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A questão da justiça em Richard Rorty

Beatriz Cossermelli, sevendots@gmail.com


Prof. Dr. Denílson Luis Werle
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC

Resumo: A presente pesquisa, realizada através do PIBIC/CNPq-2016/2017,


investiga o pensamento político de Richard Rorty, bem como articula a sua
proposta de atividade filosófica. Procede pela reconstrução de quatro artigos
seus selecionados que tratam da questão da política e da justiça.
Neopragmatista e liberalista, Rorty acredita na inclusão do outro pelo
alargamento da solidariedade e aposta na utopia de uma democracia global
que deve ser alcançada pela persuasão e não pela imposição.
Palavras chave: Filosofia política. Liberalismo. Neopragmatismo. Richard
Rorty.

1. Introdução
Na presente pesquisa, possibilitada pelo Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação em Pesquisa Científica/CNPq - 2016/2017, foram
analisados os seguintes artigos acadêmicos do filósofo norte-americano
Richard Rorty (1931-2007): The priority of democracy to philosophy1 (1991);
Justice as a larger loyalty2 (1997); “Racionalidade e diferença cultural em
uma perspectiva pragmatista”3 (1992); e “A filosofia e o futuro”4 (1995), todos
eles voltados para a questão da política e da justiça no contexto das
sociedades modernas. Richard Rorty foi um filósofo neopragmatista, aliado,
principalmente, ao pensamento do pragmatista clássico John Dewey, em
especial, no assunto que trataremos aqui, ao seu historicismo e darwinismo;
como liberalista assumido, suas ideias políticas se amparam na teoria política
de John Rawls, principalmente na redescrição que fez deste como historicista


1
RORTY, Richard. “The priority of democracy to philosophy”. In: Objectivity,
Relativism, and Truth: Philosophical papers, Vol. 1. London: Cambridge University
Press, 1991.
2
______ “Justice as a larger loyalty (1997)”. In: Philosophy as cultural politics:
Philosophical papers, Vol. 4. London: Cambridge University Press, 2007.
3
______. "Racionalidade e diferença cultural em uma perspectiva pragmatista". In:
Pragmatismo e política. Tradução de Paulo Ghiraldelli. São Paulo: Martins Fontes,
2005 [1992].
4
______. "A filosofia e o futuro". In: Pragmatismo e política. Tradução de Paulo
Ghiraldelli. São Paulo: Martins Fontes, 2005 [1995].

1
e pragmatista.
Rorty se tornou mundialmente conhecido ao lançar a coletânea de
artigos que desafiou a epistemologia tradicional, Philosophy and the mirror of
nature5 (1979). Dez anos mais tarde lançou Contingency, irony and
solidarity6, obra esta dividida estruturalmente em duas partes, uma crítica e
outra propositiva. A primeira, consolidou a sua leitura crítica particular de
figuras-chave da tradição intelectual ocidental; a segunda, propôs a figura
epistêmica e política, por ele próprio criada, do ironista liberal. Foi apenas na
sua produção tardia que Rorty passou a se dedicar com mais afinco às
questões da política e da justiça, tendo tido como seu principal interlocutor
neste debate o filósofo alemão Jürgen Habermas (em português foram
compilados seus debates em Filosofia, racionalidade, democracia, sob
organização de José Crisóstomo de Souza7). Suas produções nesta área
estão distribuídas em artigos acadêmicos, em transcrições de conferências e
debates, em compilações destes, assim como na obra Achieving our country8
(1998), em que Rorty constrói uma narrativa do pensamento político de
esquerda nos Estados Unidos desde o seu surgimento até o momento em
que foi escrito.
O principal objetivo desta pesquisa empreendida entre agosto de
2016 e agosto de 2017 foi o de avaliar o posicionamento do pensamento
político de Richard Rorty a partir dos artigos mencionados no início desta
introdução, bem como situá-lo no debate contemporâneo sobre o tema, em
particular nos debates universalismo-historicismo, liberalismo-comunitarismo,
entre outros nos quais ele pode ocupar um espaço, ainda que polêmico. Um
segundo objetivo foi o de definir o seu posicionamento no que tange o papel
da filosofia nas sociedades complexas e plurais.
Este Relatório Final apresenta três artigos ainda não publicados que
reconstroem e dialogam com os artigos de Rorty supramencionados. A
pesquisa e produção de todos eles foram acompanhadas pelo orientador

5
RORTY, Richard. Philosophy and the mirror of nature. New Jersey: Princeton
University Press, 2009 [1979].
6
______. Contingency, irony and solidarity. New York: Cambridge University Press,
2007 [1989].
7
HABERMAS, Jürgen; RORTY, Richard. Filosofia, racionalidade, democracia. Org.
José Crisóstomo de Souza. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
8
______. Achieving our country. Cambridge: Harvard University Press, 1998.

2
Prof. Dr. Denílson Luis Werle através de encontros semanais (com a
excessão dos meses de recesso escolar). O primeiro deles, “A Liberdade é
mais importante do que a Verdade: o problema do historicismo em John
Rawls”, produzido entre agosto e novembro de 2016, dialoga com o artigo
The priority of democracy to philosophy; o segundo, “A prioridade da narrativa
para a teoria na discussão política: pensando a Justiça como lealdade
ampliada”, produzido entre dezembro de 2016 e fevereiro de 2017, dialoga
com o artigo Justice as a larger loyalty; e o terceiro, “Racionalidade e
diferença cultural para o Pragmatismo e o papel do filósofo na construção de
uma democracia global”, produzido entre março e julho de 2017, dialoga com
os artigos “Racionalidade e diferença cultural em uma perspectiva
pragmatista” e “A filosofia e o futuro”. O restante da bibliografia pode ser
encontrado na seção Referências.
É exatamente em momentos de crise política que a discussão de
temas como tipos de democracia, modelos políticos, teorias da justiça e
critérios de decisão política se fazem mais urgentes e relevantes, tanto no
âmbito acadêmico como na esfera pública. É unânime a opinião de que
vivemos tal momento tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Apenas
numa sociedade sem política a filosofia pode deixar de existir, apenas em
uma sociedade governada por tiranos que impedem mudanças sociais e
culturais de acontecerem a filosofia não tem lugar, pois que ela está ali onde
se faz debate e ali onde se questiona o status quo, não simplesmente pelo
prazer de se opor, mas porque assim a filosofia pode ser mais útil à
sociedade na construção de um futuro melhor.

2. Resultados e discussão
2.1. A Liberdade é mais importante do que a Verdade: o problema do
historicismo em John Rawls
Co-autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, que
viria a influenciar indireta e diretamente9 a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, autor do Estatuto de Liberdade Religiosa da Virgínia,


9
Jefferson era embaixador dos Estados Unidos na França nas vésperas da
Revolução Francesa, onde se reunia com o amigo Marquês de La Fayette enquanto
este elaborava o esboço da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

3
Thomas Jefferson, founding father e terceiro presidente dos Estados Unidos,
inaugurou o tom da política norte-americana ao separar a religião da política;
não desmerecendo a primeira, como fizeram outros iluministas, mas
simplesmente a relegando ao campo privado. A democracia concebida por
Thomas Jefferson encontrou novo vigor na filosofia de Richard Rorty, em
especial, na sua interpretação da obra de John Rawls.
Segundo Richard Rorty no artigo The priority of democracy to
philosophy (1991), essa separação fundamental da democracia jeffersoniana
teve dois lados: um lado metafísico, que defendeu o direito natural e
substituiu, mutatis mutandis, a religião pela ‘consciência’ ou pela ‘razão’; e
um lado pragmatista, presente na afirmação de que, quando crenças
privadas interferem na estabilidade social, devem ser abandonadas ou
modificadas em prol do bem comum. A ideia de Razão, que pretende
estabelecer identidade entre justificação e verdade, mistura esses dois
efeitos do pensamento iluminista. Pode-se questionar com Rorty, porém, que
a concepção primordialmente kantiana de um Tribunal da Razão, que
prescreve o que é correto de um ponto de vista universal, perdeu
credibilidade na pós-modernidade, com pensadores que desconstruíram
distinções fortes da modernidade como objetivismo e construtivismo social10;
com filósofos como Heidegger e Gadamer, que evidenciaram um ser humano
historicizado; com a teoria do inconsciente freudiano, que rompeu com a
separação entre consciência e sentimentos como os de amor, ódio e medo;
com pensadores analíticos como Quine e Davidson, que desfizeram a
distinção entre verdade permanente da razão e verdade temporária dos fatos.
Em suma, desconstruções como essas desfizeram a ideia tradicional
ocidental de um ser humano a-histórico, que possui um centro no qual reside
o ‘ser’, a ‘consciência’ ou a ‘razão’, núcleo essencial este protegido do que é
‘exterior’ e contingente.
No referido artigo, Rorty dialoga com os comunitaristas Charles
Taylor e Michael Sandel, aproxima-se dos argumentos de Michael Walzer e,
principalmente, ampara-se nas teorias de John Rawls e John Dewey para
defender o historicismo na teoria política, afirmando que a democracia não

10
Cf. RORTY, Richard. “Relativismo: encontrar e fabricar. In: O relativismo enquanto
concepção de mundo. São Paulo: Francisco Alves, 1994.

