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5 (2012)
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Resumo
Com a evolução do debate dos paradigmas das relações internacionais, o caráter social
da sociedade internacional, a questão da identidade dos Estados, o terrorismo, entre
outros fatores, a religião passou a ter destaque, se não, um aspecto primordial nas
teorias internacionalistas. Nessa perspectiva, propomos analisar se a religião pode ser
inclusa no debate dos paradigmas das relações internacionais. Se sim, nos indagamos,
onde se encontra a religião nas teorias dessa disciplina. Em termos específicos,
observamos que em alguns paradigmas, como o realismo, a religião esteve presente
durante sua evolução, contudo imbricada e sem destaque. Já em outros, como o
liberalismo, que reconhece a potencialidade e a importância de atores religiosos no
cenário internacional, e também, o poder da religião, como uma forma de soft power.
Introdução
1
O autor é doutorando e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e, professor da Faculdade Damas da Instrução Cristã e da Faculdade Joaquim Nabuco.
2
Intelectuais britânicos querem prisão do papa por abusos na Igreja. BBC Brasil, 2010.
Disponível em:<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/04/100412_papa_prisao_pu.shtml>.
Acesso em: 20 maio 2010.
3
Triagem de segurança nos aeroportos dos EUA pode considerar raça e religião. G1, 2010.
Disponível em:< http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1555329-5602,00-
TRIAGEM+DE+SEGURANCA+NOS+AEROPORTOS+DOS+EUA+PODE+CONSIDERAR+RACA+E+RELIGIAO.htm
l>. Acesso em: 20 maio 2010.
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A Revolução Iraniana de 1979, um movimento que derrubou um regime secularista e
estabeleceu um regime islamista. Expressado pela vontade política da grande maioria do povo, foi
consolidada a República Islâmica do Irã, um regime misto teocrático-democrático, mas com maior
influência teocrática. Considerada a primeira revolução urbana da história, liderada pelo Aiatolá
Khomeini, o movimento conseguiu unir um clero tradicional, os Mujahedin e-Khalq (muçulmanos
esquerdistas e outros grupos de extrema esquerda formados por alunos, funcionários e trabalhadores
comunistas) e uma minoria liberal. Apesar de Khomeini ter introduzido uma abrangente islamização das
leis e normas sociais, como um código de vestimentas, incluindo a obrigação da mulher cobrir os cabelos
em público, é essencial notar que o regime iraniano foi mais liberal do que se podia prever, permitindo
liberdade de expressão para sunitas (haja vista que o governo era xiita) e para cristãos em geral
(DEMAND, 2008, p.233-234).
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mais importante nesse processo. Segundo Fox (2001, p.56), existem vários processos
relacionados com a modernização que têm contribuído para a revitalização da religião.
Primeiro, as tentativas de modernização têm sido vencidas, em grande parte nos
países em desenvolvimento e que tenham minadas as tradições locais e valores da
comunidade, provocando uma reação de ressentimentos por movimentos religiosos;
isso tem levado de certa forma ao crescimento dos movimentos fundamentalistas em
torno do mundo.
Uma segunda razão é que os cientistas sociais ocidentais, especialmente as
provenientes dos Estados Unidos, muitas vezes ignoram a religião, pois desde a
infância, a maioria deles é socializada a acreditar no liberalismo clássico, que, entre
outros princípios, defende a separação de Igreja e Estado. Embora uma discussão
global sobre a influência deste sobre a socialização, as visões de mundo dos cientistas
sociais está além do escopo desta questão; é provável que a socialização,
particularmente a universitária, faça com que os cientistas sociais ignorem a religião
como um fator importante no estudo da política internacional. Outra razão pela qual
alguns cientistas sociais não incluem a religião nas suas explicações dos fenômenos
internacionais aplica-se aos estudos quantitativos. Aqueles que se dedicam a estudos
quantitativos são frequentemente acusados de ignorar as variáveis, complicadas de
determinar, relativas às várias dimensões do fenômeno religioso; nessa perspectiva,
religião é talvez uma das variáveis mais difíceis de mensurar. Isso porque as teorias e
variáveis têm sido quantificadas com base na literatura qualitativa desse tópico, e por
sua vez, a escassez da literatura sobre relações internacionais e religião tem dificultado
os esforços para essa mensuração.
Sendo assim, os pesquisadores utilizam métodos quantitativos para mensurar
as religiões no mundo (FOX, 2004, p.172); ou alguns estudos são realizados apenas
para quantificar o número de religiões envolvidas em conflitos ou se os grupos
envolvidos em conflitos são de diferentes religiões. Alguns estudos medem aspectos
específicos da influência da religião que são informativos, mas também limitados como
a frequência a cerimônias religiosas, ou o percentual de pessoas que acreditam em
Deus ou em certas doutrinas religiosas, especialmente aquelas oriundas do
cristianismo. Embora estes indicadores de sucesso avaliem alguns aspectos da
influência da religião no comportamento político, todas as variáveis são um aspecto
relativamente bruto da realidade.
