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Herman Dooyeweerd e a Filosofia da Ideia Cosmonômica

Christian Maciel de Britto*

1 Introdução

Herman Dooyeweerd nasceu na Holanda, Amsterdam, em 1894 e cresceu


em meio ao ambiente intelectual proporcionado pelo neocalvinismo holandês ora de-
fendido e desenvolvido por Abraham Kuyper (1837-1920) - estadista, jornalista, pastor,
teólogo, fundador da Universidade Livre de Amsterdam e primeiro ministro da Holanda
(1901-1905), e conhecido como pai do neocalvinismo holandês - cujo pai Hermen era
seguidor enquanto sua mãe, Maria, buscava um estilo de vida piedosamente puritano
(YOUNG, 1966, p.270). Formou-se doutor em direito em 1917 pela Universidade Livre
de Amsterdam onde posteriormente foi professor de filosofia do direito (1926-1965), e
juntamente com seu cunhado D. H. T. Vollenhoven desenvolveu seu sistema filosófico,
cujo resultado é a publicação da obra A ideia da Filosofia Cosmonômica (1935-36), seu
Magnum Opus, que posteriormente foi revisado e publicado sob o título de A Nova Crí-
tica do Pensamento Teórico (1953-58), ainda sem tradução para o português. O siste-
ma de pensamento iniciado por eles foi prontamente seguido por pensadores de diver-
sas partes do mundo ganhando espaço em universidades da Holanda e de outros paí-
ses, como exemplifica sucintamente o teólogo e filósofo brasileiro Guilherme Carvalho:

Hans Rookmaaker, o companheiro de lutas de Francis Schaeffer, fundador da


cadeira de História da Arte na Universidade Livre e do L’Abri da Holanda (Eck
en Wiel), no campo das artes em geral; Bob Goudzwaard, no campo de econo-
mia e sociedade, ex-senador e consultor do Banco Mundial; Egbert Schuurman,
hoje senador da Holanda e um dos fundadores, com van Riessen, da filosofia
da tecnologia em seu país; Pieter Verburg (Groningen), em linguística; M. C.
Smit, em teoria da história; Marinus Dirk Stafleu, na filosofia da física; Henk Ge-
ertsema e J. Klapwijk, no diálogo com o pensamento hermenêutico e com a filo-
sofia judaica; H. J. Eikema Hommes, no campo da teoria juridica; Johan van der
Hoeven, na fenomenologia e na filosofia crítica; Sander Griffioen, no campo da
teoria social; Calvin Seerveld, na estética filosófica; Hendrik Hart, em filosofia
sistemática e ontologia, J. Duyvené de Wit, na filosofia da biologia, Roy Clouser,

*
Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná
E-mail: chriseana@gmail.com
2
em filosofia da religião e epistemologia; Daniel F. M. Strauss, em filosofia da ci-
ência e da sociologia, e James Skillen, em ciência política (CARVALHO, 2010,
p.12-3).

Recentemente Daniel Strauss, também editor de obras de Dooyeweerd para


a língua inglesa, publicou um estudo sobre a aplicação da Filosofia Reformacional à
sociologia (STRAUSS, 2005). Seu pensamento também é utilizado como fundamenta-
ção para abordagens sobre sustentabilidade (BASDEN; LOMBARDI, 1997; BRANDON;
LOMBARDI, 2011; DE RAADT, 2002). Em introdução a uma das obras de Dooyeweerd
traduzidas para a língua inglesa o professor John Witte Jr., da Emory Law School, re-
lembra que este filósofo holandês já foi considerado por Giorgio Delvecchio, grande filó-
sofo neokantiano italiano, como “o mais profundo, inovador e penetrante filósofo desde
Kant”, e ainda, por G. E. Langemeijer, jurista católico romano da Universidade de Lei-
den, como “o filósofo mais original que a Holanda já produziu, mesmo sem excluir Spi-
noza” (DOOYEWEERD, 1986, p.14, nota 11). Todavia, sua obra é, até o presente mo-
mento, pouco conhecida no Brasil.
O presente artigo tem por objetivo, portanto, apresentar brevemente: a) o
contexto intelectual do autor; b) alguns elementos importantes de sua crítica
transcendental do pensamento teórico; c) determinadas características de sua
teoria das esferas modais; d) e, finalmente, os Motivos-Base religiosos do pen-
samento ocidental.

2 Contexto intelectual

O modelo de pensamento elaborado por Dooyeweerd parte da ideia de que o


papel da reflexão filosófica é o de investigar e abordar teoricamente a diversidade, as
dimensões, e as inter-relações do cosmo (KOK, 1998, p.1). Desenvolveu temas que
passam pela sociologia, direito, filosofia, política, teologia, sempre procurando aliar à
sua fé cristã o rigor e a erudição necessários ao empreendimento científico de qualida-
de, o que o levou a dialogar com diversos pensadores na medida em que desenvolvia
seu sistema de pensamento.
3
Sua proposta contém conceitos que concordam com concepções ontológi-
cas, epistemológicas e antropológicas compartilhadas por pensadores como o filósofo
holandês Dirk H. T. Vollenhoven (1892-1978)1, Abraham Kuyper2, Guillaume Groen van
Prinsterer3 (1801-1876) - advogado, historiador e estadista, João Calvino (1509-1564) e
Agostinho (354-430) - teólogos e filósofos; todos pensadores cristãos que buscaram o
fundamento de suas vidas e pensamentos nas Sagradas Escrituras (KOK, 1998, p.180).
Ele também foi influenciado pela filosofia neokantiana e pela fenomenologia de Husserl
(DOOYEWEERD, 1984, p. v).

3 Uma crítica transcendental do pensamento teórico

Grande parte da comunidade filosófica com a qual Dooyeweerd dialogou


compreendia a filosofia como neutra, tendo por únicos guias razão humana e rigor cien-
tífico. Neste contexto, ele observou a existência de inúmeras divergências entre as di-
versas escolas de pensamento filosófico e ciências especiais, o que tornava quase im-
possível o diálogo entre elas. Isto o levou a supor que a questão da neutralidade do
pensamento não é auto evidente; se assim fosse, por que há tantas perspectivas distin-
tas e mesmo contraditórias? Igualmente, percebeu não haver evidências de uma filoso-
fia autônoma, uma vez que a própria ideia de autonomia não era a mesma entre dife-

1
Vollenhoven publicou sua tese de doutorado, A Filosofia Matemática de um Ponto de Vista Teísta (De
wijsbegeerte der wiskunde van teïstich standpunt), na mesma época em que os filósofos Bertrand Russel
e Alfred North Whitehead apresentaram a obra Principia Mathematica, cuja argumentação apresentava a
natureza da lógica matemática e sua neutralidade com relação a crenças religiosas (BRILL, 2005, p.8),
tese oposta a de Vollenhoven.
2
Weber cita Kuyper diversas vezes em seu artigo As Seitas Protestantes e o Espírito do Capitalismo
(1974), mas parece ter considerado apenas alguns aspectos de sua obra teológica em detrimento da
filosófica.
3
Prinsterer publicou em 1847 a obra Descrença e Revolução (PRINSTERER, 2000), em que defendeu a
tese de que a abolição do cristianismo da vida pública poderia apenas levar o país a uma violenta revolu-
ção. Isto ocorreu um ano antes do lançamento da primeira edição de O Manifesto Comunista (1848) de
Marx e Engels, cujo objetivo era o de chamar o proletariado à revolução socialista. Em sua obra mais
conhecida, A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, Max Weber lança mão de obras de Prinste-
rer (Handerboek der Geschiedenis van het Vanderland; La Hollande et l’influence de Calvin; Le Parti anti-
révolutionnaire et confessionnel dans l’église de Pays-Bas) incluindo-as prioritariamente entre os clássi-
cos da historiografia neerlandesa (WEBER, 2004, p.202, 264, 269).
4
rentes escolas de pensamento. Por exemplo, para Tomás de Aquino, a filosofia era au-
tônoma, mas não independente de Deus. Em contrapartida, no período moderno, mui-
tos alegaram a necessidade de total autonomia da filosofia com relação a Deus. Muitos
pensadores chegaram a defender até mesmo uma postura de total autonomia da ciên-
cia com relação à filosofia, como no caso do positivismo radical.
Esta questão sugeriu a ele a existência de alguma coisa mais fundamental
presente na elaboração das teorias filosóficas e científicas, algo mais que simples con-
flitos na interpretação dos fatos e, em última instância, diretamente relacionado à reli-
gião. Preocupado com diálogo entre filosofia, ciência e teologia, já na década de 1930,
observou ser imprescindível para a comunicação efetiva uma tentativa cavalheiresca de
se “penetrar à raiz” (DOOYEWEERD, 2003, p.5, grifo nosso) de pontos de vista distin-
tos. Na sequência, expôs o que chamou de dogma da autonomia religiosa do pensa-
mento cuja argumentação elucida o papel da religião como elemento fundamental para
a construção de uma perspectiva de mundo e de vida, condicionando a priori paradig-
mas filosóficos e a posteriori disciplinas acadêmicas4. Então, elaborou sua crítica
transcendental do pensamento teórico, método pelo qual procurou investigar as con-
dições estruturais deste5 (GEERTSEMA, 2005), bem como seu funcionamento e limita-
ções, através de três perguntas elementares: a) Qual a diferença entre experiência
ingênua e pensamento teórico? b) Qual o ponto de partida da síntese teórica? c)
Como o autoconhecimento é possível e qual sua natureza? Estas questões formam
o que ele chamou de Ideia-Base Transcendental, devendo ser respondidas de maneira
explícita ou não por “todo sistema filosófico” (DOOYEWEERD, 1984ª, p.94). A maneira
como Dooyeweerd responde a elas compõe o que ele chama de Ideia Cosmonômica.
Percebendo também a necessidade de um Ponto de Partida necessário à re-
flexão filosófica, ele chamou de imanente todas as teorias que tentam encontrar sua
origem dentro da realidade empírica, dentro da própria filosofia. Estas perspectivas tem
por característica a absolutização de algo, conceito ou ideia dentro do próprio cosmo

