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UNIVERSIDADE DO MINHO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
FILOSOFIA
2000
SENTIMENTALISMO FILOSÓFICO:
C. S. PEIRCE
“(...) yet the most balsamic of all the sweets of sweet philosophy is the lesson that
personal existence is an illusion and a practical joke (...) the truth that neither selves
nor neighbourselves were anything more than vicinities; while the love they would
not entertain was the essence of every scent.” (C.P. 4.68, 1893)
3
ÍNDICE
INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 5
1. INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 13
(C.P.8.7-38) ....................................................................................................................................... 56
4.CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 61
1.INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 65
5.CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 95
4
1.INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 97
b) obras........................................................................................................................................ 165
5
INTRODUÇÃO
Charles Sanders Peirce é um autor de difícil acesso. Muita desta dificuldade tem a
ver com a forma da sua obra, um conjunto vasto, e ainda não totalmente publicado,
Assim, uma outra dificuldade resulta da publicação em oito volumes3 de apenas uma
visualizar essa intenção sistemática, mas esquecendo a cronologia dos textos4. E esta
1
Para uma articulação entre este carácter da obra de Peirce e a sua biografia, ver Brent, J.,
Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington, Indiana University Press, 1993.
2
No seu estudo já clássico sobre Peirce, Murray G. Murphey reconstrói quatro diferentes
sistemas resultantes da evolução do pensamento de Peirce. Murphey, M.G., The
Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993.
3
The Collected Papers of C.S. Peirce, vols. 1-6, Harsthorne, C. e Weiss, P., eds.,
Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1931-1935, vols. 7-8, Burks, A., ed.,
Cambridge Mass, Harvard University Press, 1958. Neste trabalho será adoptada a forma
convencional de citação das obras de Peirce: número do volume,ponto, número do
parágrafo; ex. C.P.5.278. A tradução das citações é da responsabilidade da autora.
4
Encontra-se em publicação uma edição cronológica dos textos de Peirce, a que será feita
referência, e da qual acaba de publicar-se o sexto volume. Writings of Charles S. Peirce,
vols.1,2,4 e 5, Kloesel C.J.W. ed., Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press,
vol.1-1982, vol.2 – 1984, vol.4 –1986, vol.5-1993. Esta edição será citada de forma
6
é relevante até porque Peirce é um autor em constante auto-revisão e que, como diz
quando o seu conteúdo sofreu uma modificação radical.”5. Ainda assim, isto é, apesar
na sua preocupação com a ciência Peirce exibe a sua influência kantiana; o próprio
termo “pragmatismo” tê-lo-á Peirce ido buscar a Kant, que intitula a sua última obra
Peirce quanto ele foi um estudioso atento das grandes figuras do pensamento
filosófico ocidental, dos clássicos gregos aos modernos, passando pelos escolásticos
ignorância histórica, ao mesmo tempo que não pode pretender atribuir-se a si próprio
8
Kant, I., Antropologie du Point de Vue Pragmatique, Flammarion, Paris, 1993.
9
ibid., prefácio p.7
10
ibid. prefácio p.6
11
Cf. Faerna, A.M., Introducción a la Teoria Pragmatista del Conocimiento, Madrid, Siglo
XXI, 1996. E também Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,
Cambridge, Hackett, 1993. Ou ainda Fisch, M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism,
Bloomington, Indiana University Press, 1986.
12
Esta inscrição na tradição ocidental é, aliás, explicitamente reconhecida pelos autores
pragmatistas, tanto por Peirce, que discute directamente autores dessa tradição, como por
William James, que dá o seguinte subtítulo ao seu ensaio Pragmatism : “A new name for
8
pela moderna ciência da natureza, que exige justificar a sua relação com a
deixa como legado problemático a questão da relação entre res cogitans e res
some old ways of thinking”. James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York,
1995.
13
Cf. Faerna, A.M., Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, Madrid, Siglo
XXI de Espanã Editores, S.A., 1996. Peirce recusa de Kant o transcendentalismo mas aceita
o criticismo.
9
entre a mente e o mundo, comum aos autores que vêm sendo mencionados14, e em
conhecimento é visto por Peirce como uma forma de acção e não como contraposto à
acção: a teoria é uma prática e, como qualquer prática, realiza-se em função de uma
finalidade, envolve uma motivação e escolhe o método mais eficaz para se realizar.
Esta perspectiva é tanto mais significativa quanto ela permite pensar uma outra
Neste campo, mesmo Kant, que tentou superar o racionalismo e o empirismo quanto
identificando a aprovação moral com emoções e não com juízos. Hume representa
14
Kant, apesar de introduzir uma perspectiva que atribui ao sujeito uma actividade de
interpetação, apresenta-o como transcendental, como sendo uma estrutura racional
universal, a priori e definitiva.
15
Nem só o empirismo britânico, no entanto, pode ser inscrito nas hostes sentimentalistas.
Curiosamente, outra via traz consigo implicações semelhantes, a via filosofico-teológica que
discute o papel da razão em relação à fé. Pascal e a sua aposta representam uma recusa do
racionalismo tão veemente como o naturalismo humeano.
16
Encontramos um exemplo desta posição de Hume na seguinte passagem de um dos seus
ensaios, sobre as virtudes civilizadoras da literatura : “But perhaps I have gone too far in
10
daquilo que é, a razão não pode prescrever aquilo que deve ser sem abusar dos seus
das exigências normativas presentes em Kant, sem aceitar o racionalismo deste. Isto
conceito de evolução.
Ainda que possa ter começado por ser apenas uma expressão do convencionalismo
Assim, o primeiro capítulo deste trabalho tenta mostrar o modo como este conceito
saying that a cultivated taste for the polite arts extinguishes the passions, and renders us
indifferent to those objects, which are so fondly pursued by the rest of mankind. On farther
reflection, I find, that it rather improves our sensibility for all the tender and agreeable
passions; at the same time that it renders the mind incapable of the rougher and more
boisterous emotions.
Ingenuas didicisse fideliter artes,
Emollit mores, nec sinit esse feros.”.Hume,D. Essays – Moral, Political
and Literary, Indianapolis, Liberty Fund, 1985, p.6.
17
Trata-se do problema conhecido como a falácia naturalista.
18
Isto é, uma superação do golfo entre racionalidade teórica e racionalidade prática pela
afirmação da dependência da Lógica em relação à Ética. Esta dependência é normativa, e
não deve confundir-se com a questão das relações entre teoria ou investigação e prática ou
conduta empírica.
11
resultados desta alteração será a articulação entre Lógica e Ética, expressa sob a
adaptativo. Mais do que uma concessão ao naturalismo humeano, este ponto de vista
exibir o seu carácter normativo e não a sua utilidade. Ou ainda, trata-se de esclarecer
1. INTRODUÇÃO
suas implicações éticas. São eles, em primeiro lugar, a opção pelo realismo e
19
cf. Fisch, M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press,
1986, pp.186-200, onde se descreve a progressão de Peirce do nominalismo em direcção ao
realismo. Esta progressão ilustra, afinal, o carácter procedimental - que resulta em
afirmações substantivas - da filosofia peirceana.
20
Sobre a questão da naturalização cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985, p.2;
e também Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981,
p.222.
21
Como correcção dos impasses do transcendentalismo kantiano, de que é exemplo a cisão
númeno / coisa em si, na superação dos extremismos cépticos ou dogmáticos.
14
Quanto ao primeiro tema, podemos dizer que Peirce recupera o debate entre
que está em causa é o estatuto dos universais, daquelas partes do nosso discurso
sobre o mundo que não pretendem referir-se a coisas individuais concretas mas
fabricadas pelo discurso e que usamos para falar mais comodamente acerca da
22
realidade, uma “estenografia conceptual” , sendo que as únicas entidades reais são
os indivíduos, ou se, pelo contrário, têm uma existência e podem ser ditos reais,
se há realmente algo em comum entre duas coisas que partilham o mesmo predicado.
Peirce descreve as posições face ao problema da seguinte forma num texto de 186623:
problema dos universais é crucial quando se pretende, como é o caso de Peirce, dar
22
James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York, 1995, p.22.
23
Trata-se aqui de uma descrição de um momento na história da lógica e não ainda de uma
tomada de posição sobre o assunto.
15
estatuto das propriedades e relações que atribuimos às coisas do mundo acerca das
realidade para além daquela de uma ficção linguística ou resultado de uma abstracção
leis que a ciência pretende serem as leis do real são reais ou não? Como evitar que o
facto de o conhecimento ser nosso nos faça cair no cepticismo ou então num
de posição quanto à questão dos universais, e das categorias, Peirce acabou por, ao
estudar os lógicos medievais, entender que tudo estava em jogo nesta decisão
filosófica : nominalismo versus realismo. O autor não irá optar pelo realismo
24
“Realists believed that there is really humanity in man, animality in animals, and so forth;
while the Nominalists held that humanity, animality and such terms, are merely words
indicating the applicability to men, animals, etc., of their class appelations.” (W1.360)
16
extremo de Platão25, que afirma a realidade dos universais ante rem e reduz as nossas
percepções de coisas individuais a uma ilusão dos sentidos; mas também recusa o
individual e a essência universal, que consiste numa distinção mental, como queriam
os nominalistas, mas com uma base factual. Assim, os universais são de algum modo
reais e não simples abstracções. Não existe apenas uma “distinção lógica” entre
indivíduos e classes. Mas também não existe uma “distinção real”, in re , como
ciência expressam faz parte da nossa experiência das coisas sob a forma de hábitos
As teses nominalistas que Peirce irá consistentemente recusar são, assim, que a
25
Mais do que substâncias, ou predicados essencializados, interessam-lhe relações ou leis:
“general principles are really operative in nature” (C.P.5.101). Cf. Almeder, R., The
Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.160-183. E também
Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993,
pp.126ss.
26
C.P.8.12
27
O progressivo realismo de Peirce irá aceitar finalmente a realidade dos indivíduos; numa
fase adiantada da sua filosofia, procede a um desenvolvimento da sua categoria da
Secondness ligado à noção de haecceitas.
17
que consiste em vê-la como uma parte da psicologia, descrevendo o modo como de
conduz, pelo contrário, a uma concepção daquela como independente dos sujeitos
como de facto pensamos mas sim a disciplina das regras segundo as quais devemos
pensar30, sendo que este nós é normativo também, corresponde àquilo que Peirce
28
De que a distinção kantiana entre fenómeno e númeno será um exemplo e que presume
que a cognição é um efeito de uma realidade incognoscível que de algum modo afecta o
sujeito.
29
Cf. C.P. 8.167
30
Cf. C.P. 2.7
31
Cf. C.P. 4.550. E cf. Fann,K.T., Peirce’s Theory of Abduction, The Hague, Martinus
Nijhoff, 1970, p.38ss, sobre a lógica como ciência normativa.
18
opção é, então, pela lógica como teoria geral dos signos e das leis da sua
justificação teórica das leis da lógica e qualquer naturalismo neste sentido é recusado
por Peirce33.
dados dos sentidos, funcionando como premissas últimas numa dedução conducente
32
cf. C. Hookway, Peirce, London, Routledge, 1985, p.15ss.
33
A falar de naturalismo em Peirce, e penso que em certa medida poderemos fazê-lo, este
resulta do empirismo de Peirce, que é um empirismo com uma epistemologia transformada :
não fundacionalista, não nominalista, não individualista. Cf. H. Putnam in Peirce, C.S.,
Reasoning and the Logic of Things, Ketner, K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard
University Presss, 1992, p.79, acerca da metafísica revisível de Peirce; cf. também C.J.
Dougherty, “C.S. Peirce’s Critique of Psychologism” in Caws, P., ed., Two Centuries of
Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.86-93. Cf. ainda Almeder, R.,
The Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980; e Ayer, A.J., The
Origins of Pragmatism, London, Macmillan, 1968. E também, mais uma vez, Skagestad,P.,
The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, p.222.
19
discurso e exterior a ele, autorizando-o, ao mesmo tempo que o torna suspeito na sua
válidas. Aquilo que Peirce nos fornece, e que começa a ser visto como um contributo
pertinente para questões da actual Filosofia da Mente34, é uma nova visão do mental,
ciência.
34
Cf. E.J. Crombie, “Peirce on our Knowledge of Mind: a Neglected Third Approach” in
Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.
77-85; e também Chauviré,C., Peirce et la Signification, Paris, PUF, 1995. E ainda
Tiercelin,C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993.
35
Estes textos de 1868 foram publicados no Journal of Speculative Philosophy, a primeira
publicação americana regular consagrada a questões técnicas da filosofia. Segundo Max
Fisch, num artigo intitulado “Peirce’s progress from nominalism to realism” e já referido,
constituem o primeiro passo de Peirce em direcção ao realismo, a partir de uma posição
anterior declaradamente nominalista, cuja afirmação terá levado o realista e hegeliano W.T.
Harris, editor da revista, a desafiar Peirce a explicar a validade das leis da lógica. Fisch,M.,
Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press, 1986, pp.186-
200.
20
comunidade. Faz todo o sentido ver estes três artigos como um tríptico onde, para
vista como inferência levado a cabo no segundo, acompanhado por uma redefinição
Vários autores38 têm chamado a atenção para a forma escolástica deste texto: são
36
C.P. 5.264.
37
Este texto, cujo título no original inglês é “Questions Concerning certain Faculties
claimed for Man”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla: QFM.
21
cada uma delas. Não será certamente apenas uma curiosidade estilística esta adopção
uma questão e não de uma suspensão do juízo típica da metodologia cartesiana. Ela
indica desde logo que é com estes materiais - razões, argumentos, provas, crenças,
hipóteses - que a razão lida; e que, assim, a hipótese cartesiana é uma entre outras e
tem que ser provada - e que é e que tem de ser este o seu ponto de partida. Esta é
aliás uma prática cuja enunciação clara e justificação serão objecto do artigo
explicados sem recurso a uma dada hipótese e se esta até aumenta a obscuridade de
dessa hipótese, ela não serve o seu propósito explicativo - não explica e aumenta o
38
Cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993.
Cf. também Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press,
1981.
22
A primeira das sete questões, ou a primeira hipótese a verificar, diz respeito a uma
trata-se de saber se, perante a hipótese de uma faculdade intuitiva, somos capazes de
conhecimento não mediado por uma cognição prévia. A forma como a questão é
signos, nos é possível ajuizar correctamente se tal cognição foi determinada por uma
definida como “ uma cognição não determinda por uma cognição prévia do mesmo
“uma premissa que não é, ela própria, uma conclusão”41. Trata-se, então, de saber
que tipo de relação existe entre mente e mundo e à qual damos o nome de
39
Mas não só. Como já tem sido referido, tanto a tradição racionalista como a tradição
empirista modernas são aqui postas em causa. Segundo Murphey, muitos dos escritos de
Peirce deste período podem ser vistos como respostas directas a Hume e a todo o empirismo
britânico, que afinal partilha com o racionalismo uma concepção do mental e uma
concepção de realidade cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,
Cambridge, Hackett, 1993. Também Hookway,C., Peirce, London, Routledge, 1992.
40
“Whether by the simple contemplation of a cognition, independently of any previous
knowledge and without reasoning from signs, we are enabled rightly to judge whether that
cognition has been determined by a previous cognition or whether it refers immediately to
its object.” C.P. 5.213; W 2.193.
41
“a cognition not determined by a previous cognition of the same object, and therefore so
determined by something out of consciousness”; “a premiss not itself a conclusion” (C.P.
5.213; W 2.193).
23
Tiercelin, “aquí, e menos a intuição como faculdade que está em causa, que a
com o objecto da cognição e onde uma operação cognitiva especial, não discursiva,
ele uma ideia da razão ou os dados dos sentidos.43 A questão começa então ,
reflexivamente, por ser aquela que diz respeito à própria possibilidade de determinar
podermos sempre distinguir uma intuição de uma não-intuição. Se for o caso que o
tipo de determinação faz parte da cognição, então estaremos perante uma faculdade
42
Tiercelin, C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993, p.13.
43
J. Chenu faz notar que há um sentido, a que podemos chamar fenomenológico, da
capacidade de intuição que Peirce aceita, como se pode ver no parágrafo seguinte,: “Every
cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself.” (C.P. 5.214; W2.194)
Assim, os dois sentidos em que se pode compreender a capacidade de intuição e que estão
presentes na filosofia escolástica, em Sto Anselmo por exemplo, estariam também presentes
em Peirce.cf. também C.P.5.213 n1. Peirce, Textes Anti-Cartésiens, trad. e int. Joseph
Chenu, Paris, Aubier, 1984, pp.92-93.
