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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE FILOSOFIA
FILOSOFIA POLÍTICA

Dissertação sobre o tema “A concepção


de pessoa em John Rawls, a ideia de justiça
necessária em uma sociedade democrática -
algumas aproximações e distanciamentos do
pensamento de Isaiah Berlin”, para fins de
avaliação na disciplina TFP - Indivíduo e
Comunidade (2023-1/Matutino).

Prof. Dr. Renato Moscateli


Aluno: Adriano Barreto Esperidião

Goiânia
Julho de 2023
A concepção de pessoa em John Rawls, a ideia de justiça necessária em uma
sociedade democrática - algumas aproximações e distanciamentos do pensamento de
Isaiah Berlin.

A parte mais elementar formadora da sociedade é a pessoa. Por isso, parece mesmo
aconselhável que o pensamento sobre as formas de organização de uma coletividade humana
parta de uma reflexão sobre essa primeira e mais básica noção. É que, no seio do pensamento
político, conceitos e teorias políticas serão erigidos com a operação desse átomo social, a
pessoa. John Rawls (1921-2002), professor de filosofia política em Harvard, teórico do
liberalismo e da justiça, expôs, no curso de sua explanação acerca das questões fundamentais
sobre o Liberalismo (RAWLS, 2000), sua concepção sobre a pessoa, sob a ótica política, como
o elemento básico de um agrupamento social que se pretende bem ordenado. Por sua vez, é
possível extrair do pensamento do filósofo e historiador Isaiah Berlin (1909-1997), também
uma concepção de pessoa que traz algumas aproximações, mas também revelam alguns
distanciamentos da visão de Rawls. Este pequeno ensaio buscará comparar a noção de pessoa
apresentada por John Rawls com aquela trazida por Berlin, evidenciando como as respectivas
descrições de pessoa contribuem para a ideia de justiça política enunciada nos pensamentos
desses autores.
De início, alguns pressupostos devem ser salientados no pensamento de Rawls, que o
tornam cauteloso em não estruturar suas ideias políticas numa ontologia acerca de pessoa,
indivíduo, cidadão ou eu (self). O filósofo norte-americano deixa claro em sua primeira
conferência (2000, pág. 72), que pretende abordar a pessoa sob o ponto de vista político,
tratamento que já pressupõe estar esse núcleo conceitual situado, de partida, em um pano de
fundo institucional.
Para não ingressar no que seria a definição de pessoa em si, o pensador adota o método
da esquiva e explana que as diversas vertentes filosóficas oferecem variadas ideias de pessoa e
isso não serviria para o entendimento do ser político mais fundamental de suas digressões.
Também, a tentativa de apanhar o que há de comum sobre a essência de pessoa nos pensamentos
filosóficos levaria a um conceito por demais aberto e, por isso, inútil para dar fundamento a
uma teoria política robusta. Então, o professor americano trata de pessoa a partir de algumas
qualidades muito fundamentais e de um recorte bem delimitado.
Liberdade e igualdade são, segundo Rawls, atributos de todas as pessoas. Somos livres
e iguais, pois temos capacidade de desenvolver o senso de justiça e de bem. Cada um de nós é
capaz de entender as ideias de cooperação em equidade (operar pelo bem comum) e de benefício
racional de cada um (receber da sociedade um quinhão proporcional à cooperação). O pensador
aponta que a autopercepção de ser livre emerge culturalmente mais conectada a regimes
democráticos constitucionais.
