Você está na página 1de 32

5

Moralidade e problemas morais

A s seleções deste capítulo são concernentes a questões que pertencem à ética ou à


filosofia moral: o estudo filosófico do que torna as ações moralmente corretas ou erradas
(e também de outros tipos de valor moral que pertencem a coisas como fins ou caráter). A
primeira e mais extensa seção principal do capítulo está voltada a enfoques rivais de prin-
cípios ou padrões que determinam a aceitabilidade moral, a correção ou a incorreção*
das ações. A segunda e mais breve seção principal está voltada a enfoques que, de modos
diferentes, desafiam a própria existência da objetividade ou de padrões morais interpes-
soais universalmente corretos que todos os enfoques da primeira seção admitem existir.

Qual é a melhor teoria da moralidade:


utilitarismo, concepções deontológicas ou ética da virtude?

As seleções desta seção explicam e discutem três concepções rivais acerca do con-
teúdo da moralidade: uma que apela para as consequências de uma ação; uma que apela
para a natureza intrínseca de uma ação (de um modo que não faça menção às conse­
quências) e também para os direitos morais; uma que pergunta se uma ação seria ou não
realizada por uma pessoa que tem virtude moral. Dado que ver como uma concepção
moral aplica-se a questões concretas ajuda a entendê-la e a avaliá-la, cada uma das três
subseções inclui também um ou mais exemplos de tal aplicação para cada concepção.
(Para facilitar a comparação entre essas concepções, vamos nos concentrar somente em
duas questões morais, matar a fome e praticar o aborto, com duas seleções contrastantes
discutindo cada uma delas.)

Utilitarismo: a moralidade depende das consequências

A primeira e inicialmente mais óbvia dessas concepções é o utilitarismo: a concep-


ção de que a aceitabilidade moral de uma ação depende da utilidade (o valor ou a bon-
dade em relação a desejos ou preferências humanas) que ela produz quando comparada
com outras alternativas. (O utilitarismo é a principal versão do consequencialismo: a
concepção segundo a qual a correção moral ou a aceitabilidade de uma ação é determi-
nada por suas consequências; outras concepções consequencialistas apelam para valores
que incluem mais do que simplesmente a utilidade.) A versão mais direta do utilitarismo
é o utilitarismo de ato: a concepção de que uma ação moralmente correta em qualquer
situação de escolha é aquela que, dentre as alternativas disponíveis, produz a maior
utilidade no todo (para todos os que são afetados por ela num período indefinidamente
longo). Jeremy Bentham apresenta uma versão plena do utilitarismo de ato hedonista, a
versão histórica mais proeminente do utilitarismo, de acordo com a qual a utilidade que
torna as ações boas (ou más) é simplesmente o prazer ou a felicidade (contrastadas com
a dor e a infelicidade) que elas produzem. John Stuart Mill oferece uma versão revisada e
mais sutil do utilitarismo de ato hedonista, que reconhece, entre outras coisas, diferentes
qualidades (em oposição apenas a quantidades) de prazer e felicidade.

* N. de T. No original, wrongness.
Filosofia: textos fundamentais comentados 393
Muitos pensam que o utilitarismo de ato enfrenta sérios contraexemplos: casos
em que a conformação ao princípio do utilitarismo de ato levaria a ações que parecem
inaceitáveis de um ponto de vista intuitivo, sendo os mais importantes de tais exem-
plos aparentes violações da justiça. Esse problema motivou alguns utilitaristas a optar
por uma versão diferente do utilitarismo: o utilitarismo de regra, segundo o qual

a) a ação moralmente correta em dada situação é determinada por um conjunto de


regras gerais e
b) o conjunto correto de regras é aquele cuja observância geral leva à maior utilidade.

Assim, a ideia é que, se cada um seguir uma regra como “nunca minta” isso pode
produzir mais utilidade no todo mesmo que a conformação com essa regra tenha pro-
duzido, em alguns casos específicos, menos utilidade. J.J.C. Smart discute essas duas
versões do utilitarismo afirmando que não há nenhum argumento essencial em favor
do utilitarismo de regra, desde um ponto de vista utilitarista. Bernard Williams oferece
outras críticas influentes ao utilitarismo. Finalmente, Peter Singer aplica uma versão
do utilitarismo à questão da obrigação moral de matar a fome.
Deve-se também mencionar que, enquanto as versões hedonistas do utilitarismo
são as mais proeminentes historicamente, há dois outros enfoques da utilidade que são
aceitos por algumas versões do utilitarismo: segundo o que é algumas vezes chamado
de utilitarismo ideal, há muitos tipos de bondade intrínseca, coisas que são boas em
si mesmas ou valiosas por si mesmas em contraste com ser bom apenas como um meio
para alguma outra coisa (instrumentalmente boa), sendo o prazer ou a felicidade
apenas uma – ou talvez duas – delas (o conhecimento, em algumas versões, é outra).
O princípio fundamental do utilitarismo ideal é que a soma de todas essas coisas boas
deve ser maximizada, seja por cada ação (na versão de ato), seja pelo conjunto de
regras (na versão de regra). Um terceiro e mais recente desenvolvimento de uma
concepção de utilidade define-a em termos da satisfação das preferências das pessoas,
sendo a ação moralmente correta ou o conjunto de regras aquela que maximiza a sa-
tisfação de tais preferências (permitindo também considerações sobre a importância
ou o peso que elas têm para aqueles que as possuem). Quando usamos o termo “utili-
tarismo” neste livro (sem a qualificação “hedonista”), referimo-nos à concepção geral
do utilitarismo, cujas versões específicas são a hedonista, a do utilitarismo ideal e a
do utilitarismo de preferências. (Em vez disso, alguns filósofos recentes usam o termo
“consequencialismo” para se referir a essa concepção geral.)

Concepções deontológicas: a moralidade depende de deveres e direitos

A segunda concepção importante é uma teoria moral deontológica, de acordo


com a qual a correção ou a incorreção de uma ação é determinada não por suas con-
sequências, mas sim pelo tipo de ação que ela é – cuja afirmação central é a de que
certos tipos de ação são moralmente inaceitáveis seja a que resultados eles poderiam
levar em termos de utilidade. Aqui, a concepção de longe mais influente é a de Imma-
nuel Kant, tanto que a principal alternativa ao utilitarismo é geralmente referida como
uma teoria moral kantiana. A seleção de Kant oferece um enfoque desse tipo de posi-
ção, centrando-se nas supostamente equivalentes versões do que ele vê como sendo o
princípio fundamental da moralidade: o imperativo categórico. Onora O’Neill, então,
discute o contraste entre o utilitarismo e as concepções kantianas em relação a uma
questão moral específica: novamente, a questão de matar a fome.
Uma ideia deontológica que desempenha uma função explícita relativamente
menor na concepção de Kant, mas que se tornou proeminente nas discussões morais
recentes, é a ideia de direitos morais. O que torna essa noção um conceito moral
deontológico é que direitos são normalmente tomados como sobrepondo-se a consi-
derações de utilidade, no sentido de que é moralmente errado violar o direito de uma
pessoa a algo mesmo se, ao fazê-lo, produzem-se os melhores resultados no todo. A
ideia de que as pessoas possuem direitos também parece refletir a concepção de Kant
de que elas devem ser tratadas como fins em si mesmos. David T. Ozar explica e desen-
394 Laurence BonJour & Ann Baker

volve a ideia de direitos morais, enquanto Judith Jarvis Thomson discute a moralidade
do aborto a partir de uma perspectiva que enfatiza os direitos.

Ética da virtude: a moralidade depende de traços de caráter

Um terceiro tipo de concepção moral tem origens muito antigas, mas recente-
mente tem sido reabilitado como uma concepção central (e está, mais do que as outras
duas concepções, ainda em processo de elaboração e desenvolvimento). Essa concep-
ção centra-se na ideia das virtudes morais: traços de caráter moralmente valiosos
ou admiráveis como a coragem, a temperança, a caridade, e assim por diante. Há
duas importantes versões de uma ética da virtude, sendo que uma delas faz uma afir-
mação substancialmente mais forte e controversa do que a outra. A concepção mais
fraca apresenta-se menos como uma rival do que como um suplemento às concepções
utilitarista e kantiana: ela insiste no fato de que há importantes questões morais que
vão além do moralmente correto ou do curso de ação aceitável. Uma dessas questões
é que tipo de pessoa alguém deve ser, com a ideia da virtude moral desempenhando
um papel importante na resposta. Em contraste, uma segunda e mais ambiciosa ver-
são da ética da virtude tenta apresentar um enfoque alternativo de padrão para uma
ação moralmente correta ou aceitável: uma ação moralmente correta é tal que seria
desempenhada (na situação em questão) por uma pessoa idealmente virtuosa. O ex-
certo de Aristóteles oferece o enfoque historicamente mais influente da natureza da
virtude moral. Rosalind Hursthouse defende uma versão da segunda e mais ambiciosa
versão da ética de virtudes, contrastando-a com as concepções utilitarista e kantiana.
Uma segunda seleção de textos de Hursthouse discute, então, como a ética de virtudes
trataria de questões referentes ao aborto.

Investigação moral: o método do equilíbrio reflexivo

Há outro tópico que precisa ser discutido aqui e que é especialmente relevante
para a discussão de questões morais específicas e concretas. Existe um método geral de
pensar sobre questões morais que, nos dias atuais, tornou-se amplamente aceito entre
os filósofos, ao menos em suas linhas gerais. Esse método está motivado por dois fatos
gerais que também foram amplamente reconhecidos: o primeiro é que reivindicações
morais são raramente, se é que o são alguma vez, óbvias e diretamente verdadeiras
para que possam ser simplesmente aceitas com base nisso; o segundo é que, embora
fatos não morais possam ser relevantes de várias maneiras para as questões éticas, a
verdade de afirmações morais é sempre logicamente independente de tais fatos não
morais e incapaz de ser estabelecida apelando-se para eles.
Como pode, então, a verdade ou a correção de afirmações morais ser avaliada em
bases racionais? O ponto de partida aqui é a percepção de que, como já foi observado,
embora tais afirmações sejam raramente óbvias ou autoevidentemente verdadeiras,
muitas vezes temos opiniões de vários graus de força sobre a sua verdade, opiniões
essas que não são inferidas a partir de outras opiniões morais, mas são, em vez disso,
diretas ou imediatas. Assim, por exemplo, ao observar um caso simples de roubo (ou,
melhor ainda, ao ter tal caso descrito com alguns detalhes), a maioria das pessoas
julgaria imediatamente e não inferencialmente que a ação do ladrão é errada. (Elas
também poderiam inferir essa conclusão a partir de princípios mais gerais, mas isso
não seria normalmente a única ou mesmo a principal base para a crença resultante.)
Essas opiniões morais imediatas, não inferenciais, passaram a ser referidas como in-
tuições morais.
O ponto de partida para o método do equilíbrio reflexivo são as intuições morais
que pertencem tanto a casos específicos, reais ou inventados, quanto a questões de ní-
veis de generalidade maior. Não há dúvida de que temos tais intuições e de que muitas
delas são objeto de acordo substancial entre as diferentes pessoas. Contudo, também
não há dúvida de que as intuições de diferentes pessoas sobre a mesma questão moral
podem estar em conflito umas com as outras – e ainda, interessantemente, que as in-
Filosofia: textos fundamentais comentados 395
tuições de uma única pessoa sobre diferentes questões e em diferentes níveis podem
conflitar umas com as outras. Desse modo, mesmo que se admita que as pessoas têm
alguma capacidade de intuir verdades morais e, portanto, que as suas intuições morais
cuidadosamente consideradas têm alguma pretensão de estarem corretas, é óbvio que
nem todas essas intuições são corretas. A esperança, entretanto, é que ao pesar refleti-
damente tais intuições umas contra as outras, descartando aquelas que parecem estar
em conflito com muitas outras, e talvez refinando ou ajustando outras para evitar tais
conflitos, pode-se chegar a um conjunto coerente no todo dessas alegações com vários
graus de generalidade. A ideia é, então, a de que a concepção completa desse tipo que
melhor preserva as intuições mais claras e mais fortes (e também elimina muitas das
intuições que se deve rejeitar como erradas ou de alguma forma confusas) pode ter
a mais alta reivindicação de ser correta. A situação na qual tal resultado foi obtido é
chamada de equilíbrio reflexivo: “equilíbrio” porque os tipos de conflito que tornam as
concepções morais de alguém instáveis e sujeitas à mudança foram, ao menos no mo-
mento, eliminados. A sugestão é a de que o principal alvo do filósofo ao pensar sobre
questões morais é procurar e (assim se espera) encontrar esse equilíbrio reflexivo.
Talvez ninguém possa afirmar seriamente ter alcançado tal resultado de um
modo completamente satisfatório. Todavia, apelos implícitos a esse método estão pre-
sentes nos escritos que se seguem com intuições sobre vários tipos de casos e exemplos
sendo citados como razões pró ou contra concepções morais particulares.

Desafios à moralidade: relativismo e egoísmo

Como foi observado brevemente antes, todas as três concepções de moralidade


discutidas até aqui compartilham a pressuposição de que há verdades morais que são
universal e objetivamente aplicáveis, em relação às quais as ações de pessoas em dife-
rentes sociedades e períodos da história podem ser corretamente valoradas. Implícita
nessa discussão também está a ideia de que, obviamente, uma pessoa que age em seu
próprio interesse pode estar fazendo algo errado e de que as reivindicações da morali-
dade geralmente se sobrepõem às do interesse próprio. As leituras da seção final deste
capítulo discutem concepções que questionam essas duas pressuposições.

Relativismo

Muitas pessoas, especialmente estudantes, mas não apenas eles, desconfiam do


objetivismo moral: a ideia de que há verdades morais objetivas e necessárias. Para
muitas delas, a alternativa preferível é alguma forma de relativismo moral. Essa é a
concepção

a) de que há certamente verdades morais de algum tipo, mas também


b) de que a verdade moral é relativa a algo, cuja versão mais familiar é em relação à
cultura de uma pessoa, em vez de ser objetiva e universal.

Aqui, a parte (a) é crucial, pois há uma terceira alternativa ao objetivismo moral
e ao relativismo que poucas pessoas consideram palatável: o niilismo moral, a con-
cepção de que não há verdades morais de nenhum tipo, e a moralidade é apenas um
erro ou uma ilusão. Com certeza, o niilista moral não nega o fato óbvio de que as pes-
soas têm opiniões morais. A sua afirmação é somente que nenhuma dessas opiniões são
de algum modo verdadeiras e, por isso, não há uma boa razão pelo qual as escolhas
de alguém devam ser guiadas ou restringidas por elas. Assim, um requisito para uma
versão significativa do relativismo moral é que ele não resulte no niilismo moral. Isso
requer que o relativismo moral ofereça algum tipo de explicação de como e por que
as suas verdades morais relativas são ainda genuinamente obrigatórias para aqueles
aos quais elas supostamente se aplicam – e tem de fazer isso sem apelar para alguma
verdade objetiva, universal, do tipo que a concepção repudia. (Assim, por exemplo, o
relativista cultural deve explicar por que as pessoas são genuinamente obrigadas a se
396 Laurence BonJour & Ann Baker

conformar aos princípios morais sustentados por sua cultura e fazer isso sem adotar
um princípio objetivo de que qualquer pessoa deveria conformar-se à moralidade de
sua cultura.)
É um fato curioso sobre o presente estado de discussão moral que, apesar da po-
pularidade das concepções relativistas entre os não filosófos, poucos filósofos pensam
que elas sejam plausíveis. Concordando ou não, você deveria tentar entender as razões
dessa rejeição filosófica generalizada do relativismo. Muitas das mais importantes des-
sas razões são apresentadas na seleção feita por James Rachels, que se concentra no
relativismo cultural.

Egoísmo

Um desafio diferente à ideia de verdades morais objetivas e universais é posto


pelo egoísmo ético. Aqui, há duas concepções distintas, mas que estão relacionadas.
Primeiro, há o egoísmo psicológico, a concepção de que, como uma questão psico-
lógica de fato, ninguém é capaz de procurar algo senão os seus próprios interesses
egoístas. Segundo, há o egoísmo ético, a concepção de que ninguém está moralmente
obrigado a agir de um modo que seja contrário aos seus próprios interesses (o argu-
mento sendo que uma pessoa não pode ser moralmente obrigada a fazer algo que é
psicologicamente impossível) – e talvez, com menos plausibilidade, a concepção de
que as pessoas são moralmente obrigadas a procurar os seus melhores interesses. O
egoísmo ético, em qualquer dessas versões, resultaria, se correto, de algum modo em
uma verdade moral, mas significaria que não há verdades morais objetivas do tipo fa-
miliar que restringe o comportamento egoísta das pessoas que apelam para o interesse
e os direitos dos outros. A seleção de Joel Feinberg oferece uma crítica detalhada ao
egoísmo psicológico, que Feinberg sustenta parecer plausível somente como resultado
de confusões de vários tipos. (Se o egoísmo psicológico é rejeitado, então não há pa-
drão racional de nenhum tipo para o egoísmo ético.)
A seleção final, extraída do mais famoso diálogo de Platão, A República, levanta
uma questão que é distinta, porém está relacionada com o egoísmo ético: se é ou
não do interesse próprio de uma pessoa agir de modo a conformar-se à moralidade.
A afirmação do egoísmo psicológico era, com efeito, que o comportamento moral é
impossível se as demandas da moralidade conflitam com aquelas do autointeresse. A
surpreendente tese de Platão é a de que tal conflito não surge, não porque o egoísmo
ético é verdadeiro, mas sim porque conformar-se às demandas de uma moralidade não
egoísta (como aquelas concepções discutidas na primeira seção) é de fato melhor para
a pessoa como indivíduo – ou, mais especificamente, para a saúde da sua alma.

Qual é a melhor teoria da moralidade?