24
Que provas temos então desta faculdade ? Qual a evidência da intuição? “Parece
circular ou remete até para uma regressão infinita: “será este sentimento infalível? E
será este juízo acerca dela infalível, e assim por diante, ad infinitum?”45. Se este
sentimento, esta “fé”, fosse tudo o que é necessário, qualquer investigação do que
quer que fosse - enquanto é uma busca de provas - seria desnecessária. Um homem
pela história como pela psicologia. Aquilo que uma observação do nosso passado
intuitivo, e até quanto a qual possa ser a fonte de autoridade da intuição. E o que nos
44
C.P.5.214 ; W2.194.
45
C.P. 5.214; W2 p.194.
46
Este é um tema importante e que será retomada em pleno no texto de 1878 “The Fixation
of Belief” (C.P.5.358-387 ; W3.242-257).
47
“Now what if our internal authority should meet the same fate, in the history of opinions,
as that external authority has met ?” (C.P. 5.215; W2 p.195) A questão da autoridade, tal
como é tratada aqui, antecipa a questão da comunidade : esta, mais do que uma autoridade
absoluta, deve colaborar com o outro requisito do método científico, a verificação
experimental.
25
aquilo que suscita dúvidas segundo Peirce é aquilo que resiste à dúvida segundo
distinguir o que se viu daquilo que se inferiu : “a nossa única garantia, em casos
difíceis, está em alguns signos dos quais podemos inferir que um dado facto deve ter
sido visto ou deve ter sido inferido”48. Isto é, é a própria possibilidade da ilusão (o
causa e que mostra a dificuldade em admitir uma faculdade intuitiva. O caso dos
experiência. Mas as diferenças entre sonhos e experiências reais não são decisivas,
são quando muito uma questão de grau, mas não, como parece ser o caso para
frequente acontecer que um sonho é tão nítido que a memória dele é confundida com
os mesmos de um adulto, e que poderiam permitir uma avaliação mais “pura” das
mais simples, como é o caso da percepção, não somos capazes de proceder com
48
“(…)our only security in difficult cases is in some signs from which we can infer that a
given fact must have been seen or must have been inferred.” (C.P. 5.216; W2 p.196)
49
Cf. Hume,D., A Treatise Of Human Nature, Penguin ,London, 1985, p.49.
26
facilidade a uma distinção, como terá ficado demonstrado por Berkeley a propósito
esta descoberta só foi feita quando começámos a raciocinar sobre ele.”51 A percepção
estática entre dois pólos, para o raciocínio, que é um tipo de acção que permite uma
não; como um processo e não como uma substância exigindo metáforas espaciais,
lugares onde diferentes coisas acontecem. E repare-se também que este exemplo
momentânea.52
50
“(…)not unfrequently a dream is so vivid that the memory of it is mistaken for the
memory of an actual occurrence.” (C.P. 5.217; W2 p.196)
51
“We had been contemplating the object since the very creation of man, but this discovery
was not made until we began to reason about it.” (C.P. 5.219; W2 p.197).
52
Este é, aliás, um tema central na teoria da verdade de Peirce : o seu carácter complexo
combina as concepções de verdade como adequação e verdade como coerência ao erigir
como critérios a experiência e o consenso comunitário. Cf H.S. Thayer , “Peirce on Truth”
in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980,
pp.63-76. O apelo ao sentimento em Peirce nunca cai no individualismo, no subjectivismo
ou no irracionalismo, porque o sentimento é controlável/criticável pela razão; e porque é
uma característica da espécie e não do indivíduo : é nisto que consiste o Senso-Comum
Crítico que Peirce irá enunciar mais tarde.
27
expedientemente explicar com base na suposição segundo a qual não temos qualquer
consequências disto, teremos ainda mais fortes razões para recusar uma tal
faculdade54.
Será que pelo menos a experiência “interna” nos fornece provas a favor da
intuição? A segunda das sete questões postas neste texto investiga a possibilidade de
de outra cognição. Logo, não é de todo evidente que tenhamos acesso intuitivo à
53
C.P.5.224; W2.200.
54
Repare-se que este é o procedimento hipotético-dedutivo-indutivo que, para Peirce,
equivale ao funcionamento mental e, simultaneamente, à metodologia da investigação
científica e se “resume” na máxima pragmática formulada mais tarde (no artigo “How to
Make Our Ideas Clear”, “Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (C.P.5.388-410; W3.257-
276): trata-se retirar consequências de uma hipótese para saber o que significa - isto é,
determinar a sua validade enquanto hipótese.
28
faculdade de intuição especial? Peirce escolhe aquilo a que podemos chamar uma via
chegamos a saber que somos um eu55. A auto-consciência parece desde logo ser
tratadas não em termos de faculdades do sujeito (“eu ouço um som”), mas antes em
termos de comportamento e atributos dos objectos (“o sino toca”). A relação entre a
criança e os objectos exteriores é mediada pelo corpo e não por uma auto-
produto do pensamento, não é prioritário em relação a este e não serve, pois, como
validação.
fonte dos factos, mais forte do que os próprios factos, ou antes, do que o testemunho
55
C.P: 5.227-235; W2.201-203.
29
captável por si própria, mas sim uma hipótese, uma teoria com fins explicativos. Esta
representado pelo cogito ergo sum cartesiano - aquilo que resta quando todo o
Será que pelo menos temos acesso intuitivo aos elementos subjectivos dos
56
“Thus he becomes aware of ignorance, and it is necessary to suppose a self in which this
ignorance can inhere.” (C.P. 5.233; W2 .202)
30
qualquer inferência para saber de que tipo de cognição se trata? Parece que se não
cognições, nunca conseguiriamos distinguir entre ver e imaginar, entre aquilo que
concepção. Mas, mais uma vez, será que precisamos da hipótese de uma faculdade
especial para chegar a fazer todas estas distinções? A diferença entre modos de
acredita, isto de acordo com a definição de crença que Peirce recebe e aceita de
Alexander Bain : a crença é uma disposição para agir, a crença afecta visivelmente o
qualquer modo, sempre suficiente uma explicação inferencial dessa distinção, sem
57
“(…) a judgement from which a man shall act(..)” (C.P. 5.242; W2.205).
31
sentíamos haver contacto directo com a realidade, trata-se agora, na quarta questão,
Como no caso das questões anteriores, Peirce começa por avaliar a resposta
“fenómenos mentais” ou dos “factos internos”, isto é, da psique entendida como uma
res separada. Ainda que não intuídos, parecem estar num determinado lugar - o teatro
necessita de excursos pelo exterior para ser conhecido. As emoções, por exemplo,
apelo à intuição, já foi visto, não serve para justificar ou demonstrar a existência
será, como até aqui, verificando se os factos - o nosso conhecimento de uma emoção,
explicados sem a sua postulação. Ora, aquilo que a reflexão mostra é que as emoções
são predicações e que quando um homem diz “estou zangado”, isto é a consequência
de uma circunstância em que algo num objecto determina esse estado emocional e é
querer”, pode ser explicada sem recurso a uma faculdade misteriosa de introspecção,
isto é, pode ser inferida a partir do conhecimento de factos externos. Assim, mais do
que “voltado para dentro”, o eu orienta-se para o exterior e é nesta interacção que
específica dos “factos mentais”. Deste modo, não há métodos psicológicos distintos,
A quinta questão é a seguinte: podemos pensar sem signos ? Ou seja, haverá uma
causa mental “interna” suposta sob a exteriorização dela numa linguagem ? Aqueles
estes só nos mostram pensamento em signos: uma vez que todo o pensamento é
58
C.P. 5.247; W2.206. Também a este propósito, Peirce inverte Hume: para este, juízos
qualitativos são projecções emocionais; para Peirce, as emoções são inferências.
59
C.P. 5.249; W2.207. Repare-se na importância deste aspecto para a recusa da
psicologizacão da lógica: estudar uma questão psicológica exige fazer inferências; a lógica
estuda as inferências e a sua forma correcta ou a sua validade; logo, a psicologia como
ciência especial depende da lógica como ciência dos métodos.
33
expressamos não significa que algum passo misterioso e não exteriorizável - isto é,
uma causa mental que não é um signo mas que é significada por ele - tenha ocorrido,
acto instantâneo mas um fluxo contínuo de signos que determinam outros signos, ou
seja, tem uma dimensão temporal. É precisamente esta característica que conduz a
Quanto aos signos, e esta será a questão número seis, podem eles ter algum
seja, há alguma realidade que o eu possa não vir a conhecer de algum modo, que seja
que se referem àquilo que está fora da experiência presente ou possível, parecem
60
C.P.5.251; W2.207.
61
Esta questão é central na medida em que se trata aqui de não abdicar de uma posição
realista, e assim cair no nominalismo, pelo facto de termos como hipótese explicativa da
acção mental o seu carácter inferencial, ou seja, semiótico. A linguagem não torna o
conhecimento numa questão de convenção, não é um filtro entre o sujeito e uma realidade
finalmente inacessível. Peirce tem aqui que demarcar-se da tradição nominalista, tanto mais
quanto esta dá uma grande importância à linguagem como é exemplo o caso de Locke, que
terá até sido o primeiro a usar o termo semiose.
34
apenas metafisicamente o mesmo, mas são termos sinónimos.”64. Ser é ser objecto de
62
Poderia, a este propósito, pôr-se a questão do saber se as condições de possibilidade do
conhecimento podem, pors ua vez, ser conhecidas, visto serem os limites da actividade
cognitiva. De alguma forma, a teoria social da lógica e o sentimentalismo como condição de
possibilidade da lógica, que serão abordados neste trabalho, aparecerão como resposta a este
paradoxo: recusa do incognoscível/ conhecer condições de possibilidade.
63
Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce - Philosopher, Semiotician and Ecstatic
Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers, inc., 1993,p.83.
64
C.P. 5. 257; W2.208.
65
cf. C.P.5.257
66
cf. C.P.5.284: o pensamento é isomorfo do tempo na medida em que é um processo
contínuo e um processo de crescimento. Cf. Esposito,J.L., Evolutionary Metaphysics,
Athens Ohio, Ohio University Press, 1980, p.119.
67
cf. C.P.5.310
35
intuitivamente uma intuição definindo esta como conhecimento imediato, isto é, não
determinado por outra cognição mas pelo objecto (como acontece para os empiristas
como uma premissa que não é por sua vez uma conclusão, a sétima questão põe
primeiro momento na série das cognições, isto é, de uma intuição fundadora? Bom,
desde logo aplicando as conclusões das questões anteriores que mostraram, em geral
e para casos particulares, que “é impossível saber intuitivamente que uma dada
cognição não é determinada por uma cognição anterior.”69, isto é, não distinguimos
“Whether there is any cognition not determined by a previous cognition”. (C.P. 5.260;
68
W2.209)
69
C.P. 5.260; W2.209.
36
intuitivo: deixa de ser o problema. Assim, uma das conclusões deste ataque à
sua invalidação como hipótese explicativa dos “factos internos” e da cognição faz-
70
Este texto, cujo título original é “Some Consequences of Four Incapacities”, será a partir
de agora identificado com a seguinte sigla : CFI.
71
C.P. 5.264; W2.211
37
metódica cartesiana opõe a dúvida real, aquela que surge de facto num determinado
realmente num estado de descrença total, nem conseguimos dispensar “com uma
sobre uma teoria posta à prova por todos aqueles que investigam.. A filosofia
único elo. Finalmente, presumir uma inexplicabilidade na base dos fenómenos que se
72
C.P.5.265
73
C.P. 5.265; W2.212
74
cf. Browning, D., “The Limits of the Practical in Peirce’s View of Philosophical Inquiry”
in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford /
Providence, Berg, 1994, pp.15-29, onde se discutem as ambiguidades da cocepção de dúvida
em Peirce.
Este tema é retomado na famosa metáfora do pântano, de 1898, onde Peirce reafirma o
seu anti-fundacionalismo : não há um ponto de vista privilegiado e neutro sobre a totalidade,
estamos sempre já in media res e na posse de algum conhecimento provisório.
38
dos três artigos aqui em causa, ao responder às sete questões acerca de faculdades
temos poder de introspecção; 2) não temos poder de intuição; 3) não temos o poder
mais uma vez, o estatuto de uma hipótese que deve ser levada até às suas últimas
consequências: “Por outras palavras, devemos, tanto quanto for possível sem
75
C.P.5.265; W2.213.
76
C.P. 5.266; W 2.214.
39
mental: “(...) devemos, tanto quanto possível, sem qualquer outra suposição a não ser
que a mente raciocina, reduzir toda a acção mental à fórmula do raciocínio válido.”77
com o raciocínio válido e com a recensão das suas formas possíveis : pensar é inferir
uma forma geral80, e esgotam toda a descrição possível da actividade mental de uma
forma que não é perturbada sequer pela possibilidade do erro, pelos raciocínios
falaciosos81.
A terceira proposição afirma que não podemos pensar sem signos; isto é, que a
77
C.P. 5.267; W 2.214.
78
C.P. 5.276; W 2.217.
79
Tanto a indução como a hipótese são “reduções da multiplicidade à unidade” - cf.
C.P.5.275 para a indução e C.P.5.276 para a hipótese – logo, são formas de síntese, para
usar o termo kantiano, ou de obtenção de conhecimento.
80
C.P. 5.279.
81
C.P. 5.280-282. Até as falácias se conformam à fórmula da inferência válida. Não há erros
absolutos. Segundo Hookway, trata-se de racionalizar a irracionalidade ; a caridade é
constitutiva da compreensão dos outros. cf. C. Hookway, Peirce, London, Routledge,
1985,p.32.
82
Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,
University of Chicago Press, 1953, p.42.
40
de algo fora de nós”83 e constitui assim o mental propriamente ditto. Este é, então,
tal como se pode compreender a partir da descrição que Peirce faz da noção de signo:
“Ora, um signo tem, enquanto tal, três referências: 1º, é um signo em relação a algum
põe em relação com o seu objecto.”84 O primeiro correlato estabelece a acção mental
anterior, que o denota, uma vez que cada pensamento é determinado por um
83
C.P. 5.283; W 2.223
84
“Now, a sign has, as such, three references : 1st, it is a sign to some thought which
interprets it ; 2d, it is a sign for some object to which in that thought it is equivalent; 3d, it is
a sign, in some respect or quality, which brings it into connection with its object.” ( C.P.
5.283; W 2.223).
41
num nem noutro destes aspectos mas antes consiste naquilo que um signo é para um
pensamento : não em si próprio ou na sua relação real com o seu objecto. O signo é,
mente88 que envolve tempo e cujo sentido depende da relação com pensamentos
objectos dados com todos os seus detalhes, esquecendo que cada sentido é “um
um juízo dá origem a outro juízo, do qual é o signo. Ora isto não é mais nem menos
do que inferência.”90
uma discussão que tanto se dirige a Descartes como à coisa-em-si kantiana. Postular
85
C.P. 5.284; W 2.224
86
A relação semântica, de representação, de um signo com aquilo que ele significa, depende
do nosso uso ou compreensão dele como um signo dessa coisa: e ainda que um signo possa
não ser interpretado de facto, só é signo por ser capaz de ser interpretado ou compreendido
num certo modo. É signo de algo para alguém, envolve sempre três termos. Cf.Hookway,
C.,Peirce, London, Routledge, 1985,pp.32-33.
87
C.P. 5.289; W 2.227
88
C.P. 5.288.
89
C.P. 5.306
42
algo como real, existente, mas inacessível ao conhecimento não faz sentido fora do
dois tipos : “as verdadeiras e as falsas, ou cognições cujos objectos são reais e
aquelas cujos objectos não são reais”92. A própria noção de real decorre de uma
que devemos ter tido pela primeira vez quando descobrimos que havia algo de não
real, uma ilusão; ou seja, quando nos corrigimos a nós próprios pela primeira vez.”93
O facto da auto-correcção implica, por sua vez, uma distinção entre “um ens relativo
“um ens tal que subsistiria no longo prazo”, ou seja, o contraste entre a experiência
90
C.P. 5.307.
91
C.P. 5.311
92
C.P. 5.311. O sentido do termo “real” está, assim, estreitamente ligado ao sentido de
termo “verdadeiro”, implicam-se mutuamente, sendo que a pretensão à verdade é
simultaneamente uma pretensão ou afirmação da possibilidade do conhecimento do real.
Trata-se aqui do “realismo escolástico” de Peirce, expresso mais adiante no texto, onde
Peirce afirma que não conhece realidade mais profunda que o objecto de uma representação
verdadeira.
93
C.P. 5.311; W 2.239.
43
surge aqui já uma distinção entre o plano da experiência e o plano do ideal que
direcção a uma concepção normativa da lógica, a uma articulação entre lógica e ética,
ao tema da diferença entre teoria e prática - e que tem uma expressão clara na
em causa dada a admissão de que a verdade e a realidade são aquilo que seria
depende, por sua vez, de uma interpretação estatística da indução que será defendida
no artigo seguinte.
94
C.P. 5.311; W 2.239.