A modernização econômica, política e social levou a um ressurgimento da
religião (FOX, 2001, p. 56) como elemento importante das relações sociais e
internacionais. Para explicar tal afirmação nos basearemos, primeiramente, no
conceito de Scott Thomas (2005, p.26), do que é o ressurgimento da religião hoje:
6
Os antecedentes deste movimento recuam aos primeiros vinte anos do século XX, com o
surgimento de inúmeras seitas e cultos negros tanto em Chicago como Nova Iorque. Em 1913, Thimothy
Drew, que mais tarde adotou o nome de Drew Ali, fundou o Templo Americano da Ciência Moura, uma
seita baseada em princípios islâmicos que adotou uma versão do Alcorão que exortava os seus
seguidores a recuperar a sua herança moura - religião, terra, poder e cultura - que havia sido usurpada
pelos brancos. Noble Drew Ali, como era conhecido, foi assassinado em 1929, mas os seus seguidores
consideravam-no um profeta e esperavam a sua reencarnação. Mais ou menos nos finais dos anos 20,
um vendedor ambulante dos guetos de Detroit, Wallace D. Fard, assumiu-se como “árabe” e profeta
com a missão de conduzir os negros de volta à sua origem africana e islâmica. Segundo Fard, os afro-
americanos eram descendentes dos primeiros humanos, cuja versão mais pura poderia ser encontrada
entre os muçulmanos de África, Ásia e Médio Oriente. Esses primeiros humanos eram negros
possuidores de uma civilização altamente avançada em que cientistas tinham conseguido isolar dois
genes humanos: um negro e forte e outro mais claro e fraco. Através da engenharia genética o gene
claro e fraco reproduziu-se até formar os atuais brancos, uma "raça" degenerada, adepta do roubo e
que assumiu o controlo do mundo e escravizou os negros. Após o desaparecimento misterioso de Fard
em 1934, um dos seus seguidores, Elijah Muhammed, assumiu a missão de divulgar as revelações de
Fard, organizando de forma eficaz o movimento e angariando adeptos famosos como Malcom X e
Muhammed Ali (Cassius Clay).
7
Pesquisa publicada no site The Daily Oracle (http://thedailyoracle.com/index.php/religious-
trends-the-growth-of-secularism), em 2008, revela que o Cristianismo é a religião que mais cresce em
número de adeptos, seguido do Islamismo e Hinduísmo.
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Lama, o Papa, Martin Luther King, entre outros, que sendo líderes religiosos, se
tornaram atores individuais nas relações internacionais.
No contexto global, as transformações e migrações sociais em ebulição deram
margem às correntes religiosas para consolidarem novas redes sociais, afirmar
personalidades e amenizar males da modernidade, como o egoísmo e o consumismo.
Além disso, o fator religião supriu as carências negligenciadas pela burocracia do
Estado. Dessa forma, através da adaptação a valores seculares e da reestruturação do
pensamento sagrado, a religião reaparece sob um novo enfoque. A segunda metade
do século XX marcou a “volta” da religião em escala global ao palco do debate político.
E esse novo enfoque religioso estava voltado para movimentos locais de caráter
político-religioso, como a Revolução Iraniana (1979), que tiveram relevância
internacional ou que, tendo a religião como sua base estrutural, influenciaram o
contexto sócio-político e econômico do mundo.
Em um cenário de diversidade religiosa na qual a possibilidade de escolha de
crença se tornou maior8 e a busca pela verdade da fé se manteve constante, tornam-se
mais evidentes os fundamentalistas com o objetivo de purificação da doutrina religiosa
e reelaboração das atitudes da militância para a afirmação de sua ideologia e combate
ao secularismo e às ideias modernas. Por isso, Ruthven argumenta que:
Numa cultura globalizada onde as religiões estão diariamente em contato com seus
competidores, a negação do pluralismo é um caminho para o conflito. Porém, a aceitação do
pluralismo diz respeito à verdade. Uma vez admitido que haja caminhos diferentes para a
verdade, a fidelidade religiosa de uma pessoa torna-se uma questão de escolha e a escolha é
inimiga do absolutismo. Fundamentalismo é a resposta para a crise da fé provocada pela
consciência das diferenças. (2004, p. 47-48).
9
Um dos temas centrais da obra Orientalismo (2007) de Edward Said, é a crítica de que o
Ocidente, tendo como representante maior os Estados Unidos, cria estereótipos à cultura árabe, de que
o fundamentalismo religioso, a brutalidade e a violência seriam inerentes ao islamismo, que por sua vez,
seria uma religião intolerante, fanática, segregacionista, medieval. Para Said, esse repertório de
preconceitos está ligado à ignorância ocidental sobre a cultura árabe. Por isso, ele argumenta a
construção dessas ideias pelo Ocidente, terminando por haver uma invenção do mundo islâmico. Então,
Said tenta criar um paradigma para desmistificação dessas ideias.
10
O regime estabelecido pela Revolução Iraniana, com maior influência teocrática, tem no
Conselho dos Guardiões (clero), uma comissão presidida pelo presidente (também chefe do legislativo e
judiciário) que confere as leis do parlamento e podem vetá-las caso contrariem as normas do islã
(DEMANT, 2008, 233).
