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ANN BAKER
PROFESSORES DA UNIVERSIDADE DE WASHINGTON
FILOSOFIA
TEXTOS FUNDAMENTAIS COMENTADOS
2a EDIÇÃO
Versão impressa
desta obra: 2010
2010
582 Laurence BonJour & Ann Baker
periores aos dos demais que ele (ou seus serviços governamentais (como a polícia,
herdeiros) fiquem em condições de exer- o corpo de bombeiros, a manutenção de
cer uma influência muito maior do que estradas, etc.)?
a de qualquer outra pessoa sobre coisas 4. Por que deveria existir alguma limitação,
como o resultado de eleições políticas ? mesmo aquela proposta por Nozick, so-
3. Os impostos para redistribuição de renda bre a aquisição de itens não possuídos? Se
e riqueza equivalem ao trabalho forçado esses são genuinamente não possuídos,
em benefício dos que estão (alegada- por que alguém que os encontre não é
mente) intitulados aos resultados de tal livre para tomar posse deles? Nesse caso,
redistribuição, de acordo com alguma tente pensar em exemplos de coisas não
teoria da justiça com base em padrões? possuídas, talvez em um tempo anterior
Se não, por que não? Existe alguma di- (terras em locais não explorados, fontes
ferença entre o imposto com essa finali- de minerais não descobertos, peixes em
dade e o imposto para sustentar outros mar aberto, etc.).
John Rawls
John Rawls (1921-2002), uma das figuras mais conhecidas e influentes da filosofia
política e social recente, foi, professor em Harvard, tal como Nozick. Diferentemente de
Hobbes, Locke e Nozick, o seu interesse básico é menos com questões relativas a se e por
que algum tipo de poder governamental é legítimo, e mais com a questões relativas a
quais são os tipos de estruturas e instituições, governamentais e sociais, que satisfazem
as exigências da justiça. Em seu livro Uma teoria da justiça (1971), Rawls oferece uma
complicada e sutil abordagem da justiça, com foco no que ele chama de “a estrutura
básica da sociedade”, abordagem voltada especialmente para questões sobre como a
renda, a riqueza e outros resultados da cooperação social devem ser distribuídos entre
os membros de uma determinada sociedade.
Algumas vezes, Rawls descreve a sua visão da justiça como uma versão de uma teoria
do contrato. Contudo, para ele, a situação contratual é puramente hipotética (“a posição
original”), uma situação na qual os membros da sociedade não teriam conhecimento
de sua própria situação, a qual lhes permitiria influenciar os resultados a seu favor ao
buscarem um acordo sobre os princípios básicos de justiça movidos pela busca de seu
interesse próprio (tanto quanto fossem capazes de discerni-lo). Rawls alega que o traço
distintivo do que seria acordado nessa situação hipotética é o princípio (“o princípio da
diferença”) segundo o qual, embora os benefícios sociais não precisem ser distribuídos
igualmente, uma distribuição desigual somente pode ser justificada caso tal distribuição
coloque os membros menos favorecidos da sociedade em situação ainda melhor do que
eles estariam sob uma distribuição igualitária. (Porque a distribuição desigual resultaria
em um aumento da produção total).
Existem três aspectos da discussão de Rawls que precisam ser cuidadosamente distin-
guidos. Primeiro, existe uma apresentação de como as pessoas efetivamente raciocinariam
na posição original; essa apresentação aparece ao final da presente seleção. Segundo, exis-
te o argumento de Rawls em favor de que a especificação dos termos segundo os quais a
posição original é definida é adequada para produzir a correta concepção de justiça. Nesse
caso, a questão crucial é saber se Rawls está certo sobre quais conhecimentos deveriam
ser permitidos ou excluídos na posição original. Esse tema aparece tanto no início quan-
to próximo ao final da seleção, imediatamente antes da apresentação do raciocínio que
ocorre na posição original. Terceiro, existe um argumento independente para defender os
alegados resultados da posição original como correspondendo de fato à concepção corre-
ta da justiça. Esse ponto começa a ser desenvolvido com a exposição dos dois princípios e
continua com a discussão da igualdade e meritocracia.
A discussão de Rawls é de caráter bastante abstrato – bem mais do que na maior par-
te da filosofia. Por isso, é importante que se leia devagar e cuidadosamente, tentando a
cada passo reconhecer e manter presente que tipos de coisas correspondem aos termos
abstratos que Rawls emprega.