44
aquilo que é pensado nestas cognições é real, tal como realmente é. Não há, então,
nada que nos impeça de conhecer as coisas externas tal como realmente são, e é
muito provável que assim aconteça em inúmeros casos,embora não possamos ter a
certeza absoluta de que o fazemos em algum caso especial.”97. Uma aplicação desta
determinada, mas o seu sentido depende de interpretação num outro signo. Aquilo
que uma coisa é, é aquilo que finalmente será conhecida como sendo num estado
ideal de informação completa, “de modo que a realidade depende da decisão última
95
“And so those two series of cognition – the real and the unreal – consist of those which, at
a time sufficiently future, the community will always continue to re-affirm; and of those
which, under the same conditions, will ever after be denied.” (C.P. 5.311).
96
C.P. 5.312
97
“Consequently, that which is thought in these cognitions is the real, as it really is. There is
nothing, then, to prevent our knowing outward things as they really are, and it is most likely
that we do thus know them in numberless cases, although we can never be absolutely certain
of doing so in any special case.” (C.P. 5.311)
98
C.P. 5.313.
45
em função dessa finalidade, o que equivale a dizer que nenhum momento está
apenas negação.
lado, e, por outro, pelo testemunho dos outros, que confirma ou não a experiência
99
C.P. 5.316.
100
C.P. 5.214-15; W.2.194-5
101
Com consequências para a teoria peirceana de verdade, que não é já uma teoria da
verdade como adequação, sem ser ainda completamente uma teoria coerentista. Cf Thayer,
46
signo , ou, que não podemos pensar sem signos. A linguagem, enquanto dimensão
proposições e argumentos.
hipótese explicativa de certos factos, do erro; e falibilista: não havendo uma recepção
sendo esta uma concepção que resulta de uma inferência na medida em que se
“Peirce on Truth” ” in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil
Blackwell, 1980, pp.63-76.
102
Daí a necessidade de: 1) validar as leis da lógica; 2) afirmar a superioridade do método
científico.
47
segundo artigo como dependente da decisão final a comunidade pode fazer pensar
abreviada do modo como as coisas realmente são, mas que, para Peirce, o
processo cognitivo, que foi nestes dois artigos identificado com a inferência.
103
“The individual man, since his separate existence is manifested only by ignorance and
error, so far as he is anything apart from his fellows, and from what he and they are to be, is
only a negation. This is man,
...proud man,
Most ignorant of what he’s most assured,
His glassy essence.” C.P.5.317
48
(C.P.5.318-357; W2.242-272)104
Este terceiro artigo, estabelecida uma teoria semiótica da mente e afirmada uma
para o todo, como é possível conhecer o que não foi experimentado105. Isto é,
directo com a realidade que se erige como critério de certeza, mas aceitando-se ainda
como se justifica esta última? A “faculdade” de conhecer pode até encontrar uma
sua existência. Mas o problema agora é explicar a sua possibilidade a partir da sua
constatação (tal como Kant fizera com a ciência newtoniana na Crítica da Razão
Pura), dado que não podemos contar com qualquer intuição intelectual como
explicação e fundamento. “O que poderá permitir à mente conhecer coisas físicas que
104
Este artigo, cujo título original é “Grounds of Validity of the Laws of Logic – Further
Consequences of Four Incapacities”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla:
GVL.
105
“How magical is it that by examining a part of a class we can know what is true of the
whole class, and by study of the past we can know the future; in short, that we can know
what we have not experienced!” C.P.5.341.
49
não a influenciam fisicamente e que ela não influencia?”106 Esta é uma questão que
inferências prováveis. E é uma questão tanto mais importante quanto não se deixa
que são infinitamente mais frequentes. Qualquer facto verdadeiro acerca de qualquer
coisa particular no universo está relacionado com qualquer facto verdadeiro acerca de
qualquer outra coisa. Mas a imensa maioria destas relações são fortuitas e irregulares.
Um homem na China comprou uma vaca três dias e cinco minutos depois de um
natureza (como “proporção”) e ainda que ela pudesse ser conhecida, isto não
uma suposta “ordem das coisas” mas o resultado de um processo cuja validade é o
que está aqui em causa. E, mais ainda, a questão da validade ficaria comprometida se
a sua base fosse uma qualquer correspondência com uma ordem das coisas, isto
porque se tornaria relativa a essa mesma ordem das coisas, “dependente de uma
106
“What could enable the mind to know physical things which do not physically influence
it and which it does not influence?” (C.P. 5.342; W 2.264).
107
“It is true that the special laws and regularities are innumerable; but nobody thinks of the
irregularities, which are infinitely more frequent. Every fact true of any one thing in the
universe is related to every fact true of every other. But the immense majority of these
relations are fortuitous and irregular. A man in China bought a cow three days and five
minutes after a Greenlander has sneezed. Is that abstract circumstance connected with any
regularity whatever?” (C.P. 5.344).
108
C.P. 5.344.
50
na passagem daquilo que conhecemos para aquilo que ainda não conhecemos.
“Assim, parece que somos conduzidos a este ponto. Por um lado, nenhuma
determinação das coisas, nenhum facto, pode ter como resultado a validade dos
argumentos de probabilidade; nem, por outro lado, podem tais argumentos ser
reduzidos a uma forma correcta, sejam os factos o que forem. Isto parece-se bastante
vista um estado completo, da parte para o todo, tem a ver com aquele estado de
provável, seja ela uma indução ou uma hipótese, é uma inferência que vai das partes
saco de feijões pretos e brancos, tirarmos algumas mãos cheias, podemos, a partir
109
C.P.5.345.
110
“Thus we seem to be driven to this point. On the one hand, no determination of things, no
fact, can result in the validity of probable argument; nor, on the other hand, is such argument
reducible to that form which holds good, however the facts may be. This seems very much
like a reduction to absurdity of the validity of such reasoning; and a paradox of the greatest
difficulty is presented for solution.” (C.P.5.347)
111
C.P.5.348; W2.268.
51
longo prazo, qualquer um dos feijões seria retirado tão frequentemente como
noção de realidade tal como fora apresentada no artigo anterior. Mas, por outro, põe-
se também a questão de saber porque é que os homens não estão sempre condenados
a fazer quelas induções que são altamente enganadoras, visto que o longo prazo não
se verifica aqui e agora, isto é, não fornece um suporte para a validade de curto prazo
será apresentada num capítulo posterior deste trabalho, mas que recebe já aqui uma
resposta significativa: “A resposta a esta questão pode ser colocada de uma forma
aprender através da indução, deveria ser porque, regra geral, quando fizeram essa
indução, a ordem das coisas (tal como elas aparecem na experiência), sofreria então
112
“All probable inference, whether induction or hypothesis, is inference from the parts to
the whole. It is essentially the same, therefore, as statistical inference. Out of a bag of black
and white beans I take a few handfuls, and from this sample I can judge approximately the
proportions of black and white in the whole. This is identical with induction. Now we know
upon what the validity of this inference depends. It depends upon the fact that in the long
run, any one bean would be taken out as often as any other.” (C.P.5.349).
113
C.P.5.350
52
conhecimento que os homens tivesem dele. Mas esta regra geral poderia ser ela
própria descoberta através da indução; e deveria então ser uma lei desse universo
que, quando fosse descoberta uma lei, ela deixaria de operar. Mas esta segunda lei
seria ela própria passível de ser descoberta. E assim, num tal universo, não poderia
haver nada que não pudesse mais tarde ou mais cedo ser conhecido; e teria uma
Mas isto é contrário à hipótese, logo, essa hipótese é absurda. Esta é a resposta
particular. Mas também podemos dizer,em geral, que se não existe nada que seja real,
então, uma vez que cada questão supõe que algo existe – já que afirma a sua própria
urgência – supõe apenas que apenas existe uma ilusão. Mas até a existência de uma
ilusão é uma realidade; pois uma ilusão ou afecta todos os homens ou não afecta. No
primeiro caso, é uma realidade segundo a nossa teoria da realidade; no segundo caso,
quem de facto afecta. Assim, a resposta à questão ‘Porque é o que quer que seja
real?’ é esta: a questão significa,’supondo que existe o que quer que seja, porque é
que algo qualquer é real?’ A resposta é que essa mesma existência é a realidade por
definição.”114
114
“The answer to this question may be put into a general and abstract, or a special detailed
form. If men were not to be able to learn from induction, it must be because as a general
rule, when they had made an induction, the order of things (as they appear in experience),
would then undergo a revolution. Just herein would the unreality of such a universe consist;
namely, that the order of the universe should depend on how much men should know of it.
But this general rule would be capable of being itself discovered by induction; and so it
must be a law of such a universe, that when this was discovered it would cease to operate.
But this second law would itself be capable of discovery. And so in such a universe there
would be nothing which would not sooner or later be known; and it would have an order
capable of discovery by a sufficiently long course of reasoning. But this is contrary to the
hypothesis, and therefore that hypothesis is absurd. This is the particular answer. But we
53
comunidade para sempre afirmará, e sendo que uma indução válida é aquela que se
aproxima, no longo prazo, deste estado, nenhuma inferência individual está alguma
“que a lógica requer estritamente, antes de tudo o resto, que nenhum facto
de maior importância para ele do que tudo o resto. Aquele que não sacrificasse a sua
própria alma para salvar o mundo todo, seria ilógico em todas as suas inferências,
may also say, in general, that if nothing real exists, then, since every question supposes that
something exists – for it maintains its own urgency – it supposes only an illusion to exist.
But the existence even of an illusion is a reality; for an illusion affects all men, or it does
not. In the former case, it is a reality according to our theory of reality; in the latter case, it is
independent of the state of mind of any individuals except those whom it happens to affect.
So, the answer to the question, Why is anything real? Is this: That question means,
‘supposing anything to exist, why is something real?’ The answer is, that that very existence
is reality by definition.” (C.P.5.352).
115
“(…)that logic rigidly requires, before all else, that no determinate fact, nothing which
can happen to a man’s self, should be of more consequence to him than everything else. He
who would not sacrifice his own soul to save the whole world, is illogical in all his
inferences, collectively. So the social principle is rooted intrinsically in logic.” (C.P.5.354).
54
das inferências sintéticas. Logo, a lógica parece requerer uma virtude de auto-
confirmada pelos factos, apesar de a opinião corrente afirmar que os homens só agem
tendo em vista o seu próprio prazer e a satisfação imediata. Num único parágrafo,
para a validade das suas inferências cujo sinal maior é que “assim, considera como
válidas as suas próprias inferências apenas na medida em que elas seriam aceites por
116
C.P. 5.355.
117
C.P. 5.356.
118
C.P. 5.356.
119
cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,
University of Chicago Press, 1953, p.62.
55
que consiste usar um método - que por sua vez exige um ideal, uma expectativa
motivadora e um padrão.
abrir esta porta, a desenvolver a “teoria social da lógica”120 que, no final deste texto,
é, apenas, esboçada. Mais uma vez, o tema da comunidade ressurge como condição
exigido pela lógica: “o único pressuposto sobre o qual podemos agir racionalmente é
120
Esta expressão não é do próprio Peirce, mas sim dos editores dos Collected Papers, que a
usam para intitular uma das secções em que dividiram este texto.
121
C.P. 5.357; W 2.272.
56
a motivação tem a ver com a consideração daquilo que transcende o sujeito e a sua
BERKELEY” (C.P.8.7-38)122
Segundo Max Fisch123, neste texto Peirce dá o seu segundo passo decisivo em
O pretexto deste artigo é uma edição das obras completas de Berkeley e nele
tradição britânica, com a sua tendência para o nominalismo. Esta tradição, empirista,
122
Publicado na North American Review em 1871, com o título original “Fraser’s Edition of
the Works of George Berkeley”. Cf. Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce -
Philosopher, Semiotician and Ecstatic Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers,
inc., 1993. p.33.
123
Fisch,M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press,
1986.
57
também já nestes a teoria da cognição era a base para uma teoria da realidade que,
Para compreender que problema está aqui em causa, há que esclarecer o que se
“realidades” é o seguinte : “Os primeiros são aqueles que existem apenas na medida
em que tu ou eu ou qualquer homem os imagina; as últimas são aquelas que têm uma
aquilo que não é o que quer que aconteça pensarmos que seja, mas que não é
afectado por aquilo que possamos pensar acerca dele.”125 Obtém-se assim a seguinte
124
C.P.8.10
125
“The former are those which exist only inasmuch as you or I or some man imagines
them; the latter are those which have an existence independent of your mind or that of any
number of persons. The real is that which is not whatever we happen to think it, but is
unaffected by what we may think of it.” (C.P.8.12). Já nos textos de 1868 é esta a concepção
de real assumida por Peirce.
58
mentes são afectadas pelos objectos individuais que não têm neles mesmos qualquer
distantes”, o nominalista, para o qual o real é uma coisa fora da mente que influencia
realidade, temos a recusa de coisas em si, não relativas “à concepção que a mente
das aparências dos sentidos como sinais das realidades concebidas como “númenos,
pela sensação”128, atestando o carácter lógico, inferencial da acção mental tal como
126
“The question, therefore, is whether man, horse, and other names of natural classes,
correspond with anything which all men, or all horses, really have in common, independent
of our thought, or whether these classes are constituted simply by a likeness in the way in
which our minds are affected by individual objects which have in themselves no
resemblance or relationship whatsoever.” (C.P.8.12).
127
C.P.8.13.
128
C.P.8.13.
129
C.P.8.13.
59
Uma outra consequência é que, segundo Peirce, esta teoria da realidade favorece
podemos pensar ou sentir.”131. Isto impede, desde logo, que a insistência no carácter
uma opção por uma teoria da verdade como consenso com implicações precisamente
verdade como consenso funciona em Peirce porque se baseia numa teoria da verdade
Esta teoria, que identifica então o real com o objecto de uma opinião verdadeira,
como uma coisa concreta.”132 Vejamos como o próprio Peirce descreve a sua teoria
130
C.P.8.13.
131
C.P.8.13.
132
C.P.8.14.
60
Kant e não o de Hume. De facto, aquilo a que Kant chama o seu passo copernicano
objecto real como sendo determinado pela mente. Isto não é mais do que considerar
que não seja transitória e acidental, como tendo validade objectiva. Em suma,
dado que a ciência procura a verdade, e que o que é verdadeiro “é bom acreditar e
mau rejeitar”: como perceber que seja a própria ciência a sugerir aquelas posições?
133
“This theory involves a phenomenalism. But it is the phenomenalism of Kant, and not
that of Hume. Indeed, what Kant called his Copernican step was precisely the passage from
the nominalistic to the realistic view of reality. It was the essence of his philosophy to
regard the real object as determined by the mind. That was nothing else than to consider
every conception and intuition which enters necessarily into the experience of an object, and
which is not transitory and accidental, as having objective validity. In short, it was to regard
the reality as the normal product of mental action, and not as the incognizable cause of it.”
(C.P.8.15). Esta identificação da teoria da realidade de Peirce com o fenomenalismo de Kant
deve ser completada com a recusa da distinção entre fenómeno e númeno. Cf. C.P.8.13,
onde Peirce diz explicitamente que a sua teoria da realidade é “instantly fatal to the idea of a
thing in itself – a thing existing independent of all relation to the mind’s conception of it.”
61
A convicção de Peirce é que a ciência “tal como existe é certamente muito menos
nominalista do que os nominalistas pensam que ela é”, tal como os homens são
ética: “A questão de saber se o genus homo tem alguma existência para além dos
comunidade possa ser considerada um fim em si mesma, e, se for esse o caso, qual é
o valor relativo dos dois factores, é a questão prática mais fundamental no que
influenciar.”134 É uma questão que diz respeito ou afecta a relação entre o indivíduo e
4.CONCLUSÃO
134
“The question whether the genus homo has any existence except as individuals, is the
question whether there is anything of any more dignity, worth, and importance than
individual happiness, individual aspirations, and individual life. Whether men really have
anything in common, so that the community is to be considered as an end in itself, and if so,
what the relative value of the two factors is, is the most fundamental practical question in
regard to every public institution the constitution of which we have it in our power to
influence.” (C.P.8.38).
62
uma comunidade: a verdade de uma qualquer teoria não se funda nunca numa certeza
mostrou a implausibilidade da intuição sem se cair num cepticismo radical: nela está
processo inferencial cujo contacto com essa mesma realidade não esteja garantido
absolutamente, por uma intuição das premissas ou pelo efeito de uma harmonia pré-
permite, pelo menos, superar o perigo das ilusões individuais e, ainda que subsista a
definição de realidade avançada por Peirce resolve esta dificuldade: se todos vierem a
concordar com esta ilusão como sendo aquilo que querem dizer quando dizem
“realidade”, então é isto que se deve entender como sendo a realidade, o objecto da
lugar do erro e da ignorância, mas uma vez que o pensamento é considerado como
redimível. O erro não é, aliás, para Peirce, um absoluto, como terá ficado
135
Esta função da noção de comunidade será aliás desenvolvida e esclarecida a propósito da
descrição dos diferentes modos de fixação de crença nos textos de 1878, e que serão objecto
do próximo capítulo deste trabalho.
