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FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

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SUMÁRIO

1 - A tarefa prática da filosofia política em John Rawls (ADAPTADO) ......................... 3

1.1 - A META-ÉTICA DE RAWLS: UMA TEORIA ORIENTADA POR IDEAIS ...... 6

1.2 - A PRIORIDADE DO DIREITO .............................................................................. 8

1.3 - CONCEPÇÃO FRACA DO BEM ......................................................................... 10

1.4 - O PRINCÍPIO DE DIFERENÇA ........................................................................... 13

1.5 - EPISTEMOLOGIA "INDIVIDUALISTA" E JUSTIÇA SUBSTANTIVA


"COMUNITÁRIA"? ....................................................................................................... 17

NOTAS ........................................................................................................................... 18

2 - FILOSOFIA E EDUCAÇÃO .................................................................................... 20

REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 34

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FACUMINAS

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1 - A tarefa prática da filosofia política em John Rawls (ADAPTADO)

Álvaro de Vita
Professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo.
Haveria alguma base sólida para a suposição de que as principais questões
políticas de hoje em geral têm respostas corretas? A obra de John Rawls, em particular
sua Uma Teoria da Justiça1, pode ser considerada a mais importante tentativa, na teoria
moral e na filosofia política de expressão em língua inglesa deste século, de responder a
essa pergunta. Como procurarei mostrar a seguir, Rawls acredita que pelo menos algumas
das questões políticas controversas do mundo contemporâneo, se não são passíveis de
verdade, podem ter respostas razoáveis.
Na tradição política ocidental, existem três grandes reinos de considerações
morais que permitem julgar o que é objetivamente válido em relação a ações, escolhas
públicas, instituições e estados de coisas: (1) a crença em uma ordem de direitos vistos
como fundamentais (no sentido de que sua realização é assegurada, ou deveria ser, pelas
instituições de uma sociedade) e absolutos (no sentido de que considerações baseadas em
direitos não podem, ou não deveriam, ser sobrepujadas, quaisquer que sejam as
circunstâncias, por considerações de outro tipo); (2) a "maximização" do bem-estar -
identificado à utilidade, à felicidade ou à realização de desejos - de todos ou do maior
número (utilitarismo); e (3) a promoção de atividades intrinsecamente valiosas (a
concepção do que é bom para o homem que se encontra por exemplo, no ideal grego de
vida virtuosa e que se exprime na revivescência, na filosofia moral contemporânea, da
ética da virtude).
Com algumas qualificações, é possível afirmar que a teria de Rawls é do primeiro
tipo, isto é, baseada em direitos2. Uma Teoria da Justiça é parte, e talvez a expressão
máxima, de um vigoroso renascimento de doutrinas éticas baseadas em direitos na
filosofia política anglo-saxônica, em reação à ética utilitarista dominante desde Bentham
e Stuart Mill3. Rawls critica o utilitarismo sobretudo por "adotar para a sociedade como
um todo o princípio de escolha racional para um homem", o que significa dizer que "não
leva em conta seriamente a distinção entre pessoas"4. Enquanto critério para orientar a
escolha pública, o utilitarismo funde diferentes desejos, objetivos, valores e fins que
possam ganhar a adesão dos indivíduos em um único sistema de desejos que, então, deve
ser maximizado para o maior número.

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Como argumentam Amartya Sen e Bernard Williams5, o utilitarismo é permissivo
o suficiente para considerar tudo -interesses, ideais, aspirações e desejos - como
preferências, mas singularmente restritivo no que se refere a que preferências são
relevantes. Assim é que o princípio correto para a escolha pública, de um ponto de vista
utilitário, não deveria se basear nas preferências efetivas dos agentes (que podem ser
confusas, equivocadas ou egoístas) e sim nas preferências que o agente teria se
completamente informado, se raciocinasse corretamente, se estivesse no estado mental
conducente à escolha mais racional e assim por diante. Somente preferências
"perfeitamente prudentes" contam, tais como interpretadas por um legislador utilitário
ideal (que Rawls chama de "espectador imparcial benevolente"). Isso contraria não só as
éticas pluralistas, que descartam a existência de uma magnitude cuja maximização possa
se constituir na única consideração relevante do ponto de vista moral, e que adotam uma
concepção mais complexa de pessoa - utilitarismo só se interessa pelas pessoas enquanto
portadoras de utilidades6 - mas também o próprio apelo intuitivo da ética utilitarista: o de
permitir que as pessoas façam e obtenham o que elas desejam.
A concepção estreita de pessoa e a natureza agregativa do utilitarismo o tornam
insensível às diferenças entre os indivíduos, o que oferece aos direitos uma base
excessivamente frágil. É isso que, antes de mais nada, desagrada a Rawls. Sua teoria
busca um fundamento mais sólido do que foi capaz de oferecer a tradição utilitarista
(mesmo em suas expressões liberais, como o pensamento de Stuart Mill), em que assentar
um âmbito de direitos e de liberdades para os indivíduos. Isso fica explícito logo nas
páginas de abertura de Uma Teoria da Justiça:
"Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na Justiça que mesmo o bem-
estar da sociedade como um todo não pode sobrepujar. Por isso, a justiça nega que a perda
da liberdade por alguns possa ser justificada pelo bem maior compartilhado por outros. A
justiça não permite que os sacrifícios impostos a alguns possam ser compensados pela
soma maior de benefícios desfrutados por muitos. Em uma sociedade justa, por esse
motivo, as liberdades da cidadania igual são vistas como estabelecidas; os direitos
assegurados pela justiça não são sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses
sociais."7
Caracterizado o anti-utilitarismo da teoria de Rawls, volto à pergunta inicial - a de
se haveria um padrão moral objetivamente válido, a partir do qual julgar o certo e o errado
pelo menos no que se refere a algumas das questões mais centrais da vida coletiva.
Primeiro é preciso notar por que a existência - ou a constituição - de um padrão desse tipo

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é importante: ele permite orientar as escolhas práticas, especialmente se elas precisam ser
feitas em situações de forte pressão. Recorro a um exemplo - uma situação extrema, mas
não de todo implausível - de G.A. Cohen8. Suponha que em uma sociedade em que todos
são nazistas, menos o último judeu, que é capturado. Pode ele corretamente dizer, e você
e eu junto com ele, que seus direitos estão violados? É claro que é desejável que essa
afirmação seja possível. Entretanto, não é tão claro com base em-que se poderia dizer que
ela é correta.
Um padrão moral nos oferece essa base9. Mas aqui nos defrontamos com o
problema da objetividade de qualquer moralidade que se considere superior - inclusive a
baseada em direitos. Pois como podemos determinar objetivamente o que é e o que não é
um direito? E quando nossos direitos conflitam entre si - a que devemos apelar para
resolver tais conflitos? Uma possível resposta a essas questões é provida pelo que Rawls
chama de "intuicionismo racional"10. Nesse caso argumenta-se, na tradição do direito
natural, no sentido da existência de uma ordem moral prévia e superior aos agentes e que
lhes é acessível por meio de "reflexão moral adequada". Os princípios de justiça que
devem governar a associação humana são os que derivam de certas crenças vistas
como fatos morais. A defesa de Nozick do direito natural à propriedade privada
legitimamente adquirida e transmitida - o que ele chama de "teoria da titularidade" -
funda-se em uma forma de "intuicionismo racional". (É interessante observar que, por
meio de "reflexão moral e adequada", podemos chegar a uma conclusão diametralmente
oposta à de Nozick: a de que haveria um direito natural à propriedade comum dos recursos
produtivos.11)
Marx, Weber, Mackie - e Rawls - concordariam entre si em pelo menos um ponto:
não há fatos morais. Adotando-se uma linha marxista de argumentação, se diria que não
há como saber até que ponto nossas ideias morais são algo mais do que meras crenças
ideológicas - consequentemente, e em particular em situações de conflito agudo entre
interesses e necessidades de diferentes grupos da sociedade, não há como apelar à
"reflexão moral adequada" para determinar o certo e o errado;12 devido ao que chamava
de "guerra inexplicável entre os deuses do Olimpo" (isto é, o conflito irredutível de
valores), Max Weber viu a razão encarcerada na razão instrumental - e, portanto, capaz
de determinar a escolha de meios eficazes mas não a correção de escolhas práticas;
Mackie não vê motivo para que se considere as crenças morais como algo mais do que
"demandas sociais".

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1.1 - A META-ÉTICA DE RAWLS: UMA TEORIA ORIENTADA POR IDEAIS

Estamos agora em condições de apreciar a especificidade do empreendimento


ralwsiano. Do ponto de vista de seus princípios de segunda ordem, ou meta-éticos, a
concepção de justiça como equidade procura um "ponto arquimediano", distinto do
intuicionismo racional e, evidentemente, ainda mais distante do relativismo moral, a partir
do qual seja possível derivar princípios primeiros de justiça que possam ser aceitos por
todos os cidadãos de uma sociedade democrática. Rawls recusa o intuicionismo racional
tanto porque considera que não há fatos morais quanto pela concepção de pessoa adotada
por essa modalidade de reflexão moral: as pessoas são vistas não como agentes e sim
como meras conhecedoras de uma ordem moral prévia. Em contraste com isso, Rawls
nega que aquilo que deva contar como moralmente relevante possa ser suposto como
existente; consequentemente, um padrão moral que assegure direitos inalienáveis aos
indivíduos só poderá surgir de um procedimento de construção13.
Mas não deveria qualquer construção dessa natureza ser considerada igualmente
arbitrária? Rawls vê o máximo de objetividade que uma concepção de justiça pode atingir
da seguinte forma: (1) ela deverá resultar da escolha que seria feita por agentes situados
de uma certa maneira (comentarei este ponto logo a seguir); e (2) deverá se fundamentar
em ideais morais pelo menos implicitamente reconhecidos na tradição e na cultura
política ocidentais. Rawls considera que há duas idéias morais que, no interior dessa
tradição, são prioritárias em relação às demais: uma concepção de pessoa - uma
concepção de nós mesmos como pessoas morais e como, em nossas relações com a
sociedade, cidadãos livres e iguais; e uma concepção de "sociedade bem ordenada".
É a concepção de pessoa moral que, sustenta Rawls, encontra-se no fundo de
idéias fortemente enraizadas na tradição política ocidental, tais como a recusa à
escravidão (mesmo voluntária). Essa concepção de pessoa exprime uma das intuições
morais mais poderosas do mundo ocidental: a atribuição universal da personalidade
moral. Supõe-se que os indivíduos sejam capazes de se tornar agentes morais no sentido
pleno, isto é, sejam capazes de ter uma concepção de seu próprio bem e de constituir suas
próprias convicções morais, políticas e religiosas; e igualmente capazes, em
contrapartida, de respeitar o bem nas convicções de outros - de reconhecer que o bem de
cada um é merecedor de um respeito igual (como diz Rawls, a suposição é a de que,
enquanto pessoas morais, são potencialmente capazes, pelo menos em um mínimo, de um
"senso de justiça", isto é, de agir segundo princípios de justiça14.) Essa é uma

