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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

II Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito

GT 6 - Justiça social e igualdade

Coordenação dos trabalhos: Prof. Dr. José Fernando Farias (PPGSD/UFF);


Carlos Roberto Rodrigues Batista, Humberto Ribeiro Junior, Márcio Henan
Hamel (PPGSD/UFF)

Justiça como equidade e subcidadania: entre Rawls e Souza

Leonardo Ostwald Vilardi

Niterói, 2012
2

Justiça como equidade e subcidadania: entre Rawls e Souza

Leonardo Ostwald Vilardi – PPGSD/UFF- Mestrando do PPGSD


leovilardi@hotmail.com

Resumo
O presente artigo busca através de duas teorias, Rawls (1971 e 2003) e Souza (2003), auxiliar na
compreensão da relação entre direito e sociedade na Brasil. Inicialmente será abordada a teoria de
justiça desenvolvida por Rawls (1971 e 2003). Após, abordarei como Souza (2003) desenvolve uma
interpretação da sociedade brasileira. Feito isto será formulada uma crítica da forma de estruturação
da sociedade brasileira no que pertine a distribuição de direitos e liberdades, apontado como a forma
de estruturação de nossa sociedade é impeditiva da consolidação de diversos direito consagrados na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Palavras-chaves: Justiça como equidade, subcidadania, desigualdade.

Introdução
No presente artigo pretendo trabalhar com duas teorias para auxiliar na compreensão
da relação entre direito e sociedade na Brasil.
Para desenvolver meu argumento, iniciarei minha exposição apresentado a teoria de
justiça desenvolvida por Rawls (1971 e 2003). Justifico a utilização deste autor por ser
considerado um dos expoentes mais relevantes na discussão que se desenvolveu sobre justiça
deontológica. Fleischacker (2006) afirma que “o que Rawls fez foi tornar novamente
respeitável a filosofia moral não-utilitarista.”(p. 161). Neste mesmo sentido Kymlicka (2006)
afirma que o debate recente sobre teoria política normativa começou com a publicação de
Uma Teoria da Justiça.
Feito isto, abordarei como Souza (2003) desenvolve a partir da obra de Bourdieu e
Taylor uma interpretação que considero consistente da sociedade brasileira. Apresentarei aqui
como ele desenvolve seu argumento e qual a sua proposta de interpretação da estruturação
social no Brasil.
Após a apresentação destas duas teorias formularei uma crítica da forma de
estruturação da sociedade brasileira no que pertine a distribuição de direitos e liberdades,
3

apontado como a forma de estruturação de nossa sociedade é impeditiva da consolidação de


diversos direito consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Justiça como equidade
Rawls (1971) ao elabora sua Teoria da Justiça generaliza e leva a um novo nível de
abstração o conceito tradicional de contrato social, o pacto social é substituído pela idéia de
uma situação inicial que incorpora alguns procedimentos no argumento dos princípios de
justiça obtidos no "acordo inicial".
O autor inicia a exposição de Teoria afirmando que “a justiça é a primeira virtude das
instituições sociais, como a verdade é dos sistemas de pensamento”1(tradução nossa).
Continua, com clara influência de Kant afirmando que cada pessoa possui uma inviolabilidade
fundada na justiça, que nem mesmo o bem-estar social pode mitigar.
Com estas afirmações iniciais pretende afastar a doutrina utilitária. Afirma que em
uma sociedade justa as liberdades dos cidadãos devem ser respeitadas. Neste viés, uma
injustiça só pode ser tolerada para que seja evitada uma injustiça ainda maior.
O autor defende que estas proposições iniciais parecem uma convicção intuitiva da
importância da justiça, demonstrando, assim, qual o papel da "intuição" na construção de sua
teoria. Ou seja, os princípios defendidos não são retirados de uma construção metafísica, mas
sim da observação de uma sociedade concreta (a sociedade americana) e das intuições que
advém da observação e vivência nesta mesma sociedade.
Rawls (1971) irá definir sociedade como “associação auto-suficiente de pessoas que
nas suas relações reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e agem de acordo
com essas regras”2(tradução nossa). Pensando que essas regras especificam um sistema de
cooperação, pode-se dizer que a sociedade é um empreendimento cooperativo para garantir
vantagens mútuas.
Apresenta-se, contudo, um conflito de interesse no que pertine a distribuição dos
benefícios produzidos por essa colaboração social. Faz-se, assim, necessário um conjunto de
princípios que dê conta dessa distribuição e estes são os princípios da justiça social -
determinam direitos e deveres em relação às instituições sociais básicas e definem a forma
apropriada de distribuição dos benefícios e fardos da cooperação social.

1
No original: “The justice is the first virtue of social institutions, as truth is of the systems of
thought"(RAWLS, 1971, p. 3).
2
No original: “a more or less self-sufficient association of persons who in their relations to one
another recognize certain rules of conduct as binding and who for the most part act in accordance with
them"(RAWLS, 1971, p. 4)
4

