosso
Espírito, preferindo, entre outros autores, o Apóstolo S. Paulo. Desvaneceram-se-me aquelas
objeções segundo as quais algumas vezes me pareceu haver contradição na Bíblia e
incongruência entre o texto dos seus discursos e os testemunhos da Lei e dos Profetas. (...)
Que fará o infeliz homem? ‘Quem o livrará deste corpo de morte, senão a Vossa graça por
Jesus Cristo nosso Senhor’ [Rm 7,24], que Vós gerastes coeterno e criastes no princípio de
Vossos caminhos, ao qual o príncipe deste mundo, apesar de o não encontrar em nada
merecedor de morte, o matou? ‘Foi assim anulado o libelo que nos era contrário’ [Cl 2,14]
(AGOSTINHO, 1988, p. 163).
Finda a conversa e alcançando o fim a que viera partiu [Ponticiano]. E eu voltei a mim. O que
não proferi contra mim mesmo? Com que açoites de palavras não flagelei a alma, para que
seguisse o impulso que eu fazia para ir atrás de Vós? (...) A alma tinha medo como da morte,
de ser desviada da corrente do vício em que ia apodrecendo mortalmente (...).Quando, por
uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria e a reuni perante a vista
do meu coração, levantou-se enorme tempestade que arrastou consigo uma chuva torrencial
de lágrimas (...) Agarrei-o [o livro das Epístolas dos Apóstolos], abri-o e li em silêncio o
primeiro capítulo que pus os olhos: ‘Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em
desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus
Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites’ [Rm 13,13]. Não quis ler
mais, nem era necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma
espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram (AGOSTINHO, 1988, p.179;
186,187).
Em 391 viajou a Hipona para buscar um lugar onde abrir um mosteiro e viver
com seus irmãos, e ali o surpreendeu a ordenação sacerdotal, que aceitou relutante.
Ordenado sacerdote, obteve autorização do bispo para fundar um mosteiro, segundo
seu plano, onde começou a viver segundo a maneira e regra estabelecida nos
tempos dos santos apóstolos, intensificando os exercícios ascéticos, aprofundando-
se no estudo da teologia e iniciando o ministério da pregação. Foi consagrado bispo
em 395 ou 396, servindo primeiro como coadjutor de Hipona e logo, desde agosto
de 397, como titular da sede. Deixou então o mosteiro de leigos, onde havia vivido à
frente da comunidade, e para melhor poder oferecer hospitalidade a todos, se
instalou na casa episcopal, que transformou em mosteiro de clérigos (BERARDINO,
1986. p. 415).
A atividade episcopal de Agostinho foi prodigiosa tanto no governo ordinário
de sua diocese como em seu trabalho extraordinário a serviço da Igreja da África e
da Igreja universal. Suas atividades ordinárias compreendiam: o ministério da
palavra, pregando sem interrupção duas vezes na semana, sábado e domingo,
muitas vezes por dias seguidos, e ainda em certas ocasiões, duas vezes por dia; a
audiência do bispo, na qual atendia e julgava as causas, e lhe ocupava, às vezes,
toda a jornada; o cuidado dos pobres e órfãos; a formação do clero, com o qual se
mostrou, ao mesmo tempo, paternal e severo; a organização de mosteiros
masculinos e femininos, a visita aos enfermos, a intervenção em favor dos fiéis ante
a autoridade civil, ocupação não do seu gosto, mas da qual não se esquivava
quando o cria oportuno; a administração dos bens eclesiásticos, da qual havia
prescindido se tivesse encontrado um secular que dela se encarregasse
(BERARDINO, 1986. p. 415).