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interpretação possível do imperativo kantiano de não tratar a outros seres humanos apenas
como meios e sim sempre também como fins em si mesmos: os indivíduos são vistos
como fontes geradoras de fins e os fins de cada um são merecedores de um respeito igual
(Rawls: os indivíduos, e isso é um componente essencial da liberdade, são "fontes auto-
suscitantes de pretensões válidas"); o escravo é tipicamente um ser cujos fins não são
levados em conta e que sequer tem fins que possa considerar como seus — é um ser, em
suma, privado de personalidade moral.
O outro ideal que Rawls vê como pelo menos latente em crenças compartilhadas
presentes na tradição política ocidental é o de "sociedade bem ordenada". Aqui nos
movemos em um terreno mais especulativo do que no primeiro caso (a concepção de
pessoa), até porque esse segundo ideal envolve, acredito, um nítido passo além das
democracias "reais" de hoje, algo que Rawls em momento algum deixa explícito. As
democracias liberais se caracterizam - do ponto de vista dos problemas que estamos
considerando - pela vigência de um modus vivendi que busca acomodar os diferentes
interesses sociais e forças políticas; em uma "sociedade bem ordenada", a vida coletiva é
dotada, mais do que de um modus vivendi, de um fundamento ético, o que significa dizer
que: as instituições básicas da sociedade - políticas e econômicas - se organizam segundo
princípios de justiça que poderiam ser escolhidos por pessoas morais livres e iguais; seus
membros são capazes de agir segundo princípios de justiça; e a concepção de justiça que
rege a vida coletiva é publicamente reconhecida e pode ser justificada para cada um dos
membros da sociedade (é o que Rawls chama de "condição de publicidade"). A
justificação política das instituições básicas da sociedade não é, nesse caso, meramente,
digamos, hobbesiana; a idéia é a de que a estabilidade dessas instituições a longo prazo
depende de elas serem vistas como um bem em si mesmo por seus participantes.
Apesar de a concepção de "sociedade bem ordenada" ser um ideal que claramente,
em meu entender, ultrapassa as democracias liberais contemporâneas, ainda assim
inspira-se no liberalismo político em dois sentidos:
(1) a "condição de publicidade" responde à exigência liberal (e iluminista) de que
justificações inteligíveis para a vida social e política sejam acessíveis a cada um "porque
a sociedade deve ser entendida pela mente individual e não pela tradição ou por um senso
de comunidade"15. A legitimidade da sociedade e as bases da obrigação social devem ser
compreensíveis para cada indivíduo. "A manutenção da ordem social", diz Rawls, "não
depende de ilusões institucionalizadas ou historicamente acidentais ou de outras crenças
equivocadas acerca de como suas instituições funcionam"16;

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(2) o escopo da concepção de justiça é limitado. O padrão moral publicamente
reconhecido constitui-se em um tribunal último para solucionar apenas algumas questões
práticas, a saber: de que forma as instituições de uma sociedade devem realizar o ideal de
pessoas livres e iguais e como devem ser resolvidos os conflitos relativos à distribuição
dos encargos e benefícios da cooperação social. Isso não significa a dotar nenhuma
concepção abrangente do bem, como ocorre nos dois outros padrões morais mencionados
no início deste artigo - o utilitarismo e a promoção de atividades intrinsecamente valiosas.
Rawls rejeita, como vimos, o utilitarismo enquanto critério para orientar a escolha pública
ou a mudança social, mas nada impede que mesmo membros de uma "sociedade bem
ordenada" o adotem como critério para escolhas individuais - isto é, que concedam a boa
vida para eles mesmos em termos da maximização do bem-estar entendido como
satisfação de desejos ou utilidade (desde que a única forma de fazer isso não seja violando
os princípios de justiça estabelecidos). Comentarei mais adiante, em maior detalhe, a
concepção do bem adotada pela teoria de Rawls.
Vemos agora por que Rawls prefere considerar sua teoria como "orientada por
ideais" mais do que "baseada em direitos". Os agentes de seus construtivismo não
reconhecem uma ordem moral prévia (como os direitos humanos) mas também não
exercem arbitrariamente suas vontades - a escolha dos princípios de justiça deverá se
apoiar nos ideais morais implícitos em crenças fundamentais amplamente
compartilhadas, pelo menos em uma determinada tradição política, tais como a recusa à
escravidão e a tolerância religiosa. Falta agora localizar o "ponto arquimediano" a partir
do qual seja possível a construção do padrão de justiça e a partir do qual seja possível
julgar as instituições de uma sociedade. Se percorremos a teoria de Rawls até uma de suas
extremidades encontramos o ideal de pessoas morais livres e iguais; se a percorremos até
a outra de suas extremidades encontramos o ideal de sociedade bem ordenada. Entre as
duas extremidades, há um ponto em que a escolha dos princípios de justiça que deverão
reger as instituições de uma sociedade bem ordenada pode ocorrer de forma a dar
expressão ao ideal de pessoa moral. A este ponto Rawls denomina "posição originária".

1.2 - A PRIORIDADE DO DIREITO

O "ponto arquimediano" procurado por Rawls pode ser interpretado simplesmente


como o conjunto de injunções (constraints) que se apresentam à argumentação pública
quando o que está em questão é avaliar as instituições básicas da sociedade. Quando
debatemos de que forma essas instituições devem se organizar para exprimir

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adequadamente o ideal de pessoas morais livres e iguais, ou então em que medida as
instituições de uma dada sociedade se aproximam desse objetivo, o que pode ser levado
em conta e o que não deve ter peso algum?
Neste ponto é preciso esclarecer o componente meta-ético - epistemológico - da
teoria de Rawls que é correlato a seu componente fundamental, mencionado no início
deste artigo, enquanto uma concepção moral de primeira ordem, isto é, enquanto um
padrão moral que busca proteger direitos de cálculos utilitaristas17. Justiça como equidade
é uma teoria "deontológica" - ou, o que é a mesma coisa: kantiana. Em uma concepção
deontológica, o que é correio fazer tem precedência sobre o que é bom ser. (O oposto a
isso seria uma teoria "teleológica", isto é, que estabelece a primazia de uma certa
concepção de boa vida humana; Rawls rejeita as teorias teleológicas porque elas oferecem
um fundamento excessivamente frágil para direitos e liberdades - cuja violação pode ser
justificada em nome do peso absoluto e atribuído a um fim último.)
Em termos epistemológicos, a prioridade do que é direito sobre o que é bom
significa que o padrão de justiça deve ser derivado independentemente de concepções
específicas de bem. Um requisito complementar a este, também característico de uma
concepção deontológica, é o de que a justificação dos princípios de justiça deve ser
independente das contingências de vida humana em sociedade. Alguém ocupar uma certa
posição social ou ser dotado de determinados talentos e capacidades não são razões
suficientes, que possam ser invocadas em um debate público, para justificar uma dada
forma de organizar as instituições básicas da sociedade em que precisamente essa posição
e esses talentos são os mais beneficiados; em que aqueles assim situados (ou dotados)
conseguem se apropriar de uma parcela maior dos resultados da cooperação social. A
distribuição de posições iniciais na sociedade, e também de talentos e capacidade (pouco
importando para a teoria de Rawls se hereditários ou socialmente adquiridos), é vista
como arbitrária de um ponto de vista moral (porque fruto de contingências). A derivação
do direito, em resumo, deve ser autônoma tanto de concepções específicas do bem quanto
de contingências sociais ou naturais.
Essas exigências deontológicas, que caracterizam o tipo de construtivismo
proposto por Rawls como "kantiano", são incorporadas à posição originária por meio de
um artifício de representação. No momento em que nos colocamos na posição originária
- isto é, sempre que se trate de avaliar as instituições de uma sociedade do ponto de vista
da justiça - estamos obrigados a realizar nossos julgamentos e escolhas por trás de um
"véu de ignorância". Se argumentamos a partir da posição originária, não podemos levar

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em conta as distintas concepções do bem que nos dividem, e sobre as quais jamais
estaremos de acordo se há uma delas que possa ser considerada superior18, nem os
diferentes talentos, capacidades e posições na sociedade com que a fortuna nos brindou.
Dito de outra maneira, o véu de ignorância é um artifício que tem o objetivo de representar
os agentes de construção, na posição originária, unicamente enquanto pessoas morais
livres e iguais, excluindo informações relativas e atributos contingenciais. Esta é a
forma fair de representá-los quando se trata da adoção de princípios primeiros de justiça
e, diz Rawls, "conjeturamos que a equidade das circunstâncias sob as quais o acordo é
alcançado transfere-se para os princípios de justiça acordados; uma vez que a posição
originária situa pessoas morais livres e iguais de uma forma equitativa entre si, qualquer
concepção de justiça que adotem será igualmente equitativa. Daí a denominação: 'justiça
como equidade'."19

