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D. BEDA FERNANDES CARNEIRO

A LIBERDADE HUMANA EM SANTO AGOSTINHO

PONTA GROSSA
2001
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D. BEDA FERNANDES CARNEIRO

A LIBERDADE HUMANA EM SANTO AGOSTINHO

Monografia apresentada como requisito parcial à


conclusão do curso de Filosofia, do Instituto de
Filosofia e Teologia Mater Ecclesiae.

Orientador: D. Mateus de Salles Penteado.

PONTA GROSSA
2001
3

Dedico aos meus pais que primeiro me


ensinaram o significado da liberdade.
4

Agradeço à direção, aos funcionários e aos


professores do IFITEME, pelo que pude aprender
nesses anos.

Aos meus companheiros do curso de Filosofia,


pelas experiências enriquecedoras que me
proporcionaram.

Ao meu superior D. Abade André, aos meus co-


irmãos, especialmente o Ir. Antônio, pela
compreensão e por tudo o que significam para
mim.

Ao orientador deste trabalho, D. Mateus, pela


valiosa contribuição e disponibilidade, e à
professora Lea pela grande dedicação e
paciência heróica.

Este trabalho, de uma forma ou de outra, é de


todos nós.
5

E conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará.


Jo 8,32
6

SUMÁRIO

RESUMO.....................................................................................................................vi
ABSTRACT................................................................................................................vii
INTRODUÇÃO.............................................................................................................1
CAPITULO I - SANTO AGOSTINHO — VIDA E OBRA............................................4
CAPÍTULO II - O CONCEITO DE LIBERDADE HUMANA.......................................16
1 O CONCEITO EM SENTIDO GERAL...................................................................16
2 NOÇÃO DO PROBLEMA DA LIBERDADE NA HISTÓRIA...................................17
3 SENTIDO FUNDAMENTAL DA LIBERDADE HUMANA.......................................20
CAPÍTULO III - A LIBERDADE HUMANA EM SANTO AGOSTINHO......................27
CONCLUSÃO............................................................................................................42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................45
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RESUMO

A conceito de liberdade humana na obra de Santo Agostinho, em relação com esse


conceito em seu sentido filosófico fundamental. A liberdade humana, em sentido
filosófico somente é possível numa opção fundamental que oriente a vida do homem
rumo à sua realização enquanto pessoa, e à realização da sua natureza. Essa
opção fundamental supõe busca e compromisso com a verdade. Santo Agostinho
ao longo de seus escritos fala dessa liberdade humana em sentido filosófico e em
sentido teológico, sobretudo por ocasião das controvérsias com as heresias do
maniqueísmo e do pelagianismo. Defende a realidade da liberdade humana contra
aqueles que a negavam e, contra aqueles que a absolutizavam, demonstra que essa
liberdade não é absoluta. Afirma que é necessária a ajuda de Deus para que o
homem possa optar pelo bem, uma vez que o seu livre-arbítrio — vontade livre —
está corrompido pelo Pecado Original. Esse livre-arbítrio não é ainda a liberdade
verdadeira. Essa consiste na submissão à Verdade que é Deus. Santo Agostinho vê
a história como a história da liberdade humana: quando o homem foi criado, possuía
a liberdade de poder não pecar; depois do Pecado Original é oferecida ao homem,
mediante a libertação em Jesus Cristo, uma liberdade inferior à primeira, a de poder
não pecar com a ajuda da Sua graça; na Eternidade, uma liberdade melhor que a
primeira, a de não poder pecar.
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ABSTRACT

To concept of human freedom in Saint Augustine’s work, in relationship with that


concept in his fundamental philosophical sense. The human freedom, in
philosophical sense is only possible in a fundamental option that east the man's life
heading for his accomplishment while person, and to the accomplishment of his
nature. That fundamental option supposes search and commitment with the truth.
Saint Augustine along their writings speech of that human freedom in philosophical
sense and in theological sense, above all for occasion of the controversies with the
heresies of the manichaeism and of the pelagianism. It defends the reality of the
human freedom against those that denied her and, against those that the absolutaly,
demonstrates that that freedom is not absolute. He affirms that it is necessary the
help of God so that the man can opt for the good, once his free will - free will - it is
rotten for the Original Sin. That free will is not still the true freedom. That consists of
the submission to the Truth that is God. Saint Augustine sees the history as the
history of the human freedom: when the man was created, it possessed the freedom
of not could sin; after the Original Sin it is offered to the man, by the liberation in
Jesus Christ, an inferior freedom to the first, the one of not could sin with the help of
His grace; in the Eternity, a better freedom than the first, the one of not could sin.
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INTRODUÇÃO

A liberdade é um valor fundamental do ser humano. Na atualidade reveste-se


de especial importância pelo fato de que o homem hodierno anseia como nunca por
essa liberdade e ao mesmo tempo, em muitos aspectos, acredita já dispor da
mesma.
A reclamação por liberdade é geral: o homem e mulher querem ser livres de
tudo aquilo que os limite ou oprime, seja essa opressão social, cultural, política,
econômica, ética. Por isso, ouve-se falar em liberdade de diversas formas: liberdade
de expressão, liberdade de religião, liberdade de pensamento, liberdade de opção.
Percebe-se que o conceito de liberdade, no seu uso comum e geral,
habitualmente expressa a liberdade em sentido superficial, apenas enquanto um
aspecto parcial da liberdade humana compreendida no seu sentido profundo,
decorrente da noção de natureza e dignidade do ser humano. Tendo essa noção
como premissa, pode-se afirmar que em muitas de suas aplicações o conceito é
mau compreendido, equivocado, chegando mesmo ao inverso do que a liberdade
humana significa autenticamente.
Nos diversos sentidos que a liberdade assume, pode-se considerar que há
sempre dois sentidos fundamentais: uma liberdade exterior e outra interior.
Enquanto liberdade exterior significa o caráter de uma ação que está isenta de todo
constrangimento externo ao sujeito. Entendida como liberdade interior, é o caráter
de um querer que não sofre nenhuma necessidade ou constrangimento interno, mas
procede de um ser senhor de si.
A liberdade do homem atinge esses dois sentidos, mas o primeiro não é
prerrogativa apenas humana, podendo ser acessível a todos os seres em
determinados níveis. Já a liberdade interior é própria do ser humano, sendo
condição para o agir moral.
A compreensão da liberdade humana é um problema que ao longo da história
foi objeto de discussões e controvérsias e permanece ainda a problemática. Os
enganos que podem ocorrer na compreensão da liberdade que se dá no campo das
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definições filosóficas, muitas vezes acabam por transportar-se para a realidade da


vida do homem e da sociedade contemporânea. A liberdade pode acabar tornando-
se objeto de consumo e manipulação, servindo a interesses subjetivos, prescindindo
de um princípio norteador.
Verdade é que não se pode cair num simplismo estético, ignorando que a
conceituação da liberdade é algo muito complexo para se enquadrar numa única
definição, porém, há que se considerar que a liberdade é um bem objetivo e, se
decorre da natureza humana, eticamente exige princípios objetivos.
Considerando-se a importância desse tema, e que a correta compreensão da
liberdade é fundamental na realização da vida humana e de sua finalidade, justifica-
se um estudo acerca da mesma.
O objeto dessa pesquisa é, especificamente, a liberdade humana na
compreensão de Santo Agostinho, bispo do século IV, e um dos principais
responsáveis pela síntese entre o pensamento filosófico clássico e o cristianismo,
exercendo influência decisiva na formação e no desenvolvimento da filosofia cristã.
Ele abordou essa questão de forma eminente, dentro da concepção cristã de
liberdade.
O ângulo sob o qual a liberdade é apresentada nesta pesquisa, segue, pois, a
orientação da concepção cristã de filosofia, da qual Agostinho é um ilustre
representante. Agostinho escreve no século IV, quando não havia uma separação e
uma preocupação em estabelecer limites precisos e bem definidos dos limites da
razão e da fé. Tal divórcio terá lugar a partir da modernidade.
Se a filosofia pode ser definida como discurso racional sobre a realidade, a
menos que se considere o cristianismo como irracional, é preciso admitir a
legitimidade da filosofia cristã. A verdade que a filosofia busca, para Agostinho é
uma só: o Cristo. É, portanto, lógico, que não apenas é possível uma filosofia cristã,
como em última análise a verdadeira filosofia é a cristã.
A filosofia cristã pode ser definida como aquela que, criada por cristãos
convictos, demonstra as suas proposições através da razão natural, considerando,
porém, a revelação cristã, um auxílio valioso e um complemento para a razão, até
certo ponto moralmente necessário (BOENER; GILSON, 1982, p. 9).
Se o ponto de vista da doutrina agostiniana é filosófico e teológico, servindo-
se ao mesmo tempo dos dados da razão, complementados com os da fé, ele não
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teve, porém, a intenção de elaborar um sistema filosófico, mas, na sua obra quer ser
antes de tudo um teólogo.
O estudo do pensamento agostiniano não é uma tarefa fácil. Agostinho era
um pastor e não um acadêmico, isso explica porque seu pensamento não se
encontra ordenado de forma sistemática, e porque sua terminologia por vezes
carece de precisão: ele não tinha a preocupação de estruturar sua doutrina ao modo
dos escolásticos, pois a finalidade de suas obras não era o ensino acadêmico. Seu
intuito era simplesmente anunciar a verdade do Evangelho, combatendo os erros e,
instruindo na fé o rebanho que lhe foi confiado. Sua doutrina sobre a liberdade
humana é um dos frutos desse seu empenho.
Agostinho trata da liberdade humana sobretudo no seu sentido próprio, isto é,
enquanto liberdade interior. No seu pensamento a liberdade considerada como
simples ausência de coação é insuficiente, tampouco, é suficiente considerada como
liberdade de escolha ou livre-arbítrio, embora esses conceitos sejam elementos da
liberdade cristã a que se refere.
Sendo a liberdade um bem tão precioso e desejável convêm que se tenha
dela um conhecimento verdadeiro, como o propõe Santo Agostinho.
Tratar-se-á, neste trabalho, de expor quem foi Santo Agostinho e qual a
irradiação de sua obra, num segundo momento far-se-á a abordagem do conceito de
liberdade em sentido geral e, finalmente, se analisará o pensamento de Santo
Agostinho acerca da liberdade, situando-o no pensamento filosófico geral acerca
desse conceito.
Este trabalho foi realizado mediante pesquisa bibliográfica.
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CAPÍTULO I

SANTO AGOSTINHO - VIDA E OBRA

Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste, na Numídia proconsular, no dia 13 de


novembro de 354. Seu pai chamava-se Patrício, era de origem romana, um
conselheiro municipal e modesto proprietário, que se aproximou da Igreja somente
muito mais tarde e recebeu o batismo pouco antes de morrer, em 371. Sua mãe,
Mônica, era cristã fervorosa. Teve um irmão chamado Navígio e uma irmã, cujo
nome são se sabe. Estando gravemente enfermo, Agostinho chegou a pedir o
batismo, mas o perigo passou logo, e apenas foi feita a inscrição como catecúmeno,
por sua mãe, conforme era costume da época. Tendo recebido educação cristã de
sua mãe, permaneceu sempre cristão em seu espírito, mesmo quando aos
dezenove anos abandonou a fé católica. (ALTANER; STUIBER, 1972, p. 412).
Africano, de raça e de nascimento, foi romano por língua, cultura e coração.
Conhecia a fundo a língua e a cultura latinas, porém, não lhe foi familiar o grego e
nem a língua púnica. Fez seus primeiros estudos em Tagaste, continuando-os em
Madaura. Graças à ajuda de seu concidadão Romaniano, transferiu-se para
Cartago, importante centro cultural, onde completou os estudos de Retórica. Nessa
cidade, aos dezessete anos de idade, para pôr freio ao ímpeto da puberdade, se
uniu a uma mulher em concubinato, mantido até 384, e do qual lhe nasceu, em 372,
o filho Adeodato, que viveu até 390 (BERARDINO, 1986. p. 410).
Sua evolução interior, que pode ser datada de 373 a 386, teve seu ponto de
partida quando estudante em Cartago, em 373, pôde ler o diálogo Hortensius, de
Cícero, hoje perdido. Esta obra que continha uma exortação à busca da sabedoria e
ao estudo da filosofia, inspirou-lhe um ardente amor pela sabedoria. Agostinho nas
suas Confissões — sua autobiografia —, o menciona:
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Esse livro mudou o alvo das minhas afeições (...). Imediatamente se tornaram vis, a meus
olhos, as vãs esperanças. Já ambicionava, com incrível ardor do coração, a Sabedoria
imortal. (...) me deleitava, naquela exortação, o fato de essas palavras me excitarem
fortemente a acenderem em mim o desejo de amar, buscar, conquistar, reter e abraçar, não
esta ou aquela seita, mas sim a própria sabedoria (1988, p. 60).