4
necessita de fundamentos filosóficos, separando, como fez Thomas Jefferson
a religião da política, a filosofia da democracia.
Rorty interpreta a metafilosofia de Uma teoria da justiça (1971)11, de
John Rawls, como sendo historicista. Seu artigo é de 1991, tendo sido escrito
antes de Political liberalism (1993) e The law of peoples, tanto o artigo (1993)
quanto o livro (2002)12. Porém Rorty complementa seu pensamento com um
artigo publicado em 1997, Justice as a larger loyalty, retomando a linha de
discussão e atualizando o seu diálogo com a obra de Rawls. Em The priority
of democracy to philosophy, Rorty trabalha com Uma teoria da justiça (1971),
a partir de agora referido como TJ, Kantian constructivism in moral theory
(1980)13, KC, e Justice as fairness: political not metaphysical14 (1985), JF.
Nesse seu artigo, Rorty quer estabelecer um diálogo com os comunitaristas.
Antes disso, todavia, traça três tendências que, segundo ele, seriam próprias
dessa corrente de pensamento: uma primeira associada a filósofos como
Robert Bellah, Richard Madsen, William Sullivan, Ann Swidler e Steven
Tipton, baseada na desconfiança do pragmatismo e na predição empírica de
que uma sociedade sem pressupostos filosóficos não poderia sobreviver;
uma segunda associada a filósofos como Alasdair MacIntyre, baseada na
crítica forte ao liberalismo de que este produziria indivíduos por demais
esteticizados e autointeressados; e uma terceira tendência, associada às
ideias de Charles Taylor e Michael Sandel, baseada na sugestão de que o
liberalismo político necessitaria de uma teoria do ser humano que fosse
capaz de abranger a sua natureza historicista, seguindo os delineamentos de
Hegel e Heidegger. Rorty se concentra nessa última corrente e se limita a
rejeitar esta última para sustentar a tese jeffersoniana de que a democracia
liberal não necessita de pressupostos filosóficos.
A partir da afirmação de Rawls feita em JF, de que ele iria “aplicar o


11
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016 [1971].
12
Antes, também, da discussão entre Rawls e Habermas, publicada em The Journal
of Philosophy no ano de 1995 (The Journal of Philosophy, vol. 92, no.3, março de
1995).
13
RAWLS, John. "Kantian constructivism in moral theory”. In: The journal of
philosophy, Vol. 77, No. 9, 1980.
14
______. "Justice as Fairness: Political not Metaphysical". In: Philosophy and Public
Affairs, Vol. 14, No. 3, 1985. Princeton University Press.

5
princípio da tolerância à filosofia ela mesma”15, Rorty interpreta a intenção
subjacente da frase como sendo a de advogar a tolerância filosófica, na
esteira do que fez Thomas Jefferson em relação à tolerância religiosa. Rorty
atribui, no presente contexto, ao termo ‘religião’, o significado de “disputas
acerca da natureza e do verdadeiro nome de Deus - e até de sua
existência”16; e ao termo ‘filosofia’, “disputas acerca da natureza dos seres
humanos e até mesmo sobre se existe mesmo algo como ‘natureza
humana’”17. Deste modo, assim como Jefferson queria que afirmações
envolvendo questões sobre a natureza de Deus se ausentassem da política,
Rawls, na redescrição de Rorty, quer que a discussão acerca da natureza
dos seres humanos, em particular da natureza dos sujeitos morais, seja
deixada de lado quando o assunto é política numa sociedade liberal-
democrática. Rorty explica a sua definição de filosofia: à medida que a
sociedade europeia se secularizou, a partir da Revolução Francesa, a ideia
de Deus foi sendo substituída pela ideia de ‘natureza do sujeito humano’;
esta ideia, por sua vez, é central para a metafísica e para epistemologia e,
quer queiramos, quer não, são estas as duas áreas que constituem o núcleo
de estudo da disciplina filosófica18.
Rorty argumenta que uma sociedade liberal-democrática, que possui
enraizada em seu senso comum a justiça como primeira virtude, não precisa
mais de pressupostos filosóficos19. Tudo de que uma democracia precisa
para se legitimar, segundo Rorty, é do método do equilíbrio reflexivo, que se
traduz, para ele, num método de deliberação. Quando uma sociedade
delibera, ela recolhe os princípios e intuições presentes no senso comum,
que são, então, colocados em equilíbrio de modo coerente, gerando decisões
políticas. O método do equilíbrio reflexivo, utilizado por Rawls para justificar
os seus princípios de justiça em TJ é descrito por Rorty como sendo “[o jogo


15
RAWLS APUD RORTY, 1991, p.179, tradução nossa.
16
RORTY, 1991, p. 182, tradução nossa.
17
Idem.
18
Ibid., p. 183, tradução nossa. Para um aprofundamento da posição de Rorty sobre
a filosofia, cf. "Philosophy as science, as metaphor, and as politics”. In: Essays on
Heidegger and others : Philosophical Papers, Vol. 2. London : Cambridge University
Press: 1991.
19
“A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é
dos sistemas de pensamento” (RAWLS, 2016, p.4.).

6
de] dar-e-pedir entre (a) intuições sobre a desejabilidade de determinadas
consequências para determinadas ações e (b) intuições sobre princípios
gerais, em que nenhuma tem voz determinante”20. Ao optar pelo método do
equilíbrio reflexivo, Rawls se coloca contra a filosofia moral
epistemologicamente orientada que vigorava no mundo filosófico acadêmico
antes da publicação de TJ, ainda baseada na ideia kantiana da ‘moralidade’
como tendo uma essência a-histórica, posição esta que vincula Rawls à
corrente historicista hegeliana e deweyana21.
Apontando no texto de Rawls sua inclinação ao historicismo, Rorty
cita uma importante passagem de JF:

“O ponto essencial é este: para um assunto de cunho


político e prático, nenhuma concepção moral geral pode
fornecer a base para uma concepção pública de justiça numa
sociedade democrática moderna. As condições históricas e
sociais de uma tal sociedade têm suas origens nas Guerras
de Religião, na Reforma Protestante e no desenvolvimento
do princípio da tolerância, e no crescimento do governo
constitucional e nas instituições de economias de mercado
amplo. Essas condições afetam profundamente as
exigências de uma concepção de justiça política viável: tal
concepção deve permitir uma diversidade de doutrinas e a
pluralidade de conflituosas e de fato incomensuráveis
concepções de bem afirmadas pelos membros das
sociedades democráticas existentes”22.

A tentativa rawlsiana de “permanecer na superfície, filosoficamente


falando”23, traduz um modo de fazer teoria política mais próximo do método
descritivo da sociologia, ou de uma visão da filosofia como articuladora, a
partir da coleta de convicções estabelecidas no senso comum de uma

20
RORTY, 1991, p. 183, nota 20, tradução livre. That is, give-and-take between
intuitions about the desirability of particular consequences of particular actions and
intuitions about general principles, with neither having the determining voice.
21
Em KC, p. 516, Rawls comenta sua afinidade com a teoria deweyana: “Ao
elaborar a sua teoria moral em linhas de alguma forma hegelianas, Dewey se opõe a
Kant, algumas vezes até explicitamente, e em geral nos mesmos quesitos em que a
justiça como equidade também se distancia de Kant. Há, assim, uma quantidade de
afinidades entre a justiça como equidade e a teoria moral de Dewey que se explicam
pelo objetivo comum de superar os dualismos presentes na doutrina de Kant”
(tradução nossa).
22
RAWLS APUD RORTY 1991, p. 179, tradução nossa, itálicos nossos. Rorty ainda
destaca outras passagens da obra de Rawls que elucidam o seu ponto, como p. 547
e 548 da edição americana de TJ.
23
Ibid., p. 184.

7
determinada comunidade política e da organização de intuições e princípios
básicos embutidos nessas convicções em uma visão coerentista de justiça.
Em JF, Rawls afirma:

“(…) uma vez que a justiça como equidade pretende


ser uma concepção política para uma sociedade
democrática, pretende se basear apenas em ideias intuitivas
básicas que estão embutidas nas instituições políticas de
uma sociedade democrática e nas tradições públicas de suas
interpretações. Justiça como equidade é uma concepção
política em parte porque parte do interior de uma certa
tradição política"24.

