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1.

John Rawls e a Teoria da Justiça

Antes de entrar na Teoria da Justiça de Rawls, convém esclarecer a noção de


contrato social. Este, em filosofia política, é a teoria segundo a qual a autoridade
política deriva de uma convenção (acordo) inicial pela qual os homens renunciam à
totalidade ou a uma parte dos seus direitos naturais em troca de uma segurança e de
uma liberdade garantida pela lei. Isto é, trata-se de uma teoria do direito político, que
coloca o problema, não na origem da sociedade – de um «estado de natureza»1 a um
«estado de sociedade» mas sim na sua legitimidade; ou seja, o que faz com que, para
além de todo o constrangimento físico, nos sintamos, em consciência, obrigados a
obedecer à lei?

A originalidade da obra de Rawls começa por fazer o «estado de natureza» seja


substituído por uma posição original, isto é, o estado de direito, em vez de preceder
de um «estado de natureza» - longínquo e habitado por bons e maus selvagens, é
precedido por essa posição original contemporânea.

Quer dizer, para Rawls não lhe interessará, como acontecera com os seus
predecessores contratualistas (Rousseau, Hobbes, Locke, entre outros) adeptos de
uma base contratual na origem do Estado, o que se terá passado (ou o que se poderia
ter passado) em momentos pré-históricos, imediatamente anteriores à entrada do ser
humano em «estado de sociedade».

A sua Teoria da Justiça não se baseia, como as outras contratualistas, numa


abordagem do passado, mas sim numa abordagem do presente. Assim, Rawls começa
por supor que alguns indivíduos nossos contemporâneos, devidamente mandatados
para o efeito, se reúnem a fim de elaborar uma Constituição mais justa – ou seja,
norteada pela ideia de criar as condições necessárias e suficientes para criar um país
socialmente justo.

Para tal, a teoria de Rawls dá por assentes uma série de pressupostos, uma vez
que ele não parte da origem do mundo, da vida e do Homem – como os primeiros

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O estado sem Estado: situação dos seres humanos antes da instauração de um poder comum, de
regras comuns, ou mesmo da vida em sociedade

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contratualistas. Ele dá por adquiridos certos valores civilizacionais que não discute
nem fundamenta, porque os pressupõe aceites pela maioria esmagadora dos seus
leitores.

Deste modo, a principal pergunta da Teoria da Justiça de Rawls seria: se


porventura não soubéssemos que posição ocuparíamos, que sociedade escolheríamos
para viver?

John Rawls, tendo esta pergunta presente, procurará facultar os princípios para
se construir uma sociedade justa e equitativa.

Segundo o autor, se tivéssemos que escolher os princípios que deveriam


governar a melhor sociedade possível, poderíamos ser influenciados pela nossa classe
social, profissão, orientação sexual, entre outros. Assim, de modo a evitar qualquer
preconceito, Rawls propõe uma espécie de exercício mental, isto é, uma situação
hipotética em que todos os factos sobre o nosso eu – e os seus desejos particulares –
se encontrariam ocultos por um véu de ignorância.

O exercício mental proposto por este filósofo é de o imaginarmos desconhecer


se temos ou não emprego, de que sexo somos, se temos família, onde vivemos, se
somos pessimistas ou optimistas, etc. Porém, embora desconheçamos tudo isto,
temos, simultaneamente, boas noções de política, economia, dos fundamentos da
organização social e das leis da psicologia humana. Sabemos, igualmente, de que há
bens essenciais indispensáveis a qualquer estilo de vida, que incluem certas liberdades,
oportunidades, rendimento e dignidade.

Rawls designará a esta situação de ignorância quanto ao nosso lugar em


sociedade a posição original.

Nesta situação inicial, portanto, não há homens primitivos a trocar a sua vida
paradisíaca de plena liberdade natural por uma vida, mais responsável e trabalhadora,
em comunidade com os outros (referência aos contratualistas), sob a égide do Direito
e do Estado. Neste cenário imaginado por Rawls, já que todos os constituintes vivem
numa sociedade ordenada e mais ou menos civilizada, o povo soberano acha-a
imperfeita e/ou injusta e confere-lhes a missão de definirem regras de uma sociedade

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mais justa, sem voltar atrás e tendo em conta, por conseguinte, a existência do Estado,
do Direito e de uma sã convivência entre todos os cidadãos.