4
A consideração, por exemplo, da existência ou não de Deus bem como sua relação, ou não, com o ser
humano pode fundamentar perspectivas filosóficas e científicas totalmente distintas (DE RAADT, 202).
5
Método semelhante foi utilizado por Kant em sua obra Crítica da Razão Pura, com o intuito de compre-
ender as condições que possibilitam o conhecimento teórico.
5
que sirva como “um ponto fixo e seguro” (DESCARTES, 2005, p.91), através do qual o
sentido de tudo o mais possa ser compreendido ou correlacionado. Em contrapartida,
partiu de uma perspectiva transcendental que reconhece Deus como o criador, que sus-
tenta e possibilita a existência de tudo. Ciente de suas convicções cristãs explica:

Eu estou totalmente consciente de que qualquer método crítico que tente pene-
trar nos motivos religiosos de um pensador corre o risco de causar uma reação
emocional ou soar como ofensa. Ao escrutinar uma linha de pensamento filosó-
fico até seus fundamentos religiosos mais profundos não estou, de maneira ne-
nhuma, atacando meus adversários pessoalmente, nem estou me exaltando de
maneira ex cathedra. Tal equívoco quanto à minha intenção é muito angustiante
para mim. Um ato de julgamento quanto à condição religiosa de um adversário
seria um tipo de orgulho humano que pressupõe poder este ocupar o próprio lu-
gar de julgamento de Deus (DOOYEWEERD, 1984, p. viii-ix, tradução nossa).

Consideração importante já que problemas de interpretação podem surgir ao


se utilizar termos com alta carga semântica como Deus, cristianismo, fé, realidade, as-
pectos, lei, religião, ciência, filosofia, ética.

4 In principio

“No princípio Deus criou os céus e a terra”6 - sem este fundamento não há
como compreender o pensamento elaborado pelo autor. Esta concepção de ordem cri-
acional compreende que tudo é governado através das leis de Deus, constituindo uma
cosmonomia; daí seu sistema filosófico ser chamado Filosofia da Ideia de Lei (Wijsbe-
geerte der Wetsidee) ou, ainda, Filosofia Cosmonômica. Assim, fica estabelecida uma
distinção qualitativa entre Criador e criatura através da fronteira demarcada pela lei que
sujeita factualmente toda a criação. Aqui, o termo fronteira pretende indicar apenas uma
“distinção entre Deus e criatura com respeito à sua relação com a lei” (DOOYEWEERD,
1984, p.99, NC I). Neste contexto, lei não possui caráter restritivo ou punitivo, mas viabi-
lizador, formando uma estrutura que a tudo possibilita existência e desenvolvimento.
O cosmo é temporal, ou seja, a totalidade da criação com seus aspectos físi-
cos e normativos estão inseridos no tempo, e seu Criador é supratemporal. O conceito
de tempo utilizado aqui possui caráter mais abrangente que o usual porque diz respeito
6
Cf. Gênesis 1,1.
6
tanto à ordem quanto à duração das coisas. Deste modo, toda a estrutura cosmonômica
imprime sua ordem dentro da temporalidade e toda e qualquer entidade possui uma
duração dentro do tempo. Para ele, a própria formulação do conceito de tempo cósmico
per si é impossível porque pressupõe tempo (DOOYEWEERD, 2006, p.33). O que pode
ser formado, portanto, é apenas uma ideia teórica de conceito limítrofe (limiting con-
cept), aplicada num sentido restritivo.
Dentro da realidade temporal, o autor distingue entre: a) Lado Factual7, tam-
bém chamado Lado da Entidade, que compreende a ocorrência de tudo que existe ou
pode surgir e desenvolver cuja duração é variável, cronológica8, incluindo coisas, atos,
eventos, a própria existência humana, bem como animais, vegetais, átomos, bactérias,
galáxias; b) Lado-da-Lei, que é a estrutura que estabelece a ordem das coisas, possui
duração constante, é imutável, universal e viabilizador da ocorrência de entidades no
Lado Factual. A correlação entre estes lados é harmonicamente indissociável, não de-
vendo ser compreendida como uma dicotomia presente na realidade. Isto porque não
há lei sem sujeito que se sujeite, nem sujeito sem lei que o limite e o estabeleça através
de uma ordem. Nesta estrutura se encontram leis físicas que regem os corpos, bióticas
que possibilitam vida aos organismos, econômicas que permitem a frugalidade, dentre
outras que podem ser agrupadas formando esferas de leis, que por sua vez caracteri-
zam modalidades, ou aspectos, da realidade. Estes aspectos são a priori ônticos
(DOOYEWEERD, 2006, p. 95), porque possibilitam todo o fenômeno transitório da rea-
lidade temporal e não estão presentes somente na consciência subjetiva, mas também
nas coisas.
As diversas leis presentes de maneira estrutural no Lado-da-Lei podem ser
percebidas no Lado Factual, pelo agrupamento de propriedades distintas apresentadas
pelas entidades, assim, durante toda a sua história, a filosofia ocidental sempre reco-
nheceu a riqueza de diversidade da realidade, tal percepção indica indiretamente a

7
Primeiramente Dooyeweerd utilizou o termo Lado-do-Sujeito, subject-side, mas reconheceu numa fase
mais madura de seu pensamento que o termo Lado Factual seria mais apropriado para evitar possíveis
ambiguidades, conforme explica o responsável pela tradução de várias obras do autor para o inglês Da-
nie Strauss (DOOYEWEERD, 2006, p. 96-7, nota 2). Há também autores que utilizam o termo Lado-da-
Entidade (BASDEN, 2007).
8
Para uma discussão mais profunda acerca do tempo conferir (DOOYEWEERD, 2006, p.29-33).
7
existência de aspectos distintos. A especialização das ciências e os “ismos” na filosofia
refletem também esta característica da realidade empírica (STRAUSS, 2009). Com ba-
se em seus estudos, Dooyeweerd sugere a distinção de 15 aspectos irredutíveis e inse-
paráveis: quantitativo, espacial, cinemático, físico, biótico, sensitivo, analítico, formativo,
linguístico, social, econômico, estético, jurídico, ético e pístico. Contudo, o autor salienta
que estes aspectos são por ele sugeridos, não sendo, portanto, uma imposição dog-
mática de sua parte9.
A realidade é compreendida por Dooyeweerd como significado e encontra
seu sentido em Deus e não em si mesma ao apontar para uma referência que está
além de si mesma; ela não é uma coisa em si, portanto, não tem sentido, ela é sentido.
Sua referência está no Arqué, na sua Origem de sentido, em Deus seu criador, e seu
sentido verdadeiro só pode ser interpretado corretamente na sua relação com Ele. Se
esta relação apontar para uma origem falsa surgem antinomias, os conflitos de leis, que
podem ser percebidas através das contradições lógicas originadas da não consideração
dos diferentes tipos de leis presentes nos diversos aspectos da realidade, ou da tentati-
va de se reduzir o significado de um ou mais aspectos a outros. Assim, as antinomias
sempre revelam a existência de reducionismos ontológicos (Principium Exclusae Anti-
nomiae), já que leis ônticas não conflitam entre si (DOOYEWEERD, 2003, p.225). A
noção de realidade como significado permite a percepção da nossa experiência da ver-
dade como possivelmente relativa e falível, ao mesmo tempo em que não desconsidera
a existência de verdade absoluta, da existência de significado verdadeiramente Real e
concreto das coisas. Há concomitantemente a Verdade e o que é tomado como verda-
de, com efeito, o significado das coisas é relativo, mas é apenas encontrado verdadei-
ramente na sua referência com o Criador (BASDEN, 2005). Isto possibilita a existência
simultânea de Verdade absoluta e relativa em um único sistema filosófico.

