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LAURENCE BONJOUR

ANN BAKER
PROFESSORES DA UNIVERSIDADE DE WASHINGTON

FILOSOFIA
TEXTOS FUNDAMENTAIS COMENTADOS

2a EDIÇÃO

Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição:


Maria Carolina dos Santos Rocha
Professora e Doutora em Filosofia Contemporânea pela ESA/Paris e UFRGS/Brasil
Mestre em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS)/Paris
Roberto Hofmeister Pich
Doutor em Filosofia pela Universidade de Bonn, Alemanha.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS.

Versão impressa
desta obra: 2010

2010
582 Laurence BonJour & Ann Baker

periores aos dos demais que ele (ou seus serviços governamentais (como a polícia,
herdeiros) fiquem em condições de exer- o corpo de bombeiros, a manutenção de
cer uma influência muito maior do que estradas, etc.)?
a de qualquer outra pessoa sobre coisas 4. Por que deveria existir alguma limitação,
como o resultado de eleições políticas ? mesmo aquela proposta por Nozick, so-
3. Os impostos para redistribuição de renda bre a aquisição de itens não possuídos? Se
e riqueza equivalem ao trabalho forçado esses são genuinamente não possuídos,
em benefício dos que estão (alegada- por que alguém que os encontre não é
mente) intitulados aos resultados de tal livre para tomar posse deles? Nesse caso,
redistribuição, de acordo com alguma tente pensar em exemplos de coisas não
teo­ria da justiça com base em padrões? possuídas, talvez em um tempo anterior
Se não, por que não? Existe alguma di- (terras em locais não explorados, fontes
ferença entre o imposto com essa finali- de minerais não descobertos, peixes em
dade e o imposto para sustentar outros mar aberto, etc.).

John Rawls
John Rawls (1921-2002), uma das figuras mais conhecidas e influentes da filosofia
política e social recente, foi, professor em Harvard, tal como Nozick. Diferentemente de
Hobbes, Locke e Nozick, o seu interesse básico é menos com questões relativas a se e por
que algum tipo de poder governamental é legítimo, e mais com a questões relativas a
quais são os tipos de estruturas e instituições, governamentais e sociais, que satisfazem
as exigências da justiça. Em seu livro Uma teoria da justiça (1971), Rawls oferece uma
complicada e sutil abordagem da justiça, com foco no que ele chama de “a estrutura
básica da sociedade”, abordagem voltada especialmente para questões sobre como a
renda, a riqueza e outros resultados da cooperação social devem ser distribuídos entre
os membros de uma determinada sociedade.
Algumas vezes, Rawls descreve a sua visão da justiça como uma versão de uma teoria
do contrato. Contudo, para ele, a situação contratual é puramente hipotética (“a posição
original”), uma situação na qual os membros da sociedade não teriam conhecimento
de sua própria situação, a qual lhes permitiria influenciar os resultados a seu favor ao
buscarem um acordo sobre os princípios básicos de justiça movidos pela busca de seu
interesse próprio (tanto quanto fossem capazes de discerni-lo). Rawls alega que o traço
distintivo do que seria acordado nessa situação hipotética é o princípio (“o princípio da
diferença”) segundo o qual, embora os benefícios sociais não precisem ser distribuídos
igualmente, uma distribuição desigual somente pode ser justificada caso tal distribuição
coloque os membros menos favorecidos da sociedade em situação ainda melhor do que
eles estariam sob uma distribuição igualitária. (Porque a distribuição desigual resultaria
em um aumento da produção total).
Existem três aspectos da discussão de Rawls que precisam ser cuidadosamente distin-
guidos. Primeiro, existe uma apresentação de como as pessoas efetivamente raciocinariam
na posição original; essa apresentação aparece ao final da presente seleção. Segundo, exis-
te o argumento de Rawls em favor de que a especificação dos termos segundo os quais a
posição original é definida é adequada para produzir a correta concepção de justiça. Nesse
caso, a questão crucial é saber se Rawls está certo sobre quais conhecimentos deveriam
ser permitidos ou excluídos na posição original. Esse tema aparece tanto no início quan-
to próximo ao final da seleção, imediatamente antes da apresentação do raciocínio que
ocorre na posição original. Terceiro, existe um argumento independente para defender os
alegados resultados da posição original como correspondendo de fato à concepção corre-
ta da justiça. Esse ponto começa a ser desenvolvido com a exposição dos dois princípios e
continua com a discussão da igualdade e meritocracia.
A discussão de Rawls é de caráter bastante abstrato – bem mais do que na maior par-
te da filosofia. Por isso, é importante que se leia devagar e cuidadosamente, tentando a
cada passo reconhecer e manter presente que tipos de coisas correspondem aos termos
abstratos que Rawls emprega.
Filosofia: textos fundamentais comentados 583

A Justiça como Equidade,5 Extraído de Teoria da Justiça

O papel da justiça essas regras especificam um sistema de


cooperação designado a promover o
A justiça é a primeira virtude das bem daqueles que tomam parte nele.
instituições, assim como a verdade o é Nesse caso, embora uma sociedade
dos sistemas de pensamento. Uma teoria seja um empreendimento cooperativo
elegante e econômica, contudo, deve ser para mútua vantagem, ela é tipicamen-
rejeitada e revisada caso ela seja inverí- te marcada por um conflito e por uma
dica; por semelhante modo, leis e insti- identidade de interesses. Há uma identi-
tuições, não importa o quão eficientes e dade de interesses, dado que a coopera-
bem-dispostas, devem ser reformadas e ção social torna possível para todos uma
abolidas caso sejam injustas. Cada pes- vida melhor do que qualquer um teria
soa possui uma inviolabilidade fundada se cada um fosse viver unicamente por
na justiça que mesmo o bem-estar da seus próprios esforços. Há um conflito
sociedade como um todo não pode igno- de interesses, dado que as pessoas não
rar. Por essa razão, a justiça nega que a são indiferentes quanto ao modo como
perda da liberdade para alguns torne-se os benefícios maiores produzidos por
justa mediante um bem maior partilhado sua colaboração são distribuídos, pois,
por outros. Ela não permite que os sacri- no intuito de buscar os seus propósi-
fícios impostos sobre uns poucos sejam tos, cada uma delas prefere uma par-
compensados pelo soma maior de van- cela maior a uma menor. Um conjunto
tagens desfrutadas por muitos. Portanto, de princípios é requerido para escolher
em uma sociedade justa, as liberdades de entre as várias ordenações sociais que
igual cidadania são tomadas como esta- determinam essa divisão de vantagens e
belecidas; os direitos assegurados por para selar um acordo sobre as parcelas
justiça não estão sujeitos à negociação distributivas apropriadas. Esses princí-
política ou ao cálculo de interesses so- pios são os princípios de justiça social:
ciais (...), analogamente, uma injustiça eles fornecem um modo de atribuir di-
é tolerável somente quando é necessário reitos e deveres nas instituições básicas
evitar uma injustiça ainda maior. Sendo da sociedade, bem como definem a dis-
virtudes primeiras das atividades huma- tribuição apropriada dos benefícios e 1
nas, a verdade e a justiça não podem ser dos encargos da cooperação social. 1 Assim, a abordagem da
comprometidas. Agora, digamos que uma sociedade justiça a ser desenvolvida
Essas proposições parecem expres- está bem-ordenada quando não apenas está voltada primeiramente às
instituições básicas da sociedade
sar a nossa convicção intuitiva no pri- está projetada a promover o bem dos e à especificação do modo como
mado da justiça. Sem dúvida, elas são seus membros, mas também quando está os “benefícios e os encargos” da
expressas de maneira demasiado forte. efetivamente regulada por uma concep- cooperação social deveriam ser
Seja como for, desejo inquirir se esses ção pública da justiça. Ou seja, é uma so- distribuídos – e não a questões de
justiça que surgem em contextos
argumentos ou outros parecidos com ciedade na qual mais limitados (tais como a justiça
eles são válidos e, se o são, como eles criminal).
podem ser expostos. Para esse propó- 1. todos aceitam e conhecem que os ou- pare
Essa é uma especificação
sito, é necessário trabalhar uma teoria tros aceitam os mesmos princípios de bastante abstrata, e você
deveria tentar identificar alguns
da justiça à luz da qual essas asserções justiça e,
dos aspectos da sociedade com os
possam ser interpretadas e avaliadas. 2. as instituições sociais básicas geral- quais tal concepção se preocu-
Começarei considerando o papel dos mente satisfazem e são conhecidas pará.
princípios da justiça. Suponhamos, para como satisfazendo esses princípios. 2
fixar ideias, que uma sociedade é uma 2
associação mais ou menos autossufi- Nesse caso, ainda que os homens
Portanto, uma sociedade
ciente de pessoas que, em suas relações possam lançar exigências excessivas uns que satisfizesse até mesmo
umas com as outras, reconhecem certas aos outros, eles, não obstante isso, reco- princípios optimais de justiça,
regras de conduta como obrigatórias e nhecem um ponto de vista comum a par- mas não fosse creditada por seus
que, em sua maior parte, agem de acor- tir do qual as suas reivindicações podem membros como agindo assim, não
seria “bem-ordenada”.
do com elas. Suponhamos, ademais, que ser julgadas. (...)