Mais explicitamente ainda, afirma Rawls em KC:

“o que justifica uma concepção de justiça não é ser ela


verdadeira em relação a uma ordem antecedente e dada a
nós, mas a sua congruência com a nossa mais profunda
compreensão de nós mesmos e de nossas aspirações, e
nossa realização de que, dadas a nossa história e as
tradições embutidas na nossa vida pública, trata-se da
doutrina mais razoável para nós”25.

O que se evidencia é que Rawls está comprometido com uma


descrição histórico-sociológica do modus vivendi das sociedades
democráticas modernas.
Em um artigo intitulado Sociological not political: Rawls and the
reconstructive social sciences (2000)26, o pesquisador Terrence Kelly da
Universidade Estadual da Califórnia procura defender Rawls da crítica feita
por Habermas em Reconciliation through the public use of reason (1995) de
que a sua teoria da justiça apresentaria o problema lógico da circularidade27,
oferecendo a possibilidade da interpretação de que se trataria de uma
pesquisa de fundamento empírico-hermenêutico, típica da sociologia. Kelly
observa que o que Rawls faz em TJ para chegar aos dois princípios de
justiça é muito parecido com o que fez Habermas em Teoria do agir


24
Ibid., p. 180, tradução nossa, itálico nosso.
25
Ibid., p. 185, tradução nossa, itálicos nossos.
26
KELLY, Terrence. “Sociological not political: Rawls and the reconstructive social
sciences". In: Philosophy of the social sciences, Vol. 31 No. 1, 2001 [2000].
27
“Rawls introduz conteúdo normativo no procedimento mesmo [Posição Original] da
justificação”. HABERMAS APUD KELLY, 2000, p. 4, tradução nossa.

8
comunicativo (1984), ao pesquisar empiricamente as situações bem
sucedidas de comunicação para então formular as condições da situação
ideal de discurso e, assim, do procedimento de deliberação baseado nelas. O
método utilizado por Habermas é o da reconstrução racional, e é este método
que Kelly acredita poder atribuir ao procedimento de Rawls na formulação de
sua teoria da justiça para evitar a acusação de circularidade.
O método da reconstrução racional é ao mesmo tempo descritivo e
prescritivo, pois identifica as intuições presentes numa prática particular e
então as tematiza em conceitos básicos, tornando explícito o que estava
implícito, articulando o que estava até então de modo apenas pré-teorético e
intuitivo. A próxima etapa do processo consiste em idealizar os conceitos em
regras gerais ou normas de interação social. Este percurso acaba traduzindo
um processo de autoconhecimento de agentes que se esclarecem a si
próprios. A força normativa do método da reconstrução racional é que as
regras gerais às quais se chega são reconhecidas por seus destinatários,
sendo, de certo modo, ainda que intuitivamente, previamente aceitas. Em
resumo, pois, o método se articula em três etapas: identificação; idealização;
e procedimentalização.
Mas o método tal como utilizado por Rawls é diferente da maneira
como faz dele uso Habermas, tanto em escopo como em profundidade.
Enquanto Habermas pretende um escopo de alcance universal, baseado
numa ampla pesquisa empírica, Rawls limita sua pesquisa ao seu contexto
imediato, e destina seus princípios de justiça às sociedades democráticas
razoáveis28.
Assim, vemos que, enquanto Rawls se veria livre, admitindo o uso da
reconstrução racional, da acusação de circularidade, ele ainda não ficaria
livre da crítica de contextualismo. Kelly nota que para Rorty isto não seria um
problema, pois ele

“certamente veria como algo positivo que a justiça


como equidade funciona de modo pragmático, criando uma


28
HABERMAS APUD KELLY, 2000, p. 16: " [Rawls] teria de admitir que os dois
princípios de justiça não pretendem ser válidos para, digamos, alemães, pois
equivalentes formativos da tradição constitucional americana não podem ser
encontrados na história e na cultura alemã" (tradução nossa).

9
‘descrição sócio-histórica da maneira como vivemos hoje’. É
precisamente por evitar pesadas e inatingíveis metas
transcendentais que Rawls aparece como uma alternativa
superior a Habermas na filosofia pós-metafísica”29.

No entanto, Kelly afirma que Rawls enfrentaria muitos problemas


para admitir uma posição contextualista, principalmente face à pretensão de
The law of peoples (1999), qual seja, a de estender o alcance da validade da
justiça como equidade a outras sociedades bem ordenadas, desde que
minimamente razoáveis. No entanto, como veremos mais adiante, este
problema pode ser evitado a partir de uma interpretação alternativa do
propósito de The law of peoples.
No artigo Justice as a larger loyalty (1997), Rorty retoma, após a
publicação dos importantes trabalhos de Rawls posteriores à TJ, a discussão
iniciada em The priority of democracy to philosophy (1991). Após assistir ao
surgimento de Political liberalism (1993) e The law of peoples na sua versão
artigo (1993), Rorty pôde atualizar seus argumentos em relação ao
historicismo de Rawls, inclusive pelo fato de não ter este, segundo Kelly,
acatado a sua interpretação30. Em The law of peoples (1993), Rawls acredita
que pode se ver livre da acusação de historicismo se conseguir mostrar que a
concepção de justiça de uma sociedade liberal pode se estender além desse
tipo específico de organização social, através do que ele chamou de ‘o direito
dos povos’. Mas Rorty afirma que Rawls não pode rejeitar o historicismo e, ao
mesmo tempo, invocar a noção do que é uma sociedade razoável no sentido
de uma sociedades que admite “uma certa medida de liberdade de
consciência [liberty of conscience] e liberdade de pensamento [freedom of
thought], ainda que essas liberdades não sejam em geral iguais para todos
os membros da sociedade”31 em The law of peoples. A esse respeito, Rorty
conclui:

“a noção de ‘razoabilidade’ de Rawls, em resumo,


confina ao pertencimento da sociedade dos povos as
sociedades cujas instituições abarquem a maioria dos

29
KELLY, op.cit., p. 17, tradução nossa.
30
Afirma Kelly em op. cit. p.17: “Rawls (…) rejeita a interpretação de Rorty da justiça
como equidade” (tradução nossa).
31
RAWLS APUD RORTY, 2007, p. 48, tradução nossa.

10
empreendimentos duramente conquistados no Ocidente nos
dois séculos desde o Iluminismo”32.

Mas Rorty pensa poder resolver a aparente contradição na proposta


de Rawls. Trata-se de desfazer a confusão entre dois conceitos de
universalismo: o universalismo enquanto validade [universal validity] e o
universalismo enquanto alcance [universal reach]. O que Rawls busca, em
The law of peoples, é o universalismo enquanto alcance. Rorty extrai essa
sua tese da seguinte passagem, presente no artigo de Rawls: “uma doutrina
liberal construtivista é universal em seu alcance quando é estendida a um
(…) direito dos povos”33, diferentemente do que buscam representantes da
moral kantiana, como Habermas, que busca o universalismo enquanto
validade. Admitindo o uso da noção de alcance universal e não de validade
universal, Rawls pode continuar com sua proposta de uma comunidade moral
global, exposta em The law of peoples, ao mesmo tempo em que é
historicista.
Em tempos de ‘trumpismo’, em que um dos maiores ícones da
conduta intolerante foi eleito o 45º presidente dos Estados Unidos da
América, é possível que tenhamos a amarga sensação de que talvez as
instituições liberal-democráticas americanas falharam. Mas Rorty nos lembra,
na conclusão de seu artigo The priority of democracy to philosophy, que a
democracia liberal é um experimento histórico-social, no vocabulário
deweyano, contingente. Mesmo que venha a se comprovar um fracasso, isto
não quer dizer, per se, que as sociedades humanas não possam sobreviver
sem concepções de mundo amplamente compartilhadas. O
‘desencantamento do mundo’ pode nos ter tirado a sensação reconfortante
de que possuímos a ‘verdade’, mas, por outro lado, nos trouxe os amplos
horizontes da liberdade. E, como costuma afirmar Rorty, numa síntese de
suas posições políticas: "a Liberdade é mais importante do que a Verdade"34.


32
RORTY, op. cit., p. 48, tradução nossa, itálico nosso.
33
Ibid., p. 50, tradução nossa, itálico nosso.
34
RORTY, Richard. Rorty and his critics. Oxford: Blackwell Publishers Ltd : 2000,
p.188, tradução nossa.