Agostinho lamenta, porém, a ausência naquela obra do nome de Cristo: “Uma


só coisa me magoava no meio de tão grande ardor: não encontrar aí o nome de
Cristo. Porque este nome (...) bebera-o com o leite materno o meu terno coração, e
dele conservava o mais alto apreço” (AGOSTINHO, 1988, p. 61). Por essa razão
quis dedicar-se ao estudo das Sagradas Escrituras, porém sem sucesso, pois não
conseguiu compreender seu sentido. A Escritura Sagrada lhe pareceu tosca pelo
estilo e pela linguagem, muito diferente do estilo ciceroniano: “sua simplicidade
repugnava ao meu orgulho e a luz da minha inteligência não lhe penetrava no
íntimo” (AGOSTINHO, 1988, p. 61).
Foi justamente nesta época que teve contado com a seita do maniqueus.
Considerando que lhe parecia uma religião fundada na razão, livre de toda
autoridade e, que afirmava possuir a verdadeira doutrina cristã, aderiu ao
maniqueísmo onde permaneceria durante nove anos, embora apenas como um
ouvinte e sem tornar-se nunca um membro plenamente qualificado. O que mais
impressionou Agostinho foi a rejeição e crítica que os maniqueístas faziam dos
dogmas católicos (BOEHNER, P. GILSON, E., 1982, p.143).
As razões principais dessa sua adesão foram três: o racionalismo, o qual eles
alardeavam, que excluía a fé; a aberta profissão de um cristianismo espiritual e puro
que não admitia o Antigo Testamento e, a solução radical do problema do mal que
os maniqueus ofereciam (ALTANER; STUIBER, 1972, p. 412).
A respeito dessa tendência racionalista BOEHNER e GILSON afirmam:

O espírito racionalista de Agostinho sentia-se mais à vontade entre os maniqueus do que


entre os cristãos, devido ao caráter acentuadamente materialista da metafísica dessa seita, e
à conseqüente afinidade com suas próprias concepções acerca de Deus e da alma. Segundo
a doutrina de Manes, Deus é luz, vale dizer: um ente corpóreo. As almas humanas são meras
partículas desta luz divina, desterradas para os corpos visíveis. Este materialismo foi a fonte
principal dos erros de Agostinho neste período de sua vida (1982, p.143).
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Terminados os estudos em 375, regressou a Tagaste como mestre de


gramática, mas sua mãe não quis receber em sua casa o filho que tinha apostatado
da fé. Após breve tempo, Agostinho mudou-se para Cartago, ali se dedicando ao
ensino da retórica de 375 a 383. Foi então que suas dúvidas acerca da verdade do
maniqueísmo se acentuaram. Sua decepção foi completa por ocasião de um debate
público com o célebre bispo maniqueu Fausto de Mileve, quando Agostinho
percebeu que a formação científica desse mestre era muito deficiente e que seu
próprio conhecimento era superior ao dele (ALTANER; STUIBER, 1972, p. 412).
Apesar da desilusão com o maniqueísmo, Agostinho ainda não decidira
romper com aquela seita:

Todo o esforço que determinantemente me impusera a fim de progredir nesta seita ruiu por
completo logo que conheci aquele homem [Fausto], mas não de tal forma que dos
maniqueístas me separasse radicalmente. Com efeito, não encontrando outro caminho
melhor que aquele por onde desesperadamente me lançara, resolvera contentar-me com ele,
até que brilhasse outra via de preferível escolha (AGOSTINHO, 1988, p. 104).

Agostinho, depois disso, decepcionado com seus alunos em Cartago — por


sua indisciplina e pouca dedicação ao estudo —, decide no ano de 383 estabelecer-
se em Roma (AGOSTINHO, 1988, p. 104). Ali continuou em contato com os
maniqueus, contra a vontade de sua mãe. Embora, não tenha sido um maniqueu
convencido, Agostinho certamente foi um anticatólico convencido. Quando pouco a
pouco se convenceu, graças ao estudo das artes liberais, e em especial a filosofia,
da inconsistência da religião de Manes, não pensou em voltar à Igreja católica nem
quis abraçar outra corrente filosófica (BERARDINO, 1986. p. 411): “recusava-me
terminantemente a confiar a cura da enfermidade da minha alma a esses filósofos
que desconheciam o nome salutar de Cristo” (AGOSTINHO, 1988, p. 114). No
entanto, caiu no ceticismo: “me veio à mente a idéia de que os filósofos chamados
acadêmicos [como eram chamados os céticos] haviam sido os mais prudentes, por
ter como princípio que se deve duvidar de todas coisas e que nenhuma verdade
pode ser compreendida pelo homem” (AGOSTINHO, 1988, p. 114).
Depois de alguns meses lecionando em Roma, uma nova decepção: os
alunos de Roma eram de fato mais dedicados, mas costumavam não pagar os
professores No início de 384, Agostinho obteve por recomendação do pagão
Símaco, prefeito de Roma, a cátedra oficial de mestre de retórica em Milão. Apesar
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de sua colocação e de estar novamente acompanhado de sua mãe e seus


familiares, Agostinho permanecia inquieto interiormente (AGOSTINHO, 1988, p.
111).
Foi em Milão que empreendeu o retorno à fé católica. Se o distanciamento
desta foi assinalado, no plano filosófico, por esses pontos fundamentais:
racionalismo, materialismo e ceticismo, no caminho de volta encontraria esses
mesmos erros e deveria, um após o outro, superá-los. A história desta superação é
a história da conversão de Agostinho.
Os problemas que o racionalismo de Agostinho colocavam eram a
representação antropomórfica de Deus — os maniqueus acusavam a Igreja de
tomar o livro do Gênesis à letra —, a inacessibilidade do Velho Testamento e, a
questão da precedência da fé (TRAPÉ, 1983, p.105). A figura de Ambrósio foi
fundamental no esclarecimento destas questões e no retorno ao catolicismo. Esse
não o auxiliou diretamente no plano espiritual da conversão com colóquios privados,
mas muito o ajudou – indiretamente – a esclarecer as dúvidas através das
pregações ao povo. Agostinho descobriu, na pregação de Ambrósio, que as
acusações maniqueístas de antropomorfismo por parte da Igreja eram falsas, ao
deparar-se com a explicação do Gênesis, em sentido espiritual, que o bispo de Milão
dava (CONTRERAS; PENA, 1994, p.369). Nessa problemática havia uma aparente
oposição entre letra e espírito, análoga à oposição entre matéria e espírito. Então
descobriu que para além do seu sentido literal a Escritura — principalmente o Antigo
Testamento —, comporta um sentido espiritual profundo: “Cheio de gozo ouvia
muitas vezes a Ambrósio dizer nos sermões ao povo, como que a recomendar
diligentemente, esta verdade: ‘A letra mata e o espírito vivifica’. Removido assim o
místico véu, desvendou-me espiritualmente passagens que, à letra, pareciam
ensinar o erro” (AGOSTINHO, 1988, p. 114).
Superadas as dificuldades maniquéias e tendo recebido de Ambrósio a chave
para interpretar o Antigo Testamento, compreendeu também que não é um absurdo
a precedência da fé. Havia desejado começar pela razão, e esta pretensão o fez
vítima da doutrina absurda do maniqueísmo, por isso agora não lhe parecia tão sem
razão partir da fé, afinal toda a vida social está baseada, em última análise na fé
(BOEHNER, P. GILSON, E., 1982, p.143):
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Preferindo a doutrina católica, já sentia, então, que era mais razoável e menos enganoso
sermos obrigados a crer o que não demonstrava, quer houvesse prova, mesmo que esta não
fosse para o alcance de qualquer pessoa, quer não houvesse. Seria isto mais sensato do que
zombarem da crença os maniqueístas, apoiados em temerária promessa de ciência, para
depois nos mandarem acreditar em inúmeras fábulas tão absurdas que não podiam prová-las
(AGOSTINHO, 1988, p. 121).

Agostinho continuou com a reflexão pessoal sobre a necessidade da fé para


alcançar a sabedoria chegando à convicção de que a autoridade na qual se apóia a
fé é a Escritura, avalizada e lida pela Igreja. Havia oposto Cristo à Igreja, e agora
descobria que a senda para ir a Cristo era de fato a Igreja (BERARDINO, 1986. p.
411).
Superado o racionalismo, o próximo obstáculo a ser superado seria o
materialismo que o maniqueísmo lhe inculcara. Este consistia na crença de um Deus
material, que penetrava com sua substância todo o universo. Porém, esta teoria
possuía uma grave lacuna: como explicar a presença do mal, num mundo
preenchido plenamente por um Deus bom? Com efeito, o próprio Agostinho
confessa a compreensão que então possuía de Deus e das criaturas:

Fiz da Vossa criação uma única e imensa massa, diferenciada em diversas espécies de
corpos: uns, corpos verdadeiros; outros, espíritos que eu imaginava sob a figura de corpos.
Eu a supus não com a sua própria grandeza, porque não a podia saber, mas com a que me
agradou, porém, limitada de todos os lados. A Vós, Senhor, infinito em todas as direções,
imaginei-Vos a rodeá-la e penetrá-la de todas as partes, como se fôsseis um único mar em
toda a parte e de todos os lados infinito na Vossa imensidade, tendo dentro de si uma
esponja da grandeza que nos aprouvesse, mas rodeada e inteiramente cheia de um mar
imenso. (...) Dizia: ‘Eis Deus e eis o que Deus criou! Deus é bom e, por conseguinte, criou
boas coisas. E eis como Ele as rodeia e as enche! Onde está, portanto o mal? Donde e por
onde conseguiu penetrar? Qual é a sua raiz e a sua semente? (AGOSTINHO, 1988, p. 145).

Essas dúvidas materialistas puderam ser resolvidas com a ajuda dos filósofos
platônicos. Agostinho não teve primeiramente um contato direto com a obra de
Platão, mas conheceu-o através do egípcio Plotino (205-270), filósofo da escola
neoplatônica de Alexandria. Leu a sua obra Enneades [Novenários], que consiste
numa sistematização do pensamento helênico antigo. Na leitura desses escritos
constatou que embora não encontrasse ali o cristianismo, havia muitos pontos de
contato. Impressionou-se, sobretudo, com sua metafísica do espírito (BOEHNER, P.
GILSON, E., 1982, p.146).

Deparastes-me, por meio de um certo homem (...) alguns livros platônicos, traduzidos do
grego em latim. Neles li, não com estas mesmas palavras, mas provado com muitos e
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numerosos argumentos, que ‘ao princípio era o Verbo e o Verbo existia em Deus. Todas as
coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi criado. O que foi feito, n’Ele é vida e a vida era
a luz dos homens; a luz brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam. A alma do
homem, ainda que dê testemunho da Luz, não é, porém, a Luz; mas o verbo — Deus — é a
luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Estava neste mundo que foi
feito por Ele, e o mundo não o conheceu. (...) Do mesmo modo, li nesse lugar que o Verbo
Deus não nasceu da carne, nem do sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus
(AGOSTINHO, 1988, p.151).

Com o platonismo, Agostinho teve a revelação do mundo espiritual que ele


não conhecia:

Em seguida, aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração, conduzido por Vós.
(...) Entrei e, com aquela vista da minha alma, vi, acima dos meus olhos interiores e acima do
meu espírito, a Luz imutável. Esta não era o brilho vulgar que é visível a todo o homem, nem
era do mesmo gênero, embora fosse maior. Era como se brilhasse muito mais clara e
abrangesse tudo com a sua grandeza. Não era nada disto, mas outra coisa muito diferente de
todas estas. (...) Quem conhece a Verdade, conhece a Luz Imutável, e quem a conhece,
conhece a Eternidade (AGOSTINHO, 1988, p.151).

Portanto, Agostinho deve aos platônicos: a noção de uma luz incorporal,


invisível, e puramente espiritual — Deus —; a compreensão da diferença radical
entre o único ser absoluto e existente e os seres relativos — mutáveis e apenas
partícipes da existência; a persuasão de que todas as coisas são boas — ainda que
não de forma absoluta —; e finalmente, que o mal não é substância, mas sim
carência de substância e de bem e, por isso, não vem de Deus: ”pareceu-me
evidente que criastes boas todas as coisas (Gn 1,31) e que certissimamente não
existe nenhuma substância que Vós não criásseis” (AGOSTINHO, 1988, p. 155).
Da mesma forma que ficava superado o materialismo, igualmente com os
platônicos fora vencido o ceticismo no qual Agostinho caíra após a decepção com
os maniqueus. Ele compreendeu que aquela Luz imutável que pôde intuir era a
Verdade Absoluta: “Quem conhece a Verdade, conhece a Luz imutável (...) Ó eterna
Verdade, verdadeira Caridade e cara Eternidade! Vós sois o meu Deus! (...) E ouvi
como se ouve no coração, sem ter motivo algum para duvidar” (AGOSTINHO, 1988,
p. 154).
Restava-lhe ainda o problema teológico da mediação e da graça. Percebia a
grandeza de Deus e ao mesmo tempo a própria miséria:

Depois de ler aqueles livros dos platônicos e de ser induzido por eles a buscar a verdade
incorpórea, vi que ‘as Vossas perfeições invisíveis se percebem por meio das coisas criadas’
[Rm 1, 20]. Sendo repelido (no meu espírito), senti o que, pelas trevas da minha lama, não
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me era permitido contemplar: experimentei a certeza de que existíeis e éreis infinito, sem
contudo Vos estenderdes pelos espaços finitos e infinitos (...) Sabia que todas as coisas
provêm de Vós, pelo motivo único e seguríssimo de existirem. Sim, tinha a certeza disso.
Porém, era demasiado fraco para gozar de Vós! (AGOSTINHO, 1988, p. 162).