Ainda mais intenso foi seu labor extraordinário: as numerosas e longas
viagens para presenciar os freqüentes concílios africanos ou para atender as
petições de seus colegas; o ditado das cartas em resposta a quantos a ele recorriam
das regiões e classes mais diversas; a ilustração e defesa da fé. Essa última
exigência o levou a intervir sem pausa contra maniqueus, donatistas, pelagianos,
arianos e pagãos. Foi a alma da conferência de 411 entre bispos católicos e
donatistas e o artífice principal da solução do cisma donatista e da controvérsia
pelagiana. Ao morrer, em 28 de agosto de 430, durante o terceiro mês do assédio de
Hipona pelos vândalos, deixou sem terminar três importantes obra; entre elas a
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segunda resposta a Juliano, o arquiteto do pelagianismo. Seu último escrito foi uma
carta ditada talvez em seu leito de morte, sobre os deveres dos sacerdotes durante
a invasão dos bárbaros. Foi sepultado na Basílica Pacis, a Catedral. Seus restos,
em data incerta, foram levados a Sardenha, e dali, desde 725, passaram à basílica
de São Pedro em Céu d’Ouro, de Pavia, onde hoje repousam (BERARDINO, 1986.
p. 415).
Agostinho é uma personalidade complexa e profunda: é filósofo, teólogo,
místico, poeta, orador, polemista, escritor e pastor, dons que se completam entre si
e fazem dele uma pessoa incomparável. No âmbito do cristianismo deu vida à
primeira grande tese de filosofia, que continua sendo um momento essencial da
história do Ocidente. Partindo da evidência do conhecimento de si, aborda os temas
do ser, da verdade e do amor, e ilumina a compreensão dos problemas da busca de
Deus e da natureza do homem, da eternidade e do tempo, da liberdade e do mal, da
Providência e da história, da felicidade, da justiça e da paz.
Foi um polemista formidável. Convencido da verdade e da originalidade da
doutrina católica, defendendo-a contra todos – pagãos, judeus, cismáticos e hereges
– com as armas da dialética e com os recursos da fé e da razão. Mas teve, porém,
respeito pelo adversário, estudando seus escritos, citando os textos que refutava,
reconhecendo seus méritos e dissimulando e perdoando suas ofensas. De sua
atormentada experiência do erro aprendeu a ser paciente e bom para com os que
erram (BERARDINO, 1986. p. 420).
A obra literária de Santo Agostinho é vasta. Na sua obra Retratactiones
concluída em 427, — que é uma auto-avaliação de toda a sua obra e uma retificação
de algumas de suas teses —, ele próprio faz um balanço dos seus escritos até
então:
São noventa e três obras reunidas em duzentos e trinta e dois livros que me parece ter
ditado, quando deles fiz a revisão. Eu não sei se ditarei ainda outros. Quanto a esta revisão
de minhas obras, eu a publiquei em dois livros a pedido de meus irmãos, antes de
empreender a revisão de minhas cartas e de meus sermões ao povo, sermões os quais eu
ditei uns e pronunciei outros (AGOSTINHO, 1950, p. 559).
de forma clara — a Cidade de Deus não deve ser identificada com a Igreja —, isso
ocorrerá somente no fim dos tempos (ALTANER; STUIBER, 1972, p. 423).
Como afirma GILSON (1998, p.157), a obra filosófica de Santo Agostinho, por
sua amplitude e profundidade, ultrapassa em muito todas as expressões anteriores
do pensamento cristão, e sua influência perduraria ao longo dos séculos, e ainda
hoje ela se faz notar. Essa influência se deixou sentir não somente na filosofia,
dogmática, teologia moral e mística, mas também na vida social e caritativa, na
política eclesiástica, no direito civil e na formação da cultura medieval.
Agostinho, porém, apesar de toda sua fecundidade literária, jamais
negligenciou sua vocação de Pastor: “Diante da produtividade literária e teológica de
agostinho, importa não esquecer o que foi para sua comunidade e os muitos com os
quais teve de tratar, esse cristão cheio de bondade e zeloso pastor” (ALTANER;
STUIBER, 1972, p. 415).
CAPÍTULO II
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humanas, de modo que os homens não são responsáveis por suas ações —; da
natureza — porque para eles o homem está sujeito às leis que a governam, de
modo que não pode se comportar de forma diferente —; e da história — porque viam
o homem como um simples escravo da engrenagem histórica, concebida como um
movimento cíclico, no qual tudo se repete regularmente (MONDIN, 1980, p. 108).