1.3 - CONCEPÇÃO FRACA DO BEM

O que foi dito antes caracteriza suficientemente, acredito, a natureza kantiana da


concepção de justiça como equidade. O ponto arquimediano constituído por Rawls
permite que o padrão de justiça resultante tenha certo distanciamento da sociedade que
deve ser avaliada - das contingências que determinam as oportunidades de vida de seus
membros e da pluralidade de valores, objetivos e fins aos quais eles devotem lealdade.
Esse componente kantiano - a primazia da justiça - deve ser considerado predominante
na teoria de Rawls.
Mas as exigências deontológicas de distanciamento na forma de representar as
partes na posição original não podem ir até o ponto de os princípios de justiça produzidos
nada terem a ver com as circunstâncias reais de uma sociedade humana. A ambição da
teoria de Rawls é a de elaborar um padrão moral de tipo deontológico que seja realizável
não por seres transcendentes de um mundo transcendente e sim pelos habitantes de um
mundo distintivamente humano. Se as exigências deontológicas representadas pelas
injunções do véu de ignorância levam a que certas informações não tenham peso moral,
há outras informações que terão que ser levadas em conta, se o que se quer é chegar a
uma concepção de justiça que seres humanos de uma sociedade real possam adotar. As
informações desse segundo tipo dizem respeito ao que Rawls, inspirado, neste ponto, na
filosofia de Hume, chama de "circunstâncias da justiça".20
Entre as circunstâncias "objetivas" da justiça, "que tornam a cooperação humana
tanto possível quanto necessária", está a condição de "escassez moderada": os recursos

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existentes e os benefícios que resultam da cooperação social em uma sociedade não são
abundantes ao ponto de não emergirem reivindicações conflitantes sobre a parcela que
cabe a cada um de seus membros, e nem tão exíguos ao ponto de qualquer forma de
cooperação ser impossível. As circunstâncias "subjetivas" da justiça podem ser resumidas
no que Rawls chama de o "fato do pluralismo" (ou, como quer Nozick, o "fato de nossas
existências separadas"): as sociedades ocidentais contemporâneas são caracterizadas por
uma inescapável pluralidade de concepções do bem - tanto de concepções da boa vida
para si próprio quanto de concepções acerca de boa vida humana em sociedade.
Levar o "fato de pluralismo" em conta significa dizer que a adoção de uma
concepção pública de justiça não poderá se apoiar em premissas muito fortes acerca da
motivação dos agentes - supor, por exemplo, que eles sejam movidos pelo altruísmo ou
pela benevolência. Este é, justamente, um dos problemas do utilitarismo: a adoção de uma
ética militarista como padrão moral de uma sociedade pressupõe que seus membros sejam
motivados por um senso de benevolência universal - propor a maximização da soma total
de utilidade como a única consideração ética relevante pressupõe que cada membro da
sociedade se interesse pela utilidade dos demais tanto ou mais do que pela sua própria; a
concepção utilitarista de justiça, nesse sentido, pode ser considerada simplesmente
utópica. Rawls evita fazer suposições motivacionais muito fortes dizendo que as partes,
na posição original, são "mutuamente desinteressadas":
"pode-se dizer, em suma, que as circunstâncias da justiça se verificam sempre que
pessoas mutuamente desinteressadas fazem reivindicações conflitantes acerca de divisão
dos benefícios sociais em condições de escassez moderada. Se essas condições não
existissem não haveria oportunidade para a virtude da justiça, assim como na ausência de
ameaças à vida ou à própria integridade não haveria oportunidade para a coragem
física."21
Como já foi dito antes (quando comentei o escopo de justiça como equidade), a
teoria de Rawls se propõe oferecer respostas razoáveis somente às questões práticas que
emergem das circunstâncias objetivas da justiça. Mas os problemas mais intratáveis
surgem das circunstâncias subjetivas, do "fato do pluralismo". Afinal, o que levaria
agentes "mutuamente desinteressados" a adotarem princípios comuns de justiça?
A resposta já está pelo menos implícita no que já foi visto até aqui. Trata-se de
uma das suposições mais centrais, e também mais controversas, da teoria de Rawls - e um
dos fundamentos do liberalismo político em geral. A idéia é que os cidadãos de uma
sociedade democrática podem ter interesse em compartilhar de uma concepção fraca (ou

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mínima) de bem, e encarar isso como algo não contraditório com as lealdades que
devotem a determinadas concepções plenas do bem. A estratégia argumentativa de Rawls
é a de focalizar a justificação das instituições básicas da sociedade em crenças
fundamentais e interesses compartilhados, de tal forma que essas instituições possam ser
vistas por todos como um bem em si mesmo - como uma pré-condição para que quaisquer
valores, objetivos e fins possam ser realizados. A boa vida humana em sociedade é aquela
em que a estrutura comum que determina as oportunidades de vida de cada um pode ser
publicamente justificadas (daí a necessidade de oferecer respostas razoavelmente correias
aos conflitos que emergem das circunstâncias objetivas da justiça); e é aquela em que, de
outra parte, cada um pode cultuar a divindade com que esteja comprometido, desde que
tolere o mesmo nos demais. Como diz Jeremy Waldron:
"A intuição é a de que, apesar de não compartilharem dos ideais uma das outras,
as pessoas podem abstrair de sua experiência um sentido de como é estar comprometido
com um ideal de boa vida; elas podem reconhecer isso em outro e focalizar esse sentido
como algo a que a justificação política pode se dirigir."22
Essa concepção fraca do bem é incorporada por Rawls à justificação da posição
originária e da escolha dos princípios de justiça. As partes na posição originária, apesar
de "mutuamente desinteressadas", têm um interesse comum, supõe Rawls, em um
conjunto de "bens primários" - isto é, os bens que qualquer um desejaria para poder
realizar sua própria concepção de boa vida (isso inclui coisas tais como direitos - e
liberdades básicas, oportunidades para ocupar posições de responsabilidade em
instituições políticas e econômicas, renda, riqueza e as "bases sociais do auto-respeito"23).
O bem humano assim entendido é visto por Rawls como neutro, isto é, como não
favorecendo a nenhuma concepção plena da boa vida em particular. É por isso que Rawls
pode supor que tal concepção fraca do bem seja prévia à própria adoção dos princípios de
justiça, sem que isso comprometa a exigência deontológica de primazia do que é correto
sobre o que é bom.
Essa neutralidade, entretanto, pode ser colocada em dúvida. Há pessoas que veem
seus vínculos com uma determinada comunidade, classe, grupo político, étnico ou
religioso como algo tão determinante de sua própria identidade pessoal que simplesmente
não conseguiriam se conceber como tendo algo em comum com pessoas comprometidas
com outras associações, grupos ou objetivos. Há ainda aqueles que somente concebem a
busca da realização de sua própria concepção de boa vida tentando impô-la aos demais.

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Uns e outros muito provavelmente recusariam a neutralidade da concepção fraca do bem
proposta por Rawls.
É um problema espinhoso para justiça como equidade (e para o liberalismo
político de modo geral). Aqui a resposta é a de que a justificação política, tal como
concebida pela teoria de Rawls, só pode encontrar ressonância entre aqueles que
concebem seus próprios vínculos e lealdades (com associações, comunidades e
concepções do bem diversas) em um certo espírito "liberal"24. Isto é: aqueles que se
concebem como pessoas que, enquanto cidadãs, mantêm uma certa independência de
qualquer sistema particular de fins. Alguém mudar sua concepção da boa vida, ou
abandonar lealdades que antes via como constituindo sua própria identidade pessoal, em
nada altera sua identidade pública de pessoa moral livre e igual. A apostasia, em uma
sociedade democrática, não é crime e nem tem implicações para a concepção que as
pessoas têm de si mesmas enquanto cidadãs.25 A estratégia argumentativa, como não é
difícil de perceber, apoia sua plausibilidade em crenças fundamentais, supostas como
amplamente compartilhadas (na tradição política ocidental pelo menos), presentes na
aceitação da tolerância religiosa. Explicitar as intuições morais que se encontram no
fundo dessas crenças, de forma que possam servir de matéria-prima a um construtivismo
de tipo kantiano, eis o que John Rawls acredita ser a tarefa prática da filosofia política.
Até aqui concentrei-me nos problemas da meta-ética rawlsiana. Passo agora a uma
discussão dos princípios primeiros de justiça.

1.4 - O PRINCÍPIO DE DIFERENÇA

Se somente levássemos em conta nossa natureza de pessoas morais livre e iguais,


e as circunstâncias da justiça, então, supõe Rawls, escolheríamos para reger a estrutura
comum de nossas vidas dois (ou talvez três) princípios de justiça: um primeiro (e
prioritário) que estabelece um sistema igual de liberdade para todos; e um segundo (que,
como veremos logo a seguir, divide-se em duas partes bastante distintas) que estabelece
sob quais condições desigualdades sociais e econômicas seriam justificáveis. Discutirei
um pouco mais detalhadamente o segundo princípio, que, acredito, gera controvérsias
maiores (há quem coloque em dúvida também o caráter absoluto atribuído ao primeiro
princípio).
Antes disso, porém, chamo a atenção para a natureza hipotética da sentença que
abre esta seção. O construtivismo de Rawls, como talvez já tenha ficado evidente, é