5 Extraído de A Theory of Justice. (Cambridge Mass.: Harvard University Press, 1971).


584 Laurence BonJour & Ann Baker

O objeto da justiça princípios que pessoas livres e racionais,


preocupadas em promover os seus pró-
Muitos tipos diferentes de coisas prios interesses, aceitariam em uma po-
são considerados justos e injustos: não só sição inicial de igualdade como definindo
leis, instituições e sistemas sociais, mas os termos fundamentais da sua associa-
também ações particulares de muitos ção. Esses princípios devem regular todos
tipos, incluindo decisões, juízos e impu- os acordos posteriores; eles especificam
tações. Também chamamos de justas e os tipos de cooperação social em que se
injustas as atitudes e as disposições das pode ingressar e as formas de governo
pessoas, bem como as próprias pessoas. que podem ser estabelecidas. Esse modo
O nosso tópico, contudo, é o da justiça de considerar os princípios de justiça eu
social. Para nós, o objeto primário da jus- chamo de justiça como equidade.
tiça é a estrutura básica da sociedade ou,
mais exatamente, o modo como as ins- ...
tituições sociais mais importantes* dis-
tribuem direitos e deveres fundamentais Na justiça como equidade, a posi-
e determinam a divisão de vantagens a ção original de igualdade corresponde ao
partir da cooperação social. Por institui- estado de natureza na teoria tradicional
ções mais importantes entendo a consti- do contrato social. Obviamente, essa po-
tuição política e as ordenações sociais e sição original não é concebida como um
econômicas principais. Assim, pois, a pro- estado de coisas histórico real e muito
teção legal da liberdade de pensamento e menos como uma condição primitiva da
da liberdade de consciência, os mercados cultura. Ela é entendida como uma situ-
competitivos, a propriedade privada nos ação puramente hipotética, caracterizada
3
meios de produção e a família monogâ- de maneira a levar a uma certa concep-
Aqui há um pouco mais mica são exemplos de instituições sociais ção de justiça. Entre os traços essenciais
de auxílio para apreender
quais instituições sociais são parte
mais importantes. 3 Tomadas em con- dessa situação, está que ninguém tem
da “estrutura básica da sociedade”. junto como um esquema, as instituições conhecimento do seu lugar na sociedade,
mais importantes definem os direitos e da sua posição de classe ou do seu esta-
4 os deveres dos homens e influenciam os tuto social; tampouco alguém conhece a
seus projetos de vida, o que eles podem sua sorte na distribuição dos dotes e das
A posição original não é,
pois, uma situação real que esperar ser e o quão bem podem almejar habilidades naturais, a sua inteligência,
poderia de fato ocorrer: prova- viver. A estrutura básica é o objeto pri- a sua força, e assim por diante. Afirmo
velmente nenhuma pessoa real mário da justiça porque os seus efeitos inclusive que as partes não conhecem as
poderia ser tão ignorante das suas são extremamente profundos e presentes suas concepções do bem ou as suas pro-
próprias características quanto o
“véu de ignorância” exige. Em vez desde o princípio. (...) pensões psicológicas especiais. Os princí-
disso, trata-se de um experimento pios de justiça são escolhidos por detrás
de pensamento hipotético que de um véu de ignorância. 4 Isso assegu-
supostamente reflete equidade e ra que ninguém seja favorecido ou des-
A ideia principal da
igualdade entre cidadãos de uma
maneira que os leva a escolher os teoria da justiça favorecido na escolha dos princípios por
princípios corretos de justiça. consequência do acaso natural ou da con-
O meu objetivo é apresentar uma tingência de circunstâncias sociais. Uma
5 concepção de justiça que generalize e vez que todos estão situados semelhan-
A única preocupação das conduza a um nível mais elevado de temente e ninguém é capaz de conceber
partes na posição original é abstração a teoria familiar do contrato princípios para favorecer a sua condição
o seu próprio autointeresse racio- social, tal como encontrada, por exem- particular, os princípios da justiça são o
nal. Elas não estão preocupadas resultado de um acordo ou de uma nego-
altruisticamente com o bem-estar
plo, em Locke, Rousseau e Kant. No in-
dos outros, nem se supõe que tuito de fazer isso, não devemos pensar ciação equitativa. (...)
sejam movidas por valores morais, no contrato original como um contrato Um traço da justiça como equidade
nem mesmo por qualquer ideia para ingressar em uma sociedade parti- é conceber as partes na situação inicial
antecedente da própria justiça. O como racionais e mutuamente desinteres-
ponto central é que os princípios
cular ou para estabelecer uma forma par-
corretos de justiça são aqueles ticular de governo. Em vez disso, a ideia sadas. Isso não significa que as partes são
que indivíduos racionalmente norteadora é que os princípios de justiça egoístas, ou seja, indivíduos com apenas
autointeressados escolheriam para a estrutura básica da sociedade são certos tipos de interesses, por exemplo,
em uma situação na qual são em riqueza, prestígio e dominação. Po-
incapazes (por causa do véu de ig-
o objeto do acordo original. Eles são os
norância) de, sem imparcialidade,
rém, elas são concebidas como não tendo
favorecer a sua própria situação um interesse nos interesses das outras.
ou as suas características. * N. de T. No original, major social institutions. (...) 5
Filosofia: textos fundamentais comentados 585
(...) uma vez que os princípios da guém poderia ter uma vida satisfatória, 6
justiça são pensados como surgindo a a divisão de benefícios deveria ser tal Aqui está um bom exemplo
partir de um acordo original em uma si- que suscitasse a cooperação voluntária inicial de raciocínio baseado
tuação de igualdade, é uma questão em de todos que tomam parte nela, incluin- na posição original. O princípio de
aberto se o princípio de utilidade seria do aqueles menos bem-situados. Os dois utilidade (discutido mais adiante
no Capítulo 5) sustenta de forma
reconhecido. Em um primeiro momento, princípios mencionados parecem ser uma básica que a ação moralmente
dificilmente parece provável que pessoas base equitativa sobre a qual aqueles mais correta em um conjunto de
que veem a si mesmas como iguais con- bem-dotados ou mais afortunados na escolhas é aquela que produz as
cordariam com um princípio que pudesse sua posição social, em que não se pode melhores consequências como
um todo, para todos, considera-
exigir perspectivas inferiores de vida para dizer de nenhum desses aspectos que os dos em conjunto. Pessoas autoin-
algumas simplesmente por causa de uma merecemos, poderiam esperar a coopera- teressadas, na posição original,
soma maior de vantagens desfrutadas por ção voluntária dos outros quando algum rejeitariam tal princípio, assim
outras. Dado que cada um deseja prote- esquema viável fosse uma condição ne- argumenta Rawls, porque ele não
diz nada sobre como essas boas
ger os seus interesses, a sua capacidade cessária do bem-estar de todos. Uma vez consequências estão distribuídas
de promover a sua concepção, ninguém que decidimos procurar uma concepção entre as pessoas, deixando em
tem motivos para aquiescer a uma perda de justiça que impeça o uso dos aciden- aberto a possibilidade de que
duradoura para si mesmo no intuito de tes dos dotes naturais e as contingências qualquer pessoa poderia sair-se
muito pobremente.
produzir um saldo líquido de satisfação da circunstância social como trunfos em
que seja maior. 6 Na ausência de impul- uma busca por favorecimento econômico
sos benevolentes fortes e duradouros, um e político, somos levados a esses princí-
homem racional não aceitaria uma estru- pios. 8 Eles expressam o resultado de 7
tura básica meramente porque ela maxi- deixar de lado aqueles aspectos do mun- Aqui está a afirmação inicial
mizaria a soma algébrica de vantagens, do social que parecem arbitrários de um dos dois princípios básicos
independentemente dos seus efeitos per- ponto de vista moral. da justiça, conforme Rawls. A
ideia principal subjacente ao
manentes sobre os seus próprios direitos segundo princípio (“o princípio da
e interesses básicos. Assim, parece que o ... diferença”) é que as desigualdades
princípio de utilidade é incompatível com que dão a pessoas talentosas ou
a concepção de cooperação social entre produtivas um incentivo para
A posição original desenvolver e utilizar os seus
iguais para vantagem mútua. Ele parece talentos podem levar a um cres-
ser inconsistente com a ideia de recipro- e a justificação cimento suficiente em produção
cidade implícita na noção de uma socie- para fazer com que todos, mesmo
dade bem-ordenada. Ou, de qualquer Eu afirmei que a posição original é aqueles que recebem as menores
o status quo incial apropriado que asse- porções relativas, fiquem em me-
modo, é nesse sentido que argumentarei. lhor situação em termos absolutos
Afirmarei em vez disso que as pes- gura que os acordos fundamentais nela do que ficariam em uma situação
soas, na situação inicial, escolheriam dois alcançados sejam equitativos. Esse fato de igualdade.
princípios deveras diferentes: o primeiro dá origem ao nome “justiça como equida-
princípio exige igualdade na atribuição de”. É claro, então, que quero dizer que
de direitos e deveres básicos, enquanto uma concepção de justiça é mais razoável 8
o segundo defende que as desigualdades do que outra, ou justificável com respei-
Aqui estão duas questões
sociais e econômicas, por exemplo, as to a isso, se pessoas racionais na situação
importantes que ficariam
desigualdades de riqueza e de autorida- inicial escolhem os princípios dela, para ocultadas por detrás do véu de
de, são justas somente se elas resultam o papel da justiça, em preferência àque- ignorância na posição original e
em benefícios compensatórios para todos les princípios de outros. Concepções de que não poderiam ser usadas para
buscar vantagens em um sistema
e, em particular, para os membros me- justiça devem ser hierarquizadas por sua
justo.
nos favorecidos da sociedade. 7 Esses aceitabilidade para pessoas em tais cir- Por “contingências da
princípios excluem justificar instituições cunstâncias. Entendida dessa maneira, a circunstância social”
com base no fato de que as dificuldades questão da justificação é estabelecida ao Rawls quer dizer coisas como clas-
resolver-se um problema de deliberação: se social. Esse é um dos exemplos
de alguns são compensadas por um bem mais claros do item respectivo
agregado maior. Pode ser conveniente, temos de nos certificar sobre quais prin- ao véu de ignorância: as pessoas
mas não é justo que alguns tenham me- cípios seria racional adotar, dada a situa- na posição original não podem
nos no intuito de que outros prosperem. ção contratual. (...) escolher um princípio que dá van-
Não deveríamos ser enganados, tagens à sua classe social, porque
Contudo, não há nenhuma injustiça nos
elas não sabem qual é essa classe.
benefícios maiores obtidos por poucos, então, pelas condições de certo modo in- Uma das principais ques-
contanto que a situação das pessoas não comuns que caracterizam a posição origi- tões sobre a concepção
tão afortunadas seja, com isso, melhora- nal. A ideia aqui é simplesmente tornar de Rawls é se ele está certo em
vívidas a nós mesmos as restrições que afirmar que “um acidente de dote
da. A ideia intuitiva é que, dado que o
natural” (talentos e habilidades
bem-estar de todos depende de um es- parece razoável impor sobre argumentos naturais) deveria ser tratado da
quema de cooperação sem o qual nin- em favor de princípios de justiça e, por- mesma maneira.
586 Laurence BonJour & Ann Baker