11
Esse conflito só tem início realmente depois da década de 1920, pois em 1919, árabes e
sionistas tentam negociar e debater uma solução que acomodasse ambos os lados. Já em 1922, eles
chegam a um acordo que poderia poupar décadas de desentendimento. “Sua ideia era criar um Estado
único, com liberdade religiosa plena e participação política para todos os grupos étnicos da Terra Santa
– pretendiam, inclusive, instituir o ensino do hebraico e do árabe em todas as escolas”. (SACHAR, 1996,
p.166). Mas a utopia durou pouco. No mesmo ano, a comunidade judaica não aceitou o estado
multinacional, o que refletia a influência da Grã-Bretanha, que para manter o poder absoluto não
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reagir a qualquer acordo. Isto é particularmente verdade no caso dos acordos que
tratam da disposição de lugares santos, como a cidade de Jerusalém 12. Além de
religiosamente inspirar atitudes para com questões específicas, políticos que tem
poder de decidir em nome da nação também podem ser restringidos por uma
influência religiosa.
O fundamentalismo islâmico, um segmento que aliou ainda mais a religião às
relações internacionais, se segmenta em duas partes, o conservador e o radical. Apesar
de a sociedade islâmica girar em torno de princípios religiosos, não significa que todo o
conjunto seja fundamentalista. Contudo, a maioria da sociedade se permite reger
através de um contexto político-religioso, no qual a Sharia (lei divina constituída pelo
Corão) é interpretada e aplicada no cotidiano de acordo com as autoridades políticas
conservadoras ou radicais (CASTELLS, 2002, p.31).
A manifestação do fundamentalismo islâmico tornou-se visível mediante o
forte vínculo com a exposição do mundo islâmico ao advento da globalização e aos
seus princípios majoritariamente ocidentais. Para Zakaria (2004, p.143), “se há uma
grande causa para o crescimento do fundamentalismo islâmico, ela é a total falha das
instituições políticas do Mundo Árabe”, pois as organizações fundamentalistas
fornecem uma estrutura básica à população que o Governo não proporciona, como
assistência social, médica e moradia. A Revolução Iraniana é um exemplo dessa
omissão política, chefiada pelo Aiatolá Khomeini, que foi responsável pelo crescimento
do extremismo religioso, do radicalismo, do ódio às ideologias ocidentais e a
modernidade.
Na visão de Castells (2002, p. 33):
a explosão dos movimentos islâmicos parece estar relacionada tanto à ruptura das sociedades
tradicionais (inclusive o enfraquecimento do poder do clero tradicional) quanto ao fracasso do
Estado-Nação, criado pelos movimentos nacionalistas com o objetivo de concluir o processo de
modernização, desenvolver a economia e/ou distribuir os benefícios do crescimento econômico
entre a maioria da população.
autorizava acordos entre a comunidade judaica e a árabe. As sementes para o conflito árabe-israelense
estão depositadas entre o final do século XIX até 1947. Nesse período ocorreu a migração dos judeus
para a Terra Santa, que por sua vez já é consequência do movimento sionista, interesses políticos e
perseguição nazista, o que culminará com a criação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948. Desde
então, com o reconhecimento do Estado de Israel pelos Estados Unidos e pela União Soviética, o conflito
passa a ter um caráter internacional. Com isso passam a ocorrer uma série de guerras curtas entre Israel
e os Estados árabes, no qual “a mais espetacular dessas guerras foi sem dúvida a de 1967, quando, em
seis dias, as forças armadas israelenses infligiram derrotas esmagadoras, em rápida sucessão, aos
exércitos do Egito, Jordânia e Síria e a uma força expedicionária do Iraque”. (LEWIS, 1995, p. 321).
12
Jerusalém é, como se sabe, um lugar sagrado para o judaísmo, o cristianismo, e o islamismo.
Cercada pelo simbolismo e por episódios místicos e históricos que envolvem distintamente as três
religiões, Jerusalém é um símbolo divino. Assim como um texto sacro, a encarnação do sagrado na
figura humana, uma doutrina, entre outros, a cidade figura como um símbolo onipresente na crença dos
indivíduos, e através da arquitetura religiosa e dos aspectos geográficos do lugar, termina sendo para os
crentes das religiões mencionadas um canal ao divino (ARMSTRONG, 2008, p.18).
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fatos, mas sim como uma coleção de metáforas (BRUCE, 2008, p.68). Por isso um
grupo de protestantes se organizou com a proposta de defender a ortodoxia cristã
elaborando um documento chamado Fundamentais: Um testemunho da Verdade,
publicado em vinte panfletos e financiado por Lyman e Milton Stewart, nos Estados
Unidos em 1909. Esse documento solidificou a posição fundamentalista protestante no
país por duas décadas e marcou o início do movimento (HANSON, 2006, p.54). É nesse
episódio que a palavra fundamentalismo foi primeiramente evidenciada. Segundo
Hanson (2006, p.51), o nacionalismo cultural norte-americano moldou o ethos
protestante dominante no país a ponto deles se declararem “o povo escolhido de
Deus, cujo destino manifesto é acalmar um continente bruto, e assim produzir uma
república superior como sinal vivo da providência divina para a nação e para o
mundo”.