Tendo aceitado esta situação hipotética, a seguir Rawls averiguará quais seriam
os princípios racionais que se deveriam adoptar para organizar uma sociedade. Ou
seja, ao ter isto em conta, o filósofo vai pretender eliminar todas aquelas
características que considera irrelevantes das nossas vidas que, de outra forma,
tendem a interferir na nossa avaliação do tipo de sociedade que deveria existir.

Basicamente com isto, o que Rawls pretende é que os princípios, racionalmente


escolhidos em condições de posição original, sejam justos, e que todos nós os
quiséssemos adoptar.

Desta forma, os princípios que emergem deste processo não devem ser
controversos, uma vez que se realizássemos efetivamente a experiência mental não
deveria haver diferença entre quaisquer indivíduos nela envolvida. Isto porque na
posição original, todos aqueles elementos que nos distinguem, teriam sido eliminados,
e, por isso, seriam completamente desconhecidos para nós. Os princípios deveriam
ser, então, aqueles que os participantes racionais concordariam.

Por outras palavras, para garantir o princípio moral de imparcialidade, as


pessoas encontrar-se-iam numa posição inicial, detrás de um véu de ignorância, isto é,
desconheceriam, por completo, as suas próprias capacidades, posição social, entre
outros. Por este motivo, decidiriam a favor de uma estrutura social que tenha em
conta os possíveis interesses de todos eles.

Assim, Rawls, ao executar a sua experiência mental, apresenta dois princípios


essenciais: primeiro, o princípio da liberdade, que como o nome indica, está
relacionado com a liberdade; e, segundo – que se desdobra em dois -, o princípio da
igualdade de oportunidade e o princípio da diferença, que está relacionado com a
distribuição equitativa dos bens.

Estes princípios, para Rawls, unificam as suas conclusões políticas básicas, que
são liberais e igualitárias.

Contrariamente a alguns teóricos do contrato social, Rawls não afirma que


todos acordaram quanto a estes princípios; senão que, serve-se justamente da sua

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experiência mental de posição original como forma de criar princípios básicos para a
ordenação de uma sociedade justa, comparando-a depois com as instituições pré-
existentes para fazer ajustes mais detalhados. Quer dizer, Rawls acredita que os
princípios para a ordenação da sociedade que emergem juntos merecem o nome
«justiça como equidade», já que se chega a eles por meio de um processo racional e
imparcial.

O princípio da liberdade, como fora anteriormente destacado, afirma que


«todos devem ter iguais direitos ao mais extenso sistema total de liberdades essenciais
iguais compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos». Isto é, ao
escolhermos, envoltos nesse véu de ignorância, racionalmente iremos querer que
todos os membros da sociedade tivessem o mesmo direito às liberdades essenciais,
uma vez que assim garantiríamos, ao mesmo tempo, esse nosso direito. Por exemplo,
a liberdade de consciência, a liberdade de crença secular ou religiosa, seja ela qual for,
é uma liberdade essencial cuja restrição por parte do Estado não há justificação. Só se
as nossas ações ameaçassem a liberdade de outrem é que a intervenção estatal se
justificaria, dado que a nossa liberdade neste aspecto é incompatível com a liberdade
idêntica para os outros.

Deste modo, até os intolerantes teriam direito à liberdade até ao ponto de


fazer perigar a liberdade dos outros. A lei é necessária para garantir as várias
liberdades a que cada membro da sociedade tem direito.

Rawls estipula que os princípios que apresenta como escolhas racionais de


qualquer um em posição original são ordenados lexicalmente. O que isto quer dizer é
que estão hierarquizados de tal forma que o primeiro princípio tem que ser satisfeito
antes de se considerar o segundo, e este antes do terceiro, e assim sucessivamente.
Isto basicamente significa que o direito à liberdade «igual» é o princípio essencial na
sua teoria, tendo sempre prioridade. Portanto, as exigências deste princípio têm que
ser satisfeitas em primeiro lugar e são mais importantes do que as do segundo
princípio. A finalidade de Rawls de uma sociedade justa é aquela em que a lei mantém
e faz cumprir o direito à liberdade igual.

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O segundo princípio de Rawls, relacionado com a justa distribuição dos bens
essenciais, subdivide-se em dois princípios: o princípio da justa igualdade de
oportunidade e o princípio de diferença.

No seu todo, este segundo princípio tem prioridade lexical sobre quaisquer
princípios de eficiência, o que significa que a justiça é mais importante do que a
utilidade.