Filosofia: textos fundamentais comentados 583
tanto, sobre esses mesmos princípios. Por permite que a exposição proceda de uma
isso, parece razoável e via de regra acei- maneira natural.
tável que ninguém deveria ser favorecido A primeira afirmação dos dois prin-
9
ou desfavorecido pela sorte natural ou cípios reza do seguinte:
Aqui estão alguns exemplos pelas circunstâncias sociais na escolha de
adicionais, mais específicos,
de coisas que seriam excluídas do
princípios. Também parece amplamen- Primeiro: cada pessoa deve ter um di-
conhecimento das pessoas hipo- te acordado que deveria ser impossível reito igual ao mais amplo esquema de
téticas na posição original. moldar princípios para as circunstâncias liberdades básicas iguais, compatível
Rawls parece sugerir aqui do seu próprio caso. Deveríamos garantir com um esquema semelhante de liber-
que a especificação do dades para os outros.
ainda que inclinações e aspirações parti-
que deveria ser então excluído é Segundo: as desigualdades sociais
bastante óbvia, mas nem todos culares, assim como as concepções que as
e econômicas devem ser ordenadas de
concordariam com ela – portanto, pessoas têm do seu bem, não afetassem modo que sejam tanto (a) razoavel-
você deveria pensar cuidadosa- os princípios adotados. O objetivo é ex- mente estimadas como sendo de vanta-
mente sobre essa questão.
cluir aqueles princípios que seria racio- gem para todos quanto (b) vinculadas
nal propor para aceitação, não importa a posições e cargos abertos para todos.
o quão pequena seja a chance de suces-
so, somente se fossem conhecidas certas Há duas frases ambíguas no segun-
coisas que são irrelevantes do ponto de do princípio, a saber, “vantagem para to-
vista da justiça. Por exemplo, se um ho- dos” e “abertos para todos”. Determinar
mem soubesse que era rico, ele poderia de maneira mais exata o seu sentido le-
considerar racional promover o princípio vará a uma segunda formulação do prin-
de que diversos impostos, por medidas de cípio. (...)
bem-estar, fossem considerados injustos; Esses princípios aplicam-se prima-
se ele soubesse que era pobre, ele prova- riamente, como eu disse, à estrutura bá-
velmente proporia o princípio contrário. sica da sociedade, governam a atribuição
Para representar as restrições desejadas, de direitos e deveres e regulam a distri-
imagina-se uma situação na qual todos buição de vantagens sociais e econômicas.
são privados desse tipo de informação. A sua formulação pressupõe que, para os
Exclui-se o conhecimento daquelas con- propósitos de uma teoria da justiça, a es-
tingências que criam disparidades entre trutura social pode ser vista como tendo
os homens e permitem que sejam guiados duas partes mais ou menos distintas, apli-
pelos seus preconceitos. Dessa maneira, cando-se a uma o primeiro princípio, e o
chega-se até o véu de ignorância de um segundo princípio à outra. Assim, pois,
modo natural. Esse conceito não deveria distinguimos entre os aspectos do siste-
causar nenhuma dificuldade se tivésse- ma social que definem e asseguram as li-
mos em mente as restrições sobre argu- berdades básicas iguais e os aspectos que
mentos que ele pretende expressar. A especificam e estabelecem desigualdades
qualquer momento, podemos introduzir econômicas e sociais. Agora, é essencial
a posição original, por assim dizer, sim- observar que as liberdades básicas são
plesmente seguindo um certo procedi- dadas por uma lista de tais liberdades.
mento, a saber, ao argumentar a favor de Importante entre essas são a liberdade
princípios de justiça de acordo com essas política (o direito de votar e ocupar um
restrições. 9 cargo público) e a liberdade de expressão
e de reunião; a liberdade de consciência
... e a liberdade de pensamento; a liberda-
de da pessoa, que inclui a liberdade de
opressão psicológica e da agressão e do
Os dois princípios da justiça desmembramento físicos (integridade da
pessoa); o direito de manter proprieda-
Afirmarei, agora, de uma forma pro- de pessoal e a liberdade da prisão e da
visória, os dois princípios de justiça que captura arbitrárias como definidas pelo
eu acredito que obteriam concordância conceito da regra da lei. Essas liberdades
na posição original. A primeira formula- devem ser iguais, de acordo com o pri-
ção desses princípios é a modo de esboço. meiro princípio.