Todavia, os interesses dos indivíduos são muito diversos, os projetos de vida e
autorrealização podem colidir, há quem espere muito da sociedade e a ela entrega pouco, há
quem doe muito e tenha pouca contrapartida. A boa vida em sociedade resulta de se bem ordená-
la, a partir de um balanço, um equilíbrio entre os desejos muitas vezes colidentes de seus
membros.
Voltando os olhos para Isaiah Berlin, é possível observar que o filósofo letão parte de
uma ideia de pessoa um pouco mais essencialista e menos contextual do que a apresentada pelo
colega do outro lado do Atlântico. Algo que nos remete à excelência buscada pelos antigos
atenienses (areté), só que avessa àquela característica externada na lição de Benjamin
Constant1, de que, entre os antigos “todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância.
Nada é concedido à independência individual, nem mesmo no que se refere à religião”. Não,
Berlin parece ver a liberdade como a virtude a ser aperfeiçoada pelas ações políticas, de modo
a impedir que o indivíduo, em sua peculiaridade e singularidade no mundo, seja massacrado,
obrigado a retirar-se para a cidadela interior (BERLIN, 1969, pág. 145), reprimindo sua plena
capacidade de ação, por impedimentos externos muito fortes (tirania, sujeição ao outro ou aos
outros).
John Rawls compactua com o pensamento de que as instituições têm, dentre outras
funções, a de garantir o exercício da liberdade, mas não adota um conceito de liberdade em si,
algo como uma virtude a ser plenificada em sociedade por meio da ação política. Esse autor
entende que liberdade pode designar muitas coisas diferentes e que há, mesmo dentro da teoria
política liberal, visões conflitantes sobre o que vem a ser liberdade (RAWLS, 2000, pág. 46):
Em primeiro lugar, o curso do pensamento democrático ao longo dos dois últimos
séculos, aproximadamente, deixa claro que, no presente, não há concordância sobre
a forma pela qual as instituições básicas de uma democracia constitucional devam
ser organizadas para satisfazer os termos equitativos de cooperação entre cidadãos
considerados livres e iguais.
Com fulcro nessas constatações, Rawls busca um modo de arbitrar as tradições
conflitantes pelo equilíbrio obtido na equidade, já que no seu entender, na democracia temos
por expectativa sermos livres e iguais em princípio. Por isso, o pensador enaltece na pessoa sua
capacidade de desenvolver a ideia de um bem - não uma ideia específica de bem (idem, pág.
61), mas da aptidão de desenvolver alguma e a liberdade de realizar essa ideia, em um nível
que permita a distinção (da concepção específica de outros) e mudança (da própria concepção
específica ao longo do tempo, se assim se quiser).
A pessoa em sua concepção política, é racional e busca o bem viver em sociedade, não
impondo aos demais uma certa liberdade, uma certa ideia de igualdade. Com base nisso, John
Rawls aponta a necessidade de uma ideia organizadora fundamental em que pessoas livres e
iguais possam, em sua diversidade de crenças, encontrar “a base de um acordo político
racional, bem informado e voluntário” (Idem, pág. 52).
Sob outro ângulo, para Berlin, a pessoa pode se realizar em seu potencial ao escolher
conceber fins, imbuir-se do desejo de atingi-los e alcançá-los, para além da “esfera da
causalidade natural”2. A atividade política deve então fornecer meios de autorrealização ao ser
humano e o conhecer, o exercício do juízo crítico, é um grande instrumento para se alcançar