11
2.2. A prioridade da narrativa para a teoria na discussão política:
pensando a Justiça como lealdade ampliada
Imagine que você foi chamado para servir numa guerra: sente-se
compelido a isso, mas sabe que, se assim fizer, terá de deixar sua família em
casa desprotegida. Ou então imagine que você cometeu um crime e pede ao
seu pai que o encubra. Seu pai o encobriu, porém, diante do perjúrio, uma
pessoa inocente foi culpada em seu lugar. O jovem que foi para a guerra e o
pai que acabou causando uma injustiça por ter sido leal ao filho certamente
se viram em uma dilema moral. Filósofos descendentes de Kant afirmam que
dilemas morais surgem quando somos divididos entre sentimento e razão,
lealdade e justiça: sermos leais a alguém ou obedecermos a uma obrigação
moral. No entanto, não é assim que pensa Richard Rorty.
No artigo Justice as a larger loyalty35 (1997), Rorty propõe um
vocabulário alternativo para se pensar a justiça: o de lealdades conflitantes.
Dilemas morais como os acima seriam resultado do conflito entre duas
lealdades: a lealdade a um círculo próximo, como a família, e a lealdade a um
grupo impessoal, como a nação ou a espécie humana; um conflito entre ser
leal àqueles que sempre estiveram ao meu lado, compartilhando minhas
dores e alegrias, e ser leal àqueles que quase não estão presentes na
história que tenho para contar sobre mim mesmo. A justiça seria, nessa
redescrição rortyana, uma lealdade ampliada e, o progresso moral, uma
questão de sermos capazes de incluir progressivamente no grupo ao qual
pertencemos membros do grupo ao qual não nos sentimos pertencer: o
alargamento da solidariedade.
Para Rorty, a solidariedade não é dada, mas deve ser construída
culturalmente, através da produção e do consumo de formas narrativas
culturais que nos sensibilizem para a complexidade do outro. Ele faz questão
de mostrar que não está sozinho na suspeita da moralidade kantiana:
filósofos como Annette Baier, afiliada a Hume; Charles Taylor, afiliado à
Hegel; ou Alasdair MacIntyre, afiliado a Aristóteles, também se afastaram do
imperativo da razão na busca de uma nova chave para o entendimento da


35
RORTY, 2007.

12
moral. Em Justice as a larger loyalty, Rorty toma emprestado uma distinção
do filósofo norte-americano liberalista Michael Walzer, a saber a distinção
entre moralidade thick e moralidade thin; utiliza o conceito de confiança, de
Annette Baier; assim como a teoria do eu como um centro de gravidade
narrativa, de Daniel Dennett; a noção de Razão Prática em Rawls, entre
outras ideias que lhe servirão para corroborar a sua tese.
No livro Thick and thin: moral argument at home and abroad36 (1994),
Walzer faz a distinção entre argumentos baseados numa moralidade
‘máxima’, que ele chama de thick (ricamente referencial, de ressonância
cultural, fechada num sistema simbólico localmente estabelecido ou numa
rede de significados específica37; densa, concreta e particular]) e argumentos
baseados numa moralidade ‘mínima’, que ele chama de thin (tênue, abstrata
e universal [em momentos]). Os conceitos de thick e thin na discussão da
filosofia moral foram primeiramente empregados por Bernard Williams no livro
Ethics and the limits of philosophy38 (1985); este, por sua vez, emprestou os
termos da obra de Gilbert Ryle, que tratou de descrições thick no artigo The
thinking of thoughts: What is ‘Le penseur’ doing?39 (1968). No entanto, a
distinção já havia surgido, embora com outra nomenclatura, na obra do inglês
R.M. Hare, The language of morals40 (1952)41. Para Walzer, a moralidade
(que chamaremos aqui de) máxima é empregada em questões de política
interna e se situa no registro da persuasão; e a moralidade (que chamaremos
aqui de) mínima, em questões de política externa e se situa no registro do
reconhecimento42. A ousadia de Walzer neste livro, segundo Rorty, é ter
invertido a ordem de prioridade dos conceitos: enquanto os kantianos
defendem que a moralidade se origina em princípios universais e então é
adaptada de diferentes maneiras em contextos locais, Walzer afirma o
contrário: o senso de moralidade nasce em casa, na elaboração de um

36
WALZER, Michael. Thick and Thin: Moral Argument at Home and Abroad. Indiana:
University of Notre Dame Press, 1994.
37
WALZER, op. cit., introdução.
38
WILLIAMS, Bernard. Ethics and the Limits of Philosophy, Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1985.
39
RYLE, Gilbert. “The Thinking of Thoughts: What is ‘Le Penseur’ Doing?”, in
his Collected Papers, Volume 2, London: Hutchinson, pp. 480–96.
40
HARE, R.M. The Language of Morals, Oxford: Clarendon Press, 1952.
41
VÄYRYNEN, 2016.
42
WALZER, op. cit., p.17.

13
vocabulário denso (thick), e apenas em momentos específicos pode surgir
uma moralidade abstrata que se expressa num vocabulário mínimo (thin):

“Filósofos muito comumente [afirmam que] (…) homens


e mulheres em toda parte começam com alguma ideia ou
princípio comum ou conjunto de ideias e princípios, que eles
então trabalham de diferentes maneiras. Eles começam
tênues, como são, e se adensam com a idade, como se em
concordância com nossas mais profundas intuições sobre o
que significa se desenvolver ou amadurecer. Mas a nossa
intuição está errada aqui. A moralidade é densa desde o
começo, culturalmente integrada, completamente ressonante,
e se revela tênue apenas em ocasiões especiais, quando a
linguagem moral é voltada para propósitos específicos”43.

Para justificar a sua tese, Walzer se utiliza de uma experiência


corriqueira que lhe servirá como metáfora: no importante ano de 1989, ele
assiste na televisão de sua casa, nos Estados Unidos, a uma marcha nas
ruas de Praga na qual os manifestantes levavam bandeiras de ‘verdade’ e
‘justiça’. Walzer diz ter imediatamente se identificado com a marcha, podendo
se sentir no meio dela. Mas como ele poderia penetrar tão rapidamente e tão
sem reservas num jogo de linguagem relativamente distante da sua
realidade? Os manifestantes compartilhavam uma cultura que não lhe era
familiar; estavam respondendo a uma experiência que ele nunca tivera (a
saber, a de viver sob o regime soviético). A razão disso, explica Walzer, é
que, com a expressão ‘verdade’, eles não estavam preocupados com qual
seria a teoria epistemológica correta, se a correspondentista, a consensual
ou a coerentista; tampouco estavam discutindo alguma teoria de justiça;
certamente se fossem deliberar mais detalhadamente sobre o que esses
conceitos significam, não chegariam a um acordo. A verdade, diz Walzer, é
que, naquele momento, eles não estavam dando a mínima para essas
questões. O que eles reivindicavam era simplesmente mais transparência de
seus governantes, o fim das prisões arbitrárias, o fim dos privilégios da classe
dirigente etc.
Analisemos a situação à luz dos conceitos de thick e thin propostos
pelo filósofo: as bandeiras de ‘verdade’ e ‘justiça’, naquele momento,
estavam sendo expressos num vocabulário mínimo (moralidade thin); e é por

43
WALZER, op. cit., p.4, tradução nossa.

14
isso que Walzer podia se identificar com elas. Através de suas experiências
em casa de situações em que também havia faltado transparência e justiça,
Walzer foi capaz de se identificar com uma situação que lhe era estranha. Foi
precisamente por possuir previamente certo vocabulário de moralidade
concreta (thick) que ele pôde, encontrando pontos em comum entre suas
experiências e a de seus colegas soviéticos, se identificar com eles. É assim
que Walzer inverte a lógica kantiana, sugerindo a prioridade da prudência
(prhonesis) para a moral, da moralidade thick para a moralidade thin.
Walzer diz, na introdução do livro, defender uma política da diferença.
Expõe então um ponto importante da sua argumentação: é preciso que haja
separação para que possa haver união, é preciso que haja reconhecimento
das fronteiras culturais para que possa haver o reconhecimento do que é
comum. Apenas depois de séculos de soberania e a construção de um certo
grau de democracia que os grandes Estados da Europa Ocidental puderam
se unir numa Comunidade Europeia. Foi graças à divisão entre Bélgica e
Holanda e ao fracasso do imperialismo francês que surgiu o experimento
Benelux44; foi a independência da Suécia em relação à Dinamarca, da
Noruega em relação à Suécia e da Finlândia em relação à Suécia e à Rússia
que fez possível a cooperação escandinava. Foi a partir do reconhecimento
popular de que havia ali mais de um demos, mais de uma cultura, mais de
uma concepção de justiça (em oposição a conceito de justiça), que puderam
esses Estados conviver até os dias de hoje pacificamente e se unir em
projetos de cooperação45.
Mas ele alerta: assim como o Esperanto, idioma artificial que
pretende ser universal, se assemelha em sua estrutura mais às línguas
europeias, é improvável que haja um vocabulário moral neutro, um
‘Esperanto moral’. Até mesmo os conceitos thin tendem a uma moralidade
thick. As experiências de Walzer como cidadão americano no ano de 1989
não eram completamente diferentes das dos manifestantes de Praga;
podemos imaginar que seria muito mais difícil para um cidadão indiano, por
exemplo, se identificar de alguma maneira com suas bandeiras.