Rawls (1971) considera que uma sociedade é bem ordenada quando (1) todos aceitam
e sabem que todos os demais aceitam os mesmos princípios de justiça e (2) as instituições
sociais básicas geralmente satisfazem e geralmente são reconhecidas por satisfazerem estes
princípios.
Entre indivíduos com objetivos e propósitos diferentes uma concepção compartilhada
de justiça estabelece uma forma de convivência civilizada. Na prática as sociedades não
atingem ao que se chama de sociedade bem-ordenada, uma vez que o que é justo e injusto está
em constante disputa.
Realiza um recorte de sua análise afirmando ser essa ligada a justiça social. Afirma,
assim, que o “objetivo primário da justiça é a estrutura básica da sociedade”3(tradução nossa).
Ou definindo mais exatamente, a forma que as instituições sociais mais importantes
(constituição política e os arranjos econômicos e sociais) distribuem os direitos e deveres
fundamentais e determinam a divisão das vantagens sociais advindas da cooperação social. A
justiça como equidade não é uma teoria do contrato completa, ou seja, abarca somente as
questões relativas a justiça. (RAWLS, 1971)
O autor afirma que sua pesquisa está limitada em dois aspectos. Primeiro, por estar
preocupado com um caso específico do problema da justiça, uma vez que busca a formulação
de uma concepção razoável de justiça para a estrutura básica da sociedade. Já a segunda
limitação é que os princípios da justiça são analisados como sendo aplicados a uma sociedade
bem ordenada.
Rawls (1971) entende que o conceito de justiça pode ser entendido como um balanço
adequado entre diferentes visões de concepções de justiça, como alguns princípios
relacionados para identificar as relevantes considerações que determinam este balanço. Sua
teoria trata de certos princípios distributivos aplicados a estrutura básica da sociedade, sendo
que adota um conceito de justiça que dê conta do papel desses princípios em distribuir direitos
e deveres e definir a forma apropriada de divisão das vantagens sociais. Uma concepção de
justiça é uma interpretação desse papel.
A escolha dos princípios de justiça seria realizada em uma situação hipotética onde
homens reacionais com igual liberdade elegeriam esses princípios. Essa situação de igualdade,
ou melhor, a situação inicial justa é que simboliza o nome atribuído à teoria, qual seja, justiça
como equidade 4.

3
No original: “the primary subject of justice is the basic structure of society”(RAWLS, 1971,p. 7)
4
No original: “justice as fairness”
5

Os princípios seriam eleitos através de um véu de ignorância, para representar o as


restrições necessárias à posição original, imagina-se uma situação na qual todos os
participantes estão despidos de algumas informações, exclui-se o conhecimento das
contingências sociais que permitem que as pessoas sejam guiadas por seus preconceitos, ou
seja, os sujeitos participantes não tem acesso a informações de suas chances naturais nem das
circunstâncias contingências da vida social. Assim, essa situação inicial é justa entre
indivíduos como pessoas morais, como seres racionais com seus propósitos e capazes de certo
senso de justiça.
Nessas condições é razoável supor que as partes inseridas sejam iguais, ou seja, todas
têm os mesmos direitos no procedimento de escolha dos princípios e o proposito dessas
condições é representar igualdade entre seres humanos entendidos como pessoas morais,
como criaturas que detém uma concepção de bem e capazes de um senso de justiça.
Outra justificativa para a defesa da posição original é averiguar se os princípios que
seriam escolhidos são iguais aos defendidos por nós em nossas convicções de justiça ou
extensões dessas de maneira aceitável. Isso pode ser feito através de uma comparação entre a
aplicação dos princípios escolhidos e os julgamentos que fazemos de forma intuitiva sobre o
funcionamento da estrutura básica da sociedade.
Caso aja controvérsias significativas existem dois caminhos a serem seguidos: revisar
a situação inicial ou revisar os julgamentos comumente feitos. Indo entre um e outro caminho,
ou seja, realizando as duas operações pode-se alcançar o que o autor denomina de equilíbrio
reflexivo5.
Inicialmente, seriam eleitos os princípios correspondentes a uma concepção de justiça
que iriam regular as instituições. Após poder-se-ia supor que seriam escolhidas uma
constituição e uma legislatura para serem feitas as leis.
Dessa forma, sempre que as instituições sociais satisfaçam os princípios justiça as
pessoas submetidas às estas podem afirmar que estão cooperando em termos que elas
concordariam se fossem livres e iguais e que suas relações de respeito mútuo são justas
(RAWLS, 1971).
A justiça como equidade como outras teorias que utilizam o contrato social consiste
em duas partes: uma interpretação da situação inicial e do problema da escolha decorrente e
alguns princípios que seriam eleitos. Uma concepção de justiça apropriada decorrente do
contrato social leva a princípios contrários àqueles defendidos pelo utilitarismo.

5
No original: 'reflective equilibrium'
6

Na situação inicial seriam eleitos dois princípios: o primeiro requer igualdade na


aquisição de direitos e deveres básicos; já o segundo afirma que desigualdades econômicas e
sociais são justas somente se resultarem da compensação de benefícios para todos e
particularmente para os membros da sociedade que estejam em maior desvantagem.
Defende o autor que ao seguirmos o caminho de uma concepção de justiça que tenda a
acabar com as diferenças decorrentes de aptidões naturais e as contingências das
circunstâncias sociais, acabaremos por chegar aos dois princípios mencionados acima.
Rawls (1971) afirma que sua teoria serve como alternativa a teoria utilitarista,
amplamente difundida. Aponta como principal idéia do utilitarismo a seguinte: a sociedade
esta bem-ordenada e consequentemente é justa, quando as principais instituições estão
arranjadas de tal modo que é possível atingir a melhor relação entre as redes de satisfação que
emergem de todos os indivíduos pertencentes a esta sociedade.
O autor americano admite que exista uma determinada forma de pensar a sociedade
que leva a crer que a mais racional concepção de justiça é a utilitária - cada homem ao realizar
seus próprios interesses é livre para pesar suas perdas e seus ganhos. A sociedade nessa visão
deveria agir da mesma forma que o indivíduo, contudo a sociedade deve buscar o bem-estar
do grupo.
O primeiro contraste apontado por Rawls (1971) entre o utilitarismo e justiça como
equidade é que cada membro da sociedade tem uma inviolabilidade fundada na justiça ou
como alguns preferem chamar no direito natural. A justiça não aceita que a perda da liberdade
de alguns possa ser justificada por um bem maior dividido pelos demais. Em uma sociedade
justa as liberdades básicas são tomadas como verdadeiras e os direitos assegurados pela
justiça não estão sujeitos a barganhas política ou ao calculo do interesse social.
Um segundo contraste é que o utilitarismo estende par a sociedade o princípio da
escolha de um homem, enquanto a justiça como equidade, tendo como base as teorias
contratualistas, assume que o princípio da escolha social e o princípio da justiça são objetos
do acordo original.
O último contraste é que o utilitarismo é uma doutrina teleológica ao passo que a
justiça como é por definição deontológica. Assim a questão de atender a melhor forma da rede
balanceada de satisfações nunca chega a emergir na justiça como equidade, esse princípio da
maximização não é utilizado.
No utilitarismo a satisfação de qualquer desejo tem um valor em si mesmo que deve
ser levado em conta no momento da decisão do que é certo. Assim não se analisa para que o
desejo esteja direcionado, qual a justificativa, se alguém sente prazer em descriminar outro ser
7