No pensamento cristão o problema da liberdade tomou uma nova forma: o
destino é substituído por Deus, que colocou a natureza e a história não acima do
homem, mas ao seu serviço. Para os cristãos em geral, o conceito de liberdade
como simples liberdade diante de coação é insuficiente, assim como é insuficiente
considerado como liberdade de escolha, ou livre arbítrio. Afinal, o livre arbítrio pode
ser bem usado ou mal usado. Mas, mesmo dentro do pensamento cristão a questão
foi abordada de distintos modos.
Ao longo da época patrística e do período medieval o ponto de vista da
liberdade é teocêntrico. O ser livre do homem está estreitamente ligado ao desígnio
de Deus. Colocou-se o problema da liberdade, por exemplo, dentro da questão da
conciliação entre a liberdade humana e a presciência divina, e da relação liberdade
e pecado. Os escolásticos trataram das questões acerca da liberdade, livre arbítrio,
vontade e graça. Segundo Santo Tomás, não há liberdade sem escolha, mas a
liberdade não consiste unicamente em escolher-se completa e absolutamente a si
mesmo e sim em escolher algo transcendente (MORA, 1982, p. 238).
Na época moderna o eixo da questão se desloca para uma perspectiva
antropocêntrica. O homem, agora autônomo, não encontra problemas com sua
liberdade em relação a Deus, mas somente na relação com suas faculdades —
sobretudo as paixões —, e nas relações com os outros indivíduos, com a sociedade
e com o Estado (MONDIN, 1980, p. 108).
Duas tentativas significativas de resolver o problema da liberdade, sobretudo
a partir do século XVI, as quais perduram até o presente, são o determinismo e o
indeterminismo. A questão de que se ocupam é saber se o homem é livre quando se
declara que há determinismo na natureza. É o problema de liberdade contra
necessidade ou, necessidade contra liberdade. Este problema suscitou debates
entre os chamados libertários ou indeterministas, no sentido de defensores da
realidade da liberdade e, os chamados necessitários, no sentido de defensores
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de algo em determinado nível, em outro nível ele vai estar submetido a algo.
Tomemos o exemplo da pedra: se por um lado ela está livre do âmbito da cultura,
por outro ela permanece ligada ao âmbito da natureza, através da lei da gravidade
por exemplo. O mesmo acontece ao ser humano.
Se um ser estivesse livre de qualquer relação de dependência, esse ser não
poderia existir, seria um nada. E assim, a liberdade em sentido absoluto seria
impossível a qualquer ser da natureza. Estar livre de qualquer dependência supõe
uma total autonomia, total autodeterminação e uma autopossessão — possuir-se a
si mesmo sem ser possuído por outro —, e somente a um ser isso é possível: Deus
(MÜLLER, 1975, p. 292).
No pensamento cristão a noção de pessoa supõe essa plena posse de si
mesmo, e por isso, em sentido estrito só a Deus se aplica esse conceito, e só Deus
é absolutamente livre. Ao homem, porém, apesar de sua finitude, também se aplica
o conceito de pessoa, mas apenas enquanto participante desse atributo divino,
sendo imagem desse Deus.
A liberdade humana se encontra entre aquela liberdade negativa e relativa,
pertencente a todos os seres criados, e a liberdade positiva e absoluta, que
pertenceria apenas a Deus. Ao mesmo tempo em que o homem possui um certo
domínio sobre si mesmo e sobre o mundo, ele depende desse mundo em inúmeros
aspectos.
O homem, em relação aos outros seres, é capaz de uma liberdade que pode
ser chamada de transcendental, pela qual ele é capaz de ir além, acima dos outros
seres. Em que consiste essa liberdade transcendental? Na capacidade que o
homem tem de se distanciar das coisas e de si mesmo, através da reflexão,
compreendendo-se a si mesmo como diferente dos outros seres, e os outros seres
como distintos de si. Embora esse distanciamento, ou essa transcendência seja
apenas formal, pois materialmente o homem continua vinculado a esse mundo, esse
vínculo adquire um sentido distinto (MÜLLER, 1975, p. 294).
Por meio dessa liberdade de transcendência o homem se distingue dos outros
seres, como um ser que não apenas existe e se desenvolve, mas que também é
capaz de, por meio da reflexão e consciência, decidir acerca de si mesmo,
conquistar seu ser.