Utilitarismo: a moralidade depende das consequências

Jeremy Bentham
Jeremy Bentham (1948-1832) foi um filósofo moral, político e jurídico, assim como
o principal fundador do enfoque utilitarista da ética. A preocupação principal de Ben-
tham era com a prática jurídica e com as reformas sociais em termos utilitaristas, e ele
se tornou um líder de um importante grupo de reformistas (os “Radicais da Filosofia”),
cuja influência levou a significativas mudanças no direito britânico, particularmente na
área do direito penal. Na seleção a seguir, a partir de sua mais importante obra, Bentham
apresenta, explica e defende uma versão hedonista do utilitarismo de ato, baseado no
princípio da utilidade, que ele considera como a única base razoável para os julgamentos
morais.
Filosofia: textos fundamentais comentados 397

Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação1

O princípio da utilidade III. Por utilidade entende-se a pro-


priedade, em qualquer objeto, pela qual
I. A natureza colocou a humani- ele tende a produzir benefício, vantagem,
dade sob o governo de dois mestres so- prazer, bem ou felicidade (todas eles aqui
beranos, a dor e o prazer. É somente a significam a mesma coisa) ou (o que
partir deles que podemos apontar o que novamente é a mesma coisa) prevenir o
devemos fazer, assim como determinar o acontecimento de dano, dor, mal ou infe-
que iremos fazer. De um lado, o padrão licidade para a parte cujo interesse é con-
do correto e do errado e, do outro lado, siderado: se a parte é a comunidade em
a cadeia de causas e efeitos estão ligados geral, então a felicidade da comunidade;
ao seu trono. Eles nos governam em tudo se é o indivíduo particular, então a felici-
o que fazemos, em tudo o que dizemos, dade daquele indivíduo. 2
em tudo o que pensamos: cada esforço IV. O interesse da comunidade é
que fazemos para livrarmo-nos dessa uma das expressões mais gerais que pode
sujeição servirá apenas para demonstrá- ocorrer na linguagem da moral. Não ad-
-la e confirmá-la. Somente em palavras mira, então, que muitas vezes se perca o
o homem pode pretender adjurar de tal seu significado. Quando ele tem signifi-
império, mas na realidade permanecerá cado, então é este: a comunidade é um
sujeito a ele sempre. O princípio da utili- corpo fictício, composto por pessoas indi-
dade2 reconhece essa sujeição e a consi- viduais que são consideradas como cons-
dera como fundamento do sistema, cujo tituindo os seus membros. O que é, então,
objetivo consiste em construir o edifício o interesse da comunidade? A soma dos
da felicidade por meio da razão e do interesses dos muitos membros que a
direito. Os sistemas que tentaram ques- compõem.
tioná-la tratam das palavras em vez do V. É inútil falar do interesse da co-
bom senso, do capricho em vez da razão, munidade sem entender o que é o in-
teresse do indivíduo. Uma coisa é tida 1 Comentário
das trevas em vez da luz.
Porém, chega de metáforas e decla- como promovendo, ou como favorecendo Como ficará mais claro
mações: não é através de tais meios que a o interesse de um indivíduo quando ela posteriormente, a parte em
questão é a comunidade inteira.
ciência moral deve ser melhorada. tende a aumentar a soma total de seus
II. O princípio da utilidade é o fun- prazeres ou, o que resulta no mesmo, a
damento do presente trabalho: portanto, diminuir a soma total de suas dores. 2 Pare e pense
será apropriado de início apresentar um VI. Uma ação, portanto, pode ser
enfoque explícito e determinado do que tida como estando em conformidade com pare Bentham claramente
admite que todos os tipos
é entendido por ele. Por princípio da uti- o princípio da utilidade, ou, por amor à de prazer e felicidade resultam
lidade entende-se aquele princípio que brevidade, à utilidade (entendida em re- essencialmente na mesma coisa,
aprova ou desaprova cada ação de acor- lação à comunidade em geral) quando a assim como o que diz respeito à
tendência maior é aumentar a felicidade dor e à infelicidade. É plausível
do com a tendência que ela parece ter
pensar assim?
de aumentar ou diminuir a felicidade da da comunidade do que qualquer outra
parte cujo interesse está em questão: ou, tem de diminuí-la. 3
o que é o mesmo dito em outras palavras, VII. Uma medida do governo (a 3
promover aquela felicidade ou opor-se qual não é senão um tipo particular de O que Bentham prova-
a ela. 1 Digo de cada ação e, portanto, ação desempenhada por uma pessoa em velmente quer dizer aqui
não somente de cada ação de um indi- particular ou pessoas) pode ser tida como (como foi sugerido na nota de
víduo privado, mas de cada medida do estando em conformidade com ou sendo rodapé anterior) é que a ação
moralmente correta é aquela cuja
governo. ditada pelo princípio da utilidade quando tendência em favor da felicidade
em contraposição à infelicidade
é maior do que as alternativas
disponíveis: a ação que maximiza
a soma média de prazer ou felici-
dade sobre a dor ou a infelicidade.
1 Extraído de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation (1823) (Observe que, numa situação
2 Nota do autor, julho de 1822: a essa denominação foi acrescentado recentemente, ou substituído, o suficientemente difícil, essa soma
princípio (...) da máxima felicidade. (...) aquele princípio que afirma que a máxima felicidade daque- pode ainda ser negativa – isto
les cujo interesse está em questão é o correto e próprio, e o único correto, próprio e universalmente é, todas as alternativas podem
desejável fim da ação humana: da ação humana em cada situação e particularmente naquela de um produzir mais infelicidade do que
funcionário ou de um conjunto de funcionários que exerce os poderes do governo. (...) felicidade.)
398 Laurence BonJour & Ann Baker

a tendência que tem de aumentar a fe- que ele tenha consciência disso.3 Seus
licidade da comunidade é maior do que argumentos, se eles provam algo, não é
qualquer outra de diminuí-la. que o princípio está errado, mas que, de
acordo com as aplicações que ele supõe
...
que podem ser feitas, está mal-aplicado. É
X. De uma ação que está em confor- possível para um homem mover a Terra?
midade com o princípio da utilidade po- Sim, mas ele deve antes encontrar outra
de-se sempre afirmar que é ou uma ação Terra e ficar sobre ela.
que deve ser feita ou, no mínimo, que
...
não é uma ação que não pode ser feita.
Alguém pode dizer ainda que é correto
que ela seja feita ou, no mínimo, que não
Capítulo II
é errado que ela deva ser feita: que ela é a
ação correta ou, no mínimo, que ela não
4 é uma ação errada. 4 Quando são assim Dos princípios contrários
interpretadas, as palavras dever, correto e ao da utilidade
Por que Bentham diz que
uma ação que está em errado, e outras desse tipo, têm um sig-
conformidade com o seu princípio nificado; quando é de outro modo, elas I. Se o princípio da utilidade for um
pode ser meramente aquela “que não têm. princípio correto para deixar-se governar,
não é uma ação que não pode e em todos os casos, isso é algo que se
ser feita”? Ele parece admitir aqui XI. A correção desse princípio foi
a possibilidade de que possam alguma vez formalmente contestada? segue do que foi dito há pouco, que qual-
existir duas ou mais ações que são Parece que sim, por aqueles que não sa- quer princípio que difere dele deve ser
igualmente boas do ponto de vista bem o que dizem. É suscetível de alguma em todo caso necessariamente errado.
da utilidade. Nesse caso, cada uma Portanto, para provar que qualquer outro
delas seria permitida (seria aquela prova direta? Parece que não, pois aquilo
que “não é uma que não pode ser que é usado para provar todo o resto não princípio é errado, não é necessário nada
feita”), mas nenhuma delas em pode, por sua vez, ser provado: a cadeia mais do que mostrar isso que ele é, um
particular seria requerida (“aquela de provas deve ter seu começo em algum princípio cujos ditames são em um ponto
que deve ser feita”). ou outro diferentes daqueles do princípio
lugar. Apresentar tal prova é tão impossí-
vel quanto desnecessário. 5 da utilidade: enunciá-lo é refutá-lo. 6
XII. Não que não exista ou nunca ...
5
tenha existido alguma criatura humana,
O que Bentham parece estar por mais estúpida ou perversa que seja, XI. Entre os princípios adversos ao
dizendo aqui é que o princí- da utilidade, aquele que nesses dias pa-
pio da utilidade é autoevidente,
que não tenha deferido a esse princípio
em muitas ocasiões de sua vida, talvez rece ter maior influência em questões go-
que alguém pode ver que ele é
verdadeiro apenas compreenden- na maioria das ocasiões de sua vida. Pela vernamentais é o que pode ser chamado
do o conteúdo do princípio. própria natureza de sua constituição, na de princípio da simpatia e da antipatia.
maior parte das ocasiões, os homens em Por princípio da simpatia e da antipatia,
geral adotam esse princípio, mesmo sem eu entendo o princípio que aprova ou
6 pensar nele: se não para ordenar as suas desaprova certas ações não por sua ten-
Novamente, a pressuposi- próprias ações, ao menos para julgá-las, dência de aumentar a felicidade, nem por
ção parece ser (?) a de que e também a dos outros homens. Ao mes- sua tendência de diminuir a infelicidade
o princípio da utilidade é autoe-
mo tempo, não têm havido muitos, talvez da parte cujo interesse está em questão,
videntemente verdadeiro. Assim, mas meramente porque um homem sen-
Bentham pode apelar para ele ao mesmo entre os mais inteligentes, que de-
refutar as concepções contrárias. monstrem disposição para adotar o prin- te-se disposto a aprovar ou desaprová-
cípio pura e simplesmente sem reserva. -las, defendendo que a aprovação ou a
Alguns até chegaram a contestá-lo em al- desaprovação é uma razão suficiente por
gumas ocasiões, seja por não entenderem si mesma e rejeitando a necessidade de
7 sempre como aplicá-lo, seja por conta de procurar por algum fundamento extrín-
um preconceito ou outro que eles tinham seco. (...) 7
O princípio da simpatia e
da antipatia é o nome dado medo de examinar ou não tiveram a co- ...
por Bentham à concepção moral ragem de adotar. Pois este é o material de
que avalia a correção ou não das
ações simplesmente apelando
que é feito o homem: em princípio e na
para a inclinação imediata de prática, na direção correta ou errada, a
3 “O princípio da utilidade (ouvi dizer) é um prin-
aprová-las ou desaprová-las – o mais rara de todas as qualidades huma-
que é algumas vezes referido nas é a coerência. cípio perigoso: é perigoso em certas ocasiões con-
como intuição moral. Como já sultá-lo”. Isso equivale a dizer o quê? Que não
XIII. Quando um homem tenta com- está em conformidade com a utilidade consultar
vimos, a sua concepção é que
não há base racional a não ser a bater o princípio da utilidade, é com ra- a utilidade? Em resumo, que consultá-lo não é
utilidade de tais inclinações. zões derivadas do próprio princípio, sem consultá-lo.
Filosofia: textos fundamentais comentados 399
XIII. Ao analisar o catálogo das dos outros um inimigo e, se as leis assim
ações humanas (diz um defensor des- o permitem, um criminoso. Esta é uma
se princípio), a fim de determinar quais das circunstâncias pelas quais a espécie
delas são marcadas pelo selo da desapro- humana distingue-se (não tanto para
vação, você precisa apenas aconselhar-se vantagem própria) do mundo dos ani-
com os seus próprios sentimentos: seja lá mais.
o que você está propenso a condenar, é XVII. Não é, todavia, incomum para
errado por essa mesma razão. O mesmo esse princípio errar no caso da indulgên-
ocorre com a punição: em que medida ela cia. Um dano próximo e perceptível move
é adversa à utilidade, ou se ela é adversa a antipatia. Um dano remoto e impercep-
à utilidade, é uma questão que não faz tível, embora não menos real, não tem
diferença. A mesma proporção é também efeito. (...)
utilizada para a punição: se você odeia
...
muito, puna muito; se você odeia pouco,
puna pouco. Puna, enfim, tanto quanto
você odeia. Se você não odeia, não puna.
Os sentimentos nobres da alma não de- Capítulo IV
vem ser sobrecarregados e tiranizados
pelos rígidos e implacáveis ditames da O valor de uma quantidade
utilidade política. de prazer ou dor
XIV. Os vários sistemas que têm sido
formados no que diz respeito ao padrão I. Os fins que o legislador deve ter
do certo e do errado podem todos ser re- em mente são os prazeres e o ato de
duzidos ao princípio da simpatia e da an- evitar a dor. Por isso, é conveniente que
tipatia. Uma explicação única serve para compreenda o seu valor. Os prazeres e
todos. Eles buscam artifícios para evitar as dores são os instrumentos que ele tem
a obrigação de apelar para algum padrão para trabalhar: deve, portanto, entender
externo e para fazer o leitor aceitar o sen- a sua força, ou seja, qual é o seu valor.
timento do autor ou a opinião como uma II. Para a pessoa considerada em si
razão por si mesma. As frases diferem, mesma, o valor do prazer e da dor, consi- 8 Reafirmação/Resumo
mas o princípio é o mesmo.10 8 derado por si mesmo, será maior ou me- Esta importante nota de
nor de acordo com as seguintes quatro rodapé lista uma variedade
... circunstâncias: de modos de formular o que Ben-
tham vê como essencialmente o
XVI. O princípio da simpatia e da mesmo apelo a inclinações ou in-
antipatia está mais apto a errar no que 1. Sua intensidade. tuições morais não argumentadas
diz respeito à severidade. Ele defende 2. Sua duração. e fundamentalmente irracionais.
que se deva aplicar punição em muitos 3. Sua certeza ou incerteza. pare
(Bentham está certo em
afirmar que todos eles
casos em que não se merece nenhuma; 4. Sua proximidade ou distância. 9
equivalem à mesma coisa?)
em muitos casos em que se merece al-
guma punição, ele é a favor de aplicar III. Essas são as circunstâncias que 9
mais do que se merece. Não há inciden- devem ser levadas em conta ao estabe- As duas primeiras são as
te imaginável, mesmo que seja trivial e lecer o prazer ou a dor considerando-se características mais óbvias
esteja muito longe do dano, para o qual cada um deles por si. Contudo, quando no que diz respeito à utilidade
o princípio não encontre uma base para o valor de um prazer ou de uma dor for ou não dos prazeres e das dores:
quão intenso eles são e quanto
punição. Qualquer diferença no gosto, considerado para estipular a tendência eles duram. “Certeza e incerteza”
qualquer diferença na opinião; seja so- de qualquer ato pelo qual eles são produ- pertencem realmente ao nosso
bre um assunto, seja sobre outro. Não zidos, há duas outras circunstâncias que conhecimento que o prazer ou
existe desacordo algum que a perseve- devem ser tomadas em consideração. São a dor vão resultar da ação em
questão, e não da dor e do prazer
rança e a contenda não transformem em elas: em si mesmos. Bentham está
algo sério. Cada qual se torna aos olhos apontando para o fato óbvio de
1. Sua fecundidade, ou a probabilidade que podemos basear uma decisão
que ela tem de ser seguida de sensa- somente no que acreditamos
que vai resultar. “Proximidade ou
ções do mesmo tipo, isto é, prazeres se
distância” tem a ver com quão
10 É bastante curioso observar a variedade de in- é um prazer; dores se é uma dor. próximo o resultado em questão
venções que os homens têm feito e a variedade 2. Sua pureza, ou a probabilidade que está no tempo. Bentham parece
de frases que eles têm produzido para esconder- ela tem de não ser seguida de sensa- sugerir que um prazer ou uma
-se do mundo e, se possível, de si próprios – esta dor temporalmente distante deve
mui geral e, por isso, mui perdoável autossufi-
ções do tipo oposto, isto é, dores se é o
contar menos do que aquele que
ciência. prazer; prazeres se é a dor. 10 vai ocorrer logo.
400 Laurence BonJour & Ann Baker

Essas duas últimas, todavia, dificil- 5. some, de um lado, os valores de todos


10 mente podem ser consideradas proprie- os prazeres e, de outro lado, todas as
Como Bentham continua
dades do prazer e da dor em si mesmos. dores. Se a balança tender para o lado
afirmando, “fecundidade” Portanto, elas não devem, no sentido es- do prazer, indicará a boa tendência do
e “pureza” não são qualidades trito, ser consideradas no estabelecimento ato no todo no que diz respeito aos
próprias dos prazeres e das dores. do prazer ou da dor. A rigor, elas devem interesses de cada pessoa individual;
Seria mais claro afirmar aqui que
todas as consequências de uma
ser consideradas propriedades do ato ou se tender para o lado da dor, indicará
ação em termos de prazer e dor de outro evento pelo qual o prazer ou a a má tendência dele no todo; 11
devem ser contadas ao avaliá-la, dor foram produzidos. Do mesmo modo, 6. leve em consideração o número de pes-
incluindo obviamente prazeres só devem ser consideradas na avaliação soas cujos interesses parecem estar em
e dores que são causados por
prazeres e dores anteriores.
da tendência de tal ato ou evento. jogo e repita o procedimento anterior
IV. Para um número de pessoas em para cada uma delas. Some os números
relação às quais o valor de um prazer ou que expressam a boa tendência do ato
11
de uma dor é considerado, ele será maior tem com respeito a cada individuo em
Assim, Bentham admite ou menor de acordo com as circunstân- relação ao qual a tendência é boa no
que todos os prazeres e
todas as dores para um certo
cias: a saber, as seis precedentes; viz. todo. Faça isso novamente com respei-
indivíduo são comensuráveis: que to a cada indivíduo em relação ao qual
os valores positivos e negativos 1. Sua intensidade. a tendência é má no todo. Faça o ba-
que eles representam podem ser 2. Sua duração. lanço que, se estiver do lado do prazer,
combinados numa totalidade.
É sugerido aqui e tornado mais
3. Sua certeza ou incerteza. indicará a boa tendência geral do ato
claro nos próximos parágrafos que 4. Sua proximidade ou distância. com respeito ao número total ou co-
esses valores devem ser pensados 5. Sua fecundidade. munidade de indivíduos em questão;
em termos numéricos. 6. Sua pureza. se estiver do lado da dor, indicará a má
tendência geral com respeito à mesma
12 E outra, a saber: comunidade. 12
Ele também admite, de
forma mais controversa, que 7. Sua extensão, isto é, o número de pes- VI. Não se pode esperar que esse
os valores positivos e negati- soas para as quais se estende, ou (em processo seja feito a rigor antes de cada
vos pertencentes às diferentes
outras palavras) quem é afetado pelo julgamento moral ou para cada operação
pessoas podem ser combinados
em uma totalidade expressa prazer ou pela dor. legislativa ou jurídica. Ele pode, entretan-
numericamente. to, ser sempre mantido e, na medida em
V. Para fazer uma avaliação exata da que o processo real for seguido nas oca-
13 tendência de qualquer ato, pelo qual os siões que se aproximam dele, na mesma
interesses de uma comunidade são afeta- medida tal processo se tornará exato. 13
Levado adiante em casos
dos, proceda do seguinte modo. Comece VII. O mesmo processo também é
reais no sentido estrito,
esse processo requereria muito com qualquer pessoa cujos interesses pa- aplicável ao prazer e à dor, não impor-
tempo e esforço (se ele pudesse recem ser mais imediatamente afetados ta de que forma eles apareçam nem por
ser feito – ver a Questão para pelo ato e leve em consideração: qual nome sejam distinguíveis: ao prazer,
Discussão 2). Isso dispendioso
se ele é chamado de bom (que é propria-
e ineficiente, estando errado de
acordo com o próprio princípio da 1. o valor de cada prazer distinguível mente a causa ou o instrumento do pra-
utilidade, pois os recursos envol- que parece ser produzido por ele em zer) ou de proveitoso (que é um prazer
vidos produziriam mais prazer ou primeira instância; distante ou a causa ou o instrumento de
mais evitariam a dor se usados de 2. o valor de cada dor que parece ser um prazer distante), ou de conveniência,
outro modo do que aquele que é
obtido em se buscando encontrar produzida por ele em primeira instân- vantagem, benefício, recompensa, felici-
a melhor ação com total precisão. cia; dade, e assim por diante; à dor, se ela é
3. o valor de cada prazer que parece ser chamada de má (que corresponde ao
produzido por ele depois do primeiro. contrário de bom) ou de prejuízo, incon-
Isso constitui a fecundidade do primei- veniência, desvantagem, perda, infelicida-
ro prazer e a impureza da primeira de, e assim por diante.
dor; VIII. Esta não é uma teoria nova
4. o valor de cada dor que parece ser ou infundada e também não é inútil. Em
produzida por ele depois do primeiro. tudo isso não há nada a não ser aquilo
Isso constitui a fecundidade da primei- com que as práticas da humanidade são
ra dor e a impureza do primeiro pra- conformáveis sempre que os homens têm
zer; uma visão clara sobre seus interesses.
Filosofia: textos fundamentais comentados 401
Uma certa propriedade, um terreno por não pode encontrar tal coisa, mas que,
exemplo, é valioso em que bases? Segun- todavia, ele tem um entendimento que
do a avaliação dos prazeres de todos os poderá dar conta de tudo muito bem.
tipos que ela permite ao homem ter, e o Esse entendimento, ele diz, é o padrão
que é a mesma coisa, das dores de todos do correto e do errado, pois ele lhe diz
os tipos que ela permite evitar. No entan- isso ou aquilo. Todos os homens bons
to, o valor de tal propriedade é univer- e sábios entendem o que ele faz e, se o
salmente entendido como aumentando entendimento de outros homens dife-
ou decaindo de acordo com o período de re em algum ponto do dele, pior para
tempo que um homem tem, com a cer- eles, pois é um sinal certo de que são
teza ou incerteza de estar possuindo-a, ou falhos ou corruptos.
da proximidade ou não do tempo que ele 4. Outro homem diz que há uma regra
virá a tê-la. Quanto à intensidade dos pra- do correto, eterna e imutável, e que tal
zeres que um homem pode derivar dela, regra do correto comanda isso e aqui-
isso nunca é considerado, porque depen- lo. Então, ele começa a expressar seus
de do uso que cada pessoa particular sentimentos sobre qualquer coisa de
pode vir a fazer dela, o qual não pode ser mais elevada e esses sentimentos (você
estimado até que os prazeres particulares deve admitir como dado) são as múlti-
que ela poderá extrair ou as dores parti- plas faces da eterna regra do correto.
culares que ela poderá evitar através dela 5. Outro homem, ou talvez o mesmo ho-
forem trazidos à tona. Pela mesma razão, mem (não interessa), diz que há cer-
ela também não pensa na fecundidade ou tas práticas conformes e outras con-
na pureza desses prazeres. trárias à Adequação das Coisas. Ele
então lhe diz, a seu bel-prazer, quais
...
práticas são conformes e quais são
1. Um homem diz que tem uma coisa contrárias: exatamente como aconte-
feita com o propósito de lhe dizer o ce quando ele gosta de uma prática e
que é certo e o que é errado, e isso é repudia outra.
chamado de senso moral. E assim ele 6. Uma grande multidão de pessoas con-
vai trabalhar e diz que tal coisa é certa tinuamente fala da Lei da Natureza, e
e tal coisa é errada – por quê? “porque elas então seguem apresentando-lhe
meu senso moral me diz isso”. os seus sentimentos sobre o que é cer-
2. Outro homem chega e altera a frase, to e o que é errado. Esses sentimentos,
deixando fora moral e colocando no você deve entender, são os muitos ca-
lugar comum. Ele então lhe diz que o pítulos e seções da Lei da Natureza.
seu senso comum ensina-lhe o que é 7. Algumas vezes, ao invés da expressão
certo e o que é errado tão seguramen- Lei da Natureza, você tem, Lei da Ra-
te quanto o senso moral fez. Ele diz: zão, Razão Correta, Justiça Natural,
entendo por senso comum um senso Equidade Natural, Boa Ordem. Qual-
de um tipo ou outro que é possuído quer uma delas servirá muito bem, e
por toda a humanidade – o senso da- esta última é muito usada na política.
queles cujo senso não é igual ao do As três últimas são mais toleráveis do
autor deve ser jogado fora e não tem que as outras porque não são muito
valor. Essa invenção mostra-se melhor mais do que meras frases: elas insis-
do que a outra, pois o senso moral, tem, porém debilmente, em ser vistas
sendo uma coisa nova, pode levar um tal como muitos padrões positivos de
homem a sentir-se mal sem ser capaz si mesmas, parecendo satisfeitas em
de encontrá-lo. Contudo, o senso co- ser tomadas, ocasionalmente, como
mum é tão antigo quanto a criação, frases que expressam a conformida-
e não há homem que não se sinta en- de da coisa em questão com o padrão
vergonhado de ser acusado de não tê- próprio, não importa qual seja. (...)
-lo tanto quanto seus vizinhos. (...)
3. Outro homem vem e diz que a respei- É a partir do princípio da antipatia
to do senso moral que ele certamente que tais e tais atos são frequentemente
402 Laurence BonJour & Ann Baker