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inteiramente hipotético, isto é, não supõe nenhuma forma de consentimento efetivo — de
exercício da vontade por parte de agentes reais:
"Nenhuma sociedade pode ser, é claro, um esquema de cooperação no qual os
homens entrem voluntariamente em um sentido literal; cada pessoa, ao nascer, encontra-
se situada em uma determinada posição em uma determinada sociedade, e a natureza
dessa posição afeta materialmente suas perspectivas de vida. Contudo, uma sociedade que
satisfaça os princípios de justiça como equidade aproxima-se tanto quanto possível de ser
um esquema voluntário, porque satisfaz os princípios com os quais pessoas livres e iguais
consentiriam em circunstâncias equitativas. Nesse sentido, seus membros são autônomos
e as obrigações que reconhecem são auto-assumidas."26
A pergunta relevante para a teoria de Rawls não é de que forma o mundo político
deve se organizar para que agentes reais possam participar da tomada de decisões
coletivas, e sim quais são as restrições a serem obedecidas uma vez que essa participação
já esteja assegurada - já estabelecida a democracia política, portanto. (Injunções desse
tipo negam que uma decisão coletiva possa violar a concepção de pessoa moral livre e
igual, como ocorreria no caso, por exemplo, de a pena de morte ser instituída
simplesmente porque isso exprime a vontade da maioria. O consentimento hipotético
requer que o ato de consentir seja algo mais do que a mera expressão de uma ou mais
vontades - é preciso indagar por suas razões.) Não há uma teoria da democracia,
estritamente falando, em Uma teoria da justiça.27 O que há, talvez, é um amplo critério
para orientar a ação política e a escolha pública em sociedades de democracia política
consolidada.
Volto aos princípios de justiça. O segundo princípio estabelece que as
desigualdades sociais e econômicas são moralmente aceitáveis se, e somente se, (a)
estiverem vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade
equitativa de oportunidade, e se (b) beneficiarem os membros pior situados da sociedade
(é o que Rawls chama de "princípio de diferença").
O componente fundamental da concepção substantiva de justiça de Rawls consiste
na neutralização de desigualdades sociais e naturais, que, fruto da fortuna social ou
genética, são moralmente arbitrárias. Não há justiça ou injustiça em indivíduos nascerem
em determinadas posições sociais (mais privilegiadas ou menos) ou então dotados de
certos talentos e capacidades (que, adequadamente treinados e utilizados, permitirão a
seus portadores se apropriar de uma parcela maior ou menor dos benefícios sociais); estes
são apenas, como diz Rawls, fatos naturais. O que pode ser considerado justo ou injusto

14
é a forma como as instituições da sociedade lidam com esses "fatos naturais". O princípio
de diferença não supõe a abolição de diferenças decorrentes de contingências, porque isso
seria impossível, e sim tanto quanto possível neutralizar seus efeitos:
"O princípio de diferença representa, com efeito, um acordo no sentido de encarar
a distribuição de talentos naturais como um recurso comum e de compartilhar os
benefícios dessa distribuição, seja ela qual for. Aqueles que foram favorecidos pela
natureza, quem quer que seja, podem tirar proveito de sua boa fortuna somente de forma
a melhorar a situação dos menos favorecidos. Os que são naturalmente privilegiados não
devem ser beneficiados apenas porque são mais talentosos, mas somente na medida
necessária para cobrir os custos de treinamento e de educação dos naturalmente
desafortunados e para exercitarem seus talentos de formas que também beneficiem estes
últimos. Ninguém merece sua capacidade natural maior e nem é merecedor de um ponto
de partida mais favorável na sociedade."28
Esta é uma das passagens mais célebres, e também mais controversas, de Uma
Teoria de Justiça, devido à surpreendente ideia de que a distribuição de talentos deve ser
vista como um "recurso público". Mas não é tão surpreendente se lembrarmos quão
impenetrável é o "véu de ignorância" adotado pela teoria da justiça de Rawls. As
exigências deontológicas da posição original, como vimos, excluem que quaisquer
contingências sociais ou naturais - entre as quais a distribuição de talentos e de
capacidades e até mesmo variações de preferências individuais - possam contar como
informações moralmente relevantes. Se nos colocássemos na posição original, refletindo
sob as injunções do véu de ignorância, escolheríamos, acredita Rawls, algo semelhante
ao princípio de diferença para determinar as formas de desigualdades aceitáveis, até
porque a fortuna poderia ter nos colocado entre os membros em pior situação da
sociedade. Se nos encontrássemos entre estes últimos, pelo menos gostaríamos que as
diferenças contingenciais trabalhassem também a nosso favor.29
Note-se que o princípio de diferença enfrenta o problema das. desigualdades
moralmente arbitrárias de uma forma inteiramente distinta da parte (a) do segundo
princípio - a igualdade equitativa de oportunidade. Uma concepção de justiça fundada
nesta última seria meritocrática. Digamos que o véu de ignorância seria bem mais fino:
quando a estrutura comum de suas vidas estivesse em questão, os indivíduos poderiam
levar em conta seus próprios talentos, capacidades e preferências e somente as
informações relativas a status e posições na sociedade seriam excluídas como moralmente
irrelevantes. A concepção de justiça adotada autorizaria a implementação de políticas

15
redistributivas - oportunidades educacionais iguais, por exemplo - para compensar certas
desvantagens sociais. A noção de igualdade envolvida nesse caso é a da igualização dos
pontos de partida para os que têm talentos similares.
O princípio de diferença, em contraste, não altera apenas as condições sob as quais
os talentos são exercidos; ele procura enfrentar a própria distribuição natural de talentos.
O espesso véu de ignorância adotado pela teoria de Rawls é, no fundo, uma forma de
exprimir a ideia de que o bem-estar dos cidadãos de uma sociedade democrática não
deveria depender das contingências dessa distribuição. O princípio de diferença
estabelece uma base moral a partir da qual certas restrições à propriedade privada dos
próprios talentos e capacidades tornam-se legítimas. Os cidadãos de uma "sociedade bem
ordenada" teriam plena liberdade (assegurada pelo primeiro princípio de justiça) para
desenvolver, tanto quanto possível, seus talentos, mas não teriam direito a todos os
benefícios sociais resultantes de seu exercício (parte desses benefícios seria destinada,
por meio de políticas redistributivas, a compensar aqueles em pior situação pela
desfortuna social ou genética).
Para comparar, pensemos em uma concepção de justiça ainda mais distante da de
Rawls do que a igualdade meritocrática. É o caso de uma teoria que adote um véu de
ignorância finíssimo. Os indivíduos levam em conta sua posição social, seus talentos e
preferências, e apenas desconhecem como estarão em algum ponto futuro do tempo. Para
lidar com a incerteza em relação ao futuro, eles podem querer contribuir para um fundo
comum, que depois distribuirá benefícios na medida da capacidade de contribuição de
cada um. Os que não têm capacidade de contribuição não estão intitulados a benefício
algum. Essa é uma concepção de justiça fundada exclusivamente no que Charles Taylor
denominou "princípio de contribuição" (isto é, em uma concepção de justiça comutativa,
em contraste com uma concepção de justiça distributiva).30 A ideia subjacente é a da auto-
suficiência individual. Se adotamos, para argumentar, a ideia de um contrato inaugural, é
como se os indivíduos viessem do estado de natureza já intitulados (e uma titularidade
cujo reconhecimento é acessível a todos por meio de "intuicionismo racional") não só a
seus direitos e propriedades mas também a seus talentos e capacidades próprios; como
estes últimos têm um valor desigual para a associação humana, então seus portadores
fazem jus a parcelas desiguais dos produtos e serviços da sociedade. Se na teoria de Rawls
a sociedade bem ordenada é concebida como um "sistema equitativo de cooperação
social", uma sociedade cujas instituições se organizem com base em uma concepção de

16
justiça comutativa seria (idealmente) um arranjo para benefício exclusivo dos que têm
capacidade de contribuição.
Se recorremos à esclarecedora distinção que faz Charles Taylor31 entre teorias
atomistas e teorias sociais do homem e da sociedade, então a concepção substantiva de
justiça de Rawls deve ser localizada entre estas últimas. A ideia fundamental não é a da
auto-suficiência individual (premissa, quase sempre não-examinada, de teorias atomistas
como a de Nozick, por exemplo); e sim a de que o indivíduo - o indivíduo autônomo,
capaz de escolher seus próprios fins, das sociedades ocidentais - só pode desenvolver suas
capacidades especificamente humanas em cooperação com outros e em certo tipo de
sociedade, de cultura e instituições políticas. A primazia já não cabe ao indivíduo e seus
direitos prévios e sim a uma dada forma de organizar as instituições básicas da sociedade
que investe o indivíduo de direitos, que lhe permite buscar a realização da sua própria
concepção do bem, que lhe assegura, enfim, um âmbito de liberdade negativa.

1.5 - EPISTEMOLOGIA "INDIVIDUALISTA" E JUSTIÇA SUBSTANTIVA


"COMUNITÁRIA"?

Vimos qual é a resposta de Rawls à pergunta colocada no início deste artigo. A


meta-ética de sua teoria, em essência, esforça-se para encontrar um "ponto arquimediano"
em que seja possível a adoção de um padrão moral com o máximo de objetividade
atingível e que ofereça soluções razoáveis a pelo menos algumas das questões práticas
mais importantes do mundo contemporâneo. Vimos também de que forma os princípios
morais de segunda ordem - as injunções deontológicas que estabelecem a primazia da
justiça sobre o bem, representadas no ponto arquimediano pelo dispositivo do véu de
ignorância - relacionam-se com os princípios primeiros de justiça (a concepção
substantiva de justiça de Rawls).
Uma última, e excessivamente breve, observação é a seguinte. Como o próprio
Rawls admite, é possível aceitar uma parte da sua teoria mas não a outra; aceitar os
princípios primeiros e não os procedimentos meta-éticos de justificação -ou vice-versa.
A teoria de Nozick adota a primazia da justiça sobre o bem (sob um véu de ignorância
quase transparente), mas sustenta que se essa primazia for levada a sério nenhuma forma
de justiça distributiva será justificável. Similarmente, mas em uma direção oposta à de
Nozick, Michael Sandel32 não acredita que o princípio de diferença, com os valores
comunitários que nele se exprimem, possa ser derivado da epistemologia "individualista"
de Rawls. Sandel argumenta que a meta-ética rawlsiana, evitando partir de um sujeito

17
"radicalmente situado" (ocupando uma determinada posição na sociedade, comprometido
com Urna concepção específica do bem, com certos grupos ou associações e assim por
diante) acaba por adotar uma concepção do sujeito moral como "radicalmente
desencarnado", isto é, como prévio às formas de cooperação com outros que possam ser
constitutivas de identidade pessoal.
No artigo publicado nesta edição, Rawls argumenta que justiça como equidade
envolve uma concepção de pessoa moral, que ele procura precisar, mas não supõe
nenhuma teoria específica (individualista ou outra) da identidade pessoal ou da natureza
humana. Nada melhor, portanto, do que passar a palavra ao próprio John Rawls.