tanto, sobre esses mesmos princípios. Por permite que a exposição proceda de uma
isso, parece razoável e via de regra acei- maneira natural.
tável que ninguém deveria ser favorecido A primeira afirmação dos dois prin-
9
ou desfavorecido pela sorte natural ou cípios reza do seguinte:
Aqui estão alguns exemplos pelas circunstâncias sociais na escolha de
adicionais, mais específicos,
de coisas que seriam excluídas do
princípios. Também parece amplamen- Primeiro: cada pessoa deve ter um di-
conhecimento das pessoas hipo- te acordado que deveria ser impossível reito igual ao mais amplo esquema de
téticas na posição original. moldar princípios para as circunstâncias liberdades básicas iguais, compatível
Rawls parece sugerir aqui do seu próprio caso. Deveríamos garantir com um esquema semelhante de liber-
que a especificação do dades para os outros.
ainda que inclinações e aspirações parti-
que deveria ser então excluído é Segundo: as desigualdades sociais
bastante óbvia, mas nem todos culares, assim como as concepções que as
e econômicas devem ser ordenadas de
concordariam com ela – portanto, pessoas têm do seu bem, não afetassem modo que sejam tanto (a) razoavel-
você deveria pensar cuidadosa- os princípios adotados. O objetivo é ex- mente estimadas como sendo de vanta-
mente sobre essa questão.
cluir aqueles princípios que seria racio- gem para todos quanto (b) vinculadas
nal propor para aceitação, não importa a posições e cargos abertos para todos.
o quão pequena seja a chance de suces-
so, somente se fossem conhecidas certas Há duas frases ambíguas no segun-
coisas que são irrelevantes do ponto de do princípio, a saber, “vantagem para to-
vista da justiça. Por exemplo, se um ho- dos” e “abertos para todos”. Determinar
mem soubesse que era rico, ele poderia de maneira mais exata o seu sentido le-
considerar racional promover o princípio vará a uma segunda formulação do prin-
de que diversos impostos, por medidas de cípio. (...)
bem-estar, fossem considerados injustos; Esses princípios aplicam-se prima-
se ele soubesse que era pobre, ele prova- riamente, como eu disse, à estrutura bá-
velmente proporia o princípio contrário. sica da sociedade, governam a atribuição
Para representar as restrições desejadas, de direitos e deveres e regulam a distri-
imagina-se uma situação na qual todos buição de vantagens sociais e econômicas.
são privados desse tipo de informação. A sua formulação pressupõe que, para os
Exclui-se o conhecimento daquelas con- propósitos de uma teoria da justiça, a es-
tingências que criam disparidades entre trutura social pode ser vista como tendo
os homens e permitem que sejam guiados duas partes mais ou menos distintas, apli-
pelos seus preconceitos. Dessa maneira, cando-se a uma o primeiro princípio, e o
chega-se até o véu de ignorância de um segundo princípio à outra. Assim, pois,
modo natural. Esse conceito não deveria distinguimos entre os aspectos do siste-
causar nenhuma dificuldade se tivésse- ma social que definem e asseguram as li-
mos em mente as restrições sobre argu- berdades básicas iguais e os aspectos que
mentos que ele pretende expressar. A especificam e estabelecem desigualdades
qualquer momento, podemos introduzir econômicas e sociais. Agora, é essencial
a posição original, por assim dizer, sim- observar que as liberdades básicas são
plesmente seguindo um certo procedi- dadas por uma lista de tais liberdades.
mento, a saber, ao argumentar a favor de Importante entre essas são a liberdade
princípios de justiça de acordo com essas política (o direito de votar e ocupar um
restrições. 9 cargo público) e a liberdade de expressão
e de reunião; a liberdade de consciência
... e a liberdade de pensamento; a liberda-
de da pessoa, que inclui a liberdade de
opressão psicológica e da agressão e do
Os dois princípios da justiça desmembramento físicos (integridade da
pessoa); o direito de manter proprieda-
Afirmarei, agora, de uma forma pro- de pessoal e a liberdade da prisão e da
visória, os dois princípios de justiça que captura arbitrárias como definidas pelo
eu acredito que obteriam concordância conceito da regra da lei. Essas liberdades
na posição original. A primeira formula- devem ser iguais, de acordo com o pri-
ção desses princípios é a modo de esboço. meiro princípio.
À medida que continuarmos, considera- O segundo princípio aplica-se, na
rei diversas formulações e me aproxima- primeira abordagem, à distribuição de
rei passo a passo da afirmação final, a ser renda e riqueza e ao projeto de organi-
dada muito depois. Creio que fazer isso zações que fazem uso de diferenças em
Filosofia: textos fundamentais comentados 587
autoridade e responsabilidade. Embora a primários à disposição da sociedade são 10
distribuição de riqueza e rendimento não direitos, liberdades e oportunidades, ren- Parece óbvio que pessoas
precise ser igual, ela deve servir para a da e riqueza. (...) Esses são os bens pri- autointeressadas na
vantagem de todos e, ao mesmo tempo, mários sociais. (...) posição original não estariam
posições de autoridade e de responsabili- dispostas a sacrificar liberdades
básicas em qualquer medida em
dade devem ser acessíveis a todos. Apli- troca de vantagens sociais e espe-
ca-se o segundo princípio mantendo-se Interpretações do cialmente econômicas maiores?
abertas as posições e, em seguida, em su- segundo princípio (Ver a discussão adicional desse
jeição a essa restrição, ordenam-se desi- ponto na Anotação 27.)
gualdades sociais e econômicas de modo Já mencionei que, como as frases
que todos se beneficiem. “vantagem de todos” e “igualmente aber- 11
Esses princípios devem ser ordena- tos para todos” são ambíguas, ambas as Vemos aqui uma supo-
dos em uma série, sendo o primeiro prin- partes do segundo princípio têm dois sen- sição forte em favor do
cípio anterior ao segundo. Essa ordenação igualitarismo: as desigualdades
tidos naturais. Como esses sentidos são precisam ser justificadas e podem
significa que as violações das liberdades independentes uns dos outros, o princípio ser justificadas somente ao se
iguais básicas protegidas pelo primeiro tem quatro significados possíveis. Supon- mostrar que servem aos interesses
princípio não podem ser justificadas ou do que o primeiro princípio de liberdade de todos. É bastante óbvio que a
compensadas por vantagens econômicas sociedade atual não satisfaz essa
igual assume sempre o mesmo significa- requisição.
e sociais maiores. 10 Essas liberdades têm do, temos então quatro interpretações
pare Qual poderia ser a justifica-
um âmbito central de aplicação no qual dos dois princípios. Essas são indicadas ção para tal suposição?
podem ser limitadas e comprometidas na tabela abaixo:
somente quando conflitam com outras
“Vantagem de todos”
liberdades básicas. Dado que podem ser
limitadas quando se chocam umas com “Igualmente Princípio Princípio
as outras, nenhuma dessas liberdades é abertos” da eficiência da diferença
absoluta; contudo, elas são ajustadas de Igualdade Sistema de Aristocracia
modo a formar um sistema, e esse siste- como carreiras liberdade natural
ma deve ser o mesmo para todos. (...) abertas a natural
Os dois princípios são bastante es- talentos
pecíficos em seu conteúdo, e a sua acei- Igualdade como Igualdade Igualdade
tação repousa em certas suposições que igualdade de liberal democrática
eu devo eventualmente tentar explicar e oportunidades
justificar. De momento, deveria ser ob- equitativas
servado que esses princípios são um caso
...
especial de uma concepção mais geral de
justiça que pode ser expressa como se- No sistema de liberdade natural, a
gue: distribuição inicial é regulada pelas orde-
nações implícitas na concepção de carrei-
Todos os valores sociais – a liberdade e ras abertas a talentos. (...) Essas ordena-
a oportunidade, a renda e a riqueza e
ções pressupõem um pano de fundo de
as bases sociais do auto-respeito – de-
vem ser distribuídos igualmente, a me-
igual liberdade (como especificado pelo
nos que uma distribuição desigual de primeiro princípio) e uma economia de
algum, ou de todos esses valores, seja mercado livre. Elas requerem uma igual-
para a vantagem de todos. dade formal de oportunidade no sentido
de que todos têm pelo menos os mesmos
A injustiça, então, consiste apenas direitos legais de acesso a todas as posi-
em desigualdades que não servem ao be- ções sociais privilegiadas. Porém, dado
nefício de todos. Sem dúvida, essa con- que não há nenhum esforço de preservar
cepção é extremamente vaga e exige in- uma igualdade ou semelhança de condi-
terpretação. 11 ções sociais, exceto à medida que isso é
Como um primeiro passo, suponha- necessário para preservar as instituições
mos que a estrutura básica da sociedade básicas* requeridas, a distribuição ini-
distribui certos bens primários, ou seja, cial de recursos**, em qualquer período
coisas que se presume que todo homem
racional deseje. Esses bens normalmente
têm um uso, seja qual for o plano racio- * N.de T. No original, background institutions.
nal de vida de uma pessoa. Para simplifi- **N. de T. No original, assets; ao longo do texto,
car, suponhamos que os principais bens asset também será traduzido como “dote”.
588 Laurence BonJour & Ann Baker