reprovados por serem não naturais: a que ele se presta para expressar é a dis-
prática de expor crianças, estabelecida posição da pessoa que está falando disso:
entre os gregos e romanos, era uma prá- a disposição em que se encontra a pessoa
tica não natural. Quando significa algo, para que esteja com raiva ao pensar nele.
“não natural” significa “incomum” e as- Ele merece a sua raiva? Muito provavel-
sim significa algo, embora nada para o mente sim; porém, se esse é o caso ou
presente propósito. Todavia, aqui ele não não, é uma questão que só pode ser cor-
significa tal coisa, pois a frequência de retamente respondida a partir do princí-
tais atos é talvez a grande reclamação. pio da utilidade.
Portanto, não significa algo, ao menos
nada que esteja no próprio ato. Tudo a ...

Questões para Discussão

1. Bentham parece considerar o princípio da cidade) para muitos indivíduos diferentes.


utilidade como sendo autoevidentemente (Experimente pensar em um exemplo seu,
correto. Será que isso significa algo mais específico, bastante detalhado.) Há algum
do que o fato de que ele (e muitos outros) modo de chegar ao valor total para cada
tem uma inclinação forte ou uma intuição ação, para todos os indivíduos diferentes
a favor do princípio? Se é assim, Bentham envolvidos, através da combinação de to-
parece estar apelando para o próprio prin- dos os tipos de prazer e dor diferentes (ou
cípio da simpatia ou da antipatia que ele felicidade e infelicidade) numa totalidade
quer rejeitar. Há algum modo de avaliar – especialmente se as consequências são
afirmações morais que não apele, direta indefinidas em um futuro a ser considera-
ou indiretamente, para tais inclinações do?
morais ou intuições? (Ver a discussão so- 4. Eis um problema mais específico para tais
bre o método do equilíbrio reflexivo na cálculos: suponha que uma alternativa de
introdução deste capítulo.) ação leve à morte de uma ou mais pessoas,
2. Considere uma escolha entre duas ações, enquanto a outra não leva. Como a morte
A e B, admitindo que somente a sua pró- deve ser considerada no cálculo? Quanto
pria utilidade está em questão. A ação A prazer ou felicidade deve ser considerado
envolve sair com amigos, comer pizza, be- para compensar a morte de alguém (ou
ber cerveja e ir a um concerto, mas tam- quanta dor de outros tipos é equivalente
bém implica gastar bastante, dirigir num a ela)? Há alguma resposta a tal questão
trânsito pesado, e assim por diante. A que seja clara e defensável?
ação B envolve ficar em casa com seu(sua) 5. Um valor moral que é frequentemente
companheiro(a), comer a comida que visto como sendo importante é a justiça
você mesmo preparou, beber limonada, (ou a equidade). Que papel desempenha
ver um filme na TV a cabo e relaxar com a justiça, se é que ela desempenha algum,
pouco esforço ou gasto. (Você pode pre- na avaliação utilitarista de cursos de ação
cisar ajustar os exemplos para adaptá-los alternativos? Suponha que uma ação pro-
aos seus desejos e gostos particulares.) duza certa quantidade de utilidade posi-
Quão plausível é pensar que os vários tiva (prazer ou felicidade), que é dividida
prazeres e dores (incluindo vários tipos justamente entre os membros de uma co-
de desconforto) envolvidos em cada um munidade relevante, enquanto a segunda
desses casos podem ser combinados em ação produz uma quantidade de utilidade
duas totalidades de valores que são ra- que é levemente maior, mas que é desfru-
zoavelmente precisas e que podem ser tada por um grupo pequeno de pessoas,
comparadas numericamente uma com a tal que a maioria dos membros da comu-
outra? nidade recebe muito pouco. Qual ação
3. Quão factível é o cálculo utilitarista mais será aparentemente preferida de acordo
amplo que Bentham descreve? Suponha com o princípio da utilidade? Será este o
que você esteja escolhendo entre dois resultado correto? (Este é um apelo à in-
diferentes cursos de ação, cada um dos tuição moral.) Você pode pensar em algu-
quais produz uma variedade de prazeres ma resposta a essa objeção em favor do
e dores (ou estados de felicidade ou infeli- utilitarismo?
Filosofia: textos fundamentais comentados 403

John Stuart Mill


John Stuart Mill (1806-1873) foi um filósofo britânico que fez importantes contribui-
ções para muitas áreas da filosofia, incluindo lógica, ética, filosofia política e epistemolo-
gia. Seu pai, James Mill, foi um seguidor próximo de Bentham, e John Stuart foi educado
como um utilitarista. Na seção seguinte, Mill defende uma versão do utilitarismo hedo-
nista, mas afasta-se de Bentham por colocar a qualidade dos prazeres, juntamente com
a quantidade, na avaliação utilitarista. A discussão de Mill também apresenta algumas
passagens que parecem mover-se na direção de um utilitarismo de regras. Mill apresen-
ta ainda uma controversa “prova” do princípio da utilidade.

Utilitarismo5

Capítulo I na prática ou até que ponto as crenças


morais da humanidade têm sido viciadas
Observações gerais ou tornadas incertas pela ausência de
qualquer reconhecimento de um padrão
Há poucas circunstâncias entre as último implicaria uma investigação e crí-
que formam a presente condição do co- tica das doutrinas éticas passadas e pre-
nhecimento humano que sejam tão dife- sentes. Seria, todavia, fácil mostrar que,
rentes do que se poderia esperar, ou mais qualquer que tenha sido a firmeza ou a
reveladoras do estado de atraso no qual consistência que essas crenças morais
ainda se encontra a especulação sobre tenham alcançado, isso se deve a uma
matérias muito importantes, do que o influência tácita de um padrão não reco-
pequeno progresso que tem sido feito na nhecido. Embora a não existência de um
decisão da controvérsia a respeito do cri- primeiro princípio não reconhecido tenha
tério de correto e incorreto. Desde o iní- tornado a ética um guia não seguro para
cio da filosofia, a questão que diz respeito a consagração dos sentimentos reais dos
ao summum bonum ou, o que é a mesma homens, ainda assim, como sentimentos
coisa, que está relacionada com os fun- humanos, seja de atração, seja de aver-
damentos da moralidade, foi considera- são, eles são fortemente influenciados
da o problema principal do pensamento por aquilo que supõem ser os efeitos das
especulativo, tem ocupado os intelectos coisas sobre a sua felicidade. O princípio
mais talentosos e os dividido em seitas da utilidade, ou, como Bentham mais
e escolas, levando a uma vigorosa guer- tarde denominou, o princípio da maior
ra entre umas e outras. Depois de mais felicidade, teve uma grande influência
de dois mil anos, as mesmas discussões em formar as doutrinas morais mesmo
continuam, e os filósofos ainda são clas- daqueles que desdenhosamente rejeitam
sificados nos mesmos catálogos; nem os a sua autoridade. (...)
pensadores nem a humanidade em geral Na presente ocasião, vou tentar,
parecem estar mais próximos da unani- sem uma discussão maior com as outras
midade sobre o assunto do que quando teorias, contribuir com algo para o en-
o jovem Sócrates escutava o velho Protá- tendimento e a apreciação da teoria “uti-
goras e afirmava (se o diálogo de Platão litarista” ou da “felicidade” e apresentar
relata uma conversa real) a teoria do uti- uma prova que lhe cabe. É evidente que
litarismo contra a moralidade popular do não pode ser uma prova no sentido or-
chamado sofista. 1 dinário e popular do termo. Questões 1
sobre fins últimos não são suscetíveis
... A referência é ao diálogo de
de prova direta. Não importa o que seja Platão chamado Protágoras.
Investigar até que ponto os maus provado como sendo bom, deve sê-lo ao
efeitos dessa deficiência foram mitigados ser mostrado que é um meio para algu-

5 Extraído de Utilitarism (1861).


404 Laurence BonJour & Ann Baker

ma coisa admitida como sendo boa sem – é considerado por eles como sendo su-
prova. (...) mamente baixo e mesquinho, como uma
Antes (...) de tentar entrar nos doutrina própria de porcos, com os quais
fundamentos filosóficos que permitem foram comparados, numa época remota,
fundamentar o padrão utilitarista, vou os discípulos de Epicuro. Os defensores
oferecer algumas ilustração da própria modernos da doutrina são objeto da mes-
doutrina, com a intenção de mostrar ma comparação por seus detratores ger-
mais claramente em que ela consiste, mânicos, franceses e ingleses.
distinguindo-a daquilo que ela não é e Quando assim atacados, os epicu-
denunciando as objeções práticas contra ristas sempre têm respondido que não
ela, como originando-se ou conectando- são eles, mas seus acusadores, que detra-
-se com interpretações erradas de seu sig- tam a natureza humana nesses termos,
nificado. (...) pois a acusação pressupõe que os seres
humanos não são capazes senão daque-
les prazeres que os porcos têm. Se essa
2 Capítulo II suposição fosse verdadeira, a acusação
não poderia ser rejeitada, mas deixaria
O prazer (entendido como então de ser uma imputação, uma vez
incluindo a evitação da dor) O que é o utilitarismo
é assim, para Mill, o único valor que, se as fontes do prazer fossem exa-
intrínseco, e as outras coisas são ... tamente as mesmas para o ser humano
valiosas seja pelo prazer que elas e para os porcos, a regra da vida que é
envolvem, seja pelo seu valor O credo que aceita como funda- boa o suficiente para um também seria
instrumental que leva ao prazer mento da moral a “utilidade” ou o “prin-
(ou à evitação da dor). suficiente para o outro. A comparação da
cípio da máxima felicidade”* defende vida epicurista com a dos bichos é vista
que as ações são corretas à medida que como degradante precisamente porque
3
elas tendem a promover a felicidade e os prazeres das bestas não satisfazem as
Mill sugere não apenas que erradas à medida que elas tendem a pro- concepções humanas de felicidade. Os se-
os seres humanos são capa-
duzir o contrário da felicidade. Por feli- res humanos têm faculdades mais eleva-
zes de experienciar tipos de prazer
que os animais não são (o que é cidade entende-se o prazer e a ausência das que os apetites dos animais e, quando
óbvio), mas também que nada da dor e por infelicidade a dor e a priva- se tornam conscientes delas, não consi-
conta como fazendo parte da ção do prazer. Para apresentar uma vi- deram felicidade aquilo que não inclui a
felicidade humana que não inclua
são clara do padrão moral estabelecido sua satisfação. 3 (...) Deve-se admitir,
esses prazeres “mais elevados”.
pela teoria, muito ainda precisa ser dito; entretanto, que escritores utilitaristas
em particular, que coisas ela inclui nas em geral colocaram os prazeres mentais
4
ideias de dor e prazer e até que ponto como sendo superiores aos corporais
Aqui está uma razão para isso é deixado como uma questão aber- principalmente quanto à permanência, à
a afirmação de que os ta. Porém, essas explicações complemen-
prazeres “mais altos” são mais va- segurança, à facilidade de aquisição, etc.,
liosos: eles são instrumentalmente tares não afetam a teoria da vida sobre a dos primeiros, isto é, nas suas vantagens
superiores aos prazeres corporais, qual essa teoria da moralidade está fun- circunstanciais em vez de sua natureza
no sentido de que duram mais, dada – a saber, que o prazer e a ausência intrínseca. 4 Em todos esses pontos, os
envolvem menos riscos (de da dor são as únicas coisas desejáveis
experiências não prazerosas) e são utilitaristas têm provado completamente
mais baratos (também, em termos como fins e que todas as outras coisas o seu caso, mas poderiam ter tomado o
de experiências não prazerosas, e desejáveis (que são numerosas tanto na outro ponto e, por assim dizer, fazê-lo
não somente de dinheiro). teoria utilitarista quando em qualquer também num plano mais elevado. É per-
outro esquema) são desejáveis seja pelo feitamente compatível com o princípio da
5 prazer inerente a elas, seja como meios utilidade reconhecer o fato de que alguns
Apesar de não rejeitar os para a promoção do prazer e a preven- tipos de prazer são mais desejáveis e mais
pontos anteriores, Mill ção da dor. 2 valiosos do que outros. Seria absurdo que
sugere uma razão diferente para Tal teoria da vida suscita em muitas
preferir os prazeres “mais altos” e – embora ao considerar todas as outras
não os “mais baixos”: os prazeres mentes, mesmo entre algumas das mais coisas, a qualidade fosse considerada tan-
“mais altos” são superiores em estimáveis em sentimentos e propósitos, to quanto a quantidade – na avaliação do
qualidade comparados aos praze- um profundo desagrado. Supor que a prazer houvesse a suposição de que este
res “mais baixos”, e isso significa vida não tem (como eles expressam) ne-
que uma dada quantidade de um depende apenas da quantidade. 5
prazer mais alto é preferível em
nhum fim maior que o prazer –nenhum Se me fosse perguntado sobre o que
termos de sua prazerosidade intrín- objeto do desejo ou propósito mais nobre eu entendo por diferença de qualidade
seca somente em relação à mesma
nos prazeres, ou o que torna um prazer
quantidade ou mesmo a uma
quantidade maior (o quão maior?) mais valioso do que outro meramente
de um prazer “mais baixo”. * N. de T. No original, greatest happiness principle. como prazer, sem contar a sua quantida-
Filosofia: textos fundamentais comentados 405
de, há apenas uma resposta que eu posso humano insatisfeito do que um porco sa- 6
dar. De dois prazeres, se existe algum que tisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito Mill parece apresentar aqui-
todos ou quase todos os que os experien- do que um tolo satisfeito. E, se o tolo e o lo que tem sido chamado
ciaram têm uma escolha preferencial, porco são de opinião diferente, é porque “um júri dos testadores de prazer”
deixando de lado qualquer sentimento eles apenas conhecem o seu próprio lado para dar o próprio significado da
afirmação de que um prazer é de
de obrigação moral de preferi-lo, este é da questão. A outra parte, em compara- melhor qualidade do que outro,
o prazer mais desejável. Se um dos dois ção, conhece os dois lados. 7 mas talvez seja melhor ver nisso
prazeres, por parte daqueles que têm um apenas um teste ou critério prático.
... Poderia a “competência” de tais
conhecimento adequado dos dois, for co-
juízes ser decidida sem que se
locado tão acima do outro que venham a De acordo com o princípio da máxi- cometa uma petição de princípio?
preferi-lo, mesmo sabendo que o alcan- ma felicidade, tal como foi explicado aci- (Ver a Questão para Discussão 1.)
çarão com uma maior dose de descon- ma, o fim último, com referência e pelo
tentamento, e não abririam mão dele por qual todas as outras coisas são desejáveis 7
qualquer quantidade de outro prazer de – se estamos considerando nosso próprio
A questão não é simples-
que sua natureza é capaz, então estamos bem ou aquele de outras pessoas – é uma mente se é “melhor ser um
justificados em atribuir ao prazer preferi- existência tanto quanto possível livre da ser humano insatisfeito do que
do uma superioridade em qualidade tal dor e tão rica em satisfações quanto pos- um porco satisfeito” (isto é, se
que, em comparação, a quantidade resul- sível, tanto em quantidade quanto em alguém familiarizado com os dois
lados da vida escolheria o primei-
ta de importância menor. 6 qualidade. O teste da qualidade e a régua ro), mas se isso é assim porque a
É um fato inquestionável que aque- para medi-la em relação à quantidade é a vida humana é superior em termos
les que têm uma familiaridade igual e são preferência sentida por aqueles que, em de prazer ou felicidade. Mill não
igualmente capazes de apreciar e apro- seus momentos de experiência, aos quais pode simplesmente supor que o
prazer ou a felicidade é a única
veitar ambos dão uma preferência maior deve ser acrescentado os seus hábitos de base para essa escolha.
para um estilo de vida que empregue as autoconsciência e auto-observação, estão
mais altas faculdades. Poucos seres hu- melhor preparados para fazer a compa- 8
manos consentiriam em ser trocados por ração. Sendo este, de acordo com a opi-
Há, no mínimo, três dife-
algum animal inferior sob a promessa do nião utilitarista, o fim da ação humana, rentes questões que são
pleno gozo de prazeres bestiais. Nenhum ele é também necessariamente o padrão levantadas por essa passagem:
ser humano inteligente consentiria em da moralidade, o qual pode ser definido (1) É verdade que a felicidade e
ser um louco, nenhuma pessoa instruída como “as regras e os preceitos da condu- a satisfação são os fins últimos
da vida humana no sentido de
seria ignorante, nenhuma pessoa de sen- ta humana”, por cuja observância é pos- que elas capturam tudo o que as
timento e consciência seria egoísta e má, sível assegurar para toda a humanidade pessoas almejam? (Ver a seleção
embora pudessem ser persuadidos de que uma existência tal como foi descrita na de Nozick, no Capítulo 8, para
o louco, o ignorante ou o tolo estão mais sua maior extensão possível. Não apenas mais leituras sobre esse ponto.) (2)
Mesmo que isso seja verdadeiro,
satisfeitos com a sua vida do que eles com à humanidade, mas na medida em que a depreende-se que a felicidade
a deles. Também não abdicariam daquilo natureza das coisas admite, à toda a cria- é o padrão da moralidade – que
que possuem mais do que ele em troca ção senciente. (...) 8 as pessoas devem ser guiadas
da mais completa satisfação de todos os somente pela busca da felicidade
... (a sua própria ou a dos outros)? (3)
desejos que têm em comum com ele. (...)
Se as circunstâncias não permitem
Quem supõe que essa preferência acon- Devo repetir novamente que os de- que toda a humanidade ou mes-
teça como sacrifício da felicidade – que o tratores do utilitarismo não lhe fazem mo “toda a criação senciente” seja
ser superior não é, em iguais circunstân- a justiça de reconhecer que a felicidade maximamente feliz, o utilitarismo
tem algo a dizer sobre como deve
cias, mais feliz do que o inferior – confun- que forma o padrão utilitarista do que é ser feita a escolha de quem pode
de as duas ideias diferentes de felicidade certo na conduta não é a felicidade do ser feliz (e em que grau) e quem
e satisfação. É indiscutível que o ser cujas próprio agente, mas de todos os envol- não pode?
capacidades de contentamento são mais vidos. Entre a sua própria felicidade e
baixas tem a maior chance de tê-las com- a dos outros, o utilitarismo requer que 9
pletamente satisfeitas e que o ser supe- ele seja tão imparcial quanto um espec- Visto que tudo o que impor-
rior sempre sentirá que qualquer felicida- tador desinteressado e benevolente. Na ta é alcançar a maior totali-
de que ele procurar, tal como o mundo é regra de ouro de Jesus de Nazaré, lemos dade, o utilitarismo não permite à
constituído, será imperfeita. Contudo, ele o completo espírito da ética da utilidade: pessoa dar qualquer preferência à
sua felicidade ou bem-estar (ou de
pode aprender a suportar as suas imper- “Faze aos outros como gostarias que te fi- sua família ou amigos) – nem estar
feições, caso elas sejam de algum modo zessem” e “ama o teu próximo como a ti preocupado com seus próprios
suportáveis. Elas não irão fazê-lo ter in- mesmo” constituem a perfeição ideal da projetos e compromissos mais do
veja do ser que é certamente inconsciente moralidade utilitarista. (...) 9 que dos outros.
Quão razoável é essa
das imperfeições, mas só porque ele não Não será supérfluo notar algumas pare
exigência? (Ver a seleção
sente em absoluto o bem que essas im- outras más interpretações da ética utili- de Williams mais adiante neste
perfeições limitam. É melhor ser um ser tarista, mesmo aquelas que são tão ób- capítulo.)
406 Laurence BonJour & Ann Baker