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Determinada coisa é escolhida dentre outras pelo valor que ela contém. Mas
aqui surge outro problema: se o homem opta por algo motivado por um valor, de
alguma forma foi o valor que determinou por atração o seu agir, e o determinismo
teria razão ao dizer que não é possível a vontade livre humana. Temos que admitir
que de fato não existe uma escolha sem um fundamento, mas não significa que por
isso a escolha não seja livre. Como isto é possível? Através de uma escolha livre
anterior — uma opção fundamental. Essa escolha consiste naquilo que o homem
decide ser, o projeto da sua própria forma essencial. Isso supõe também uma
escolha do tipo de mundo que ele acredita, pois é nesse mundo que ele se situa
(MÜLLER, 1975, p. 296).
Algo somente pode ser um motivo para o homem a partir dessa decisão
fundamental que ele fez. Em outras palavras se, por exemplo, ele decide chegar à
santidade, todas as suas decisões terão que seguir essa sua motivação primeira,
visando a sua realização enquanto pessoa, que de forma livre decidiu ser.
Essa forma fundamental é o papel que lhe cabe desempenhar no mundo. E,
ao mesmo tempo em que afirma seu papel no mundo (ser santo),
conseqüentemente afirma o próprio papel desse mundo, dentro do qual o seu papel
terá significado (mundo que deve ser local de santidade, seguindo o exemplo dado).
Assim, a decisão acerca do seu próprio ser e do sentido da sua existência, supõe
uma decisão a respeito da sua forma de viver e a respeito do mundo no qual está
inserido.
Portanto, a liberdade de agir será determinada por seus próprios motivos, e
esses motivos são determinados por uma escolha fundamental da liberdade de
decisão. É nessa liberdade de decisão que se encontra a liberdade humana pessoal,
e é através dela que se pode dizer que o homem é superior ao mundo. A liberdade,
em sentido concreto, é a união de todas essas liberdades (MÜLLER, 1975, p. 297).
Para uma elucidação do que foi estabelecido, aplicar-se-á essa compreensão
de liberdade num exemplo concreto: o caso fictício de um menino-lobo, como os
muitos que se sabe haver existido na Índia. Crescido numa família de lobos, sem
qualquer contato com a civilização ele desenvolveu os hábitos de um animal,
assimilando todo o comportamento de um lobo.
Até que ponto esse menino pode ser considerado livre no sentido aqui
exposto? Num primeiro momento essa criança parecerá livre, porque em seu estado
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natural experimenta a liberdade própria dos animais. Essa liberdade, porém, situa-se
apenas no plano negativo e relativo que foi abordado: está livre do âmbito da cultura
e da sociedade humana, mas está submetido às normas naturais daquele grupo de
animais. É evidente que um homem civilizado também está submetido às leis da
natureza, mas ele possui aquela liberdade que vai além da liberdade relativa, que é
a liberdade transcendental.
Quando essa criança poderia atingir esse nível de liberdade que aos animais
seria impossível? No momento em que tomar consciência da sua natureza. Quando
se der conta de que os lobos são distintos dele, e que são incapazes dessa reflexão
que ele está fazendo. Nessa capacidade de reflexão encontra-se a liberdade
transcendental.
A partir dessa reflexão, esse menino será capaz de uma decisão acerca de si
mesmo, e acerca do mundo, coisa que os lobos por não serem capazes da distância
transcendental jamais poderiam fazer. Aqui sua liberdade de decisão.
Sendo capaz de decidir-se acerca de si mesmo e do mundo, esse menino
pode elaborar um plano fundamental de vida e ao mesmo tempo isso suporá uma
compreensão de mundo. Poderá, por exemplo, se conhecer a fé cristã, optar por
aquele projeto de santidade.
A partir daí, essa pessoa será capaz de praticar atos determinados por meio
dessa liberdade de ação, motivados por um valor que corresponde à realização do
seu plano de vida e da sua concepção de mundo que, na sua prévia opção
fundamental, escolheu. Ele será livre na medida em que suas opções forem
coerentes com o fim que de forma livre se propôs.
Há uma questão essencial a ser levantada nessa exemplificação: sendo a
liberdade transcendental uma condição para a liberdade de escolha, como esse
menino chegará a ser capaz da mesma? Através de uma formação. Essa resposta
toca num aspecto fundamental da liberdade humana, que é sua dimensão social.