136
Cf. C.P.5.352.
64
garantia mais forte de que a comunidade esteja em contacto com a realidade, ou seja,
precisamente a este propósito que Peirce irá integrar na sua epistemologia uma
tanto mais sentido quanto nestes primeiros textos o pensamento foi descrito como
carácter temporal. Por outro lado, a perspectiva evolucionista permitirá avançar com
vida orgânica e a vida mental cujo resultado será uma naturalização não reducionista
137
Esposito, J.L., Evolutionary Metaphysics, Athens Ohio, Ohio University Press, 1980,
p.120-121.
65
1.INTRODUÇÃO
Nos anos de 1877 e 1878, Peirce publica na revista Popular Science Monthly um
138
Terá sido William James o primeiro a utilizar este termo publicamente, numa conferência
intitulada “Philosophical Conceptions and Practical Results”, dada na Universidade da
Califórnia em 1898, onde atribui a Peirce a sua autoria. O levantamento e a investigação
dos textos disponíveis de Peirce da época referida por James como sendo a da fundação do
pragmatismo de facto não revelam o uso do termo seja onde for. E não de todo no texto que
James explicitamente indica, “How to make our ideas clear” de 1878. Parece ser só a partir
da referência de James que Peirce, até talvez por questões de visibilidade pública e como
oportunidade para reequilibrar as suas finanças, começa a utilizar o termo, esclarecendo-o,
explorando e afinando as suas consequências.
139
Cf. Murphy, J., O Pragmatismo – de Peirce a Davidson, Porto, Asa, 1993,p.10. Para
Rorty, os pragmatistas mais genuínos no âmbito do pragmatismo clássico são William
James, amigo de Peirce, e John Dewey, que foi seu aluno.
66
num escrito entretanto perdido142. Para Peirce, este termo não tem o carácter
psicológico que parece ter para James, nem refere um critério de eficácia: trata-se
experiência, Peirce irá apresentar o pragmatismo como uma máxima lógica, uma
dúvida à crença. Tendo sido, pois, estabelecida a possibilidade dos juízos sintéticos,
140
cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993,
p.177
141
O Clube Metafísico era uma associação formada por Peirce e um conjunto de jovens
intelectuais e investigadores, entre os quais também William James, que se juntavam com
alguma regularidade para apresentar comunicações dando conta das suas leituras e estudos
em diversos domínios, do Direito à Biologia, passando pela Psicologia e pela Lógica. E, a
propósito, note-se que, paradoxalmente, é num clube metafísico que nasce o pragmatismo,
hoje para nós a posição anti-metafísica por excelência. Esta perplexidade já fora, aliás,
experimentada pelos alunos de Peirce, como Christine Ladd-Franklin : “In fact, so devious
and unpredictable was his course that he once, to the delight of his students, proposed at the
end of his lecture, that we should form (for greater freedom of discussion) a metaphysical
club, though he had begun the lecture by defining metaphysics to be the ‘science of unclear
thinking”. Brent, J., Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington, Indiana University
Press, 1993, pp.128-129.
142
Entretanto, perante divergências com o seu amigo James quanto ao entendimento que
cada um deles faz do termo e da entidade conceptual que lhe terá dado origem, a famosa
“máxima pragmática”, Peirce vê-se obrigado a inventar um novo termo, pragmaticismo,
segundo ele “suficientemente feio para estar a salvo de raptores” (C.P.5.414). James, por
exemplo, faz redundar o pragmatismo e a máxima pragmática num individualismo de cariz
67
inporta agora determinar o modo mais adequado para que a actividade cognitiva
possa atingir a sua finalidade : que método assegura que no longo prazo as
realidade? Qual a melhor forma para pôr em funcionamento a actividade mental dada
a sua finalidade cognitiva? Ao mesmo tempo, esta abordagem dos métodos como
inquérito como uma luta para superar a insatisfação da dúvida e atingir a estabilidade
da crença. Mas este facto não irá conduzir a uma naturalização reducionista da
plano das normas, para o que será de extrema importância a noção de evolução. É
neste sentido que se pode compreender a máxima pragmática, como afirmação desse
apresentada como uma regra lógica e não como uma estratégia de redução do sentido
a uma enunciação factual. A relação entre lógica e ética sairá, finalmente, reforçada
psicologista - e para Peirce o conhecimento não pode fundar-se numa crença que não tem
outra base para além da resolução e convicção de uma mente individual.
68
disciplinas.
segundo a qual “cada passo importante em ciência é uma lição de lógica”144. Isto é o
humana, ou na sua história, evolui ou mede o seu sucesso na medida em que domina,
mesmo tempo que a correcção das inferências ou o método é uma questão central,
não ficamos, segundo Peirce, presos numa restrição de tipo transcendental, numa
oposição entre aquilo que é conhecimento para nós e o que seria o conhecimento das
143
O título original deste artigo é “The Fixation of Belief”.
144
C.P. 5.363.
69
método não nos afasta, como um filtro, da realidade em si, antes o método é o que
continuaria a ser verdadeira ainda que não tivéssemos qualquer impulso para aceitá-
la; e a conclusão falsa continuaria a ser falsa, embora não fossemos capaze de resistir
à tendência para acreditar nela.”145. A lógica não se limita, pois, a descrever o modo
como a mente funciona, mas antes tem como objectivo apresentar as regras segundo
as quais a mente deve funcionar para lá das tendências subjectivas: é uma forma de
auto-controle, é normativa. Assim, passamos daquilo que já sabemos para aquilo que
ainda não sabemos pela acção de um “hábito da mente” que pode ser descrito como
investigação começam já nos textos de 1868 e são um dos pontos que o afastam da
145
“(…)the question of validity is purely one of fact and not of thinking (...) the true
conclusion would remain true if we had no impulse to accept it; and the false one would
remain false, though we could not resist the tendency to believe in it.” (C.P. 5.365)
70
realista de Peirce. A crença distingue-se da dúvida pela sensação que está associada a
cada uma delas; por uma “diferença prática” que consiste na presença de um hábito
dúvida147; e, finalmente, por uma diferença nos “efeitos positivos” sobre nós, ou no
modo como nos dispõe em relação ao inquérito, como instala ou não a necessidade
adaptativa, e o melhor método para a levar a cabo será aquele que, em competição
adaptação é a estabilidade das crenças. Numa descrição deste tipo, então, afirmar que
desnecessário: pensamos que cada uma das nossas crenças é verdadeira, ou não faria
sequer sentido dizer que temos uma crença151. Uma das vantagens desta descrição de
146
C.P.5.367.
147
E aqui encontramos a definição de crença de Alexander Bain, aprendida no Clube
Metafísico. Cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge,
Hackett, 1993, pp160-163
148
C.P. 5.370-373.
149
C.P. 5.374.
150
C.P.5.375.
151
As dificuldades na interpretação desta passagem para uma teoria da verdade têm em
grande parte a ver com a possibilidade de se admitir aqui uma interpretação jamesiana do
71
inquérito é, segundo Peirce, que ela afasta “várias concepções vagas e erróneas de
papel”, à dúvida metódica de tipo cartesiano, segundo a qual é preciso começar por
duvidar de tudo: este é um tema já referido em QFM e cujo efeito mais perverso é
conservar, e até fortalecer, o que se pretendeu pôr em dúvida. Por outro lado, retira à
uma vez que não se exige, o que seria fútil, começar com “proposições
que se identifica com essa passagem de uma dúvida real a uma crença estável.
dúvida à crença, e como fazê-lo de modo a que a crença atingida seja o mais estável
pragmatismo, onde a verdade é uma questão de satisfação individual. Mas o modo como o
primeiro método de fixação de crença, onde precisamente se põe em causa a suficiência da
satisfação subjectiva, é avaliado deve desde logo impedir esta interpretação. Antes, parece-
nos mais correcto interpretar esta passagem como a afirmação da finalidade, ainda que
apenas ilusoria ou insatisfatoriamente atingida, de qualquer estado cognitivo e de qualquer
crença, que parece ser exactamente a verdade. Mais uma vez, trata-se de chamar a atenção
para a descrição do conhecimento como uma actividade finalizada, logo necessariamente
contendo dimensões normativas. E trata-se também já de uma aplicação da máxima
pragmática ao esclarecimento de conceitos. Para um discussão desta questão, cf. Hookway,
C., Peirce, London, Routledge, 1985 p.44
152
C.P. 5.375.
153
C.P. 5.376.
154
Quanto ao critério de escolha dos métodos, Murphey considera que não existe nenhum e
a lista é arbirária ou casual: cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,
72
uma avestruz enterra a sua cabeça na areia à aproximação do perigo, é bem provável
que escolha a solução mais feliz. Esconde o perigo e diz então calmamente que não
há-de levantar a sua cabeça para ver?”155. Este é um método estritamente individual e
estabilização eficaz de crenças. Desde logo, “o impulso social está contra ele.”156.
serem tão boas ou melhores do que as próprias, instala uma dúvida que atinge não
apenas a crença e o seu conteúdo mas o próprio método da sua fixação, na medida
em que põe o problema de uma estabilidade que não seja estritamente individual mas
Cambridge, Hackett, 1993, p164; já Hookway defende que cada um dos métodos significa
um aspecto da hipótese da realidade: cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985,
p.46; e Thompson relaciona-o com as quatro incapacidades identificadas nos textos de 1868:
cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago,
University of Chicago Press, 1953, pp.75-76.
155
“When an ostrich buries its head in the sand as danger approaches, it very likely takes the
happiest course. It hides the danger, and then calmly says there is no danger; and, if it feels
perfectly sure there is none, why should it raise its head to see?” (C.P.5.377)
156
C.P.5.378.
157
“This idea that there are non-rational social forces which impel us to rationality was a
central idea in the social philosophy of the Scottish moralists of the eighteenth century,
above all of Hume and Smith. The epistemological aplication of this idea (…) was first
made by Peirce(…)” Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University
Press, 1981, p.33.
73
que funcione apenas para um indivíduo, é crucial. Talvez faça sentido, então, reforçar
maior e grandioso, enquanto realização colectiva. Mas é um método que, por ser
edifício colectivo para mostrar a fragilidade das suas fundações161, permitindo que a
anteriores, na medida em que usa o critério daquilo que é agradável à razão, e não a
158
“C.P.5.378. Mesmo nesta versão empírica, repara-se já na importância da dimensão
comunitária ou intersubjectiva na validação ou invalidação das opiniões individuais; este é
um tema que retoma a explicação genética do eu apresentada nos textos de 1868.
159
C.P.5.380
160
C.P.5.380
161
cf. Também C.P. 5.386 onde, a propósito das vantagens do método de autoridade, há
considerações acerca das massas e do conformisimo.
74
método a priori e diz que, ainda que superior aos anteriores, na medida em que
momento de dúvida acerca da determinação das crenças alcançadas por este método :
do qual as nossas crenças possam ser determinadas não por algo humano, mas antes
por uma permanência externa – por algo sobre o qual o nosso pensamento não tenha
estabilidade no longo prazo. A insuficiência destes três primeiros métodos terá a ver
com aquilo que é, afinal, comum a todos eles: a relevância dada, na relação
estabilidade de uma crença está na sua coincidência com uma realidade externa
acessível ao conhecimento humano sob a forma de leis, de tal modo que “a conclusão
162
C.P.5.382.
163
“To satisfy our doubts, therefore, it is necessary that a method should be found by which
our beliefs may be determined by nothing human, but by some external permanency - by
something upon which our thinking has no effect.” (C.P.5.384)
164
C.P.5.384.
75
da sua “hipótese fundamental”: “Há Coisas Reais, cujas características são totalmente
independentes das nossas opiniões acerca delas; esses Reais afectam os nossos
sentidos segundo leis regulares e, embora as nossas sensações sejam tão diferentes
quanto as nossas relações com os objectos, tirando partido das leis da percepção
acerca dela, será conduzido à única conclusão Verdadeira. A nova concepção aqui
método da ciência com uma hipótese é significativo: ele não poderia começar com
destes nos textos de 1868 que se mantém na sua descrição do inquérito como
testável que, segundo Peirce, dá conta do nosso estado cognitivo actual e constitui a
165
“There are Real Things, whose characters are entirely independent of our opinions about
them; those Reals affect our senses according to regular laws, and, though our sensations are
as different as are our relations to the objects, yet, by taking advantage of the laws of
perception, we can ascertain by reasoning how things really and truly are; and any man, if he
76
válido, mas sim mostrar como poderia funcionar se fosse considerado efectivo”166. A
implicada no uso de uma ontologia para fundar uma epistemologia – fazer depender a
disponível, passamos para conhecimento novo; e um exame dos factos acerca deste
processo é o que nos permite colocar a própria questão da sua possibilidade e avançar
investigação não pode ser considerada como capaz de provar que há coisas Reais,
pelo menos não conduz à conclusão contrária.”168; isto é, o método e a sua hipótese
método, então, surgem necessariamente da sua prática, como acontece com todos os
outros.”169 Isto esclarece-se com a segunda razão, que tem a ver com a própria
have sufficient experience and he reason enough about it, will be led to the one True
conclusion. The new conception here involved is that of Reality.” (C.P.5.384).
166
Anderson, D., Strands of System, Indiana, Purdue University Press, 1995, p.109.
167
id., p.112.
168
C.P.5.384.
77
consistente com a hipótese que suporta o método científico, segundo a qual existem
coisas reais. Isto porque a insatisfação que motiva qualquer inquérito , quando uma
crença é desafiada por uma crença concorrente incompatível, contém uma “ vaga
atinge também, esta hipótese e o método sustentado por ela mantêm-se pelo simples
dúvida. “Esta é, pois, uma hipótese que qualquer mente admite”171 e o impulso social
não a põe em causa. Este ponto é reforçado pela terceira razão avançada: “toda a
científica teve os mais espantosos triunfos no que diz respeito ao estabelecimento das
opiniões.”173 Estas são, para Peirce, as razões para que não haja qualquer “dúvida
viva” acerca do método ou da hipótese que o sustenta – e sem uma “dúvida viva”
estamos num estado de “indubitabilidade prática” que nos permite prosseguir, até ao
método científico distingue-se ainda por ser o único com carácter normativo : “este é
o único dos quatro métodos que fornece uma distinção entre o certo e o errado”174 e é
assim o único que leva a sério a questão lógica, a questão da validade, e para o qual o
169
C.P.5.384.
170
C.P.5.384.
171
C.P.5.384.
172
C.P.5.384.
173
C.P.5.384.
78
critério não é uma estrita eficácia prática ou a satisfação subjectiva, mas a verdade.
Para o método da tenacidade, tudo é necessário desde que afirmado como tal. O
método da autoridade tem como único critério “aquilo que o Estado pensa”. No
teste para determinar se estou realmente a seguir o método não é um apelo imediato
aos meus sentimentos e propósitos, mas, pelo contrário, implica ele próprio a
aplicação do método.”175
Esta irrupção no texto da questão da verdade, depois de ter sido descartada como
normativa acerca da superioridade do método científico”. Ou seja, Peirce não põe já,
174
C.P.5.385.
175
C.P.5.385.
176
Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981 pp35-
41.
79
diz ainda Skagestad, que “no curto prazo, então, não devemos ter qualquer esperança
numa crença estável e devemos estar prontos a aceitar qualquer quantidade de dúvida
177
e incertiza como meios para uma estabilidade de longo prazo.” A superioridade
aquilo que o texto pretenda esclarecer, mais do que uma eventual radicação
dos seus escritos, Peirce insiste em que nós não podemos especificar o objectivo ds
nossos inquéritos simplemente como ‘a verdade’, Em 1877, ele chama a atenção para
isto ao afirmar que, com efeito, quando acreditamos em alguma coisa, acreditamos
que é verdadeira. O conselho ‘acredita apenas naquilo que penses ser verdadeiro’ é
vazio; e o conselho ‘acredita apenas no que for verdadeiro’ não pode ser seguido. Ao
especificar o objectivo que controla os nossos inquéritos, Peirce quer uma noção que
seja suficientemente substantiva para fornecer um critério que possa ser usado para
177
Id., p.40.
178
cf. Id.,p.41, sobre a insuficiência do evolucionismo darwinista para Peirce.
179
“Throughout his writings, Peirce insists that we cannot specify the aim of our inquiries
simply as ‘the truth’. In 1877 he makes this point by noting, in effect, that whatever we
believe, we believe to be true. The advice ‘believe only what you think to be true’ is empty;
and the advice ‘believe only what is true’ cannot be followed. In specifying the aim that
controls our inquiries, Peirce wants a notion that is sufficiently substantive to provide a
criterion to be used in selecting beliefs or selecting guiding principles. The elucidation of
‘reality’ will provide a notion that meets this condition.” Hookway, C., Peirce,London,
Routledge, 1985, p.44—45.