vias e grosseiras que pareceria impossível dade do bem e infligir o mal, envolvidos
para qualquer pessoa honesta e inteli- na maior ou na menor confiança que po-
gente cair nelas. As pessoas, mesmo as de dem depositar na palavra de cada um,
maiores talentos mentais, geralmente se age como um dos seus piores inimigos.
dão tão pouco trabalho para entender o Todavia, que essa regra, mesmo que seja
significado de qualquer opinião que seja sagrada, admite possíveis exceções, isso
contrária aos seus preconceitos, e os ho- é reconhecido por todos os moralistas.
mens são em geral tão pouco conscientes A principal delas é quando a omissão de
de que essa ignorância voluntária muitas um fato (como de uma informação de um
vezes constitui um defeito, que os mais malfeitor ou de más notícias de uma pes-
vulgares mal-entendidos das doutrinas soa perigosamente doente) servirá para
éticas são continuamente encontrados salvar aquele indivíduo (especialmente
nos escritos inescrupulosos das pessoas um indivíduo que não seja o próprio) de
com as mais altas pretensões, seja a ele- um grande e imerecido mal e quando a
vados princípios, seja à filosofia. (...) omissão somente pode ser conseguida
(...) a utilidade é frequentemente pela negação. Contudo, para que a ex-
estigmatizada como uma doutrina imo- ceção não se estenda para além do que
ral, dando-se a ela o nome de “conveni- é necessário e possa ter o menor efeito
ência” e tomando vantagem do uso po- possível para o enfraquecimento da nossa
pular desse termo para contrastá-lo com confiança na verdade, deve ser reconhe-
“princípio”. No entanto, aquilo que é con- cido que, se possível, seus limites sejam
veniente, no sentido do que é oposto ao definidos. E, se o princípio da utilidade
correto, geralmente significa aquilo que serve para alguma coisa, deve ser capaz
é conveniente para um interesse do pró- de pesar essas utilidades conflitantes
prio agente. (...) Quando significa algo umas contra as outras e marcar a região
10 melhor do que isso, significa aquilo que onde uma ou outra prepondera. 10
Uma objeção ao utilita-
é conveniente para algum objeto ime- Além disso, os defensores da utilida-
rismo de ato é que ele diato, algum propósito temporário, mas de com frequência se encontram na posi-
permitiria violar várias regras que viola uma regra cuja observância é ção de ter de responder a objeções como
morais do senso comum (regras conveniente num grau mais elevado. O esta: que não há tempo, antes da ação,
que parecem ser sustentadas
por nossas convicções morais
conveniente, nesse sentido, em vez de ser de calcular e pesar os efeitos de qualquer
intuitivas, como não mentir, não a mesma coisa que o útil, é um ramo do linha de conduta que leva à felicidade ge-
quebrar as promessas, etc.) sem- danoso. Assim, poderá ser conveniente, ral. (...) A resposta a essa objeção é que
pre que parecesse um pequeno para o propósito de superar um embara- tem havido tempo o suficiente, a saber,
ganho na utilidade resultar. A
resposta a essa objeção é que,
ço momentâneo, ou obter algum objeto todo o passado da espécie humana. Du-
quando os efeitos danosos de imediatamente útil para nós ou para os rante todo esse tempo, a humanidade tem
tais ações sobre as instituições outros, contar uma mentira. Porém, o aprendido pela experiência as tendências
sociais valiosas e suas práticas são cultivo em nós de um sentimento de ve- das ações. Experiência essa de que de-
acrescentadas, essas violações
serão justificadas somente em
racidade é um dos mais úteis, e o enfra- pende toda a prudência e toda a mora-
um número incomum de casos, quecimento desse sentimento é uma das lidade da vida. As pessoas falam como
nos quais não está mais claro que coisas mais danosas à qual a nossa con- se o começo desse curso de experiência
elas sejam objetáveis. (Será que duta pode servir de instrumento. Visto tivesse sido adiado até agora e como se,
isso funciona? Ver a Questão para
Discussão 3.)
que qualquer desvio da vontade, mesmo no momento em que um homem sente a
não intencional, tem grande influência tentação de intrometer-se na propriedade
sobre o enfraquecimento da veracidade e na vida de outro, ele tivesse de começar
das asserções humanas, a qual não é ape- a considerar pela primeira vez se o assas-
nas o suporte de todo o bem-estar social sinato e o roubo são prejudiciais à felici-
humano presente, mas cuja insuficiência dade humana. (...) Não há nenhuma difi-
faz mais do que qualquer outra coisa que culdade em provar que qualquer padrão
possa ser nominada para retardar a civili- ético funciona mal se o associamos à im-
zação, a virtude, tudo de que a felicidade becilidade universal. Porém, sendo essa
humana depende em larga escala, senti- hipótese pouco provável, a humanidade
mos que a violação, para uma vantagem deve ter adquirido nesse tempo crenças
presente, de uma regra de tal conveni- positivas em relação aos efeitos que al-
ência transcendente não é conveniente e gumas ações têm sobre a sua felicidade,
que aquele que, para a conveniência de e as crenças que se formaram são regras
si próprio ou de outro indivíduo, faz algo da moralidade para a multidão e para o
que depende dele para privar a humani- filósofo até que ele seja bem-sucedido em
Filosofia: textos fundamentais comentados 407
encontrar outras melhores. Eu admito, a humanidade tivesse permanecido até
ou melhor, sustento enfaticamente que agora e devesse permanecer sempre, sem
os filósofos podem facilmente fazer isso, extrair quaisquer conclusões gerais da
mesmo agora, em muitas matérias, que o experiência da vida humana, é um dos
código de ética recebido não é de modo maiores absurdos, penso eu, a que já se
algum de direito divino e que a humani- chegou na controvérsia filosófica. 11 11
dade tem ainda muito a aprender acerca (...) Não é uma deficiência de qual- Mesmo o utilitarismo de
dos efeitos das ações sobre a felicidade quer credo, mas da complicada natureza ato pode sancionar o uso
geral. Os corolários do princípio da uti- das coisas humanas, que as regras de con- de regras da moralidade gerais
em casos nos quais é muito
lidade, assim como os preceitos de toda duta não possam ser formatadas para não
difícil ou custoso, ou em que se
arte prática, admitem um aperfeiçoamen- ter exceções e que quase nenhuma ação consome muito tempo para fazer
to indefinido e, num estado progressivo possa ser estabelecida como sendo ou o cálculo utilitarista completo
da mente humana, o seu melhoramen- sempre obrigatória ou sempre condená- (uma observação também feita
por Bentham). A questão entre o
to está acontecendo de modo perpétuo. vel. (...) Não existe sistema moral no qual
utilitarismo de ato e o de regra é
Considerar as regras da moralidade como não surjam casos inequívocos de obriga- se alguém deve seguir tais regras,
sendo capazes de melhoramento é uma ções conflitantes. Essas são dificuldades mesmo quando não é claro que
coisa, mas outra coisa é passar por cima reais, os pontos intrincados tanto na fazendo isso não vai produzir a
maior utilidade na situação em
de toda generalização intermediária e teoria da ética quanto na conscienciosa
questão. (Ver a seleção seguinte
pretender avaliar diretamente cada ato orientação da conduta pessoal. (...) Se a de Smart sobre esse ponto.)
pelo princípio primeiro. É uma noção utilidade é a fonte última das obrigações
estranha que o reconhecimento de um morais, ela pode ser invocada para deci-
primeiro princípio seja inconsistente com dir quando as demandas são incompatí-
a admissão de princípios secundários. In- veis. Embora a aplicação do padrão possa
formar ao viajante o lugar de seu destino parecer difícil, é melhor do que não ter
último não é proibi-lo de usar marcos e padrão algum. Enquanto nos outros sis-
placas de sinalização ao longo do cami- temas as leis morais são concebidas como
nho. A proposição de que a felicidade é o tendo uma autoridade independente e
fim e o alvo da moralidade não significa não há árbitro habilitado para interferir
que nenhum caminho possa ser traçado entre elas, suas afirmações de precedên-
até esse fim, ou que pessoas que a ele se cia de umas sobre as outras baseiam-se
destinam não possam ser aconselhadas a em pouco mais do que sofismas e, salvo
tomar uma direção ao invés de outra. Os se forem determinadas, como geralmente
homens realmente devem deixar de falar se faz, pela influência não reconhecida da
um tipo de absurdo sobre esse assunto, consideração de utilidade, permitem uma
que não desejariam ouvir nem dizer sobre liberdade de escopo para atos de desejos
outras questões de interesse prático. Nin- pessoais e parcialidades. Devemos lem-
guém argumenta que a arte de navega- brar que somente nesses casos de conflito
ção não está fundada na astronomia pelo entre princípios secundários é necessário
fato de que os marinheiros não podem apelar para os primeiros princípios. Não
esperar o cálculo do Almanaque Náutico. há caso de obrigação moral no qual al- 12
Sendo criaturas racionais, lançam-se ao gum princípio secundário não esteja en- Aqui Mill pode estar
mar com ela já calculada, e todas as cria- volvido e, se for apenas um, raramente dizendo que um cálculo
turas racionais vão ao mar da vida já com poderá haver dúvida real sobre qual ele utilitarista pode ser feito somente
quando “regras secundárias” estão
uma opinião formada sobre as questões é na mente de qualquer pessoa que reco- em conflito. Isso significaria que,
do certo e do errado, tanto quanto sobre nhece esse princípio. 12 na falta de tal conflito, a regra
muitas das questões mais difíceis sobre a secundária relevante deveria
... sempre ser seguida – mesmo em
sabedoria e a loucura. É de se presumir
casos nos quais ela claramente
que, enquanto a previsão for uma qua- não leva à maior utilidade. Essa
lidade humana, eles continuarão a pro- seria uma concepção de um
ceder assim. Seja lá que princípio funda- Capítulo IV
utilitarista de regra (ver o capítulo
mental da moralidade adotemos, vamos introdutório e a seleção seguinte
precisar de princípios subordinados para Sobre o tipo de prova a que o de Smart). Porém, ele pode estar
princípio da utilidade é suscetível apenas dizendo que um apelo ao
aplicá-lo. A impossibilidade de agir sem cálculo utilitarista não é requerido
eles, sendo comum em todos os sistemas, (um “requisito”) quando não há
não pode proporcionar argumentos con- Já foi observado que questões sobre conflito, mas é permitido e talvez
tra nenhum em particular. Contudo, ar- fins últimos não admitem prova no sen- inclusive desejável quando ele
tido comum desse termo. Ser incapaz de pode ser feito – o que ainda seria
gumentar seriamente que tais princípios uma concepção de utilitarismo
secundários não podem existir, como se prova pelo raciocínio é comum a todos os de ato.
408 Laurence BonJour & Ann Baker