Sem o conhecimento que é recebido através de uma determinada formação
dispensada pela sociedade — que o humanize —, o menino lobo jamais poderá
desenvolver sua liberdade humana.
Essa formação não significa instrução — enquanto transmissão de um
conhecimento teórico —, mas essa instrução pode ser orientada através da
formação. Essa consiste num processo dinâmico, baseado na experiência, na qual
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que essa verdade depende de condições externas nas quais o indivíduo está
situado, como a formação, seria afirmar que a verdade é relativa, o que é anti-
filosófico. Mais coerente afirmar que a busca dessa verdade é condição para a
liberdade humana. A verdade, por sua vez, encontra-se estreitamente relacionada
com o conceito de bem, sendo ela própria um bem.
Considerar filosoficamente que a verdade é condição para a liberdade é ao
mesmo tempo o ápice e o limite da filosofia em geral. Esse limite corresponde a uma
abertura por onde a filosofia cristã penetre e possa responder qual é a Verdade que
constitui a condição para a liberdade humana. A Igreja afirma que a verdade é
condição da liberdade: “A verdade é a raiz e a regra da liberdade, fundamento e
medida de qualquer ação libertadora. A abertura à plenitude da verdade impõe-se à
consciência moral do homem; este deve procurá-la e estar pronto para acolhê-la,
quando ela se manifesta” (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 1986).
É nessa mesma fresta — por onde a simples razão não pode mais penetrar
—, que se insere o pensamento agostiniano a respeito da liberdade.
CAPÍTULO III
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Foi na vigília da sua conversão em Milão, no ano de 386, que ele se deu
conta da responsabilidade do homem nos seus atos e, que o livre arbítrio é um fato.
Compreendeu que nele não existiam duas almas e duas vontades, mas apenas uma
só alma e uma só vontade, uma vontade livre, mas corrompida, e era ela a origem
do pecado:
Quando eu deliberava servir já o Senhor meu Deus, como há muito tempo tinha proposto, era
eu o que queria e era eu o que não queria; era eu mesmo. Nem queria, nem deixava de
querer inteiramente. Por isso me digladiava, rasgando-me a mim mesmo. Esta destruição
operava-se, é certo contra a minha vontade, porém não indicava a natureza de uma lama
estranha, mas o castigo da minha própria alma. Era o pecado que habitava em mim, e não
eu, que mo infligia, em castigo de um pecado cometido com mais liberdade por ser filho de
Adão (AGOSTINHO, 1987, p. 182).
Porque, há alguns que tanto ponderam e defendem a liberdade, que ousam negar e
pretendem fazer pouco caso da divina graça, que nos chama a Deus, que nos livra dos
pecados e nos faz adquirir bons méritos, pelos quais podemos chegar à vida eterna. Porém,
porque há outros que ao defender a graça de Deus negam a liberdade, ou que quando
defendem a graça crêem negar o livre-arbítrio, me determinei, impulsionado pela caridade,
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Oh Valentim! A dirigir este escrito a ti e aos demais que contigo servem a Deus
(AGOSTINHO, 1971, pág. 212).
De onde vem o mal? Do bem, porém não do Bem supremo e incorruptível [Deus], mas dos
bens mutáveis e inferiores ao sumo Bem. Quando dizemos que o mal não é uma natureza,
mas um simples defeito da substância, reconhecemos que o mal vem de uma natureza e
existe na natureza, pois o mal é somente um defeito que se distancia da bondade. (...) Mas
uma natureza não seria mutável se de Deus procedesse sem ser criada do nada. Deus é o
autor do bem, porque é o Criador de todas as naturezas, e estas naturezas, afastando-se
voluntariamente do Bem, nos fazem ver não por quem foram feitas, mas donde foram
tomadas. E como este distanciamento do bem nas naturezas criadas não é algo positivo em
si, haja visto ser o nada absoluto, não pode ter autor (AGOSTINHO, 1984, p.495).
Não podendo existir dois deuses supremos, pois isso implicaria numa
limitação — um limitando o outro —, e se somente Deus pode criar do nada, não
podem existir, portanto, criaturas más: “A fraqueza não se encaminha a coisas más,
mas mal, ou seja, não a naturezas más, e sim desordenadamente, porque se faz
contra a ordem da natureza, do que é em sumo grau ao que é menos”
(AGOSTINHO, 1964b p. 164).