80
no final do texto, Peirce retoma uma apreciação dos vários métodos, desta vez
chamando a atenção para as vantagens dos três primeiros sobre o método científico.
externa e interna e conduz até à sugestão de uma leitura “esotérica” da história das
uma sombra de dúvida prima facie cai sobre cada proposição considerada essencial
para a segurança da sociedade”183. Mas, dos três, aquele que Peirce mais admira é o
Esta revisão das vantagens de cada método serve para chamar a atenção para a
decisão por cada um deles e o seu critério : a finalidade. Aquilo que se deseja é fixar
crenças; os três métodos não científicos permitem essa fixação, mas apenas no curto
prazo ; para uma fixação mais estável, exige-se não a simples eficácia ou satisfação,
mas que as opiniões coincidam com os factos. Ora, este é o ideal ou finalidade do
180
C.P.5.386.
181
Uma forma de actividade mental abordada principalmente no texto “A Neglected
Argument for the Reality of God” (C.P.6.452-493)
182
C.P.5.386.
183
“Thus the greatest intelectual benefactors of mankind have never dared, and dare not
now, to utter the whole of their thought; and thus a shade of prima facie doubt is cast upon
every proposition which is considered essential to the security of society” (C.P.5.386).
81
método científico, porque é o único que permite este resultado, ou cujo pressuposto
O texto seguinte desta série, “Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (C.P.
como ver nas nossas ideias acerca das coisas reflexos de uma actividade de
permite obter conhecimento. Desde logo, pois, a discussão da definição será instalada
que se pretende científico, que foram sendo estabelecidas nos textos anteriores
apresentados.
Não é por acaso que a discussão da clareza das nossas ideias começa com uma
184
C.P.5.386.
185
O título original deste artigo é “How to Make Our Ideas Clear”.
82
metodológico reflecte-se nos defeitos dos critérios da clareza e distinção. Uma ideia
clara, de acordo com o que foi estabelecido por Descartes, define-se como uma ideia
que é de tal modo apreendida que será reconhecida onde quer que deparemos com ela
e de tal forma que não se confunde com nenhuma outra. Isto implicaria uma tal
decisão e fortaleza de espírito, uma inteligência de tal modo capaz de se elevar acima
encontrar neste mundo.”186 E, mais ainda, este é afinal um critério que apenas
sem hesitação, não merece o nome de clareza, já que não é senão um sentimento
subjectivo de domínio que não oferece garantias de sustentação. Podemos muito bem
seguros.
Este é um critério que, porque particular, individual, subjectivo, não nos garante
nada; não oferece meios para a sua validação. E tanto assim é que um segundo
critério lhe é acrescentado como suplementação. Para além de clara, uma boa ideia,
uma na qual a nossa actividade mental possa encontrar um bom fundamento, deve ser
distinta. Isto significa que uma ideia não deve conter nada que não seja claro. Atingir
a distinção de uma ideia consiste, assim, em analisar os seus conteúdos e dar dela
uma definição precisa em termos abstractos. Estes critérios remetem um para o outro
186
C.P.5.389.
83
e deixam-nos num plano de análise lógica abstracta187 que não autoriza qualquer
humana, não reflectiu sobre a distinção entre uma ideia parecer clara e sê-lo
evidentes é algo que, seja lógico ou não, não conseguimos evitar fazer.”188 É com
dar origem, a não ser que seja alimentado com factos da observação.”189 Os critérios
cartesianos remetem-nos, quando muito, para uma prática analítica que não responde
187
Para além de alimentar confusões como as que enredaram a ontologia clássica sintetizada
por Wolf e já denunciadas por Kant na Crítica da Razão Pura a propósito do argumento
ontológico.
188
C.P.5.392.
189
C.P.5.392.
84
meio de atingir um terceiro grau de clareza das nossas ideias que dê conta de um
problema que essa circunstância levantou e que nos permite saber como agir. De
facto, e esta é uma das bases do pragmatismo, a noção de crença define-se como
“aquilo a partir do qual um homem está preparado para agir.” Aquilo a que
interior mental onde as ideias aparecem e são vistas) e a sua substituição por imagens
190
C.P.5.392.
191
C.P.5.394.
85
também, dada a sua aplicação, tem três características :1) é algo de que temos
modos de acção a que dão origem.”192 Passa-se, assim, de critérios baseados nas
suas consequências.
caracteriza-se por ser uma base de expectativas. Ter uma ideia equivale à enunciação
temos , então, apenas que determinar que hábitos produz, já que aquilo que uma
coisa significa é simplesmente o hábito que ela implica. (…) Assim, chegamos àquilo
192
“The essence of belief is the establishment of a habit; and different beliefs are
distinguished by the different modes of action to which they give rise.” (C.P.5.398)
86
ideias equivale, assim, ao hábito que delas decorre, e o hábito é uma disposição para
agir, não apenas sob circunstâncias prováveis, mas sob todas as circunstâncias
possíveis. Não há qualquer restrição a uma observação de facto, sendo que o critério
Uma ideia deve ser verificável para poder vir a ter um sentido determinado;
puramente subjectiva: “A nossa ideia seja do que for é a nossa ideia dos seus efeitos
confundimos uma simples sensação que acompanha o pensamento com uma parte do
que o objecto da nossa concepção tem, então, a nossa concepção desses efeitos é a
totalidade da nossa concepção do objecto.”195 Esta é uma máxima que, dado o seu
193
“To develop its meaning we have, therefore, simply to determine what habit it produces,
for what a thing means is simply the habit it involves. (…) Thus we come down to what is
tangible and conceivably practical, as the root of every real distinction of thought(…); and
there is no distinction of meaning so fine as to consist in anything but a possible difference
of practice.” (C.P.5.400)
194
“Our idea of anything is our idea of its sensible effects; and if we fancy we have any
other we deceive ourselves and mistake a mere sensation accompanying the thought for a
part of the thought itself.” (C.P.5.401)
195
“Consider what effects, that might conceivably have practical bearings,we conceive the
object of our conception to have, then, our conception of these effects is the whole of our
conception of the object.” (C.P.5.402)
87
do seu comportamento e dos seus efeitos sobre o nosso, uma sua definição196. Nem
temos outro modo de fazer sentido que não seja estabelecer um regime de
teoria da realidade e do seu realismo. Este exemplo é, para além disto, interessante
serve para esclarecer “palavras difíceis” para além de uma evidência subjectiva, deve
196
O que certamente se relaciona com a exclusividade concedida classicamente à forma
proposicional ‘s é p’ ,denunciada por Peirce e que o levou a fundar um ramo vital da lógica
contemporânea, a lógica dos relativos.
88
Peirce começa por sujeitar o conceito aos graus de clareza expostos. Para o
usa com perfeita confiança, nunca sequer sonhando que não o compreende.”197 Já o
segundo grau de clareza parece ser menos evidente. Como dar uma definição
são independentes do que seja quem for possa pnsar que elas são.”198 Apliquemos a
desta ideia. Como qualquer outra qualidade, a realidade deverá consistir nos efeitos
sensíveis peculiares que as coisas ditas reais produzem. O único efeito que as coisas
reais têm é causar crença, já que todas as sensações que elas excitam emergem na
consciência sob a forma de crenças. A questão é, pois, saber como é que a crença
verdadeira (ou crença no real) se distingue da crença falsa (ou crença na ficção). As
estabelecer opinião ou crença. Existe, assim, uma associação entre real e verdadeiro,
crenças não são determinadas por nada de humano, mas por uma permanência
197
C.P.5.405.
198
C.P.5.405.
89
externa, por algo sobre o qual o nosso pensamento não tem qualquer efeito. O critério
desta exterioridade, aquilo que faz com que não se confunda com a mera alucinação
conclusão. “A opinião que está destinada a ser finalmente objecto de acordo por parte
de todos aqueles que investigam, é aquilo que queremos dizer com a verdade, e o
Na medida em que agem sobre nós e nos constrangem, as coisas são reais, mas o que
determinam o nosso modo de acção futuro e que são corrigíveis, aperfeiçoáveis pela
subsequente interacção com as coisas que levanta novas dúvidas e suscita novas
crenças. Das coisas não apreendemos intuitivamente uma essência mas formamos
encontra-se no futuro, quando nos for dado ter uma opinião verdadeira.
199
“The opinion which is fated to be ultimately agreed to by all who investigate, is what we
mean by the truth, and the object represented in this true opinion is the real.” (C.P.5.407) O
termo “comunidade” éaqui substituído pela expressão “todos aqueles que investigam”.
90
texto que os editores dos Collected Papers intitularam “Three Logical Sentiments”
“comunidade ilimitada”200; porque nele se antecipam razões para a cisão entre teoria
estabelece mais uma vez uma relação entre lógica e ética que redundará na concepção
comum crítico.
sendo que o “facto real” que lhe corresponde, como tinha sido estabelecido em
C.P.2.650, é que um dado modo de inferência por vezes mostra ter sucesso e outras
vezes não, e isto num ratio em última instância fixo. Assim sendo, só faz sentido
200
C.P. 2.654.
91
de um único caso, como o exemplo dos baralhos de cartas mostra201. Mas este
exemplo mostra também que essa decisão racional não acarreta qualquer tipo de
necessidade e que a razão é não tem qualquer valor no que diz respeito aos casos
isolados.
C.P.2.650, como “a proporção dos casos em que traz consigo a verdade”. O problema
está em que o número de inferências prováveis que um indivíduo faz em toda a sua
vida é finito “e ele não pode ter a certeza absoluta de que o resultado médio irá estar
isolada: sem uma certeza de que não irá falhar. A mortalidade dos indivíduos faz
com que o número das suas inferências seja finito e, consequentemente, que o seu
resultado médio seja incerto. Como, então, confiar na razão e na sua capacidade
levados a isto; que a logicalidade inexoravelmente exige que os nossos interesses não
sejam limitados. Eles não devem limitar-se ao nosso próprio destino mas devem
abarcar toda a comunidade. E esta comunidade, por sua vez, não deve ser limitada,
mas deve estender-se a todas as raças de seres com os quais possamos entrar numa
201
C.P.2.652.
202
C.P.2.653.
92
inferências, só satisfeita com um sujeito ele próprio indefinido ou ilimitado que deve
alcançar, ainda que de forma vaga, “para além desta época geológica, para além de
resultado das inferências prováveis e é neste sentido ilógico, na medida em que não
dos indivíduos. “Quem não sacrifique a sua própria alma para salvar o mundo é,
203
“It seems to me that we are driven to this, that logicality inexorably requires that our
interests shall not be limited. They must not stop at our own fate, but must embrace the
whole community. This community, again, must not be limited, but must extend to all races
of beings with whom we can come into immediate or mediate intellectual relation.”
(C.P.2.654)
93
sacrifício, mas algo de bastante mais corrente e atestado: “que ele seja capaz de
do homem que o tiver, e deve consequentemente ver as suas próprias como válidas
apenas na medida em que seriam aceites pelo nosso herói. Na medida em que ele
referir as suas inferências a esse padrão, ele conseguirá identificar-se com uma tal
suficientemente atingível”.
raça intelectual”, existirá para sempre, é por Peirce identificado com a “esperança ou
desejo calmo e alegre”, de que a comunidade possa durar para lá de qualquer data
assinalável.
204
“He who would not sacrifice his own soul to save the whole world is, as it seems to me,
illogical in all his inferences, collectively. Logic is rooted in the social principle.”
(C.P.2.654)
205
“(…)that he should recognize the possibility of it, should perceive that only that man’s
inferences who has it are really logical, and should consequently regard his own as being
only so far valid as they would be accepted by the hero. So far as he thus refers his
inferences to that standard, he becomes identified with such a mind” (C.P.2.654).
94
sentimentos lógicos são aproximados por Peirce aos dotes espirituais afirmados pela
O texto termina, então, tornando mais explícito o requisito último da lógica que
inferências indefinidamente grande, que só pode ser levado a cabo por uma
indefinida que continuará para sempre a investigar a realidade : é esta a base ética da
lógica. Fumagalli208 fala até de uma “redução social” da lógica: através de uma
206
C.P.2.655.
207
cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles S. Peirce, Chicago, University
of Chicago Press, 1963, p.90-91.
208
Fumagalli, A., Il Reale nel Linguaggio, Milão, Pub. Universitá Cattolica, 1995, p.125.
95
5.CONCLUSÃO
fazendo dele uma das actividades de inquérito através das quais um organismo tenta
adaptação, é uma questão que exige uma reflexão sobre as relações entre a teoria e a
abordado no capítulo seguinte deste trabalho, mas o que foi dito neste permite desde
proposta no artigo “Como Tornar as Nossas Ideias Claras”, permite aliás considerar
96
Assim, a relação entre lógica e ética mais uma vez afirmada no terceiro texto
da série abordada neste capítulo, não significa uma submissão da teoria à prática.
optimismo epistemológico é uma esperança. Este apelo exige, por sua vez, a recusa
que falta esclarecer é o modo como este apelo ao sentimento supera o naturalismo de
cepticismo.
97
1.INTRODUÇÃO
título genérico “Reasoning and the Logic of Things”, “O Raciocínio e a Lógica das
Coisas”210. Publicadas integralmente pela primeira vez mais de 100 anos depois da
sua vinda a público, continuam o tema nuclear do pensamento de Peirce: uma teoria
Trata-se do tema das relações entre teoria e prática, que permite esclarecer algumas
209
Para as circunstâncias deste convite cf. Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things,
Ketner, K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard University Presss, 1992, pp.8-37.
210
Abandonaremos os Collected Papers no que diz respeito a estes textos, porque aí
aparecem apenas partes truncadas da primeira das conferências no vol. 1 sob o título
“Vitally Important Topics” - cf. Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things, Ketner,
K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard University Presss, 1992, pp.25-30. para a origem deste
98
acerca do modo como Peirce terá integrado o evolucionismo no seu pensamento. Este
tema leva-nos naturalmente à teoria peirceana da hipótese, uma vez que o problema
Pressuposta nesta concepção da hipótese está uma teoria das relações entre a razão e
o instinto, onde Peirce irá buscar razões para sustentar o seu optimismo
2.TEORIA E PRÁTICA
título - e também outros extractos em C.P. 6.1-5, 185-213, 214-221, 222-237, 7.468-517.
Usaremos então e edição “reconstruída” de Kenneth Laine Ketner.
99
como hábito de acção, a partir da qual se chegou a uma consideração das virtudes do
método científico, que advêm de uma posição realista que incorpora o veredicto da
experiência. O método científico é o único dos métodos avaliados por Peirce que não
permite que a dúvida passe das conclusões para o próprio método e essa sua
resistência à dúvida decorre desde logo do facto de ser o único método que admite o
certo e o errado211 - “é possível tanto o mau como o bom raciocínio; e este facto é o
fundamento do lado prático da lógica.” Ainda, como foi dito, nestes textos faz-se
uma estreita associação entre lógica e ética, reforçada por uma nota de 1903
questão que se põe, pois, é a de saber o que entender por estas articulações: se em
211
cf. C.P.5.385.
212
C.P. 5.376 n2.
213
cf. Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981,
p.188: “A ciência é o fruto do instinto temperado pela virtude.”
214
Esta é uma questâo tanto mais pertinente quanto a glorificação da ciência no século XIX
permitiu uma série de iniciativas públicas de moralidade duvidosa cf. A recensão que Peirce
faz de Karl Pearson contra as implicações do darwinismo social (C.P.8.132-156). Skagestad
nota, aliás, que mais do que contra os cépticos Peirce quer defender a ciência dos seus
100
Se, de algum modo, o fosso kantiano entre Razão Pura e Razão Prática se resolve
esta questão começando por descrever dois modos de conceber a relação entre teoria
investigação. Assim, “os gregos esperam que a filosofia afectasse a vida (..)
que poderia autorizar esta relação entre a filosofia e a prática seria o da utilidade.
Afinal, a própria descrição do inquérito como uma luta para sair do estado de dúvida
e atingir a crença faz pensar no valor vital das actividades cognitivas, em que o
alegados amigos. Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University
Press, 1981, p.45.
215
“The Greeks expected philosophy to affect life (...) forthwith in the person and soul of
the philosopher himself rendering him different from ordinary men in his views of right
conduct.” (RLT p.106)
216
RLT p.107.
217
RLT p.107.
101
que está a investigar”219. Repare-se que a posição de Peirce não consiste em negar à
científicos. Antes, o que está aqui em causa é saber, do ponto de vista da investigação
com a utilidade pode permitir fazer “muito pela vida humana”220 mas a mesma
aplicações práticas, não apenas obstruirá o avanço da ciência pura, mas, o que é
infinitamente pior, ele porá em perigo a sua própria integridade moral e a dos seus
uma separação entre ética e investigação mas parece até reforçar a relação estreita
entre ambos. Há que ver, então, o que significa a cisão entre teoria e prática e as
pertinente quanto enquanto ciência dos métodos lida com a validade da teoria, com
218
RLTp.107.