NOTAS

1 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge-Mass., Harvard University Press, -


1971. (Há uma edição brasileira da UNB.)

2 Rawls prefere dizer que sua teoria é "orientada por ideais". Ver nota 19 de "Justiça
como equidade: concepção política, não metafísica" nesta edição.

3 A despeito das diferenças que mantém entre si, outras expressões importantes dessa
tendência são: DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge - Mass.,
Harvard University Press, 1978 - NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopy. Nova
Iorque, Basic Books, 1974; MACKIE, J.L. Ethics. Inventing Right and Wrong.
Londres, Penguin Books, 1977.

4 RAWLS, J., op., p. 26-27.

5 SEN, Amartya e WILLIAMS, Bernard. "Introduction: Unitilarianism and Beyond."


In: & (org.). Utilitarianism and Beyond. Cambridge University Press, 1982.

6 É essa concepção estreita de pessoa, que considera como informações eticamente


relevantes somente as relativas ao bem-estar dos agentes - e bem-estar identificado à
satisfação de desejos ou à utilidade — que Sen considera inaceitável na teoria
econômica normativa ou descritiva. Ver, nesta edição, "Comportamento econômico e
sentimentos morais".

7 A Theory of Justice, p. 3-4.

8 Ver discussão em Kai Nielsen, "Arguing about Justice: Marxist Immoralism and
Marxist Moralism:" (Philosophy and Public Affairs, vol. 17, 3, 1983).

9 Minha discussão limita-se a dois dos padrões antes mencionados: as teorias baseadas
em direitos e o utilitarismo. O terceiro, a promoção de atividades intrinsecamente
valiosas, é criticado por Elster na forma em que se exprime por exemplo, no
pensamento de Hannah Arendt. Ver "Auto-realização no trabalho e na política: a
concepção marxista de boa vida" nesta mesma edição. A despeito da crítica a Arendt, a

18
defesa de Elster, com algumas qualificações, da noção marxista de auto-realização tem
evidentes afinidades com uma moralidade desse terceiro tipo.

10 RAWLS, John. "Kantian Constructivism in Moral Theory". The Journal of


Philosophy, vol. LXXVII, 9, 1980. pp. 554-560.

11 Este é o ponto de vista defendido por G. A. Cohen em "Freedom, Justice and


Capitalism" (New Left Review, 126, 1981).

12 Essa forma de amoralismo marxista é energicamente defendida por Richard Miller


em "Rights and Reality" (The Philosophical Review, XC, 3, 1981).

13 RAWLS, J. "Kantian Constructivism...", op. cit.


14 A Theory of Justice, § 86, p. 567-577.

15 WALDRON, Jeremy. "Theoretical Foundations of Liberalism." The Philosophical


Quarterly, vol. 37, 147, 1987. p. 135.

16 "Kantian Constructivism..." op. cit.

17 Michael Sandel faz uma interessante discussão da epistemologia rawlsiana


em Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge, Cambridge University Press,
1982).

18 No artigo publicado nesta edição, Jon Elster, no entanto, argumenta no sentido da


superioridade de uma forma de vida orientada para a auto-realização. Ver "Auto-
realização no trabalho e na política: a concepção marxista de boa vida".

19 "Kantian Constructivism...", p. 522. A tradução de fairness por "equidade" não


ocorre sem alguma variação de sentido, mas parece não haver um termo mais adequado
em português.

20 A Theory of Justice, § 22, p. 126-130.

21 Idem, ibidem, p. 128.

22 WALDRON, J., op. cit., p. 145.

23 Sobre as "bases sociais do auto-respeito", ver S 65, 66 e 67 de A Theory of Justice.

24 WALDRON, J., op. cit., p. 14.5.

25 Esta é a linha de argumentação desenvolvida por Rawls em seu artigo publicado


nesta edição. Ver "Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica".

26 A Theory of Justice, p. 13.

27 Alguns críticos de Rawls confundem o consentimento hipotético a um padrão de


justiça com uma teoria específica da deliberação política. É o caso, acredito, de Bernard
Manin em "Volonté générale ou délibération?" (Le Débat, 33, 1985, pp. 72-93).

28 A Theory of Justice, pp. 101-102.

19
29 O princípio de diferença, acredita Rawls, oferece uma interpretação política para a
ideia de fraternidade. A Theory of Justice, pp. 105-6.

30 TAYLOR, Charles. Philosophy and the Human Sciences. Philosophical Papers (v.
2). Cambridge, Cambridge University Press, 1985. pp. 285-317.

31 Idem, ibidem, pp. 187-210.

32 SANDEL, Michael,op. cit., pp. 50-65.

2 - FILOSOFIA E EDUCAÇÃO

ANÍSIO S. TEIXEIRA1
As relações entre filosofia e educação são tão intrínsecas que John Dewey pôde
afirmar que as filosofias são, em essência, teorias gerais de educação. Está claro que se
referia à filosofia como filosofia de vida. Sendo a educação o processo pelo qual os jovens
adquirem ou formam "as atitudes e disposições fundamentais, não só intelectuais como
emocionais, para com a natureza e o homem", é evidente que a educação constitui o
campo de aplicação das filosofias, e, como tal, também de sua elaboração e revisão. Muito
antes, com efeito, que as filosofias viessem expressamente a ser formuladas em sistemas,
já a educação, como processo de perpetuação da cultura, nada mais era do que meio de
se transmitir a visão do mundo e do homem, que a respectiva sociedade honrasse e
cultivasse.
E, como que para confirmá-lo, não deixa, por isso mesmo, de ser significativo o
fato de a primeira grande formulação filosófica, no Ocidente, se iniciar com os mais
evidentes propósitos educativos. Os primeiros filósofos são também os primeiros mestres,
procurando reformular os valores da sociedade e, na realidade, reformar a educação
corrente.
Eram, pois, filósofos e reformadores. Os estudos filosóficos formais nascem,
assim, como estudos de educação. Os sofistas foram os "primeiros educadores
profissionais" da civilização ocidental.
O traço distintivo dessa civilização, na frase de André Siegfried, desde então
consistiu no "hábito de tratar os problemas à luz da razão, liberta do mágico, do
supersticioso e do irracional ".

1
TEIXEIRA, Anísio. Filosofia e educação. Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.32, n.75, jul./set. 1959. p.14-27.

20
Daí por diante, a mentalidade ocidental não mais se afastou dessa tradição,
buscando subordinar a própria religião à razão e, na realidade, toda a vida humana é um
esquema coerente de ideias, compreendendo teorias do homem, do conhecimento, da
sociedade e do mundo. Como tais teorias são, todas elas, fundadas na teoria do
conhecimento, faz-se esta a teoria-chave, não só para iluminar e esclarecer as demais,
como, sobretudo, para comandar as consequências da filosofia, como um todo, sobre o
processo educativo.
Já mencionamos que, antes de quaisquer formulações explícitas de filosofia, a
humanidade havia elaborado as culturas em que vivia imersa e que lhe davam os
instrumentos para a ação e para a fantasia, para o trabalho e para o consumo, para o prazer
e para o sofrimento. Tais culturas continham em estado de suspensão, digamos assim, as
teorias que viriam depois a ser formuladas expressamente.
Baseadas em costumes e rotinas imemoriais, as culturas, quando a história delas
nos deu conhecimento, já apenas podiam mudar por acidente ou por pressões externas,
por choques e conflitos, desprovida a prática dos atos humanos de qualquer elemento
intencional e mesmo de qualquer plasticidade para mudança ou progresso percebidos e
ordenados.
Tudo leva a crer que nem sempre foi assim e que períodos houve em que a
humanidade praticou e aprendeu pela experiência, com poder criador considerável. A
domesticação dos animais, a produção de animais híbridos, a confecção de ferramentas e
instrumentos, a organização social e religiosa, com toda a complexidade de ritos e
instituições, demonstram que o homem usou amplamente a inteligência e a usou com
eficácia e corretamente.
Com o apogeu das "civilizações" é que vamos encontrar os homens mergulhados
em um estágio de triunfo e estagnação, mais devotados ao lazer e à suntuosidade do que
à criação, endurecidos e cristalizados em intricados contextos de costumes, ritos e rotinas.
Os sofistas e Platão não eram, assim, os reveladores da vida grega, mas os seus
reformadores. Ao investirem contra os costumes e as práticas correntes, tão hirtos e
mortos, que pareciam decorrer da adaptação cega do homem aos seus rudes apetites e
necessidades, criaram virtualmente a sociedade dinâmica que se iria fundar na mudança
e no cultivo da mudança.
Dispondo de uma língua excepcionalmente avançada para o tempo, contavam os
gregos não somente com este instrumento verbal de alta perfeição como também com a
disposição especial para criar, por desenhos, simbolizações intelectuais para a

21
especulação nos campos da geometria e da matemática. Se a isso acrescermos a
peculiaridade helênica de não estar a sua civilização, tanto quanto outras civilizações
contemporâneas, acorrentada ao poder sacerdotal, detentor habitual e cioso do saber
tradicional, teremos alguns elementos para esclarecer a mudança de direção na aventura
humana, a que Renan veio chamar de "milagre grego".
Capacidade especulativa, decorrente do desenvolvimento da língua e da
simbolização geométrica, aliada ao secularismo da civilização grega, deu a esse momento
histórico oportunidade para a formulação do pensamento filosófico da humanidade em
condições jamais até então imaginadas. Tão definitivas se revelaram certas formulações,
que A. N. Whitehead pôde afirmar que "a melhor caracterização geral da tradição
filosófica do Ocidente é a de ser ela uma série de notas" - notas de pé de página, diz ele -
"ao pensamento de Platão".
Não se pode, pois, analisar a filosofia de educação de nossa época sem que antes
nos detenhamos nesses recuados primórdios da civilização.
A construção filosófica então erguida pelo homem é um prodígio de bom-senso e
de capacidade especulativa, dentro das limitações de conhecimento do tempo. A
experiência, antes criadora, se havia tornado rotina ou acidente e, esvaziada do conteúdo
plástico, já não oferecia condições para progresso contínuo ou ordenado. A razão, pelo
contrário, recém-descoberta, estava em pleno esplendor de criação especulativa,
extasiando a imaginação grega com a maravilha das proporções, do ritmo, da simetria, da
harmonia, do completo, do acabado, do ordenado, do perfeito.
Não há como admirar haver chegado Platão à concepção de um mundo racional
suprassensível, mais real que o mundo das coisas desordenadas e passageiras, e de que
este último seria apenas a sombra fugaz e ilusória. A alegoria da caverna consagrou, sob
forma literária, essa concepção de um mundo de ideias, real, eterno e imutável, a que o
homem podia chegar pela educação da mente e do espírito.
A descoberta do conhecimento racional, como algo em que se pudesse apoiar o
homem, constituiu aquisição de tal modo segura que daí por diante as filosofias flutuaram
e oscilaram, mas dificilmente se puderam libertar e, ainda hoje incompletamente, dos
quadros com que as balizou o gênio de Platão.
Duas ordens de conhecimento eram possíveis, o empírico, fundado em experiência
e erro e, por conseguinte, insuscetível de produzir a certeza, e o racional, fundado na
especulação matemática e filosófica, nas leis da harmonia e da simetria, construção
intelectual do espírito em sua intuição reveladora do real, do perene e do imutável.