Com relação à vertente cristã, no catolicismo, o fundamentalismo religioso é
conhecido como “integrismo” e “restauração”; a luta da militância católica se
estabelece em favor do resgate de uma hegemonia espiritual, à medida que eles se
declaram como única religião detentora da verdade de Cristo. O papa Bento XVI, então
cardeal Joseph Ratzinger e figura máxima do corpo hierárquico eclesiástico, representa
o conservadorismo e a intolerância católica nesse século, por proclamar abertamente
a doutrina tradicional da Igreja. Na ideologia do papa é quase inaceitável o diálogo
com outras religiões. Por isso, se torna necessário manter uma identidade forte
fundada nas tradições para combater os inimigos prósperos que a ameaçam, como por
exemplo, o Islã.
A religião além de ser uma questão interna, é atualmente uma questão que
atravessa fronteiras, uma questão internacional. Existem várias formas pelas quais
questões religiosas atravessam fronteiras. Conflitos locais religiosos muitas vezes
chegam a dimensões internacionais. Existem inúmeras maneiras de como estes
conflitos podem se espalhar para além das fronteiras. Em caso de conflitos etno-
religiosos, as populações envolvidas representam, muitas vezes, diásporas ou grupos
que vivem em outros estados. Um exemplo específico é a revolta da etnia albanesa no
Kosovo contra o Governo Sérvio (1999). A violência no Kosovo se espalhou para uma
considerável minoria albanesa na Macedônia. Além disso, houve muito apoio para os
albaneses advindos da Albânia, bem como de numerosos Estados islâmicos. Da mesma
forma, a rebelião de muçulmanos na província da Caxemira na Índia tem contribuído
para esporádicos conflitos militares com o vizinho Paquistão, o qual é religiosamente e
etnicamente semelhante. As ramificações internacionais do presente conflito são
ainda mais intensificadas por que ambos os países, Paquistão e Índia, são potências
nucleares.
Argumentando que a religião influencia crenças e comportamentos, a ideia de
que a religião é uma fonte de legitimidade não é nova. Max Weber, considerado um
dos fundadores da sociologia, já escrevia sobre a legitimidade na religião em um de
seus breves ensaios, Três Tipos Puros de Poder Legítimo, além de ter dedicado vários
livros e uma substancial seção de seu Economia e Sociedade ao tema da religião. Para
Weber (2005, p. 11), a legitimidade da fé é um dos três poderes que exerce influência
na sociedade, por isso, trata-se de “um dos grandes poderes revolucionários da
história, mas, na sua forma mais pura, é de caráter plenamente autoritário,
dominador”. Nesse sentido, entende-se por legitimidade “a crença normativa por um
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ator no qual uma regra ou uma instituição deve ser obedecida” (HURD, 1999, p. 381).
Ou seja, é a capacidade de determinado poder para conseguir obediência sem a
necessidade de recorrer à coação, que envolve a ameaça da força; com isso, para
convencer alguém de que nossa causa é legítima, devemos convencer outros de que
somos moralmente corretos ou de que representamos interesses feridos ou causas de
amplo apelo social e de que nossos interlocutores devem apoiar nossa causa.
Dessa forma, a religião pode ser utilizada para legitimar os Governos, bem
como aqueles que se opõem a eles. Alguns estudiosos insistem em que a legitimidade
dos Governos não pode ser totalmente separada da religião (KOKOSALAKIS, 1985, p.
371). Mas outros defendem que a religião, como qualquer outro fator, é provável que
ao ser adotada por um movimento de oposição do Estado apenas na medida em que
ela é percebida como um meio aceitável e capaz de resolver as questões que dividem a
sociedade. Sendo aplicado dessa forma, a religião pode legitimar a política
internacional. Em um exemplo extremo, nos referimos para a guerra que pode ser
justificada como guerra santa. Embora esta seja atualmente a maioria das vezes
associada com Governos e movimentos terroristas islâmicos, não é exclusiva deles. A
chamada intervenção humanitária também pode ser justificada como exemplo dessa
questão. Além disso, o moderno conceito de guerra justa tem suas origens nas
justificativas teológicas da guerra13.
Outro indicador da legitimidade da religião nas relações internacionais é
a atenção dada aos líderes religiosos pelos políticos influentes e os meios de
comunicação. Por exemplo, o episódio em que o Papa João Paulo II pede desculpas
para o papel desempenhado por católicos (em oposição à Igreja Católica em si) no
Holocausto, destaca o sentimento de muitos judeus de que se o papa antecessor a
João Paulo tivesse exposto abertamente as atividades dos nazistas na Segunda Grande
Guerra, teria forçado os nazistas a diminuir as suas perseguições aos judeus. Outros
indicadores da legitimidade da religião no cenário internacional são: a perseguição de
líderes das minorias, movimentos de oposição e de independência, trazendo assim à
tona o exemplo de líderes antigos a atuais, incluindo Mahatma Gandhi (1869-1948) na
Índia14, o Dalai Lama (1937-) no Tibete15, Arcebispo Desmond Tutu (1931-) na África do
13
As origens da teoria da guerra justa se encontram no pensamento de Cícero, Santo Agostinho,
São Thomas de Aquino e Hugo Grotius. Thomas de Aquino herdou o entendimento de guerra de Santo
Agostinho como uma consequência do pecado. Mas contra a visão de que toda guerra é um pecado,
Aquino argumenta que a guerra pode ser justificada se for para punir quaisquer tipos de agressão ou
injúria. Para ele, guerra não é apenas um pecado, é um meio de combater um pecado e preservar o bem
comum. Logo, a força pode ser usada para combater o inimigo, como também para fazer o bem. Nesse
sentido, as circunstâncias de cada guerra devem ser justificadas. Para que uma guerra seja justa é
necessário três razões: ela deve ser travada sob os auspícios de uma autoridade pública; ter razões
justas, ou seja, o inimigo deve ser culpado por ter feito algo errado; ou em caso de autodefesa (BROWN
et al, 2002, p. 183-184).