Foi nas Sagradas Escrituras — que agora conseguia compreender —,


principalmente com São Paulo, é que aprendeu que Cristo é não somente Mestre,
mas Redentor:

Lancei-me avidamente sobre o venerável estilo (da Sagrada Escritura) ditada pelo vosso
Espírito, preferindo, entre outros autores, o Apóstolo S. Paulo. Desvaneceram-se-me aquelas
objeções segundo as quais algumas vezes me pareceu haver contradição na Bíblia e
incongruência entre o texto dos seus discursos e os testemunhos da Lei e dos Profetas. (...)
Que fará o infeliz homem? ‘Quem o livrará deste corpo de morte, senão a Vossa graça por
Jesus Cristo nosso Senhor’ [Rm 7,24], que Vós gerastes coeterno e criastes no princípio de
Vossos caminhos, ao qual o príncipe deste mundo, apesar de o não encontrar em nada
merecedor de morte, o matou? ‘Foi assim anulado o libelo que nos era contrário’ [Cl 2,14]
(AGOSTINHO, 1988, p. 163).

Superada essa última questão, o itinerário de sua volta à fé católica chegava


ao seu fim. Na sua conversão Agostinho tinha então trinta e um anos completos, e
era o mês de setembro de 386. Recebeu o impulso definitivo ao escutar seu
compatriota Ponticiano relatar a conversão de dois soldados, através da simples
leitura da vida de Santo Antão. Agostinho sentiu-se profundamente tocado com
aquele exemplo, e ao final daquele colóquio, deu-se o momento fundamental da sua
conversão no jardim da residência que vivia em Milão:

Finda a conversa e alcançando o fim a que viera partiu [Ponticiano]. E eu voltei a mim. O que
não proferi contra mim mesmo? Com que açoites de palavras não flagelei a alma, para que
seguisse o impulso que eu fazia para ir atrás de Vós? (...) A alma tinha medo como da morte,
de ser desviada da corrente do vício em que ia apodrecendo mortalmente (...).Quando, por
uma análise profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria e a reuni perante a vista
do meu coração, levantou-se enorme tempestade que arrastou consigo uma chuva torrencial
de lágrimas (...) Agarrei-o [o livro das Epístolas dos Apóstolos], abri-o e li em silêncio o
primeiro capítulo que pus os olhos: ‘Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em
desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus
Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites’ [Rm 13,13]. Não quis ler
mais, nem era necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma
espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram (AGOSTINHO, 1988, p.179;
186,187).

O momento da conversão de Agostinho tem sido motivo de grande discussão,


principalmente sobre a influência que nela exerceu a leitura dos platônicos. Para se
compreender esta questão é necessário fazer uma distinção entre o motivo da fé e o
conteúdo da mesma: Agostinho rendeu-se ao motivo da fé antes da leitura dos
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platônicos, mas, percebeu o conteúdo de forma clara, em parte, somente depois.


Apesar de que muitas questões não lhe eram ainda claras, ele aderia, como sempre
havia feito, à autoridade de Cristo, e agora de novo à autoridade da Igreja
(BERARDINO, 1986. p. 411): “Estava, contudo, arraigada no meu coração a fé em
Jesus Cristo, Vosso Filho, Senhor Salvador Nosso, professada pela Igreja Católica.
Se bem que me achava ainda informe e flutuando para além da norma da doutrina,
contudo o meu espírito não abandonava a fé, antes cada vez mais se abraçava a
ela”. (AGOSTINHO, 1988, p. 146).
Após a conversão surgia outro problema: a escolha do modo de viver o ideal
cristão da sabedoria. Se devia renunciar ou não, em seu favor, a toda a esperança
terrena, e, portanto, também à carreira e ao matrimônio. Decide renunciar à carreira,
apesar do brilhante porvir que se anunciava, pois não tardaria a alcançar a
presidência de um tribunal ou de uma província. Isso não lhe custava tanto. Porém,
muito lhe custava renunciar ao matrimônio. Havia amado e sido sempre fiel à mulher
com a qual se unira na juventude. Depois de grandes vacilações e dramáticos
combates interiores, não sem uma poderosa ajuda da graça, decidiu seguir o
conselho do Apóstolo e obedecer as suas mais profundas aspirações: “De tal forma
me convertestes a Vós que eu já não procurava esposa, nem esperança alguma do
século, mas permanecia firme naquela regra de fé em que tantos anos antes me
havia mostrado a minha mãe” (AGOSTINHO, 1988, p. 188).
Tomada a decisão de renunciar ao ensino e ao matrimônio, se retirou, em fins
de outubro, a Cassiciaco (atual Cassago, em Brianza) para preparar-se para o
batismo; voltou a Milão nos primeiros dias de março, inscreveu-se entre os
catecúmenos, seguiu a catequese de Santo Ambrósio e foi por ele batizado, com
Alípio, seu amigo, e seu filho Adeodato, na noite do dia 24 de abril, Vigília Pascal.
Recebido a batismo, a pequena comunidade resolveu voltar à África para pôr em
prática o propósito de viver juntos a serviço de Deus. Antes de finalizar agosto
deixou Milão e chegou a Óstia, onde sua mãe Mônica adoeceu de repente e morreu.
Agostinho decidiu então voltar a Roma, onde permaneceu até de agosto de 388,
interessando-se pela vida monástica, e ocupado na composição de seus escritos.
Depois foi para a África e se retirou a Tagaste, onde pôs em prática com seus
amigos seu programa de vida ascética.
20

Em 391 viajou a Hipona para buscar um lugar onde abrir um mosteiro e viver
com seus irmãos, e ali o surpreendeu a ordenação sacerdotal, que aceitou relutante.
Ordenado sacerdote, obteve autorização do bispo para fundar um mosteiro, segundo
seu plano, onde começou a viver segundo a maneira e regra estabelecida nos
tempos dos santos apóstolos, intensificando os exercícios ascéticos, aprofundando-
se no estudo da teologia e iniciando o ministério da pregação. Foi consagrado bispo
em 395 ou 396, servindo primeiro como coadjutor de Hipona e logo, desde agosto
de 397, como titular da sede. Deixou então o mosteiro de leigos, onde havia vivido à
frente da comunidade, e para melhor poder oferecer hospitalidade a todos, se
instalou na casa episcopal, que transformou em mosteiro de clérigos (BERARDINO,
1986. p. 415).
A atividade episcopal de Agostinho foi prodigiosa tanto no governo ordinário
de sua diocese como em seu trabalho extraordinário a serviço da Igreja da África e
da Igreja universal. Suas atividades ordinárias compreendiam: o ministério da
palavra, pregando sem interrupção duas vezes na semana, sábado e domingo,
muitas vezes por dias seguidos, e ainda em certas ocasiões, duas vezes por dia; a
audiência do bispo, na qual atendia e julgava as causas, e lhe ocupava, às vezes,
toda a jornada; o cuidado dos pobres e órfãos; a formação do clero, com o qual se
mostrou, ao mesmo tempo, paternal e severo; a organização de mosteiros
masculinos e femininos, a visita aos enfermos, a intervenção em favor dos fiéis ante
a autoridade civil, ocupação não do seu gosto, mas da qual não se esquivava
quando o cria oportuno; a administração dos bens eclesiásticos, da qual havia
prescindido se tivesse encontrado um secular que dela se encarregasse
(BERARDINO, 1986. p. 415).
Ainda mais intenso foi seu labor extraordinário: as numerosas e longas
viagens para presenciar os freqüentes concílios africanos ou para atender as
petições de seus colegas; o ditado das cartas em resposta a quantos a ele recorriam
das regiões e classes mais diversas; a ilustração e defesa da fé. Essa última
exigência o levou a intervir sem pausa contra maniqueus, donatistas, pelagianos,
arianos e pagãos. Foi a alma da conferência de 411 entre bispos católicos e
donatistas e o artífice principal da solução do cisma donatista e da controvérsia
pelagiana. Ao morrer, em 28 de agosto de 430, durante o terceiro mês do assédio de
Hipona pelos vândalos, deixou sem terminar três importantes obra; entre elas a
21

segunda resposta a Juliano, o arquiteto do pelagianismo. Seu último escrito foi uma
carta ditada talvez em seu leito de morte, sobre os deveres dos sacerdotes durante
a invasão dos bárbaros. Foi sepultado na Basílica Pacis, a Catedral. Seus restos,
em data incerta, foram levados a Sardenha, e dali, desde 725, passaram à basílica
de São Pedro em Céu d’Ouro, de Pavia, onde hoje repousam (BERARDINO, 1986.
p. 415).
Agostinho é uma personalidade complexa e profunda: é filósofo, teólogo,
místico, poeta, orador, polemista, escritor e pastor, dons que se completam entre si
e fazem dele uma pessoa incomparável. No âmbito do cristianismo deu vida à
primeira grande tese de filosofia, que continua sendo um momento essencial da
história do Ocidente. Partindo da evidência do conhecimento de si, aborda os temas
do ser, da verdade e do amor, e ilumina a compreensão dos problemas da busca de
Deus e da natureza do homem, da eternidade e do tempo, da liberdade e do mal, da
Providência e da história, da felicidade, da justiça e da paz.
Foi um polemista formidável. Convencido da verdade e da originalidade da
doutrina católica, defendendo-a contra todos – pagãos, judeus, cismáticos e hereges
– com as armas da dialética e com os recursos da fé e da razão. Mas teve, porém,
respeito pelo adversário, estudando seus escritos, citando os textos que refutava,
reconhecendo seus méritos e dissimulando e perdoando suas ofensas. De sua
atormentada experiência do erro aprendeu a ser paciente e bom para com os que
erram (BERARDINO, 1986. p. 420).
A obra literária de Santo Agostinho é vasta. Na sua obra Retratactiones
concluída em 427, — que é uma auto-avaliação de toda a sua obra e uma retificação
de algumas de suas teses —, ele próprio faz um balanço dos seus escritos até
então:

São noventa e três obras reunidas em duzentos e trinta e dois livros que me parece ter
ditado, quando deles fiz a revisão. Eu não sei se ditarei ainda outros. Quanto a esta revisão
de minhas obras, eu a publiquei em dois livros a pedido de meus irmãos, antes de
empreender a revisão de minhas cartas e de meus sermões ao povo, sermões os quais eu
ditei uns e pronunciei outros (AGOSTINHO, 1950, p. 559).

Há ainda algumas obras escritas após as Retratactiones, e outras escritas


anteriormente, mas não mencionadas ali. Sua obra se divide, segundo o gênero
literário, em livros, cartas e tratados. Os livros se classificam em autobiográficos,
22

filosóficos, apologéticos, dogmáticos, morais e pastorais, monásticos, exegéticos e


polêmicos, e os tratados se compõem de comentários das Sagradas Escrituras e
sermões. É admirável o número de cartas, cerca de 280, e de sermões, mais de
500, que se conservaram (BERARDINO, 1986. p. 421, 470, 475).
Agostinho, embora possuísse uma grandeza no estilo, em suas obras evitou,
de propósito, as formas clássicas da arte, em consideração ao povo simples. Do
conjunto de sua obra, duas se destacam pela vitalidade que perpassa os séculos e,
por seu significado: as Confissões e a Cidade de Deus.

Sua obra de maior interesse literário ao longo da história são as Confissões


— um diálogo contínuo com Deus, em que Santo Agostinho narra a sua vida e a
evolução interior que acompanha seu processo de conversão. Esta autobiografia
espiritual, escrita entre o ano de 397 e 401, é famosa pela sua introspecção
psicológica e pela profundidade e agudeza das suas especulações. Dessa obra,
ALTANER e STUIBER afirmam que:

É em seu conjunto uma das maiores obras–primas da literatura universal; revela a


preeminente mestria de Agostinho ao descrever movimentos e estados da alma. O fato de se
ter sentido impelido a publicar, com tão impiedosa franqueza, as humilhantes acusações de si
mesmo, relaciona-se, evidentemente, com a formulação pouco antes elaborada de sua
doutrina sobre a graça divina e a predestinação, que o abalara no mais íntimo de seu ser
(1972, p. 417).

Na obra A Cidade de Deus, composta de 22 livros publicados entre 413 e 426,


Agostinho faz uma interpretação cristã da história. Divide-se essa obra em duas
partes: na primeira caracterizada por seu caráter apologético, ele faz uma refutação
do paganismo, e na segunda, dá uma visão teológica da história e da sociedade.
Sua postura nessa obra é a de um filósofo da história universal em busca de um
sentido unitário e profundo da história. A sua atitude é, sobretudo moral: há dois
tipos de homens, os que se amam a si mesmos até ao desprezo de Deus (estes são
a cidade terrena) e os que amam a Deus até ao desprezo de si mesmos (estes são
a cidade de Deus).
Santo Agostinho insiste na impossibilidade de o Estado chegar a uma
autêntica justiça se não se reger pelos princípios morais do cristianismo ( AZZI,
1964a. p. 33). No decurso da história terrena, as duas Cidades não se distinguem
23

de forma clara — a Cidade de Deus não deve ser identificada com a Igreja —, isso
ocorrerá somente no fim dos tempos (ALTANER; STUIBER, 1972, p. 423).
Como afirma GILSON (1998, p.157), a obra filosófica de Santo Agostinho, por
sua amplitude e profundidade, ultrapassa em muito todas as expressões anteriores
do pensamento cristão, e sua influência perduraria ao longo dos séculos, e ainda
hoje ela se faz notar. Essa influência se deixou sentir não somente na filosofia,
dogmática, teologia moral e mística, mas também na vida social e caritativa, na
política eclesiástica, no direito civil e na formação da cultura medieval.
Agostinho, porém, apesar de toda sua fecundidade literária, jamais
negligenciou sua vocação de Pastor: “Diante da produtividade literária e teológica de
agostinho, importa não esquecer o que foi para sua comunidade e os muitos com os
quais teve de tratar, esse cristão cheio de bondade e zeloso pastor” (ALTANER;
STUIBER, 1972, p. 415).