humano esse prazer deve ser levado em conta. Na justiça como equidade, por outro lado, as
pessoas aceitam o principio da igual liberdade e faze isso sem saber das contingencias sociais
que estão impostas. Aceitam, assim, em conformar sua concepção de bem aos princípios da
justiça como equidade. Neste sentido, o prazer em descriminar é tomado como errado por em
si, por ser um prazer que requer a violação de um princípio. Os princípios da justiça
delimitam em quais satisfações pode ser consideradas valorosas. Isto pode ser resumido
afirmando que a justiça tem prevalência sobre o bem, na justiça como equidade essa
prevalência da justiça é um ponto crucial da teoria.
Os intuicionistas levantaram a questão se é possível dar abordagem sistemática aos
nossos julgamentos do que é justo e injusto. E defenderam que nenhuma resposta construtiva
pode ser dada, devemos assim nos apegar as nossas capacidades intuitivas.
O utilitarismo clássico se afasta dessa abordagem, uma vez que elege um princípio
como supremo, devendo assim o problema do conflito entre princípios ser resolvidos com
base no princípio da utilidade.
Rawls (1971) afirma que não há nada de irracional em apelar para a intuição no
momento de resolver o problema da prioridade ou de qual princípio deva preponderar. Sem
nenhuma dúvida uma teoria ou concepção de justiça deve em algum momento apelar para a
intuição de qualquer forma devemos diminuir o apelo aos nossos julgamentos.
Na justiça como equidade o papel da intuição é limitado de várias formas. Primeiro, os
princípios de justiça seriam aqueles eleitos na posição original, através de uma escolha
racional as pessoas reconheceriam a prioridade desses princípios. Como na justiça como
equidade os princípios são escolhidos pode-se falar em critérios para algum tipo de guia ou
limitação na forma de balanço entre esses princípios.
Segundo, os princípios podem ser colocados em ordem serial ou léxica, ou seja, uma
ordem que requer a satisfação do primeiro princípio antes que possamos analisar o segundo, a
satisfação do segundo para analisarmos o terceiro e assim em diante. De fato o autor propõe
uma ordem desse tipo para afirmar que o princípio da igual liberdade é prioritário aos
princípios que regulam a economia e as desigualdades sociais. Isso significa que a estrutura
básica da sociedade deve ordenar as desigualdades sociais e de autoridade de uma forma
consistente com o princípio da igual liberdade.
A formulação de uma teoria moral tem como preocupação a formulação de um
conjunto de princípios que quando conjugados com nossas crenças e conhecimentos das
circunstâncias, nos leve a realizar determinado tipo de julgamento de forma consciente e
inteligível através da aplicação de seus princípios.
8

A justiça como equidade é pensada para uma sociedade democrática. Dessa forma, os
dois princípios de justiça procuram responder a seguinte pergunta: "considerando uma
sociedade democrática como um sistema equitativo de cooperação social entre cidadãos livres
e iguais, quais princípios são mais apropriados para ela?" (RAWLS, 2003, p. 55)
Além disso, a justiça como equidade tem como objeto primário da justiça política a
estrutura básica da sociedade, sendo uma forma de liberalismo político - tenta articular uma
família de valores morais às instituições políticas e sociais da estrutura básica.
Para entendermos a noção de pluralismo político temos que levar em conta dois fatos:
o pluralismo razoável - diversidade de doutrinas abrangentes e razoáveis - e o poder político
como poder de cidadãos livres e iguais constituídos em um corpo coletivo. Para o liberalismo
político a concepção de justiça deve ser uma concepção política. Tal concepção entende que:
o poder político só é legítimo quando é exercido de acordo com uma constituição
(escrita ou não), cujos elementos essenciais todos os cidadãos, considerados como
razoáveis e racionais, podem endossar à luz de sua razão humana comum.(RAWLS,
2003, p. 57).
Disso decorre que o fornecimento de uma base pública de justificação por uma
concepção política de justiça fornece as condições teóricas da legitimidade política. Frise-se
que no tocante aos elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básicas é que se
busca uma base consensual que permite mantermos a cooperação social equitativa entre
cidadãos.
A intenção aqui é utilizar nossas mais firmes convicções refletidas sobre a natureza
de uma sociedade democrática como um sistema equitativo de cooperação entre
cidadãos livres e iguais - conforme formalizada na posição original - para verificar
se a asserção combinada dessas convicções assim expressas nos ajudam a identificar
um princípio distributivo apropriado para a estrutura básica com suas desigualdades
econômicas e sociais nas perspectivas de vida dos cidadãos. (RAWLS, 2003, p.
59)
Rawls irá revisar os dois princípios de justiça apresentados em Teoria e passar a
enuncia-los da seguinte forma:
 Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente
adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema
de liberdades para todos; e
 As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições:
primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em
condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, tem de
beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (princípio da
diferença). (RAWLS, 2003, p. 60)
O primeiro princípio tem precedência sobre o segundo e dentro do segundo princípio,
a igualdade equitativa tem precedência sobre o princípio da diferença. Ou seja, a ordem
importa isto é o que Ralws (1971) denomina em Teoria de ordem lexical. Assim, para aplicar
um princípio os princípios anteriores já devem estar plenamente satisfeitos.
9