À medida que continuarmos, considera- O segundo princípio aplica-se, na
rei diversas formulações e me aproxima- primeira abordagem, à distribuição de
rei passo a passo da afirmação final, a ser renda e riqueza e ao projeto de organi-
dada muito depois. Creio que fazer isso zações que fazem uso de diferenças em
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autoridade e responsabilidade. Embora a primários à disposição da sociedade são 10
distribuição de riqueza e rendimento não direitos, liberdades e oportunidades, ren- Parece óbvio que pessoas
precise ser igual, ela deve servir para a da e riqueza. (...) Esses são os bens pri- autointeressadas na
vantagem de todos e, ao mesmo tempo, mários sociais. (...) posição original não estariam
posições de autoridade e de responsabili- dispostas a sacrificar liberdades
básicas em qualquer medida em
dade devem ser acessíveis a todos. Apli- troca de vantagens sociais e espe-
ca-se o segundo princípio mantendo-se Interpretações do cialmente econômicas maiores?
abertas as posições e, em seguida, em su- segundo princípio (Ver a discussão adicional desse
jeição a essa restrição, ordenam-se desi- ponto na Anotação 27.)
gualdades sociais e econômicas de modo Já mencionei que, como as frases
que todos se beneficiem. “vantagem de todos” e “igualmente aber- 11
Esses princípios devem ser ordena- tos para todos” são ambíguas, ambas as Vemos aqui uma supo-
dos em uma série, sendo o primeiro prin- partes do segundo princípio têm dois sen- sição forte em favor do
cípio anterior ao segundo. Essa ordenação igualitarismo: as desigualdades
tidos naturais. Como esses sentidos são precisam ser justificadas e podem
significa que as violações das liberdades independentes uns dos outros, o princípio ser justificadas somente ao se
iguais básicas protegidas pelo primeiro tem quatro significados possíveis. Supon- mostrar que servem aos interesses
princípio não podem ser justificadas ou do que o primeiro princípio de liberdade de todos. É bastante óbvio que a
compensadas por vantagens econômicas sociedade atual não satisfaz essa
igual assume sempre o mesmo significa- requisição.
e sociais maiores. 10 Essas liberdades têm do, temos então quatro interpretações
pare Qual poderia ser a justifica-
um âmbito central de aplicação no qual dos dois princípios. Essas são indicadas ção para tal suposição?
podem ser limitadas e comprometidas na tabela abaixo:
somente quando conflitam com outras
“Vantagem de todos”
liberdades básicas. Dado que podem ser
limitadas quando se chocam umas com “Igualmente Princípio Princípio
as outras, nenhuma dessas liberdades é abertos” da eficiência da diferença
absoluta; contudo, elas são ajustadas de Igualdade Sistema de Aristocracia
modo a formar um sistema, e esse siste- como carreiras liberdade natural
ma deve ser o mesmo para todos. (...) abertas a natural
Os dois princípios são bastante es- talentos
pecíficos em seu conteúdo, e a sua acei- Igualdade como Igualdade Igualdade
tação repousa em certas suposições que igualdade de liberal democrática
eu devo eventualmente tentar explicar e oportunidades
justificar. De momento, deveria ser ob- equitativas
servado que esses princípios são um caso
...
especial de uma concepção mais geral de
justiça que pode ser expressa como se- No sistema de liberdade natural, a
gue: distribuição inicial é regulada pelas orde-
nações implícitas na concepção de carrei-
Todos os valores sociais – a liberdade e ras abertas a talentos. (...) Essas ordena-
a oportunidade, a renda e a riqueza e
ções pressupõem um pano de fundo de
as bases sociais do auto-respeito – de-
vem ser distribuídos igualmente, a me-
igual liberdade (como especificado pelo
nos que uma distribuição desigual de primeiro princípio) e uma economia de
algum, ou de todos esses valores, seja mercado livre. Elas requerem uma igual-
para a vantagem de todos. dade formal de oportunidade no sentido
de que todos têm pelo menos os mesmos
A injustiça, então, consiste apenas direitos legais de acesso a todas as posi-
em desigualdades que não servem ao be- ções sociais privilegiadas. Porém, dado
nefício de todos. Sem dúvida, essa con- que não há nenhum esforço de preservar
cepção é extremamente vaga e exige in- uma igualdade ou semelhança de condi-
terpretação. 11 ções sociais, exceto à medida que isso é
Como um primeiro passo, suponha- necessário para preservar as instituições
mos que a estrutura básica da sociedade básicas* requeridas, a distribuição ini-
distribui certos bens primários, ou seja, cial de recursos**, em qualquer período
coisas que se presume que todo homem
racional deseje. Esses bens normalmente
têm um uso, seja qual for o plano racio- * N.de T. No original, background institutions.
nal de vida de uma pessoa. Para simplifi- **N. de T. No original, assets; ao longo do texto,
car, suponhamos que os principais bens asset também será traduzido como “dote”.