primeiros princípios, tanto das primeiras ausência de dor. O desejo de virtude não é
premissas do nosso conhecimento quanto universal, porém é um fato autêntico como
daquelas da nossa conduta. Mas os pri- o desejo de felicidade. E aqui os oponentes
meiros, sendo questão de fato, podem do padrão utilitarista ousam dizer que eles
estar sujeitas a um apelo direto às facul- têm o direito de inferir que há outros fins
dades que julgam fatos – a saber, nossos da ação humana além da felicidade e que
sentidos e nossa consciência interna. a felicidade não é o padrão da aprovação
Pode tal apelo ser feito para as mesmas ou desaprovação.
faculdades em questões de fins práticos? A doutrina utilitarista nega que as
Ou por qual outra faculdade se pode ad- pessoas desejam virtude ou defende que
quirir um conhecimento deles? a virtude não é algo a ser desejado? Exa-
13
Questões sobre fins são, em outras tamente o oposto. Ela sustenta não ape-
palavras, questões sobre coisas desejá- nas que a virtude deve ser desejada, mas
Esse é o primeiro estágio da veis. A doutrina utilitarista reza que a fe- também que ela deve ser desejada desin-
“prova” de Mill, o qual pro-
cura estabelecer que a felicidade licidade é desejável e a única coisa dese- teressadamente, por si mesma. Não im-
é desejável no sentido de ser um jável como um fim e que as outras coisas porta qual seja a opinião dos moralistas
bem intrínseco para todas as pes- são desejáveis apenas como meios para utilitaristas sobre as condições originais
soas (dada a premissa posterior aquele fim. O que pode ser exigido des- que fazem com que a virtude seja uma
de que todas as pessoas de fato
desejam sua própria felicidade). sa doutrina – que condições é necessário virtude e possam acreditar (como eles o
Quão sustentável é a que a doutrina preencha – para tornar-se fazem) que ações e disposições são so-
pare
analogia entre a visibilida- crível? mente virtuosas porque promovem outro
de ou a auditibilidade e o sentido A única prova capaz de ser dada de fim que a virtude, ainda assim, supondo
relevante de “desejabilidade”? (Ver
a Questão para Discussão 4.) que um objeto é visível é que as pessoas isso e tendo sido determinado a partir de
de fato o veem. A única prova de que um considerações dessa descrição o que é vir-
som é audível é que as pessoas o ouvem, e tuoso, eles não apenas colocam a virtu-
14 assim por diante sobre as outras fontes de de no alto das coisas que são boas como
Aqui está o segundo passo nossa experiência. Da mesma maneira, su- meios para o fim último, mas também
do argumento: se a felici- ponho que a única evidência que é possível reconhecem como um fato psicológico
dade de cada pessoa é um bem
produzir de que algo é desejável é que as a possibilidade de ser, para o indivíduo,
intrínseco para aquela pessoa
(supostamente estabelecido no pessoas de fato o desejam. 13 Se o fim que um bem em si, sem olhar para qualquer
primeiro estágio), então “a felicida- a doutrina utilitarista propõe não fosse, fim além dele. Além disso, afirmam que
de geral” de todas as pessoas é um na teoria e na prática, reconhecido como a mente não está em seu estado correto,
bem intrínseco para “o conjunto
um fim, nada convenceria pessoa alguma não no estado de conformidade com a
de todas as pessoas”.
Será que isso, como Mill de que é assim. Nenhuma razão pode ser utilidade, não no estado que mais conduz
pare
pretende, estabelece que dada em relação a por que a felicidade à felicidade geral, a não ser que ame a
a pessoa individual deve procurar geral é desejável, exceto que cada pessoa, virtude dessa maneira – como uma coisa
a “felicidade geral” (como o utili- na medida em que acredita ser alcançável, desejável em si mesma, mesmo que, no
tarismo sustenta)? (Ver a Questão
para Discussão 4.) deseja sua própria felicidade. Sendo isso, caso individual, ela não produza aque-
todavia, um fato, não temos apenas tudo las outras consequências desejáveis que
o que a prova no caso admite, mas tudo o tende a produzir e a partir das quais é
15 que é possível exigir, que a felicidade é um considerada virtude. 15 Essa opinião não
É claramente compatível bem, que a felicidade de cada pessoa é um é, em menor grau, um afastamento do
com o utilitarismo que bem para aquela pessoa e que, portanto, a princípio da felicidade. Os ingredientes
alguma outra coisa além da felicidade geral é um bem para o conjunto da felicidade são vários e cada um deles é
felicidade (tal como a virtude) seja de todas as pessoas. A felicidade mostrou desejável em si, e não meramente consi-
desejada como um meio instru-
mental para o fim da felicidade. seu direito a ser um dos fins da conduta e, derados como agregados do todo. O prin-
De um modo mais surpreendente, consequentemente, um critério da mora- cípio da utilidade não significa que cada
também é compatível com o lidade. 14 prazer, como a música, por exemplo, ou
utilitarismo sustentar que mais Mas não se provou, apenas por isso, determinada ausência de dor, como, por
utilidade será produzida se a virtu-
de for desejada como um fim em que ela seja o único critério. Para fazer exemplo, a saúde, deve ser visto como
si, como intrinsecamente valiosa, isso, seria necessário, pela mesma regra, um meio para algo coletivo denominado
ao invés de ser explicitamente mostrar não apenas que as pessoas dese- “felicidade” e ser desejado com vistas a
buscada apenas como meio para jam a felicidade, mas que elas nunca dese- ela. Eles são desejados e desejáveis em e
a felicidade. (Mas, isso poderia
simplesmente significar que é
jam outra coisa. Ora, parece que elas de- por si mesmos, pois, além de meios, eles
instrumentalmente valioso para as sejam coisas que, em linguagem comum, são partes de um fim. A virtude, de acor-
pessoas acreditarem que a virtude são decididamente distintas da felicidade. do com a doutrina utilitarista, não é na-
é um bem intrínseco). Elas desejam, por exemplo, virtude e au- tural e originalmente parte do fim, mas
sência de vício não menos que prazer e é capaz de tornar-se tal; e, para aqueles
Filosofia: textos fundamentais comentados 409
que a vivem desinteressadamente, ela opinião que eu agora enunciei é psicolo-
se tornou tal e é desejada e louvada não gicamente verdadeira – se a natureza hu-
como um meio para a felicidade, mas mana é assim constituída para não desejar
como uma parte da sua felicidade. nada que não seja parte da felicidade ou
(...) A vida seria miserável, muito um meio para a felicidade –, não podemos
escassa de recursos da felicidade, se não ter outra prova, e não requeremos outra,
existisse essa providência da natureza de que essas são as únicas coisas desejá-
pela qual as coisas que são originalmen- veis. Se é assim, a felicidade é o único fim
te indiferentes, mas que conduzem à (ou da ação humana, e a sua promoção é o
são associadas à) satisfação de nossos de- teste por meio do qual julgamos toda a
sejos primitivos, tornam-se em si mesmas conduta humana. Disso se depreende que
fontes de prazer mais valiosas do que os ela deve ser o critério da moralidade, pois
prazeres primitivos, tanto na permanên- a parte está incluída no todo.
cia, no espaço da existência humana que E, para decidir se isso é realmente
elas são capazes de cobrir, quanto na in- assim, se a humanidade não deseja nada
tensidade. por si, mas aquilo que é um prazer para
A virtude, de acordo com a concep- ela, ou cuja ausência é a dor, chegamos
ção utilitarista, é um bem desse tipo. Não a uma questão de fato e de experiência,
havia desejo original por ela, ou motivo dependente, como em todas as questões
para ela, a não ser a sua capacidade de similares, de evidência. Pode ser deter-
conduzir ao prazer e especialmente à pro- minada somente por autoconsciência e
teção contra a dor. No entanto, através da auto-observação praticada, assistida pela
associação assim formada, ela pode ser observação dos outros. Acredito que es-
sentida como um bem em si e desejada sas fontes de evidência, imparcialmente
com tanta intensidade quanto qualquer consultadas, declararão que desejar uma
outro bem. (...) coisa e considerá-la prazerosa, ter aver-
Segue-se das considerações prece- são a ela e considerá-la dolorosa, são fe-
dentes que não há em realidade nada nômenos inteiramente inseparáveis ou,
desejado exceto a felicidade. Qualquer em vez disso, duas partes de um mesmo
coisa que é desejada de outro modo que fenômeno – em linguagem estrita, dois
não como meio para algum fim além de modos diferentes de nomear o mesmo
si próprio, e por fim para a felicidade, é fato psicológico; que pensar em um ob-
desejado como parte da felicidade e não jeto como desejável (a não ser por suas
é desejado por si mesmo até que se torne consequências) e considerá-lo prazeroso
tal. (...) são uma e a mesma coisa; e que desejar
Temos agora, portanto, uma respos- algo exceto em proporção com a ideia de
ta à questão sobre a que tipo de prova o que é agradável é uma impossibilidade
princípio da utilidade é suscetível. Se a física e metafísica. 16 16
Aqui está o terceiro e último
estágio do argumento: Mill
argumenta que, se a virtude (ou
Questões para Discussão alguma outra coisa) é desejada
como um fim em si mesmo, então
realizar aquele fim torna-se em
si mesmo uma fonte de prazer
1. Suponha que você esteja tentando ava- adquirido”. Mas, então, quanta exposição ou felicidade, de tal modo que se
torna “parte da felicidade” e, nesse
liar a qualidade relativa de dois prazeres: é necessária para produzir “familiaridade
caso, é ainda somente o prazer
o prazer de ir a uma ópera e o prazer de competente” com algo como uma ópera ou a felicidade que está sendo
comer uma pizza. Mill diz que essa ques- (ou outro prazer “mais elevado”)? Com desejado.
tão deve ser decidida pelo apelo a um júri certeza, não podemos dizer que uma Aqui ele parece estar
composto por pessoas que experimenta- pessoa não é “competentemente familia- cometendo um erro (que
é discutido na seleção que será
ram ambos os prazeres ou, ele diz isso um rizada” com um prazer “mais elevado” a
apresentada mais adiante, da
pouco mais adiante, estão “competente- menos que ela o prefira a prazeres “mais autoria de Feinberg): o prazer ou a
mente familiarizadas com ambos”. Como baixos”, pois isso levaria a decidir em favor felicidade que resulta quando um
se pode decidir quais pessoas estão quali- de prazeres “mais elevados”. desejo por algo é satisfeito não
ficadas para ser membros desse júri? Sem 2. Mesmo que o cálculo utilitarista fosse pos- pode ser o fim principal daquele
desejo, pois é apenas porque há
dúvida, ter uma breve exposição à pizza e sível com base no ponto de vista de Ben-
um desejo independente por
à ópera não é suficiente, especialmente tham (ver as Questões para Discussão 2 e aquela coisa que o prazer resulta
para a ópera, que parece ser um “gosto 3 da seleção de Bentham), ele ainda seria quando o desejo é satisfeito.
410 Laurence BonJour & Ann Baker

possível dado o reconhecimento, feito por rais ponderadas de muitas pessoas. Mill su-
Mill, de qualidades além das quantidades gere (ver a passagem na Anotação 10) que
de prazer? Como as qualidades podem nosso cálculo deve incluir o valor negativo
figurar no cálculo? Prazeres de diferen- resultante do efeito de sua ação sobre a
tes qualidades podem ser combinados valiosa prática de confiar nas promessas de
numa totalidade? E, se puderem, como? outras pessoas: essa prática permite que as
(Lembre-se de como diferenças de quali- pessoas coordenem suas ações de modo a
dade devem ser determinadas: será que levar a uma grande quantidade de prazer
isso contém plausivelmente um valor e felicidade, enquanto o ato de quebrar as
numérico para a qualidade de prazer que promessas tende a minar a prática ao fa-
pode talvez ser multiplicada pela medida zer com que as pessoas desconfiem dela.
numérica da quantidade?) Se esse não for Não há dúvida de que essa consideração
o caso, como chegar a um resultado defi- adicional pode ser suficiente para alterar o
nitivo de qual ação leva ao mais prazeroso cálculo utilitarista, caso a diferença original
(e ao menos penoso) que se supõe ser ca- na utilidade seja pequena o bastante. Mas
paz de atingir? quão plausível é isso que fará diferença o
3. Uma objeção ao utilitarismo de ato é que bastante, na maioria ou em todos os casos,
ele pode permitir e certamente requer para evitar um conflito sério entre o utilita-
ações tais como contar mentiras ou que- rismo de ato e as nossas convicções morais
brar promessas sempre que disso resulta ponderadas?
até mesmo um pequeno ganho em uti- 4. Quão convincentes são os três estágios da
lidade. Suponha, por exemplo, que você “prova” do princípio da utilidade oferecida
prometeu a um amigo que irá ao cinema por Mill (ver Anotações 13, 14 e 15)? Uma
com ele, mas que você foi convidado na sugestão adicional para o primeiro está-
última hora para ir a um concerto com ou- gio: “visível” significa “capaz de ser visto”,
tro amigo. Suponha também que é óbvio mas “desejável” significa (no sentido re-
que você gostará mais do concerto do que levante de valor intrínseco) “capaz de ser
do filme, de modo que a utilidade total desejado”? E para o segundo estágio: se-
(permitindo tanto o desapontamento e a gue-se do fato de que algo é um bem para
infelicidade experimentada pelo primei- “um agregado de pessoas” que isso é um
ro amigo quanto a felicidade aumentada bem para cada membro individual daque-
experimentada pelo segundo amigo) será le conjunto (algo que tal indivíduo deve
maior se você quebrar a promessa e ir ao almejar em vez de almejar o seu próprio
concerto. (Suponha que não há modo al- bem individual)? O que significa que algo
gum de remarcar, de maneira satisfatória, é um bem para “o agregado de pessoas”,
a ida ao cinema com o primeiro amigo.) O quando somente pessoas individuais, e
utilitarismo de ato parece indicar que você não os agregados, fazem as escolhas ou
deve ir ao concerto, mas essa é a escolha agem? Para o terceiro estágio: ver o ponto
errada, de acordo com as convicções mo- levantado na Anotação 15.

J.J.C. Smart
John Jamieson Carswell Smart (1920-) é um filósofo nascido na Grã-Bretanha que
construiu praticamente toda a sua carreira profissional e acadêmica na Austrália. Smart
tem feito importantes contribuições à filosofia da mente (ver a seleção no Capítulo 3), à
filosofia da ciência e à ética, sendo um dos mais recentes defensores do utilitarismo de
ato. Nesta seleção, Smart discute as questões que dividem o utilitarismo de ato (que ele
chama de “utilitarismo extremo”) e o utilitarismo de regra (que ele chama de “utilitaris-
mo restrito”). Ele argumenta que um utilitarista de ato ainda pode apelar para “regras
práticas”* morais e, quando isso é feito, não há justificação (de um ponto de vista uti-
litarista) para dar às regras um estatuto mais fundamental, tal como é defendido pelo
utilitarismo de regra.

* N. de R.T. No original, rules of thumb. A expressão diz respeito àquelas “regras práticas” do dia a dia
que são adotadas pelas pessoas sem maior reflexão teórica, e sim com base na experiência habitual-
mente bem-sucedida.
Filosofia: textos fundamentais comentados 411

Utilitarismo Extremo e Utilitarismo Restrito6

I doutrina pode ser encontrada no livro


de Toulmin, O lugar da razão na ética,
O utilitarismo é a doutrina que sus- no de Nowell-Smith, Ética (embora eu
tenta que a correção das ações tem de pense que Nowell-Smith tenha hesita-
ser julgada pelas suas consequências. O ções), no de John Austin, Conferências
que entendemos aqui por “ações”? En- sobre jurisprudência (Conferência II),
tendemos ações particulares ou classes e mesmo em J.S. Mill, se a interpre-
de ações? Dependendo do modo como tação de Urmson estiver correta. (...)
interpretamos a palavra “ações”, temos Parte de seu charme é que ela parece
duas diferentes teorias, sendo que ambas resolver a disputa, na filosofia moral,
merecem ser chamadas “utilitaristas”. entre os intuicionistas e os utilitaristas
de uma maneira muito elegante. Os
1. Se por “ações” entendemos ações filósofos citados defendem, ou pare-
particulares individuais, temos o cem defender, que regras morais são
tipo de doutrina que foi defendida mais do que regras práticas. Em ge-
por Bentham, Sidgwick e Moore. De ral, a correção de uma ação não tem
acordo com essa doutrina, nós testa- de ser testada pela avaliação de suas
mos as ações individuais pelas suas consequências, mas somente consi-
consequên­cias, e regras gerais como derando se ela recai sob certa regra
“mantenha as promessas” são meras ou não. Todavia, se a regra deve ser
regras práticas que usamos para evi- considerada uma regra moral aceitá-
tar a necessidade de avaliar as pro- vel, deixa-se para decidir isso ao con-
váveis consequências de nossas ações siderar as consequências da adoção
em cada caso. A correção ou não de da regra. Falando brevemente, ações
manter uma promessa em uma oca- devem ser testadas pelas regras e as
sião particular depende apenas da regras pelas consequências. Os únicos
bondade ou não das consequências casos nos quais devemos testar uma
de manter ou quebrar a promessa ação individual diretamente pelas
1
naquela ocasião particular. Certa- suas consequências são
mente, parte das consequências de Como já foi observado, esse
a) quando a ação cai sob duas regras é o termo de Smart para o
quebrar a promessa e parte daquilo a
diferentes e que é geralmente referido como
que normalmente atribuímos decisiva “utilitarismo de ato”.
b) quando não há regra que governe
importância será o enfraquecimento
um determinado caso.
da confiança na instituição do fazer
2
promessas. Todavia, se a bondade das Vou chamar essa doutrina de “utilita-
consequências de quebrar a regra é in rismo restrito”. 2 Esse é o termo para o que é
toto maior que a bondade das conse- geralmente referido como
“utilitarismo de regra”.
quências de mantê-la, então devemos ...
quebrar a regra a despeito do fato de
que a bondade das consequências da A disputa entre o utilitarismo ex-
obediência de todos à regra seja ou tremo e o restrito pode ser ilustrada con-
não maior do que as consequências siderando a observação “Mas suponha
de todos quebrarem a regra. Falando que todo mundo faça o mesmo”. (...)
brevemente, regras não importam, Dizer que você não pode fazer uma ação
salvo per accidens como regras prá- A porque teria maus resultados se todos
ticas e como instituições sociais de (ou muitas pessoas) fizessem A pode sig-
facto, com as quais o utilitarista deve nificar meramente apontar ao fato de
contar quando está avaliando as con- que, enquanto a ação A é a otimizadora,
sequências. Vou chamar essa doutrina quando você leva em consideração que
de “utilitarismo extremo”. 1 fazer A provavelmente levará também
2. Uma forma mais modesta de utilitaris- outras pessoas a fazer A, você pode ver
mo tornou-se moda recentemente. A que A não é, de um ponto de vista amplo,