Ao abordar as revisões no segundo princípio afirma que estas são só de estilo, mas
antes de comentar o primeiro princípio faz algumas considerações sobre igualdade equitativa
de oportunidades. Esta igualdade exige que cargos públicos e posições sociais estejam abertos
no sentido formal e que todos tenham uma chance equitativa de ter acesso a eles.
Exemplificando afirma que as pessoas que detém o mesmo nível de talento e
habilidade e a mesma disposição para usar esses dons deveriam ter as mesmas perspectivas de
sucesso, independente de sua classe social de origem. Isto significa o que Rawls (2003)
denomina de igualdade liberal.
Para que isso seja possível é preciso estabelecer um sistema de mercado livre no
contexto das instituições políticas e legais de forma a ajustar as tendências de longo prazo das
forças econômicas, para que dessa forma se impeça a concentração excessiva da propriedade
e da riqueza, sobretudo aquela que leva a dominação política.
Os direitos e liberdades básicos protegem e garantem o campo de ação para o
exercício das duas faculdades morais. As liberdades políticas iguais e a liberdade de
pensamento permitem que os cidadãos desenvolvam e exerçam as duas faculdades morais
para julgar a justiça da estrutura básica da sociedade e suas políticas sociais; e a liberdade de
consciência e a liberdade de associação permitem que os cidadãos desenvolvam e exerçam
suas faculdades morais, rever e racionalmente procurar realizar suas concepções do bem.
O primeiro princípio de justiças aplica-se não só a estrutura básica, mas mais
especificamente ao que consideramos ser a constituição, escrita ou não. Algumas das
liberdades básicas, principalmente as liberdades políticas iguais e a liberdade de pensamento e
associação, devem estrar garantidas na constituição, ou seja, "questões fundamentais em torno
dais quais, dado o fato do pluralismo, é mais urgente conseguir um acordo político"(RAWLS,
2003, p. 65)
A prioridade do primeiro princípio é justificada através da natureza fundamental dos
direitos e liberdades básicos, explicada em parte pelos interesses fundamentais que eles
protegem, e considerando-se que o poder para constituir a forma de governo é um poder
superior. As liberdades básicas iguais são: liberdade de pensamento e de consciência,
liberdades políticas e liberdades de associação, os direitos e liberdades especificados pela
liberdade e integridade da pessoa, e os direitos e liberdades abarcados pelo estado de direito.
Assim, essa prioridade significa que o segundo princípio deve ser sempre aplicado no
contexto de instituições de fundo que satisfaçam as exigências do primeiro princípio, o que no
pensamento de Rawls (2003) acontece em uma sociedade bem ordenada.
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A distinção entre o primeiro e o segundo princípio pode ser colocada nos seguintes
termos. O primeiro abarca os elementos constitucionais essenciais, já o segundo exige
igualdade equitativa de oportunidades e que as desigualdades sociais e econômicas sejam
governadas pelo princípio da diferença.
Ambos os princípios expressam valores políticos, e cada um se aplica a uma das
funções coordenadas da estrutura básica. Em uma das funções é garantida as liberdades
básicas iguais dos cidadãos e estabelecido um regime constitucional justo. Já na outra função
é provida as instituições de fundo da justiça social e econômica na forma mais apropriada a
cidadãos considerados livres e iguais.
Os dois princípios de justiça são adotados e aplicados em quatro estágios. No primeiro
as partes adotam os princípios de justiça por trás de um véu de ignorância, no segundo tem-se
o estágio da convenção constituinte, no terceiro o estágio legislativo e finalmente o estágio em
que as normas são aplicadas por governantes e geralmente seguidas pelos cidadãos, e a
constituição e as leis são interprestadas pelo judiciário. O primeiro princípio aplica-se ao
estágio das convenções constituinte, já o segundo aplica-se ao estágio legislativo e está
relacionado com todo tipo de legislação social e econômica. (RAWLS, 2003)
Embora o princípio da diferença não faça parte dos elementos constitucionais
essenciais, ainda sim é importante tentar identificar a idéia de igualdade que é mais
apropriada para cidadãos vistos como livres e iguais e como membros normais e
plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida. A meu ver, essa idéia
implica a mais profunda reciprocidade e, portanto, a igualdade democrática
corretamente entendida exige algo como o princípio de diferença. (RAWLS, 2003,
p. 69/70)
O problema da justiça distributiva na justiça como equidade pode ser colocado como o
problema de ordenação das instituições da estrutura básica num esquema unificado de
instituições para que um sistema de cooperação social equitativo, eficiente e produtivo possa
se manter no transcurso do tempo de uma geração para outra.
Outro problema bastante diferente é o da justiça alocativa que se preocupa em como
distribuir um determinado conjunto de produtos entre diferentes indivíduos cujas
necessidades, desejos e preferências são conhecidos, e que não cooperam de forma alguma
para produzir esses produtos.
Enquanto concepção política de justiça pode-se entender o clássico princípio de
utilidade (descrito por Bentham e Sidgwick) como uma forma de adaptar a idéia de
justiça alocativa para constituir-se em um princípio único para a estrutura básica ao
longo do tempo. (RAWLS, 2003, p. 70)
Rawls (2003) rejeita a idéia de justiça alocativa por considerar que é incompatível com
a idéia de sociedade como sistema equitativo de cooperação social ao longo do tempo. Em
11