1
CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos (1985, pág. 4).
2
Referência de Berlin a Kant (BERLIN, pág. 147), ao afirmar que “todos os valores tornam valores tornam-se
valores pelos atos livres dos homens, e são desse modo chamados enquanto assim permanecem, não h á valor
mais elevado que o indivíduo”, encampando a máxima ética do pensador alemão, de que nenhum ser humano
pode ser instrumentalizado, pois é um fim em si mesmo.
esse fim. E essa atividade não se desvencilha da racionalidade, que é de nossa essência, segundo
esse pensador:
Sou um ser racional e, sendo racional, não posso desejar afastar de meu caminho o
que quer que eu possa demonstrar a mim mesmo corno sendo necessário, como não
podendo ser senão o que é em uma sociedade racional - isto é, em uma sociedade
dirigida por mentes racionais, na busca de metas tais como aquelas que um ser
racional gostaria de ter (BERLIN, pág. 151).
Vê-se o atributo humano da racionalidade como um indicador do ponto de equilíbrio
apontado por Berlin como capaz orientar e disciplinar as liberdades em sociedade e também a
prestigiar a igualdade. Por seu turno, Rawls defende que esse equilíbrio não pode ser arbitrário,
pois deve ser aceito como legítimo pelos indivíduos daquele grupo político, entendido no
sentido mais amplo. Essa é a motivação de Rawls para propor como ideia base de justiça
política, aquela medida de equilíbrio, também racional, entre a distribuição do ônus cooperativo
e do bônus distributivo, capaz de ordenar o convívio dos diferentes em sociedade:
Suponha agora que a justiça como equidade tenha conseguido seus objetivos e que
uma concepção política publicamente aceitável tenha sido encontrada. Nesse caso,
essa concepção proporciona um ponto de vista publicamente reconhecido, com base
no qual todos os cidadãos podem inquirir, uns frente aos outros, se suas instituições
políticas são justas. Tal concepção lhes possibilita fazer isso especificando o que
deve ser publicamente reconhecido pelos cidadãos como razões válidas e
suficientes, as quais são destacadas por essa mesma concepção (RAWLS, 2000,
pág. 51).
Defende o professor americano que, em termos culturais, as pessoas são livres num
regime democrático constitucional, porque concebem a si mesmas desse modo – qual a
concepção de justiça política pode realizar mais adequadamente, nas instituições básicas,
liberdade e igualdade, é o objetivo da justiça como equidade – a sociedade é concebida como
um sistema de cooperação tendente ao equilíbrio (equitativo) segundo estabelecido pelos
cidadãos entre si (idem, pág. 78).
É interessante perceber que, enquanto John Rawls fala de uma certa liberdade (aquela
percebida em si pelos cidadãos em uma sociedade democrático-constitucional) de uma certa
pessoa (observada pelos atributos daquele que vê a si mesmo como sujeito de direitos e deveres
nesse contexto político), Isaiah Berlin expõe uma visão mais universal da pessoa.
Para o Berlin, em termos gerais, a pessoa é apresentada como o agente político que: a)
no exercício de sua liberdade positiva, realiza-se mais plenamente quando encontra meios,
oportunidades e recursos para a realização de seus próprios desejos, para mover-se
autonomamente, segundo sua própria vontade; b) no gozo da liberdade negativa, tende a
realizar-se mais no exercício de sua vontade, tanto quanto menores as coerções e os
impedimentos criados por fatores exógenos.
Berlin aponta como limitantes dessa plenitude de realização da pessoa, as imposições
vindas de uma autoridade ou de uma coletividade, ainda que numericamente majoritária, ou de
alguma expressão cultural, religiosa, política que tenha pretensões de ser única ou dominante.
Nesse ponto, é possível ver uma aproximação com John Rawls, para quem é indesejável
que a concepção política de justiça se estruture sobre crenças abrangentes, sobre a visão de
mundo de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos mais influentes. Do mesmo modo, Isaiah
Berlin se mostra fervoroso defensor da liberdade individual contra a opressão provocada pela
vontade alheia, ao passo em que advogava a diversidade de pensamentos e projetos humanos
como algo bom a ser mantido e cultivado em um regime que se pretende democrático, pois o
respeito à pluralidade é uma maneira de materialização da justiça.
Destaca-se em Rawls que os atributos de um autoconceito de liberdade, da
racionalidade, da capacidade de ter um senso do bem e de justiça, ensejam a possibilidade de
discussão de uma concepção pública de justiça (equilíbrio reflexivo) a reger a sociedade
(RAWLS, 2003, pág. 40). Não é a proposta deste pequeno texto entrar no construto da teoria
Assim, fugindo de dogmas e de crenças abrangentes, buscando conciliar as visões
singulares das pessoas no contexto e na construção de uma sociedade bem-ordenada, Rawls é
propositivo. Sua teoria da justiça como equidade, a edificação de seus conceitos de posição
original, de véu de ignorância, de estabilidade e das relações de cooperação e mecanismos
distributivos e de disciplina das liberdades, pois esses são desdobramentos construídos sobre os
elementos estruturais de pessoa e da ideia de justiça política que aqui se propôs tratar
brevemente. Berlin, de sua parte, preocupa-se mais em mostrar balizas para o exercício e
cerceamento das liberdades, para que não se desnaturem na tirania da maioria ou nos desmandos
do tirano, para evitar, igualmente, que ideias tidas por virtuosas, frutos do engenho ou do gênio
de alguém, atravessem inadvertidamente o crivo do pensamento crítico e sirvam de cabresto e
freio ao pleno potencial humano.
Da comparação dos autores é possível observar, como terreno comum, que as pessoas,
entendidas como livres, racionais e iguais, são capazes de equacionar um ponto de equilíbrio
legítimo, uma ideia de justiça política que propicie, na administração dos inevitáveis conflitos
e evitando o cerceamento da liberdade individual pela ditadura de um, da maioria, ou de crenças
abrangentes, o bem-viver.

REFERÊNCIAS

BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília:
Editora UnB, 1969. p. 133-175.
CONSTANT, Benjamin. Liberdade dos Antigos comparada à dos modernos. Filosofia Política,
n. 2, 1985.
MOSCATELI, Renato. Tópicos de Filosofia Política – Indivíduo e Comunidade (2023-1,
Matutino). Apontamentos de aula.
RAWLS, John. O Liberalismo Político (Série Temas, 73). Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª
ed. São Paulo: Ática, 2000. 430p.
_______. Uma Teoria da Justiça. Coleção Direito e Justiça. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003.

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