12 de tempo, é fortemente influenciada por as tendências mundiais de eventos eco-


O “sistema de liberdade na-
contingências naturais e sociais. A distri- nômicos e preserve as condições sociais
tural” é ao menos aproxima- buição existente de renda e de riqueza, necessárias para a igualdade equitativa
damente o sistema definido pela por exemplo, é o efeito cumulativo de dis- de oportunidade. Os elementos dessa es-
teoria do intitulamento de ­Nozick. tribuições anteriores de recursos naturais trutura são familiares o bastante, embora
A alegação de Rawls é de que a
distribuição da riqueza e de outras
– ou seja, talentos e habilidades naturais possa ser válido relembrar a importância
vantagens em tal sistema é injusta – à medida que esses foram desenvolvi- de evitar acumulações excessivas de pro-
porque ela reflete os resultados a dos ou não foram realizados, e o seu uso priedade e de riqueza, bem como de man-
longo prazo de distribuições de tenha sido favorecido ou desfavorecido, ter oportunidades iguais de educação para
talentos e habilidades naturais,
sendo tudo isso “arbitrário de um
ao longo do tempo, por circunstâncias todos. Chances de adquirir conhecimento
ponto de vista moral”, no sentido sociais e contingências sociais tais como e habilidades culturais não deveriam de-
de que não há nenhuma razão acidente e boa sorte. Intuitivamente, a pender da posição de classe de alguém;
moral por que uma pessoa deveria injustiça mais óbvia do sistema de liber- portanto, o sistema de escolas, seja públi-
ter tal talento enquanto outra não.
(Ele tem razão em afirmar que tal
dade natural é que ele permite que par- co ou privado, deveria ser planejado para
resultado é uma “injustiça óbvia”?) celas distributivas sejam impropriamente equalizar barreiras de classe.
influenciadas por tais fatores, tão arbitrá- Embora a concepção liberal pareça
rios de um ponto de vista moral. 12 claramente preferível ao sistema de liber-
13 A interpretação liberal, como me dade natural, intuitivamente ela ainda se
A principal diferença entre referirei a ela, tenta corrigir isso, acres- mostra defeituosa. Por um lado, mesmo
a “igualdade liberal” e o “sis- centando ao requerimento de carreiras que ela funcione perfeitamente em elimi-
tema de liberdade natural” é que, abertas aos talentos a condição adicional nar a influência de contingências sociais,
na “igualdade liberal”, as pessoas
com os mesmos bens naturais
do princípio de igualdade equitativa de ela ainda permite que a distribuição de
deveriam ter a mesma chance de oportunidade. O pensamento aqui é o de riqueza e de renda seja determinada pela
sucesso, a mesma chance para que não só as posições devem ser aber- distribuição natural de habilidades e ta-
carreiras e posições desejáveis. tas em um sentido formal, mas também lentos. 14
Isso não é assim sob a liberdade
natural por causa de fatores como
todos deveriam ter uma chance equita- Dentro dos limites permitidos pelas
oportunidades diferentes para a tiva* de atingi-las. À primeira vista, não ordenações básicas, parcelas distributivas
educação. fica claro o que se quer dizer, mas pode- são decididas pelo resultado da loteria
ríamos afirmar que aqueles com habilida- natural; e esse resultado é arbitrário de
14 des e talentos semelhantes deveriam ter uma perspectiva moral. Não há mais ra-
Mesmo que a influência oportunidades de vida semelhantes. Mais zão para permitir que a distribuição de
de “contingências sociais” especificamente, supondo que há uma renda e riqueza seja estabelecida pela
(coisas como status de família e
distribuição de recursos naturais, aqueles distribuição de dotes naturais do que
riqueza) fossem eliminadas sob a
igualdade liberal, as “chances de que estão no mesmo nível de talento e pela sorte histórica e social*. (...)
vida” de diferentes pessoas ainda habilidade e demonstram a mesma dis- Antes de voltar à concepção de
seriam influenciadas por suas ha- posição para fazer uso deles deveriam ter igualdade democrática, deveríamos aten-
bilidades e seus talentos naturais. as mesmas perspectivas de sucesso, inde- tar para a aristocracia natural. Nessa con-
Rawls tem razão em dizer que isso
é claramente injusto? pendentemente do seu lugar inicial no cepção, não é feita nenhuma tentativa de
sistema social. Em todos os setores da so- regular contingências sociais além do
ciedade, deveria haver basicamente pers- que é requerido por igualdade formal de
pectivas iguais de cultura e realização oportunidade, mas as vantagens de pes-
para todos aqueles que são semelhante- soas com dotes naturais maiores devem
mente motivados e dotados. As expectati- ser limitadas àquelas que promovem o
vas daqueles com as mesmas habilidades bem dos setores mais pobres da socieda-
15 e aspirações não deveriam ser afetadas de. O ideal aristocrático é aplicado a um
A ideia de “aristocracia por sua classe social. 13 sistema que é aberto, ao menos de um
natural” é talvez a menos A interpretação liberal dos dois prin- ponto de vista legal, e a situação melhor
clara das quatro alternativas de
Rawls. Nesse sistema, há somente
cípios busca, então, mitigar a influência daqueles que são favorecidos por ele é
igualdade “formal”, e não “equita- das contingências sociais e da sorte natu- considerada justa somente quando me-
tiva”, de oportunidade: assim, por ral sobre as parcelas de distribuição. Para nos seria possuído por aqueles de baixo
exemplo, aqueles provenientes realizar esse objetivo, é necessário impor se menos fosse dado àqueles de cima. 15
de contextos familiares melhores
condições estruturais básicas adicionais ao Dessa maneira, a ideia de noblesse oblige
terão uma chance maior de ser
bem-sucedidos, mas as suas sistema social. As ordenações de mercado é transferida para a concepção de aristo-
recompensas serão apenas tão livre devem ser postas em uma estrutura cracia natural.
grandes quanto é exigido para de instituições políticas e legais que regule
gerar o melhor resultado (em
termos absolutos, não relativos)
* N. de T. No original, historical and social for-
para aqueles que se encontram
em pior situação. * N. de T. No original, fair chance. tune.
Filosofia: textos fundamentais comentados 589
Ora, tanto a concepção liberal quan- peso a considerações destacadas pelo
to aquela da aristocracia natural são ins- princípio de reparação. Esse é o princípio
táveis. Uma vez que somos perturbados de que desigualdades imerecidas clamam
pela influência ou de contingências sociais por reparação*; dado que desigualdades
ou de acaso natural na determinação das de nascimento e dotes naturais são ime-
parcelas distributivas, estamos obrigados, recidas, essas desigualdades devem ser
após reflexão, a ficar incomodados pela in- compensadas de alguma maneira. Assim,
fluência do outro elemento. De um ponto pois, o princípio defende que, no intuito
de vista moral, os dois parecem igualmen- de tratar todas as pessoas com igualda-
te arbitrários. Assim, não importa o quan- de, para oferecer genuína igualdade de
to nos afastemos do sistema de liberdade oportunidade, a sociedade deve dar mais
natural, não podemos ficar satisfeitos com atenção àqueles com dotes naturais em
qualquer coisa que fique aquém da con- menor quantidade e àqueles nascidos nas
cepção democrática. (...) posições sociais menos favoráveis. A ideia
é reparar o desvio de contingências em
direção à igualdade. Na busca desse prin-
A igualdade democrática cípio, maiores recursos poderiam ser gas-
e o princípio de diferença tos na educação dos menos em vez dos
mais inteligentes, ao menos por um certo
Tal como a tabela sugere, chega-se período de vida, por exemplo, os primei-
à intepretação democrática ao combinar ros anos da escola. 17
o princípio de igualdade equitativa de Não obstante, o princípio de repa-
oportunidade com o princípio de diferen- ração, até onde é do meu conhecimento,
ça. Esse princípio remove a indetermina- não foi proposto como o critério único da
ção do princípio de eficiência ao especi- justiça, como o objetivo único da ordem
ficar uma posição particular a partir da social. Ele é plausível, tal como a maio-
qual as desigualdades sociais e econômi- ria desses princípios o é, como um prin-
cas da estrutura básica devem ser julga- cípio prima facie, um princípio que deve
das. Pressupondo a estrutura de institui- ser pesado na balança junto com outros
ções requerida pela liberdade igual e pela princípios. Por exemplo, devemos pesá-lo
igualdade equitativa de oportunidade, as em comparação com o princípio de im-
expectativas mais elevadas daqueles mais plementação do padrão médio de vida
bem-situados são justas se e somente se ou da promoção do bem comum. Porém,
elas operam como parte de um esquema quaisquer que sejam os outros princípios 16
que melhora as expectativas dos mem- que defendermos, as reivindicações de
Se os diferentes modos
bros menos favorecidos da sociedade. A reparação devem ser consideradas. Ele nos quais a igualdade
ideia intuitiva é que a ordem social não é pensado como representando um dos liberal e a aristocracia natural
deve estabelecer e assegurar as perspecti- elementos em nossa concepção de justi- são (alegadamente) melhorias
vas mais atraentes daqueles que estão em ça. Ora, o princípio de diferença não é, sobre a liberdade natural forem
combinados, teremos o princípio
melhor situação, a menos que fazer isso obviamente, o princípio de reparação. Ele da diferença: as desigualdades
sirva para a vantagem daqueles menos não exige que a sociedade tente equalizar são justificadas somente se fazem
afortunados. (...) 16 as desvantagens como se fosse esperado com que os membros menos
de todos que competissem, na mesma cor- privilegiados da sociedade fiquem
em melhor situação (porém, em
rida, em uma base equitativa. Contudo, o termos absolutos).
A tendência à igualdade princípio de diferença alocaria recursos
em educação, por exemplo, de maneira a 17
Quero concluir essa discussão sobre melhorar as expectativas de longo prazo
O “princípio de reparação”
os dois princípios ao explicar o sentido dos menos favorecidos. Se esse objetivo assevera que a sociedade
em que eles expressam uma concepção é atingido ao se dar maior atenção aos deveria compensar aqueles que
igualitária de justiça. Portanto, também mais bem-dotados, isso é permissível; de não estão tão bem-situados em
gostaria de antecipar a objeção ao princí- outra maneira, não o é. E, ao tomar essa termos de status familiar ou do-
tação natural, chegando a partir
pio de oportunidade equitativa de que ele decisão, o valor da educação não deveria
disso mais perto da igualdade
leva a uma sociedade meritocrática. No ser avaliado unicamente em termos de genuína de oportunidade.
intuito de preparar o caminho para fazer eficiência econômica e bem-estar social. pare
Isso parece correto? Por
isso, noto diversos aspectos da concepção Igualmente, se não mais importante, está exemplo, uma pessoa com
menos inteligência natural do que
de justiça que apresentei. outras merece ser compensada
Primeiramente, podemos observar pela sociedade por causa dessa
que o princípio de diferença dá algum * N. de T. No original, redress. situação?
590 Laurence BonJour & Ann Baker