uma sociedade bem organizada a distribuição de renda e riqueza ilustra o que o autor chama
de justiça procedimental pura de fundo.
Assim, ao contrário do utilitarismo, a justiça alocativa aqui não tem aplicação, uma
vez que a distribuição justa só pode ocorrer dentro das instituições de fundo e das titularidades
que surgem do funcionamento efetivo do procedimento. Por "de fundo” no termo "justiça
procedimental" o autor pretende indicar que determinadas regras devem estar incluídas na
estrutura básica como sistema equitativo de cooperação social com o fim de que o sistema
permaneça equitativo ao longo do tempo. As normas de fundo são definidas pelo que é
necessário para satisfazer os dois princípios de justiça.
O princípio da diferença se aplica a instituições tidas como sistemas públicos de
normas, e essas instituições impõem interferências continuas ou regulares nos projetos e ações
dos indivíduos, como as formas correntes de tributação e os efeitos dessas normas devem ser
previstos sempre que os cidadãos elaboram seus planos.
As normas das instituições de fundo previstas pelos dois princípios de justiça têm
como finalidade alcançar as metas e aspirações da cooperação social equitativa ao longo do
tempo, sendo essências para manter em funcionamento a justiça de fundo, bem como para
garantir que as desigualdades econômicas e sociais beneficiem os membros menos
favorecidos da sociedade.
Tomando a idéia de linha da concepção histórica de Locke, contudo afirma que
mesmo que o estado inicial tenha sido justo, e as condições sociais subsequentes também
sejam justas, os efeitos acumulados de acordos separados e aparentemente equitativos
celebrados por indivíduos e associações tendem, no longo prazo, a minar as condições de
fundo necessárias para acordos livres e equitativos. Ou seja, o estado inicial justo não garante
que condições equitativas de fundo sejam mantidas com o passar do tempo.
Dessa forma, preservar essas condições é a função das normas de justiça
procedimental pura de fundo, e isto é possível através regulação ao longo do tempo da
estrutura básica.
É necessário regular, por leis que governem heranças e legados, como as pessoas
adquirem propriedades a fim de tornar sua distribuição mais equitativa, propiciar a
igualdade equitativa de oportunidades na educação e muitas outras coisas.(RAWLS,
2003, p. 75)
Então se deve distinguir, fazer um divisão de trabalho nas palavras de Rawls (2003),
entre dois tipos de princípios: primeiro aqueles que regulam a estrutura básica ao longo do
tempo e destinam-se a preservar a justiça de fundo; e segundo aqueles que se aplicam
diretamente às transações isoladas e livres entre indivíduos e associações. Estabelecida esta
12

divisão, indivíduos e associações ficam livres para promover seus objetivos no âmbito da
estrutura básica, cientes de que em todo o sistema social as regulamentações necessárias para
prover a justiça de fundo estão em vigor. Assim, os princípios de justiça especificam a forma
de justiça de fundo independentemente de condições históricas particulares.
Qualquer sociedade moderna mesmo uma bem ordenada tem de se apoiar em algumas
desigualdades para ser bem planejada e efetivamente ordenada, assim tem-se que se indagar
quais tipos de desigualdades poder-se-ia admitir em uma sociedade bem-ordenada.
A teoria da justiça como equidade trata das desigualdades de perspectiva de vida dos
cidadãos, considerando que essas perspectivas são afetadas por três tipos de contingência: sua
classe social de origem, seus talentos naturais e sua boa ou má sorte ao longo da vida.
Temos então que mesmo em uma sociedade bem ordenada as perspectivas de vida são
profundamente afetadas por contingências sociais, naturais e fortuitas. A estrutura básica
desempenha o papel de educar os cidadãos para uma concepção deles mesmos como livres e
iguais, estimulando atitudes de otimismo e confiança no futuro, deve também desenvolver o
senso de ser tratado equitativamente tendo-se em vista os princípios públicos, que são tidos
como regulando efetivamente as desigualdades econômicas e sociais.
Ao esclarecer quem seriam os menos favorecidos na justiça como equidade Rawls
(2003) introduz a idéias de bens primários. Segundo o autor estes bens, "consistem em
diferentes condições sociais e meios polivalentes geralmente necessários para que os cidadãos
possam desenvolver-se adequadamente e exercer plenamente suas duas faculdades morais,
além de procurar realizar suas concepções do bem" (RAWLS, 2003,p. 81). Ou ainda,
bens primários são as coisas necessárias e exigidas por pessoas vistas não apenas
como seres humanos, independentemente de qualquer concepção normativa, mas a
luz da concepção política que as define como cidadãos que são membros plenamente
cooperativos da sociedade. Esses bens são coisas de que os cidadãos precisam como
pessoas livres e iguais numa vida plena ... (RAWLS, 2003, p. 81)
Embora a lista de bens primários se apoie em parte nos fatos sociais e exigências
gerais da vida social, só o faz junto com uma concepção política da pessoa como livre e igual,
dotada de faculdades morais e capaz de ser um membro plenamente cooperativo da sociedade.
Rawls (2003) distingui cinco tipos de bens primários: direitos e liberdades básicos;
liberdades de movimento e livre escolha de ocupação sobe um fundo de oportunidades
diversificadas; poderes e prerrogativas de cargos e posições de autoridade e responsabilidade;
renda e riqueza; e as bases sociais do auto-respeito. Frise-se que o auto-respeito como bem
primário não é atitude para consigo mesmo, mas sim as bases sociais do auto-respeito.
Os dois princípios de justiça avaliam a estrutura básica em função de como ela regula
a repartição dos bens primários entre os cidadãos. As desigualdades a que se aplica o
13