O princípio de igualdade de oportunidade afirma que quaisquer desigualdades


sociais ou económicas associadas a cargos ou trabalhos específicos podem apenas
existir se esses cargos ou trabalhos estiverem abertos a todos em condições de
igualdade de oportunidades. Por exemplo, tendo em conta isto, ninguém pode ser
excluído dos trabalhos mais bem remunerados por motivos infundados, tais como a
raça ou a orientação sexual. Para Rawls, a igualdade de oportunidade é mais do que
antidiscriminação, uma vez que inclui, por exemplo, o facultar educação para todos, de
modo a desenvolverem os seus talentos.

Assim, este princípio de igualdade de oportunidade tem prioridade lexical sobre


a outra parte deste segundo princípio: o da diferença.

O princípio da diferença insiste que quaisquer desigualdades económicas ou


sociais devem somente ser toleradas na condição de trazerem maiores benefícios aos
mais desfavorecidos da sociedade. Isto é a implementação da estratégia conhecida
como «maximim». Esta é a abreviatura de «maximizar o mínimo», que significa
escolher a opção que possibilite a melhor solução no pior dos casos. Por exemplo, se
tomarmos em conta o exemplo dos salários justos numa sociedade justa, poderíamos
verificar dois casos: primeiro, uma situação em que a maioria das pessoas aufere altos
salários; porém, apenas dez por cento da população mal ganha para viver. No segundo
caso, observamos que, apesar do nível de vida ser, em média, mais baixo, os dez por
cento da população, em piores condições, têm um razoável nível de vida.

Para Rawls, quando alguém escolhe em posição original, a segunda das


situações é preferível, porque garante que todas as pessoas na sociedade atinjam um
razoável nível de vida: aqueles em piores condições não estão assim tão mal. Na
primeira situação, todavia, apesar de haver bastantes hipóteses de terem um

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excelente nível de vida, existe um risco significativo de auferirem um salário que mal
dê para viver.

Por conseguinte, ao adotar a estratégia maximin minimizamos os riscos mais


graves e optamos pelo segundo caso, uma vez que não vale a pena arriscar a viver na
vil pobreza, já que este princípio estabelece que as desigualdades sociais só são
legítimas quando atuam em benefício dos mais débeis (princípio maximin). Deste
modo, segundo Rawls deve existir nas partilhas desiguais um ponto de equilíbrio que
faça com que certas desigualdades sejam preferíveis a desigualdades maiores. A
equidade – tal como a justiça – é equilíbrio, conformidade e justa medida.

(igualdade) (equidade)

Quadro-síntese da Teoria da Justiça de Rawls

Princípio da (igual) liberdade Princípio das desigualdades toleráveis

Todos devem ter as mesmas Princípio de igualdade de Princípio da diferença: as


liberdades e direitos fundamentais. oportunidades: todos diferenças devem servir para
Este princípio prevalece sobre o devem estar em igual maior benefício dos menos
princípio das desigualdades toleráveis. condição de acesso às favorecidos.
várias funções ou posições
sociais.
Liberdades básicas: É tolerável que alguns É justificável a discriminação
 Liberdade política – direito de ocupem posições sociais positiva, dando aos menos
votar e ocupar um cargo público; superiores (com mais favorecidos oportunidades
 Liberdade de expressão e de benefícios e riquezas), que lhes permitam diminuir
reunião; desde que seja garantida as desvantagens sociais que
 Liberdade de consciência e de igualdade de dificultem a sua ascensão.
pensamento; oportunidades no acesso a É aceitável que a distribuição
 Liberdades da pessoa: direito à essas posições. de riqueza, das
integridade física e à não responsabilidades e da
opressão psicológica; autoridade não seja forma
 Direito à propriedade privada; igualitária, desde que essa
distribuição beneficie os mais
 Direito à defesa e protecção em
desfavorecidos.
relação à detenção e prisão
arbitrárias.

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2. Críticas a Rawls

2.1 A crítica de Nozick (uma objeção libertarista)

Nozick é defensor do libertarismo, que é uma corrente política que defende


que o Estado deve ter um papel muito limitado; isto é, o Estado deve servir,
essencialmente, para garantir a segurança das pessoas (através das forças policiais) e
para resolver conflitos (através dos tribunais). O Estado não deve, por exemplo,
providenciar educação ou cuidados de saúde aos cidadãos, uma vez que, de acordo
com os libertaristas, cobrar impostos para fornecer estes serviços é interferir,
indevidamente, na liberdade das pessoas.