CAPÍTULO II
24

O CONCEITO DE LIBERDADE HUMANA

1 O CONCEITO EM SENTIDO GERAL

Quando se fala de liberdade, conforme o uso comum, vem à mente a idéia de


poder fazer o que se quer e quando se quer, ou ainda, de poder ir aonde se deseja.
Uma análise mais profunda, porém, revela o quanto o conceito de liberdade é
complexo.
A termo livre deriva do vocábulo latino líber. Essa palavra era aplicada na sua
origem à pessoa na qual a capacidade de procriação se encontrava naturalmente
ativa, e assim, era chamado líber o jovem quando, atingida a maturidade sexual, se
incorporava à comunidade como homem capaz de assumir responsabilidades.
Nesse sentido dizer que o homem era livre correspondia a dizer que ele era de
condição não servil.
Daí provêm vários significados ulteriores: se é livre quando se está disponível
para fazer algo por si mesmo. A liberdade é então a possibilidade de decidir-se, de
autodeterminar-se. Porém, como o sentido de livre comporta o sentido de não ser
escravo, a libertação a que se refere esse ser livre pode referir-se a muitas coisas. A
liberdade no sentido apontado supõe a idéia de uma responsabilidade diante de si
mesmo e diante da comunidade: ser livre nesse caso significa estar disponível para
cumprir com certos deveres. Em subseqüentes concepções da liberdade se
introduziram outras características que não se encontram nesse significado primeiro,
porém, a presença de um sentido negativo e do sentido positivo em um mesmo
conceito permaneu sempre (MORA, 1974, p. 1968).
O conceito de liberdade é analógico, ou seja, possui aplicações diferentes a
contextos diferentes, quer seja na literatura filosófica ou, na não-filosófica: como
possibilidade de autodeterminação; como possibilidade de escolha; como ato
voluntário; como espontaneidade; como margem de indeterminação; como ausência
de interferência; como libertação diante de algo; como libertação para algo; como
realização de uma necessidade.
25

Foi compreendido de diversos modos, segundo o campo em que se situa ou,


o seu alcance. Assim fala-se de liberdade física, que consiste na ausência de
constrangimento físico; liberdade moral, que é a ausência da pressão de forças
relativas à ordem moral, como prêmios, punições, leis e ameaças; liberdade
psicológica, ou seja, a isenção de impulsos de outras faculdades humanas sobre a
vontade para fazê-la agir de um determinado modo; liberdade política, que é a
isenção de determinismos políticos e, finalmente, liberdade social, como ausência de
determinismos sociais (MONDIN, 1980, p. 108).
Portanto, falar de liberdade num só plano não é fácil. Como afirma
VERNEAUX (1969, 172) o “termo [livre-arbítrio, que quer dizer liberdade de
escolher], é muito claro e preciso, enquanto que o termo liberdade é terrivelmente
confuso e equívoco”. Ao longo da história encontram-se inúmeras tentativas de
solução para o problema da liberdade, abordado em planos diversos.

2 NOÇÃO DO PROBLEMA DA LIBERDADE NA HISTÓRIA

No pensamento grego a liberdade é concebida não como liberdade da pessoa


que decide a respeito de si mesma, nem como liberdade de vontade, mas como
liberdade do Estado dos cidadãos e como liberdade do cidadão do Estado. No caso
da cidade e do Estado a liberdade consiste na autonomia: no fato de que uma
comunidade estatal pode regular sua vida comum de acordo com as próprias leis
que tendem ao seu bem comum. O indivíduo, por seu lado, na comunidade,
somente é positivamente livre em relação com essa comunidade: se ele se realiza
na comunidade e esta se realiza nele. Somente está livre do Estado aquele que foi
exilado. A liberdade do indivíduo está em completa sintonia com a integração no
conjunto da comunidade. O grego deixa de ser livre em uma tirania pois nessa há
um rompimento entre os cidadãos e o Estado, e este rompimento é o final da
liberdade (MÜLLER, 1975, p. 303).
Os gregos, portanto, não consideraram adequadamente a liberdade humana
em sentido psicológico, ou interior, e não apenas pelo fator político tão impregnado
na alma grega, mas também em conseqüência da concepção que tinham do cosmo,
da natureza e da história: do cosmo — porque acreditavam que ele era governado
pelos deuses que determinavam consciente ou inconscientemente as ações
26

humanas, de modo que os homens não são responsáveis por suas ações —; da
natureza — porque para eles o homem está sujeito às leis que a governam, de
modo que não pode se comportar de forma diferente —; e da história — porque viam
o homem como um simples escravo da engrenagem histórica, concebida como um
movimento cíclico, no qual tudo se repete regularmente (MONDIN, 1980, p. 108).
No pensamento cristão o problema da liberdade tomou uma nova forma: o
destino é substituído por Deus, que colocou a natureza e a história não acima do
homem, mas ao seu serviço. Para os cristãos em geral, o conceito de liberdade
como simples liberdade diante de coação é insuficiente, assim como é insuficiente
considerado como liberdade de escolha, ou livre arbítrio. Afinal, o livre arbítrio pode
ser bem usado ou mal usado. Mas, mesmo dentro do pensamento cristão a questão
foi abordada de distintos modos.
Ao longo da época patrística e do período medieval o ponto de vista da
liberdade é teocêntrico. O ser livre do homem está estreitamente ligado ao desígnio
de Deus. Colocou-se o problema da liberdade, por exemplo, dentro da questão da
conciliação entre a liberdade humana e a presciência divina, e da relação liberdade
e pecado. Os escolásticos trataram das questões acerca da liberdade, livre arbítrio,
vontade e graça. Segundo Santo Tomás, não há liberdade sem escolha, mas a
liberdade não consiste unicamente em escolher-se completa e absolutamente a si
mesmo e sim em escolher algo transcendente (MORA, 1982, p. 238).
Na época moderna o eixo da questão se desloca para uma perspectiva
antropocêntrica. O homem, agora autônomo, não encontra problemas com sua
liberdade em relação a Deus, mas somente na relação com suas faculdades —
sobretudo as paixões —, e nas relações com os outros indivíduos, com a sociedade
e com o Estado (MONDIN, 1980, p. 108).
Duas tentativas significativas de resolver o problema da liberdade, sobretudo
a partir do século XVI, as quais perduram até o presente, são o determinismo e o
indeterminismo. A questão de que se ocupam é saber se o homem é livre quando se
declara que há determinismo na natureza. É o problema de liberdade contra
necessidade ou, necessidade contra liberdade. Este problema suscitou debates
entre os chamados libertários ou indeterministas, no sentido de defensores da
realidade da liberdade e, os chamados necessitários, no sentido de defensores
27

da realidade e universalidade da necessidade, ou deterministas (MORA, 1982, p.


238).
O ponto de partida do determinismo é a certeza de que tudo no mundo tem
uma causa, e o próprio homem, como todos os entes, está totalmente determinado
em cada momento de seu ser, e portanto não é livre.
Dentre as formas de determinismo estão: o determinismo mitológico — grego,
mas presente também na Idade Média —, que nega a liberdade humana a partir da
crença do poder dos astros, dos demônios e outros mitos sobre vida do homem, de
modo que esse não é dono das suas ações; o determinismo teológico, que nega a
liberdade humana a partir da onipotência de Deus — posição da teologia
muçulmana e de algumas correntes protestantes; determinismo fisiológico —
postulado por cientistas modernos —, que vê nos movimentos da vontade, simples
reações a determinadas combinações químicas entre as células do corpo humano;
determinismo sociológico (postulado por Marcuse e os estruturalistas), segundo o
qual o agir humano é determinado pela pressão da sociedade e das estruturas
sociais; o determinismo psicológico, que afirma que a ação da vontade seria
determinada pelo intelecto e seus conhecimentos (Leibnitz, Sócrates e Platão);
determinismo metafísico, para o qual a vontade humana nada mais é do que um
momento e um modo da vontade Suprema e da Substância divina (Spinoza e
Shopenhauer); e finalmente, o determinismo político (Maquiavel e Hobbes), que é a
submissão da vontade dos cidadãos à do Soberano ou da classe governante
(MONDIM,1980, p.111).
Por outro lado, o indeterminismo afirma que em meio a todo condicionamento
que possa existir, a liberdade ainda pode existir.
Tanto o determinismo quanto o indeterminismo utilizam o conceito de
autocausalidade. Porém, enquanto o determinismo nega a possibilidade de uma
causa de si mesma, o indeterminismo a afirma (ABBAGNANO, 1982, p. 580).
Kant traz para esta questão uma posição de equilíbrio. Para ele não se
tratava de ver se a necessidade sufoca a liberdade, ou se essa podia subsistir frente
à necessidade, mas trata-se de saber como eram possíveis a liberdade e a
necessidade. Segundo ele a questão da liberdade não pode ser decidida dentro de
uma só e determinada esfera, e afirma que no reino dos fenômenos, que é o reino
da Natureza, há um completo determinismo, não sendo possível a liberdade nesse
28

âmbito. Por outro lado, a liberdade se encontra no âmbito moral. A liberdade,


portanto, não é e nem pode ser, uma questão física: é somente uma questão moral.
E nesse campo não somente há liberdade, como não pode não havê-la. A liberdade
é, com efeito, um postulado da moralidade. O conflito entre a liberdade e o
determinismo, é um conflito apenas aparente. Isto não significa que a realidade fique
dividida inteiramente em dois reinos que não têm nenhum contato. Significa apenas
que o homem não é livre porque pode estar livre do princípio da causalidade, é livre
porque não é inteiramente uma realidade natural. Logo, pode ser causa de si
mesmo, em sentido moral, e em todo caso, introduzir dentro do mundo possíveis
começos de novas causas. Assim a liberdade aparece como um começo, o que é
somente possível na existência moral, pois na Natureza não há tais começos, mas
tudo nela é continuação. Em seu caráter empírico o indivíduo deve submeter-se às
leis da Natureza. Em seu caráter inteligível, o mesmo indivíduo pode considerar-se
como livre. Desse modo a liberdade não somente fica justificada, mas se acentua
seu caráter positivo (MORA, 1974, p. 1968).
No período contemporâneo, o existencialismo coloca a liberdade sem nenhum
ponto de referência que não seja o próprio homem. No homem, a existência que se
identifica com sua liberdade, precede a essência, e por isso, desde seu nascimento
o homem é abandonado ao mundo sem referência a valores, ele próprio deve criar
seus valores, por sua própria liberdade e responsabilidade (JAPIASSU,
MARCONDES, 1990, p.92).
Em meio a tantos pontos de vista distintos, é possível, porém, estabelecer
uma síntese do conceito de liberdade — enquanto prerrogativa fundamental e
própria do ser humano.

3 SENTIDO FUNDAMENTAL DA LIBERDADE HUMANA

Em todas as suas formas, permanece no termo liberdade a dupla dimensão:


negativa e positiva. Isso quer dizer que a liberdade supõe, ao mesmo tempo, um
estar livre de algo, e um estar livre para algo.
Nesse sentido negativo de liberdade — estar livre de —, não é possível
atribuir uma plena liberdade a nenhum ser criado. Isso porque a liberdade de
qualquer criatura inserida no mundo será sempre relativa, isto é, se um ser está livre
29

de algo em determinado nível, em outro nível ele vai estar submetido a algo.
Tomemos o exemplo da pedra: se por um lado ela está livre do âmbito da cultura,
por outro ela permanece ligada ao âmbito da natureza, através da lei da gravidade
por exemplo. O mesmo acontece ao ser humano.
Se um ser estivesse livre de qualquer relação de dependência, esse ser não
poderia existir, seria um nada. E assim, a liberdade em sentido absoluto seria
impossível a qualquer ser da natureza. Estar livre de qualquer dependência supõe
uma total autonomia, total autodeterminação e uma autopossessão — possuir-se a
si mesmo sem ser possuído por outro —, e somente a um ser isso é possível: Deus
(MÜLLER, 1975, p. 292).
No pensamento cristão a noção de pessoa supõe essa plena posse de si
mesmo, e por isso, em sentido estrito só a Deus se aplica esse conceito, e só Deus
é absolutamente livre. Ao homem, porém, apesar de sua finitude, também se aplica
o conceito de pessoa, mas apenas enquanto participante desse atributo divino,
sendo imagem desse Deus.
A liberdade humana se encontra entre aquela liberdade negativa e relativa,
pertencente a todos os seres criados, e a liberdade positiva e absoluta, que
pertenceria apenas a Deus. Ao mesmo tempo em que o homem possui um certo
domínio sobre si mesmo e sobre o mundo, ele depende desse mundo em inúmeros
aspectos.
O homem, em relação aos outros seres, é capaz de uma liberdade que pode
ser chamada de transcendental, pela qual ele é capaz de ir além, acima dos outros
seres. Em que consiste essa liberdade transcendental? Na capacidade que o
homem tem de se distanciar das coisas e de si mesmo, através da reflexão,
compreendendo-se a si mesmo como diferente dos outros seres, e os outros seres
como distintos de si. Embora esse distanciamento, ou essa transcendência seja
apenas formal, pois materialmente o homem continua vinculado a esse mundo, esse
vínculo adquire um sentido distinto (MÜLLER, 1975, p. 294).
Por meio dessa liberdade de transcendência o homem se distingue dos outros
seres, como um ser que não apenas existe e se desenvolve, mas que também é
capaz de, por meio da reflexão e consciência, decidir acerca de si mesmo,
conquistar seu ser.
30