princípio da diferença são diferenças nas expectativas de bens primários dos cidadãos ao
longo da vida toda.
Numa sociedade bem-ordenada os menos favorecidos são os que pertencem à classe
de renda com expectativas mais baixas. Deve-se comparar esquemas de cooperação e verificar
a situação dos menos favorecidos em cada esquema, e em seguida escolher o esquema no qual
os menos favorecidos estão em melhor situação do que em qualquer outro.
Bens primários são, portanto, aquilo de que as pessoas livres e iguais precisam como
cidadãos. Assim é que a interpretação dos bens-primários é parte integral da justiça como
equidade como concepção política de justiça e a razão para manter-se dentro da concepção
política é a manutenção da base pública de justificação apoiada por um consenso sobreposto.
A justiça como equidade elabora uma concepção política a partir da idéia fundamental
da sociedade como sistema equitativo de cooperação social e espera que essa concepção com
sua interpretação dos bens primários possa obter apoio de um consenso sobreposto.
Ao tratar do princípio da diferença Rawls (2003) esclarece que ele parte do
pressuposto de que a cooperação social é sempre produtiva e sem cooperação nada seria
produzido e, portanto nada seria distribuído.
O princípio da diferença não exige um crescimento econômico contínuo para
maximizar as expetativas dos menos favorecidos. "Não deveríamos excluir a idéia de Mill de
uma sociedade num estado estacionário justo em que cesse a acumulação de capital. Numa
sociedade bem-ordenada tal possibilidade é admissível"(RAWLS, 2003,p. 90)
As desigualdades existentes devem efetivamente beneficiar os menos favorecidos,
caso contrário às desigualdades não são permissíveis. Dessa forma, é exigido que seja qual for
o nível geral de riqueza as desigualdades existentes tem de satisfazer a condição de beneficiar
os outros tanto como nós mesmos.
Os dois princípios de justiça aplicam-se a cidadãos identificados por seus índices de
bens primários. Dessa forma questões de desigualdade de raça e gênero nãos estão sendo
consideradas. Rawls afirma que sua preocupação é com a teoria ideal, descrição de uma
sociedade bem-ordenada de justiça como equidade.
Embora haja certa tendência de os indivíduos mais prejudicialmente afetados pelas
três contingências se encontrarem entre os menos favorecidos, esse grupo não é
definido por referência a essa contingências, mas por um índice de bens primários.
(RAWLS, 2003, p. 92)
Quando características naturais fixas são usadas como motivo de atribuir direitos
básicos desiguais as desigualdades definiriam posições relevantes. Utilizadas de determinada
maneira, as distinções de gênero e raça dão lugar a outras posições relevantes às quais uma
14

forma especial de princípio de diferenças se aplica. "Esperamos que numa sociedade bem-
ordenada em condições favoráveis, com liberdades básicas iguais e igualdade equitativa de
oportunidades garantidas, gênero e raça não determinem pontos de vista relevantes”
(RAWLS, 2003, p. 93)
Expectativas legítimas e titularidades são sempre na justiça como equidade baseadas
nas regras públicas que especificam o esquema de cooperação. Dado o fato de que os dois
princípios de justiça são satisfeitos pela estrutura básica, e dado que todas as expectativas
legítimas e titularidades são honradas, a distribuição resultante é justa seja qual for.
Na justiça como equidade por ser uma concepção política de justiça uma concepção de
mérito moral, no sentido de valor moral do caráter e das ações, não pode ser incorporada
devido ao fato do pluralismo razoável. "Como possuem concepções conflitantes do bem, os
cidadãos não podem concordar com uma doutrina abrangente para definir uma idéia de mérito
moral com propósitos políticos"(RAWLS, 2003, p. 103)
Dessa forma a idéia de expectativa legítima é sugerida como substituta a de mérito
moral, uma vez que condiz com uma concepção política de justiça e sua forma se aplica a esse
domínio.
"Não merecemos (no sentido do mérito moral) nosso lugar na distribuição dos talentos
naturais" (RAWLS, 2003, p. 105). O princípio da diferença representa um acordo que
determina que a distribuição dos talentos naturais seja considerada um bem comum e que os
benefícios dessa distribuição sejam compartilhados. Ao concordar com o princípio as pessoas
concordam em considerar a distribuição de talentos naturais um bem comum. O que é
considerado como um bem comum é a distribuição dos talentos e não os talentos naturais per
se.
Os mais bem dotados devem ser estimulados a adquirir benefícios adicionais com a
condição de que treinem seus talentos naturais e os utilizem com o intuito de contribuir para o
bem dos menos bem dotados, incluindo-se uma noção de reciprocidade no princípio da
diferença.
O conceito de subcidadania
Na introdução de sua obra Jessé Souza (2003) delimita o objetivo da mesma,
familismo e patrimonialismo, de modo a fundamentar a ideia de uma sociedade pré-moderna.
A "cultura" neste caso é percebida como uma entidade homogênea, totalizante e auto-referida.
Seria por conta dessa soberania do passado sobre o presente que nos confrontamos
com solidariedades verticais baseadas no favor, subcidadania para a maior parte da
população e abismo material e valorativo entre as classes e as raças que compõem
nossa sociedade. (SOUZA, 2003, p. 13)
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Frisa, ainda, que estas interpretações reproduzem uma forma de subjetivismo