219
RLTp.107.
220
RLTp.107.
102
aquilo precisamente que nos poderia fazer contar com ela para orientação da prática,
Poderíamos, assim, esperar dela garantias para uma boa relação entre teoria e prática.
reveste é desfeita por Peirce ao afirmar que, se considerarmos dois tipos de questões
práticas, “assuntos correntes” e “grandes crises”, nenhuma delas exige essa mesma
teoria, por mais absolutamente essencial que seja em metafísica. Na prática, aquilo
com que podemos contar não é nem a razão individual, impotente ou sem segurança
pensar. Aquilo com que podemos contar na prática é antes o sentimento ou o instinto.
As razões para isto não se prendem com qualquer cepticismo quanto aos poderes da
razão, como é o caso em Hume, para quem também as paixões ocupam um lugar
se faz na linha de uma argumentação que visa pôr em causa a competência da razão
para dar conta da experiência e das suas supostas regularidades, afinal apenas hábitos
nas operações racionais, como a indução, impõem uma cisão entre o plano da decisão
teórico das leis que estruturam a experiência, do real tal como será conhecido quando
221
RLTp.107.
222
Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, Book II, Part 3, Sec.3
“On the Influencing Motives of the Will” – “a razão é escrava das paixões”.
103
argumentação epistemológica cruza-se com uma outra, que podemos designar como
superfície, o seu ponto de contacto com aquilo que lhe é exterior.”223 A infalibilidade
um logro, uma ilusão individualista225. Como suporte para esta posição, Peirce
da matéria das nossas hipóteses, e declara distintamente que, se queremos saber mais
223
“It is the instincts, the sentiments, that make the substance of the soul. Cognition is only
its surface, its locus of contact with what is external to it.” (RLT p.110).
224
cf.RLT pp110-111.
225
É, aliás, interessante ver como Peirce desloca a questâo do cepticismo para o plano da
individualidade, a desconfiança nos poderes da razão individual tem toda a razão de ser e a
sua ligação à prática é ainda mais suspeita. O problema é estender este, que é um problema
por assim dizer psicológico, e que parece assim autorizar teorizações como a freudiana, para
o plano da lógica, que estuda precisamente as condições de validade, ou a razão não iludida
/ auto-correctora. Assim, talvez também se possa dizer que o anti-psicologismo de Peirce
não é uma recusa da Psicologia, pelo contrário, trata-se de lhe dar condições de
104
alguma coisa, temos que nos dirigir a outro lado. O segundo depende de
probabilidades. Os únicos casos em que pretende ser de algum valor são aqueles
onde temos uma quantidade infinita de riscos insignificantes, como numa companhia
de seguros. Onde quer que esteja em causa um interesse vital, ele diz claramente
um apelo ao instinto. Assim a razão, apesar de todas as suas belas roupagens, nas
crises vitais reduz-se à sua medula e pede o socorro do instinto”226. Este apelo ao
como última instância. O sentimento, por seu lado, sente-se a si próprio como sendo
como intromissão indevida dos dois domínios que é um eco das críticas feitas ao
recusar levar qualquer princípio prático aos seus limites extremos – incluindo o
individual232 que distancia o indivíduo da sua comunidade: não por acaso, o próprio
prática o sujeito “eu” para adoptar o “nós”. É que as regras vigentes numa dada
experiência de toda a nossa raça.”233 Não são simplesmente naturais ou inatas, mas
228
“Reason, then, appeals to sentiment in the last resort. Sentiment on its side feels itself to
be the man. That is my simple apology for philosofical sentimentalism.” (RLT p.111)
229
RLT p.111.
230
RLT p.111.
231
As palavras que caracterizam uma prática indevidamente orientada pelos “dictates of
reason”, por uma “philosophy of religion” ou “philosophy of ethics” - “sudden acceptance”,
“precipitally change”, “hastily practise” – indicam todas a urgência imediatista da prática,
em contraste com a teoria cujo regime temporal é o longo termo.
232
Esta posição é já atacada na crítica do método da tenacidade efectuada no artigo “A
Fixação da Crença”.
233
RLT p.110.
106
teoria, são “practicamente infalíveis para o indivíduo”234. Não são dadas a priori
diferença é que as exigências da prática dizem respeito ao aqui e agora e há que tratar
Tal como a teoria não pode fornecer à prática directivas revolucionárias - o que
não é sensato - assim também a prática o mais que pode fazer é fornecer sugestões à
teoria. Mas “eu não concederia ao sentimento ou instinto qualquer peso em questões
de tal modo que o investigador está pronto “a deitá-las pela borda fora ao mínimo
como categoria da prática, definida como “a adopção de uma proposição como uma
234
Este é o único tipo de infalibilidade admitido por Peirce, aliás, e repare-se que é para o
indivíduo apenas.
235
Para Peirce, já a percepção funciona à imagem da inferência.
236
cf. Diferenças entre crenças práticas e teóricas já enunciadas em “A Fixação da Crença”.
237
RLT p.112.
107
possessão definitiva” ou “a crença efectiva como disposição para agir de acordo com
“crença” e das expressões como “prático” poderia ter causado; ou, se quisermos
238
RLT p.112.
239
RLT p.112.
240
RLT p.112.
241
RLT p.112.
242
Pode, aliás, ver-se nesta cisão a tomada de consciência da impotência da razão em
fornecer uma Ética à imagem da ciência.cf Williams,B., Morality, Cambridge, Cambridge
University Press, 1993, pp.55-61.
108
prática.
enquanto ciência “do fim e objectivo da vida”. Só mais tarde, enquanto ciência
proposta por Peirce, agora como ciência dos fins da razão, isto é, operada já a cisão
Não se irá tratar, assim, apenas de uma mudança de lugar na arquitectónica, mas de
duas noções diferentes de ética, uma para a ciência outra para a vida. A função
em todos os seus passos pela teoria da lógica”245 - e esta é por sua vez guiada pela
mostrar que os interesses da prática não devem interferir com a teoria, e vice-versa, e
texto. A filosofia não deve, como segundo Peirce, Hegel e outros no seu século
fizeram abundantemente, ser posta à parte das outras ciências “como se lhe fose
243
RLT p.113.
244
RLT pp.114-117.
245
RLTp.116.
246
RLT p.114.
247
RLT p.117.
109
na resposta à questão “Qual é o resultado geral de todas estas ciências, a que é que
observação da história das ciências mostra como “proposição geral” que cada ciência
orgânico das relações entre os vários níveis : cada um cresce, desenvolve-se, tende
para o seguinte como seu fim. É precisamente este evolucionismo teleológico que
à Lógica que por sua vez “parece destinada a converter-se cada vez mais em
matemática”250, todas as ciências convergem para esse centro que é a ciência das
248
RLT p.117.
249
cf. O preceito bíblico “conhece-se a árvore pelos seus frutos” como inspiração da
máxima pragmática. O critério para o maior grau de clareza é a finalidade.
110
os dois planos: Platão não fez justiça “a todos aqueles que vivem vidas simples, e
que nem sequer pensam em filosofia”251 ao identificar a influência moral que faz o
valor da filosofia com o conhecimento das ideias puras enquanto fim último da vida.
Mas também o interesse prático, por mais vital e útil que seja, não retira o
finalidade, tal como os veados e árvores que comemos e queimamos têm “fins
constatamos é que homens que trabalham em áreas tão remotas entre si como os
Resta saber que relações podem existir entre sentimento e razão, depois de
250
RLT p.120.
251
RLT p.119.
252
RLT p.119.
253
RLT p.120.
254
RLT p.121.
111
podem ser atingidas através da sua superfície.”255 Há uma influência da teoria sobre a
prática mas ela não é imediata, antes se faz por “percolação lenta e gradual”256.
da continuidade como Peirce, tal como era já estranha afinal a passagem dos métodos
sentimento, conhecimento científico e instinto, que diluem a sua oposição sem porem
Para elucidar estas questões teremos, também, que fazer uma prospecção em outros
textos.
255
RLTp.121-122.
256
RLTp.122.
112
experiência258, “o elemento imposto na história das nossas vidas (..) de que somos
constrangidos a tomar consciência através de uma força oculta qu reside num objecto
pudesse continuar tempo suficiente” e que acaba por se impor a todos os outros
desejos, chama Peirce “the Will to Learn”261, a Vontade de Descobrir. Mas esta não é
257
RLT p.163. Sobre a autocorrectividade cf Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science,
Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1987, cap.1; Davis, W.H., Peirce’s
Epistemology, The Hague, Martinus Nijhoff, 1972.cap.3.b.1; e Skagestad,P., The Road of
Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, Cap.6a.
258
Cf RLT pp.169-170.
259
RLT p.170.
260
RLT p.170.
113
crença que tinha sido esboçada nos textos de 1878. Assim também “A primeira coisa
enquanto que aquele que quer aprender “deve estar penetrado por um sentido do
descobrir que consome a alma ]”265, ou seja, é expansiva. Mas esta insatisfação com
Peirce não seja entre cépticos e dogmáticos266, mas entre os dogmáticos e aqueles
261
Certamente até por referência polemizante à “Will to Believe” de William James, tema e
título de uma obra deste publicada em 1897 e que exprime o pragmatismo do qual Peirce se
demarca.
262
The first thing that the Will to Learn supposes is a dissatisfaction with one´s present state
of opinion.” (RLT p.170-1).
263
No contexto de uma crítica à universidade americana.
264
RLT p.171.
265
RLT p.171.
266
Para Peirce talvez possamos dizer que o verdadeiro “inimigo” é, afinal, o dogmatismo,
até porque o cepticismo é uma forma do dogmatismo. Mesmo o ataque à dúvida cartesiana
como uma forma de dar uso metodológico a um cepticismo radical é mais um ataque ao
dogmatismo acrítico que resulta de uma metodologia extremista. Peirce parece até antes não
levar realmente a sério as posições cépticas, num apelo a uma atitude de razoabilidade ou
bom senso: ninguém é realmente céptico, é uma impossibilidade prática desde logo, mas
também teórica. Presumir ou afirmar a impossibilidade do conhecimento é um absurdo, uma
contradição. O cepticismo, afinal, desde que controlado e integrado metodologicamente, é
114
que investigam: estes não põem em causa o edifício do saber humano no seu
conjunto atacando, por exemplo, o seu suposto fundamento – como poderiam sequer
fazer isto sem se anularem enquanto investigadores ? A sua é uma insatisfação com o
conhecimento existente, o que significa que têm que o tomar em consideração ou que
são guiados pela grande regra da lógica que consiste nisto: “ara que uma indução
seja válida, ela deve ter origem numa dúvida definida ou pelo menos numa
interrogação; e o que é uma tal interrogação senão, primeiro, uma impressão de que
esforço – que implica uma disposição para trabalhar – para vermos o que pode
as instâncias; enquanto que se ela não te inspirar, não lhes prestarás atenção.”267 O
que equivale a dizer que a dúvida que motiva a investigação é uma dúvida viva ou
dúvida real e não uma “dúvida fictícia”; a única que pode realmente contribuir para
“a mais rápida elevação do homem àquela condição de animal racional de que ele é a
indispensável. Aliás, o senso comum crítico evidencia uma mistura destas duas posições em
relação ao cepticismo. Talvez até a apreciação que Peirce faz de Hume indique também isto:
apesar de achar que ele defende posições exactamante contrárias às suas, aprecia-o
suficientemente para ser até surpreendente a sua proximidade, como veremos na secção
seguinte.
267
“(…)an induction to be valid must be prompted by a definite doubt or at least an
interrogation; and what is such an interrogation but 1st, a sense that we do not know
something, 2nd, a desire to know it, and 3rd, an effort, - implying a willingness to labor, -
for the sake of seeing how the truth may really be. If that interrogation inspires you, you will
be sure to examine the instances; while if it does not, you will pass them by without
attention.” (RLT p.171-2).
268
RLT p.172. Finalidade, realização de uma potência: os factos são passíveis de
desenvolvimento; são um movimento em direcção a, uma possibilidade de, uma disposição
para; envolvem sempre, pois, uma referência a uma qualquer instância normativa, o ideal
para que se dirigem. Nisto e expressa o empirismo de Peirce, que quer ser fiel ao espírito
115
conhecimento humano é ainda “uma colecção de pedras recolhidas por uma criança
superficial e o seu âmbito é estreito, e isto desde logo, segundo Peirce, devido
conhecimento explica o tipo de relações entre fenómenos que são para os humanos
que forneceram a todos os animais que se nos assemelham uma compreensão virtual
das mentes de outros animais do seu tipo, pelo que são psicólogos aplicados
No quinto dos seis textos de 1878 que constituem as “Ilustrations of the logic of
levantado pela indução, o facto de que “há certas induções que apresentam uma
não são estritamente verdades universais, não podemos simplesmente pensar que são
“adaptação” entre a mente humana e o mundo, por sua vez explicada como resultado
empirista sem sucumbir às suas consequências pessimistas – e tenta fazê-lo através uma
mistura de kantismo regulador, platonismo das formas eternas, e realismo medievalista.
269
RLT p.172.
270
C.P. 6.395-427
271
“(…)there are certain of our inductions which present an aproach to universality so
extraordinary that, even if we are to suppose that they are not strictly universal truths, we
cannot possibly think that they have been reached purely by accident.” (C.P. 6.416)
116
de espaço, tempo e força, surgem na mente humana, como aliás surgem já na mente
em continuidade com esta concepção estratégica. Mas Peirce tem algumas reservas
“não parece ser suficiente para dar conta da extraordinária precisão com que estas
concepções se aplicam aos fenómenos da natureza, e é provável que haja aqui ainda
Mas ainda antes, num texto da “Grand Logic” de 1893, intitulado “Association”275, a
instintiva, em parte resultado da experiência, e que ainda que possa conter muitos
erros, isto é, a sua eficácia não é garantia da sua verdade, tem uma autoridade prática:
seria ocioso duvidar da sua verdade prática, e esta verdade prática deve sem dúvida
ser referida à sua eficácia enquanto estratégia adaptativa. Já num outro texto, este de
272
cf. C.P. 6.417-418.
273
C.P. 6.416.
274
C.P.6.418.
275
C.P. 7.388-467.
117
conhecimento humano, até aos mais elevados vôos da ciência, não é senão o
para conjecturar correctamente.”279 De tal modo, que “até agora o homem não
conseguiu atingir qualquer conhecimento que não seja, num sentido lato, ou
nunca o conseguirá”.280
dúvida hipóteses, mas que, do ponto de vista da prática, são perfeitamente certas.”281
276
Aparece a público em 1883, numa obra colectiva editada por Peirce com trabalhos dos
seus alunos de Lógica em Johns Hopkins; pretende ser incluido na obra projectada de 1893
“Search for a Method”.
277
C.P. 2.754.
278
C.P. 2.754.
279
C.P. 2.753.
280
C.P. 2.753.
281
RLT p.176.
118
Mais uma vez, há que examinar as diferentes exigências da teoria e da prática. Tendo
como finalidade aprender a lição que o universo tem para lhe ensinar, a ciência
medida em que busca a explicação dos factos, a ciência não pode limitar-se a uma
simpatia interna com a natureza, do seu instinto”282 Esta é uma afirmação bastante
como uma necessidade, e justificado até em nome de uma simpatia interna com a
texto uma das suas metáforas mais sugestivas : “Mas na medida em que o faz, o
chão sólido dos factos foge debaixo dos seus pés. Sente a partir desse momento que a
sua posição é apenas provisória. Deve então encontrar confirmações ou então mudar
o seu ponto de apoio. Mesmo que encontre confirmações, elas são apenas parciais.
Ainda não está assente na base firme dos factos. Caminha sobre um pântano, e pode
apenas dizer que, de momento, este chão parece firme. Aqui ficarei até que comece a
282
RLTp.176.
283
RLT p.112.
284
“But insofar as it does this, the solid ground of fact fails it. It feels from that moment that
its position is only provisional. It must then find confirmations or else shift its footing. Even
if it does find confirmations, they are only partial. It still is not standing upon the bedrock of
119
mas também aquilo que lhe confere o seu dinamismo: quando o chão debaixo dos
apoio mais firme. Os factos são para a ciência aquilo que promete uma geografia
segundo Peirce, tudo menos reverencial: os factos , as forças arbitrárias com as quais
temos que contar e que temos de enfrentar, são os obstáculos que ela tem que
pleno confronto, em plena luta pela sobrevivência, daí o seu carácter urgente, a sua
necessidade de algo em que se basear, a verdade de facto ou, pelo menos, uma
não questões de crença. O seu estatuto de verdades estabelecidas, como tinha já sido
fact. It is walking upon a bog, and can only say, this ground seems to hold for the present.
Here I will stay till it begins to give way.”(RLTp.176-177)
285
RLT p.177.