Nessa decisão acerca de si mesmo, o homem sai daquela distância da


liberdade transcendental — reflexão —, e se insere no concreto do mundo, numa
outra liberdade: a liberdade de decidir ou livre-arbítrio (MÜLLER, 1975, p. 294).
Essa decisão acontece na realidade do agir do homem. O homem age de
determinado modo, quando poderia agir de muitos outros. Sendo esse ato praticado
pelo homem de uma forma indiferente, isto é, que não é condicionada por uma
causa determinante, nem explicado simplesmente em si mesmo — agir por agir —,
esse estado é chamado de liberdade de indiferença .
Acontece, porém, que há controvérsias acerca da possibilidade ou não dessa
liberdade de indiferença. VERNAUX afirma que existe uma certa indiferença na
vontade livre, mas a liberdade não pode ser definida apenas por liberdade de
indiferença (1969, p.182).
Essa discussão se polarizou nas duas posições mencionadas acima: o
determinismo e o indeterminismo.
Por um lado o determinismo afirma que essa indiferença não existe, e que o
agir humano está sempre determinado por um motivo suficiente que o impele.
Por outro lado, o indeterminismo diz que o homem é livre para agir, e que ele
não está determinado por causas quaisquer. Em meio a qualquer influência que é
exercida sobre o homem, existe um princípio que o conserva livre. Esse princípio
primeiro é chamado de liberdade de espontaneidade. No mundo, porém, todas as
coisas estão vinculadas na relação causa e efeito, nada, portanto, é nesse mundo
causa primeira, e por isso, para que o homem seja compreendido como livre em
princípio, é necessário considerá-lo como acima desse mundo — supramundano —,
ainda que por outro lado permaneça atado a esse mundo (MÜLLER, 1975, p. 295).
Essa liberdade de espontaneidade não consegue explicar o fato da escolha,
isto é, a decisão de agir de determinado modo, mas apenas revela que o homem é
ao mesmo tempo, mundano e supramundano.
A liberdade de ação e de escolha pela qual a liberdade, enquanto indiferença,
se concretiza num ato praticado, não poderia ser considerada liberdade se fosse
impelida de forma arbitrária — quem agisse assim seria escravo da casualidade e do
capricho, ou da insegurança. De que serviria nesse caso a liberdade transcendental,
pela qual o homem é capaz da reflexão? Portanto, para que seja possível a
liberdade é preciso introduzir um novo conceito: o sentido.
31

Determinada coisa é escolhida dentre outras pelo valor que ela contém. Mas
aqui surge outro problema: se o homem opta por algo motivado por um valor, de
alguma forma foi o valor que determinou por atração o seu agir, e o determinismo
teria razão ao dizer que não é possível a vontade livre humana. Temos que admitir
que de fato não existe uma escolha sem um fundamento, mas não significa que por
isso a escolha não seja livre. Como isto é possível? Através de uma escolha livre
anterior — uma opção fundamental. Essa escolha consiste naquilo que o homem
decide ser, o projeto da sua própria forma essencial. Isso supõe também uma
escolha do tipo de mundo que ele acredita, pois é nesse mundo que ele se situa
(MÜLLER, 1975, p. 296).
Algo somente pode ser um motivo para o homem a partir dessa decisão
fundamental que ele fez. Em outras palavras se, por exemplo, ele decide chegar à
santidade, todas as suas decisões terão que seguir essa sua motivação primeira,
visando a sua realização enquanto pessoa, que de forma livre decidiu ser.
Essa forma fundamental é o papel que lhe cabe desempenhar no mundo. E,
ao mesmo tempo em que afirma seu papel no mundo (ser santo),
conseqüentemente afirma o próprio papel desse mundo, dentro do qual o seu papel
terá significado (mundo que deve ser local de santidade, seguindo o exemplo dado).
Assim, a decisão acerca do seu próprio ser e do sentido da sua existência, supõe
uma decisão a respeito da sua forma de viver e a respeito do mundo no qual está
inserido.
Portanto, a liberdade de agir será determinada por seus próprios motivos, e
esses motivos são determinados por uma escolha fundamental da liberdade de
decisão. É nessa liberdade de decisão que se encontra a liberdade humana pessoal,
e é através dela que se pode dizer que o homem é superior ao mundo. A liberdade,
em sentido concreto, é a união de todas essas liberdades (MÜLLER, 1975, p. 297).
Para uma elucidação do que foi estabelecido, aplicar-se-á essa compreensão
de liberdade num exemplo concreto: o caso fictício de um menino-lobo, como os
muitos que se sabe haver existido na Índia. Crescido numa família de lobos, sem
qualquer contato com a civilização ele desenvolveu os hábitos de um animal,
assimilando todo o comportamento de um lobo.
Até que ponto esse menino pode ser considerado livre no sentido aqui
exposto? Num primeiro momento essa criança parecerá livre, porque em seu estado
32

natural experimenta a liberdade própria dos animais. Essa liberdade, porém, situa-se
apenas no plano negativo e relativo que foi abordado: está livre do âmbito da cultura
e da sociedade humana, mas está submetido às normas naturais daquele grupo de
animais. É evidente que um homem civilizado também está submetido às leis da
natureza, mas ele possui aquela liberdade que vai além da liberdade relativa, que é
a liberdade transcendental.
Quando essa criança poderia atingir esse nível de liberdade que aos animais
seria impossível? No momento em que tomar consciência da sua natureza. Quando
se der conta de que os lobos são distintos dele, e que são incapazes dessa reflexão
que ele está fazendo. Nessa capacidade de reflexão encontra-se a liberdade
transcendental.
A partir dessa reflexão, esse menino será capaz de uma decisão acerca de si
mesmo, e acerca do mundo, coisa que os lobos por não serem capazes da distância
transcendental jamais poderiam fazer. Aqui sua liberdade de decisão.
Sendo capaz de decidir-se acerca de si mesmo e do mundo, esse menino
pode elaborar um plano fundamental de vida e ao mesmo tempo isso suporá uma
compreensão de mundo. Poderá, por exemplo, se conhecer a fé cristã, optar por
aquele projeto de santidade.
A partir daí, essa pessoa será capaz de praticar atos determinados por meio
dessa liberdade de ação, motivados por um valor que corresponde à realização do
seu plano de vida e da sua concepção de mundo que, na sua prévia opção
fundamental, escolheu. Ele será livre na medida em que suas opções forem
coerentes com o fim que de forma livre se propôs.
Há uma questão essencial a ser levantada nessa exemplificação: sendo a
liberdade transcendental uma condição para a liberdade de escolha, como esse
menino chegará a ser capaz da mesma? Através de uma formação. Essa resposta
toca num aspecto fundamental da liberdade humana, que é sua dimensão social.
Sem o conhecimento que é recebido através de uma determinada formação
dispensada pela sociedade — que o humanize —, o menino lobo jamais poderá
desenvolver sua liberdade humana.
Essa formação não significa instrução — enquanto transmissão de um
conhecimento teórico —, mas essa instrução pode ser orientada através da
formação. Essa consiste num processo dinâmico, baseado na experiência, na qual
33

o homem adquire a verdadeira forma de seu ser humano, aprendendo a interpretar e


se situar dentro do mundo (MÜLLER, 1975, p. 297).
Essa formação, embora seja condição para que se desenvolva aquela
capacidade inerente ao homem de escolher o que quer ser, não determina essa
decisão, o que retiraria sua liberdade acerca de si mesmo e do mundo.
Da mesma forma que o livre-arbítrio está condicionado pela sociedade
através da formação que essa lhe concede, assim também as ações individuais —
nas quais o projeto de vida e a concepção de mundo do homem se concretizam —,
estão atadas a uma série de condições externas provenientes da sociedade
(MÜLLER, 1975, p. 297).
A liberdade é, pois, indivisível: a liberdade transcendental se realiza na
liberdade de decisão sobre si mesmo e sobre o mundo. Assim como não é possível
uma liberdade apenas transcendental, também não é possível que o simples
domínio externo sobre as coisas, sem uma relação com o interior do homem, seja
chamado liberdade.
Desse modo, a liberdade não é apenas um estado ou uma propriedade do
homem, mas é história. A história da transição da distância transcendental à decisão
sobre o mundo e sobre si mesmo, e dessa decisão à ação concreta por meio de atos
e obras, que por sua vez gerarão o mundo da técnica que nos rodeia, e da
sociedade. Dentro dessa liberdade as ações estão ordenadas para obras de
verdade, de beleza, de unidade humana e de vínculo social (MÜLLER, 1975, p.
299).
Ao mesmo tempo em que é história, a liberdade humana tem um caráter de
historicidade, pois acontece na individualidade de uma pessoa, num dado momento
da história do gênero humano.
Um outro fator importante no sentido social da liberdade é o fato de o conceito
de liberdade somente poder ser aplicado a um grupo social, ou comunidade, de
forma análoga. A liberdade humana em sentido estrito será sempre prerrogativa de
uma pessoa individual, pois somente o indivíduo pode ter o domínio sobre si mesmo
(MÜLLER, 1975, p. 299).
É preciso considerar, por último, que o fato do homem afirmar sua própria
essência, e a afirmação do mundo no qual essa essência se realiza, supõe um
compromisso com a verdade da natureza humana e a verdade do mundo. Admitir
34

que essa verdade depende de condições externas nas quais o indivíduo está
situado, como a formação, seria afirmar que a verdade é relativa, o que é anti-
filosófico. Mais coerente afirmar que a busca dessa verdade é condição para a
liberdade humana. A verdade, por sua vez, encontra-se estreitamente relacionada
com o conceito de bem, sendo ela própria um bem.
Considerar filosoficamente que a verdade é condição para a liberdade é ao
mesmo tempo o ápice e o limite da filosofia em geral. Esse limite corresponde a uma
abertura por onde a filosofia cristã penetre e possa responder qual é a Verdade que
constitui a condição para a liberdade humana. A Igreja afirma que a verdade é
condição da liberdade: “A verdade é a raiz e a regra da liberdade, fundamento e
medida de qualquer ação libertadora. A abertura à plenitude da verdade impõe-se à
consciência moral do homem; este deve procurá-la e estar pronto para acolhê-la,
quando ela se manifesta” (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 1986).
É nessa mesma fresta — por onde a simples razão não pode mais penetrar
—, que se insere o pensamento agostiniano a respeito da liberdade.

CAPÍTULO III
35

A LIBERDADE HUMANA EM SANTO AGOSTINHO

A liberdade humana é um dos temas fundamentais do pensamento


agostiniano. Assim como toda a sua obra, sua doutrina sobre a liberdade não surgiu
apenas por um gosto pelo estudo, ou por um interesse científico, mas sim como o
fruto de sua alma sedenta de conhecer e possuir a verdade e, em segundo lugar,
como uma necessidade — depois de ter reconhecido essa Verdade — de defendê-la
contra as idéias que na sua época dela se afastavam, e que levavam muitos
consigo, como outrora o próprio Agostinho.
A questão da liberdade, portanto, está intimamente ligada à sua história
pessoal e à doutrina que surgiu da necessidade de esclarecer as verdades da fé nas
controvérsias em que, por seu zelo, sentiu-se impelido a se inserir.
A própria experiência de impotência e de fracasso diante do mal e do pecado,
foram decisivos para que o problema da liberdade se pusesse a Agostinho. Duas
doutrinas que pareciam a princípio dar-lhe uma resposta sobre isso, foram a
astrologia e o maniqueísmo.
Deixou-se levar pelo maniqueísmo quando ainda era um jovem estudante.
Para os maniqueístas havia duas divindades supremas que presidiam o universo: o
princípio do Bem e o princípio do Mal – a luz e as trevas. Como conseqüência moral,
eles afirmavam que o homem tinha duas almas, cada uma presidida por um desses
dois princípios. Logo, o mal é metafísico e ontológico, e a pessoa não é livre e nem é
responsável pelo mal que faz. O mal é algo que lhe é imposto.
Também foi atraído pelos erros dos astrólogos. Diz na sua obra Confissões
que, quando era professor de retórica em Cartago, deixou-se levar por eles, os quais
negavam a liberdade humana afirmando que a causa inevitável do pecado, vem dos
céus: seria Vênus, ou Saturno ou Marte quem teria praticado aquela ação.
Agostinho diz que eles afirmam isto “para que o homem, carne, sangue, e
orgulhosa podridão, se tenha por irresponsável e atribua toda a culpa ao Criador e
Ordenador do céu e dos astros” (AGOSTINHO, 1987, p. 77).
36

Foi na vigília da sua conversão em Milão, no ano de 386, que ele se deu
conta da responsabilidade do homem nos seus atos e, que o livre arbítrio é um fato.
Compreendeu que nele não existiam duas almas e duas vontades, mas apenas uma
só alma e uma só vontade, uma vontade livre, mas corrompida, e era ela a origem
do pecado:

Quando eu deliberava servir já o Senhor meu Deus, como há muito tempo tinha proposto, era
eu o que queria e era eu o que não queria; era eu mesmo. Nem queria, nem deixava de
querer inteiramente. Por isso me digladiava, rasgando-me a mim mesmo. Esta destruição
operava-se, é certo contra a minha vontade, porém não indicava a natureza de uma lama
estranha, mas o castigo da minha própria alma. Era o pecado que habitava em mim, e não
eu, que mo infligia, em castigo de um pecado cometido com mais liberdade por ser filho de
Adão (AGOSTINHO, 1987, p. 182).