14
Gandhi é a figura político-religiosa mais importante na primeira metade do século XX. Ele
destacou-se não apenas por sua integridade na vida religiosa, mas também pelo impacto político
nacional e global de sua visão estratégica. Gandhi, nascido na Índia sob os auspícios do Império
Britânico, vai para Londres, onde fará a graduação de Direito. É na capital inglesa que ele lê a Bhagavad
Gita, e começa, então, a aprofundar seus conhecimentos e apreciação no Hinduísmo. Ao se tornar
advogado, Gandhi viaja à África do Sul para lidera um movimento de protesto islâmico-hindu contra os
aspectos do Apartheid. De volta à Índia, ele adota o satyagraha (significa “força verdadeira”) para
convencer os britânicos do erro de sua dominação. Gandhi e seus seguidores se dedicaram a não-
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violência. E como forma de protesto, ele adota uma vestimenta de tecido nacional para boicotar a
indústria têxtil britânica, assim como liderou uma marcha ao mar para protestar contra a taxação
imposta pelos ingleses. Gandhi pregava o respeito a todas as religiões, e defendia tratamento igualitário
aos cidadãos de diferentes classes e castas. Ele terminou não participando das comemorações da
independência indiana em 1947, por está sentido com a tensão religiosa entre hindus e muçulmanos,
que ele mesmo recrutou para a separação da colônia britânica na Índia e no Paquistão. Então, Gandhi
começa um período de jejum para protestar contra as regras britânicas, a violência religiosa e a
separação de hindus e islâmicos em nação diferentes. (HANSON, 2006, p. 199-200)
15
A disputa entre o Governo chinês e o Dalai Lama, líder espiritual do Tibete, sobre a designação
dessa região, é a segunda figura religiosa mais importante no cenário global, destacando a importância
do poder local e internacional na legitimação da religião. A oposição do Dalai Lama ao Estado chinês do
Tibete é bem conhecida. No entanto, o mais recente episódio envolveu o Panchen Lama, a segunda
figura mais importante na hierarquia budista, que morreu em 1989. Essa questão gira em torno de que
budistas acreditam na transmigração das almas de vida para a vida, de modo que as principais figuras
religiosas, incluindo o Dalai Lama e o Panchen Lama, são reencarnadas depois da sua morte. A
nomeação do novo Panchen Lama tem implicações consideráveis para o controle de legitimidade
religiosa no conflito sobre o Tibete. Além disso, a nova encarnação do Panchen Lama irá desempenhar
um papel importante na determinação da próxima reencarnação do Dalai Lama. Em 1995, o Dalai Lama
determinou que Gehun Choeky Nyima, então um garoto de seis anos de idade, era a reencarnação do
Panchen Lama. O Governo Chinês se opôs a esta decisão, e prendeu Gehun Choeky Nyima, entronando
um garoto diferente com seis anos de idade, Yaincain Tashi Lhunpo, como a décima reencarnação do
Panchen Lama. A escolha do Dalai Lama é vista ainda sob detenção pelo Governo chinês (FOX, 2001, p.
67).
16
O Arcebispo Anglicano Desmond Tutu, chefe do Conselho Ecumênico Sul Africano de Igrejas,
adquiriu o papel de defensor da ética, ou seja, um árbitro legítimo para tratar questões éticas nacionais,
na luta contra o Apartheid na África do Sul.
17
Expoente da Teologia da Libertação (corrente teológica cristã e utiliza como ponto de partida de sua
reflexão a situação de pobreza e exclusão social à luz da fé cristã) no Brasil, seus questionamentos a
respeito da hierarquia da Igreja, expressos no livro Igreja, Carisma e Poder, renderam-lhe um processo
junto à Congregação para a Doutrina da Fé, então sob a direção de Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento
XVI. Em 1985, foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso", perdendo sua cátedra e suas funções
editoriais no interior da Igreja Católica. Em 1986, recuperou algumas funções, mas sempre sob severa
vigilância. Em 1992, ante nova ameaça de punição, desligou-se da Ordem Franciscana e pediu dispensa
do sacerdócio.
18
Lança em 1970, a Teologia da Revolução, iniciando a Teologia da Libertação no Brasil.