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18 o papel da educação em capacitar uma vesse no mesmo par que ser incapaz de
Rawls afirma alhures que
pessoa a desfrutar da cultura da sua so- aceitar a morte. A distribuição natural
isso significa somente que ciedade e tomar parte em suas questões não é nem justa nem injusta: tampouco
a distribuição de talentos, o fato e, dessa forma, proporcionar para cada é injusto que as pessoas tenham nascido,
de que diferentes pessoas têm ha- indivíduo um sentido seguro do seu pró- em uma sociedade, em alguma posição
bilidades diferentes e, frequente-
mente, complementares, deve ser
prio valor. particular. Esses são simplesmente fatos
tratada como um “bem comum”, Assim, embora o princípio de dife- naturais. O que é justo e injusto é o modo
não os próprios talentos (o que rença não seja o mesmo que o de repa- como as instituições lidam com esses fa-
aparentemente equivaleria a dizer ração, ele sem dúvida atinge algo desse tos. 19 As sociedades aristocráticas e de
que as outras pessoas têm uma
reivindicação sobre os talentos de
último princípio. Ele transforma os obje- castas são injustas porque elas fazem des-
uma dada pessoa). tivos da estrutura básica, de modo que o sas contingências a base referencial para
Mas é difícil evitar pensar esquema total de instituições não mais en- pertencer a classes sociais mais ou menos
que o princípio de dife- fatiza eficiência social e valores tecnocrá- fechadas e privilegiadas. A estrutura bási-
rença envolve ambas as ideias
– por que então as pessoas têm
ticos. O princípio de diferença represen- ca dessas sociedades incorpora a arbitra-
a permissão de beneficiar-se dos ta, com efeito, um acordo de considerar riedade encontrada na natureza. Todavia,
seus próprios talentos somente se a distribuição de talentos naturais como, não há nenhuma necessidade de que os
todos os demais se beneficiarem em alguns aspectos, um recurso comum homens se resignem a essas contingên-
também?
e de partilhar os benefícios econômicos e cias. O sistema social não é uma ordem
sociais maiores, tornados possíveis pelas imutável além do controle humano, mas
19 complementaridades dessa distribuição. um padrão de ação humana. Na justiça
18 Aqueles que foram favorecidos pela como equidade, os homens concordam
pare Pense novamente sobre
essa comparação básica: é natureza, não importa quem sejam, po- em valer-se dos acidentes da natureza e
injusto que a sociedade recom-
dem ter ganhos a partir da sua boa for- da circunstância social somente quando
pense pessoas porque ocorre que
elas nasceram em famílias “melho- tuna apenas em termos que melhorem proceder assim serve para o benefício
res”. É igualmente injusto permitir a situação daqueles que perderam tudo. comum. Os dois princípios são um modo
que aqueles com habilidades Os naturalmente favorecidos não devem equitativo de ir de encontro à arbitrarie-
maiores se beneficiem delas de
ganhar meramente porque são mais ta- dade da fortuna; e, embora sem qualquer
maneiras que não beneficiem
todos os demais? (Pense aqui em lentosos, mas só para cobrir os custos de dúvida sejam imperfeitas em outros as-
um escritor talentoso ou em um treino e de educação, assim como para pectos, as instituições que satisfazem es-
inventor.) Por que todos os demais fazer uso dos seus dotes de maneiras que ses princípios são justas.