Após sua conversão Santo Agostinho, desejando dar respostas aos


argumentos contrários acerca da sua fé, se viu impelido a formular uma nova
ontologia, e dá início a sua grande obra literária, cujas questões fundamentais são: a
existência de Deus, a criação de todas as coisas por sua mão onipotente, a bondade
essencial de todos os seres, a insubstancialidade do mal, a primazia do homem no
universo, a providência divina e a ordem universal, o destino imortal dos homens, a
necessidade da redenção por Cristo, Redentor e Mediador de todos, e a existência
da liberdade (CAPANAGA, 1982, p. 193).
Nas Epístolas de São Paulo, Agostinho encontrará a antropologia que irá
fundamentar sua doutrina sobre a graça e o pecado original, e conseqüentemente, o
levará à reflexão da questão da liberdade do homem e do livre-arbítrio (VAZ, 1991,
p. 64). E serão, sobretudo, as controvérsias com os maniqueístas — seus antigos
correligionários —, e com os pelagianistas, a oportunidade de aprofundar essas
questões. Diante dos primeiros, que negam a liberdade, Agostinho a defenderá,
perante esses que a absolutizam, ensina-os a colocá-la no devido lugar. Justificando
um de seus escritos a seu amigo Valentim, Agostinho assim escreve:

Porque, há alguns que tanto ponderam e defendem a liberdade, que ousam negar e
pretendem fazer pouco caso da divina graça, que nos chama a Deus, que nos livra dos
pecados e nos faz adquirir bons méritos, pelos quais podemos chegar à vida eterna. Porém,
porque há outros que ao defender a graça de Deus negam a liberdade, ou que quando
defendem a graça crêem negar o livre-arbítrio, me determinei, impulsionado pela caridade,
37

Oh Valentim! A dirigir este escrito a ti e aos demais que contigo servem a Deus
(AGOSTINHO, 1971, pág. 212).

Foi buscando responder aos argumentos maniqueístas que, em alguns de


seus primeiros escritos, ele abordou a questão da liberdade do homem. A
compreensão desse tema, dentro da ampla discussão maniquéia, remete as
questões da origem e da natureza do mal,.
Para o maniqueísmo o mal é um princípio criador, origem do mal e de
criaturas más. Contra isso Agostinho irá demonstrar que o mal não é substância,
mas um defeito, corrupção ou privação seja da medida, da beleza ou da ordem
natural.
Ele explica que a origem do mal não está num princípio mal, mas, no próprio
bem:

De onde vem o mal? Do bem, porém não do Bem supremo e incorruptível [Deus], mas dos
bens mutáveis e inferiores ao sumo Bem. Quando dizemos que o mal não é uma natureza,
mas um simples defeito da substância, reconhecemos que o mal vem de uma natureza e
existe na natureza, pois o mal é somente um defeito que se distancia da bondade. (...) Mas
uma natureza não seria mutável se de Deus procedesse sem ser criada do nada. Deus é o
autor do bem, porque é o Criador de todas as naturezas, e estas naturezas, afastando-se
voluntariamente do Bem, nos fazem ver não por quem foram feitas, mas donde foram
tomadas. E como este distanciamento do bem nas naturezas criadas não é algo positivo em
si, haja visto ser o nada absoluto, não pode ter autor (AGOSTINHO, 1984, p.495).

Não podendo existir dois deuses supremos, pois isso implicaria numa
limitação — um limitando o outro —, e se somente Deus pode criar do nada, não
podem existir, portanto, criaturas más: “A fraqueza não se encaminha a coisas más,
mas mal, ou seja, não a naturezas más, e sim desordenadamente, porque se faz
contra a ordem da natureza, do que é em sumo grau ao que é menos”
(AGOSTINHO, 1964b p. 164).
Ele afirma, portanto, que ontologicamente o mal não existe — o mal é não
ser, e que existem sim dois tipos de males: o mal físico, que são os sofrimentos, as
enfermidades, a morte, a ignorância, todos conseqüências da corrupção da natureza
humana pelo pecado original e, o mal moral, que é o pecado — conversão às
criaturas —, e ambos são frutos da deficiência da criatura, ou seja, não têm causa
eficiente, mas deficiente:
38

Ninguém busque, pois, a causa eficiente da má vontade. Tal causa não é eficiente, mas
deficiente, porque a má vontade não é efetiva, mas defectivamente. Declinar do que é em
sumo grau ao que é menos é começar a ter má vontade. Empenhar-se, portanto, em buscar
as causas de tais defeitos, não sendo eficiente, mas como já dissemos, deficientes, é igual a
pretender ver as trevas ou ouvir o silêncio. E, contudo, ambas essas coisas nos são
conhecidas, uma pelos olhos e outra pelos ouvidos, não, porém, em sua espécie, mas na
privação da espécie (AGOSTINHO, 1964b, p. 163).

Ele prova que o fato da existência do mal não é inconciliável com a bondade
de Deus, pois Deus não é o autor do mal — nem do mal físico nem do mal moral —,
mas apenas o permite: “Deus não é o autor do pecado. Todavia, perturba-nos o
espírito uma consideração: se o pecado procede dos seres criados por Deus, como
não atribuir a Deus os pecados, sendo tão imediata a relação entre ambos?”
(AGOSTINHO, 1995, p. 28).
A liberdade está diretamente ligada à questão do mal moral, porque se o mal
provém de Deus, o homem não pode ser livre, pois o conceito de pecado supõe uma
escolha do sujeito e, uma livre decisão de sua vontade que contraria a ordem
estabelecida por Deus, ou seja, a responsabilidade pelo ato. Seria contraditório se
Deus determinasse que o homem agisse de modo contrário à lei que Ele
estabeleceu. O mal do pecado, portanto, não se origina de Deus, mas é
conseqüência da vontade livre do homem, que é seu livre-arbítrio, e esse é uma
manifestação da bondade divina. Por outro lado, sem a vontade livre, tampouco,
haveria mérito na reta ação do homem. A esse respeito Agostinho afirma: “Nos
revelou o Senhor por suas santas Escrituras que o homem possui um livre-arbítrio.
Como, pois, o revelara, lhes recordo não com palavras humanas, mas divinas.
Primeiro, porque os mesmos preceitos divinos de nada serviriam ao homem se não
tivesse liberdade para cumpri-los, e assim chegar ao prêmio prometido”
(AGOSTINHO, 1971, p. 213)
Mas, surge uma questão: se o homem opta pelo mal através do seu livre-
arbítrio, é porque este é corrompido, e se é corrompido, como pode ser um bem e
como pode vir de Deus? Ou ainda, será que não teria sido melhor se Deus não
tivesse nos dado o livre-arbítrio, já que algumas pessoas se servem dele para
pecar? Assim como o mal não está na substância, mas na deficiência da substância,
para Agostinho o mal não está no livre-arbítrio em si, mas sim na deficiência do livre-
arbítrio: “a vontade livre deve ser contada entre os bens recebidos de Deus”
(AGOSTINHO, 1995, p. 135). Em outro lugar afirma:
39

Todo bem procede de Deus. Não há, de fato, realidade alguma que não proceda de Deus.
Considera, agora, de onde pode proceder aquele movimento de aversão que nós
reconhecemos constituir o pecado – sendo ele movimento defeituoso, e todo defeito vindo do
não-ser, não duvides afirmar, sem hesitação, que ele não procede de Deus (AGOSTINHO,
1995, p. 143).

Acerca do fato de Deus ter querido nos dar o livre-arbítrio, Agostinho o


justifica comparando analogicamente a vontade livre com os membros de um corpo
humano. Assim como os membros do corpo são em si um bem e não deixam de sê-
lo mesmo quando alguém os utiliza para fazer o mal, da mesma forma se deve
entender a vontade livre:

Do mesmo modo como aprovas a presença desses bens no corpo e que, sem considerar os
que deles abusam, louvas o doador, de igual modo deve ser quanto à vontade livre, sem a
qual ninguém pode viver com retidão. Deves reconhecer: que ela é um bem e dom de Deus, e
que é preciso condenar aqueles que abusam desse bem, em vez de dizer que o doador não
deveria tê-lo dado a nós (AGOSTINHO, 1995, p. 136).

Conclui-se, portanto, que o livre-arbítrio da vontade é um bem, provindo de


Deus, mas, é isto a liberdade para Santo Agostinho? Para ele a simples capacidade
de escolher, ou o livre-arbítrio, não é ainda a liberdade. Nas suas obras, Agostinho
faz uma distinção nítida entre o sentido de livre arbítrio e o de liberdade. O livre
arbítrio, que ainda quando é mal usado não deixa de ser um bem, e a liberdade, que
é o bom uso do mesmo. Mais exatamente, como afirma GILSON (1998, p 155), “na
linguagem agostiniana o livre-arbítrio indica a possibilidade de fazer o mal, enquanto
o termo liberdade designa o estado daquele que é libertado, que significa a
confirmação da vontade no bem pela graça. Deste modo a liberdade não tem um
valor fixo, pois esta confirmação no bem pode atingir graus variáveis”. Enfim, poder
fazer o mal é inseparável do livre-arbítrio, mas poder não fazê-lo é um sinal de
liberdade, e ser confirmado através da graça a ponto de não mais poder fazer o mal
é o grau supremo da liberdade.
Mas, se poderia perguntar por que o livre-arbítrio, sendo um bem, indica a
possibilidade de fazer o mal, quando o lógico seria a possibilidade de fazer o bem?
Há que se considerar nesta questão dois elementos: o fato de que o livre-arbítrio
indique a possibilidade de fazer o mal, não está necessariamente em contradição
com o bem que o livre-arbítrio representa. E, que ao menos em princípio, a
40

possibilidade de fazer o bem —essencial à propriedade da vontade livre — não está


negada. Mas apenas em princípio, porque na realidade prática da natureza humana
um evento tornou esta natureza de tal inclinada para o mal, que a vontade livre do
homem — uma vez corrompida —, não tem mais condições de por si mesma optar
pelo bem. Este evento, diz Santo Agostinho, é o Pecado Original. Isto é, quando foi
criado, o homem tinha a vontade livre para agir retamente. Depois da queda, a justa
punição do pecado foi a ignorância e a dificuldade. Ignorância porque o homem
perdeu a percepção profunda daquilo que é o bem e também daquilo que é o mal —
ficando sujeito ao engano —, e a dificuldade, porque não consegue fazer o bem
quando quer:

Nada de espantoso, aliás, se o homem, em conseqüência da ignorância, não goze do livre-


arbítrio de sua vontade na escolha do bem que deve praticar. Ou ainda, se diante da violência
de seus maus hábitos carnais tornados, de certo modo, disposições naturais por efeito do que
há de brutal na geração da vida mortal, o homem veja perfeitamente o bem a ser feito e o
queira, sem contudo poder realizá-lo. De fato, essa é a punição muito justa do pecado: fazer
perder aquilo que não foi bem usado, quando seria possível tê-lo feito, sem dificuldade
alguma, caso o quisesse. Em outras palavras, é muito justo que quem, sabendo, mas não
querendo agir bem, seja privado do perceber o que é bom. E quem não querendo agir bem,
quando o podia, perca o poder de praticá-lo quando o quer de novo (AGOSTINHO, 1995, p.
210).