44
Cooperação entre Bélgica, Holanda e Luxemburgo.
45
WALZER, op. cit., p.65.

15
Rorty dedica parte de seu artigo Justice as a larger loyalty discutindo
a noção de Razão Prática em John Rawls, que ele aproxima à de Razão
Comunicativa, em Jürgen Habermas. Rorty define, em termos gerais, a noção
de Razão Prática em Rawls como sendo: “(…) a atividade de justificar
afirmações oferecendo argumentos em vez de ameaças”, e “o que está
presente sempre que as pessoas se comunicam, sempre que procuram
justificar suas afirmações umas para as outras, em vez de ameaçar umas às
outras”46. O deslocamento que fez Habermas da razão centrada no sujeito
(subject-centered reason) para a Razão Comunicativa procura minar a ênfase
na autoridade da razão e dar a ela um estatuto procedimentalista: tanto
Rawls, como Habermas procuram responder a ‘como’ deliberamos, em vez
de em ‘o que’ concordamos. A moralidade thin de que Walzer fala só é
possível através da Razão Prática, com a obtenção de um consenso
sobreposto.
Vale ressaltar aqui a importância do conceito de esperança na teoria
rortyana no que tange o processo deliberativo. Segundo Rorty, “a deliberação
política pressupõe a esperança”47. Rorty traz para o debate político o
conceito de esperança em oposição ao de conhecimento, este último no
sentido da obtenção de modelos políticos ou de teorias da justiça que sejam
baseados em um conhecimento privilegiado. Ele prioriza o conceito de
esperança no discurso político em detrimento do de conhecimento
precisamente porque a esperança não requer fundamentos metafísicos48.
Enquanto um diálogo não chegou ao fim, subsiste no pano de fundo a
esperança de se chegar a um acordo, ou, ao menos, de se chegar a um
“desacordo frutífero e excitante”49.
Nem de todo desassociado da esperança está o conceito de
confiança, que Rorty toma emprestado da filósofa neozelandesa Annette
Baier para melhor justificar a sua visão de justiça como lealdade ampliada.
Para Baier, filósofa com amplos estudos sobre o pensamento de David
Hume, o conceito de confiança é chave na compreensão da moralidade,


46
RORTY, op. cit., p.51, tradução nossa.
47
RORTY APUD STAHL & BLOESER, 2017, tradução nossa.
48
A esse respeito, cf. RORTY, 1991.
49
RORTY APUD STAHL & BLOESER, op. cit.

16
substituindo aquele de obrigação, central na teoria kantiana. A confiança está
presente em todas as relações humanas (no mais discreto dos casos,
confiamos aos outros que nos deixem em paz, isto é, confiamos aos outros
parte do cuidado de nossa autonomia), podendo ocorrer de forma consciente
ou não, e se configura em um predicado de três lugares: A confia a B parte
do cuidado de C. A relação de confiança abre espaço para certa
vulnerabilidade de A, que fica submetido ao poder de discrição de B, isto é,
de descuidar ou de exceder seus cuidados de C, principalmente se B está
consciente de ter sido confiado com C. Contrariando a tese hobbesiana da
desconfiança inata do ser humano, como se a criança fosse capaz de rejeitar
o leite materno temendo deste veneno, Baier acredita que certo grau de
confiança é necessário ao ser humano para que seja garantida a
sobrevivência da espécie. Assim, a criança confia quase que
intransitivamente, isto é, confia tudo ao cuidado parental. À medida que a
criança passa à fase adolescente e desta à adulta, a relação de confiança
entre filho e pais torna-se menos desigual e mais recíproca. É em resposta à
confiança que os pais depositam no filho que este responde com sua
lealdade, e vice-versa. À medida que as famílias se configuram em tribos e
as tribos em nações, surgem dilemas morais entre lealdades conflitantes50.
Aqui podemos evocar os exemplos expostos na abertura do presente artigo,
a saber, os do jovem e do pai que se viram num dilema entre lealdade a um
grupo menor e lealdade a um grupo maior; em consonância com a ordem de
prioridade das moralidades, sugerida por Walzer, a precedência da
moralidade thick para a moralidade thin.
O surgimento de dilemas morais também pode ser explicado através
de uma perspectiva mais individualista e de cunho psicológico, adotada por
Walzer no último capítulo da obra supracitada, a saber, a teoria do Eu Diviso
(the divided self). É importante esclarecer que o eu diviso é produto de uma
sociedade pluralista e, assim, produto do liberalismo político: é contingente e
situado historicamente. Ele se divide de três maneiras. Em primeiro lugar,
entre seus interesses e papeis. O eu diviso atua em muitos papeis, não
apenas ao longo da vida, mas ao longo da semana ou do dia: o de cidadão,


50
RORTY, op. cit., p. 45.

17
pai, trabalhador, profissional, professor ou estudante, médico ou paciente etc.
Em segundo lugar, se divide entre suas identidades. Ele responde a vários
nomes: de sua família, de sua nação, de sua religião, de seu gênero, de seu
partido político etc. Em terceiro lugar, se divide entre seus ideais, princípios, e
valores. Ele fala com mais de uma voz moral. É nessa terceira repartição que
Walzer se concentra na discussão aqui abordada. O eu diviso enquanto
agente moral é, numa metáfora, uma confabulação de críticos. É graças às
nossas muitas vozes internas que somos suscetíveis à dúvida, à angústia e
ao dilema. Nossa personalidade, assim como ela aparece para os outros, é o
resultado de um consenso sobreposto da deliberação interna de nossas
diferentes vozes. Essas vozes são, também, contingentes, concebidas no
interior de uma cultura ou socialmente impostas. Ainda que não tenha
essência, o eu de Walzer tem um centro, é ordenado, embora esse centro
seja móvel, em permanente reconfiguração. Nossa moralidade thick são as
diversas vozes, mas nossa moralidade thin é o consenso sobreposto que
resulta do eu que seleciona, recusa, absorve e incorpora as críticas. O eu
dominado, aquele que dá ouvidos a apenas uma voz dominante, resulta no
fanático religioso ou político. “Dentro de todo eu thin há um eu thick ansiando
por elaboração, expansão, liberdade”51. É aprimorando nossa escuta à nossa
rede interna de críticos que aprimoramos nossa moralidade.
Na esteira das teorias pós-estruturalistas da identidade, Rorty
menciona no seu artigo a teoria do eu como centro de gravidade narrativa, do
filósofo analítico norte-americano Daniel Dennett, para corroborar seus
argumentos acerca da identidade moral. Adotando uma perspectiva
psicanalítica, nossa identidade se construiria a partir das histórias que
podemos contar sobre nós mesmos. Rorty sugere que o contraste entre os
conceitos de thick e de thin feito por Walzer também pode se explicar pelo
contraste entre as histórias detalhadas e ricamente descritivas que temos
para contar sobre nós mesmos como membros de uma comunidade
pequena, como a família (thick), e as histórias rudimentares e relativamente
abstratas que temos para contar sobre nós mesmos como membros de uma
comunidade alargada, como a comunidade global (thin). Aqui entra o papel


51
WALZER, op. cit., p.100, tradução nossa.

18
da cultura e de suas formas narrativas para o aprimoramento da
solidariedade no ser humano com vias ao progresso moral. Através de
formas narrativas como o romance, a novela, a biografia, as séries de
televisão, o cinema, os filmes documentários etc., que situem e formem uma
imagem mais complexa dos membros de grupos marginalizados de uma
certa sociedade, podemos aprimorar nossas descrições e enriquecer as
histórias que temos para contar sobre nós mesmos como membros de uma
comunidade alargada.
Como neo-pragmatista e pós-moderno, Richard Rorty quer advogar a
prioridade da narrativa para a teoria na discussão política. Pensando a justiça
como uma lealdade ampliada, Rorty acredita que devemos preservar o
liberalismo do Iluminismo, mas que podemos descartar o seu racionalismo.
Na conclusão de seu artigo Justice as a larger loyalty, ele encerra:

“(...) livrar-se da retórica racionalista permitiria ao


Ocidente que se aproximasse do não-Ocidente no papel de
alguém que tem uma história instrutiva para contar, em vez
de no papel de alguém que pretende estar fazendo melhor
uso de uma capacidade humana universal [,a razão]”.52

“Ser liberalista é lutar para universalizar o nosso senso de ‘nós’,


talvez até estendendo-o além da nossa própria espécie (…)”, diz o estudioso
de Rorty Nir Evron, da Universidade de Tel Aviv, “mas não requer que
acreditemos que os seres humanos (…) compartilham uma essência
comum”53, quem sabe, que compartilham muitas pequenas semelhanças, na
esperança de um consenso sobreposto.