têm uma reivindicação justa
ajudem também os menos afortunados. Um ponto adicional é que o princípio
quanto a se beneficiar dos seus
talentos? Ninguém merece a sua capacidade natu- de diferença expressa uma concepção de
ral maior nem merece um lugar inicial na reciprocidade. Ele é um princípio de mú-
sociedade que seja mais favorável. Porém, tuo benefício. Contudo, à primeira vista,
naturalmente, essa não é nenhuma razão ele pode mostrar-se imparcialmente ten-
para ignorar, muito menos para eliminar dencioso em direção aos menos favoreci-
essas distinções. Em vez disso, a estrutu- dos. Para considerar essa questão de um
ra básica pode ser ordenada de modo que modo intuitivo, suponhamos, para fins de
essas contingências operem para o bem simplicidade, que existem somente dois
dos menos afortunados. Assim, somos le- grupos na sociedade, um perceptivelmen-
vados ao princípio de diferença, caso de- te mais afortunado do que o outro. Sujei-
sejemos montar o sistema social de modo ta a essas restrições usuais (definidas pela
que ninguém ganhe ou perca a partir do prioridade do primeiro princípio e pela
seu lugar arbitrário na distribuição de do- igualdade equitativa de oportunidade),
tes naturais ou da sua posição inicial na a sociedade poderia maximizar as expec-
sociedade, sem dar ou receber vantagens tativas de qualquer um dos grupos, mas
compensatórias em troca. não de ambos, dado que podemos maxi-
Em vista dessas observações, po- mizar com respeito a um único objetivo
demos rejeitar o argumento de que a de cada vez. Parece claro que a sociedade
ordenação das instituições é sempre de- não deveria fazer o melhor que ela pode
feituosa porque a distribuição de talentos fazer em benefício daqueles inicialmente
naturais e as contingências da circuns- mais favorecidos; assim, se rejeitamos o
tância social são injustas, e essa injustiça princípio de diferença, devemos preferir
deve necessariamente transferir-se para maximizar alguma média ponderada das
as ordenações humanas. Ocasionalmen- duas expectativas. No entanto, se damos
te, essa reflexão é oferecida como uma qualquer peso aos mais afortunados, esta-
desculpa para ignorar a injustiça, como mos, por causa deles mesmos, atribuindo
se a recusa em aquiescer à injustiça esti- valor aos ganhos daqueles já mais favo-
Filosofia: textos fundamentais comentados 591
recidos pelas contingências naturais e so- básica da sociedade, deve ser planejado.
ciais. Ninguém tinha uma reivindicação De um ponto de vista apropriadamente
antecedente para ser beneficiado dessa geral, o princípio de diferença mostra-se
maneira, e maximizar uma média pon- aceitável tanto para os indivíduos mais
derada é, por assim dizer, favorecer duas favorecidos quanto para os menos favo-
vezes os mais afortunados. Portanto, os recidos. 21 Naturalmente, nenhum des-
mais favorecidos, quando veem a questão ses é, em termos estritos, um argumento
de uma perspectiva geral, reconhecem a favor do princípio, uma vez que, em
que o bem-estar de cada um depende de uma teoria do contrato, argumentos são
um esquema de cooperação social, sem o propostos do ponto de vista da posição
qual ninguém poderia ter uma vida satis- original. Contudo, essas considerações
fatória; eles reconhecem também que po- intuitivas ajudam a esclarecer o princípio
dem esperar a cooperação voluntária de e o sentido em que ele é igualitário.
todos somente se os termos do esquema
forem razoáveis. Assim, eles consideram ...
a si mesmos como já compensados, por
assim dizer, pelas vantagens às quais nin- Agora parece evidente, à luz dessas
guém (incluindo eles próprios) tinha uma observações, que a interpretação demo-
reivindicação anterior. Eles abandonam a crática dos dois princípios não levará a
ideia de maximizar uma média pondera- uma sociedade meritocrática. Essa forma
da e consideram o princípio de diferença de ordem social segue o princípio de car-
como uma base equitativa para regular a reiras abertas a talentos e faz uso da igual-
estrutura básica. 20 dade de oportunidade como um modo de 20
liberar as energias dos homens na busca
Aqui está a reposta de Rawls
... de prosperidade econômica e de domínio (de certo modo alterada a
político. Existe uma disparidade notória partir da primeira edição do livro,
Assim, é incorreto que indivíduos entre as classes superiores e inferiores como veremos na seleção seguin-
te) à questão de por que os ter-
com maiores dotes naturais e o caráter tanto em meios de vida quanto em direi-
mos da cooperação entre pessoas
superior que tornou possível o seu desen- tos e privilégios de autoridade organiza- com mais talentos e aquelas com
volvimento tenham direito a um esquema cional. A cultura das camadas mais pobres menos talentos deveria ser tal a
coooperativo que os capacite a obter até é empobrecida, enquanto aquela da elite ponto de gerar a máxima vanta-
gem para os menos talentosos,
mesmo benefícios adicionais de modos governante e tecnocrática é solidamente
em vez de um compromisso entre
que não contribuem às vantagens dos baseada no serviço dos propósitos nacio- os interesses dos dois grupos.