22
Dar a esse segundo conhecimento, que se elaboraria na contemplação e no lazer,
a nobreza e a dignidade da única realidade que importava, era algo como uma conclusão
lógica, tanto mais consequente quanto a sociedade grega, aristocrática e baseada na
desigualdade entre homens livres e escravos, veria nessa conclusão uma justificação de
seu próprio regime social.
Estavam aí os elementos para as teorias do homem e da sociedade, que Platão
desenvolve na República, propondo a organização de um Estado que, mais do que
nenhum outro, se iria fundar na educação e no treinamento dos indivíduos para atender
às diferentes funções sociais que lhes fossem reservadas pelas respectivas ordens de sua
natureza humana.
Filosofia e educação se fazem campos correlatos de estudo e de prática, e em
nenhum outro período da história se registra afirmação mais decisiva, primeiro, quanto à
função da educação na formação e distribuição dos indivíduos pela sociedade e, em
segundo lugar, quanto ao reconhecimento de que sociedade ordenada e feliz será aquela
em que o indivíduo esteja a fazer aquilo a que o destinou sua natureza.
Como se distribuiriam os homens? A observação do senso-comum estava a
mostrar que se escalonavam eles em graus diversos de capacidade mental, alguns mal se
libertando dos apetites e necessidades do corpo, outros alcançando a coragem e a
generosidade, e outros ascendendo, afinal, à contemplação intelectual e ao gosto das
ideias e das formas do espírito.
Com tais elementos não seria difícil a fórmula especulativa pela qual se ordenasse
o complexo do mundo e do homem. O pressuposto fundamental aí estava: tudo que existe
se divide em Formas e Aparências, as primeiras reais, eternas, e, só elas, suscetíveis de
conhecimento, e as últimas, passageiras, mutáveis, em processo de ser mas não chegando
a ser, suscetíveis apenas de produzir opiniões e crenças, sem valor de saber, isto é, saber
racional.
O conhecimento das Formas é uma intuição mediata do intelecto sob a provocação
dos sentidos, e o fim do homem é a contemplação dessas Formas. Composto de alma e
corpo, substâncias diversas e, de certo modo, independentes, o homem, pela alma, que
não é propriamente Forma, mas aparentada com as Formas e aprisionada no corpo, vive
num aspirar ao mundo das Formas, que é o seu verdadeiro mundo. Como o corpo pertence
ao mundo das aparências, cabe-lhe subordinar-se à alma e ser atendido apenas em seus
apetites "necessários", e em grau mínimo. Alcança o homem o seu destino na medida em
que se liberta das ilusões e aparências e depara com o mundo das realidades ou das

23
formas, que vem a conhecer pela atividade intelectual e a amar pela sua harmonia e
beleza.
A natureza e a sociedade decorrem desses pressupostos, distribuindo-se os
homens na medida em que se libertam do corpo e ascendem na capacidade de
contemplação da Verdade, do bem e do belo, isto é, do conhecimento, que produz a
virtude como uma consequência. Aos filósofos, que seriam, por excelência, tais homens,
competiria a função de governo, descendo, depois, a hierarquia aos capazes de
generosidade e coragem (defensores), até aos artesãos e produtores, dominados pelos
apetites e sentidos. A sociedade é, assim, rigorosamente aristocrática e se funda na
desigualdade e que os homens se distribuem por esses três degraus da escala humana.
Temos nessa filosofia, aí toscamente esboçada, uma teoria do universo, uma teoria
do homem e uma teoria da sociedade, que vêm governando a vida humana e a educação
no Ocidente até os nossos dias.
Absorve-a, depois de longos séculos de confusão, o cristianismo, que lhe
acrescenta as teorias da criação e do pecado original. Compreende-se a fascinação dos
primeiros filósofos da Igreja pelo pensamento platônico. Parecia uma antecipação ao
pensamento eclesiástico em elaboração e uma fundamentação teórica para os
pressupostos orientais da religião nascente.
Pela teoria platônica, a natureza não chegava a ser digna de estudo e os homens
estavam todos distribuídos em três classes, apenas, de indivíduos, conforme atingissem
os dois únicos níveis de desenvolvimento além do nível dos simples apetites do corpo.
Aos desse último grupo caberia o trabalho, para atender às necessidades da matéria; aos
que, ultrapassando os apetites, alcançassem a coragem e a generosidade, competia a
defesa da sociedade; e, finalmente, aos que se elevassem ao estágio da razão e da visão
universal, o poder e o governo.
A educação seria o processo pelo qual os indivíduos desvendariam suas
potencialidades e se distribuiriam pelas diferentes classes, formulando, desse modo, o
filósofo grego a mais perfeita teoria das funções de processo educativo.
Não lhe foi, porém, intelectualmente possível prever nem a unicidade de cada
indivíduo, nem a extrema variedade de suas potencialidades, o que o levou a um conceito
aristocrático de sociedade e, em rigor, depois de realizado, a uma forma limitada e estática
para essa mesma sociedade.
A ideia da criação do mundo e a do pecado original, trazidas pelos cristãos e
oriundas da tradição judaica, viriam, por um lado, tornar a "natureza" respeitável, por

24
haver sido criada por Deus, e, por outro, dar nova explicação aos elementos constitutivos
do homem, já agora carne e espírito, os quais, longe de serem suscetíveis de controle pelo
desenvolvimento do espírito, se encontrariam em luta permanente, não sendo a vitória do
espírito sobre a carne o privilégio de alguns, mas a luta de todos os homens, do mais
humilde ao mais bem dotado.
Não se alteram as grandes estruturas do mundo, do homem, da natureza e da
sociedade, mas surgem duas novas linhas de desenvolvimento. A primeira é o fermento
democrático, decorrente da igualdade substancial de todos os homens; a segunda é a de
estudo da "natureza", como algo em que se esconderiam as formas, pois já não era a
natureza a extravagância de um demiurgo, mas a criação de Deus.
O dualismo de forma e matéria, assim tomado aos gregos na formulação
aristotélica, viria, mais tarde, sofrer a reformulação tomista e reconciliar-se com a
doutrina judaico-cristã, dando origem ao desenvolvimento moderno e às filosofias de
Bacon, Descartes, Locke, Kant, Fichte e Hegel, todas oriundas e, no fundo, destinadas
apenas a complementar Platão, em face da evolução da sociedade e dos conhecimentos
humanos.
Ainda na Idade Média, os primeiros estudiosos da "natureza" já se chamam de
platonistas, pois estão a buscar, além das aparências e do bom-senso, o segredo das
formas, de que a natureza seria a cópia ou a imitação.
Por outro lado, os homens passaram a ser julgados pelo esforço com que lutavam
pela vitória do espírito sobre a carne, e o mérito humano, em oposição ao critério grego,
a se medir pela sinceridade na luta e não pelas vitórias alcançadas.
São dois elementos quase-novos, a vontade do homem na luta entre o bem e o mal
e o julgamento do homem pelas intenções. O grego virtuoso e sábio era um vitorioso de
fato. Havia-se desenvolvido até alcançar o saber e a virtude. O cristão virtuoso era um
lutador, sempre vencido e sempre em luta, a ser julgado não pelos resultados, mas pelas
intenções e pela intensidade da vontade de luta.
Por isso mesmo, a fórmula platônica era intelectualista e aristocrática e a fórmula
cristã "voluntarística" e "potencialmente" democrática, na expressão de W. H. Walsh,
resumindo-se nestes pontos as diferenças mais substanciais, originárias em essência da
distinção entre a concepção grega de alma e corpo e a cristã de espírito e carne.
Recordemos que, para São Tomás, corpo e espírito constituiriam certa unidade, o que
dificulta o conceito de imortalidade, e leva os cristãos ao dogma da ressurreição dos

25
corpos, proeza de raciocínio que, de certo modo, santifica o corpo na luta de espírito sôbre
a carne e ameniza os rigores do ascetismo helênico.
É com estes novos elementos que elabora Bacon a primeira revolta, com a
reformação da teoria do conhecimento racional. Legitimado o estudo da natureza, e
dignificado o corpo humano, de um lado sob a inspiração platônica, de que a natureza
escondia as formas do real, e, de outro, sob a inspiração cristã, de que a natureza era obra
de Deus, o novo filósofo lança as bases da experimentação como processo do
conhecimento e cria o novo conhecimento racional, o das leis da natureza reveladas, não
pela simples especulação intelectual, fundada na observação do bom-senso, mas pela
especulação intelectual fundada nos novos processos de experimentação.
A formulação medieval da filosofia platônica, mantendo o mesmo critério do
racional que recebera dos gregos, "antecipava a natureza", emprestando-lhe
características arbitrárias e fundadas em opiniões humanas, que importava substituir pela
descoberta de suas verdadeiras leis. Para tais descobertas se inventara o método
experimental, que mais não era que o método imemorial de observar a manipular as
coisas, a fim de ver o que se podia fazer com elas; no fim de contas, o método do trabalho
humano.
O encontro entre o trabalho e o conhecimento, desde que, dezenove séculos antes,
se dera o encontro entre a razão e o conhecimento, constitui a segunda grande revolução
da inteligência humana.
Platão substituíra o mágico, o supersticioso, o "empírico", no sentido de acidental,
o costume, a rotina, pela reflexão especulativa racional, mas tal reflexão revelaria uma
verdade estática e puramente lógica. Rompendo com a natureza e com os processos
empíricos de trabalho, que não julgava sequer dignos de estudo, achara a solução para
sociedades aristocráticas e reduzidas, capazes de viver de literatura e de lazer.
Somente Bacon abre as portas para as sociedades numerosas e ricas, em perpétuo
desenvolvimento, ao trazer o conhecimento racional para o campo do prático, com o que
inaugura nova era de criação e originalidade permanentes para a espécie humana. As
sociedades destinadas a mudar e agora devotadas ao culto da mudança ressurgiram afinal
sob o céu.
A volta à observação, que as concepções platônicas, de certo modo, haviam
tornado possível interromper, religa o espírito científico aos períodos anteriores à época
de Platão e de Aristóteles, restaurando cosmologia anteriormente descoberta e criando,
com o método experimental, uma física e uma nova ciência da natureza.