6 Extraído de Philosophical Quarterly, 6 (1956).


412 Laurence BonJour & Ann Baker

3 realmente otimizadora. Se essa influên- bilidade fosse bastante alta, ele iria, com
Para um utilitarista de ato,
cia causal pode ser evitada (como pode base no utilitarismo extremo, deixá-lo se
a utilidade que poderá re- acontecer no caso de uma promessa em afogar. O salvador, todavia, não tem tem-
sultar se outras pessoas agirem da uma ilha deserta secreta), então pode- po. Ele confia nos seus instintos, mergu-
mesma maneira tal como a ação mos dispensar o princípio da universali- lha e salva o homem. Assim, confiar nos
está sendo avaliada é relevante
só na medida em que a ação em
zação. Essa é a forma causal do princípio. instintos e nas regras morais pode ser
3 Uma pessoa que aceitou o princípio da justificado sob as bases do utilitarismo
questão tenderá a levar outros a
agirem da mesma maneira (assim, universalização em sua forma hipotética extremo. 5 Além disso, um utilitarista
os resultados daquelas ações seria uma pessoa que estava preocupada extremo, que sabia que o homem afogan-
serão contabilizados, pois ações
similares serão então parte dos
somente com o que aconteceria se todos do-se era Hitler, louvaria o salvador e não
resultados da ação original). praticassem a ação A: ela estaria total- o condenaria. Ao louvar o homem, esta-
(Raramente, se é que algu- mente despreocupada com a questão se ria reforçando uma disposição da mente
ma vez, uma ação resultará de fato todos praticassem a ação A. Em corajosa e benevolente, e em geral essa
em todos agindo daquela maneira
ou em algo próximo a ela. Desse
outros termos, ela poderia dizer que seria disposição tem grande utilidade positiva.
modo, é muito enganador falar de errado não votar porque haveria maus re- (Da próxima vez, quem sabe, será Wins-
“a forma causal” do “princípio da sultados se todos tomassem essa atitude ton Churchill que o homem virá a salvar!)
universalização”.) e ela não ficaria impressionada com os Não devemos nunca esquecer que um uti-
argumentos que procuram mostrar que a litarista extremo pode louvar ações que
4 minha recusa em votar não tem qualquer sabe serem erradas. Salvar Hitler foi erra-
Para um utilitarista de regra, efeito sobre a propensão de votar das ou- do, mas foi uma ação pertencente a uma
em contraste com um tras pessoas. Usando essa distinção, po- classe de ações que são geralmente cor-
utilitarista de ato, a avaliação da demos dizer que um utilitarista extremo retas, e o motivo de praticar ações dessa
ação depende essencialmente da aplicaria o princípio da universalização classe costuma ser otimizador. Ao consi-
avaliação dos resultados de todos
agirem daquele modo, isto é, de em sua forma causal, enquanto um uti- derar questões de louvor ou condenação,
todos seguirem uma regra que litarista restrito o aplicaria em sua forma não é a conveniência da ação louvada ou
exige tal ação – independente- hipotética. 4 condenada que está em questão, mas sim
mente de qualquer questão sobre a conveniência do louvor. Pode ser con-
se uma ação daquele tipo tenderia
causalmente a produzir outras. ... veniente louvar uma ação inconveniente
(Visto que os resultados e inconveniente louvar uma ação conve-
de todos agirem do modo niente. 6
em questão dependeria de quais II Falta de tempo não é a única razão
outras regras as pessoas também
seguem, é melhor, como foi discu- pela qual um utilitarista extremo pode,
tido na introdução deste capítulo, Para um utilitarista extremo, regras sob princípios do utilitarismo extremo,
pensar em termos das conse­ morais são regras práticas. Na prática, o confiar nas regras do senso moral comum.
quências de todos seguirem um utilitarista extremo geralmente vai guiar Ele sabe que, em casos particulares, nos
conjunto amplo de regras. Uma
a sua conduta apelando para regras (“não quais seus interesses estão envolvidos, é
ação é então moralmente correta
se ela é permitida por uma regra minta”, “não quebre as promessas”, etc.) provável que seus cálculos estejam base-
no conjunto de regras que leva ao da moralidade do senso comum. Isso não ados preconceituosamente em seus pró-
máximo da utilidade.) é assim porque existe algo sacrossanto prios gostos. Suponha que ele está casado
nas próprias regras, mas porque ele pode e infeliz e está considerando divorciar-se.
5 argumentar que provavelmente agirá, Ele, com toda probabilidade, exagerará
Como foi observado tanto na maioria das vezes, de um modo uti- em sua própria infelicidade (e possivel-
por Bentham quanto por litarista extremo se não pensar como um mente na de sua esposa) e desconsidera-
Mill, é muito improvável que a uti- utilitarista. Uma razão para isso é que
lidade máxima possa ser atingida
rá o dano que será feito aos seus filhos
fazendo-se um cálculo utilitarista ações têm frequentemente de ser feitas com o rompimento de sua família. Ele
completo para cada ação. Uma de forma apressada. Imagine um homem também provavelmente menosprezará o
razão para isso é que frequente- vendo uma pessoa afogar-se. Ele se atira dano que causará ao enfraquecer a con-
mente não há tempo suficiente e a resgata. Não há tempo para pensar so-
(ou informação necessária). Assim,
fiança geral nas promessas do casamen-
adotar e seguir “regras práticas”
bre o assunto, mas esse geralmente será o to. Assim, ele provavelmente chegará à
(aquelas que, ao serem seguidas, curso de ação que um utilitarista extremo conclusão correta do utilitarismo extre-
produzirão mais utilidade do recomendaria se tivesse pensado sobre o mo, se não pensar como um utilitarista
que se forem seguidas outras assunto. Se, contudo, o homem estivesse extremo, mas confiar na moralidade do
regras ou conjuntos de regras do
mesmo tipo) é por si mesmo uma
afogando-se num rio perto de Berchtes- senso comum. 7
escolha que será sancionada pelo gaden em 1938 e se tivesse a bastante Há muitos outros pontos sutis que
princípio do utilitarismo de ato – conhecida aparência e o bigode de Adolf poderiam ser feitos em conexão com a
mesmo que isso esteja propenso Hitler, um utilitarista extremo, se tivesse relação entre o utilitarismo extremo e a
a levar a resultados que não são
ótimos ou inclusive a maus resul-
tempo, calcularia a probabilidade de o moralidade do senso comum. (...) Uma
tados em alguns casos. homem ser o ditador vilão e, se a proba- questão levantada por Sidgwick, nesse
Filosofia: textos fundamentais comentados 413
contexto, é se um utilitarista (extremo) como uma explicação de como é maxima- 6
deve, com base no princípio utilitarista mente racional pensar sobre a moralida- O ato de louvar uma ação
(extremo), divulgar o utilitarismo (extre- de. Suponha que haja uma regra R e que é ele mesmo uma ação e,
mo) para o público. Como muitas pesso- em 99% dos casos os melhores resultados portanto, deve ser avaliado em
as não são pessoas de mente filosófica e são obtidos agindo-se de acordo com R. termos utilitaristas. Assim, deve-
mos louvar (ou condenar) não as
também não são boas em cálculos empíri- Então, R é claramente uma útil regra prá- ações que são em si mesmas cor-
cos, é provável que, na maioria das vezes, tica. Se não temos tempo ou não somos retas (ou erradas) em termos de
agirão de um modo utilitarista extremo imparciais o suficiente para avaliar as utilidade, mas sim aquelas ações
se elas não tentarem pensar como utili- consequências de uma ação, é uma apos- cujo ato de louvar (ou condenar)
produzirá a máxima utilidade –
taristas extremos. 8 Vimos o quão fácil ta extremamente boa que a coisa a fazer que serão normalmente aquelas
é aplicar de forma errada o critério do seja agir de acordo com R. Porém, não que seguem as regras práticas que
utilitarismo extremo no caso do divórcio. é monstruoso supor que, se tivéssemos mais conduzem à utilidade.
Sidgwick parece pensar que é provável calculado as consequências e se tivésse-
que um utilitarista extremo não deva di- mos confiança total na imparcialidade 7
vulgar a sua doutrina tão amplamente. de nossos cálculos, e se soubéssemos que Outra razão para confiar
Todavia, o grande perigo para a huma- neste momento quebrar R traria melho- nas regras práticas é que
preconceitos pessoais muito pro-
nidade vem hoje do plano da moralida- res resultados do que mantê-la, devería- vavelmente levam a um cálculo
de pública – não da moralidade privada. mos ainda assim obedecer à regra? Não utilitarista incorreto.
Há um perigo maior para a humanidade é elevar R a um tipo de ídolo, se a man- (Observe que Smart está
oriundo da bomba de hidrogênio do que temos quando, por infringi-la, evitamos, supondo que as regras da
“moralidade de senso comum”
oriundo do aumento da taxa de divórcio, por exemplo, alguma miséria? Não é essa
são de fato aquelas que tendem a
apesar de ser esse censurável. Parece que uma forma de superstição, de adoração produzir a maior utilidade se usa-
não há dúvidas de que o utilitarismo ex- à regra (facilmente explicável em termos das desse modo – algo que não é
tremo é bem-sucedido em questões de re- psicológicos), e não um pensamento ra- claro ou obviamente correto.)
lações internacionais. (...) Eu mesmo não cional de um filósofo? 9
8
hesito em dizer que, com base em prin- O ponto pode ser mais bem-escla-
cípios do utilitarismo extremo, devemos recido se consideramos a comparação de Deve o utilitarista de ato
divulgar o utilitarismo extremo tão am- Mill de regras morais com tabelas em um tentar convencer as pessoas
de que o utilitarismo de ato é cor-
plamente quanto possível. Mas Sidgwick almanaque náutico. (...) Essa comparação reto – isto é, tentar convencê-las a
tinha razões respeitáveis para suspeitar de Mill é usada por Urmson como evidên- acreditar no que ele pensa ser cor-
do contrário. cia de que Mill foi um utilitarista restrito, reto? Visto que essa é justamente
O utilitarista extremo, então, vê mas não penso que essa interpretação outra ação para ser avaliada de
acordo com o utilitarismo de ato,
as regras morais como regras práticas e possa ser sustentada no todo. (Embora do mesmo modo, um utilitarista
como fatos sociológicos que devem ser eu concorde completamente com Urmson de ato deve fazer isso somente se
levados em consideração quando se de- que muitas outras coisas que Mill disse ela produz os melhores resultados
cide o que fazer, justamente como se leva estão em harmonia com o utilitarismo em termos de utilidade – o que
poderia muito bem não ser o
em consideração fatos de qualquer outro restrito, e não com o extremo. Provavel- caso se as pessoas não são muito
tipo. Contudo, por si mesmos, eles não mente, Mill nunca pensou muito sobre a boas em fazer os tipos de cálculos
justificam qualquer ação. distinção e estava argumentando em favor relevantes.
do utilitarismo, seja restrito ou extremo,
contra outras formas não utilitaristas de 9
III argumentação moral.) Mill afirma: “Nin- Aqui está o problema fun-
guém argumenta que a arte de navegação damental para o utilitarismo
de regra: por que, de um ponto de
O utilitarista restrito vê as regras não está fundada na astronomia pelo fato vista utilitarista, uma determinada
morais como sendo mais do que simples de que os marinheiros não podem esperar regra deve ser seguida, mesmo
regras práticas para encurtar os cálculos o cálculo do Almanaque Náutico. Sendo quando a pessoa está completa-
das consequências. Comumente, assim criaturas racionais, eles se lançam ao mar mente certa de que fazer algo dife-
rente levará a uma maior utilidade?
ele argumenta, as consequências não são com ela já calculada, e todas as criaturas Aquela regra é, assim supomos,
de modo algum relevantes para decidir- racionais vão ao mar da vida já com uma uma regra que produz resultados
mos o que temos de fazer em um caso opinião formada sobre as questões do cer- máximos em termos de utilidade
particular. Em geral, elas são relevantes to e do errado, tanto quanto sobre muitas quando geralmente seguida (ou
um membro de um conjunto
apenas para decidir que regras são boas das questões mais difíceis sobre a sabedo-
amplo de regras que têm essa
razões para agir de certo modo em casos ria e a loucura. (...) Seja lá que princípio característica), mas por que isso
particulares. Essa doutrina é possivel- fundamental da moralidade adotemos, interessa, se segui-la não produz
mente uma boa concepção de como um vamos precisar de princípios subordinados os melhores resultados no caso
inglês moderno do século XX, não mui- realmente em questão? (Como
para aplicá-lo”. Observe que, assim como
Smart continua argumentando, o
to reflexivo, frequentemente considera a está, esse argumento serve apenas para exemplo do navegador, dado por
moralidade, mas é por certo monstruosa princípios subordinados como regras prá- Mill, não sustenta tal resultado.)
414 Laurence BonJour & Ann Baker

ticas. O exemplo do almanaque náutico é pensam sobre a moralidade, mas com


enganador, porque a informação dada no como elas devem pensar. Podemos muito
almanaque é, em todos os casos, a mes- bem imaginar um grupo de marinheiros
ma que a informação que alguém obteria que adquiriu uma reverência supersticiosa
se fizesse um longo e trabalhoso cálculo ao seu almanaque, mesmo que ele estives-
a partir dos dados astronômicos originais se certo em apenas 99% dos casos, e que
sobre os quais o almanaque está baseado. indignamente jogassem ao mar qualquer
Suponha, todavia, que a astronomia fosse homem que mencionasse a possibilidade
diferente. Suponha que o comportamento de um cálculo direto. Mas seria racional
do sol, da lua e dos planetas fosse muito esse comportamento dos marinheiros?
parecido como é agora, mas que em algu- Consideremos um tipo de caso mui-
mas raras ocasiões houvesse irregularida- to discutido, no qual o utilitarista extremo
des e descontinuidades muito peculiares e vai contra a regra moral convencional.
que, então, o almanaque nos desse regras Prometi a um amigo, morrendo em uma
da forma “em 99% dos casos nos quais as ilha deserta da qual sou posteriormente
observações são tais e tais, você pode de- resgatado, que eu iria fazer com que a
duzir a sua posição assim e assim”. Além sua fortuna (sobre a qual tenho controle)
disso, vamos supor que existam métodos fosse dada a um jockey clube. Todavia,
que nos permitam, a partir dos dados as- logo após ser resgatado, decidi que seria
tronômicos originais e por meio de cálcu- melhor doar o dinheiro a um hospital,
los diretos e laboriosos, não usando tabelas que pode fazer dele melhor proveito. Se-
rústicas e prontas do almanaque, obter a ria possível argumentar que é errado dar
nossa posição correta em 100% dos casos. o dinheiro ao hospital. Mas por quê?
Os navegadores podiam usar o almanaque
porque nunca tinham tido tempo para fa- a) O hospital pode fazer mais bem às
zer os longos cálculos e estavam satisfeitos pessoas com o dinheiro do que o jo-
com uma chance de 99% de ter sucesso ckey clube.
ao calcular as suas posições. Não seria ab- b) O caso presente é diferente da maioria
surdo, porém, se fizessem o cálculo direto dos casos de promessa, pois ninguém
e, ao descobrir que ele está em desacordo exceto eu mesmo sabe a respeito da
com o cálculo do almanaque, ainda assim promessa. Ao quebrar a promessa,
o ignorassem e se apegassem à conclusão estou fazendo isso em completo se-
do almanaque? Sem dúvida, o caso seria gredo e não estou fazendo nada para
alterado se houvesse uma probabilidade diminuir a confiança nas promessas.
alta o suficiente de cometer erros no cál- Isto é, há um fator que normalmente
culo direto. Então, poderíamos nos apegar manteria o utilitarista extremo longe
ao resultado do almanaque, sujeito a erro de quebrar a promessa mesmo em
como sabíamos, simplesmente porque o casos não otimizadores, mas que não
cálculo direto estaria sujeito ao erro por funciona no presente caso.
uma razão diferente, a saber, a falibilidade c) Há certamente um pequeno enfraque-
do computador. Isso seria análogo ao caso cimento do meu próprio caráter como
10 do utilitarista extremo, que se prende a re- um mantenedor habitual de promes-
gras convencionais contra os ditames dos sas e, além disso, tensões psicológicas
Aqui estão duas outras
coisas, bastante relaciona-
cálculos utilitaristas simplesmente porque vão se formar em mim cada vez que
das uma com a outra, a que um pensa que seus cálculos estão provavel- sou perguntado sobre o que o homem
utilitarista de ato poderá apelar ao mente afetados pelos seus preconceitos me fez prometer-lhe.
tentar mostrar que suas concep- pessoais. Contudo, se o navegador estiver
ções não conflitam com nossas
convicções morais, ponderadas
seguro de seus cálculos diretos, não se- Certamente, terei de dizer que ele
em casos como esse: primeiro, os ria ele tolo ao apegar-se ao seu almana- me fez prometer dar o dinheiro ao hos-
efeitos sobre o caráter moral do que? Eu concluo, então, que, se mudamos pital e, visto que sou habitualmente uma
agente por quebrar a promessa nossas suposições sobre a astronomia e pessoa confiável, isso irá contra aquilo que
(porque isso fará, como questão
o almanaque (para o qual não havia ex- estou pensando. 10 De fato, estou bastan-
de um fato psicológico, com que
ele mais facilmente quebre pro- ceções) para alinhar o caso à moralidade te seguro de que na prática eu manteria a
messas em outros casos, mesmo (cujas regras têm exceções), o exemplo de promessa. Porém, não estamos discutindo
quando tal ação não produzir Mill perde a sua aparência de dar suporte o que meus hábitos morais provavelmen-
maior utilidade); segundo, a não
à forma restrita do utilitarismo. Deixe-me te me levariam a fazer. Estamos discutin-
utilidade resultante do conflito
e do desconforto psicológicos dizer, mais uma vez, que não estou aqui do o que eu devo fazer. Além disso, não
experimentados pelo agente. preocupado em como pessoas comuns podemos esquecer que, mesmo se fosse
Filosofia: textos fundamentais comentados 415
mais racional para mim doar o dinheiro de que fiz a coisa errada ao regar o meu 11
ao hospital, também seria mais racional jardim? Todavia, esse ainda é um caso Smart parece sugerir que a
para você punir-me ou condenar-me se mais fraco do que aquele do hospital e ação correta no caso descri-
você descobrisse, mesmo não sendo isso do jockey clube. Haverá tensões criadas to é quebrar a promessa. Contudo,
provável, a verdade (por exemplo, encon- em mim: meu conhecimento secreto de não se segue (ver a Anotação 6 e a
passagem correspondente) que a
trando um bilhete em uma garrafa à beira que quebrei uma regra tornará difícil que pessoa não deverá ser condenada
da praia). Além disso, eu concordaria que, eu exorte as outras pessoas a seguir a re- (ou mesmo punida) se ela for
embora fosse mais racional para mim doar gra. Esses efeitos psicologicamente ruins pega fazendo isso – novamente, a
o dinheiro ao hospital, seria mais racional podem não ser desconsideráveis: direta escolha entre louvar ou condenar
ou nenhuma delas (tanto quanto
que você me condenasse por fazê-lo. Vol- ou indiretamente, eles podem levar a um a escolha entre recompensar ou
tamos novamente à distinção de Sidgwick dano que é ao menos da mesma ordem punir ou nenhuma delas) são
entre a utilidade de uma ação e a utilidade que a felicidade das senhoras idosas que escolhas separadas, elas próprias
de louvá-la. 11 recebem as flores no asilo. Você pode ver sujeitas à avaliação utilitarista.
(Observe que isso significa
(...) Seria útil (...) considerar um ou- que, do ponto de vista do utilitarista ex- que, se a pessoa deve ser
tro exemplo. (...) Suponha que durante o tremo, há dois lados da questão. 12 punida, isso não depende mais de
verão haja um decreto de que a água não se ela fez algo errado e, portanto,
deve ser usada para regar o jardim. Tenho ... merece ser punida.)
um jardim e penso que a maioria das pes-
soas estará certamente obedecendo ao de- Concluo que, em cada caso, se há
uma regra R cuja manutenção é em geral 12
creto e que a quantidade de água que eu
usar causará um dano negligenciável caso otimizadora, mas de tal modo que em al- Isto é, para um utilitarista
eu a use secretamente. Assim, eu utilizo gum tipo especial de circunstância o com- de ato, o caso pode ir em
portamento otimizador é quebrar R, então, ambas as direções, dependendo
a água produzindo flores maravilhosas, dos detalhes em relação a esses
que trazem felicidade para várias pessoas. nessas circunstâncias, devemos quebrar R. assuntos, ao passo que, para um
Você ainda poderá dizer que, embora a Certamente, devemos considerar todos os utilitarista de regra, não pode
ação tenha sido ótima em termos de utili- efeitos menos óbvios de quebrar R, tais existir incerteza (se a regra melhor
como reduzir a fé das pessoas na ordem ou o conjunto de regras diz que
dade, ela foi injusta e errada. sempre se deve seguir tais decre-
Há muitas outras questões a con- moral, antes de chegar à conclusão de que tos). Smart está sugerindo que o
siderar. Sem dúvida, minha ação deve quebrar R é correto: de fato, raramente resultado correto de fato depende
ser condenada. Voltamos, novamente, à chegaremos a essa conclusão. Regras mo- desses detalhes incertos. Desse
rais, de um ponto de vista do utilitarista modo, a posição do utilitarista de
distinção de Sidgwick. Uma ação corre- regra, segundo a qual o assunto
ta pode ser racionalmente condenada. extremo, são somente regras práticas, estaria completamente claro, está
Além disso, esse tipo de ofensa normal- mas não são más regras práticas. Porém, ela mesma equivocada.
mente é descoberto. Se tenho um jardim se de fato chegamos à conclusão de que
maravilhoso quando o de todos está seco devemos infringir a regra e se pesamos na
e murcho, só existe uma explicação. Por- balança a nossa própria falibilidade e res-
tanto, se rego o meu jardim, estou enfra- ponsabilidade com nossos preconceitos,
quecendo meu respeito pela lei e pela or- que boa razão permanece para manter
dem e, como isso leva a maus resultados, a regra? Posso entender “é otimizador”
um utilitarista extremo concordaria que como uma razão para a ação, mas por que
eu estava errado ao regar o meu jardim. “é um membro de uma classe de ações que
Suponha, agora, que o caso é alterado e são normalmente otimizadoras” ou “é um
mantenho a coisa em segredo: há uma membro de uma classe de ações que como
parte marcada do meu jardim onde cul- classe são mais otimizadoras do que qual-
tivo flores que são doadas anonimamente quer classe geral alternativa” deveria ser
a um asilo. Você ainda está tão convicto uma boa razão? (... )

Questões para Discussão


1. Considere novamente o caso da quebra liar todos os resultados relevantes em
de promessa formulada por Smart na termos de utilidade, incluindo aqueles
Anotação 9. mencionados na Anotação 11. Esse
caso constitui uma séria objeção ao
a) De acordo com as suas convicções mo-
utilitarismo de ato?
rais ponderadas, qual é a escolha corre-
ta a se fazer nesse caso? 2. Aqui está outro tipo padrão de caso-pro-
b) O que o utilitarismo de ato afirma ser blema para o utilitarismo de ato: suponha
o resultado correto? Isso requer ava- que uma série de assassinatos horríveis de
416 Laurence BonJour & Ann Baker

membros de um grupo minoritário, apa- b. O que diria um utilitarista de regra so-


rentemente motivados por preconceitos bre esse caso?
raciais, tenha sido cometida em uma pe-
3. Um problema com o utilitarismo de regra,
quena cidade, e a polícia é incapaz de cap-
não mencionado por Smart, é a possibili-
turar a pessoa ou as pessoas responsáveis.
dade de regras mais complexas, especifi-
As tensões estão crescendo, havendo uma
cando exceções à regra principal quando
ameaça série de motim e conflitos aber-
isso produz maior utilidade. Assim, al-
tos entre o grupo minoritário e o grupo
guém poderia ter uma regra que orde-
majoritário. Você é o detetive responsável
nasse manter as promessas a não ser que
pelo caso e está em uma posição de pren-
quebrá-las pudesse ser feito em segredo
der com sucesso um membro inocente do
e aumentar a utilidade. Ou uma regra que
grupo majoritário por alguns dos assassi-
diz que pessoas inocentes não devem ser
natos. Além disso, essa pessoa não tem fa-
punidas a menos que possam ser presas
mília, emprego regular e contribui pouco
e enquadradas com sucesso (assim, todos
com a comunidade. Você deve prendê-la,
pensam que elas são culpadas), havendo,
produzindo a convicção e a eventual exe-
novamente, um ganho de utilidade. Se
cução pelos crimes em questão, aliviando
tais regras são permitidas, então o utili-
assim grande parte da tensão e talvez
tarismo de regra não consegue evitar es-
também dissuadindo as pessoas dos dois
ses problemas típicos para o utilitarismo,
lados, que de outro modo poderiam estar
visto que o melhor conjunto de regras
motivadas a cometer mais assassinatos ou
ainda levará às ações aparentemente ina-
entrar em todo o tipo de violência?
ceitáveis em questão. Há alguma razão
a. O que um utilitarista de ato como que um utilitarista de regra possa dar para
Smart diria sobre tal caso, conside- excluir regras desse tipo? Com efeito, há
rando todos os fatores relevantes e alguma razão para excluir o próprio prin-
lembrando que prender uma pessoa cípio da utilidade como a regra relevante
inocente é uma ação, de acordo com (entendendo que isso levará à frequente
o utilitarista de ato, que deve ser ava- confiança em regras práticas da maneira
liada inteiramente em termos de suas como Smart discute)? (Se o princípio da
consequências? (Complete os detalhes utilidade é uma regra aceitável, então pa-
do caso ou considere diferentes alter- rece não haver diferença real entre o utili-
nativas se você precisar.) tarismo de ato e o utilitarismo de regra.)