2.3. Racionalidade e diferença cultural para o pragmatismo e o papel do


filósofo na construção de uma democracia global
No artigo Racionalidade e diferença cultural em uma perspectiva
pragmatista54 (1992), Richard Rorty difere três sentidos da palavra
‘racionalidade’ e três sentidos da palavra ‘cultura’, que, segundo ele, muito

52
RORTY, 1997, p. 55.
53
EVRON, 2015, p.9, tradução nossa.
54
RORTY, Richard. "Racionalidade e diferença cultural em uma perspectiva
pragmatista". In: Pragmatismo e política. Tradução de Paulo Ghiraldelli. São Paulo:
Martins Fontes, 2005 [1992].

19
foram confundidos na tradição intelectual ocidental. Elucidaremos este ponto
um pouco mais adiante.
Racionalidade 1. O primeiro tipo de racionalidade chamaremos aqui
de racionalidade darwiniana55. Trata-se da capacidade de adaptação, de
enfrentar o meio ambiente ajustando suas reações a ele. Equivale à razão
técnica e à capacidade de sobrevivência. Essa visão considera que a
diferença de posse de racionalidade entre seres humanos e animais é uma
de grau e não de tipo, não sendo exclusiva dos seres humanos. Segundo
este ponto de vista, os seres humanos significariam a continuação da
natureza e não um rompimento com ela. O progresso deste tipo de
racionalidade equivale ao progresso tecnológico. Esta racionalidade é
eticamente neutra.
Racionalidade 2. O segundo tipo de racionalidade chamaremos aqui
de racionalidade platônica ou metafísica. Como seu próprio nome diz, está
além da natureza e considera que a razão é uma característica, até onde se
sabe, exclusivamente humana; haveria assim uma descontinuidade evolutiva
entre organismos não-humanos e humanos. Esta racionalidade não apenas
ajusta os meios aos fins, como na racionalidade darwiniana, mas avalia e
julga segundo seus próprios critérios. Trata-se da ‘Razão com R maiúsculo’,
distintivo humano desde os gregos até a modernidade.
Racionalidade 3. O terceiro tipo de racionalidade chamaremos aqui
de racionalidade hegeliana. Trata-se da habilidade de tolerância, de não se
irritar com a opinião alheia nem se desconcertar demasiadamente com o que
é diferente. A pessoa que possui essa racionalidade bem desenvolvida tem
desejo de mudança, aposta mais na persuasão do que na força, tende mais
ao diálogo do que à briga. Trata-se da racionalidade que permite aos
indivíduos e grupos conviverem pacificamente e, ocasionalmente, fundirem
sincreticamente suas culturas umas nas outras.
Muito se confundiu, na tradição intelectual ocidental, esses tipos de
racionalidade; fez-se associações e equivalências. É muito comum a ideia de
que a racionalidade darwiniana, isto é, a capacidade de adaptação, de criar
tecnologia e a linguagem é possível apenas porque possuímos a

55
Os nomes que daremos aos tipos de racionalidade e cultura foram escolhidos por
nós, não por Rorty, com fins de clareza do texto.

20
racionalidade platônica, isto é, aquela racionalidade quase divina considerada
pela tradição filosófica (R2 é condição de R1). Outro exemplo é considerar
que a adaptabilidade da racionalidade darwiniana é equivalente à capacidade
de tolerância, ou melhor, que quanto mais possuímos de racionalidade 1
mais possuímos de racionalidade 3: quanto mais somos capazes de nos
adaptar ao meio, mais somos capazes de ‘nos adaptar aos outros’ (um
aumento em R1 resulta em um aumento em R3). De modo geral, a tradição
filosófica é regida pela lógica de que a tecnologia criada pela racionalidade
darwiniana está em consonância com a Razão, componente exclusivo
humano, e que porque aquele que possui essa racionalidade platônica
conhece a verdade, conhece o porque dos comportamentos alternativos dos
outros e, assim, compreendendo-os, tolera-os (R1 e R2 estão em
consonância e conduzem a R3). Filósofos que tentaram desmistificar esse
tipo de pensamento, pelo ataque ao que chamaram de ‘racionalismo’,
‘falologocentrismo’, ‘metafísica da presença’, ‘platonismo’ etc. foram, por
exemplo, John Dewey e Jacques Derrida, no século 20. Para liberais que
também são pragmatistas, diz Rorty, apenas as racionalidades de tipo 1 e 3
existem (a racionalidade darwiniana e a racionalidade hegeliana); a
racionalidade platônica sequer é considerada.
Rorty também difere os três tipos de uso da palavra ‘cultura’ que ele
identificou no pensamento ocidental:
Cultura 1. O primeiro tipo de cultura chamaremos aqui de cultura-
comunidade. Trata-se do conjunto de hábitos de ação compartilhado por um
determinado grupo, que pode ser um povo, uma comunidade científica, um
quartel, uma igreja, uma sociedade de negócios, uma escola etc. Por ser
eticamente neutra, a cultura-comunidade assemelha-se à racionalidade
darwiniana, o que implica que a diferença entre as diferentes culturas-
comunidades podem ser de grau de complexidade, mas não de tipo, o que
significa que não há aqui nenhum critério para estabelecer se uma cultura ‘é
melhor’ do que a outra.
Cultura 2. O segundo tipo de cultura chamaremos aqui de cultura
burguesa. É sinônimo de ‘alta-cultura’, aquele tipo de conhecimento sobre
arte e literatura que geralmente é reservado aos membros mais abastados da
sociedade que possuem tempo livre. Esta cultura é geralmente associada à

21
racionalidade hegeliana, a racionalidade da tolerância. Embora não haja
nenhuma relação necessária entre possuir este tipo de cultura e ser um
membro mais sensibilizado à dor do outro e tolerante com opiniões
diferentes, há muitas expressões, na literatura, que designam essa relação,
como, por exemplo, ‘polidez e inteligência’, ‘gentileza e inteligência’, ‘berço e
luz’, ‘suavidade e luz’ etc56.
Cultura 3. O terceiro tipo de cultura chamaremos aqui de cultura
humana. Esta está em estreita conexão com a racionalidade platônica, pois é
produzida por ela, sendo o que difere os seres humanos dos animais,
separando-os da natureza e os colocando acima dela. É também o critério de
avaliação, segundo a racionalidade platônica, para avaliar as culturas-
comunidades, sendo aquela considerada mais elevada a que ‘chegou mais
perto’ da cultura humana, do que é ‘essencialmente humano’.
Aqui também se fez associações e equivalências equivocadas,
segundo Rorty. Muito se tem dito, pelos intelectuais que se sentem culpados
pelo ‘eurocentrismo’, principalmente intelectuais ocidentais de esquerda, que
qualquer cultura tem o mesmo valor que qualquer outra, que toda cultura é
uma ‘obra de arte’ e deve ser preservada. Neste caso, uma cultura-
comunidade é vista, sob perspectiva da cultura burguesa, como um triunfo da
cultura humana, terceiro tipo de cultura, aliada à racionalidade platônica (para
C2, C1 é expressão de C3). Muito se fala, também, que uma determinada
cultura-comunidade, por exemplo, o Ocidente moderno, está enferma ou
estéril. Rorty cita o exemplo de Susan Sontag, que afirma que “a raça branca
é o câncer do planeta”57. Além disso, é comum encontrarmos entre
intelectuais contemporâneos de esquerda um tipo de discurso estereotipado
que valoriza as culturas oprimidas, o que Rorty chama em tom irônico de
“teoria da opressão"58.
Rorty apresenta uma visão alternativa a essas, baseada no
darwinismo de John Dewey, porém não abrindo mão de teorias posteriores,
como, por exemplo, as de Richard Dawkins e Daniel Dennett. Estes fazem


56
Versões em português das expressões originais sweetness and light e amabilité et
raison.
57
SONTAG APUD RORTY, 2005, p. 83.
58
RORTY, 2005, p. 83, nota 3.