outros. Não merecemos o nosso lugar na nais de poder e de riqueza. A igualdade de
distribuição de dotes inatos, não mais do oportunidade significa uma chance igual
21
que merecemos o nosso lugar inicial na de deixar para trás os menos afortunados
sociedade. Que mereçamos o caráter su- na busca pessoal por influência e posição As pessoas com maiores
talentos naturais deveriam
perior que nos possibilita fazer o esforço social. Portanto, uma sociedade merito- ficar satisfeitas com o princípio
de cultivar as nossas possibilidades tam- crática é um perigo para as outras inter- de diferença? Elas concordarão
bém é problemático; afinal, tal caráter pretações dos princípios de justiça, mas com ele na posição original, assim
depende em boa medida de uma família não para a concepção democrática. Ora, Rawls está alegando, porque não
conhecem a sua própria situação
afortunada e de circunstâncias sociais no como recém vimos, o princípio de diferen- nesse sentido, mas isso poderia
início da vida para as quais não reivindi- ça transforma os objetivos da sociedade mostrar apenas que a posição
camos nenhum crédito. A noção de mere- em aspectos fundamentais. (...) original está erroneamente
cimento não se aplica aqui. Com certeza, concebida, que esse bocado de
conhecimento não deveria ser
os mais favorecidos têm um direito aos excluído.
seus dotes naturais, como qualquer ou- As circunstâncias da justiça
tro o tem; esse direito é coberto pelo pri-
meiro princípio sob a liberdade básica de As circunstâncias da justiça podem
proteger a integridade da pessoa. E assim ser descritas como as condições normais
os mais favorecidos têm direito* a tudo o sob as quais a cooperação humana é
que puderem adquirir em conformidade tanto possível quanto necessária. Assim,
com as regras de um sistema equitativo como notei no início, embora uma socie-
de cooperação social. O nosso problema dade seja um empreendimento coope-
é de que modo esse esquema, a estrutura rativo para mútuo benefício, ela é tipi-
camente marcada por um conflito, bem
como por uma identidade de interesses.
* N. de T. No original, are entitled. Há uma identidade de interesses, dado
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que a cooperação social torna possível vantajosa entre elas seja possível, elas não
uma vida melhor para todos, melhor do obstante isso têm os seus próprios planos
que qualquer um teria se cada um fosse de vida. Esses planos ou concepções do
tentar viver unicamente por seus pró- bem levam-nas a ter diferentes objetivos e
22 prios esforços. 22 Há um conflito de in- propósitos e a fazer reivindicações confli-
Isso é claramente verdadei- teresses, uma vez que os homens não tantes sobre os recursos naturais e sociais
ro mesmo sobre os mais são indiferentes acerca do modo como os disponíveis. Além disso, embora os inte-
talentosos, sendo, então, uma das benefícios maiores produzidos mediante resses promovidos por esses planos não
razões de Rawls para pensar que
eles deveriam ficar satisfeitos com
a sua colaboração são distribuídos, pois, sejam tomados como sendo interesses no
a distribuição de benefícios que no intuito de perseguir os seus objetivos, eu, eles são os interesses de um eu que
resulta do princípio de diferença. cada um deles prefere uma parcela maior considera a sua concepção do bem como
Mas isso realmente diz algo para do que uma menor. Logo, princípios são válida de reconhecimento, a qual lança
a questão levantada na anotação
anterior?