Bernard Williams
Bernard Williams (1929-2003) foi um filósofo britânico que lecionou principalmente
na Universidade de Cambridge. Williams fez importantes contribuições para muitas áreas
da filosofia, em especial para a ética, em que suas críticas sutis ao utilitarismo e ao kantis-
mo refletem um temperamento distintivamente cético. Na seleção que segue, extraída
de sua mais influente discussão com o utilitarismo, Williams coloca dois casos-problema
amplamente discutidos e argumenta, entre outras coisas, que o utilitarismo falha em dar
relevância adequada aos projetos e compromissos* individuais da própria pessoa.

Uma Crítica ao Utilitarismo7

Responsabilidade negativa sas consiste naquilo que eu faço ou se é


e dois exemplos produzido por aquilo que eu faço, pois a
noção é ampla o suficiente para incluir,
(...) O consequencialismo é basica- por exemplo, situações nas quais as ou-
mente indiferente a se um estado de coi- tras pessoas fazem coisas que eu as fiz

* N. de R.T. No original, commitment. O vocábulo deve ser entendido neste texto como um engajamen-

to, tal como dizemos estar “engajados” em uma causa ou em um projeto.


7 Extraído de Utilitarism: For and Against, por J.J.C. Smart e Bernard Williams (Cambidge: Cambidge

University Press, 1973).


Filosofia: textos fundamentais comentados 417
fazer, permiti que façam, encorajei-as a A doutrina forte da responsabili-
fazer ou dei-lhes uma chance de fazer. dade negativa segue-se diretamente da
Tudo em que o consequencialismo está atribuição consequencialista de valor úl-
interessado é na ideia de que essas ações timo a estados de coisas. A partir de um
são consequências do que eu faço, e esta outro ponto de vista, ela pode ser encara-
é uma relação ampla o suficiente para in- da como uma aplicação especial de algo
cluir as relações há pouco mencionadas e que é sustentado por outras concepções
muitas outras. 1 morais que não são consequencialistas – 1 Definição
(...) Há certas situações nas quais a certamente, algo que alguns pensadores Consequencialismo é a
produção da situação, a relação que ela estão dispostos a considerar como sendo concepção mais geral
tem com o que eu faço, não é de modo al- a própria essência da moralidade: um da qual o utilitarismo é a espécie
mais importante: a concepção se-
gum remota ou problemática em si mes- princípio da imparcialidade. Tal princípio gundo a qual a melhor ação moral
ma e justifica inteiramente a afirmação afirmará que não pode haver nenhuma é aquela que produz as melhores
de que a situação é uma consequência diferença relevante, a partir de uma pers- consequências totais.
do que eu faço. Por exemplo, é bastante pectiva moral, que consista justamente
claro, ou razoavelmente claro, que, se eu no fato, não mais explicável em termos
faço uma coisa, essa situação vai se pro- gerais, de que os benefícios e os danos
duzir e, se eu não faço, não se produzirá; aumentam para uma pessoa em vez de
assim, de um ponto de vista consequen- para outra – “sou eu” nunca pode por si
cialista, isso entra no cálculo das conse- ser uma razão moralmente compreensí-
quências junto com qualquer outro esta- vel. Podemos ver o consequencialismo
do de coisas que me é acessível. Todavia, estendendo esse princípio, familiar no
a partir de ao menos algumas concepções que diz respeito à recepção dos danos e
não consequencialistas, há uma diferença benefícios, à sua produção: de um ponto
vital entre tais situações e outras, a saber, de vista moral, não há diferença compre-
que algum elo vital na produção de um ensível que consista justamente no fato
eventual resultado é fornecido por algu- de eu produzir certo resultado em vez de
ma outra pessoa que faz algo. Contudo, alguma outra pessoa fazê-lo. (...)
para o consequencialismo, todas as cone- (...) Ora, (...) vamos atentar mais
xões causais estão no mesmo nível, e não concretamente a dois exemplos para ver
faz diferença, na medida em que isso está o que o utilitarismo poderia dizer sobre
em questão, se a produção de determina- eles, o que nós podemos dizer sobre o
do estado de coisas se dá através de outro utilitarismo e, mais importante de tudo,
agente ou não. 2 o que seria sugerido por certos modos de 2
(...) É porque o consequencialismo pensar sobre as situações. (...) Assim, por exemplo, se
associa o valor em última análise a es- alguém deliberadamente
tados de coisas, e a sua preocupação é 1. George, que acabou de obter o seu causa dano a outra pessoa de um
com os estados de coisas que o mundo Ph.D. em química, enfrenta extremas modo que eu poderia impedir,
então o dano produzido é tanto
possui, que ele envolve em última ins- dificuldades para conseguir um em- uma consequência de minha ação
tância a noção de responsabilidade ne- prego. Ele não é muito saudável, o (ou omissão) quanto um dano que
gativa: segundo ela, se sou alguma vez que diminui o número de empregos eu mesmo produzo deliberada-
responsável por algo, então eu devo ser em que pode atuar satisfatoriamente. mente.
tão responsável pelas coisas que permito A sua esposa precisa sair para traba-
ou falho em evitar quanto sou pelas coi- lhar para sustentá-los, o que causa
sas que eu próprio, em sentido cotidia- uma série de pressões, pois eles têm
namente mais restrito, produzo. Essas crianças pequenas e há problemas sé-
coisas também devem entrar da mesma rios sobre o cuidado relativo a elas. Os
maneira nas minhas deliberações, como resultados de tudo isso, especialmente
agente responsável que sou. O que im- para as crianças, são desastrosos. Um
porta é que estados de coisas o mundo químico mais velho, que sabe dessa
contém e, assim, o que importa em rela- situação, diz que pode conseguir um
ção a uma dada ação é o que é produzi- emprego decentemente remunerado
do se ela é feita e o que é produzido se para George, em um certo laboratório
ela não é feita. Essas questões não são que faz pesquisas para a indústria bé-
intrinsecamente afetadas pela natureza lica, química e biológica. George diz
das conexões causais, em particular se o que não pode aceitar isso, porque ele
resultado é parcialmente produzido por se opõe a guerras químicas e bioló-
outros agentes. gicas. O senhor mais idoso responde
418 Laurence BonJour & Ann Baker

que ele próprio não está muito entu- uma arma, poderia segurar o capitão,
siasmado com o assunto, mas mesmo Pedro e o restante dos soldados, ame-
a recusa de George não fará o empre- açando-os, (isto é, ameaçando-os e,
go ou o laboratório desaparecerem. assim, evitando a matança), mas tor-
Para piorar a situação, ele sabe que, se na-se muito claro pelo modo como as
George recusar o emprego, este cer- coisas estão dispostas que nenhuma
tamente irá para um conterrâneo de atitude desse tipo poderá funcionar.
George que não está inibido por tais Qualquer tentativa desse tipo signifi-
escrúpulos e, provavelmente, se de- cará que ele próprio e todos os indíge-
signado para a função, levará adiante nas serão mortos. Os homens contra a
a pesquisa com um zelo maior do que parede e os outros habitantes da vila
George teria. De fato, não é a mera compreendem essa situação e obvia-
preocupação com George e a sua fa- mente estão suplicando para que Jim
mília, mas (para falar franca e confi- aceite a oferta. O que ele deveria fa-
3 dencialmente) foi algum alarme sobre zer? 3
o excesso de zelo desse outro homem
pare Toda a discussão de
­Williams centra-se em que levou o químico mais idoso a ofe- Parece-me que a esses dilemas o uti-
dois exemplos. Você deve tentar recer a sua influência para conseguir litarista responde que, no primeiro caso,
decidir, antes de continuar a o emprego para George. (...) A esposa George deve aceitar o trabalho e, no se-
ler, (a) qual é a ação correta em
cada caso e (b) o que você pensa de George, a quem ele está profunda- gundo, que Jim deve matar o indígena.
que um utilitarista diria sobre mente ligado, tem concepções (cujos Não só o utilitarismo dá essas respostas,
eles. (Williams tem em mente, detalhes não nos devem preocupar) mas, se as situações são essencialmente
sobretudo, o utilitarismo de ato, segundo as quais, ao menos, não há como foram descritas e não há fatores es-
mas você pode refletir se alguma
outra versão do utilitarismo de
nada de particularmente errado com peciais adicionais, ele considera, parece-
regra poderia gerar um resultado a pesquisa na guerra química e bioló- -me, que essas são obviamente as respos-
diferente.) gica. O que ele deveria fazer? tas corretas. 4 No entanto, com certeza
2. Jim encontra-se na praça central de muitos de nós nos perguntaríamos se,
4 uma pequena cidade da América do em
Sul. Amarrados contra a parede há
pare Certifique-se de que você
entende claramente por uma fila de vinte indígenas, em sua 1. aquela poderia ser efetivamente a res-
que isso é assim. maioria apavorados, alguns poucos posta correta e, no caso
agressivos, diante de muitos homens 2. mesmo alguém que viesse a crer que
de uniforme armados. Um homem aquela era a resposta correta poderá
forte numa camisa cáqui suada é o se perguntar se ela é obviamente a
capitão responsável que, após mui- resposta correta.
to questionar Jim, que diz que está
ali por acidente, fazendo uma expe- Nem se trata apenas da questão de
dição botânica, explica que os indí- correção ou obviedade dessas respostas.
genas são um grupo selecionado ao Trata-se também do tipo de considera-
acaso que, após os recentes atos de ções que surgem ao se tentar encontrar
protesto contra o governo, serão mor- a resposta. Uma característica do utilita-
tos para lembrar aos outros possíveis rismo é que ele deixa de fora um tipo de
contestadores sobre as vantagens de consideração que, para alguns, faz uma
não protestar. Todavia, como Jim é diferença sobre o que sentimos acerca
um visitante ilustre de outro país, o de tais casos, uma consideração que en-
5 capitão está disposto a oferecer-lhe volve a ideia, a qual pode ser colocada
o privilégio concedido aos convida- de maneira simples, de que cada um de
Aqui está uma ideia anti-
consequencialista e antiu-
dos para matar um indígena. Se Jim nós é especialmente responsável pelo
tilitarista básica: a moralidade da aceita, então, como concessão espe- que ele faz, em vez de sê-lo pelo que as
ação de uma pessoa depende pri- cial do momento, os outros indígenas outras pessoas fazem. 5 Essa é uma
meiramente do que ela realmente serão libertados. Obviamente, se Jim ideia conectada com o valor da integri-
faz – do tipo específico de ação
recusa, então não haverá uma ocasião dade. Suspeita-se que o utilitarismo, ao
feita (e das consequências que
resultam diretamente dela sem a especial, e Pedro, aqui ao lado, terá menos em suas formas diretas, torna a
interferência de outras pessoas) – de fazer aquilo que estava por fazer integridade enquanto valor algo mais ou
e menos das consequências a que quando Jim chegou, isto é, matar to- menos ininteligível. Procurarei mostrar
a ação leva como resultado das
dos. Então, Jim, lembrando desespe- que essa suspeita é correta. Obviamen-
ações dos outros. (Ver a seleção
seguinte, de Kant, para uma radamente das ficções de seu tempo te, mesmo se ela for correta, daí não se
versão dessa concepção.) de escola, imagina que, se ele tivesse segue necessariamente que devemos re-
Filosofia: textos fundamentais comentados 419
jeitar o utilitarismo. Talvez, como alguns do mundo em geral de falar a verdade.
utilitaristas às vezes sugerem, devemos As exigências de certeza e probabilidade
somente esquecer a integridade em fa- dessas crenças como crenças sobre ações
vor de coisas como a preocupação com particulares são muito mais suaves do
o bem geral. Todavia, se eu estiver certo, que seriam sobre crenças que favorecem
não podemos apenas fazer isso, visto que o curso não convencional. (...) 7
a razão pela qual o utilitarismo não pode Deixando de lado esse ponto gené-
compreender a integridade é que ele não rico, quero agora considerar dois tipos de
consegue descrever coerentemente as re- efeito que são frequentemente invocados
lações entre os projetos de um homem e pelos utilitaristas e que poderiam ser
as suas ações. invocados em conexão com esses casos
imaginários. (...)
Primeiro, há o efeito psicológico
Dois tipos de efeito remoto sobre o agente. Nossas descrições dessas
situações não levaram em consideração
Muito do que temos para dizer acer- como George e Jim ficarão depois que
ca dessa questão será sobre as relações adotarem um curso de ação ou outro. Po-
entre os meus projetos e os projetos das der-se-ia dizer que, se adotarem o curso
outras pessoas. 6 Porém, antes de en- que parece à primeira vista ser o utilitaris- 6
trarmos nesse ponto, devemos perguntar ta, os efeitos sobre eles serão maus e ex- Por “projetos”, Williams
se não estamos admitindo muito rapida- tensos o suficiente para anular as vanta- entende os fins ou
mente quais são as respostas utilitaristas gens do curso utilitarista. Há uma versão propósitos de uma pessoa,
aos dilemas. Em termos de efeitos mais desse efeito em que, para um utilitarista, especialmente aqueles a que uma
diretos das possíveis decisões, certamen- maior importância é dada, que
alguma confusão deve estar envolvida, a são amplos no escopo e persistem
te não parece que se tenha muitas dúvi- saber, aquela em que o agente sente-se num longo período de tempo.
das sobre a resposta em cada caso, mas mal, sua conduta e suas relações subse-
seria possível dizer que, em termos de quentes são avariadas, e assim por dian- 7
efeitos mais remotos e menos evidentes, te, porque ele pensa que fez a coisa errada
poderiam ser encontrados contrapesos A questão é que a pro-
– se a relação dos resultados fosse como babilidade desse tipo de
para entrar na escala utilitarista. Assim, parecia ser antes de invocar esse efeito, consequência remota raramente é
o efeito sobre George de uma decisão de então ele, de um ponto de vista utilitaris- alta o suficiente para tornar plausí-
aceitar o emprego poderia ser invocada, ta, não fez a coisa errada. Assim, aquela vel que o fato de tê-las em conta
ou os seus efeitos sobre os outros que vi- genuinamente alterará a avaliação
versão do efeito, para um agente racional utilitarista no todo.
riam a tomar conhecimento da sua deci- e utilitarista, não poderia possivelmente
são. A possibilidade de haver no futuro fazer qualquer diferença para a avaliação 8
mais trabalhos beneficentes dos quais ele do certo e do errado. 8 Todavia, talvez
seria barrado ou aos quais seria desqua- ele não seja um agente completamente Não há nenhuma boa
lificado é algo que poderia ser menciona- razão para a pessoa estar
racional e esteja predisposto a ter senti- perturbada se ela fez, como o utili-
do, e assim por diante. Tais efeitos – em mentos maus, não importa o que decida tarismo sustenta, a coisa certa.
particular efeitos possíveis sobre o cará- fazer. Tais sentimentos, que são de um (E também, pode-se acres-
ter do agente e efeitos sobre o público ponto de vista utilitarista estritamente centar, não há nenhuma
em geral – são frequentemente invocados razão para o seu caráter moral ser
irracionais – nada, assim um utilitarista afetado de maneiras indesejáveis.)
pelos escritores utilitaristas que tratam pode salientar, é ganho ao tê-los –, não
de problemas como mentir ou quebrar podem consistentemente ter qualquer
promessas, e algumas considerações si- grande peso no cálculo utilitarista. Logo
milares poderiam ser invocadas. mais considerarei um argumento para su-
Há uma observação bastante geral gerir que eles não devem ter nele peso
que é importante fazer sobre argumentos algum. Contudo, o utilitarista poderia
desse tipo. A certeza que está associada razoavelmente dizer que tais sentimentos
a essas hipóteses sobre possíveis efeitos não deveriam ser encorajados, mesmo se
é normalmente muito baixa. Em alguns aceitarmos a sua existência. Dar-lhes um
casos, sem dúvida, a hipótese invocada é peso muito grande é encorajá-los. Ou,
tão implausível que raramente passaria quando muito, mesmo que eles sejam,
se não estivesse sendo usada para chegar diretamente e sem qualquer desconto,
à resposta moralmente respeitável, como colocados no cálculo, o seu peso deve
na fantasia habitual de que um dos efei- ser muito pequeno, pois são, no final das
tos de alguém contar uma mentira parti- contas (e no melhor dos casos), os senti-
cular é o enfraquecimento da disposição mentos de um homem.
420 Laurence BonJour & Ann Baker