9
Outros filósofos sugeriram diferentes aspectos que poderiam compor e enriquecer os já oferecidos (DE
RAADT, 2000; 2002).
8
5 Experiência ingênua e pensamento teórico

A experiência ingênua, que também pode ser chamada de ordinária, cotidia-


na, imediata, ou ainda pré-teórica, é compreendida pelo autor como a atitude humana
marcada pela experiência das coisas como elas são. Assim, uma coisa, um ato, uma
relação qualquer em particular, é são experimentados em sua totalidade multiaspectual
de maneira imediata e em sua coerência inquebrável de sentidos. Para ilustrar tal per-
cepção, Dooyeweerd mostra uma situação imaginária na qual uma equipe multidiscipli-
nar de cientistas observa o simples evento em que um homem entra em uma loja para
comprar cigarros (DOOYEWEERD, 2006, p. 13-5). Daí, um jurista abstrairia do evento
sua configuração legal; um economista, o aspecto econômico; um sociólogo, as formas
sociais; um historiador, os aspectos histórico-culturais. Além disso, poderiam ser abstra-
ídos aspectos lógicos, estéticos, psicológicos, físicos, matemáticos, éticos e teológicos.
“Cada aspecto da transação concreta que tomou lugar na loja de cigarros tendo sido
descrita, claro, apenas em termos gerais e provisórios é abstraído da realidade tempo-
ral concreta pela ciência pertencente a esta” (DOOYEWEERD, 2006, p.15, tradução
nossa). Para o comprador envolvido no exemplo, alguns aspectos no momento da
compra podem ser mais visíveis que outros, como o detalhe em que se atém ao aspec-
to econômico da transação para conferir o troco recebido do vendedor. Todavia, todo o
contexto, ou seja, todos os aspectos estão presentes tacitamente. Deste modo, perma-
nece o caráter multifacetado, multiaspectual da realidade em que todos os aspectos são
experimentados de maneira simultânea e tácita. Podemos, assim, apenas observar in-
genuamente um belo pôr do sol apenas apreciando-o, vendo-o, mas a partir do momen-
to em que, através de minha experiência sensorial, concluo que o sol se move ao redor
da terra, por exemplo, cruzamos o limite da experiência ingênua para o do pensamento
teórico. Nas palavras do autor:

Nossa visão [na experiência ingênua] é direcionada não aos relacionamentos


abstratos dos números, das figuras espaciais abstratas, dos movimentos abstra-
tos da matéria, dos inter-relacionamentos abstratos dos sentimentos, das abs-
tratas formas de linguagem e intercurso social, dos abstratos relacionamentos
legais, etc. Pelo contrário, experimentamos aqui a realidade na estrutura de to-
talidade concreta das coisas individuais, eventos, atos, e das formas concretas
9
de vida social, como a família, o Estado, o empreendimento comercial, a igreja,
etc. (DOOYEWEERD, 2002, p.27, grifo nosso, tradução nossa).

Na experiência ingênua, a atenção se orienta não para os aspectos individu-


ais da totalidade experimentada, mas para a totalidade individual em si; "a experiência
ingênua não é de forma nenhuma uma teoria da realidade; é simplesmente experiência
ordinária sem imposição de nenhum refinamento" (DOOYEWEERD, 2002, p.24). Aqui o
que está em jogo é uma simples relação sujeito/objeto. Com base nesta realidade vivi-
da, o sujeito adquire os insumos necessários ao pensamento teórico, que se distingue
do ingênuo pela característica da abstração, cujo esforço exige a priori a elaboração de
uma teoria acerca da realidade, um artefato intelectual.
A atitude teórica surge quando contrapomos nosso aspecto lógico, ou seja,
nossa cognição, aos demais aspectos não-lógicos (numérico, espacial, físico, cinemáti-
co, sensitivo, biótico, histórico/formativo, social, jurídico, ético, pístico) do objeto, ação,
ou evento que propomos analisar. Esta atitude é chamada de antitética e a relação que
é estabelecida entre o sujeito epistêmico e o objeto analisado é definida como gegens-
tand. Esta palavra alemã significa objeto e é utilizada tecnicamente pelo autor para se
referir a algo enquanto cientificamente analisado, ao mesmo tempo em que o objeto per
si permanece concretamente em sua totalidade multiaspectual na realidade empírica.
Daqui em diante, ao invés da palavra gegenstand será utilizado o termo relação sujei-
to/teoria-do-objeto. Veja na figura 1 o exemplo de um biólogo a fazer uma bio-logia ao
observar cientificamente uma árvore.
Ao considerar a característica multiaspectual da realidade compreende-se
que um objeto analisado na relação sujeito/teoria-do-objeto nunca pode ser reduzido ao
aspecto lógico. Por isso, a realidade nunca poderá ser abordada teoricamente de modo
exaustivo e será sempre uma aproximação, um recorte que se propõe a explicar logi-
camente propriedades não-lógicas apresentadas pelas entidades. Neste sentido, o es-
tabelecimento da relação sujeito/teoria-do-objeto, proporcionada pela atitude teórica, dá
a luz diversas disciplinas científicas na medida em que cada uma focaliza seus estudos
em um ou mais aspectos da realidade, desenvolvendo, para tanto, metodologias espe-
cíficas de abordagem com o objetivo de alcançar um conhecimento aproximado das
especificidades de cada aspecto (Figura 1).
10
Contudo, argumenta Dooyeweerd:

Deve-se ter clara certeza de que o pensamento teórico é de fato um pensamen-


to que subtrai algo da realidade no seu todo. As ciências especiais dividiram a
realidade em compartimentos; mas todas as ciências especiais juntas, em sua
complementação mútua de umas com as outras, não podem nos levar ao co-
nhecimento da realidade em sua unidade indissociável. Ajuntar as partes corta-
das de uma maçã não nos devolve a peça original do fruto (DOOYEWEERD,
2006, p.28, tradução nossa).

Assim, a filosofia assume, na perspectiva do autor, um papel relevante na


tentativa de abordar teoricamente a riqueza multiaspectual da realidade empírica com
suas inter-relações, fornecendo às ciências especiais uma percepção mais plena do
caráter multifacetado de seus objetos de investigação.

Figura 1 – Experiência Ingênua e Pensamento Teórico


11
6 Ponto de partida da síntese teórica

Uma vez que o pensamento teórico se dá pela abstração - análise - de as-


pectos da realidade, que por sua vez só podem ser compreendidos em sua coerência
inquebrável, como são sintetizados novamente – síntese - para serem compreendidos?
Segundo Dooyeweerd, o ser humano percebe intuitivamente e imediatamente todos os
aspectos da realidade e não se restringe a nenhum deles 10, pelo contrário, ele é através
de todos eles. Logo, deve haver algo que preceda todos os aspectos para possibilitar
sua própria percepção. Mas se os diversos aspectos são campos ônticamente distintos
e toda e qualquer teoria, sobre um ou mais aspectos, é apenas um exercício de redu-
ção destes ao nosso aspecto analítico, então é preciso algo mais profundo que um Ego
lógico ou epistemológico, alguma coisa que os transcenda. Para que o Eu humano pos-
sa perceber os diversos aspectos da realidade concreta, ele deve necessariamente
transcendê-los; conceber o Eu como sendo uma mera função lógico-teórica seria redu-
cionismo. O autor ilustra que se um viajante deseja obter um panorama de uma cidade
a seu redor ele deve, para tanto, subir a um ponto de observação que o possibilite visu-
alizar toda a cidade. Caso contrário, apenas poderá obter impressões da cidade de par-
ticulares ângulos óticos. Da mesma forma, a "filosofia também precisa de um ponto de
observação situado acima dos vários aspectos da realidade temporal" (DOOYE-
WEERD, 2002, p.34) para que possa percebê-los. Este ponto foi chamado de “Ponto
Arquimediano” da filosofia. Em suas palavras:

A filosofia é teórica e, em sua constituição, permanece circunscrita à relativida-


de de todo pensamento humano. Como tal, a própria filosofia precisa de um
ponto de partida absoluto. Este deriva exclusivamente da religião. A religião ga-
rante estabilidade e ancoragem até mesmo para o pensamento teórico. Aqueles
que pensam ter encontrado um ponto de partida absoluto dentro do próprio
pensamento teórico chegam a essa crença essencialmente através de um im-
pulso religioso. Devido à falta de verdadeiro autoconhecimento, no entanto, eles

10
Igualmente, Strauss afirma que “seres humanos não podem ser totalmente caracterizados meramente
em termos de um aspecto da realidade. Tal ideia é encontrada em afirmações de que o ser humano é um
ser moral-racional, um ser social, um ser econômico (Homo economicus), um ser simbólico (Homo sym-
bolicus), e assim por diante. Seres humanos funcionam em todos estes aspectos sem serem completa-
mente absorvidos por apenas um deles. Além disso, cada ser humano, individualmente, pode assumir
uma multiplicidade de papéis sociais dentro de uma sociedade diferenciada sem, contudo, ser esgotado
por nenhum destes papéis sociais” (STRAUSS, 2009b, p.127, nota 22, tradução nossa).
12
permanecem inconscientes à sua própria motivação religiosa. O absoluto tem o
direito de existir apenas na religião. Consequentemente, um ponto de partida re-
ligioso clama ou por sua absolutização, ou por sua própria abolição. Nunca
sendo meramente teórico, uma vez que a teoria sempre é relativa. O ponto de
partida religioso penetra para além dos fundamentos da própria teoria, sendo
base absoluta de toda a existência temporal que, por sua vez, portanto, é relati-
va (DOOYEWEERD, 2003, p.8, tradução nossa).

Deste Modo, o homem é dotado de uma raiz religiosa que não pode ser su-
primida, mas deve ser explicitada. Aqui o conceito de religião aplicado pelo autor não
diz respeito a um fenômeno temporal da fé e nem se trata de linguagem religiosa ou de
sentimentos religiosos, valores, crenças, que podem ser descritos fenomenologicamen-
te, mas:

A Religião não é uma área ou esfera da vida, mas tudo engloba e direciona,
proporcionando sua raiz. Está a serviço de Deus (ou de um substituto não-
Deus) em todos os domínios do empreendimento humano. Como tal deve ser
acuradamente distinguida da fé religiosa, que nada mais é que um dos muitos
atos e atitudes da existência humana. Religião é negócio do Coração e, como
tal, direciona todas as funções humanas (DOOYEWEERD, 2003, p.230, tradu-
ção nossa).

[É um] impulso inato da individualidade humana que a direciona para a verda-


deira ou para uma aspirada Origem absoluta de toda a diversidade temporal de
sentido (DOOYEWEERD, 1984a, p.57, tradução nossa).

Assim, a religião não representa somente uma das esferas da vida humana,
mas a raiz, cuja orientação se constitui chave hermenêutica para a compreensão do
sentido do cosmo.

7 Da possibilidade e natureza do autoconhecimento

Dada a necessidade de um ponto de partida para o pensamento teórico, on-


de encontrá-lo? Segundo Dooyeweerd:
Apenas podemos descobrir o ponto arquimediano para o pensamento teórico,
no qual a síntese teórica se torna inicialmente possível, relacionando todos os
aspectos à sua origem absoluta. Esta [por sua vez] não é um sujeito epistemo-
logicamente abstrato, mas apenas nosso próprio Ego, como indivisível pon-
to de concentração de toda a nossa existência temporal, que torna possível
ao pensamento esta orientação concêntrica (DOOYEWEERD, 2006, p.44, tra-
dução nossa, grifo nosso).
13
Este ato concêntrico que relaciona toda a diversidade temporal à Origem ab-
soluta de sentido de todas as coisas é inegavelmente de caráter religioso (DOOYE-
WEERD, 2006, p.45). Na religião, nosso Ego, como centro individual, se posiciona em
imediato relacionamento com Deus, ou algo pretendido, como Origem absoluta de to-
das as coisas. Deste modo:
A humanidade funciona em todos os aspectos da realidade temporal sem exce-
ção. Mas a existência humana encontra sua unidade profunda, seu verdadeiro
centro supra temporal, no “coração” que também é chamado nas Escrituras de
“alma” ou “espírito” de uma pessoa (que, por sua vez, não tem nada em comum
com os conceitos de espírito e alma na filosofia imanente). Seja a serviço de
Deus ou de um ídolo, todas as funções temporais, incluindo o pensamento, to-
mam seu ponto de partida, e se focalizam, no coração (DOOYEWEERD, 2006,
p.46, tradução nossa).

O termo coração, no sentido dooyeweerdiano, não deve ser confundido com


funções temporais do sentir e do pensar, uma vez que elas próprias são possibilitadas
através dos aspectos sensoriais e analíticos respectivamente (DOOYEWEERD, 2006,
p.46). Esta descoberta do coração como centro da existência humana é considerada,
pelo próprio autor, como uma revolução copernicana em seu pensamento (DOOYE-
WEERD, 1984, p. V). Este ponto de partida não concentra apenas a existência humana,
mas também o significado de todo o cosmo temporal; seu sentido é, ao mesmo tempo,
supra individual e deve abarcar o Ego humano de modo que ele participa naquele. Por-
que se o ponto de partida do pensamento não compartilha do mesmo ponto que dá sen-
tido a todo o cosmo temporal ele permaneceria extrínseco a este (DOOYEWEERD,
2006, p.47). Mas como esta participação é possível? Segundo Dooyeweerd, há apenas
uma possibilidade para um ponto de partida supraindividual no qual o Ego individual
participe de maneira completa, a saber, “a comunidade-originária religiosa da raça hu-
mana” (DOOYEWEERD, 2006, p.47).
Assim, um indivíduo participa desta comunidade, ainda que esta possua ca-
ráter supraindividual. A escolha do ponto arquimediano está acima de nossas convic-
ções pessoais e crenças, sua influência se eleva acima da convicção pessoal de um
14
pensador11. O autor explica que a Bíblia revela que a humanidade foi criada de tal forma
em uma comunidade-originária, que juntamente com Adão, o primeiro ser humano, toda
a raça humana se separa de Deus por causa do pecado. Da mesma forma, a Bíblia en-
sina que a totalidade de sentido do cosmo temporal estava de tal maneira focalizada
nesta comunidade-originária que, com a Queda da humanidade no pecado, todo o
cosmo temporal foi comprometido.
Por Queda se compreende uma apostasia radical, no que diz respeito à raiz,
com relação a Deus. A humanidade pensando ser algo per si, ou seja, como deus, co-
meça a buscar sentido dentro de si mesmo ou nos artefatos que cria, tomando por seu
deus aquilo que é temporal; prática esta que a Bíblia chama de idolatria. Daí a necessi-
dade de verdadeiro autoconhecimento, caminho necessário à descoberta do ponto ar-
quimediano da filosofia que, por sua vez, é completamente dependente do conhecimen-
to de Deus; apenas conhecendo-o é que a humanidade verdadeiramente se conhece 12.
Este conhecimento é obtido pelas Sagradas Escrituras divinamente reveladas ao ho-
mem juntamente com a auto revelação de Deus para a humanidade através das coisas
criadas que, em toda sua diversidade, aponta para Ele. Todavia, mesmo para quem
descarta a validade da Palavra revelada, permanece o princípio de que o autoconheci-
mento depende do conhecimento que a humanidade tem de seu Deus ou de um deus,
ou ainda deuses, substituto. Este princípio é chamado lei da concentração religiosa,
pois estabelece uma relação na qual a perspectiva que se tem de deus condiciona dire-
tamente a percepção antropológica13. O autor relembra que, acerca da relação de um
povo com seus mitos, conclusão semelhante havia sido oferecida por Ernst Cassirer:

11
Sobre a inabilidade do coração humano, per si, de apontar para Deus, parece concordar o filósofo e
matemático Blaise Pascal (1623-1662), que diz: “Nunca se crerá com uma crença útil e de fé, se Deus a
tanto não inclina o coração; crer-se-á desde que ele o incline” (PASCAL, 1979, p.108, pensamento 284).
12
Princípio presente no pensamento de Calvino (CALVINO, 2008, p.37ss).
13
Neste sentido, Dooyeweerd explica que para Aristóteles deus seria o pensamento puro e absoluto, não
mais restrito aos sentidos, por consequência sua perspectiva antropológica se fundamentava na habilida-
de teórica de pensar que distinguia o Homem dos animais. Para Leibniz, deus seria o grande geômetra
(intellectus archetypus), assim o centro da natureza humana seria o pensamento matemático. Para Kant,
deus seria essencialmente moral, portanto o centro da natureza humana seria a função moral autônoma
e supra sensorial. Nos chamados povos primitivos, onde se encontra a cultura do mana, que envolve a
submissão do grupo a forças naturais impessoais, e do totemismo, onde o grupo local se identifica com o
totem familiar. O que se averígua em ambos os casos é a não percepção da personalidade humana que
se confunde com animais, plantas e coisas inorgânicas.
15
“Assim sempre volta a confirmar-se que o homem só apreende e reconhece seu próprio
ser quando pode tornar-se visível na imagem de seus deuses” (CASSIRER, 2004,
p.366).