18 o papel da educação em capacitar uma vesse no mesmo par que ser incapaz de
Rawls afirma alhures que
pessoa a desfrutar da cultura da sua so- aceitar a morte. A distribuição natural
isso significa somente que ciedade e tomar parte em suas questões não é nem justa nem injusta: tampouco
a distribuição de talentos, o fato e, dessa forma, proporcionar para cada é injusto que as pessoas tenham nascido,
de que diferentes pessoas têm ha- indivíduo um sentido seguro do seu pró- em uma sociedade, em alguma posição
bilidades diferentes e, frequente-
mente, complementares, deve ser
prio valor. particular. Esses são simplesmente fatos
tratada como um “bem comum”, Assim, embora o princípio de dife- naturais. O que é justo e injusto é o modo
não os próprios talentos (o que rença não seja o mesmo que o de repa- como as instituições lidam com esses fa-
aparentemente equivaleria a dizer ração, ele sem dúvida atinge algo desse tos. 19 As sociedades aristocráticas e de
que as outras pessoas têm uma
reivindicação sobre os talentos de
último princípio. Ele transforma os obje- castas são injustas porque elas fazem des-
uma dada pessoa). tivos da estrutura básica, de modo que o sas contingências a base referencial para
Mas é difícil evitar pensar esquema total de instituições não mais en- pertencer a classes sociais mais ou menos
que o princípio de dife- fatiza eficiência social e valores tecnocrá- fechadas e privilegiadas. A estrutura bási-
rença envolve ambas as ideias
– por que então as pessoas têm
ticos. O princípio de diferença represen- ca dessas sociedades incorpora a arbitra-
a permissão de beneficiar-se dos ta, com efeito, um acordo de considerar riedade encontrada na natureza. Todavia,
seus próprios talentos somente se a distribuição de talentos naturais como, não há nenhuma necessidade de que os
todos os demais se beneficiarem em alguns aspectos, um recurso comum homens se resignem a essas contingên-
também?
e de partilhar os benefícios econômicos e cias. O sistema social não é uma ordem
sociais maiores, tornados possíveis pelas imutável além do controle humano, mas
19 complementaridades dessa distribuição. um padrão de ação humana. Na justiça
18 Aqueles que foram favorecidos pela como equidade, os homens concordam
pare Pense novamente sobre
essa comparação básica: é natureza, não importa quem sejam, po- em valer-se dos acidentes da natureza e
injusto que a sociedade recom-
dem ter ganhos a partir da sua boa for- da circunstância social somente quando
pense pessoas porque ocorre que
elas nasceram em famílias “melho- tuna apenas em termos que melhorem proceder assim serve para o benefício
res”. É igualmente injusto permitir a situação daqueles que perderam tudo. comum. Os dois princípios são um modo
que aqueles com habilidades Os naturalmente favorecidos não devem equitativo de ir de encontro à arbitrarie-
maiores se beneficiem delas de
ganhar meramente porque são mais ta- dade da fortuna; e, embora sem qualquer
maneiras que não beneficiem
todos os demais? (Pense aqui em lentosos, mas só para cobrir os custos de dúvida sejam imperfeitas em outros as-
um escritor talentoso ou em um treino e de educação, assim como para pectos, as instituições que satisfazem es-
inventor.) Por que todos os demais fazer uso dos seus dotes de maneiras que ses princípios são justas.
têm uma reivindicação justa
ajudem também os menos afortunados. Um ponto adicional é que o princípio
quanto a se beneficiar dos seus
talentos? Ninguém merece a sua capacidade natu- de diferença expressa uma concepção de
ral maior nem merece um lugar inicial na reciprocidade. Ele é um princípio de mú-
sociedade que seja mais favorável. Porém, tuo benefício. Contudo, à primeira vista,
naturalmente, essa não é nenhuma razão ele pode mostrar-se imparcialmente ten-
para ignorar, muito menos para eliminar dencioso em direção aos menos favoreci-
essas distinções. Em vez disso, a estrutu- dos. Para considerar essa questão de um
ra básica pode ser ordenada de modo que modo intuitivo, suponhamos, para fins de
essas contingências operem para o bem simplicidade, que existem somente dois
dos menos afortunados. Assim, somos le- grupos na sociedade, um perceptivelmen-
vados ao princípio de diferença, caso de- te mais afortunado do que o outro. Sujei-
sejemos montar o sistema social de modo ta a essas restrições usuais (definidas pela
que ninguém ganhe ou perca a partir do prioridade do primeiro princípio e pela
seu lugar arbitrário na distribuição de do- igualdade equitativa de oportunidade),
tes naturais ou da sua posição inicial na a sociedade poderia maximizar as expec-
sociedade, sem dar ou receber vantagens tativas de qualquer um dos grupos, mas
compensatórias em troca. não de ambos, dado que podemos maxi-
Em vista dessas observações, po- mizar com respeito a um único objetivo
demos rejeitar o argumento de que a de cada vez. Parece claro que a sociedade
ordenação das instituições é sempre de- não deveria fazer o melhor que ela pode
feituosa porque a distribuição de talentos fazer em benefício daqueles inicialmente
naturais e as contingências da circuns- mais favorecidos; assim, se rejeitamos o
tância social são injustas, e essa injustiça princípio de diferença, devemos preferir
deve necessariamente transferir-se para maximizar alguma média ponderada das
as ordenações humanas. Ocasionalmen- duas expectativas. No entanto, se damos
te, essa reflexão é oferecida como uma qualquer peso aos mais afortunados, esta-
desculpa para ignorar a injustiça, como mos, por causa deles mesmos, atribuindo
se a recusa em aquiescer à injustiça esti- valor aos ganhos daqueles já mais favo-
Filosofia: textos fundamentais comentados 591
recidos pelas contingências naturais e so- básica da sociedade, deve ser planejado.
ciais. Ninguém tinha uma reivindicação De um ponto de vista apropriadamente
antecedente para ser beneficiado dessa geral, o princípio de diferença mostra-se
maneira, e maximizar uma média pon- aceitável tanto para os indivíduos mais
derada é, por assim dizer, favorecer duas favorecidos quanto para os menos favo-
vezes os mais afortunados. Portanto, os recidos. 21 Naturalmente, nenhum des-
mais favorecidos, quando veem a questão ses é, em termos estritos, um argumento
de uma perspectiva geral, reconhecem a favor do princípio, uma vez que, em
que o bem-estar de cada um depende de uma teoria do contrato, argumentos são
um esquema de cooperação social, sem o propostos do ponto de vista da posição
qual ninguém poderia ter uma vida satis- original. Contudo, essas considerações
fatória; eles reconhecem também que po- intuitivas ajudam a esclarecer o princípio
dem esperar a cooperação voluntária de e o sentido em que ele é igualitário.
todos somente se os termos do esquema
forem razoáveis. Assim, eles consideram ...
a si mesmos como já compensados, por
assim dizer, pelas vantagens às quais nin- Agora parece evidente, à luz dessas
guém (incluindo eles próprios) tinha uma observações, que a interpretação demo-
reivindicação anterior. Eles abandonam a crática dos dois princípios não levará a
ideia de maximizar uma média pondera- uma sociedade meritocrática. Essa forma
da e consideram o princípio de diferença de ordem social segue o princípio de car-
como uma base equitativa para regular a reiras abertas a talentos e faz uso da igual-
estrutura básica. 20 dade de oportunidade como um modo de 20
liberar as energias dos homens na busca
Aqui está a reposta de Rawls
... de prosperidade econômica e de domínio (de certo modo alterada a
político. Existe uma disparidade notória partir da primeira edição do livro,
Assim, é incorreto que indivíduos entre as classes superiores e inferiores como veremos na seleção seguin-
te) à questão de por que os ter-
com maiores dotes naturais e o caráter tanto em meios de vida quanto em direi-
mos da cooperação entre pessoas
superior que tornou possível o seu desen- tos e privilégios de autoridade organiza- com mais talentos e aquelas com
volvimento tenham direito a um esquema cional. A cultura das camadas mais pobres menos talentos deveria ser tal a
coooperativo que os capacite a obter até é empobrecida, enquanto aquela da elite ponto de gerar a máxima vanta-
gem para os menos talentosos,
mesmo benefícios adicionais de modos governante e tecnocrática é solidamente
em vez de um compromisso entre
que não contribuem às vantagens dos baseada no serviço dos propósitos nacio- os interesses dos dois grupos.
outros. Não merecemos o nosso lugar na nais de poder e de riqueza. A igualdade de
distribuição de dotes inatos, não mais do oportunidade significa uma chance igual
21
que merecemos o nosso lugar inicial na de deixar para trás os menos afortunados
sociedade. Que mereçamos o caráter su- na busca pessoal por influência e posição As pessoas com maiores
talentos naturais deveriam
perior que nos possibilita fazer o esforço social. Portanto, uma sociedade merito- ficar satisfeitas com o princípio
de cultivar as nossas possibilidades tam- crática é um perigo para as outras inter- de diferença? Elas concordarão
bém é problemático; afinal, tal caráter pretações dos princípios de justiça, mas com ele na posição original, assim
depende em boa medida de uma família não para a concepção democrática. Ora, Rawls está alegando, porque não
conhecem a sua própria situação
afortunada e de circunstâncias sociais no como recém vimos, o princípio de diferen- nesse sentido, mas isso poderia
início da vida para as quais não reivindi- ça transforma os objetivos da sociedade mostrar apenas que a posição
camos nenhum crédito. A noção de mere- em aspectos fundamentais. (...) original está erroneamente
cimento não se aplica aqui. Com certeza, concebida, que esse bocado de
conhecimento não deveria ser
os mais favorecidos têm um direito aos excluído.
seus dotes naturais, como qualquer ou- As circunstâncias da justiça
tro o tem; esse direito é coberto pelo pri-
meiro princípio sob a liberdade básica de As circunstâncias da justiça podem
proteger a integridade da pessoa. E assim ser descritas como as condições normais
os mais favorecidos têm direito* a tudo o sob as quais a cooperação humana é
que puderem adquirir em conformidade tanto possível quanto necessária. Assim,
com as regras de um sistema equitativo como notei no início, embora uma socie-
de cooperação social. O nosso problema dade seja um empreendimento coope-
é de que modo esse esquema, a estrutura rativo para mútuo benefício, ela é tipi-
camente marcada por um conflito, bem
como por uma identidade de interesses.
* N. de T. No original, are entitled. Há uma identidade de interesses, dado
592 Laurence BonJour & Ann Baker