Essa consideração parece ter força rença, está nesse sentido baseado numa
considerável no caso de Jim. No caso de confusão não significa que ele não seja
George, os seus sentimentos representam perfeitamente real, nem que deva ser
uma proporção maior do que deve ser descontado; efeitos sociais são, por sua
pesado e são mais comensuráveis do que própria natureza, confusos. O que ele
outros itens no cálculo. No caso de Jim, enfatiza é que os cálculos do efeito pre-
porém, os seus sentimentos parecem ter cedente têm de ser realistas, envolvendo
pouco peso se comparados com as outras considerações sobre como as pessoas re-
coisas que estão em jogo. (...) almente são suscetíveis de ser influen-
Se, então, alguém realmente consi- ciadas. Nos exemplos atuais, contudo,
derará seus sentimentos de um ponto de é muito implausível pensar que o efeito
vista estritamente utilitarista, Jim deve precedente poderia ser invocado para fa-
dar pouco peso aos seus sentimentos. Pa- zer alguma diferença no cálculo. O caso
rece quase indecente, de fato, quando al- de Jim é incomum o bastante e é difícil
guém assumiu aquela perspectiva, supor imaginar quem poderiam ser os recepto-
que ele deve dar a eles algum peso. (...) res do efeito; George, por sua vez, não
O efeito psicológico sobre o agen- está em uma situação ou função pública
te foi o primeiro de dois efeitos gerais, para que a questão seja suficientemente
considerados pelos utilitaristas, que tinha levantada daquela forma e, seja como
de ser discutido. O segundo é via de re- for, seria possível supor que as motiva-
gra um item mais substancial, mas não é ções dos outros sobre tal assunto muito
preciso ater-se a ele, visto que está claro provavelmente já estariam fixadas de um
e tem pouca aplicação aos casos em dis- modo ou de outro.
cussão. Esse é o efeito precedente. Como Nenhum apelo, então, a esses ou-
Burke corretamente enfatizou, esse efei- tros efeitos fará alguma diferença para o
to pode ser importante: que alguém possa modo como o utilitarista decidirá sobre
moralmente fazer o que realmente fez é esses exemplos. Agora, olhemos mais de
um princípio psicologicamente efetivo, perto para a estrutura dessas decisões.
mesmo que não seja um princípio de-
onticamente válido. É óbvio que, para o
efeito funcionar, algumas condições de- Integridade
vem ser satisfeitas sobre a publicidade do
ato e sobre coisas tais como o estatuto do As situações têm em comum o fato
agente (...); quais devem ser elas é algo de que, se o agente não faz certa coisa
que, evidentemente, variará com as cir- desagradável, alguma outra pessoa o
9 cunstâncias. 9 fará, e na situação de Jim, ao menos o
Por “estatuto do agente”, Para que o efeito precedente faça resultado, o estado de coisas depois que
Williams entende coisas uma diferença no cálculo utilitarista, ele o outro homem agiu, se ele o fizer, será
tais como se a pessoa em questão deve estar baseado numa confusão. Su- pior do que depois que Jim agir, se ele o
é especialmente proeminente ponha que há um ato que seria o melhor fizer. O mesmo é verdadeiro, em escala
ou respeitada, visto que a ação
da pessoa que é especialmente nas circunstâncias, exceto que, fazendo- menor, no caso do George. Já sugeri que
notável desse modo provavel- -o, encorajar-se-ão, pela precedência, é inerente ao consequencialismo que ele
mente influenciará mais os outros. outras pessoas a fazer coisas que não oferece uma doutrina forte da responsa-
(Dizer que o princípio “que alguém são as melhores coisas a fazer. Logo, a bilidade negativa. Se sei que se eu fizer
pode fazer o que realmente fez”
não é “deonticamente” válido é situação dessas outras pessoas deve ser X, O1 será o resultado e, se eu não fizer
apenas dizer que ele não reflete significativamente diferente daquelas do X, O2 será o resultado e que O2 é pior que
um bom raciocínio moral. O que agente original. Se não fossem, então, ao O1, então sou responsável por O2 se eu
uma outra pessoa fez pode ainda fazer o mesmo que seria o melhor para voluntariamente deixar de fazer X. Assim,
ser moralmente inaceitável para
ele ou para você.)
o agente original, elas próprias fariam pois, seria dito para Jim pelos parentes
necessariamente a melhor coisa. Porém, dos outros indígenas: “Você poderia ter
se as situações se mostram, dessa manei- evitado”, e isso seria verdadeiro se Jim se
ra, relevantemente diferentes, deve ser recusasse a fazer o proposto. (...)
confusa aquela percepção que considera Isso pode ser o suficiente para falar-
a primeira situação, bem como a condu- mos, em algum sentido, da responsabili-
ta do agente nela, como um precedente dade de Jim pelo resultado, se ele ocorrer,
adequado para a segunda. certamente mas não é suficiente, é válido
Todavia, o fato de que o efeito pre- de se notar, para falarmos de Jim como
cedente, se ele realmente faz uma dife- fazendo com que essas coisas aconteçam.
Filosofia: textos fundamentais comentados 421
Afinal, garantido esse resultado concer- Além desses, alguém pode ter proje-
nente a elas, ele poderia tê-las feito acon- tos conectados com o seu apoio a alguma
tecer somente ao fazer Pedro atirar, e não causa: por exemplo, o sionismo ou a abo-
há nenhum sentido no qual a sua recusa lição da guerra biológica ou química. Ou
faz com que Pedro atire. Se o capitão ti- poderiam existir projetos que decorrem
vesse dito diante da recusa de Jim “você de uma disposição mais geral em relação
não me deixa nenhuma outra alternati- à conduta humana e ao caráter, tais como
va”, ele estaria mentindo, como muitos odiar a injustiça, a crueldade ou a ma-
que usam essa frase. Enquanto as mortes tança.
e a matança podem ser o resultado da re- (...) O utilitarismo acertaria, então,
cusa de Jim, é enganador pensar, nesse ao reconhecer o fato evidente de que en-
caso, que Jim tem um efeito sobre o mun- tre as coisas que tornam as pessoas felizes
do através do meio (tal como acontece) não está somente fazer as outras pessoas
dos atos de Pedro. Isso seria deixar Pedro felizes, mas ser considerado ou estar en-
de fora da situação no seu papel essencial volvido em algum dos inúmeros projetos
de alguém que tem intenções e projetos, ou – se acenamos às associações evangé-
projetos para realizar a que a recusa de licas e moralizantes da palavra – compro-
Jim dará uma oportunidade. 10 Em vez misso. Alguém pode estar comprometido 10
de pensar em termos dos supostos efeitos com coisas como uma pessoa, uma causa, É Pedro, e não Jim, que terá
dos projetos de Jim sobre Pedro, é mais uma instituição, uma carreira, o próprio um efeito sobre o mundo,
esclarecedor pensar em termos dos efei- talento ou a busca do perigo. caso venha a matar os prisionei-
tos dos projetos de Pedro sobre a decisão Ora, nenhum deles é, por si mesmo, ros.
de Jim. Essa é a direção a partir da qual a busca da felicidade: dito através de um
quero criticar a noção de responsabilida- chavão muito antigo, não é de todo cla-
de negativa. ro que ela fosse justamente aquilo ou, ao
menos, alguma coisa que tivesse a menor
...
chance de ser bem-sucedida em sê-lo. Em
Que projetos um agente utilita- vez disso, a felicidade requer estar en-
rista tem? Como utilitarista, ele tem o volvido em ou, ao menos, contente com
projeto geral de produzir o máximo de outra coisa. Não é impossível para o uti-
resultados desejáveis. Como ele fará isso litarismo aceitar esse ponto. Ele não tem
em algum momento é uma questão, por de estar sobrecarregado com uma filoso-
assim dizer, de quais alavancas causais fia da mente ingênua e absurda sobre a
estão ao alcance naquele momento. Os relação entre desejo e felicidade. O que
resultados desejáveis, todavia, não con- ele deve dizer é que, se tais compromis-
sistem apenas de agentes que realizam sos valem a pena, então buscar realizar
aquele projeto. Devem existir outros os projetos que deles decorrem e, de fato,
projetos mais básicos ou de uma ordem realizar alguns desses projetos tornará
mais baixa que ele e os outros agentes feliz a pessoa a quem eles são valiosos.
têm, e os resultados desejáveis consisti- Pode ser que sustentar isso ainda seja
rão, em parte, da realização harmoniosa errado. Pode ser que um compromisso
máxima daqueles projetos (“em parte” faça sentido a um homem (dê sentido à
porque um componente de um resulta- sua vida) sem que ele suponha que isso
do utilitaristicamente desejável pode ser o tornará feliz. Mas esse agora não é o 11
a ocorrência de experiências agradáveis ponto. Reconheçamos ao utilitarismo que A felicidade, em qualquer
que não satisfazem aos projetos de nin- todos os projetos humanos valiosos de- sentido significativo, parece
guém). A não ser que existam projetos vem conduzir, de um modo ou de outro, pressupor a existência de outros
tipos de desejos e compromissos,
de primeira ordem, o projeto utilitarista à felicidade. O ponto é que, mesmo que além justamente daquele de pro-
geral não terá nada com o que trabalhar isso seja verdadeiro, não se segue, nem curar a felicidade – o que Williams
e seria vazio. 11 O que contêm os proje- poderia possivelmente ser verdadeiro, entende por projetos. Um
tos mais básicos ou de primeira ordem? que aqueles projetos sejam em si mesmos agente particular poderia almejar
somente a satisfação máxima dos
Muitos serão desejos óbvios por coisas projetos de busca da felicidade. Alguém
projetos das outras pessoas, mas
para si, para a família, para os amigos, deve acreditar, ou ao menos querer, ou de este não pode ser o alvo único
incluindo as necessidades básicas da vida forma mínima estar contente com outras de todos, pois assim não haveria
e, em circunstâncias mais relaxadas, ob- coisas, para que possa haver algum lugar mais projetos específicos para
serem realizados. (Este ponto está
jetos de gosto. Ou poderão ser projetos e de onde venha aquela felicidade.
relacionado com a distinção de
interesses de caráter intelectual, cultural O utilitarismo, então, deveria estar Feinberg entre dois sentidos de
ou criativo. (...) disposto em concordar que o fim geral de prazer [ver p. 523-524].)
422 Laurence BonJour & Ann Baker

maximizar a felicidade não implica que o onde está. Isso significa que os projetos
que todo mundo está fazendo é somen- dos outros, numa extensão indetermina-
te buscar a felicidade. Pelo contrário, as damente grande, determinam a sua de-
pessoas devem estar procurando outros cisão.
tipos de coisas. Quais seriam essas outras Isso pode ser assim tanto negativa
coisas, o utilitarismo, prendendo-se ao quanto positivamente. Será positivamen-
seu declarado domínio empírico, deveria te se os agentes que estão no campo cau-
estar preparado para descobrir. Sem dúvi- sal de sua decisão tiverem projetos que,
da, alguns projetos ele procuraria desen- de qualquer modo, não produzem dano
corajar, na medida em que a sua busca e e então devem ser assistidos. Será igual-
realização envolveriam um peso negati- mente assim, mas negativamente, se hou-
vo sobre a felicidade dos outros, embora ver um agente no campo causal cujos pro-
mesmo ali o olhar fixo e calculista do uti- jetos são danosos e tem de ser impedido
litarista estrito terá algo a colocar no lado de realizá-los para maximizar resultados
positivo da coluna, a saber, as satisfações desejáveis. Esse é o caso com Jim e com
do agente destrutivo. Além disso, haveria o soldado Pedro. De um ponto de vista
uma grande variedade de projetos geral- utilitarista, os projetos indesejáveis das
mente beneficentes ou, no mínimo, ino- outras pessoas determinam, desse modo
fensivos. Alguns, sem dúvida, tomariam a negativo, tanto as decisões de alguém
forma não apenas de questões de gosto ou quanto os projetos desejáveis determi-
fantasia, mas do que chamei de “compro- nam positivamente: se aquelas pessoas
missos”. Pode até ser que o pesquisador não estivessem lá ou tivessem projetos
utilitarista descobrirá que muitas daque- diferentes, o nexo causal seria diferen-
las pessoas com compromissos, que real- te, e é o estado atual do nexo causal que
mente se identificaram com objetos fora determina a decisão. A determinação de
de si próprias, que estão completamente um grau indefinido de minhas decisões
envolvidas com outras pessoas, institui- pelos projetos de outras pessoas é somen-
ções, atividades ou causas, são realmente te outro aspecto da minha responsabili-
mais felizes do que aquelas cujos projetos dade ilimitada de agir pelo melhor, num
e vontades não são assim. Se esse for o esquema causal formado numa extensão
12 caso, trata-se de um elemento importante considerável pelos seus projetos. 12
da doutrina empírica utilitarista. A decisão assim determinada é, para
Embora o agente utilitarista
tenha em casos normais o utilitarismo, a decisão correta. Mas o
...
seus próprios projetos e compro- que acontece se ela conflita com algum
missos, estes não desempenham Voltemos agora ao agente como projeto meu? Isso, dirá o utilitarista, já
um papel no cálculo utilitarista
utilitarista e aos seus projetos de ordem foi discutido: a satisfação por você rea-
geral maior do que qualquer
projeto ou compromisso dos superior de maximizar resultados desejá- lizar o seu projeto, e qualquer satisfação
outros a quem ele está numa veis. Nesse nível, ele está comprometido da parte dos outros por você agir assim,
posição de afetar, seja positiva, apenas com o seguinte: quais serão real- já foi levada em consideração através do
seja negativamente. O peso que
mente os resultados é algo que depende- expediente de cálculo e resultou inade-
os seus próprios projetos terão é
algo que depende de quais são os rá inteiramente dos fatos, de que pessoas quada. Ora, em muitos tipos de proje-
outros projetos e quais são as suas com quais projetos e que satisfações po- tos, esse é um tipo bastante razoável de
relações com eles. tenciais há dentro do escopo calculável resposta. Porém, no caso de projetos do
dos dispositivos causais perto dos quais tipo que tenho chamado de “compromis-
ele se encontra. Seus projetos substan- sos”, aqueles com os quais alguém está
ciais próprios e compromissos entram no mais profunda e amplamente envolvido
cálculo, mas só como um entre outros – e identificado, esta não pode ser por si
eles potencialmente proporcionam um mesma uma resposta adequada e talvez
conjunto de satisfações entre aqueles que não possa existir, de maneira alguma,
ele é capaz de assistir a partir de onde qualquer resposta adequada. Tomando
ele se encontra. Ele é o agente do sistema o tipo extremo de caso, como pode um
de satisfação que acontece de estar num homem, na categoria de um agente uti-
ponto particular em um tempo particu- litarista, vir a considerar como uma sa-
lar: no caso de Jim, é na América do Sul. tisfação entre outras – e uma satisfação
Suas próprias decisões como um agente dispensável – um projeto ou uma atitude
utilitarista são uma função de todas as em torno da qual ele construiu a sua vida,
satisfações que ele pode afetar do lugar simplesmente porque os projetos de uma
Filosofia: textos fundamentais comentados 423
outra pessoa estruturaram de tal forma sim na distinção entre os meus projetos
a cena causal que é daquele modo que o e os projetos de alguma outra pessoa. Ao
cálculo utilitarista vem a se expressar? menos se deveria começar por levar isso
O ponto aqui não é, como muitos a sério, coisa que o utilitarismo não faz.
utilitaristas apressam-se em dizer, que, Mas, então, ele terá de ser construído a
se o projeto ou a atitude é central para partir dali, perguntando por que aquela
a sua vida, então abandoná-lo será mui- distinção parece ter menos força, ou uma
to desagradável para você e uma grande força diferente, nesse caso e não no de
perda de utilidade estará envolvida. (...) George. Uma questão aqui seria até que
O ponto é que ele está identificado com ponto a objeção poderosa de alguém com
suas ações como resultando de projetos respeito a matar pessoas é, de fato, a apli-
e atitudes que, em alguns casos, ele leva cação de uma objeção poderosa ao fato
a sério num nível bastante profundo, tal de serem elas assassinadas. Outra dimen-
como aquilo de que trata a sua vida (ou, são disso é a questão de o quanto importa
em alguns casos, aquilo de que trata esse que as pessoas em perigo sejam reais e
domínio específico da sua vida – serie- existam, contrariamente a serem hipoté-
dade não é necessariamente o mesmo ticas, futuras, ou estarem meramente em
que persistência). É absurdo exigir des- outro lugar. 14
se homem, quando os cálculos entram a Há muitas outras considerações
partir da rede de utilidade em parte de- que poderiam entrar em tal questão,
terminada pelos projetos de outros, que mas o ponto imediato de tudo isso é es-
ele deva justamente deixar de lado o seu tabelecer um contraste particular com
próprio projeto e decisão e reconhecer a o utilitarismo, a saber, que atingir uma
decisão que o cálculo utilitarista requer. É decisão fundamentada em tal caso não 13
aliená-lo, em sentido real, de suas ações deve ser visto apenas como uma questão Assim, mesmo os projetos e
e da fonte de sua ação nas suas próprias de descontar as reações, os impulsos e os compromissos mais sérios e
convicções. É colocá-lo dentro de um ca- projetos profundamente sustentados de profundos de uma pessoa devem,
de uma perspectiva utilitarista, ser
nal entre o input dos projetos de todos, alguém em relação a um padrão de uti- sacrificados se esse é o modo em
incluindo o seu próprio, e um output de lidades, nem meramente acrescentá-los que se apresenta o cálculo geral.
decisão otimizadora. Contudo, isso é ne- – mas, em primeiro lugar, de procurar pare (É esse, como Williams
gligenciar em que medida as suas ações e entendê-los. sustenta, um resultado
absurdo que viola a integridade
as suas decisões têm de ser vistas como as Com certeza, as circunstâncias e o de uma pessoa?)
ações e decisões que decorrem dos proje- tempo provavelmente impedirão de tomar
tos e das atitudes com os quais ele está uma decisão fundamentada, ao menos no 14
mais proximamente identificado. Portan- caso de Jim. Ela poderá nem mesmo ser
to, é um ataque, no sentido mais literal, à decente. Em vez de pensar de um modo pare Pense cuidadosamente
sobre como ver as coisas
sua integridade. 13 sistemático e racional sobre as utilidades a partir dessa outra perspectiva
Esses tipos de considerações não ou sobre o valor da vida humana, a re- é supostamente capaz de levar
apresentam por si mesmos soluções aos levância das pessoas em perigo estando a um resultado oposto no caso
que envolve George. Williams está
dilemas práticos, tais como aqueles que presente, e assim por diante, a presença certo em afirmar que isso prova-
aparecem nos nossos exemplos, mas es- das pessoas em perigo pode ter seu efei- velmente não muda o resultado
pero que ajudem a estabelecer outros to. A significação do imediato não deve no caso de Jim. Se é assim, por
modos de pensar sobre eles. De fato, não ser subestimada. Os filósofos, não só os quê? (Pense sobre as sugestões
que ele, a título de experiência,
é difícil ver que, no caso de George, ana- utilitaristas, repetidamente querem que oferece aqui.)
lisando a partir dessa perspectiva, a solu- vejamos o mundo sub specie aeternitatis
ção utilitarista estaria errada. O caso de 15 ; porém, para a maioria dos propósi-
15
Jim é diferente e mais difícil. No entan- tos humanos, esta não é uma boa espé-
to, se (como suponho) o utilitarista está cie de perspectiva para ser usada. Se não Sob o aspecto (ou do
ponto de vista) da
provavelmente certo nesse caso, isso não somos agentes de um sistema universal eternidade – essencialmente da
pode ser descoberto somente através do de satisfação, não somos primeiramente perspectiva de Deus. Adotar tal
questionamento utilitarista. Discussões zeladores de qualquer sistema de valores, ponto de vista é abandonar o
sobre ele – não levarei isso adiante aqui mesmo do nosso próprio. Com grande fre- ponto de vista próprio, tal como
definido pelos projetos e compro-
– terão de levar a sério a distinção en- quência, nós simplesmente agimos, como missos próprios.
tre eu matar alguém e o fato de alguma um resultado possivelmente confuso da
outra pessoa matá-lo por causa do que situação em que nos encontramos. Isso,
eu fiz: uma distinção baseada não tan- eu suspeito, é uma coisa extremamente
to na distinção entre ação e inação, mas boa. (...)

Você também pode gostar