8 Teoria das esferas modais

A realidade é uma estrutura composta por conjuntos distintos de leis em que ca-
da agrupamento é chamado de Esferas-de-lei (Law Spheres), que caracterizam modali-
dades ou "formas gerais" (DOOYEWEERD, 1986, p.61) através das quais são apresen-
tados diversos aspectos. Estas modalidades são modos transcendentais, a prioris ônti-
cos, modos distintos de ser que conferem ordem e constância ao cosmo, cabendo às
ciências especiais percebê-las e positivá-las. Elas exibem uma ordem hierárquica cres-
cente formando uma sequência sucessiva, de maneira que as posteriores se fundamen-
tem nas anteriores. Assim, a posição de cada esfera se deve ao aumento de complica-
ção por ela apresentada e se mantém através da harmônica relação intermodal14. Ao se
partir de uma determinada modalidade, é possível se falar em substrato e superestrato
modal para se referir ao conjunto de modalidades anteriores ou posteriores (DOOYE-
WEERD, 1984b, p.52).
Segundo Dooyeweerd, essa sucessão de esferas, cada uma com sua sobe-
rania irredutível e interdependente, não foi percebida pelo paradigma científico huma-
nista que, desde Descartes, assumiu que tal ordem correspondia simplesmente a uma
continuidade lógica decorrente da complicação observada nos fenômenos empíricos
sem, em nenhum momento, ponderar a possibilidade de tais complicações apontarem
para a existência de esferas distintas de lei (DOOYEWEERD, 1984b, p.49). Por sua
composição, a ordem das modalidades forma uma coerência de significado inquebrável
(DOOYEWEERD, 1984b, p.49), em que a soberania de uma esfera modal é garantida
por um núcleo de sentido exclusivo que é envolvido por vários momentos modais ana-
lógicos que estabelecem referência a núcleos de outras modalidades. Deste modo, é

14
Lembrando que a ideia de posição aqui não se refere a nenhuma relação espacial - que só é possível
através de leis específicas próprias da modalidade espacial - mas à ordem cósmica do tempo (DOOYE-
WEERD, 1984b, p.50).
16
preciso tomar o devido cuidado para que um núcleo de sentido modal não seja confun-
dido com os momentos analógicos que o envolvem (DOOYEWEERD, 1984b, p.92). Es-
tas analogias ocorrem tanto no Lado-da-Lei quanto no Lado-Factual (DOOYEWEERD,
1984b, p.75) e, partindo de uma modalidade específica, podem se referir a outras por
antecipação ou retrospecção (Figura 1), ao apontar para momentos analógicos de mo-
dalidades posteriores ou anteriores, respectivamente 15 (DOOYEWEERD, 1984b, p.49),
por exemplo:

Na física alguém me fala de espaço físico; em biologia, de espaço biológico


(ecologia), ou de milieu biológico (Umwelt); em psicologia, dos espaços de per-
cepção sensória; na lógica, da extensão lógica ou espaço formal analítico; em
jurisprudência, de espaço jurídico ou do domínio no qual as normas legais são
válidas; em economia, do espaço econômico, etc. Todos esses conceitos ana-
lógicos do espaço estão, em última análise, relacionados ao núcleo de sentido
do aspecto espacial: a extensão. Entretanto, no uso analógico do conceito está
alguma coisa mais que apenas a noção de espacialidade pura no sentido origi-
nal de uma extensão dimensional ininterrupta na qual há simultaneidade com-
pleta de todos os seus pontos. Não importando se essa espacialidade original é
pensada metricamente de um modo Euclideano ou não-Euclideano, ela não é
qualificada como tal de um modo físico, ou biológico, ou sensório, ou lógico, ou
histórico, ou econômico, ou jurídico (DOOYEWEERD, 2009, p.55).

Considerando a pluralidade harmônica e inquebrável de sentidos existente


na realidade, qual método foi utilizado por Dooyeweerd para propor uma ordem teórica
das modalidades percebidas intuitivamente? Segundo ele, a ordem de sucessão modal
deve ser detectada pelo cuidadoso exame das modalidades e suas funções, incluindo
suas antecipações e retrospeções. Para esta análise deve ser aplicado o princípio da
antinomia, que é sempre um sinal lógico de reducionismo ontológico (DOOYEWEERD,
2003, p.225). Deste modo, procurou contrapor cuidadosamente a ordem e o sentido de
cada modalidade com a percepção filosófica de diferentes pensadores, observando
sempre que a não consideração das delimitações modais consequentemente davam
azo a diversas antinomias. Esta abordagem analítica, no entanto, não é uma organiza-
ção de classes de conhecimento, mas a compreensão de como uma esfera está fun-
damentada em outra a partir da consideração de sua estrutura irredutível de significado.

15
É interessante notar que a própria característica analógica da realidade empírica sugere a existência de
uma coerência intermodal (DOOYEWEERD, 1984b, p.55).
17
Passemos a uma breve explanação dos aspectos e seus núcleos de sentido de acordo
com a ordem da escala modal:
a) Numérico (quantidade): aspecto terminal (DOOYEWEERD, 1984b, p.83),
sem substratos modais, que possibilita o sentido quantitativo da realidade e a ordem
numérica do tempo cósmico em suas direções positivas e negativas. Neste sentido se
compreende que um número per si é uma abstração teórica, uma função modal, e não
uma coisa16;
b) Espacial (extensão contínua): não existe sem seu substrato modal
(DOOYEWEERD, 1984b, p.85); tem por núcleo de sentido a extensão contínua, que
não pode ser reduzida à percepção sensorial de espaço (DOOYEWEERD, 1984b,
p.86), nem pela noção de magnitude, que é uma analogia retrospectiva da modalidade
numérica (DOOYEWEERD, 1984b, p.87);
c) Cinemático (movimento); a intuição pura de movimento se apresenta
como fluxo contínuo a partir da percepção de sucessão de momentos temporais (DOO-
YEWEERD, 1984b, p.93); seu núcleo de sentido é captado pelo estudo da cinemática
no campo da matemática pura (DOOYEWEERD, 1984b, p.97) e não pode ser reduzido
exaustivamente como parte apenas do aspecto sensorial, espacial ou numérico. Um
dos exemplos apontados por Dooyeweerd é o do paradoxo de Zenão 17, que ilustra a
impossibilidade de se reduzir o movimento ao aspecto espacial (DOOYEWEERD,
1984b, p.103)18;
d) Físico (energia), tem por núcleo de sentido a energia, seja esta atualiza-
da ou em potência, e implica relações de causalidade (DOOYEWEERD, 1984b, p.99).
Uma analogia retrospectiva entre o aspecto físico e o do movimento é percebida no es-
tudo da mecânica (DOOYEWEERD, 1984b, p.99). Mas, da mesma forma que a cinemá-