sociológico, as interações face a face e a intencionalidade do sujeito como referência última
da análise. Acabando por replicar na dimensão conceitual, os preconceitos, prenoções e
explicações ad hoc que os imperativos pragmáticos da vida cotidiana e do senso comum nos
impinge. Afirma que mesmo tentativas mais recentes denominadas como 'hibridismo' não
abandonariam o campo categorial criticado acima.
Para atingir o seu objetivo de apresentar um panorama teórico alternativo, Souza
(2003) utiliza as reflexões de Charles Taylor e Pierre Bourdieu para propor uma reformulação
do tema clássico marxista da 'ideologia espontânea do capitalismo' e defender que a
desigualdade dos países periféricos, bem como, sua naturalização na vida cotidiana, retira sua
eficácia da 'impessoalidade' típica dos valores e instituições modernas e não como
consequência de uma suposta herança pré-moderna e personalista.
Florestan (SOUZA, 2003) percebe nas dificuldades de adaptação a nova ordem
competitiva, a semente da marginalização continuada de negros e mulatos. Localizando essas
dificuldades nas condições psicossociais da personalidade, ou seja, na inadaptação do negro
para o trabalho livre e a incapacidade de agir segundo modelos de comportamento e
personalidade da sociedade competitiva.
A tese de Florestan (SOUZA, 2003) é que a família negra não chega a se constituir
como uma unidade capaz de exercer as suas virtualidades principais da modelação da
personalidade básica, marcando uma continuidade com a política escravocrata brasileira que
procurou impedir qualquer forma organizada familiar ou comunitária da parte dos escravos.
A família não só não era uma base segura, mas ainda se transformava na causa dos
mais variados obstáculos. A vida familiar desorganizada somada a pobreza era responsável
por um tipo de individuação ultra egoísta e predatória.
O que Florestan (SOUZA, 2003) está buscando é atribuir à constituição e reprodução
de um habitus específico no sentido de Bourdieu. Se considerar-se que é a reprodução de um
habitus que Souza (2003) denomina de precário a causa da inadaptação e marginalização, não
é a cor da pele, como tendencialmente se argumenta a causa da desigualdade. Contudo,
Florestan (2003) irá realizar uma certa confusão entre estes dois aspectos (habitus e cor da
pele) o que o leva a imprecisões e paradoxos.
Souza (2003) defende que não é o apego à hierarquia anterior que produz o racismo e
o transfere como resíduo à ordem social competitiva. A ordem competitiva, também, tem a
sua hierarquia, ainda que, implícita, opaca e intrasparente, e é com base nela que tanto negros
quanto brancos, sem qualificação adequada, são desclassificados e marginalizados.
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Com base na junção das teorias de Taylor e Bourdieu, Souza (2003) propõe uma
subdivisão interna à categoria de habitus, falando-se assim em uma pluralidade de habitus.
Para Souza (2003) Bourdieu tematiza adequadamente somente o que será chamado de
“habitus primário”, ou seja, esquemas avaliativos e disposições de comportamento
objetivamente internalizados e incorporados que permitem o compartilhamento de uma noção
de dignidade efetivamente compartilhada, no sentido de Taylor (SOUZA, 2003).
É essa dimensão de dignidade compartilhada que tem que estar disseminada de forma
efetiva em uma sociedade para que se possa afirmar que a dimensão jurídica da cidadania e da
igualdade está garantida pela lei.
Souza (2003) propõem então a diferenciação analítica de outras duas realidades, o
“habitus precário” e o “habitus secundário”.
O “habitus precário” seria o limite do “habitus primário” para baixo, seria o tipo de
personalidade e de disposições de comportamento que não atendem às demandas objetivas
para que um indivíduo possa gozar de reconhecimento social.
Já o “habitus secundário” é o limite do “habitus primário” para cima, ou seja, a fonte
de reconhecimento e respeito social que pressupõe a generalização do “habitus primário” para
amplas camadas da população de uma dada sociedade. Já se parte aqui da homogeneização
dos princípios operantes na determinação do “habitus primário”, instituindo critérios
classificatórios de distinção social a partir do que Bourdieu (SOUZA, 2003) denomina de
gosto.
Souza (2003) incorpora ao argumento da distinção do “habitus primário” o argumento
de Reinhard Kreckel da ideologia do desempenho. Kreckel (SOUZA, 2003) tenta elaborar um
princípio único, para além da mera propriedade econômica, a partir do qual se constitui a mais
importante forma de legitimação da desigualdade no mundo contemporâneo. Teria que haver
um pano de fundo consensual acerca do valor diferencial dos seres humanos de tal modo que
possa existir uma efetiva legitimação da desigualdade.
Assim, será o poder legitimador da ideologia do desempenho que irá determinar, aos
sujeitos e grupos excluídos, pela ausência dos pressupostos mínimos para uma competição
bem sucedida, seu não-reconhecimento social e sua ausência de autoestima.
No caso brasileiro o abismo entre “habitus primário” e precário se cria com a
reeuropeização do país e se intensifica a partir de 1930 com o processo de modernização.
Neste caso, a divisão passa a ser traçada entre os setores ‘europeizados’ e os setores ‘não
europeizados’ que tenderam por seu abandono. Como o princípio básico do consenso
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transclassista é o princípio do desempenho e da disciplina, a inadaptação e a marginalização