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marginalizado a inclusão das forças sociais, excluindo, assim, a religião, dos seus
paradigmas e tradições de pensamento. Para entender a origem da marginalização da
religião no contexto internacionalista, focamos na origem do sistema de Estados
modernos nos Tratados de Vestfália (THOMAS, 2005, p. 54).
Esse conjunto de tratados, também conhecido por Paz de Vestfália, por ter
encerrado a Guerra dos Trinta Anos19 (1618-1648), além de ter mudado a
compreensão de que os Estados da Europa deveriam ser unidos na base de princípios
formais de coexistência e tolerância mútua, em vez de uniões políticas e religiosas,
propiciou algumas normas: rejeição à ortodoxia religiosa como critério de soberania e
das relações internacionais, multiplicidade dos Estados independentes e representação
dos Estados na Conferência Geral da Paz (OLIVEIRA, 2001, p. 142). Logo, observa-se
que esses tratados puseram um fim à legitimidade da religião como princípio estatal,
que era uma fonte de conflito internacional entre os Estados que emergiram da
Europa medieval. O sistema de Estados Vestfaliano reconhecia os Estados como seus
principais atores, substituindo a autoridade transnacional da Igreja Católica. Com isso,
os tratados adotaram o princípio de que cada governante estabeleceria a religião de
seu domínio, acarretando, assim, em uma tolerância religiosa e a não-interferência (do
campo religioso) nos assuntos domésticos de cada Estado, o que maximizou o poder
do governante e a pluralidade de Estados. Ou seja, a religião seria privatizada (em
certa medida, já que poderia permanecer como religião do novo Estado), nacionalizada
e posta sob os poderes do Estado, pois era considerada uma ameaça à ordem, à
civilidade e à segurança. (THOMAS, 2005, p.55) Os princípios vestfalianos
estabeleceram as raízes para a escola realista e o conceito secular da raison d’état20
(razão de estado), pondo a religião fora do foco da política internacional (PHILPOTT,
2000, p. 206-245).
A partir de então, não só a religião, mas os vetores sociais e os aspectos
culturais passaram a ser esquecidos nos paradigmas e correntes internacionalistas; o
foco do debate da arena global era mantido nos assuntos do sistema de Estados,
guerras, segurança, entre outros. Surgindo como uma disciplina acadêmica com o
término da Primeira Guerra Mundial, as relações internacionais observavam a religião
como imprópria e de pouca importância analítica para explicar os assuntos
internacionais. A religião estava fora do foco internacionalista, devido à dominância de
ideias da perspectiva realista, ou escola realista.
O realismo tem uma abordagem muito ampla dentro da pauta
internacionalista. A diversidade e a riqueza dos seus princípios básicos é caracterizada
por diferentes vertentes. A ideia central do realismo foca desde o comportamento da
natureza humana no cenário político até o comportamento dos Estados e a interação
19
Denominação de uma série de guerras que diversas nações europeias travaram entre si a partir
de 1618, por motivos variados: rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais.
20
“Dentro da França, o cardeal Richelieu (primeiro ministro de Luís XIII) aplicou uma política de
consolidação da autoridade real depois de prolongado período de guerras de religião. Ele sustinha que
para estabelecer um Estado, significando o governo efetivo de um reino, era necessário combinar o
poder de concentração de Estado com a autoridade reconhecida de um rei legítimo; e que realmente, o
rei deveria ser a personificação do Estado. Seu objetivo era unificar a França sob um monarca absoluto e
destruir qualquer oposição efetiva, especialmente os castelos fortificados dos nobres e as guarnições de
cidades huguenotes que haviam sido concebidos para resistir ao rei. Essa foi política conhecida como
raison d’état”. (WATSON, 2004, p.258).
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entre eles na sociedade internacional anárquica; no seu poder militar, como forma
dominante de força entre relações estatais; e a segurança nacional como principal
questão de confronto estatal (THOMAS, 2005, p. 56). “O realismo enfatiza a coação
política imposta pela natureza humana e a ausência de um governo internacional.
Juntos, eles fazem as relações internacionais, um domínio de poder e interesse”
(DONNELLY, 2002, p. 9). Os contornos adquiridos pelo pensamento realista no século
XX foram moldados através dos séculos, desde a civilização grega até hoje. A
construção do pensamento realista se deu através de linhagens intelectuais que se
propuseram a estudar o aspecto internacional (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p.21). É
nesse sentido que encontramos Maquiavel e Thomas Hobbes, expoentes políticos, que
trataram de assuntos que correspondem hoje ao arsenal de conceitos da escola
realista: poder, estado, guerra, sobrevivência, interesse estatais, anarquia, entre
outros. Na contínua busca por pensadores que trataram do internacional, alguns
autores foram retratados realistas devido a uma leitura e uma interpretação de caráter
realista de sua obra, assim como Tucídides e Morgenthau.