Assim, o Princípio da Diferença entra em conflito com o libertarismo. Este


princípio, dir-nos-á Nozick, é um exemplo de uma conceção padronizada da justiça,
pois afirma que a riqueza deve estar distribuída de um certo modo, isto é, de acordo
com um determinado padrão: as desigualdades de riqueza só se justificam se
melhorarem a situação dos mais desfavorecidos. Uma sociedade será injusta, segundo
Rawls, se a distribuição da riqueza não obedecer a este padrão, que é o que
acontecerá se existirem desigualdades que não beneficiam os mais desfavorecidos – [a
procura da equidade].

Não obstante, como será possível realizar o padrão proposto? Para Nozick a
única forma para implementar o Princípio da Diferença será se o Estado redistribuir
constantemente a riqueza. Assim, este mesmo Estado terá que forçar algumas pessoas
a pagar impostos, retirando-lhes parte do que ganharam legitimamente, para que
outras pessoas sejam beneficiadas. Nozick, de modo geral, considera isto perverso e -
seguindo o pensamento kantiano-, eticamente inaceitável, dado que proceder desta
forma não é mais que tratar as pessoas como meios, violando os seus direitos de
propriedade. Isto é, basicamente, retira-se ao trabalhador bens obtidos legitimamente.

Esta redistribuição também viola o Princípio da liberdade, proposto por Rawls.


Ora, o dinheiro recolhido, através dos impostos, que segundo este último se destina à
redistribuição pelos mais desfavorecidos, não se afigura mais do que, segundo Nozick,
ao equivalente a trabalho forçado.

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Além do mais, o maior perigo que representa esta redistribuição da riqueza é
que exigirá uma contínua intervenção do Estado na vida dos indivíduos, sem garantir
que a redistribuição contribua efetivamente para as desigualdades existentes ao nível
das oportunidades. Pois, como nunca é possível prever a aplicação que cada indivíduo
dará ao benefício recebido do Estado, seria necessário, em simultâneo, uma
fiscalização permanente de modo a garantir os reajustamentos necessários a uma
redistribuição justa. Quer dizer, a partir do momento que o Estado intervém, não
consegue controlar o tipo de utilização que os cidadãos farão dos benefícios que
receberam.

2.2 A crítica de Michael Sandel (uma objeção comunitarista)

Segundo Sandel a proposta de Rawls é inusitado, porque, para ele, Rawls refere
como pessoas na posição original são seres humanos isolados, desprovidos de família,
comunidade, género, nacionalidade, cultura, valores, entre outros, o que não é mais
do que uma pura abstração, dado que os seres humanos são tudo menos isso. O
Homem é um ser social, cuja identidade individual é imperceptível sem eles elementos
previamente descritos.

E, mesmo considerando que, tanto a posição original como o véu de ignorância


são artifícios hipotéticos que servem como base para se pensar em que princípios de
justiça devem ser seguidos, segundo Sandel, Rawls com estas hipóteses perde
contacto com a realidade, dado que essas especulações e conclusões não são
aplicáveis numa realidade social e política.

Além do mais, sendo Sandel um comunitarista - enquanto Rawls é um defensor


da liberdade do ser humano, e por isso hierarquicamente o Princípio da Liberdade
encontra-se no topo -, rejeita a proposta de Rawls já que, segundo ele, ao considerar
essa justiça, tendo como primazia as liberdades individuais, contribuem para o
isolamento de cada indivíduo e para a desagregação da sociedade, já que não
promovem os laços comunitários essenciais que promovem a vida social.

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2.3 A regra maximin: o contratualismo e a rejeição do utilitarismo
Quando Rawls implementa a estratégia conhecida como «maximim», que significava
escolher a opção que possibilitasse a melhor solução no pior dos casos, opõe-se, em
certa medida, ao utilitarismo, já que este último se importa fundamentalmente com o
resultado global das nossas ações em termos de bem-estar ou prazer: «O maior bem
bem-estar para o maior número de pessoas». Quer dizer, o utilitarismo pode
perfeitamente legitimar situações em que haja enormes diferenças de riqueza, desde
que o cálculo geral de felicidade seja geral. Porém, embora a finalidade para um
utilitarista seja a felicidade e a equidade apenas um meio para alcançar o que é
intrínseco para esta teoria, para Rawls, o valor intrínseco da sua Teoria da Justiça não
será a felicidade, mas sim a equidade.

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