passam a ser vistas como um fracasso pessoal.
É que, na dimensão infra e ultrajurídica do respeito social objetivo compartilhado
socialmente, o valor do brasileiro pobre não-europeizado – ou seja, que não
compartilha da economia emocional do self pontual que é criação cultural
contingente da Europa e da América do norte – é comparável a que se confere a um
animal doméstico, o que caracteriza objetivamente o seu status sub-humano.
(SOUZA, 2003, p. 174)
No Brasil, dessa forma, tem-se toda uma classe de pessoas excluídas e
desclassificadas, dado que elas não participam do contexto valorativo de fundo.
Em sociedades periféricas como a brasileira, o ‘habitus precário’ que implica a
existência de redes invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos
sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos, e isso sob a forma de uma
evidência social insofismável, tanto para os privilegiados como para as próprias
vítimas da precariedade, é um fenômeno de massa e justifica minha tese de que o
que diferencia substancialmente esses dois tipos de sociedades é a produção social
de uma ‘ralé estrutural’ nas sociedades periféricas. (SOUZA, 2003, p. 177)
Souza (2003) explicita que o esforço da construção múltipla de habitus serve para
ultrapassar concepções subjetivas da realidade que reduzem as mesmas às interações face a
face, como a brasileira, como se o papel estruturante coubesse a princípios pré-modernos.
Gente e cidadão pleno vão ser apenas aqueles indivíduos e grupos que se identificam
com a concepção de ser humano contingente e determinado que habita a consciência
cotidiana, a hierarquia valorativa de instituições fundamentais como Estado e mercado e que
constitui o cerne da dominação simbólica subpolítica que perpassa todas as nossa ações e
comportamentos cotidianos.
Alguns aspectos da CF/88
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) em seus artigos 1º e 3º
preconiza:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
(...)
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento
nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (BRASIL, 1984)
Irá, dessa forma, garantir formalmente no âmbito do ordenamento brasileiro o pano de
fundo necessário para que se tenha uma sociedade justa, nos termos da justiça como equidade.
Dessa forma teríamos ao menos na constituição a garantia dos direitos e liberdades básicas
enunciados por Rawls (2003) como fundamentais para a construção de uma sociedade justa e
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igualitária. Isto fica, ainda mais claro ao analisarmos o extenso roll de garantias trazido pelo
art. 5 da CRFB.
As liberdades básicas iguais de acordo com Rawls (2003) são: liberdade de
pensamento e de consciência, liberdades políticas e liberdades de associação, os direitos e
liberdades especificados pela liberdade e integridade da pessoa, e os direitos e liberdades
abarcados pelo estado de direito. Todas estas estão formalmente garantidas como já enunciado
acima.
Contudo, não há como se colocar em prática tais princípios constitucionais em uma
sociedade que se desenha conforme o apresentado por Souza (2003), ou seja, em uma
sociedade na qual não se encontra disseminada para todos os seus membros os valores de
igualdade e liberdade. Essa naturalização da desigualdade conforme defendida por Souza
(2003) inviabilizaria, assim, que os dois princípios de justiça fossem satisfeitos pela estrutura
básica.
Há, dessa forma, o que Rawls denomina de definição de posições relevantes, ou seja,
atribuição de direitos básicos desiguais pautados em características naturais fixas. A única
ressalva a ser feita de acordo com Souza (2003) é que essas posições relevantes não adviriam
de características naturais fixas, mas sim de características construídas socialmente, ou em
seus próprios termos, abismo entre habitus primário e precário.
Pelo exposto, pode-se concluir que tomando a análise feita por Souza (2003) a
sociedade brasileira não compartilha das instituições de fundo e das titularidades que surgem
do funcionamento efetivo do procedimento. Uma vez que o reconhecimento de pessoas livres
e iguais abarca somente uma determinada parcela de sua população, mais especificamente, a
parcela dos cidadãos ficando excluídos os denominados subcidadãos.
Conclusões
Diante de todo o exposto, acredito que a teoria de Souza (2003) pode ser utilizada
como importante arcabouço para pensarmos criticamente a sociedade brasileira permitindo,
um outro olhar para formas institucionais excludentes já naturalizadas. E essas formas
inviabilizariam a concretização do primeiro princípio de justiça formulado por Rawls (2003) e
consequentemente, do segundo princípio.
O que se pretendeu desenvolver neste trabalho foi a tentativa de perceber como há na
sociedade brasileiras formas naturalizadas de propagação do tratamento de determinados
indivíduos como subcidadãos, ou, como não detentores de todos os direitos que são atribuídos
a própria construção de indivíduos na modernidade, tendo-se dessa forma uma sociedade que
não pode ser tratada como justa nos termos da justiça como equidade.
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VI – Bibliografia
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acessado em 20
de setembro de 2011.
FLEISCHACKER, S. Uma breve história da justiça distributiva. Trad. Álvaro de Vita. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
KYMLICKA, W. Filosofia Política Contemporânea: Uma Introdução. Trad. Luís Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
MOTA, F.R. Cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte? Demandas de direitos e
reconhecimento no Brasil e na França. 2009. 303 fls. Tese de Doutorado – Programa de Pós-
graduação em Antropologia. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
RAWLS, J. A Theory of Justice.Original edition reprinted Cambridge: Harvard University
Press, 1971.
RAWLS, J. Justiça como equidade: uma reformulação. Tradução Claudia Berliner. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da
modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.

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