Tucídides, um estudioso em estratégia militar da Grécia antiga, foi destacado
pelos realistas como o primeiro autor a trabalhar com a guerra, um conceito-chave das
relações internacionais, em A Guerra do Peloponeso. Na visão realista, a herança de
Tucídides (2001, p.348) se coloca de seguinte forma: os fortes exercem o poder e os
fracos se submetem, ou seja, para ele “sempre foi uma norma firmemente
estabelecida que os mais fracos fossem governados pelos mais fortes”. Esse
pensamento considera que o medo de deixar de existir leva os estados a se engajarem
em uma guerra, como ele mesmo argumenta: “os habitantes mais fracos se mostraram
inclinados a submeter-se à dependência dos mais fortes, e os mais poderosos, com
seus recursos aumentados, foram capazes de levar as cidades menores à sujeição, e
mais tarde, quando essas condições ficaram completamente consolidadas,
empreenderam a expedição contra Tróia”. (TUCÍDIDES, 2001, p.6). Mais tarde, os
realistas observarão que esse tipo de leitura será uma prerrogativa para o conceito de
“anarquia internacional”, um ambiente conflituoso no âmbito global por não haver
uma autoridade legítima que garanta a sobrevivência dos atores.
Continuando na vertente realista, Hans Morgenthau, um alemão naturalizado
americano refugiado da Alemanha nazista, foi o organizador das premissas no estudo
das relações internacionais em Política entre as Nações (1948). Considerado um
apóstolo do realismo, ele numera em sua obra os seis princípios do realismo21 que se
mostraram essenciais para a análise do panorama internacional. Segundo esse autor, o
21
Os seis princípios apresentados em Política entre as Nações são: (i) o realismo político acredita
que a política, como aliás a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que deitam suas raízes na
natureza humana (2003, p. 4); (ii) a principal sinalização que ajuda o realismo político a situar-se em
meio à paisagem da política internacional é o conceito de interesse definido em termos de poder (2003,
p. 6); (iii) a noção de interesse faz parte realmente da essência da política, motivo por que não se vê
afetada pelas circunstâncias de tempo e lugar (2003, p. 16-17); (iv) o realismo sustenta que os princípios
morais universais não podem ser aplicados às ações dos Estados (2003, p. 20); (v) o realismo político
recusa-se a identificar as aspirações morais de uma determinada nação com as leis morais que
governam o universo (2003, p. 21); (vi) é real e profunda a diferença existente entre o realismo político
e outras escolas de pensamento (...) intelectualmente, o realista político sustenta a autonomia da esfera
política (2003, p. 23).
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A religião da primeira espécie constitui parte da política humana, e ensina parte do dever que os
reis terrenos exigem de seus súditos. A religião da segunda espécie é a política divina, que
22
“As ideias de Santo Agostinho foram introduzidas no estudo americano das relações
internacionais pelo teólogo protestante americano Reinhold Niebuhr, o único teólogo no critério do
realismo clássico que contribuiu para o desenvolvimento de realismo no século XX”. (THOMAS, 2005, p.
57).
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encerra preceitos para aqueles que se erigiram como súditos do reino de Deus. Da primeira
espécie são todos os fundadores de Estados e legisladores dos gentios. Da segunda espécie são
Abraão, Moisés e nosso abençoado Salvador, dos quais chegaram até nós as leis do reino de
Deus.
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o que quer, sem o uso da coação ou da violência. Para Nye, o soft power é a “segunda
face do poder”, pois, um país pode influenciar outro, no aspecto político e cultural,
através da divulgação de suas ideologias; e o país influenciado pode captar essa
incidência pela simples aceitação da importação de valores culturais, admiração das
ideias e imitação do exemplo de prosperidade do influenciador ou pela retradução das
mesmas em termos da cultura local. A intenção do soft power é cooptar pessoas,
moldando-se às suas preferências, ao invés de coagi-las.
Dessa forma, para Haynes (2007, p. 40), a religião se torna uma poderosa forma
de soft power, porque trata-se de um poder cultural, que usa de argumentos e
princípios para a conquista de adeptos e, atua nas decisões políticas e governamentais.
Haynes ainda argumenta que, a ideia religiosa de soft power é que os atores religiosos
podem procurar influenciar a política e as relações internacionais de tal país,
encorajando os Governos a terem políticas e programas mais em sintonia com suas
crenças e valores, buscando construir redes transnacionais para alcançar seus
objetivos. O Governo turco, por exemplo, usa o soft power religioso nos assuntos
externos através das agências de Estado, assim como o Departamento para Assuntos
Religiosos da Presidência (a mais alta autoridade da religião islâmica do país), negocia
a entrada do país na União Europeia acreditando que o diálogo entre as religiões
(cristianismo europeu e o islamismo turco – apesar da Turquia ser um Estado secular
provendo liberdade de religião) seja um passo efetivo para ultrapassar a barreira das
diferenças culturais, pois até hoje essa questão é o principal obstáculo para o país ser
um membro da União (GÖZAYDIN, 2010, p.3). Outro exemplo é a análise comparativa
feita por Haynes em seu artigo Religion, Soft Power and Foreign Policy Making in the
U.S.A., India and Iran. Os Estados Unidos representam o caso de uma sociedade com
mais pessoas religiosas, pelo menos aparentemente, e tradicionalmente, enquanto os
sucessivos governos têm procurado justificar a política externa em termos da moral
cristã, essa atitude é intrinsecamente associada à retórica secular da democracia,
liberdade e prosperidade. “Presidentes como Eisenhower, Nixon, Reagan e ambos
Bush recorreram à Igreja e empregaram sentimentos religiosos em seus discursos
políticos (HANSON, 2006, p.51). Enquanto isso, a Índia, um Estado oficialmente
secular, mas com uma população predominantemente religiosa também, tem duas
correntes religiosas influenciadoras na visão dos formuladores da política externa, a
tradição do pacifismo de Gandhi e a cultura hindu. O Governo indiano sob o poder do
partido Bharatiya Janata que é regido pelo Hindutva (um amálgama de nacionalismo e
princípios religiosos), entre 1998 e 2004, alcançou um diálogo com o Paquistão,
expansão das relações comerciais com a China e estreitamento de laços com Estados
Unidos, Rússia, Japão e alguns países europeus.