16
Um exemplo de que a coerência modal é inquebrável está no fato de que a própria contagem numérica
só é possível através da distinção analítica (DOOYEWEERD, 1984b, p.80), ou seja, a própria compreen-
são da esfera modal numérica não é possível sem a modalidade lógica.
17
O filósofo grego Zenão apresenta um problema que se baseia na estória de um corredor que, para per-
correr uma determinada distância, deve passar sempre pela metade do caminho que lhe resta para a
chegada parando sucessivas vezes até o final do percurso. Sua conclusão é que o atleta nunca chegaria
ao seu destino, uma vez que inúmeros pontos delimitariam tal percurso permitindo infinitas divisões.
18
Segundo Dooyeweerd, Kant já havia percebido a distinção entre espaço e movimento, chegando a pro-
por a noção de foronomia como estudo do movimento puro das coisas “onde nenhuma outra propriedade
se atribuirá ao sujeito da mesma, a saber, à matéria excepto a mobilidade” (DE MENEZES, 2006, p. 62).
18
tica pode definir o conceito de movimento uniforme sem nenhuma referência à força
causal, o conceito físico de aceleração não pertence à cinemática, mas à física apenas
(DOOYEWEERD, 1984b, p.99), apontando assim para uma distinção modal;
e) Biótico (vida): seu núcleo de sentido é a vida ou o que possibilita as fun-
ções vitais. A vida não pode ser percebida sensorialmente como algo per si19, embora
se manifeste em fenômenos sensíveis (DOOYEWEERD, 1984b, p.108-110). A tentativa
de reduzir a vida a algo puramente mecânico ou químico é confrontada com a experiên-
cia empírica que nos mostra sua transcendência a estes aspectos. É por isso que não
se podem gerar organismos vivos exclusivamente por combinações químicas, embora
lhes sejam fundamentais;
f) Psíquico (sensações): seu núcleo de sentido não deve ser confundido
com a concepção metafísica grega de psychè, nem com a ideia de alma como coletivo
de diversas funções modais (DOOYEWEERD, 1984b, p.111). As sensações (sensation
/ Empfindungen) são elementos subjetivos do sentir que se apresentam como fenôme-
nos pela referência às qualidades sensoriais objetivas das coisas ou eventos (DOO-
YEWEERD, 1984b, p.116-7);
g) Lógico (distinção analítica): por distinção analítica se compreende o ato
de separar teoricamente o que está unido (DOOYEWEERD, 1984a, p.39). Analogias
com o aspecto numérico são encontradas na consideração de conceitos como unidade
analítica e análise múltipla. Cada conceito, visto logicamente, resulta de uma unificação
lógica de vários momentos num processo que se desenvolve de acordo com normas
analíticas do pensamento que permitem a identificação de qualquer contradição. Com
efeito, toda relação analítica, mesmo a de identificação, implica numa analogia numéri-
ca, uma vez que a própria análise é uma forma de distinção e requer a identificação de,
pelo menos, dois termos: um e outro, ou, igualmente, este e aquele;
h) Histórico-Cultural (poder formativo): tanto a noção de cultura como
complexo de aspectos normativos e a ideia de história como composta simplesmente
por eventos específicos associados à noção de tempo não são utilizadas por Dooye-
weerd. Em contrapartida, a história se dá pelo desenvolvimento da modelagem cultural
19
O biólogo Ernst Mayr concorda que não há como definir vida, não havendo, portanto, substância, obje-
to, ou força especial que se possa chamar vida (EL-HANI e VIDEIRA, 2000).
19
possibilitada pela ação da mente humana através das suas relações sociais atualizadas
em atos concretos (DOOYEWEERD, 1984b, p.228). A ideia de poder formativo está
relacionada à possibilidade de livre planejamento, que, ao dar forma a algum material,
físico ou não, anteriormente dado, abre possibilidades que excedem aos padrões pré-
vios, podendo assumir inúmeras variações (DOOYEWEERD, 1984b, p.196-8);
i) Linguístico (significação simbólica): aspecto que possibilita a compre-
ensão linguística dos símbolos através de leis específicas para princípios fonológicos,
sintáticos e outros. Tem como substrato modal a modalidade formativa sendo sua coe-
rência modal inseparável do desenvolvimento histórico. Contudo, ainda que a lingua-
gem seja responsável por dar significado ao sentido da história, não pode com esta ser
confundida porque o sentido designativo permanece na modalidade linguística (DOO-
YEWEERD, 1984b, p.223);
j) Social (intercurso social): o núcleo de sentido da esfera social não deve
ser compreendido como vida social ou com a ideia de sociedade no sentido em que
envolve todos os aspectos da realidade (DOOYEWEERD, 1984b, p.141). Fundamenta-
da na esfera da significação simbólica, engloba "toda forma de intercurso e toda instân-
cia subjetiva de comportamento social que a dá expressão" (DOOYEWEERD, 1984b,
p.228). Mas, embora não se manifeste sem significação simbólica, encontra-se fora do
sentido próprio da linguagem. (DOOYEWEERD, 1984b, p.228). Assim, quem historiciza
o sentido do intercurso social primariamente historiciza o sentido da linguagem;
k) Econômico (frugalidade, eficácia administrativa): possibilita a adminis-
tração de bens escassos com frugalidade, sendo esta a evasão de meios excessivos de
se alcançar um objetivo (DOOYEWEERD, 1984b, p.67). Assim, a aplicação técnica da
ciência econômica se pauta pela busca de controle de recursos com grau máximo de
eficiência. A economia demanda balanceamento de necessidades e distribuição de re-
cursos de maneira bem planejada e é fundamental que o termo economia é utilizado na
ciência econômica;
l) Estético (harmonia): modalidade composta por diversas normas estéticas;
tem como momento nuclear a harmonia em seu sentido original (DOOYEWEERD,
1984b, p.128), que permite unidade na multiplicidade, não devendo ser confundida com
20
o conceito de beleza que pode assumir formas de expressão histórica distintas. Por es-
tar fundamentada na modalidade econômica, permite a noção de economia estética no
sentido de permitir o abandono de exageros esteticamente supérfluos. Da mesma for-
ma, ao possuir um modus histórico, as normas que possibilita são positivadas de ma-
neiras diferentes no decorrer da história (DOOYEWEERD, 1984b, p.240);
m) Jurídico (retribuição): a retribuição, que define o núcleo de sentido des-
ta modalidade, é compreendida aqui no sentido técnico de conservação daquilo que é
devido, função que possibilita o julgamento. Fundamentando-se no aspecto estético,
permite a noção de harmonização de múltiplos interesses de maneira proporcional que,
por sua vez, positivados historicamente a partir de princípios pautados no balancea-
mento de normas retributivas. As normas jurídicas, presentes no Lado-da-Lei, são su-
prarbitrárias e adquirem significado particular, área e termo de validade ao serem positi-
vadas no Lado-Factual (DOOYEWEERD, 1984b, p.406);
n) Ético (ágape): o momento nuclear da modalidade ética é o amor no pleno
sentido normativo do termo grego ágape, que diz respeito ao amor divino, em contraste
ao filial e erótico. Deve ser compreendido como compromisso sacrificial com relação a
Deus e ao próximo, incluindo Sua Criação, não devendo ser reduzido a um sentimento
de afeto apenas, embora esta seja uma de suas dimensões. (DOOYEWEERD, 1984b,
p.153-4). De fato, explica Dooyeweerd, não há virtude moral verdadeira que em última
instância não seja uma manifestação do amor ágape;
o) Pístico (comprometimento, crenças): aspecto limítrofe do tempo cuja
característica escatológica lhe permite apontar para o que está além deste (DOOYE-
WEERD, 1984b, p.33). Possibilita a fé, que não está acima da vida temporal, mas tam-
bém não é mera função particular da existência humana. Não deve ser confundida co-
mo função da psyqué através da qual se obtém certeza direta e imediata de algo sem
qualquer razão discursiva (DOOYEWEERD, 1984b, p.299), também não é um ato inte-
lectual oferecido pelo dom supranatural da graça, uma vez que a regeneração em Cris-
to Jesus não cria um novo órgão da crença (DOOYEWEERD, 1984b, p.300). A fé é ine-
rente à existência humana independente das convicções e comprometimentos que via-
biliza. Num sentido material, está presente no fundamento de toda forma imediata de
21
convicção. Não deve ser confundida com religião, que é supramodal e compõe a pró-
pria raiz da existência humana englobando todos os aspectos, e não deve ser reduzida
a um conjunto de normas religiosas orientadas pela ética, direito e regras sociais de
conduta.

9 Motivos-Base do pensamento ocidental

Dentro da estrutura modal, o aspecto pístico é responsável por guiar o senti-


do dos demais viabilizando um processo chamado abertura modal, que o constitui como
chave hermenêutica para a compreensão do sentido da realidade. Assim, os compro-
metimentos e convicções, religiosos ou não, possibilitados por este aspecto condicio-
nam visões de mundo, práticas culturais, perspectivas epistêmicas, filosóficas e científi-
cas, incluindo o modo como o ser humano significa a natureza, sua conduta ética, eco-
nômica, e como organiza a sociedade. No caso das crenças religiosas, por exemplo:

Sem dúvida é possível investigar os efeitos sociais típicos de uma doutrina de


fé particular como procurou, por exemplo, a chamada Religionssoziologie de
Weber e Troeltsh, embora o chamado método típico-ideal possa evocar sérias
objeções (DOOYEWEERD, 1984b, p.292, tradução nossa, grifo do autor).