286
“As practice apprehends it, the conclusion no longer rests upon mere retroduction, it is
inductively supported. For a large sample has now been drawn from the entire collection of
occasions in which the theory comes into comparison with fact, and an overwhelming
proportion, in fact, all the cases that have presented themselves, have been found to bear
out the theory. And so, says Practice, I can safely presume that so it will be with the great
120
verdade. Antes apenas mostra que há dois tipos de sentido para a expressão “tomar
por verdadeiro”, duas atitudes perante a verdade, dois interesses ou duas finalidades:
“uma é o tomar por verdadeiro prático, o qual apenas tem direito ao nome de Crença,
da razão: “para sermos capazes de descobrir temos que desejar descobrir e ao desejar
isto não ficarmos satisfeitos com aquilo que já nos inclinamos a pensar”289 ; e cujo
corolário, “que merece por si mesmo ser inscrito em cada parede da cidade da
a única ofensa imperdoável no raciocínio, o erro no seu sentido mais forte, a única
bulk of the cases in which I shall go upon the theory, especially as they will closely
resemble those which have been well tried.” (RLTp.176).
287
RLT p.178.
288
RLTp.178.
289
RLTp.178.Esta insistência no desejo será de inspiração platónica? O eros e a palavra eros
é explicitamente utilizada na primeira conferência. E exprime a recusa de Peirce em reduzir
a animação dos indivíduos à estrita auto conservação hobbesiana. E, curiosamente, é o
desejo que controla o instinto e o faz transfigurar em razão regulada por um ideal, em razão
teórica como autodeliberação. Da auto-conservação à autodeliberação assistimos ao
nascimento do moral a partir do fáctico, do dever ser a partir do ser .
290
RLT p.178.
291
“Do Not Block the Way of Inquiry” (RLT p.178).
121
metafísica tem feito ao longo dos tempos292; e é esta mais uma razão para que se
aproxime da ciência.
Uma abordagem das relações entre Peirce e Hume daria por si só uma outra
dissertação, autónoma e longa. São explícitos por parte de Peirce os sinais de uma
marcada oposição, “tudo o que Hume atacou eu defendo”, e Hume seria o filósofo “a
letras, e uma das principais características do seu estilo filosófico é que ele
292
Os quatro bloqueios são: 1) “absolute assertion” 2) “maintaining that this, that, and the
other never can be known” 3) “maintaining that this, that, or the otherelement of science is
basic, ultimate, independent of aught else and utterly inexplicable” 4) “the holding that this
or that law or truth has found its last and perfect formulation” (RLT pp.179-180).
293 C.P. 6.605. Ao mesmo tempo, as referências a Hume são geralmente acompanhadas de
observações senão lisonjeiras, pelo menos expressando admiração: “From Kant I was led to
the admiring study of Locke, Berkeley and Hume” (C.P. 1.506 – 1905); “Whatever work he
read he did not understand; yet in a confused and untenable form, he put forth ideas of his
own of considerable value.” (C.P. 7.171 –: 1901); “the argument which was stated with such
consumate skill by Hume” (ibid.); “Hume, whose cogtations led up to the recognition of
Association as the one law of mind, most judiciously remarks (…) That phrase ‘a gentle
force which commonly prevails’ describes the phenomenon to perfection.” (C.P. 7.390 –
1893); “Hume in his Dialogues Concerning Natural Religion justly points out(…)” (C.P.
6.494 – 1906); “As close a reasoner as Hume was(…)” (C.P. 6.542); “As if he were a
Hume” (C.P.8.244).
122
ideal científico, que deve ser também o da filosofia. “Hume, que sacrificou a melhor
parte do seu sistema para tornar populares os seus Inquiries”295 não seria certamente
o ideal do filósofo para alguém que, como Peirce, sacrifica o estilo pela técnica, a
referido no capítulo 1, tem a ver com o facto de Hume ser um dos exemplares mais
Peirce são tanto contra Descartes como contra Hume e a tradição empirista britânica.
E são-no num sentido forte e não apenas derivado, na medida em que, como diz Peter
294
“Hume was a literary man, and one of the characteristics of his philosophical style was
that he was continually endeavouring to clothe philosophical ideas in fresh and modern
phraseology.” (C.P. 6.541)
295
C.P. 6.513.
296
C.P. 4.50 (1893). Cf. também C.P. 4.33 e CFI: o ataque à sensação como intuição ou
“first impression of sense”.
297
Skagestad,P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press 1981, p.18.
123
psicologia filosófica de Hume. Assim, as associações entre ideias são, para Peirce,
todas as formas de acção mental ao raciocínio válido. Isto converge com a intenção
lógico, este sendo visto como uma extensão ilegítima daquele no que respeita ao
cepticismo. Aquilo que para Peirce está errado no modelo fundacionalista em geral e
uma contradição. Uma proposição como “que três vezes cinco é igual à metade de
trinta”299 expressa relações entre ideias, pode “descobrir-se pela simples operação do
há-de levantar amanhã”301, cuja negação não implica uma contradição e “é concebido
pela mente com a mesma facilidade e nitidez, como se fosse idêntico à realidade”, é
298
C.P.5.307.
299
Hume,D., Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 1985 p.31
300
ibid. p.31
124
uma questão de facto e não deriva de raciocínios a priori mas antes “inteiramente da
constantemente uns com os outros”302. Esta distinção desemboca então naquela entre
segundas “não são indagadas da mesma maneira, nem a nossa evidência da sua
verdade, por maior que seja, é de natureza semelhante à precedente”, a sua origem é a
natureza da prova que nos assegura acerca de qualquer existência real e questão de
facto, para além do testemunho presente dos nossos sentidos ou dos registos da nossa
memória”, ou seja, o que nos permite passar da experiência passada ou presente para
301
ibid. p.32
302
ibid. p.33
303
ibid. p.31
304
A sua problematicidade tem antes a ver com o seu estatuto numa filosofia empirista , na
medida em que acabam por representar uma concessão ao racionalismo ou uma admissão de
inatismo; de qualquer modo, estabelecem um golfo entre razão e experiência que se revela
difícil de preencher, e que acaba por dar o mote a toda a filosofia moderna, com expressão
significativa na Crítica da Razão Pura de Kant.
305
Hume, D., Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 1985, p.31.
125
o que nos permite passar da experiência dos casos para o conhecimento da lei que os
rege. Dito de outro modo, Hume identifica a indução como a operação lógica
lógica com a qual pretendemos lidar com a experiência e retirar dela conhecimento
Hume, e isso é claro no Treatise, não há qualquer aproximação à verdade, por mais
conhecimento está sujeito ao erro, pelo que a probabilidade recai sobre o próprio
306
cf. Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.175, onde
distingue entre três tipos de evidência: conhecimento, provas, probabilidade.
126
juízo que afirma a probabilidade de algo e assim sucessivamente, “até que finalmente
não sobre nada da probabilidade original, ainda que tenhamos suposto ser muito
grande, e ainda que seja pequena a sua diminuição a cada nova incerteza.”307.
A superação deste quadro por Peirce será objecto da secção seguinte deste
tão marcada, e uma rejeição tão veemente, de Peirce em relação a Hume, da sua
aquele que nos ocupa neste momento, onde se aproximam, mas para se afastarem
logo a seguir, e esse ponto é o das relações entre razão e instinto. O próprio Peirce
reconhece esta coincidência de pontos de vista num texto de 1906: “A quarte parte do
ridícula como um homem se pode enrolar em dúvidas de papel tolas quando decide
atirar o senso comum, i. e., o instinto, pela borda fora, e ser perfeitamente
307
“(…)till at last there remain nothing of the original probability, however great we may
suppose it to have been, and however small the diminution by every new uncertainty.”
Hume, D., A Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.233. cf. Peirce C.P.
1.383.
308
C.P. 6.537.
309
“The fourth part of the first book of Hume´s Treatise of Human Nature affords strong
argument for the correctness of my view, that reason is a mere succedaneum to be used
where instinct is wanting, by exhibiting the intensely ridiculous way in which a man winds
127
acções externas dos animais e aquelas que nós próprios praticamos, que nos leva a
julgar que as suas acções internas são igualmente semelhantes às nossas; e o mesmo
princípio de raciocínio levado um passo mais adiante far-nos-á concluir que, sendo
as nossas acções internas semelhantes umas às outras, as causas de que elas provêm
também devem ser semelhantes. Quando, pois, avançamos uma qualquer hipótese
para explicar uma operação mental comum aos homens e aos animais, devemos
aplicar a mesma hipótese a uns e outros; e como toda a hipótese verdadeira suportará
esta prova, do mesmo modo posso atrever-me a afirmar que nenhuma hipótese falsa
será alguma vez capaz de resistir-lhe.”310 Assim, as acções dos animais “afirmo que
têm origem num raciocínio que não é em si mesmo diferente, nem fundado em
caso dos humanos, também os animais não percebem directamente conexões reais
himself up in silly paper doubts if he undertakes to throw common sense, i.e., instinct
overboard and be perfectly rational.” (C.P. 6.500)
310
“resemblance of the external actions of animals to those we ourselves perform, that we
judge their internal likewise to resemble ours; and the same principle of reasoning, carry’d
one step farther, will make us conclude that since our internal actions resemble each other,
the causes, from which they are deriv’d, must also be resembling. When any hypothesis,
therefore, is advanc’d to explain a mental operation, which is common to men and beasts,
we must apply the same hypothesis to both; and as every true hypothesis will abide this trial,
so I may venture to affirm, that no false one will ever be able to endure it.” Hume, D., A
Treatise of Human Nature, London, Penguin, 1985, p.226.
128
Hume conclui esta sua secção invertendo o paralelismo com que havia começado: se
há razões para atribuir razão aos animais, há as mesmas razões para atribuir à razão
humana um carácter instintivo que reforça a continuidade entre ambos. Ou, não
estando a razão justificada nas suas relações com a experiência, será talvez afinal
mais sensato ver nas suas operações o reflexo de um instinto adaptativo que de
normativas da sua operatividade dedutiva. “Vendo bem, a razão não é mais do que
um instinto maravilhoso e ininteligível nas nossas almas, que nos conduz ao longo de
uma certa sucessão de ideias e lhes confere qualidades particulares, de acordo com
biológica serve propósitos cépticos ao associar o valor provável dos juízos sobre
“questões de facto” a uma disposição fora do controlo racional. Ou, como diz Peirce,
“se alguma coisa ele prova é que o raciocínio enquanto tal é ipso facto e
311
“I assert they proceed from a reasoning, that is not in itself different, nor founded on
different principles, from that which appears in human nature.”ibid., p.227.
312
“To consider the matter aright, reason is nothing but a wonderful and unintelligible
instinct in our souls, which carries us along a certain train of ideas, and endows them with
particular qualities, according to their particular situations and relations.” ibid., p.228.
129
um beco sem saída, uma estratégia paralizante, mas principalmente é uma estratégia
que não pode sequer ser levada a cabo. Retomando os termos em que o inquérito é
uma proposição que é perfeitamente satisfatória, de tal modo que não somos capazes
de ter em relação a ela a menor dúvida, este facto impede-nos de fazer qualquer
O ponto central que separa Hume de Peirce é, aliás, sugestivamente descrito por este:
dúvidas genuínas . Ele confessa candidamente que elas são satisfatórias para ele
313
C.P. 6.500.
314
C.P. 6.500.
130
mesmo. Mas parece ficar insatisfeito consigo mesmo por estar satisfeito. É fácil ver,
no entanto, que ele dá a si próprio uma palmadinha nas costas, e está muito satisfeito
deliberada317, acaba por encontrar justificação nesta sua origem biológica, e este é
mais um ponto que separa Hume e Peirce no que respeita às relações entre razão e
racionais. A forma como Peirce consegue uma avaliação oposta das relações entre
razão e instinto, onde o tom geral é que o instinto é já razão, e que então uma
separação estrita entre dedução e indução deixa de fazer sentido, passa por uma
o hábito.
315
C.P.6.500.
316
“So that what Hume´s argument would lead him to is that reasoning is ‘illegitimate’
because it´s premisses are perfectly satisfactory não levantam dúvidas genuínas . He
candidly confesses that they are satisfactory to himself. But he seems to be dissatisfied with
himself for being satisfied. It is easy to see, however, that he pats himself on the back, and is
very well satisfied with himself for being so dissatisfied with being satisfied.” (C.P. 6.500)
317
Veja-se a distinção entre logica utens e logica docens em que Peirce insiste ao longo dos
seus textos: esta é uma forma consciente daquela; pensamos bem, podemos é não conhecer
as regras, este conhecimento é posterior à sua utilização, esta não depende daquele, mas
pode beneficiar com ele.
131
Em Hume, o hábito surge para explicar aquilo que a razão por si só não é
capaz de fazer, atingir concepções gerais a partir dos dados da experiência sensível,
isto no âmbito do seu projecto naturalista. Serve de alguma forma para marcar o
de uma tendência instintiva cujo resultado são “ficções”, de que são exemplo a
regularidade que, na medida em que ultrapassa as instâncias cuja observação lhe terá
dado origem, se torna problemática ou, pelo menos, é vista como irracional, como
algo em relação ao qual o organismo não tem escolha, não sendo uma questão de
pura tendência involuntária, um sentimento que, quando muito, fornece uma razão
não são simples regularidades que se esgotam nas suas actualizações mas são
318
Já nos textos de 1868 Peirce faz uma analogia entre hábito e lei geral; depois, no artigo
sobre a edição de Fraser das obras de Berkeley, tratado no primeiro capítulo deste trabalho,
132
hábito não tem como referência apenas a experiência passada, não é apenas o
como uma lei ou regra geral que passa a governar a sua conduta futura, manifesta-se
como disposição para agir de um certo modo dadas certas circunstâncias. Enquanto
num assunto cognitivo, racional. Os hábitos são uma forma de controlo sobre a
hábito estabelecido é uma crença, esta é um juízo com base no qual iremos agir e
sentido. Por mais indutiva que seja a sua origem, os hábitos não são simplesmente
sentimento constrangente prende-se com o lugar dado à indução como forma por
razão e instinto. A teoria da hipótese em Peirce irá precisamente tentar ser uma
a noção de hábito no sentido de Duns Escoto surge como solução para o estatuto dos
universais; finalmente, desemboca na teoria do sentido contida na máxima pragmática.
319
C.P. 5.400.
133
5. A TEORIA DA HIPÓTESE
Porque é que em Peirce as relações entre a razão e o instinto não nos devem
cepticismo de Hume. Já nos textos de 1868 Peirce a pusera do seguinte modo: “De
acordo com Kant, a questão central da filosofia é ‘Como são possíveis os juízos
sintéticos a priori? Mas antes disto está a questão de saber como são possíveis os
raciocínio sintético. Quando a resposta ao problema geral tiver sido dada, a resposta
imensas. Não é apenas o “universal e necessário” que está em causa, este é um caso
presunção de contacto directo com os objectos vale, nenhuma pura recepção das
320
Cf. C.P.5.268: O fucionamento do organismo é análogo ao funcionamento do silogismo.
321
“According to Kant, the central question of philosophy is ‘How are synthetical
judgements a priori possible?’ But antecedently to this comes the question how synthetical
judgements in general, and still more generally, how synthetical reasoning is possible at all.
When the answer to the general problem has been obtained, the particular one will be
comparatively simple. This is the lock upon the door of philosophy.” (C.P. 5.348).
134
menos algum tipo de conhecimento, originário, fundante, certo, que resulta de uma
apreensão imediata dos objectos por uma faculdade cognitiva especial, a intuição.
nominalista; embora a sua filosofia tivesse ficado mais compacta, mais consistente e
mais forte se o seu autor tivesse adoptado o realismo, o que certamente teria feito se
tivesse lido Escoto.”322 A crença segundo a qual se pode aceder a elementos simples
directo com o não mental através de faculdades misteriosas, Peirce propõe uma
322
“Kant was a nominalist; although his philosophy would have been rendered compacter,
more consistent and stronger if its author had taken up realism, as he certainly would have
done if he had read Scotus.” (C.P. 1.19).
323
“But, in fact, a realist is simply one who knows no more recondite reality than that
which is represented in a true representation. Since, therefore, the word ‘man’ is true of
something, that which ‘man’ means is real. The nominalist must admit that man is truly
aplicable to something; but he believes that there is beneath this a thing in itself, an
incognizable reality. His is the metaphysical figment. Modern nominalists are mostly
135
como analítica, não produzindo nova informação; por seu lado, indução e abdução
por assim dizer, aparente: o simples inventário de factos não conduz, por si só, a um
conhecimento novo, a uma generalização, a não ser como resultado de uma hipótese
processo indutivo em geral e que parece ela própria ser o resultado de uma indução,
uma abdução: “(...) não há, afinal, nada senão a imaginação que possa alguma vez
superficial men, who do not know, as the more thorough Roscellinus and Occam did, that a
reality which has no representation is one which has no relation or quality.” (C.P. 5.312)
324
Tiercelin, C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions, Jacqueline Chambon, 1993. p.55.