Coloca-se aqui outra questão: se pelo castigo do pecado a vontade do


homem está orientada para o mal, isso não o isentaria do pecado que doravante
viria dessa vontade corrompida? Para iluminar essa questão entra em cena outro
acontecimento: a Redenção. É graças à Redenção que o homem ferido pela culpa
do pecado pode ser curado e ela é fundamental para que se compreenda onde está
a culpabilidade do pecado. Santo Agostinho diz: “Deus não te recrimina (ó homem) o
fato de ignorares, contra tua vontade, mas de negligenciares procurar saber o que
ignoras. Tampouco te é imputado como culpa não poderes curar teus membros
feridos, mas de menosprezares Aquele que te quer curar. Enfim, são esses os teus
verdadeiros pecados” (AGOSTINHO, 1995, p. 210). Em outro lugar ele dirá que “o
homem ferido e transpassado com graves lesões, não pode subir ao cume da justiça
como pôde dela descer (...), mas, Deus não manda o impossível, mas ao dar uma
ordem Ele admoesta a fazer aquilo que está ao seu alcance e a pedir o que não
podes por si” (AGOSTINHO, 1971, p. 778).
41

Assim, apesar da queda original, o homem é responsável pela sua atitude em


relação ao mal, na medida em que não procura a força do auxílio divino para agir
retamente, o que apenas pelas próprias forças ele não seria capaz. O livre-arbítrio,
enquanto vontade livre, e a liberdade, enquanto seu bom uso, de qualquer forma,
permanecem salvos.
Se na controvérsia maniquéia Agostinho pôde defender o livre-arbítrio da
vontade e a possibilidade da liberdade, a controvérsia pelagiana, a partir do ano de
412, será ocasião de clarificar ainda mais esta questão (LÓPEZ, 1971, p. 595).
O pelagianismo consiste numa corrente doutrinal herética de influência
estóica. Pelágio foi um monge britânico que por volta do ano 400 pregou em Roma
uma espiritualidade rigorista e com forte caráter voluntarista. Sua doutrina, uma das
se difundiu e suas posições referentes ao problema da liberdade e da graça
provocaram a intervenção de Agostinho (LÓPEZ, 1971, p. 595).
O pelagianismo afirma que o homem possui uma liberdade absoluta e
autônoma, embora criada. Segundo os pelagianos Deus fez o homem e lhe deu o
livre-arbítrio e, por isso, o agir retamente é um problema que compete
exclusivamente ao homem. Esse pode pedir qualquer coisa a Deus com exceção da
virtude. Se o homem é o único responsável pela sua situação e se pode chegar por
suas próprias forças a agir bem, a cumprir a lei de Deus e, conseqüentemente, à
santidade, essa será, portanto, mérito somente seu.
Se na querela maniqueísta, o ponto chave foi a questão da origem do mal, na
controvérsia pelagiana, a questão da liberdade remeterá, sobretudo, aos temas da
graça, do pecado original e da concupiscência que é uma das conseqüências desse.
Afirmando que o homem possui uma liberdade total que o capacita a optar sempre
pelo bem, se quiser, o pelagianismo nega a necessidade da graça de Deus para o
homem e, por conseguinte, a doutrina do pecado original também não tem sentido
(RONDET, 1984, p. 380).
O tema da graça ao qual Santo Agostinho tanto se dedicou na polêmica
pelagiana, mereceu-lhe o título de doutor da graça. O próprio Agostinho confessa o
quanto essa questão lhe importa: “A negação da graça é o que mais me aborrece e
horroriza na discussão com essas pessoas” (AGOSTINHO, 1998, p. 122). Esse
empenho em exaltar o valor e a necessidade da graça, fundamental em toda a sua
doutrina, é muito compreensível em Agostinho. O momento decisivo da sua história
42

pessoal fora a experiência do pecado e a descoberta de que era incapaz de


reerguer-se sem a graça da Redenção e, a experiência de que com ela sim ele
podia fazê-lo (GILSON, 1998, p. 154).
Não é que Pelágio negue de forma categórica a graça de Deus, mas sua
compreensão acerca dela é vaga e genérica. De forma sutil tenta eximir-se da
acusação de negá-la, referindo-se à graça como a criação em sua natureza, ou
como a lei, ou ainda como o livre-arbítrio. Esses, segundo ele, seriam os meios
pelos quais Deus dá sua graça aos homens.
Agostinho, por sua vez, não nega que essas coisas sejam graça, porém,
defende outra acepção fundamental que é a graça enquanto um auxílio divino para
cumprir o que a lei divina ordena, para obter a justificação e nela perseverar. À
afirmação de Pelágio sobre a graça como natureza, de que a graça se dá, por
exemplo, no fato do ser humano poder falar, das aves poderem voar e da lebre
poder correr, Agostinho responde: [Pelágio] “mencionou ações que podem ser
realizadas por força da natureza. Esses membros: língua, asas e pés, foram criados
para tais naturezas. Nada, porém, citou do que queremos que se entenda com
relação à graça, sem a qual o ser humano não alcança a justificação. Trata-se de
curar naturezas, não de criá-las” (AGOSTINHO, 1998, p.122).
Agostinho retoma aqui a questão da vontade corrompida do homem, já
suscitada na controvérsia maniquéia, apoiando-se nas Sagradas Escrituras para
refutar esta posição. Por exemplo, menciona o Evangelho de São João dizendo:
“’Sem mim nada podeis fazer’, [e comenta]: Cristo não disse: ’Sem mim dificilmente
podereis fazer‘, mas sim: ‘Sem mim não podeis fazer nada’” (AGOSTINHO, S, 1998,
p.218). Utiliza igualmente outros textos bíblicos que evocam a incapacidade que o
homem tem de agir de forma reta apoiando-se apenas nas suas próprias forças e,
de outro lado, a eficácia da graça divina que vem socorrer a debilidade humana.
Comentando a Epístola de São Paulo aos Filipenses afirma: “O Apóstolo não diz:
‘Deus que opera em vós o poder’, como se o querer e o agir, os possuíssem por si
mesmos e não necessitassem de ajuda com relação a esses dois fatores, mas diz:
‘Pois é Deus que opera em vós o querer e o agir’” (AGOSTINHO, 1998, p.218).
Desse modo, Agostinho sem negar a liberdade humana, afirma a necessidade
da graça de Deus que opera na sua vontade livre, conferindo ao homem o poder de
bem usá-la. Ele próprio diz:
43

Anulamos a liberdade pela graça? De forma alguma; consolidamo-la. Assim como a lei se
fortalece pela fé, a liberdade não se anula pela graça. Pois o cumprimento da lei depende da
liberdade, mas pela lei se verifica o conhecimento do pecado e, pela fé, a súplica da graça
contra o pecado; pela graça, a cura da lama dos males da concupiscência; pela cura da alma,
a liberdade; pela liberdade o amor da justiça; pelo amor da justiça, o cumprimento da lei.
Desse modo, assim como a lei não é abolida, mas é fortalecida pela fé, visto que a fé implora
a graça, pela qual se cumpre a lei, assim a liberdade não é anulada pela graça, mas
consolidada, já que a graça cura a vontade, pela qual se ama livremente a justiça
(AGOSTINHO, 1998, p.78).

E segundo ele essa graça é de fato pura obra da gratuidade de Deus. Sobre
isso ele afirma: “a graça não se dá segundo os méritos, pois caso contrário a graça
já não seria graça. chamando-se de fato graça porque se dá grátis” (AGOSTINHO,
1971, P. 271).
Defendendo com tanto vigor a graça, acabou sendo acusado de negar o livre-
arbítrio. Gilson a esse respeito o desculpa dizendo que tal suspeita é efeito das
querelas sustentadas por mais de vinte anos, e é natural que no calor do combate se
acabe forçando a expressão (GILSON, 1998, p.155). Mas como vimos a acusação
não procede. O próprio Agostinho afirma o quanto é preciso considerar tanto a graça
quanto o livre-arbítrio: “Confessemos que a graça de Deus e sua ajuda se concede
para cada um dos atos; e que não se dá segundo os méritos, para que seja
verdadeira graça, isto é, dada por sua misericórdia. Confessemos que há livre-
arbítrio, ainda quando necessite da divina ajuda” (AGOSTINHO, 1971, p. 73).
Segundo Agostinho a conciliação entre a liberdade e a graça depende, afinal,
da conciliação de duas prerrogativas essenciais de Cristo. Com efeito, o Cristo é ao
mesmo tempo salvador e juiz. Ora, se não existe a graça, como salva o mundo? Se
não existe o livre-arbítrio, como julga o mundo?
Portanto, na questão pelagiana, a liberdade sem ser negada é posta no seu
devido lugar: como condicionada ao apoio da graça de Deus. A defesa da
necessidade da graça é para Agostinho a defesa da liberdade cristã. (JOÃO PAULO
II, 1986, p. 33)
Uma outra questão que coloca em dúvida a possibilidade da liberdade
humana é a da presciência divina, questão abordada por Agostinho na sua obra “O
livre arbítrio”. O problema é colocado da seguinte maneira: “já que Deus previra seu
pecado [do homem] como futuro, isso devia inevitavelmente realizar-se. Como, pois
pode existir uma vontade livre onde é evidente uma necessidade tão evidente?”
44

(AGOSTINHO, 1995, p.152). Dessa questão decorre naturalmente outra: sendo a


presciência divina um fato, não seria essa Providência impotente, injusta e até
mesmo má por não livrar o homem do pecado e, por castigar um pecado de certo
modo necessário já que foi previsto por Deus? Agostinho responderá que a
presciência divina não elimina o livre arbítrio, pois Deus prevê a opção da livre-
vontade humana, mas não compele ao pecado: “Se o objeto da presciência divina é
a nossa vontade, é essa mesma vontade assim prevista que se realizará. Haverá,
pois, um ato de vontade livre, já que Deus vê esse ato livre com antecedência”
(AGOSTINHO, 1995, p.159).
Estando resguardado o livre-arbítrio da vontade, decorre naturalmente a
certeza de que se Deus não livra o homem do pecado, é justamente porque isso
seria negar o livre-arbítrio que é um bem e dom concedido por Deus ao homem. Em
caso de mau uso do livre-arbítrio, a responsabilidade como já foi dito é apenas do
homem. Agostinho demonstra também que a punição do pecado conhecido de
antemão por Deus, não está em contradição com sua justiça:

Deus prevê tudo de que ele mesmo é o autor sem, contudo, ser o autor de tudo o que prevê.
Mas dos atos maus, de que não é o autor, ele é o justo punidor (...). Reconheçamos, pois,
pertencer à sua presciência o fato de nada ignorar dos acontecimentos futuros. E também,
visto o pecado ser cometido voluntariamente, ser próprio de sua justiça julgá-lo, e não deixar
que seja cometido impunemente, já que a sua presciência não os forçou a serem cometidos”
(AGOSTINHO, 1995, p.161).

Santo Agostinho exalta a liberdade cristã em todas as suas formas. No seu


pensamento ele refere-se fundamentalmente a duas. Segundo ele a primeira
liberdade é estar isento de delitos. Afirma, porém, que a princípio somente o Cristo,
que viveu em tudo a natureza humana menos o pecado, está isento de delitos, mas
pela graça de Cristo todos os homens podem ser justificados: “assim como o médico
odeia a enfermidade do enfermo e com os remédios procura expulsar a enfermidade
e aliviar o enfermo, assim Deus opera em nós com a sua graça para destruir o
pecado e libertar o homem” (AGOSTINHO, 1965, p. 73). Contudo, nesta primeira
liberdade o pecado ainda não é destruído, mas apenas diminuído. Agostinho
questiona:
Porém dirás, quando destrói, se diminui, porque não destrói? [E responde:] Diminui na vida
dos proficientes e fica destruído na vida dos perfeitos (...). [Diz que:] quando o homem
começa a não ter tais delitos [homicíido, adultério, fornicação, furto, fraude, sacrilégio e outros
parecidos] — o cristão não deve tê-los —, começa a levantar a cabeça rumo à liberdade;
45

porém essa é uma liberdade inicial, não é perfeita. [E por que não é perfeita?] Porque ainda
não é total, ainda não é pura, ainda não é plena liberdade, porque não estamos ainda na
eternidade (Agostinho, 1965, p. 73).

A segunda liberdade é, pois, a perfeita liberdade que goza o homem na


eternidade:

Esta liberdade plena e perfeita no Senhor Jesus, que disse: ‘Se o Filho vos libertar, então
sereis verdadeiramente livres’ (Jo 8,36), quando será plena e perfeita liberdade? Quando não
haja inimizade, quando for destruída a morte, que é o último inimigo. Convém que este corpo
corruptível se revista da incorrupção e que este corpo mortal se revista da imortalidade. Então
se cumprirá o que está escrito: a morte foi absorvida pela vitória. ‘Onde está, oh morte, tua
vitória? (...) Então viveremos e já não morreremos, naquele que morreu e por nós
ressuscitou, ‘para que os que vivem não vivam já para si mesmos, mas para Aquele que
morreu por eles e ressuscitou (AGOSTINHO, 1965, p. 77).

Entre essas duas liberdades que representam o início e o término da


salvação, Agostinho ilustra e proclama todas as outras: a libertação do erro — por
ele considerada a pior morte da alma — por meio do dom da fé que submete a graça
à verdade; a liberdade do domínio das paixões desordenadas, que é fruto da graça
que ilumina o intelecto e torna forte a vontade e capaz de assim vencer o mal —
libertação que ele experimentou de forma tão forte na sua conversão, a ponto de
gritar com São Paulo, “Quem me livrará deste corpo mortal, senão a vossa graça,
por Jesus Cristo Nosso Senhor?” (AGOSTINHO, 1987, p. 173) —; liberdade em
relação ao tempo, da qual se gozará na eternidade: “não desejava enriquecer-me de
bens terrenos, devorando o tempo e sendo por ele devorado, pois possuía, na
eterna simplicidade, outro trigo, vinho e azeite” (AGOSTINHO, 1987, p. 197);
finalmente, a liberdade da morte, já mencionada .
Um elemento original do pensamento agostiniano é sua interpretação da
história em função das liberdades que defendeu, à luz dos Evangelhos e dos
escritos paulinos. A história da salvação é, pois, a história da liberdade. Afirma que o
homem passou por três estágios diferentes de liberdade. No primeiro estágio, no
Paraíso, o homem inocente gozava de uma liberdade perfeita:

O primeiro homem pôde não morrer, pôde não pecar, pôde não deixar o bem. Mas podemos
por acaso dizer: não pode pecar, estado dotado de tal livre-arbítrio? Ou podemos dizer: Não
pôde morrer, havendo-lhe sido dito: ‘se pecares, morrerás’ Ou dizer: não pôde abandonar o
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bem quando o abandonou pecando e encontrou por isso a morte? A primeira liberdade da
vontade foi, pois, a de poder não pecar (AGOSTINHO, 1999, p. 172).