Quanto à noção de pensamento mítico, Dooyeweerd argumenta que a ideia


de que os mitos comportam visões de mundo e de vida mágico-sensíveis e fantástico-
primitivas que precedem a religião, a filosofia e a ciência é pura especulação evolucio-
nista (DOOYEWEERD, 1984b, p.325). O correto seria dizer que a interpretação das
coisas pelo aspecto da fé pode, ou não, estar relacionada a representações mágicas.
Portanto, "a visão mítica implica num momento essencial de ficção, mas não no mesmo
sentido que um conto ou uma lenda" (DOOYEWEERD, 1984b, p.325). O mítico é uma
interpretação pística da experiência do Deus Absconditus de maneira abstrata. Além
disso, a concepção mitológica mágico-primitiva da realidade faz separação fundamental
entre o que chama de esfera do profano, ou familiar, e do sagrado, mana20.

20
Segundo o autor, os Upanishads, por exemplo, separam Brâman-Atman de Maya. No pensamento oci-
dental tal dicotomia pode ser traduzida na noção de realidade Numenal e Fenomenal. Em última análise,
22
A inclinação ao Arché, ao que o ser humano identifica como Origem de signi-
ficado do cosmo, determina o Motivo-Base, uma motivação fundamental, basilar, que
age como uma força comunitária impulsionadora e que, no sentido mais profundo pos-
sível, fornece o tema central do pensamento, da vida social e a cosmovisão (weltans-
chauung) de uma sociedade marcando a cultura, a ciência e a estrutura social de um
dado período histórico, podendo se apresentar de diversas formas particulares, ao
mesmo tempo em que as transcende (DOOYEWEERD, 1984a, p. 61). Com efeito, o
conteúdo do aspecto pístico é direcionado em última instância pelo Motivo-Base, que
inclina o processo de abertura modal tanto para o bem quanto para o mal (DOOYE-
WEERD, 1984b, p.293), já que é ativado pelo espírito da Civitate Dei ou pela Civitate
Terrena (DOOYEWEERD, 1984b, p.297)21.A partir da relação entre a Unidade-
Originária, proporcionada pelo Ponto Arquimediano, e a comunidade-originária religiosa
duas comunidades espirituais são distinguidas e, desta forma, dão origem a comunida-
des epistêmicas distintas. O Motivo-Base fornece a dunamis que move estas duas co-
munidades espirituais distintas (DOOYEWEERD, 2006, p.48): a) redimida em Cristo
Jesus; b) apóstata, que se fundamenta na negação da primeira e se manifesta de di-
versas formas. Destas comunidades espirituais nascem comunidades epistêmicas dis-
tintas. O primeiro Motivo-Base apenas se manifesta de forma única e integral porque
não comporta nada além do significado fundamental da realidade fornecido pela Pala-
vra-Revelação de Deus ao homem através das Sagradas Escrituras. Contudo, se no
decorrer da história humana esta revelação integral é percebida diversamente em nível
pessoal, político ou institucional, é porque há no coração humano uma tendência a bus-
car sínteses religiosas impossíveis entre o Motivo-Base da Palavra-Revelação e os mo-
tivos religiosamente idólatras. Como tal relação é radicalmente antitética surgem ten-

todas estas visões dualistas da realidade se originam na consciência mítica (DOOYEWEERD, 1984b,
p.327).
21
Dooyeweerd faz aqui uma clara alusão à obra agostiniana Cidade de Deus, que diz: “a gloriosíssima
Cidade de Deus – que no presente decurso do tempo, vivendo da fé, faz sua peregrinação no meio dos
ímpios, que agora espera a estabilidade da eterna morada com paciência até o dia em que será julgada
com justiça, e que, graças à sua santidade, possuirá então, por uma suprema vitória, a paz perfeita [...]
também é preciso falar da Cidade da Terra, na sua ânsia de domínio, que, embora os povos se lhe sub-
metam, se torna escrava da sua própria ambição de domínio” (AGOSTINHO, 1996, p.97-8). Há, portanto,
uma ética de obediência a Deus e seus princípios em contraposição à ética da ambição egoísta humana;
os reflexos do embate destes princípios antagônicos manifesta e determina o caráter do desenvolvimento
histórico da humanidade.
23
sões irreconciliáveis (DOOYEWEERD, 2006, p.49). O segundo Motivo-Base pode se
expressar de várias formas porque a direção espiritual da comunidade religiosa se ori-
enta pela absolutização de algum aspecto da realidade em detrimento da diversidade
irredutível presente no cosmo criado. Outra característica é a tentativa de conciliação de
dois Pontos Arquimedianos distintos, e é aqui que nascem as perspectivas epistemoló-
gicas dicotômicas que, por não serem capazes de fornecer um ponto integral como Ori-
gem de sentido, não consegue solucionar a tensão dialética religiosa instaurando com-
preensões reducionistas.