22
uso do termo ‘meme’ para designar uma cultura-comunidade aos olhos da
racionalidade darwiniana. Um meme seria a contraparte cultural de um gene.
Assim como o triunfo de uma espécie sobre outra pode ser vista como o
triunfo de um conjunto de genes, o triunfo de uma cultura-comunidade sobre
outra pode ser vista como o triunfo de um conjunto de memes. Para Dewey,
nenhum desses triunfos pode ser visto como melhor realizando uma
essência, mas simplesmente como o “resultado de concatenações de
circunstâncias contingentes. (…) O processo de evolução nada tem a ver
com hierarquias avaliativas”59.
Dewey negou que poderia haver uma maneira de avaliar
objetivamente a superioridade da cultura-comunidade do Ocidente, que ele
chamou de ‘cultura da esperança’, se referindo ao utopismo romântico-
europeu, em relação às culturas-comunidades do Oriente, que ele chamou de
‘culturas da resignação’60. Em termos pragmatistas, a ideia de ‘superioridade’
é sempre “relativa aos propósitos de algo a que se está sendo solicitado
servir”61. Rorty, no entanto, dá alguns exemplos de conquistas do Ocidente
que, segundo ele, não podem ser negligenciadas, como o controle
epidêmico, a ampliação da alfabetização, a melhoria dos transportes e das
comunicações, a padronização da qualidade dos objetos de primeira
necessidade, e poderíamos aqui nomear tantas outras, como a participação
popular na política (a democracia), a possibilidade de casamentos inter-
raciais e entre pessoas do mesmo sexo, a liberdade religiosa etc.
Quanto à associação entre racionalidade darwiniana e racionalidade
hegeliana (tolerância e sensibilidade ao outro), Dewey acreditava que ela
poderia realmente existir, isto é, que o avanço da ciência moderna e da
tecnologia poderiam engendrar mais tolerância nas relações sociais, segundo
o raciocínio de que quanto mais nos emancipamos do hábito, da maneira de
viver de nossos ancestrais, mais nos tornamos abertos à recepção de novas
ideias, vindas de lugares diferentes. Porém, está claro que essa relação não
pode ser necessária e nem era vista por Dewey como tal. Reafirmamos a
posição de que a racionalidade darwiniana é eticamente neutra: sabemos


59
Ibid., p. 84-85.
60
Ibid., p. 94.
61
Ibid., p. 91.

23
que a tecnologia pode ser usada tanto para oprimir quanto para libertar, tanto
para agravar o sofrimento quanto para diminuí-lo, tanto para criar uma
situação de desigualdade quanto para criar uma convivência igualitária e
pacífica. Não obstante, Dewey costumava ver na secularização uma
tendência a abrir caminho para a tolerância de outros tipos de diferença62.
Em The priority of democracy to philosophy (1991), Rorty mostra que,
amparado em Thomas Jefferson, tanto Dewey como John Rawls reafirmaram
a quase necessidade de tolerância religiosa para a emergência de outros
tipos de tolerância. Porém, diferentemente de Kant e até Hegel, Dewey não
afirmava que poderia haver uma retórica mais correta em termos absolutos
para promover a justiça social do que outra; a filosofia não teria nenhum
papel de validar um discurso como estando mais ou menos próximo do
conhecimento e da Razão (a racionalidade de tipo 2). Em outros termos, a
filosofia de X, em que X pode ser a matemática, a arte, a ciência, a teoria
política etc., é apenas mais X e não pode ser um suporte a X, embora possa
expandir, clarear e melhorar X63.
No artigo A filosofia e o futuro64 (1995), Rorty propõe uma
redescrição do papel do filósofo e de sua autoimagem, baseada no
historicismo de Hegel e na visão do papel social da filosofia segundo John
Dewey. Rorty vê na atividade filosófica uma necessidade de
desespecialização e incita os filósofos a fazerem uma filosofia para o futuro,
substituindo o foco tradicional na contemplação do imutável pela disposição
para o diálogo e para a ação. Para isso, os filósofos precisam mudar a sua
relação com o tempo.
Foi apenas quando os filósofos desistiram de obter o conhecimento
do eterno que eles passaram a levar o tempo a sério. Segundo o historiador
de ideias Hans Blumenberg, isso começou com o fim da Idade Média e
prosseguiu no século 16 com Giordano Bruno e Francis Bacon; mas,
segundo Rorty, essa tendência se consolidou apenas no século 19, com
Hegel, quando este passou a questionar não apenas a tentativa platônica de

62
Dewey trata da questão da religião no livro A common faith (New Haven: Yale
University Press, 1934).
63
RORTY, 2005, p. 88, nota 7.
64
RORTY, Richard. "A filosofia e o futuro". In: Pragmatismo e política. Tradução de
Paulo Ghiraldelli. São Paulo: Martins Fontes, 2005 [1995].

24
escapar do tempo, mas, sobretudo, o projeto kantiano de descobrir as
condições a priori para os fenômenos temporais. Em seguida, com Darwin, a
espécie humana pôde redefinir a si mesma como continuação da natureza
numa evolução temporal e contingente. A influência de Hegel e Darwin na
filosofia posterior foi decisiva para a consolidação da visão historicista: a
questão fundamental da filosofia passou de ‘o que somos?’, para ‘em que
podemos nos tornar?’. Isso causou um deslocamento no foco da atividade
filosófica da contemplação do eterno para a ação, representando também
uma alteração na autoimagem do filósofo.
Abandonar a autoimagem da filosofia criada por Platão e Kant não é
o mesmo que abandonar a filosofia; não precisamos sequer abandonar estes
filósofos, afirma Rorty, podemos redescrevê-los e adaptar seus vocabulários
obsoletos a um que responda às necessidades do contemporâneo. Enquanto
existirem mudanças sociais e culturais, haverá filosofia. Somente em uma
sociedade governada por tiranos, que impedem mudanças de acontecerem,
somente em uma sociedade sem política, a filosofia pode deixar de existir.
John Dewey admirava tanto Hegel quanto Darwin. Para Dewey, a
filosofia emerge “de um conflito entre as instituições herdadas e as novas
tendências”65. Por isso, Dewey considerava que a filosofia é parasita;
parasita do progresso na sociedade e na cultura, uma reação a este
progresso66. Na sua imagem do filósofo, ele tem um papel quase diplomático:
deve mediar o conflito entre dois vocabulários, buscando fazer com que
cooperem, em vez de se autoaniquilarem. Rorty adere a esta visão, mas
alerta: é muito importante que o filósofo não tente ser um vanguardista. Este
papel deve ser reservado aos artistas e poetas. O filósofo deve se dedicar ao
trabalho de alinhavar crenças velhas e novas, à imagem de um tecelão. Para
Dewey e Rorty, o material do filósofo é o particular. Ele “é útil na solução de
problemas particulares que emergem em situações particulares - situações
em que a linguagem do passado está em conflito com as necessidades do
futuro”67. Mais interessante ainda do que a imagem de tecelão, é a imagem
de “um trabalhador não qualificado, que limpa o lixo do passado para abrir


65
DEWEY APUD RORTY, 2005, p. 125.
66
RORTY, 2005, p. 125.
67
Idem.

25
espaço para a construção do futuro”68, sugestão esta que Rorty atribui a John
Locke. Mas Dewey vai um pouco mais além, ele também atribui ao filósofo
um papel de profeta, pois seus esforços devem estar apoiados numa utopia,
na esperança de um futuro melhor.
Rorty nos dá três exemplos de atuações filosóficas como mediação
entre vocabulários, um antigo e um novo, impulsionado por uma novidade
extrafilosófica, novidades estas que interessam a ele como pragmatista. O
primeiro caso é o de Leibniz, Kant e Hegel, que empreenderam uma tentativa
de reconciliar o vocabulário moral cristão com o vocabulário da ciência
copernicana-galileana e da mecânica de Newton. A segunda novidade é a
sugestão de Darwin de que seres humanos são simplesmente animais mais
complexos, em vez de animais com o ingrediente divino da Razão ou do
intelecto. Esta sugestão fez com que se desfizesse na filosofia a distinção
reinante desde Platão entre natureza e espírito. A terceira demanda por
mediação sobre os filósofos foi a emergência da democracia de massas; esta
veio não da inovação científica, mas da experiência política e colocou em
cheque a distinção entre a busca racional pela verdade e o fluxo de paixões
que caracteriza as massas. Essas duas últimas novidades, em conjunto,
lançam dúvida sobre os velhos dualismos fundamentais da tradição filosófica:
humano e animal, razão e paixão, lógica e retórica, filosofia e sofística,
verdade e utilidade etc.
Para os pragmatistas, tanto os clássicos quanto os neo, “todas as
questões relativas à justificação última devem se referir ao futuro”69; eles não
acreditam que haja uma maneira como as coisas ‘realmente são’ ou ‘devem
ser’, uma verdade que se dê por correspondência entre o enunciado e a
coisa em si ou entre o enunciado e o futuro em si. Não há uma teleologia
imanente. Por isso, querem substituir a distinção entre aparência e realidade
pela distinção entre descrições mais úteis e menos úteis de nós mesmos e do
mundo. Mas, se perguntarmos a um pragmatista, “útil para quê?”, ele não
dará uma resposta detalhada, respondendo, tão somente, “útil para criarmos


68
Idem.
69
RORTY, Richard. "Verdade sem correspondência com a realidade". In:
Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança. Tradução de Cristina Magro. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2000 [1994], p. 26.