O segundo estágio é do homem caído, que está no mundo. Adão negando


pelo seu livre-arbítrio seu privilégio, expressão da liberdade que Deus lhe dera,
introduziu o pecado na humanidade e lançou a humanidade no pecado. Doravante o
homem será escravo do pecado, mas Deus concedeu ao homem a capacidade de
retornar a Ele por meio do Seu Filho, Jesus Cristo, Mediador entre Deus e os
homens. Por meio Dele o homem é libertado, embora sua liberdade seja restrita,
consistindo no poder libertar-se do pecado por uma graça superior. Assim foram
libertados, por exemplo, os mártires:

Depois de perder-se por causa do pecado aquela excelente liberdade, restou a fraqueza para
ser ajudada com maiores dons e socorros (...) Mais vigorosa liberdade se requer contra tantas
e tão graves tentações, que não havia no paraíso, e que se ache dotada e robustecida com o
dom da perseverança para que seja vencido este mundo com todos seus amores, terrores e
erros (...). Adão inocente, ao ser criado recebeu uma vontade livre, e ele a fez servir ao
pecado; os mártires receberam uma vontade que, tendo servido o pecado, foi libertada por
aquele que disse: ‘Se o Filho de Deus vos libertar, então sereis verdadeiramente livres’. E
com tal graça lhes foi concedida tão grande liberdade, que ainda quando na vida presente
combatem contra as concupiscências dos pecados e se caem em algumas faltas, pelas quais
dizem todos os dias: ‘Perdoai-nos as nossas dívidas’, contudo, não são escravos do pecado
mortal (AGOSTINHO, 1999, p. 121).

Por fim, o terceiro estágio da liberdade que é o do homem redimido, será de


uma liberdade perfeita na eternidade: “A primeira liberdade da vontade, foi a de
poder não pecar, a última será muito mais excelente, a saber, não poder pecar. A
primeira imortalidade consistiu em poder não morrer, a última consistirá em não
poder morrer. A primeira potestade da perseverança foi a de poder não deixar o
bem, a última felicidade da perseverança será não poder deixar o bem”
(AGOSTINHO, 1999, p.119).
Agostinho não ignorou a liberdade na sua dimensão social. Conseqüência da
liberdade de cada homem redimido é a liberdade do mundo e da sociedade na qual
ele se insere. A comunhão com Deus, implica a comunhão com os homens. A
própria vida de Agostinho é uma aplicação desse princípio. Suas numerosas
intervenções, em prol das outras pessoas, demonstram que o cristão não deve
apenas desejar ser livre, mas deve trabalhar para que todos os homens também o
sejam, e essa liberdade refere-se à totalidade do ser do homem, incluídas sua
dimensão política e moral.
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Essa liberdade se realizará plenamente na cidade celeste — cuja construção


se inicia já na terra — onde a liberdade de cada um se harmonizará com a liberdade
de todos: “Esta cidade celeste terá uma vontade livre, ao mesmo tempo em todos, e,
singularmente em cada um, libertados de todo o mal e cheios de todo o bem,
esquecidas as faltas, esquecidas as penas, mas não, porém, esquecidos de sua
libertação, a ponto de ser ingratos para com seu libertador” (AGOSTINHO, 1964,
398).
Um último ponto que talvez seja necessário esclarecer é o seguinte: se for
pela graça recebida de Deus que o homem pode ser livre, isto é, dirigir sua vontade
livre para o bem, como se pode adquirir esta graça? Seria a graça um prêmio em
recompensa de um mérito? Neste caso como terá mérito quem não tem condições
de, por si mesmo, poder agir bem? Portanto, a graça não pode vir pelos méritos do
homem. Mas mesmo que fosse, como poderia ser graça? Santo Agostinho ensina
que:

A graça não se dá segundo os méritos, pois caso contrário a graça já não seria graça.
Chamando-se de fato graça porque se dá grátis. Se tão poderoso é o Senhor que pode agir
pelos anjos bons ou maus, ou por qualquer outro meio, no coração dos maus segundo os
méritos, tendo presente que a malícia deste não é obra de Deus, mas procedente do pecado
original ou da própria vontade, nos maravilharemos que pelo Espírito Santo opere o bem no
coração de seus eleitos os quais de corações maus os fez bons? (AGOSTINHO, 1971, p.
271).

Para se adquirir a graça não é preciso, portanto, mérito, mas segundo


Agostinho, oração. “A Deus rogava, certa pessoa, quando dizia: ‘Orienta meus
passos conforme tua palavra, e que maldade alguma me domine’, evitando confiar
no seu esforço como em suas próprias forças, o que o impediria de alcançar a
verdadeira justiça tanto neste mundo como no outro, onde se deseja e se espera
que seja perfeita” (AGOSTINHO, 1998, p.123).
Afirma também a necessidade da oração, referindo-se aos erros do
Pelagianismo por um lado, que afirmava ser o homem totalmente livre para optar
pelo bem ou pelo mal, e por isso não se deve pedir ajuda a Deus nessa decisão e,
por outro lado, ao erro do maniqueísmo, que afirmava que o homem não é livre nem
responsável pelo mal que faz e logo não há necessidade de pedir o auxílio de Deus
para a vontade.
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Ninguém ouse, pois, dar tanto ao livre arbítrio, que se empenhe em anular a oração que
rezamos: ‘Não nos deixeis cair em tentação’. Do mesmo modo, ninguém ouse negar o arbítrio
da vontade, nem se atreva a excusar o pecado; Ouçamos antes o Senhor que nos manda e
ajuda; nos manda o que devemos fazer e nos ajuda a fazê-lo. Pois a alguns, a excessiva
confiança em sua própria vontade os ensoberbeceu; e a outros, a excessiva desconfiança em
sua vontade os lançou na negligência. Aqueles dizem: ‘A quem rogar a Deus para que não
nos vença a tentação, se isso está em nossa mão?’ Estes dizem: ‘Para que esforçar-nos em
viver bem, se isso é coisa de Deus?’ Oh! Deus, oh Pai! Não nos deixeis cair em qualquer
destas duas tentações, mas livrai-nos do mal (AGOSTINHO, 1965, P. 235).

A doutrina sobre a necessidade da graça torna-se, pois, doutrina sobre a


necessidade da oração e, portanto, a oração é um meio para se obter a liberdade
cristã.

CONCLUSÃO
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Agostinho situa-se entre aqueles que, ao longo da história, defenderam a


realidade da liberdade humana. De modo sintético, pode-se dizer que esta defesa
ele a fez em dois níveis: filosófico e teológico.
Defende a liberdade num nível filosófico. A oportunidade foi quando estava
empenhado em corrigir os erros doutrinais dos maniqueus. O que estava então em
jogo era a questão da natureza e origem do mal, bem como a existência de uma
vontade livre e, a necessidade de provar que essa era um bem. No esclarecimento
destes pontos, a argumentação de Agostinho permanece no plano racional e lógico,
pouco recorrendo aos dados da Revelação e às Sagradas Escrituras. Agostinho
consegue dessa maneira, triunfar do determinismo maniqueísta, demonstrando que
existe no homem o livre-arbítrio da vontade.
Num segundo momento, impelido outra vez pela necessidade de responder
aos equívocos contra a sã doutrina — desta vez da parte dos pelagianos —,
Agostinho entra novamente na questão da liberdade. Desta vez é num plano
predominantemente teológico que ele argumenta, recorrendo principalmente à
antropologia de São Paulo. O homem, segundo Agostinho, necessita da graça da
Redenção dada pelo Cristo para obter a liberdade. E ele, então, se opõe à tese
pelagiana de que o homem dispõe de uma liberdade absoluta. A liberdade é, pois,
fruto da colaboração entre Deus e o homem, entre a graça divina e o livre-arbítrio
humano, porém, sempre predominando o dom de Deus.
Da constatação de que o homem necessita da força da graça para dirigir para
o bem sua vontade livre, é que Agostinho conclui que o próprio livre-arbítrio, ou
simples liberdade de escolha e autodeterminação, não é suficiente para ser
chamado de liberdade. O livre-arbítrio mesmo não é livre, e para ser livre, o homem
necessita ser libertado pelo Cristo.
O homem, após a queda original, perdeu este bem que é a liberdade, porém,
ainda lhe resta a vontade livre, que é ainda um bem, porém, um bem menor. Essa
vontade livre, no entanto, está corrompida e é incapaz de operar retamente, pois se
tornou escrava do mal. A Encarnação e a Redenção em Cristo Jesus vêm para
restabelecer no homem essa liberdade perdida, mediante a graça divina.
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Agostinho vê a vida humana como a história da liberdade. Um itinerário que


teve seu início no Paraíso, no gozo de uma liberdade excelente: poder não pecar.
Rejeitando o homem esse dom, Deus lhe concedeu o poder ser libertado pela graça
de Cristo, e assim gozar novamente de liberdade, embora uma liberdade inferior, de
homem ferido pelo pecado. Finalmente a história da liberdade chega ao seu termo,
quando o homem é definitivamente libertado. Essa liberdade consiste em não poder
pecar, e é ainda melhor do que a liberdade primeira.
Se Agostinho combateu o determinismo maniqueu, também ele foi acusado
de determinismo por afirmar que com a queda original o homem perdeu sua
liberdade. O que ele quis dizer, porém, é que depois do primeiro pecado, aquela
liberdade dada por Deus ao primeiro homem — a de poder não pecar —, foi
enfraquecida a ponto de a vontade corrompida, por si mesma, não ser capaz de
optar pelo bem. Esta liberdade decaída é justamente a vontade livre do homem, ou o
livre-arbítrio. Este, em hipótese alguma é negado por Agostinho em qualquer estágio
do homem, porém, varia a sua eficácia. O que diferencia o livre-arbítrio no homem
antes da queda, no homem decaído e no homem redimido é a eficácia na opção
pelo bem. No primeiro estágio, há um livre-arbítrio que, isento dos influxos da
natureza humana corrompida, tem a possibilidade de escolher o bem. No homem
decaído, o livre-arbítrio corrompido é vencido por sua atração pelo mal que
prevalece sobre a atração pelo bem — mesmo que conhecido e desejado. Enfim, no
homem redimido, o livre arbítrio auxiliado pela graça de Deus pode novamente optar
pelo bem.
Embora por um lado essa visão tenha sido tomada como determinista e
pessimista, por outro, é evidente que Agostinho é otimista ao considerar que o
homem deve recobrar a liberdade perdida — que na eternidade será ainda maior —
mediante a graça da Redenção. De qualquer forma é claro que não se trata de
negar simplesmente a liberdade, mas vê-la num processo dinâmico de queda e de
reerguimento. Além disso, essa doutrina deve ser compreendida à luz da vivência
pessoal de Agostinho: experiência de fracasso e impotência diante do mal, e de
libertação e triunfo através da graça de Cristo.
É possível estabelecer um nexo entre a doutrina de Agostinho sobre a
liberdade, e o conceito de liberdade em seu sentido filosófico fundamental
apresentado neste trabalho. Segundo esse conceito, o ponto de referência para uma
51

opção fundamental, que define a essência do indivíduo e do mundo, no qual sua


essência se realiza, é a verdade. É nessa verdade que se localiza o ponto de
contato, mas para Agostinho trata-se da Verdade — o próprio Cristo. A liberdade
verdadeira será então para o homem, a submissão a essa Verdade.
Só neste domínio é que o homem pode ser livre e apenas dentro dos limites
desta liberdade é que ele pode fazer aquilo que queira. Com efeito, Agostinho afirma
que, amando, o homem pode fazer o que quer. A plena liberdade humana em Santo
Agostinho está, pois, identificada com a perfeição da caridade cristã. Esta é a
liberdade que Deus — cuja natureza é Amor — planejou para o homem: participar
da liberdade mesma de Deus. Esta liberdade não é logicamente imposta.
Passados mais de quinze séculos da morte de Agostinho, sua obra conserva
a vitalidade e a energia que emana de seu coração apaixonado por Deus e pelos
homens, desejoso de fazer crescer nestes, aquele amor que o incendiara desde o
momento da sua conversão até o fim da sua vida.
Sua doutrina sobre a liberdade permanece viva, e tem muito que contribuir
com o pensamento do homem de hoje. Os dois extremos que ele soube combater
ressurgem contemporaneamente de diversos modos, mas sempre, ou negando a
existência da liberdade humana, através de inúmeras formas de determinismo, ou
absolutizando-a, negando qualquer realidade superior ao homem e sua liberdade.
A liberdade que se vende no mundo de hoje, da qual os jovens são os
principais consumidores, à luz do ensinamento agostiniano revela-se uma vã e falsa
liberdade. Engana-se quem imagina que ser livre é poder fazer o que se quer.
Agostinho não só ensina o significado da liberdade, mas mostra como se pode
personificar essa liberdade. Segundo ele, o homem livre é apenas aquele que é
libertado pelo Cristo e essa liberdade tornar-se-á perfeita quando o amor, uma vez
nascido, crescer e, crescendo, tornar-se perfeito, e tornado perfeito, permanecerá
para sempre. Então, o homem livre e Deus — que é o fim último dessa liberdade —,
serão unidos por um laço de amor eterno.
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