Ele afirma, portanto, que ontologicamente o mal não existe — o mal é não
ser, e que existem sim dois tipos de males: o mal físico, que são os sofrimentos, as
enfermidades, a morte, a ignorância, todos conseqüências da corrupção da natureza
humana pelo pecado original e, o mal moral, que é o pecado — conversão às
criaturas —, e ambos são frutos da deficiência da criatura, ou seja, não têm causa
eficiente, mas deficiente:
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Ninguém busque, pois, a causa eficiente da má vontade. Tal causa não é eficiente, mas
deficiente, porque a má vontade não é efetiva, mas defectivamente. Declinar do que é em
sumo grau ao que é menos é começar a ter má vontade. Empenhar-se, portanto, em buscar
as causas de tais defeitos, não sendo eficiente, mas como já dissemos, deficientes, é igual a
pretender ver as trevas ou ouvir o silêncio. E, contudo, ambas essas coisas nos são
conhecidas, uma pelos olhos e outra pelos ouvidos, não, porém, em sua espécie, mas na
privação da espécie (AGOSTINHO, 1964b, p. 163).
Ele prova que o fato da existência do mal não é inconciliável com a bondade
de Deus, pois Deus não é o autor do mal — nem do mal físico nem do mal moral —,
mas apenas o permite: “Deus não é o autor do pecado. Todavia, perturba-nos o
espírito uma consideração: se o pecado procede dos seres criados por Deus, como
não atribuir a Deus os pecados, sendo tão imediata a relação entre ambos?”
(AGOSTINHO, 1995, p. 28).
A liberdade está diretamente ligada à questão do mal moral, porque se o mal
provém de Deus, o homem não pode ser livre, pois o conceito de pecado supõe uma
escolha do sujeito e, uma livre decisão de sua vontade que contraria a ordem
estabelecida por Deus, ou seja, a responsabilidade pelo ato. Seria contraditório se
Deus determinasse que o homem agisse de modo contrário à lei que Ele
estabeleceu. O mal do pecado, portanto, não se origina de Deus, mas é
conseqüência da vontade livre do homem, que é seu livre-arbítrio, e esse é uma
manifestação da bondade divina. Por outro lado, sem a vontade livre, tampouco,
haveria mérito na reta ação do homem. A esse respeito Agostinho afirma: “Nos
revelou o Senhor por suas santas Escrituras que o homem possui um livre-arbítrio.
Como, pois, o revelara, lhes recordo não com palavras humanas, mas divinas.
Primeiro, porque os mesmos preceitos divinos de nada serviriam ao homem se não
tivesse liberdade para cumpri-los, e assim chegar ao prêmio prometido”
(AGOSTINHO, 1971, p. 213)
Mas, surge uma questão: se o homem opta pelo mal através do seu livre-
arbítrio, é porque este é corrompido, e se é corrompido, como pode ser um bem e
como pode vir de Deus? Ou ainda, será que não teria sido melhor se Deus não
tivesse nos dado o livre-arbítrio, já que algumas pessoas se servem dele para
pecar? Assim como o mal não está na substância, mas na deficiência da substância,
para Agostinho o mal não está no livre-arbítrio em si, mas sim na deficiência do livre-
arbítrio: “a vontade livre deve ser contada entre os bens recebidos de Deus”
(AGOSTINHO, 1995, p. 135). Em outro lugar afirma:
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Todo bem procede de Deus. Não há, de fato, realidade alguma que não proceda de Deus.
Considera, agora, de onde pode proceder aquele movimento de aversão que nós
reconhecemos constituir o pecado – sendo ele movimento defeituoso, e todo defeito vindo do
não-ser, não duvides afirmar, sem hesitação, que ele não procede de Deus (AGOSTINHO,
1995, p. 143).
Do mesmo modo como aprovas a presença desses bens no corpo e que, sem considerar os
que deles abusam, louvas o doador, de igual modo deve ser quanto à vontade livre, sem a
qual ninguém pode viver com retidão. Deves reconhecer: que ela é um bem e dom de Deus, e
que é preciso condenar aqueles que abusam desse bem, em vez de dizer que o doador não
deveria tê-lo dado a nós (AGOSTINHO, 1995, p. 136).