26
um futuro melhor”. Se insistirmos e perguntarmos “melhor por que critérios?”,
ele responderá “melhor por conter mais do que consideramos bom e menos
do que consideramos ruim”. Assim como o entusiasta da arte de vanguarda
vai a uma galeria para se surpreender, em vez de para satisfazer suas
expectativas, o pragmatista mantém na sua deliberada imprecisão uma
questão de princípios: ele aposta no futuro, e por isso não quer que ele se
conforme a um plano pré-dado ou pré-político, pré-deliberativo, mas que ele
surpreenda e estimule70.
Para fazer uma filosofia do futuro, precisamos começar a levar o
tempo a sério. E somente conseguiremos fazer isto se estivermos dispostos a
abdicar da ‘pureza’ da disciplina da filosofia, de sua posição no topo da
hierarquia das disciplinas, da imagem da filosofia como uma atividade
autônoma que legitima racionalmente as outras áreas do saber e da cultura.
Apenas poderemos fazer dos filósofos servos da democracia se aceitarmos
determinada desprofissionalização dela e pararmos de nos preocupar sobre
‘quando estamos fazendo filosofia ou não’71. Mas o desejo de evitar o
fundacionismo pode levar, segundo Rorty, a três equívocos: o vanguardismo,
que ele chamou de ‘fundacionismo às avessas’, cujos exemplos de filósofos
que assim fizeram são Marx, Nietzsche e Heidegger, ao sustentarem a ideia
radical de que “nada pode mudar a menos que tudo mude”72; o segundo
equívoco que ele nomeia é o já citado desejo de se ‘confinar’ na
profissionalização, o que ele chamou de ‘escolasticismo’, que seria uma
manobra defensiva e uma tentativa, ao estilo de Kant, de escapar do tempo e
da mudança (aqui Rorty menciona também a filosofia analítica); o terceiro
equívoco seria o desejo de fazer uma filosofia própria para um determinado
país ou região, que ele chamou de ‘chauvinismo’, cujos maiores exemplos
são as desastrosas narrativas sobre a supremacia do povo e da língua
germânica de Hegel e Heidegger. Poetas e romancistas fazem bem em se
dedicar a narrativas, diz Rorty, porém filósofos são melhores na construção
de pontes e na criação de iniciativas cosmopolitas.
Como liberal, Rorty é cosmopolita, porém faz questão de diferenciar


70
Ibid., p. 27-28.
71
RORTY, 2005, p. 128.
72
Ibid., p. 129.

27
um tipo positivo de cosmopolitismo e um tipo negativo. O cosmopolitismo
negativo seria o que ele chamou, para citar Lévi-Strauss, de ‘cosmopolitismo-
Unesco’. Trata-se de uma forma “espúria e decepcionante”73 de
cosmopolitismo baseada na atitude da Unesco, que, fundada em 1940,
manteve-se ‘respeitosamente silenciosa’ em relação a gigantescas afrontas
aos direitos humanos, como os crimes do stalinismo, e ainda se mantém,
hoje, da mesma forma em relação ao fundamentalismo religioso e às
ditaduras mundo afora.
Rorty acredita em um outro tipo de cosmopolitismo: este pode ser,
em questões não-políticas, “tão multicultural e heterogêneo como sempre”74,
mas em questões políticas, deve se basear no Princípio da Diferença de John
Rawls e se sustentar na constante vigilância contra as “previsíveis tentativas
dos ricos e fortes de tirar vantagem dos pobres e fracos”75. Rorty pensa na
utopia de uma democracia global. No entanto, não sugere a ampliação da
democracia pelo uso da força, que parece ser uma autocontradição em
termos, mas pelo uso da ferramenta política da persuasão.
Embora a democracia seja uma invenção europeia, Rorty afirma que
a ideia de igualdade e liberdade pode encontrar ressonância em qualquer
cultura: em todas as tradições podemos encontrar histórias de superação de
desigualdades, de tolerância de diferenças, de paciência e de civilidade.
Cabe ao filósofo buscar e encontrar o “material que possa ser tecido na
imagem de uma comunidade política democrática planetária”76.
Tomás de Aquino fez a mediação entre o Velho Testamento e
Aristóteles; Kant entre o Novo Testamento e Newton; Bergson e Dewey entre
Platão e Darwin; Ghandi entre a linguagem de Locke e Mill e a do Bhagavad
Ghita. A quem caberá fazer a mediação entre a linguagem igualitarista da
democracia liberal e a linguagem explicitamente não-igualitarista de outras
tradições culturais?77. Em Racionalidade e diferença cultural em uma
perspectiva pragmatista, Rorty responde:


73
Ibid., p. 132.
74
Ibid., p. 132.
75
Idem.
76
Ibid, p. 133.
77
Ibid, p. 132.

28
“O trabalho real de edificar uma utopia global
multicultural, suspeito, será feito por pessoas que, durante os
próximos séculos, vierem a desmanchar cada cultura-1
[cultua-comunidade] em uma multiplicidade de fios finos e,
então, tecê-los com outros fios finos retirados de outras
culturas-1 [cultura-comunidade], promovendo o tipo de
diversidade-na-unidade característica da racionalidade-3
[racionalidade hegeliana, que promove a tolerância]”78.

O neopragmatista não tem tanta certeza quanto a se temos ou não


‘tantos séculos’ a nossa frente, pensando nos inúmeros desafios que se
colocam diante da humanidade, porém, em seu típico tom otimista, afirma,
“ter poucas possibilidades não parece ser razão suficiente para desistir de
construir utopias”79.

3. Conclusões
Na subseção “A Liberdade é mais importante do que a Verdade”,
procuramos mostrar que, ancorado nas teorias de John Dewey e John Rawls,
Rorty defende que a democracia não precisa de pressupostos filosóficos
(vide racionais) para se legitimar. Tudo de que ela precisa é do método do
equilíbrio reflexivo aplicado à deliberação: o equilíbrio entre princípios e
intuições presentes no senso comum para gerar decisões políticas. Segundo
Terrence Kelly, para se ver livre da acusação de circularidade, Rawls teria de
admitir o uso do método da reconstrução racional na elaboração de sua
teoria da justiça, partindo de pesquisa empírica. Porém, dada as limitações
desta, Rawls ficaria restrito ao contextualismo. É assim que Rorty redescreve
Rawls: como pragmatista historicista e contextualista. Afirma que a sua
pretensão em O direito dos povos é a de um universalismo de alcance e não
de validade. Em “Racionalidade e diferença cultural para o Pragmatismo e o
papel do filósofo na construção de uma democracia global”, vimos que essa
pretensão está em concordância com a que Rorty expressa.
Na subseção “A prioridade da narrativa para a teoria na discussão
política: pensando a Justiça como lealdade ampliada”, mostramos que Rorty
propõe uma interpretação alternativa da justiça, afirmando que ela nada mais
é do que uma lealdade ampliada. As distinções kantianas entre moral e

78
Ibid, p. 99.
79
Ibid, p. 99, nota 26.

29
prudência, entre razão e sentimento, que resultariam na distinção entre
justiça e lealdade, são desfeitas por Rorty, que descreve que dilemas morais
nada mais são do que dilemas entre duas lealdades, que são diferentes em
grau, mas não em tipo: a lealdade a um círculo mais próximo e a lealdade a
um círculo mais distante, como a família e o Estado, por exemplo. A partir
desta sua concepção de justiça, Rorty expõe sua visão de progresso moral:
ele se daria através da produção e consumo de formas narrativas culturais
que nos sensibilizassem para a complexidade do outro, promovendo o
alargamento da solidariedade através da ampliação de nossa identidade
moral.
Na subseção “Racionalidade e diferença cultural para o Pragmatismo
e o papel do filósofo na construção de uma democracia global”, mostramos
que Rorty desfaz confusões entre usos da palavra ‘racionalidade’ e usos da
palavra ‘cultura’ na tradição intelectual ocidental e exclui a ideia baseada na
racionalidade platônica e na cultura humana, terceiro tipo de cultura, de que
uma cultura-comunidade possa ser avaliada intrinsecamente como superior a
outra. Não obstante, não deixa de afirmar as vantagens que as sociedades
democráticas conquistaram diante de sociedades não-democráticas para
promover um futuro mais livre e menos desigual. Baseado na visão de John
Dewey do papel social da filosofia, Rorty incita os filósofos a servirem à
utopia de uma democracia global. Abdicando da visão da filosofia como
solução de problemas a-históricos e contemplação de verdades eternas, seu
papel deve ser o de acompanhar as mudanças sociais e culturais e mediar
conflitos e incompatibilidades entre duas linguagens. Desde o surgimento da
democracia de massas, a demanda de mediação se faz entre os vocabulários
igualitarista e não-igualitarista. Encontrando pontos em comum entre
culturas-comunidades democráticas e culturas-comunidades não-
democráticas, o filósofo deve buscar a aproximação das duas linguagens,
tecendo novas narrativas que promoverão a utopia da diversidade-na-
unidade em escala global.
Neste ano de pesquisa possibilitada pelo PIBIC-CNPq, tive a
oportunidade de aprimorar minhas habilidades como pesquisadora, aprimorar
minha escrita através do exercício, bem como, sob a orientação do Prof. Dr.

30
Denílson Luis Werle, desenvolver uma linha de pesquisa relevante no âmbito
acadêmico a que, ademais, pretendo dar continuidade.

4. Referências

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