que a cooperação social torna possível vantajosa entre elas seja possível, elas não
uma vida melhor para todos, melhor do obstante isso têm os seus próprios planos
que qualquer um teria se cada um fosse de vida. Esses planos ou concepções do
tentar viver unicamente por seus pró- bem levam-nas a ter diferentes objetivos e
22 prios esforços. 22 Há um conflito de in- propósitos e a fazer reivindicações confli-
Isso é claramente verdadei- teresses, uma vez que os homens não tantes sobre os recursos naturais e sociais
ro mesmo sobre os mais são indiferentes acerca do modo como os disponíveis. Além disso, embora os inte-
talentosos, sendo, então, uma das benefícios maiores produzidos mediante resses promovidos por esses planos não
razões de Rawls para pensar que
eles deveriam ficar satisfeitos com
a sua colaboração são distribuídos, pois, sejam tomados como sendo interesses no
a distribuição de benefícios que no intuito de perseguir os seus objetivos, eu, eles são os interesses de um eu que
resulta do princípio de diferença. cada um deles prefere uma parcela maior considera a sua concepção do bem como
Mas isso realmente diz algo para do que uma menor. Logo, princípios são válida de reconhecimento, a qual lança
a questão levantada na anotação
anterior?
necessários para escolher entre as várias reivindicações em causa própria como
ordenações sociais que determinam essa merecedores de satisfação. Também su-
divisão de vantagens e para subscrever ponho que os homens sofram de diversas
um acordo sobre as parcelas distributivas limitações de conhecimento, pensamen-
apropriadas. Essas exigências definem o to e juízo. O seu conhecimento é neces-
papel da justiça. As condições de fundo* sariamente incompleto, os seus poderes
que dão origem a essas necessidades são de raciocínio, memória e atenção são
as circunstâncias da justiça. sempre limitados e o seu juízo provavel-
Essas condições podem ser dividi- mente é distorcido pela ansiedade, pelo
das em dois tipos. Primeiro, existem as preconceito e por uma preocupação com
circunstâncias objetivas que tornam pos- as suas próprias questões. Alguns desses
sível e necessária a cooperação humana. defeitos originam-se de falhas morais, do
Segundo, muitos indivíduos coexistem egoísmo e da negligência; porém, em um
juntos ao mesmo tempo em um território grau elevado, eles são simplesmente par-
geográfico definido. Esses indivíduos são te da situação natural dos homens. Como
basicamente semelhantes em poderes fí- consequência, os indivíduos não só têm
sicos e mentais; ou, de qualquer modo, planos de vida diferentes, mas também
as suas capacidades são comparáveis no existe uma diversidade de crença filosó-
sentido de que ninguém dentre eles pode fica e religiosa, assim como de doutrinas
dominar o restante. Eles são vulneráveis políticas e sociais.
ao ataque, e todos são sujeitos a ter os
seus planos interrompidos pela força uni- ...
da dos outros. Finalmente, existe a con-
dição de escassez moderada, entendida
como cobrindo um amplo espectro de O véu de ignorância
situações. Recursos naturais e de outro
tipo não são tão abundantes a ponto de A ideia da posição original é estabe-
esquemas de cooperação tornarem-se su- lecer um procedimento equitativo de for-
pérfluos, nem são as condições tão duras ma que quaisquer princípios acordados
que empreendimentos frutíferos devam sejam justos. De algum modo, devemos
inevitavelmente soçobrar. Embora orde- anular os efeitos de contingências especí-
nações mutuamente vantajosas sejam ficas que põem os homens em divergên-
factíveis, os benefícios que elas produzem cia, deixando-nos tentados a explorar cir-
ficam aquém das exigências lançadas pe- cunstâncias sociais e naturais para a sua
23 los homens. 23 própria vantagem. No intuito de fazer
Somente em situações nas As circunstâncias subjetivas são os isso, eu afirmo que as partes estão situa-
quais essas condições ge- aspectos relevantes dos sujeitos de coope- das por detrás de um véu de ignorância.
rais são satisfeitas é que a justiça ração, ou seja, das pessoas que trabalham Elas não sabem como as várias alternati-
se torna tanto um valor social im-
juntas. Por isso, embora as partes tenham vas afetarão o seu próprio caso particu-
portante quanto um valor capaz
de ser razoavelmente atingido. As basicamente necessidades e interesses lar e estão obrigadas a avaliar princípios
diferenças fundamentais nesses semelhantes, ou necessidades e interes- unicamente com base em considerações
aspectos fariam da justiça ou algo ses de várias maneiras complementares, gerais.
de pouca importância ou virtual-
de modo que a cooperação mutuamente Supõe-se, então, que as partes não
mente impossível de ser atingida.
conhecem certos tipos de fatos particula-
res. Primeiro, ninguém sabe o seu lugar
* N. de T. No original, background conditions. na sociedade, a sua posição de classe ou
Filosofia: textos fundamentais comentados 593
o estatuto social; nem tem conhecimen- estejam desprovidas de informação sobre
to da sua sorte na distribuição de dotes os seus fins particulares, elas têm conhe-
e de habilidades naturais, bem como de cimento o bastante para hierarquizar as
sua inteligência e força. E, além disso, alternativas. Elas têm conhecimento de
tampouco alguém tem conhecimento da que, em geral, devem tentar proteger a
sua concepção do bem, dos aspectos par- sua liberdade, ampliar as suas oportuni-
ticulares do seu plano racional de vida, dades e alargar os seus meios para a pro-
ou mesmo dos traços especiais da sua psi- moção de suas metas, sejam essas quais
cologia, tais como a sua aversão ao risco forem. Guiadas pela teoria do bem e dos
ou a sua inclinação ao otimismo ou ao fatos gerais da psicologia moral, as suas
pessimismo. (...) deliberações não são mais um exercício
Então, tanto quanto possível, os de adivinhação. Elas são capazes de to-
únicos fatos particulares que as partes mar uma decisão racional no sentido ha-
conhecem é que a sociedade está sujei- bitual.
ta às circunstâncias da justiça e a tudo o
que isso implica. Toma-se por garantido, ...
contudo, que elas têm conhecimento dos
fatos gerais sobre a sociedade humana. Portanto, a suposição da racionali-
Elas entendem as questões políticas e os dade mutuamente desinteressada resulta
princípios da teoria econômica; elas têm nisto: as pessoas na posição original ten-
conhecimento da base da organização e tam tanto quanto possível, reconhecer
das leis da psicologia humana. Com efei- princípios que promovem o seu sistema
to, presume-se que as partes têm conhe- de fins. Elas fazem isso ao tentar obter
cimento dos fatos gerais – não importa para si mesmas o mais elevado índice
quais sejam – que afetam a escolha dos de bens sociais primários, já que isso as
princípios da justiça. (...) 24 capacita a promover a sua concepção do 24
bem mais efetivamente, não importa o Porque tal conhecimento
que ela venha a ser. As partes não bus- geral não permitirá que elas
A racionalidade das partes cam conferir benefícios ou impor danos tornem tendenciosa a escolha de
princípios em seu próprio favor.
umas às outras; elas não são movidas por
Afirmei até aqui que as pessoas na afeição ou rancor. Nem tentam levar van-
posição original são racionais. Contudo, tagem umas sobre as outras; elas não são
também assumi que elas não têm conhe- invejosas ou vaidosas. (...)
cimento da sua concepção do bem. Isso
significa que, embora tenham conheci-
mento de que têm algum plano racio- O raciocínio que leva aos
nal de vida, elas não têm conhecimento dois princípios da justiça
dos detalhes desse plano, os propósitos
e interesses particulares que se calcula ...
que ele promova. Como, então, pode-se
decidir quais concepções de justiça mais Consideremos agora o ponto de
lhes trazem vantagens? Ou devemos su- vista de alguém na posição original. Não
por que elas são reduzidas à mera adi- há nenhum modo em que ela conquiste
vinhação? Para ir ao encontro dessa di- vantagens especiais para si. E, por outro
ficuldade, postulo que elas aceitam (...) lado, não existem motivos para que ele
que normalmente preferem mais bens concorde com desvantagens especiais.
sociais primários do que menos bens so- Como não é razoável para ele esperar
ciais primários. 25 Naturalmente, pode mais do que uma parcela igual na divisão 25
ocorrer que, depois de removido o véu de bens primários sociais, nem é razoável “Bens sociais primários”
de ignorância, alguma delas, por motivos para ele concordar com menos, a atitu- são aqueles que serão
religiosos ou de outra natureza, possam, de sensata é reconhecer como o primeiro de valor para quase qualquer
um, não importa qual possa ser
com efeito, não mais querer esses bens. passo um princípio de justiça que requer a sua concepção do bem ou do
Todavia, do ponto de vista da posição uma distribuição igual. Com efeito, esse plano racional da vida: direitos,
original, é racional que as partes supo- princípio é tão óbvio, dada a simetria das liberdades e oportunidades, renda
nham que querem, de fato, uma parcela partes, que ele ocorreria a todos imedia- e riqueza.
maior, dado que, de qualquer modo, elas tamente. Assim, as partes começam com
não são obrigadas a aceitar mais se elas um princípio que requer liberdades bási-
não o desejam. Assim, embora as partes cas iguais para todos, bem como igualda-
594 Laurence BonJour & Ann Baker