Anulamos a liberdade pela graça? De forma alguma; consolidamo-la. Assim como a lei se
fortalece pela fé, a liberdade não se anula pela graça. Pois o cumprimento da lei depende da
liberdade, mas pela lei se verifica o conhecimento do pecado e, pela fé, a súplica da graça
contra o pecado; pela graça, a cura da lama dos males da concupiscência; pela cura da alma,
a liberdade; pela liberdade o amor da justiça; pelo amor da justiça, o cumprimento da lei.
Desse modo, assim como a lei não é abolida, mas é fortalecida pela fé, visto que a fé implora
a graça, pela qual se cumpre a lei, assim a liberdade não é anulada pela graça, mas
consolidada, já que a graça cura a vontade, pela qual se ama livremente a justiça
(AGOSTINHO, 1998, p.78).
E segundo ele essa graça é de fato pura obra da gratuidade de Deus. Sobre
isso ele afirma: “a graça não se dá segundo os méritos, pois caso contrário a graça
já não seria graça. chamando-se de fato graça porque se dá grátis” (AGOSTINHO,
1971, P. 271).
Defendendo com tanto vigor a graça, acabou sendo acusado de negar o livre-
arbítrio. Gilson a esse respeito o desculpa dizendo que tal suspeita é efeito das
querelas sustentadas por mais de vinte anos, e é natural que no calor do combate se
acabe forçando a expressão (GILSON, 1998, p.155). Mas como vimos a acusação
não procede. O próprio Agostinho afirma o quanto é preciso considerar tanto a graça
quanto o livre-arbítrio: “Confessemos que a graça de Deus e sua ajuda se concede
para cada um dos atos; e que não se dá segundo os méritos, para que seja
verdadeira graça, isto é, dada por sua misericórdia. Confessemos que há livre-
arbítrio, ainda quando necessite da divina ajuda” (AGOSTINHO, 1971, p. 73).
Segundo Agostinho a conciliação entre a liberdade e a graça depende, afinal,
da conciliação de duas prerrogativas essenciais de Cristo. Com efeito, o Cristo é ao
mesmo tempo salvador e juiz. Ora, se não existe a graça, como salva o mundo? Se
não existe o livre-arbítrio, como julga o mundo?
Portanto, na questão pelagiana, a liberdade sem ser negada é posta no seu
devido lugar: como condicionada ao apoio da graça de Deus. A defesa da
necessidade da graça é para Agostinho a defesa da liberdade cristã. (JOÃO PAULO
II, 1986, p. 33)
Uma outra questão que coloca em dúvida a possibilidade da liberdade
humana é a da presciência divina, questão abordada por Agostinho na sua obra “O
livre arbítrio”. O problema é colocado da seguinte maneira: “já que Deus previra seu
pecado [do homem] como futuro, isso devia inevitavelmente realizar-se. Como, pois
pode existir uma vontade livre onde é evidente uma necessidade tão evidente?”
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Deus prevê tudo de que ele mesmo é o autor sem, contudo, ser o autor de tudo o que prevê.
Mas dos atos maus, de que não é o autor, ele é o justo punidor (...). Reconheçamos, pois,
pertencer à sua presciência o fato de nada ignorar dos acontecimentos futuros. E também,
visto o pecado ser cometido voluntariamente, ser próprio de sua justiça julgá-lo, e não deixar
que seja cometido impunemente, já que a sua presciência não os forçou a serem cometidos”
(AGOSTINHO, 1995, p.161).
porém essa é uma liberdade inicial, não é perfeita. [E por que não é perfeita?] Porque ainda
não é total, ainda não é pura, ainda não é plena liberdade, porque não estamos ainda na
eternidade (Agostinho, 1965, p. 73).