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As estruturas do pensamento lógico e filosófico são as mesmas de Platão, mas
abre-se um campo novo de estudos e se refazem, pela experimentação, os métodos de
observação, antes os do senso-comum e, agora, os da pesquisa e da descoberta.
São estas estruturas de pensamento que retoma Descartes, no século XVII, para
reformular o que se veio chamar de filosofia moderna. A sua posição, entretanto, ainda é
a de um platonismo-cristão.
Conserva o dualismo de res cogitans e res extensa, em substituição ao de formas
e aparências; recria o conceito platônico de conhecimento pela "intuição intelectual";
recomenda a observação antes com o olho da mente do que com os olhos dos sentidos; e
antecipa os conceitos de Leibnitz de "cognitio intuitiva" como base da "cognitio
symbolica", ou descritiva. Acrescenta, contudo, para mostrar a origem cristã de sua
posição, a idéia da alma dotada das faculdades de compreender e de querer, esta mais
extensa do que aquela, dando origem ao primado da vontade, que vai encontrar em Kant
a sua expressão mais decisiva.
Com efeito, Descartes consolida a liberdade para o estudo da ciência física,
separando as esferas de influência entre o mecânico e o espiritual. Deixa este para os
teólogos e moralistas e o mundo físico para os cientistas, de certo modo reconciliando os
esforços de uns e outros.
É Kant, porém, que tenta a última pacificação, com o seu dualismo, ainda
platônico, entre noumeno e fenômeno. Todo conhecimento é conhecimento de fenômeno,
ou de aparências. O categórico absoluto só é possível no campo da razão prática.
Substituiu-se pela fé o conhecimento. "Pura fé prática" é, afinal, o motor da ação humana.
O homem progride nesse campo, não pelo conhecimento mas pela vontade e pela
experiência ancestral da vida humana. O primado do prático sobre o teórico faz dele, já o
disse alguém, o filósofo do protestantismo, e mostra as suas raízes cristãs. A estrutura
dualista do seu pensamento é platônica, mas as consequências são "voluntarísticas" e
cristãs.
Toda essa tradição filosófica se reflete na educação, com a sua organização
intelectualista e a sua prevenção contra o técnico. Seja o sistema inglês, seja o francês,
seja o alemão, são organizações educativas fundadas na teoria do conhecimento pela
intuição intelectual, na teoria moral do treino da vontade, na nobreza de estudos literários
e na prevenção contra o prático e o técnico. Bacon ficará, ainda por muito tempo, simples
profeta da ciência.

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Até nos tipos de escolas encontra-se a hierarquia platônica, com a maior dignidade
assegurada às formas contemplativas do saber, depois, em uma segunda ordem, as do
conhecimento científico experimental e, afinal, as de ensino prático ou técnico, como
último escalão da ordem educacional.
Quase que até o fim do século XIX pode-se considerar pacífica essa classificação,
sendo as instituições educativas mais famosas as instituições em que Platão facilmente se
reconheceria, com alguns rápidos esclarecimentos sobre modificações de detalhes em
suas concepções. Os próprios empiricistas, a despeito de divergências aparentes, não
repudiavam os pressupostos básicos de Descartes, e deste modo também se ligavam a
Platão.
Só recentemente essa tradição entrou em real ataque, com o repúdio ao
cartesianismo e ao kantismo, mas não se pode dizer que os novos filósofos já estejam
influindo decisivamente nas instituições educativas.
Estas vêm de origem demasiado remota para se transformar rapidamente, e os
professores, em sua esmagadora maioria, refletem a posição filosófica tradicional e não a
que começa a se esboçar em face da nova ciência das culturas e dos novos
desenvolvimentos da filosofia científica.
A filosofia mais recente repele o conceito cartesiano de alma e o seu conceito de
conhecimento. Alma passa a ser um nome para designar certas formas de comportamento
humano, suscetíveis de explicação natural, e o conhecimento, a descoberta muito mais de
"como" são as coisas do que de "que" são elas.
A busca da certeza que moveu Descartes continua a motivar os filósofos, mas
estes se mostram bem mais modestos e começam a se contentar com a garantia provisória
da prova experimental em constante processo de renovação. Do lado lógico, o progresso
tem sido sensível, considerando-se diversas formas de lógica, fundadas em convenções
diversas, válidas segundo os casos a que se aplicam. A ciência toda se vem fazendo
convencional, em sua parte matemática, e experimental, na parte física, com reflexos
poderosos sobre as filosofias.
Assim que se generalizarem os novos conceitos sôbre a natureza do homem, a
natureza do conhecimento e a natureza do comportamento social e moral do homem, a
educação refletirá os novos conceitos, que, depois, se verão institucionalizados nas
escolas.
Com efeito, o método desenvolvido pela pesquisa científica - originário do retorno
à experiência recomendada inicialmente por Bacon, depois de séculos de pensamento

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puramente especulativo e racional - constituiu algo de tão característico e amplo que veio
a refletir-se sobre a filosofia, produzindo primeiro os "empiricistas", depois, em contraste
com esses, os "racionalistas", e afinal os "pragmatistas", "instrumentalistas" ou
"experimentalistas", que buscam reconciliar as posições dos dois primeiros mediante uma
reconstrução fundamental dos conceitos de experiência e de razão, à luz desse novo
método científico.
A reformulação desses conceitos se fez em face da alteração real sofrida pela
natureza do ato de experiência e das modificações introduzidas na psicologia pelo
progresso da ciência biológica.
A mudança do caráter da experiência pode ser condensada na diferença entre os
termos "empírico" e "experimental". A experiência, no conceito tradicional, consistia no
processo de tentativa e erro, só podendo produzir o saber por acidente, saber que se
consubstanciava em hábitos e procedimentos cegos, os quais, por sua vez, se
cristalizavam em costumes e rotinas hirtos e duros. Daí ser a experiência um instrumento
de escravização ao passado e não de renovação e progresso. A experiência, como a
concebeu Bacon, seria a Experimentação, o produzir voluntariamente a experiência para
se conseguir o resultado novo e o novo conhecimento.
A psicologia dos séculos dezessete e dezoito retardou, se não impediu, que se
extraísse desse novo conceito da experiência uma teoria experimental do conhecimento.
O atomismo associacionista dos "empiricistas" teve, por certo, a sua eficácia no
desencorajamento das racionalizações especulativas, mas não forneceu os elementos para
uma teoria satisfatória do saber, dando assim lugar ao surgimento dos "racionalistas", que
buscaram completar o vácuo produzido pela psicologia inadequada dos sensacionalistas,
com os conceitos e categorias a priori de Kant e dos pós-Kant.
Foi a abordagem, antes biológica do que psicológica, já no século XIX, do
fenômeno da experiência humana que permitiu desenvolver-se o conceito de experiência
como interação do organismo vivo com o meio, e elaborar-se uma teoria psicológica
adequada à explicação do comportamento humano face à experiência e ao conhecimento.
Segundo essa teoria, o processo de vida é uma sequência de ações e reações,
coordenadas pelo organismo para o seu ajustamento e reajustamento ao meio. Os sentidos
e as sensações não são meios ou caminhos do conhecimento, mas estímulos, provocações
e sugestões de ação, mediante os quais o organismo age e reage, ajustando-se às condições
ou modificando as condições para esse reajustamento.

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Conhecimento ou saber é um resultado, um derivado dessa atividade, quando
conduzida inteligentemente. A mente não é algo de passivo em que se imprima o
conhecimento, nem a razão uma faculdade superior e isolada que elabore as categorias,
os conceitos. Estes conceitos ou categorias resultam da percepção das conexões e
coordenações dos elementos constitutivos dos processos de experiência e
constituem normas de ação ou padrões de julgamento.
A integração desses novos conceitos na filosofia veio permitir a sua reformulação,
com a elaboração de uma teoria geral do conhecimento fundada no método do
conhecimento científico, uma teoria da sociedade adaptada aos novos meios de trabalho
industrial criados pela ciência e uma nova teoria política da democracia, a qual essa
mesma ciência veio afinal tornar possível. Em nosso continente, de forma mais marcante,
contribuíram para essa reconstrução os pensadores William James, Ch. S. Peirce e John
Dewey.
A designação mais corrente dessa filosofia como "pragmatismo" e a identificação
de pragmatismo com a frase saber é o que é útil concorreram para incompreensões,
deformações e críticas as mais lamentáveis. John Dewey, a quem coube a formulação
mais demorada e mais completa dêsse método de filosofia (mais do que sistema
filosófico), muito se esforçou para afastar as confusões e desinteligências, e a sua
contribuição foi decerto das maiores, se não a maior, na empresa de integrar os estudos
filosóficos de nossa época no campo dos estudos de natureza científica, isto é, fundados
na observação e na experiência, na hipótese, na verificação e na revisão constante de suas
conclusões.
Coube a Dewey a formulação do método, o método de "inteligência", como
prefere ele chamá-lo, para caracterizar a sua revisão do conceito de razão e experiência.
Mas o que será a filosofia do nosso tempo ainda irá depender do trabalho de inúmeras
pessoas que, devotando-se à filosofia, realizem, nessa esfera, o que os cientistas
realizaram e vêm realizando no campo da ciência.
A generalização do novo método do conhecimento humano ao campo da política,
da moral e da organização social, em geral, será a grande tarefa das próximas décadas.
John Dewey marcou os rumos e balizou as linhas para essa marcha da inteligência
experimental por esses novos campos, marcha que nos há de dar uma nova ordem, mais
humana do que tudo que até hoje tenhamos conhecido.