necessários para escolher entre as várias reivindicações em causa própria como
ordenações sociais que determinam essa merecedores de satisfação. Também su-
divisão de vantagens e para subscrever ponho que os homens sofram de diversas
um acordo sobre as parcelas distributivas limitações de conhecimento, pensamen-
apropriadas. Essas exigências definem o to e juízo. O seu conhecimento é neces-
papel da justiça. As condições de fundo* sariamente incompleto, os seus poderes
que dão origem a essas necessidades são de raciocínio, memória e atenção são
as circunstâncias da justiça. sempre limitados e o seu juízo provavel-
Essas condições podem ser dividi- mente é distorcido pela ansiedade, pelo
das em dois tipos. Primeiro, existem as preconceito e por uma preocupação com
circunstâncias objetivas que tornam pos- as suas próprias questões. Alguns desses
sível e necessária a cooperação humana. defeitos originam-se de falhas morais, do
Segundo, muitos indivíduos coexistem egoísmo e da negligência; porém, em um
juntos ao mesmo tempo em um território grau elevado, eles são simplesmente par-
geográfico definido. Esses indivíduos são te da situação natural dos homens. Como
basicamente semelhantes em poderes fí- consequência, os indivíduos não só têm
sicos e mentais; ou, de qualquer modo, planos de vida diferentes, mas também
as suas capacidades são comparáveis no existe uma diversidade de crença filosó-
sentido de que ninguém dentre eles pode fica e religiosa, assim como de doutrinas
dominar o restante. Eles são vulneráveis políticas e sociais.
ao ataque, e todos são sujeitos a ter os
seus planos interrompidos pela força uni- ...
da dos outros. Finalmente, existe a con-
dição de escassez moderada, entendida
como cobrindo um amplo espectro de O véu de ignorância
situações. Recursos naturais e de outro
tipo não são tão abundantes a ponto de A ideia da posição original é estabe-
esquemas de cooperação tornarem-se su- lecer um procedimento equitativo de for-
pérfluos, nem são as condições tão duras ma que quaisquer princípios acordados
que empreendimentos frutíferos devam sejam justos. De algum modo, devemos
inevitavelmente soçobrar. Embora orde- anular os efeitos de contingências especí-
nações mutuamente vantajosas sejam ficas que põem os homens em divergên-
factíveis, os benefícios que elas produzem cia, deixando-nos tentados a explorar cir-
ficam aquém das exigências lançadas pe- cunstâncias sociais e naturais para a sua
23 los homens. 23 própria vantagem. No intuito de fazer
Somente em situações nas As circunstâncias subjetivas são os isso, eu afirmo que as partes estão situa-
quais essas condições ge- aspectos relevantes dos sujeitos de coope- das por detrás de um véu de ignorância.
rais são satisfeitas é que a justiça ração, ou seja, das pessoas que trabalham Elas não sabem como as várias alternati-
se torna tanto um valor social im-
juntas. Por isso, embora as partes tenham vas afetarão o seu próprio caso particu-
portante quanto um valor capaz
de ser razoavelmente atingido. As basicamente necessidades e interesses lar e estão obrigadas a avaliar princípios
diferenças fundamentais nesses semelhantes, ou necessidades e interes- unicamente com base em considerações
aspectos fariam da justiça ou algo ses de várias maneiras complementares, gerais.
de pouca importância ou virtual-
de modo que a cooperação mutuamente Supõe-se, então, que as partes não
mente impossível de ser atingida.
conhecem certos tipos de fatos particula-
res. Primeiro, ninguém sabe o seu lugar
* N. de T. No original, background conditions. na sociedade, a sua posição de classe ou
Filosofia: textos fundamentais comentados 593
o estatuto social; nem tem conhecimen- estejam desprovidas de informação sobre
to da sua sorte na distribuição de dotes os seus fins particulares, elas têm conhe-
e de habilidades naturais, bem como de cimento o bastante para hierarquizar as
sua inteligência e força. E, além disso, alternativas. Elas têm conhecimento de
tampouco alguém tem conhecimento da que, em geral, devem tentar proteger a
sua concepção do bem, dos aspectos par- sua liberdade, ampliar as suas oportuni-
ticulares do seu plano racional de vida, dades e alargar os seus meios para a pro-
ou mesmo dos traços especiais da sua psi- moção de suas metas, sejam essas quais
cologia, tais como a sua aversão ao risco forem. Guiadas pela teoria do bem e dos
ou a sua inclinação ao otimismo ou ao fatos gerais da psicologia moral, as suas
pessimismo. (...) deliberações não são mais um exercício
Então, tanto quanto possível, os de adivinhação. Elas são capazes de to-
únicos fatos particulares que as partes mar uma decisão racional no sentido ha-
conhecem é que a sociedade está sujei- bitual.
ta às circunstâncias da justiça e a tudo o
que isso implica. Toma-se por garantido, ...