136
rigor, a única inferência que realmente produz conhecimento novo, a única sintética
pensava Hume.
com alguma circunstância muito curiosa, que seria explicada se suposéssemos que
ela é um caso de uma determinada regra geral, e com base nisto adoptaríamos essa
325
“(...) there is nothing, after all, nothing but imagination that can ever supply him with an
inkling of the truth. He can stare stupidly at phenomena; but in the absence of imagination
they will not connect themselves together in any rational way.” (C.P. 1.46)
326
“The scientific imagination dreams of explanations and laws.” (C.P. 1.48)
327
“Hypothesis is when we find some very curious circumstance, which would be explained
by the supposition that it was a case of a certain general rule, and there upon adopt that
supposition.” (C.P. 2.624)
328
“the operation of adopting an explanatory hypothesis” (C.P. 5.189)
329
“The surprising fact, C, is observed;
But if A were true, C would be a matter of course,
Hence, there is reason to suspect that A is true.” (C.P. 5.189)
137
desta abordagem “criativa” dos factos ou, dito de outro modo, da sua interpretação
repudiado por Peirce, dependente que está de uma misteriosa capacidade intuitiva de
acesso a “premissas últimas” – “uma premissa que não é ela própria uma
experiência; uma marca da impotência da nossa razão, que não consegue “ver” tudo
damos à hipótese um estatuto mais nobre: é ela afinal a lógica de descoberta que
temos. Como diz Davis, “Hume provocou o extravio de gerações de filósofos por ter
ainda, se virmos a indução como uma variante de dedução, uma espécie de dedução
330
Cf. a descrição do inquérito como passagem da dúvida à crença e que o problemático é
aquilo que desafia uma regularidade esperada, um hábito - e não qualquer coisa: aquilo que
precisa de explicação é a lei.
331
“a premiss not itself a conclusion” (C.P.5.213)
332
Davis, W.H., Peirce’s Epistemology, The Hague, Martinus Nijhoff, 1972. p.34.
138
sugerida por abdução (“se A fosse verdadeiro, C seria algo normal”), e confirmada,
333
“Approximation must be the fabric out of which our philosophy has to be built.” (C.P.
1.404)
334
Eis a estrutura taxonómica da metodologia da ciência segundo Peirce, sistematizada por
Rescher:
“inductive quantitative
methodology induction
of science
qualitative abduction (hypothesis formulation and selection)
induction
retroduction (hypothesis testing and elimination)”
Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame Press,
1987. p.41.
335
“Induction is an argument which sets out from a hypothesis, resulting from a previous
Abduction, and from virtual predictions, drawn by Deduction, of the results of possible
139
apenas, por indução. A generalização vai além dos factos observados, como qualquer
que se põe neste momento é a de como determinar que estamos perante ideias
apropriadas ou, dito de outro modo, como saber que uma hipótese é uma boa
inumerável das que podem surgir perante uma situação problemática? É que, como
diz Rescher, “a amostra conjectural é ilimitada, mas os recursos são escassos e a vida
traços distintivos face a outros conceitos. Mas antes disto há que explicar como é que
um aspecto tanto mais importante, aliás, quanto participa das razões para
experiments, and having performed the experiments, concludes that the hypothesis is true in
the measure in which those predictions are verifiied.” (C.P. 2.96)cf. C.P.6.472 e 5.590-91
336
C.P. 6.604.
337
Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame
Press, 1987, p.42.
338
“Consider what effects, that might conceivably have practical bearings, we conceive the
object of our conception to have. Then, our conception of these effects is the whole of our
conception of the object.” C.P. 5.402
140
hipóteses encarando-as como sendo aquilo que fazemos quando pensamos, quando
1878340 não é simplesmente retórica, como foi já dito. Ela instala o conhecimento
atribuindo-lhe uma espécie de eficácia adaptativa. O tema das relações entre razão e
funcionamento da natureza e que lhe permite seleccionar boas hipóteses. “Em suma,
reprodução devem desde o início ter implicado certas tendências para pensar com
339
C.P. 6.530.
“The Fixation of Belief” (C.P. 5.358-387) e “How to Make Our Ideas Clear” (C.P. 5.388-
340
410).
141
verdade acerca da física, por um lado, e acerca da psicologia, por outro. É de algum
modo mais do que uma mera figura de estilo dizer que a natureza fecunda a mente do
homem com ideias que, quando crescem, se assemelham ao seu pai, a natureza.”341
Essa selecção, claro, este sentido abdutivo com plausibilidade, não tem um carácter
falível.”342 Mas isto não lhe tira capacidade para ter eficácia no inquérito: “A
adequação necessária entre o mundo e as nossas ideias, não nos é dada qualquer
como diz Rescher, a adaptação evolutiva do homem que dá à mente humana uma
alguma tendência para serem verdadeiros; porque foram formados sob a influência
341
“In short, the instincts conducive to assimilation of food, and the instincts conducive to
reproduction, must have involved from the beginning certain tendencies to think truly about
physics, on the one hand, and about psychics, on the other. It is somehow more than a mere
figure of speech to say that nature fecundates the mind of man with ideas which, when those
ideas grow up, will resemble their father, Nature.” (C.P. 5.591). Cf. também C.P. 2.177, C.P.
6.496 e C.P. 8.223.
342
C.P. 5.181.
343
“C.P. 7.220.
344
Rescher, N., Peirce’s Philosophy of Science, Notre Dame, University of Notre Dame
Press, 1987, cap.3.
“Those instincts had some tendency to be true; because they have been formed
345
under the influence of the very laws that we were investigating.” (C.P. 7.508). Cf. também
C.P. 1.81; C.P. 5.522; C.P. 5.604; C.P. 6.476; C.P. 7.220.
142
“Subjacente a todos estes princípios está uma abdução fundamental e primária, uma
hipótese que devemos acolher logo à partida, ainda que possa estar completamente
desprovida de suporte empírico. Essa hipótese diz que os factos em questão admitem
os factos e conceber uma teoria para explicá-los. A sua única justificação é que se
queremos alguma vez compreender as coisas, tem de ser desta maneira.”347 A acção
fazemos parte dessa evolução, a capacidade para tomar hábitos é comum aos homens
e ao mundo.
346
“Underlying all such principles there is a fundamental and primary abduction, a
hypothesis which we must embrace at the outset, however destitute of evidenciary support it
may be. That hypothesis is that the facts in hand admit of rationalization, and of
rationalization by us.” (C.P. 7.219).
347
“All the ideas of science come to it by the way of Abduction. Abduction consists in
studying facts and devising a theory to explain them. Its only justification is that if we are
ever to understand things at all, it must be in that way.” (C.P. 5.145).
143
Começamos este capítulo com a questão das relações entre teoria e prática,
Senso Comum Crítico. De algum modo, esta é uma sistematização daquilo que se
o conhecimento? Como é que o apelo ao instinto não reduz, como parece ser o caso
discutidas pelo próprio Peirce: “Que significado esperam que eu atribua àquela
expressão, uma vez que Filosofia Crítica e Filosofia do Senso Comum, as duas
comum, há crenças não criticáveis contra as quais a investigação esbarra e que têm
por isso que ser admitidas como verdadeiras. Já o filósofo crítico pretende
lugar, o filósofo do senso comum crítico afirma que não apenas existem proposições
convém esclarecer o que entenderá Peirce por indubitável. O seu sentido não será o
intuitiva, ou teríamos que acusar Peirce de inconsistência. Antes indubitável terá que
passagem da dúvida à crença e na distinção entre teoria e prática. Assim, terá que
significar aquela condição das crenças que não podem ser postas em causa, não por
C.P. 1.129 como “aquelas ideias e crenças que a situação do homem absolutamente
348
“What meaning would you have me attach to that phrase, seeing that Critical Philosophy
and the Philosophy of Common Sense, the two rival and opposed ways of answering Hume,
are at internecine war, impacifiable.” (C.P.5.505)
145
lhe impõe.” São estas “crenças originárias” que funcionam como “premissas últimas”
dos nossos raciocínios. Mas este carácter “último” não é contraditório com o anti-
intuicionismo persistente de Peirce: como foi já dito, não têm carácter de certeza
absoluta e nem sequer a sua origem é atribuída a qualquer tipo de apriorismo : “todos
são empíricos. Assim, em C.P. 1.654, Peirce atribui ao senso-comum uma origem na
afirma serem originais, no sentido em que não podemos ir além delas, são
premissas em todos os nossos raciocínios”: “a crítica lógica não pode ir além dos
factos perceptivos, que são os primeiros juízos que fazemos no que respeita aos
349
C.P.5.505.
350
C.P. 2.137.
351
C.P. 5.440.
352
cf. C.P. 5.442.
353
Cf. a teoria da percepção apresentada em C.P. 7.615-636, especialmente C.P. 7.626 para
a diferença entre “percept” e “perceptual judgement”.
354
C.P. 7.198. Isto não é nenhuma concessão ao empirismo de Hume, para o qual a origem
do conhecimento está nas impressões dos sentidos. Trata-se de juízos e não de impressões,
contêm generalidade, e não são intuições, têm um carácter abdutivo.
146
senso comum, crenças que se impõem não a partir da experiência da percepção mas
acríticas. Trata-se de “casos nos quais estamos conscientes de que uma crença foi
determinada por uma outra crença dada, mas não estamos conscientes de que isto
inconsciência do seu “princípio condutor”: também aqui, trata-se de não ser capaz de
possível fazer uma lista das crenças originárias, dos indubitáveis sociais, e que essa
lista teria validade universal. Esta universalidade das proposições indubitáveis seria
355
“All that I can mean by a perceptual judgement is a judgement absolutely forced upon my
acceptance, and that by a process which I am utterly unable to control and consequently am
unable to criticize. Nor can I pretend to absolute certainty about any matter of fact.” (C.P.
5.157).
356
Exs.: incesto( C.P. 5.445); ordem da natureza( C.P. 5.516).
357
C.P: 5.441.
358
cf. C.P. 5.444.
147
Estes podem ser modificados num espaço de tempo muito curto, isto é, são passíveis
indubitável instintiva “surge com a surpresa, que supõe alguma crença prévia, e as
ciência moderna, por exemplo, “colocou-nos num outro mundo; quase tanto como se
modo, esta é até uma condição da sua indubitabilidade, mas também da sua
corrigibilidade, dado que o resultado de tentar tornar precisa uma crença vaga
359
C.P.5.445.
360
C.P.5.512.
361
C.P. 5.513.
362
C.P. 5.511.
148
Ainda assim, há um certo resíduo vago não afectado (C.P. 5.507), não porque não se
intrinsecamente vago, como é o caso, por exemplo, da nossa crença numa ordem na
princípio da contradição não se aplica. Pois nem é falso que um animal (num sentido
vago) é masculino, nem que um animal é feminino.”365 Este carácter vago pertence
comunicação de uma pessoa com outra pode ser inteiramente definida, i,e., não
que cobre afinal todo o campo da nossa actividade mental e social, “a precisão
absoluta é impossível. Muitas outras coisas devem ser vagas, porque nenhuma
de uma outra pessoa.”367 E o que acontece nas nossas comunicações com outros
esquecer que o nosso pensamento decorre como um diálogo.”368 A este carácter vago
363
Aplicando-lhe a máxima pragmática.
364
cf. C.P. 5.507
365
C.P.5.505.
366
C.P. 5.506.
367
C.P. 5.506.
368
C.P. 5.506.
149
fala e aquele que interpreta, que permite um entendimento suficiente entre ambos,
posição atribuir um grande valor à dúvida genuína370. Esta elevada estima pela
dúvida admite a invenção de “um plano para atingir a dúvida, elabora-o em detalhe e
depois põe o plano em prática, embora isto possa envolver um mês inteiro de
trabalho duro, e só depois de ter passado por este exame é que pronunciará uma
associada à dúvida de papel. Por um lado porque o filósofo do senso comum crítico
admite a dubitabilidade de uma proposição indubitável, e que isso pode ser assim
com qualquer uma das suas crenças. Mas ele não pode de facto admitir que isso seja
assim com todas elas. Por outro lado porque, mais uma vez, o carácter indubitável de
uma proposição nada tem a ver com um certeza absoluta ou fundamento teórico,
como sempre foi.”372 Tal como não duvidamos à nossa vontade, também não
369
cf. 5.446 n1: uma antecipação do princípio da caridade.
370
C.P. 5.451.
371
C.P. 5.451.
372
C.P. 5.514.
150
Finalmente, o Senso Comum Crítico não é apenas senso comum mas justifica a
sua pretensão ao criticismo porque “sujeita quatro opiniões a uma crítica rigorosa: a
sua própria; a da escola escocesa; a daqueles que baseiam a sua lógica na metafísica
Desde logo, contra o filósofo crítico, o filósofo do senso comum crítico é aquele que
duvida não quando decide fazê-lo segundo o princípio geral de que nenhuma crença
ficará por criticar, mas inicia a sua investigação “se acontece que ele de facto duvida
da proposição.” (C.P. 5.524). Reconhece, enfim, que a dúvida não é uma capricho da
à nossa vontade certamente não é uma crença. Pois a crença, enquanto dura, é um
hábito forte, e como tal, força o homem a acreditar até que alguma surpresa
interrompa o hábito. A ruptura de uma crença só pode ser devida a uma experiência
nova, seja externa ou interna. Agora, experiência que possamos convocar quando nos
373
C.P. 5.517.
374
C.P.5.452.
375
“(…) a proposition that could be doubted at will is certainly not believed. For belief,
while it lasts, is a strong habit, and as such, forces the man to believe until some surprise
breaks up the habit. The breaking of a belief can only be due to some novel experience,
151
relação com a experiência é antes, como diz Faerna, “el producto biológico, histórico
y cultural de una continuada relación práctica com el entorno”377, o que a faz estar
inscrita tanto no mundo natural como no mundo social e público das comunidades
empíricas, este por sua vez o resultado da evolução própria da espécie humana. O
CONCLUSÃO
fá-lo para denunciar aquilo que, na tradição filosófica, racionalista como empirista,
procura da certeza absoluta e do ponto de partida radical sem cair num pessimismo
acerca do conhecimento, nem numa sua redução naturalista, isto é, sem abandonar
desta modificação é o facto de Peirce ter adoptado um ponto de vista dinâmico acerca
Logo, mais do que saber “onde se funda”, aquilo que realmente importa é saber
153
filosofia científica, o que equivale a torná-la numa ciência de descoberta, dada uma
estado cognitivo que pode ser parcialmente revisto e corrigido, mas não
de acesso privilegiado que lhes permitam justificar as suas pretensões. Não podemos
momento, fazer de conta que não temos as crenças que temos, e qualquer pretensão
contrária arrisca-se a ser uma auto-ilusão acrítica. O pragmatismo surge neste quadro
378
Esta é uma posição que, na epistemologia contemporânea, recebe o nome de holismo (cf.
Metáfora do barco de Neurath retomada por Quine e Davidson).
379
C.P. 5.12.
154
relflexão que tem como finalidade tornar as nossas ideias claras”380 através da
2) não temos poder de intuição; 3) não temos poder de pensar sem signos; 4) não
sujeito e o mundo mas tem uma estrutura inferencial; essa estrutura inferencial
380
C.P. 5.13n.
155
Nos textos de 1877/8 ( “The Fixation of Belief” e “How to Make Our Ideas
como finalidade atingir uma crença estável, isto é, uma crença que resista a
método para atingir uma crença estável, e opta pelo método da ciência. Mais uma
textos anteriores : empírico e normativo. Uma apreciação dos métodos descritos por
Peirce permitirá verificar que a comunidade empírica, tal como o indivíduo isolado,
381
E até na recusa contemporânea da epistemologia, como é o caso de Rorty ou das
posições irracionalistas como as que se podem retirar de Kuhn ou as que são manifestas em
Feyerabend.
156
comunidade que falha no confronto com divergências por parte de indivíduos e com
a realidade, não é determinada nem pelo indivíduo nem pela comunidade mas por
ser. O carácter ideal da comunidade pode querer dizer não que irá, não se sabe bem
algum modo isto pode ser o que é expresso por uma alternativa à expressão
382
C.P. 5.407.
157
não é nem actual nem diferida mas ideal, uma ideia reguladora. O estatuto deste ideal
concreta. Mas que haja esta relação entre o normativo e o sentimental mostra em que
mesma base que serviu a este para pôr em causa a possibilidade do conhecimento, a
Lógica. É uma noção que exprime afinal o carácter teleológico do pensamento como
383
Cf. C.P.4.6 - pensamento como diálogo.
384
C.P. 5.421.
385
C.P: 5.407.
386
C.P. 5.403n.
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