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Nenhum grande filósofo moderno foi mais explícito do que Dewey na necessidade
dessa transformação educacional imposta pela filosofia fundada na nova ciência do
mundo físico e nova ciência do humano e do social.
Chegou ele a formular toda uma filosofia da educação, destinada a conciliar os
velhos dualismos e a dirigir o processo educativo com espírito de continuidade, num
permanente movimento de revisão e reconstrução, em busca da unidade básica da
personalidade em desenvolvimento.
Dewey, cujo centenário de nascimento se celebra neste ano de 1959, continua a
ser um simples precursor, não se revelando sua influência no sistema educacional dos
Estados Unidos, onde nasceu e viveu, nem muito menos em outros países, senão em
aspectos superficiais e secundários.
Não há maior erro do que supô-lo seguido e, ainda menos, dominante no sistema
escolar norte-americano. Sem dúvida, foi profundíssima a influência da vida americana,
do caráter prático de sua civilização, sobre o pensamento de John Dewey. Este
pensamento, porém, na sua mais fecunda parte original, no seu esforço de conciliação das
contradições e conflitos da vida moderna, ainda não logrou implantar-se e está mesmo
ameaçado de se ver ali e na parte que lhe é oposta do mundo, submergido por um refluxo
das velhas doutrinas dualistas, de origem platônica, hoje em franca popularidade no Leste
e no Oeste.
Antes que a influência de Dewey se possa estabelecer com qualquer extensão e
profundidade, ter-se-á de resolver o problema que se poderia considerar o do materialismo
ou naturalismo cultural, isto é, se a conduta humana será suscetível de estudo científico.
Para Dewey, isto será essencial, a fim de se restabelecer a eficácia da formação moral
pela escola.
De certo modo, Dewey, neste ponto, volta a uma concepção que não se distancia
da de Platão, não no aspecto dualista de sua doutrina, mas no aspecto em que une o
conhecimento e a virtude.
O comportamento moral para Dewey é aquele que leva o indivíduo a crescer, e
crescer é realizar-se mais amplamente em suas potencialidades. E como tais
potencialidades somente se desenvolvem em sociedade, o indivíduo cresce tanto mais
quanto todos os membros da sociedade crescerem, não podendo o seu comportamento
prejudicar o dos demais porque com isto o seu crescimento se prejudica.

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Com este critério naturalístico de moral, abre-se a possibilidade de seu estudo
científico, e com ele o da generalização de processos de conduzir a educação de forma
objetiva ou científica.
Discordam os filósofos ingleses atuais dessa possibilidade, reabrindo a velha
questão e, de certo modo, insinuando o dualismo kantiano de razão pura e razão prática.
Mas a correção se fará se prevalecer o conceito integrado do social, como a mais
ampla categoria do real, em que o indivíduo encontra as suas formas de desenvolvimento.
Por isto mesmo, mais do que o exame de aspectos mais recentes dos desdobramentos
filosóficos e de suas repercussões inevitáveis sobre a educação, cabe analisar mais
demoradamente o fenômeno da democracia como forma do social, o qual recomeçou a
medrar, depois das ruínas das civilizações antigas, com a filosofia cristã-medieval, vindo
afinal, na época moderna, a implantar-se definitivamente e impor a mais ampla
reconstrução educacional.
Já afirmamos que os filósofos cristãos, com a identificação do corpo e da alma em
uma só unidade e a teoria da virtude como resultado da luta voluntária do homem contra
a carne e pelo espírito, haviam criado a possibilidade da democracia, dando a cada homem
o valor da medida em que lograsse triunfar moralmente.
O cristianismo constituiu-se, assim, uma teoria potencialmente democrática. Em
sua pureza doutrinária, permitiria a democracia. O exemplo das ordens religiosas é bem
eloquente.
Na realidade, entretanto, não produziu a democracia e se ajustou a condições
sociais as mais contraditórias, até que o renascimento e a reforma protestante vieram,
aparentemente, renovar as esperanças de se estabelecer a democracia.
Com os fatos novos do "livre-exame" religioso e a revolução científica baconiana,
a democracia, efetivamente, se faria possível, de um lado, pela revolução industrial, que
Bacon profetizara e que de fato veio a confirmar-se, e, de outro, pela liberdade religiosa.
As forças da tradição foram, porém, mais fortes, reduzindo-se a liberdade religiosa
a controvérsias baseadas nas velhas formas de argumentação da Idade Média, exatamente
do tipo da atividade intelectual que Bacon condenava, e a experimentação científica
conservando-se extremamente reduzida e limitada, aproveitados os seus resultados pelos
que estavam em condições econômicas de explorá-los em seu proveito.
Embora estivesse superada a teoria do conhecimento que justificaria a
preeminência do conhecimento de natureza puramente intelectual ou literária, o fato de
não ser a cultura européia nativa mas, na sua parte mais significativa, herdada das

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civilizações antigas, concorria para que a educação, sob o pretexto de humanismo, se
fizesse sobretudo por meio das letras gregas e latinas, incluindo-se entre elas, quando
muito, a matemática e a filosofia natural. Será impossível exagerar o vigor da resistência
das tradições escolásticas da Idade Média no sistema escolar da época moderna e mesmo
contemporânea, sobretudo no ensino secundário e superior.
A cultura chamada "acadêmica", isto é, de letras, domina ainda na segunda metade
do século XIX as universidades inglesas, e somente na Alemanha e na França já tem então
certa, mas pequena, influência o ensino de ciências e da tecnologia científica.
À maneira de Platão, pululam os dualismos, sendo um dos mais influentes o do
espírito e matéria, considerada a ciência como estudo da matéria, e continuando a mente
como algo de puramente subjetivo, confiado o seu estudo às especulações filosóficas.
Até o século XIX, com efeito, a ciência não vai além do mecânico, e a própria
biologia está ainda a aguardar Darwin para revolucioná-la com a Origem das Espécies.
A despeito, pois, do novo método do conhecimento científico e a despeito da
riqueza crescente produzida pela revolução industrial, acelerada pela revolução científica
a partir dos fins do século XVIII, continua a dominar a civilização chamada moderna uma
filosofia de tipo platônico, cujo dualismo fundamental se vê multiplicado nos dualismos
de atividade e conhecimento, atividade e mente, autoridade e liberdade, corpo e espírito,
cultura e eficiência, disciplina e interesse, fazer e saber, subjetivo e objetivo, físico e
psíquico, prática e teoria, homem e natureza, intelectual e prático, etc. - que continuam a
impedir a constituição da sociedade democrática, definida como sociedade em que haja o
máximo de participação dos indivíduos entre si e entre os diferentes grupos sociais em
que se subdivide a sociedade complexa, diversificada e múltipla em que se vem
transformando a associação humana.
Não cabe nos limites deste artigo estendermo-nos sobre as deformações geradas
por todos aqueles dualismos, pela natureza puramente mecânica do progresso material e
pelo grau em que se viu frustrado o individualismo, mais econômico do que humano, dos
séculos dezoito e dezenove.
De qualquer modo, porém, todo o grande problema contemporâneo continua a ser
o da organização da sociedade democrática, com uma filosofia adequada, em face dos
novos conhecimentos científicos, das novas teorias do conhecimento, da natureza, do
homem e da própria sociedade democrática.
Essa filosofia, que irá determinar a educação adequada à nova sociedade
democrática em processo de formação, já se acha esboçada na grande obra de John

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Dewey, que a traçou tendo em vista, mais especialmente, a sociedade americana, a qual,
por um conjunto de circunstâncias, constitui a sociedade que, historicamente, mais se viu
sob a influência direta do espírito oriundo dos movimentos pré-democráticos dos séculos
XVI e XVIII e mais liberta das influências do feudalismo e da Idade Média.
Como as filosofias, em suas formulações teóricas, ocorrem sempre a posteriori,
mais como explicações ou justificações das culturas existentes, ou predicações para sua
reforma, revisão e reconstrução, não se consegue a sua implantação senão depois de
longos esforços e lutas.
A educação institucionalizada em escolas resiste, de todos os modos, à ação das
novas ideias e novas teorias, e só lentamente se irá transformando, até chegar a constituir
verdadeira aplicação da nova filosofia democrática da sociedade moderna.
No Brasil, onde se desenvolve, em novas condições, a mesma civilização
ocidental que estivemos analisando, a educação, de modo geral, reflete os modelos de que
se originou, só recentemente apresentando os primeiros sinais de desenvolvimento
autônomo.
Em linhas gerais, a filosofia de educação dominante é a mesma que nos veio da
Europa e que ali começa agora a modificar-se sob a impacto das novas condições
científicas e sociais e das formulações mais recentes da filosofia geral contemporânea.
Também aqui, à medida que nos fizermos autenticamente nacionais e tomarmos
plena consciência de nossa experiência, iremos elaborando a mentalidade brasileira e com
ela a nossa filosofia e a nossa educação.

REFERÊNCIAS

TEIXEIRA, Anísio. Filosofia e educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.


Rio de Janeiro, v.32, n.75, jul./set. 1959. p.14-27.

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