contudo, que elas têm conhecimento dos
fatos gerais sobre a sociedade humana. Portanto, a suposição da racionali-
Elas entendem as questões políticas e os dade mutuamente desinteressada resulta
princípios da teoria econômica; elas têm nisto: as pessoas na posição original ten-
conhecimento da base da organização e tam tanto quanto possível, reconhecer
das leis da psicologia humana. Com efei- princípios que promovem o seu sistema
to, presume-se que as partes têm conhe- de fins. Elas fazem isso ao tentar obter
cimento dos fatos gerais – não importa para si mesmas o mais elevado índice
quais sejam – que afetam a escolha dos de bens sociais primários, já que isso as
princípios da justiça. (...) 24 capacita a promover a sua concepção do 24
bem mais efetivamente, não importa o Porque tal conhecimento
que ela venha a ser. As partes não bus- geral não permitirá que elas
A racionalidade das partes cam conferir benefícios ou impor danos tornem tendenciosa a escolha de
princípios em seu próprio favor.
umas às outras; elas não são movidas por
Afirmei até aqui que as pessoas na afeição ou rancor. Nem tentam levar van-
posição original são racionais. Contudo, tagem umas sobre as outras; elas não são
também assumi que elas não têm conhe- invejosas ou vaidosas. (...)
cimento da sua concepção do bem. Isso
significa que, embora tenham conheci-
mento de que têm algum plano racio- O raciocínio que leva aos
nal de vida, elas não têm conhecimento dois princípios da justiça
dos detalhes desse plano, os propósitos
e interesses particulares que se calcula ...
que ele promova. Como, então, pode-se
decidir quais concepções de justiça mais Consideremos agora o ponto de
lhes trazem vantagens? Ou devemos su- vista de alguém na posição original. Não
por que elas são reduzidas à mera adi- há nenhum modo em que ela conquiste
vinhação? Para ir ao encontro dessa di- vantagens especiais para si. E, por outro
ficuldade, postulo que elas aceitam (...) lado, não existem motivos para que ele
que normalmente preferem mais bens concorde com desvantagens especiais.
sociais primários do que menos bens so- Como não é razoável para ele esperar
ciais primários. 25 Naturalmente, pode mais do que uma parcela igual na divisão 25
ocorrer que, depois de removido o véu de bens primários sociais, nem é razoável “Bens sociais primários”
de ignorância, alguma delas, por motivos para ele concordar com menos, a atitu- são aqueles que serão
religiosos ou de outra natureza, possam, de sensata é reconhecer como o primeiro de valor para quase qualquer
um, não importa qual possa ser
com efeito, não mais querer esses bens. passo um princípio de justiça que requer a sua concepção do bem ou do
Todavia, do ponto de vista da posição uma distribuição igual. Com efeito, esse plano racional da vida: direitos,
original, é racional que as partes supo- princípio é tão óbvio, dada a simetria das liberdades e oportunidades, renda
nham que querem, de fato, uma parcela partes, que ele ocorreria a todos imedia- e riqueza.
maior, dado que, de qualquer modo, elas tamente. Assim, as partes começam com
não são obrigadas a aceitar mais se elas um princípio que requer liberdades bási-
não o desejam. Assim, embora as partes cas iguais para todos, bem como igualda-
594 Laurence BonJour & Ann Baker
1. Considere duas pessoas, uma de família o “véu de ignorância” e por que nenhum
de classe alta e outra de classe baixa. Des- desses princípios pareceria corresponder
creva que tipo de princípio de justiça cada intuitivamente a uma correta abordagem
uma delas preferiria, com base no seu au- da justiça. Como o véu de ignorância evita
tointeresse, caso elas não estivessem sob que elas favoreçam esses princípios com
Robert Nozick
Nesta seleção, também extraída de Anarquia, estado e utopia, Nozick oferece suas
objeções à abordagem de Rawls sobre a justiça. Ele coloca em dúvida se o princípio
da diferença é realmente equitativo* para aqueles que têm melhores dotes naturais e
questiona se Rawls tem algum bom argumento para afirmar que tais dotes devam ser
tratados da maneira exigida por seus princípios. Nozick sugere igualmente que, em uma
situação mais limitada, em que as graduações [de características] fossem atribuídas de
maneira equitativa, a concepção de Rawls geraria resultados incertos (embora Ralws
afirme com firmeza que a sua concepção não se aplica a tais situações).
* N. de T. No original, fair.