Figura 2 - Motivos-Base do Pensamento Ocidental

A antítese teórica, diferentemente da religiosa, ainda que permita a síntese


teórica, não elimina o conflito instaurado pela antítese religiosa, comprometendo neces-
sariamente a formação conceitual teórico-científica. Não havendo síntese possível que
a transcenda, acaba por se manifestar nas perspectivas epistemológicas que nela se
fundamentam, uma vez que o ponto de partida religioso é absoluto, supra teórico e de
natureza exclusiva, sendo a única solução possível a de atribuir prioridade a um ponto -
que se acredita ser o Arché - em detrimento de outro, instaurando uma dicotomia irre-
conciliável e que se manifesta epistemologicamente. O Motivo-Base do pensamento
24
nunca é de caráter teórico, mas o influencia porque determina a direção e o conteúdo
da Ideia-Transcendental básica, que possibilita o próprio pensamento filosófico.
Ao analisar a cultura ocidental, Dooyeweerd identifica quatro Motivos-Base
(DOOYEWEERD, 2003) (Figura 2):
a) Matéria-Forma: O Motivo-Base Matéria surge na antiguidade grega atra-
vés da crença no princípio do devir e degradação como Origem de significado da reali-
dade, então compreendida como um fluxo cíclico e amorfo de vida de onde tudo se ori-
ginava e finalmente retornava. Deste fluxo impessoal emergiam as formas individuais
das plantas, animais, seres humanos. Este motivo absolutiza o aspecto biótico da reali-
dade temporal (DOOYEWEERD, 2003, p.20) em relação analógica com o aspecto ci-
nemático, que possibilita o movimento. Assim se compreendia que o movimento vital
era por este fluxo determinado e alimentado (DOOYEWEERD, 1984b, p.97). Conhecido
como religião da vida no período pré-homérico, este Motivo-Base era percebido nas
religiões telúricas, orientadas à terra como origem da vida, e nas urânicas, direcionadas
aos céus e posteriormente ao mar. Tal crença promoveu, no pensamento e na vida so-
cial grega, um ar misterioso e tenebroso onde tudo surgia e se degradava para nova-
mente surgir, de maneira trágica, incontrolável e impessoal. Forças misteriosas opera-
vam através deste fluxo de vida de maneira que sua ação não seguia a uma ordem ra-
cional, mas a Anangké (Necessidade), o destino cego e incalculável que a tudo subme-
tia. Em contrapartida, o Motivo-Base Forma se pauta na deificação do aspecto cultural
da realidade. Num sentido geral, e se manifestou através da religião cultural grega, ca-
racterizada pela noção de forma, medida e harmonia. Este Motivo-Base orientava a re-
ligião oficial da Cidade-Estado grega, a polis, por volta de 800 A.C., e encontrava no
monte Olimpo seu centro religioso nacional onde os deuses olímpicos se constituíam
em forças culturais, invisíveis, idealizadas e pessoais, sendo sua forma mais expressiva
o culto a Apolo, o legislador (DOOYEWEERD, 1984a, p.62).
Embora o termo Matéria-Forma (Hulé/Morphé) tenha sido designado por
Aristóteles (DOOYEWEERD, 1984a, p.61), "o motivo matéria-forma em si independe
das formas mitológicas que o receberam nas antigas religiões da natureza e na religião
cultural olímpica. Ele dominou o pensamento grego desde o princípio" (DOOYE-
25
WEERD, 1984a, p.62). Até mesmo na noção grega de theoria, que por princípio visava
opor crenças populares, nada mais foi que uma emancipação das formas mitológicas
presas às representações sensoriais, uma vez que a filosofia não se desvinculou do
Motivo-Base religioso grego e a contemplação do conhecimento teórico era, acima de
tudo, um caminho para o homem entrar em contato com o divino. Além disso, os gregos
observavam os ritos cosmológicos da antiga religião privadamente ao mesmo tempo em
que adoravam os deuses olímpicos publicamente, como deuses oficiais do Estado;
b) Criação-Queda-Redenção: O Motivo-Base da Criação, Queda no pecado
e Redenção através de Cristo Jesus na comunhão com o Espírito Santo (DOOYE-
WEERD, 2006, p.58), ou Criação-Queda-Redenção, foi introduzido no pensamento oci-
dental pela religião Judaico-Cristã. Deus é a Origem absoluta e integral do cosmo e da
humanidade, criada à Sua própria imagem que, por sua vez, concentra todas as fun-
ções temporais em uma Unidade-Originária religiosa que orienta a vida temporal
(DOOYEWEERD, 2006, p.59). A revelação da Queda temporal da humanidade no pe-
cado, através de Adão, tem por consequência a "corrupção radical da humanidade"
(DOOYEWEERD, 2006, p.59), cuja abrangência afeta todas as funções temporais hu-
manas. Assim, há rompimento da relação da humanidade com Deus, desta consigo
mesma, entre si, e com a criação, sendo a terra corrompida por causa da humanidade
(DOOYEWEERD, 2003, p.30). Da mesma forma, a Redenção em Cristo Jesus na co-
munhão com o Espírito Santo disponibiliza a total restauração e reintegração de todas
as coisas novamente com o Criador e regenera o coração humano, cabendo a este a
manifestação desta influência renovadora em todas as expressões temporais da vida
"incluindo a atividade teórica do pensamento" (DOOYEWEERD, 2006, p.59). Este Moti-
vo-Base se coloca em antítese radical ao Motivo-Base grego e "corta pela raiz toda vi-
são de realidade que cresce a partir de Motivos-Base dualistas" (DOOYEWEERD,
2003, p.31);
c) Natureza-Graça: Motivo-Base que historicamente sucede o período ro-
mano-helenista e pode ser compreendido como a "síntese medieval" (DOOYEWEERD,
2006, p.62), uma tentativa consciente de conciliação entre o Motivo-Base grego Maté-
ria-Forma e o Motivo-Base da Religião Cristã Criação-Queda-Redenção. Neste contexto
26
histórico também estava presente a influência do Motivo-Base do zoroastrismo persa,
cuja religião consistia na batalha entre Luz e Trevas - Bem e Mal - sendo facilmente
identificado pelo pensamento grego com os polos Matéria e Forma, respectivamente
(DOOYEWEERD, 2003, p. 111-2). A tensão gerada pelo encontro destes Motivos-Base
ganhou força através da influência da Igreja Católica Romana que, na tentativa de con-
ciliá-los, gerou uma nova tensão dualista. Este movimento pode ser percebido na aco-
modação do pensamento platônico na obra de Agostinho, embora ele tenha mantido a
percepção do significado radical da Queda da natureza humana pelo pecado, além da
rejeição da doutrina da luz natural da razão. Mais adiante este Motivo-Base ganha ex-
pressão na ênfase dada por Tomás de Aquino, a partir do século XIII, ao pensamento
aristotélico. Nesta perspectiva, a Queda não haveria corrompido a natureza, mas ape-
nas privado-a do "'dom sobrenatural da graça' (donum superadditum)" (DOOYE-
WEERD, 2006, p.62) que, por sua vez, poderia apenas ser conhecidas pela revelação
divina. Por causa da influência do Motivo-Base Matéria no pensamento Cristão, houve
um direcionamento místico da vida cristã e uma identificação entre natureza e pecado
acabou por despertar em muitos uma atitude de escapismo em busca da experiência
mística. Na perspectiva Tomista, filosofia e teologia se constituíam em tarefas distintas,
sendo aquela guiada pela luz da razão natural e a esta pela revelação divina, conside-
rada superior22 (DOOYEWEERD, 2003,134);
d) Natureza-Liberdade: por causa das diversas inconsistências presentes
nas diversas tentativas de conciliação entre religião Cristã e visão grega da natureza,
movimentos históricos de rompimento se levantaram contra o poder irrestrito da Igreja
Católica Romana. Surge então a Reforma Protestante, que urge pelo retorno à compre-
ensão bíblica do mundo e da vida pautada pelo Motivo-Base Criação-Queda-Redenção,
e a Renascença, liderada por aqueles que clamavam por responsabilidade autônoma
de seus destinos através da emancipação da fé na Igreja, que para eles representaria o

22
Esta consideração da autonomia da razão, ainda que subsidiária do reino da graça, pelo menos na
visão de Aquino e de uma forma geral da própria Igreja Católica Romana, pode, de certa maneira, ter
preparado o caminho para as propostas de rompimento entre ciência e fé nos períodos do renascimento
e subsequentes. Isto pode apontar para o importante papel exercido por interesses políticos e não ape-
nas científicos no processo de separação entre razão e fé que, ao exceder a argumentação científica,
ganha importância sociológica ao ser analisada juntamente com o movimento de laicização do Estado.
27
renascimento da humanidade (DOOYEWEERD, 2003, p.150). A característica comum
destes movimentos é a anti-síntese. Do renascimento surge o humanismo, cuja revalo-
rização da cultura greco-romana em detrimento do cristianismo buscou como religião o
ideal de personalidade humana autônoma em que o homem passa a ser uma lei em si
mesmo (DOOYEWEERD, 2003, 150), devendo agir independente de "poderes sobrena-
turais" (DOOYEWEERD, 2003, p.152). A natureza passa a ser vista como um campo
aberto a ser explorado pela livre personalidade humana oferecendo infinitas possibilida-
des a serem reveladas pela ciência (DOOYEWEERD, 2003, 151). Este grande movi-
mento espiritual humanista do período moderno introduziu no desenvolvimento histórico
ocidental o Motivo-Base Natureza-Liberdade (DOOYEWEERD, 2003, p.140), um novo
motivo, embrionariamente dualista e contraditório. Afinal, se tudo o que existe é real-
mente fruto de uma relação de causa e efeito, então, consequentemente, não há espa-
ço para a liberdade humana, ou seja, se a natureza é exclusivamente determinada por
leis do movimento mecânico então o homem não é verdadeiramente autônomo.
Surge neste contexto, o novo ideal de ciência que, livre dos dogmas da Igre-
ja, trazia a promessa de liberdade verdadeira para a humanidade, devendo tudo ser
compreendido à luz da aplicação sistemática da ciência, pautada por conceitos mate-
máticos que seriam realidades em si mesmo (DOOYEWEERD, 2003, p.155). Na tenta-
tiva de resolver a nova tensão dialética, Descartes propõe a percepção da alma huma-
na como entidade autossuficiente "livre do corpo natural" (DOOYEWEERD, 2003,
p.154), em que o cogito, assento do livre arbítrio humano, seria a própria base autôno-
ma fundamental da ciência que, por sua vez, reinaria suprema na compreensão da na-
tureza. Numa outra tentativa, Kant propõe que os fenômenos percebidos sensorialmen-
te dizem respeito ao domínio da natureza (realidade numenal), enquanto a realidade
supra sensorial seria o domínio da liberdade moral, por sua vez, não governada por leis
naturais, mas normas e regras de conduta (realidade fenomenal) que pressupõem a
autonomia da personalidade humana (DOOYEWEERD, 2003, p.171). 23Sob a influência
da dicotomia kantiana, os filósofos Heinrich Rickert e Wilhelm Windelband desenvolvem

23
Segundo Dooyeweerd, aqui nasce a crença moderna da separação entre fé e razão, promovendo a
falsa ideia de que qualquer tentativa de reforma da ciência por princípios Bíblicos se constitui em um
ataque à própria ciência (DOOYEWEERD, 2003, p.172).
28
suas investigações epistemológicas que acabam por influenciar Max Weber em sua
proposta metodológica científico-cultural voltada ao estudo das ações sociais. Já para o
sociólogo Georg Simmel, os fenômenos sociais seriam de cunho apenas psicológico
(DOOYEWEERD, 1984, p.71) ao passo que, para Durkheim, deveriam ser estudados
da mesma forma que fenômenos naturais, como coisas. De maneira geral, o que se
percebe nestas perspectivas sociológicas é a tentativa de acomodação a um polo ou
outro deste Motivo-Base.

10 Conclusão

A proposta elaborada por Dooyeweerd permite uma compreensão não redu-


cionista da diversidade presente no cosmo além da fundamentação religiosa que condi-
ciona, em última instância, a própria elaboração teórica que tenta apreender a realidade
temporal.

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