de equitativa de oportunidade e divisão liberdades iguais pode ser defendida so-


igual de renda e de riqueza. mente quando é essencial mudar as con-
No entanto, mesmo mantendo fir- dições de civilização, de maneira que no
me a prioridade das liberdades básicas e devido curso essas liberdades possam ser
da igualdade equitativa de oportunidade, desfrutadas. (...) 27
não há nenhuma razão por que esse re- A partir dessas observações, parece
conhecimento inicial deveria ser defini- que os dois princípios são no mínimo uma
tivo. A sociedade deveria levar em conta concepção plausível da justiça. A ques-
a eficiência econômica e as exigências de tão, contudo, é como se deve argumentar
organização e tecnologia. Se existem de- a favor deles mais sistematicamente. (...)
sigualdades em renda e riqueza, assim No intuito de ver de que modo isso pode
como diferenças em autoridade e graus ser feito, é útil como um artifício heurís-
de responsabilidade, que funcionam para tico pensar em princípios como a solução
deixar a todos em melhor condição na máximo-mínima* para o problema da jus-
comparação com o padrão de referência tiça social. Há uma relação entre os dois
da igualdade, por que não permiti-las? princípios e a regra máximo-mínima**
26 26 (...) Então, as partes [recusariam] para a escolha em condição de incerte-
Tais desigualdades pode- concordar com essas diferenças só se elas za. Isso é evidente a partir do fato de que
riam ser necessárias para ficassem decepcionadas pelo mero co- os dois princípios são aqueles que uma
dar àqueles com talentos espe- nhecimento ou pela percepção de que os pessoa escolheria para o projeto de uma
ciais o incentivo para desenvolvê-
-los e empregá-los, aumentando, a
outros estão em melhor situação; porém, sociedade na qual o seu inimigo é quem
partir daí, a produção social total e suponho que elas decidem como se não deve atribuir-lhe o seu lugar. A regra má-
fazendo com que todos, mesmos fossem movidas por inveja. Desse modo, a ximo-mínima nos diz para hierarquizar
os menos favorecidos, ficassem estrutura básica deveria permitir essas de- alternativas pelos seus piores resultados
melhor situação em termos
absolutos.
siguladades na medida em que melhoras- possíveis: devemos adotar a alternativa
sem a situação de todos, incluindo aquela cujo pior resultado é superior aos pio-
27 dos menos favorecidos, contanto que fos- res resultados das outras. 28 As pessoas
sem consistentes com a liberdade igual e na posição original não admitem, é cla-
Encontra-se aqui uma
exceção para a ideia de que
com a oportunidade equitativa. Como as ro, que o seu lugar inicial na sociedade
o primeiro princípio (a liberdade partes começam a partir de uma divisão é decidido por um oponente malevolen-
igual) tem prioridade completa igual de todos os bens primários sociais, te. Como eu observo a seguir, elas não
sobre o segundo princípio (o aqueles que menos se beneficiam têm, por deveriam raciocinar com base em falsas
princípio da diferença).
Tente pensar em casos
assim dizer, um poder de veto. Assim, che- premissas. O véu de ignorância não vio-
pare gamos ao princípio de diferença. Tomando la essa ideia, dado que uma ausência de
possíveis ou em condições
nas quais essa exceção poderia a igualdade como a base de comparação, informação não é desinformação. Porém,
ocorrer. aqueles que ganharam mais devem fazê-lo que os dois princípios de justiça seriam
em termos que sejam justificáveis àqueles escolhidos se as partes fossem forçadas
28
que ganharam o mínimo. a proteger a si mesmas contra tal con-
Máximo-mínimo é um prin- Por meio de um raciocínio desse tingência explica o sentido no qual essa
cípio de decisão bastante tipo, as partes podem chegar aos dois concepção é a solução máximo-mínima.
conservador, avesso ao risco. A
alegação de Rawls é a de que
princípios de justiça em ordem serial. E essa analogia sugere que, se a posição
esse princípio, ainda que não seja Não tentarei justificar essa ordenação original foi descrita de um modo que seja
geralmente o melhor princípio de aqui, mas as observações que seguem po- racional para as partes adotarem a atitu-
escolha racional, é o correto a ser dem transmitir a ideia intuitiva. (...) de conservadora expressa por essa regra,
seguido no caso muito especial da
posição original.
A prioridade da liberdade signifi- um argumento conclusivo pode de fato
ca que sempre que as liberdades básicas ser construído a favor desses princípios.
podem ser efetivamente estabelecidas, Obviamente, a regra máximo-mínima
uma liberdade menor ou desigual não não é, em geral, um guia apropriado para
pode ser trocada por uma melhoria no escolhas em condição de incerteza. Con-
bem-estar econômico. É somente quando tudo, ela é válida apenas em situações
as circunstâncias sociais não permitem o marcadas por certos traços especiais. O
estabelecimento efetivo desses direitos meu propósito, então, é mostrar que um
básicos que se pode admitir a sua limita- bom exemplo pode ser construído a favor
ção; e, mesmo nesse caso, tais restrições dos dois princípios, com base no fato de
podem ser aceitas somente na medida
em que elas são necessárias para prepa-
rar o caminho para o momento em que * N. de T. No original, maximin solution.
não são mais justificadas. A negação das ** N. de T. No original, maximin rule.
Filosofia: textos fundamentais comentados 595
que a posição original tem essas caracte- três características especiais em mente.
rísticas em um nível bastante elevado. Para começar, o véu de ignorância exclui
Agora, parece haver três caracterís- todo o conhecimento de probabilidades.
ticas centrais de situações que dão plausi- As partes não têm nenhuma base para
bilidade a essa regra incomum. A primei- determinar a natureza provável da sua
29
ra é seguinte: já que a regra não toma sociedade ou o seu lugar nela. Logo, elas
nenhuma consideração sobre as probabi- não têm nenhuma base para cálculos de Essa segunda característica
lidades das circunstâncias possíveis, deve probabilidade. Elas devem, portanto, le- é claramente satisfeita na
situação da posição original? Com
haver alguma razão para que se descarte var em consideração o fato de que a sua relação à escolha do princípio de
prontamente as estimativas dessas proba- escolha de princípios deveria parecer ra- diferença, ela equivale a dizer que
bilidades. (...) Assim deve ser o caso, por zoável a outros, em particular aos seus os ganhos possíveis que poderiam
exemplo, em que a situação é tal que um descendentes, cujos direitos serão pro- resultar ao afastar-se daquele
princípio (ficar em uma situação
conhecimeto das probabilidades é impos- fundamente afetados por ela. Essas consi- extremamente boa, melhor do
sível ou, na melhor das hipóteses, extre- derações são fortalecidas pelo fato de que que poderia ser justificado pelo
mamente incerto. Nesse caso, é irrazoável as partes têm muito pouco conhecimento princípio de diferença) não são
não ser cético quanto aos cálculos proba- sobre os estados possíveis de sociedade. muito importantes para qualquer