Esta liberdade plena e perfeita no Senhor Jesus, que disse: ‘Se o Filho vos libertar, então
sereis verdadeiramente livres’ (Jo 8,36), quando será plena e perfeita liberdade? Quando não
haja inimizade, quando for destruída a morte, que é o último inimigo. Convém que este corpo
corruptível se revista da incorrupção e que este corpo mortal se revista da imortalidade. Então
se cumprirá o que está escrito: a morte foi absorvida pela vitória. ‘Onde está, oh morte, tua
vitória? (...) Então viveremos e já não morreremos, naquele que morreu e por nós
ressuscitou, ‘para que os que vivem não vivam já para si mesmos, mas para Aquele que
morreu por eles e ressuscitou (AGOSTINHO, 1965, p. 77).
O primeiro homem pôde não morrer, pôde não pecar, pôde não deixar o bem. Mas podemos
por acaso dizer: não pode pecar, estado dotado de tal livre-arbítrio? Ou podemos dizer: Não
pôde morrer, havendo-lhe sido dito: ‘se pecares, morrerás’ Ou dizer: não pôde abandonar o
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bem quando o abandonou pecando e encontrou por isso a morte? A primeira liberdade da
vontade foi, pois, a de poder não pecar (AGOSTINHO, 1999, p. 172).
Depois de perder-se por causa do pecado aquela excelente liberdade, restou a fraqueza para
ser ajudada com maiores dons e socorros (...) Mais vigorosa liberdade se requer contra tantas
e tão graves tentações, que não havia no paraíso, e que se ache dotada e robustecida com o
dom da perseverança para que seja vencido este mundo com todos seus amores, terrores e
erros (...). Adão inocente, ao ser criado recebeu uma vontade livre, e ele a fez servir ao
pecado; os mártires receberam uma vontade que, tendo servido o pecado, foi libertada por
aquele que disse: ‘Se o Filho de Deus vos libertar, então sereis verdadeiramente livres’. E
com tal graça lhes foi concedida tão grande liberdade, que ainda quando na vida presente
combatem contra as concupiscências dos pecados e se caem em algumas faltas, pelas quais
dizem todos os dias: ‘Perdoai-nos as nossas dívidas’, contudo, não são escravos do pecado
mortal (AGOSTINHO, 1999, p. 121).
A graça não se dá segundo os méritos, pois caso contrário a graça já não seria graça.
Chamando-se de fato graça porque se dá grátis. Se tão poderoso é o Senhor que pode agir
pelos anjos bons ou maus, ou por qualquer outro meio, no coração dos maus segundo os
méritos, tendo presente que a malícia deste não é obra de Deus, mas procedente do pecado
original ou da própria vontade, nos maravilharemos que pelo Espírito Santo opere o bem no
coração de seus eleitos os quais de corações maus os fez bons? (AGOSTINHO, 1971, p.
271).
Ninguém ouse, pois, dar tanto ao livre arbítrio, que se empenhe em anular a oração que
rezamos: ‘Não nos deixeis cair em tentação’. Do mesmo modo, ninguém ouse negar o arbítrio
da vontade, nem se atreva a excusar o pecado; Ouçamos antes o Senhor que nos manda e
ajuda; nos manda o que devemos fazer e nos ajuda a fazê-lo. Pois a alguns, a excessiva
confiança em sua própria vontade os ensoberbeceu; e a outros, a excessiva desconfiança em
sua vontade os lançou na negligência. Aqueles dizem: ‘A quem rogar a Deus para que não
nos vença a tentação, se isso está em nossa mão?’ Estes dizem: ‘Para que esforçar-nos em
viver bem, se isso é coisa de Deus?’ Oh! Deus, oh Pai! Não nos deixeis cair em qualquer
destas duas tentações, mas livrai-nos do mal (AGOSTINHO, 1965, P. 235).
CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_____. Obras de San Agustín III – Obras filosóficas. Madrid: La Editorial Católica,
1982. 960 p. (Biblioteca de autores cristianos, n. 21).
_____. Obras de San Agustín XIV – Tratados sobre o Evangelio de San Juan
936-124). Madrid: La Editorial Católica, 1965. 642 p. (Biblioteca de autores
cristianos).
GILSON, E. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 949 p.
JOÃO PAULO II, Carta Apostólica sobre Agostinho de Hipona. Petrópolis: Vozes,
1986. 48 p.
REALE, G; ANTISERI, D. História da Filosofia. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1990. 693
p. v. 1.