pessoa com discernimento.
bilísticos, a menos que não haja nenhuma Elas não só são incapazes de conjecturar
saída, particularmente se a decisão é uma sobre as probabilidades das diversas cir-
decisão fundamental, que precisa ser jus- cunstâncias possíveis, como também não 30
tificada com relação a outros. podem dizer muito sobre quais são as Grande parte disso diz
A segunda característica que sugere circunstâncias possíveis, e muito menos respeito a afastamentos do
a regra máximo-mínima é a seguinte: a enumerá-las ou prever as consequências primeiro princípio (de liberdade).
pessoa que escolhe tem uma concepção do de cada alternativa disponível. (...) Contudo, os afastamentos do
princípio de diferença também
bem tal que ela se preocupa muito pouco, Diversos tipos de argumentos a fa-
poderiam levar a resultados terrí-
se é que o faz em alguma medida, com o vor dos dois princípios de justiça ilustram veis, tais como a fome e a pobreza
que poderia ganhar acima do estipêndio a segunda característica. Então, se pode- extrema.
mínimo que ela, de fato, pode assegurar, mos afirmar que esses princípios ofere- Essas são obviamente
consequências indesejá-
uma vez seguindo a regra máximo-míni- cem uma teoria aplicável* da justiça social
veis, mas está realmente claro
ma. Para ela, não vale a pena arriscar-se e que são compatíveis com demandas ra- que nenhuma pessoa racional se
por causa de uma vantagem adicional, zoáveis de eficiência, nesse caso tal con- arriscaria a elas na busca dos tipos
especialmente quando pode acontecer-lhe cepção garante um mínimo satisfatório. de ganhos possíveis indicados na
anotação anterior?
de perder muito do que lhe é importan- Pode haver, após reflexão, poucas razões
te. Essa última condição conduz à terceira para tentar fazer algo melhor. (...) 29
característica, a saber, que as alternativas Não precisamos considerar aqui a
rejeitadas têm resultados que dificilmente verdade dessa reivindicação. De momen-
podem ser aceitos. A situação envolve gra- to, esse argumento serve somente para
ves riscos. Naturalmente, essas caracterís- ilustrar o modo como as concepções de
ticas operam da forma mais efetiva quando justiça podem permitir resultados que as
em combinação. A situação paradigmática partes não serão capazes de aceitar. E,
para seguir a regra máximo-mínima se dá tendo a alternativa pronta dos dois prin-
quando todas as três características são re- cípios que asseguram um mínimo satisfa-
alizadas no grau mais elevado. tório, parece não ser sábio, se não irracio-
Façamos um breve resumo da na- nal, que elas corram o risco de que essas
tureza da posição original, tendo essas condições não sejam realizadas. 30

Questões para Discussão

1. Considere duas pessoas, uma de família o “véu de ignorância” e por que nenhum
de classe alta e outra de classe baixa. Des- desses princípios pareceria corresponder
creva que tipo de princípio de justiça cada intuitivamente a uma correta abordagem
uma delas preferiria, com base no seu au- da justiça. Como o véu de ignorância evita
tointeresse, caso elas não estivessem sob que elas favoreçam esses princípios com

* N. de T. No original, workable theory.


596 Laurence BonJour & Ann Baker

base em seu autointeresse? Que tipo de mais de um resultado possível e explique


princípio elas poderiam adotar, enquanto o que cada um desses princípios lhe diria
estivessem submetidas ao véu de ignorân- para fazer em cada um desses casos.
cia, segundo o qual as pessoas deveriam Um modo de formular tal questão é atra-
ser tratadas de acordo com a sua classe vés de uma matriz teórica de decisão,
social? O princípio que elas poderiam es- como a que se segue para uma escolha
colher nessa situação parece a você, leitor, esquemática (em que você não tem ne-
o mais nitidamente justo? Por que sim ou nhum conhecimento de quais condições
por que não? realmente possui):
2. Consideremos agora a situação compa-
rável entre duas pessoas com diferentes Escolha 1 Escolha 2 Escolha 3
níveis de talentos naturais ou habilidades, Condição 1 100 5 90
por exemplo, uma mais e outra menos in- Condição 2 -100 10 85
teligente. Descreva quais princípios relati- Condição 3 -100 5 0
vos à alocação de ganhos resultantes da
inteligência que cada uma dessas pessoas Nesse caso, o máximo-mínimo selecionaria
escolheria, com base em seu autointeres- a escolha 2 e o máximo-máximo seleciona-
se, caso não estivesse sob o véu de igno- ria a escolha 1. Algum desses princípios de
rância. Nesse caso, está claro que nenhum tomada de decisão é claramente o correto
desses princípios pode ser considerado em tais casos – ou até mesmo em qualquer
um princípio aceitável de justiça? Segun- caso? Você poderia pensar em outros prin-
do Rawls, que princípio pode ser adotado cípios para tomar decisões que pareces-
na posição original para definir a alocação sem melhores? Algum desses princípios
de ganhos resultantes da inteligência? seria aplicável na posição original?
Por quê? Do ponto de vista da justiça, esse 4. A ideia básica do argumento de Rawls para
princípio é claramente preferível a outros a escolha do princípio da diferença (refleti-
princípios que cada indivíduo escolheria da no princípio máximo-mínimo) consiste
fora da posição original? em que o que é racional a se fazer quando
3. Rawls alega que o princípio máximo-mí- se depara com uma escolha fundamental
nimo é o princípio de decisão correto a (uma escolha com muitos efeitos em toda
ser seguido na posição original. Contraste a sua vida) é agir com segurança, em vez
esse princípio com o princípio máximo- de arriscar ficar muito melhor podendo
-mínimo, segundo o qual as escolhas de- ficar muito pior. Você pensa que é óbvio
veriam ser hierarquizadas de acordo com que essa seja uma escolha correta, que
seus melhores resultados possíveis. Este é nenhum indivíduo racional teria vontade
um princípio extremamente otimista, vol- de arriscar? Pode ser que isso seja uma
tado para a aceitação de riscos. Conside- questão de temperamento – que algu-
re as diferentes situações nas quais você mas pessoas tenham vontade de arriscar
deve fazer uma escolha e qualquer das e outras não? Que efeitos isso teria em um
alternativas [disponíveis] pode conduzir a argumento baseado na posição original?

Robert Nozick
Nesta seleção, também extraída de Anarquia, estado e utopia, Nozick oferece suas
objeções à abordagem de Rawls sobre a justiça. Ele coloca em dúvida se o princípio
da diferença é realmente equitativo* para aqueles que têm melhores dotes naturais e
questiona se Rawls tem algum bom argumento para afirmar que tais dotes devam ser
tratados da maneira exigida por seus princípios. Nozick sugere igualmente que, em uma
situação mais limitada, em que as graduações [de características] fossem atribuídas de
maneira equitativa, a concepção de Rawls geraria resultados incertos (embora Ralws
afirme com firmeza que a sua concepção não se aplica a tais situações).

* N. de T. No original, fair.

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