Enquanto certas formas de atuação religiosa podem ser consideradas como soft
power, há outras que não o são – intervenções na tomada de decisões políticas, ou na
implementação de políticas, com vistas a vetar ou a favorecer uma religião ou visão
religiosa sobre outras oponentes (inclusive não-religiosas); mobilização coletiva de
movimentos religiosos que envolvem o uso da força; corrupção política de atores
religiosos, levando-os a assumir determinadas posições.
O caso da relação entre o recurso ao soft power e os Estados Unidos é muito
singular. No cenário multipolar que se molda na arena internacional, os Estados Unidos
dependerão menos das medidas de poder tradicionais e mais do poder derivado do
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apelo de sua cultura, dos seus valores e das suas instituições (NYE, 2002, p.14). Nesse
sentido, o soft power é uma das fontes do poder americano, embora nem sempre
utilizadas. A expansão da ideologia democrática, da paz e dos direitos humanos, a
liberdade pessoal, a mobilidade social, são alguns dos valores que ajudam a aumentar
o soft power do país no resto do mundo. Além disso, “o papel das Igrejas Evangélicas
norte-americanas na promoção da democracia popular, das reformas sociais radicais e
dos novos alinhamentos políticos” (NYE, 2002, p. 206), é um exemplo importante da
influência que as instituições religiosas têm na propagação da cultura americana.
Por sua vez, o paradigma chamado construtivismo é atualmente o mais usado
para analisar as questões internacionalistas e salientar as questões culturais, ignoradas
pelas perspectivas tradicionais. Tal abordagem salienta que a identidade, os interesses
e as instituições internacionais nas quais cada Estado está imerso são mutuamente
interligadas; isso porque, segundo a visão desta vertente, os Estados são moldados e
formados através da interação social com outros Estados e atores não-estatais na
sociedade internacional. Na última década do século XX, o construtivismo consolidou-
se como disciplina das relações internacionais, evidenciado na obra Social Theory of
International Politics (1999), de Alexander Wendt, um dos principais acadêmicos
construtivistas. Esse trabalho desenvolve uma teoria de que o sistema internacional é
uma construção social. Wendt esclarece pontos centrais da abordagem construtivista,
apresentando uma visão estrutural e idealista. Mas isso depende da definição de
cultura e de sua interação com outras dinâmicas sociais, que contrasta com o
materialismo e o individualismo que sustentam as principais teorias das relações
internacionais. O autor constrói uma teoria cultural da política internacional,
considerando como determinante se os estados vêm uns aos outros como rivais ou
parceiros. Wendt (2003, p.246-259) caracteriza essa ideia como “cultura da anarquia”,
classificando-a como hobbesiana (cultura da inimizade: “a guerra de todos contra
todos”), lockeana (cultura da rivalidade: competição entre Estados por bens e poder) e
kantiana (cultura da amizade: relação de cooperação entre Estados, sem uso de
armas). Essa divisão ajuda a moldar os interesses e as capacidades dos Estados, através
do compartilhamento dessas ideias, gerando tendências no sistema internacional.
De modo geral, os teóricos construtivistas têm a ideia de que vivemos em um
mundo construído, em que somos os principais protagonistas, e que é produto de
nossas decisões; o mundo em permanente construção é moldado pelo que esses
teóricos chamam de agentes. “A premissa central e comum a todos os construtivistas é
que o mundo não é predeterminado, mas sim construído à medida que os atores
agem, ou seja, que o mundo é uma construção social. É a interação entre os atores,
isto é, os processos de comunicação entre os agentes, que constrói os interesses e as
preferências destes agentes”. (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 166). O paradigma
construtivista trabalha com o debate agente-estrutura. Esse debate se refere a como
cada polo constrange e limita as opções do outro, à medida que os dois são
coconstitutivos (WENDT, 2003, p. 42), ou seja, “não se pode falar em sociedade sem
falar nos indivíduos que a compõem” e vice-versa. (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p.
167).
Uma ideia importante na visão construtivista, é de que não existe uma anarquia
(estabelecida pelo paradigma realista) que rege o sistema de Estados como uma
estrutura que define as relações internacionais (WENDT, 2003, p. 70). A existência de
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um conjunto de normas e regras que organizam e norteiam essas relações faz com que
a anarquia possa existir em algum momento específico, não sendo predeterminada,
mas sim, socialmente construída. Seria um equívoco definir o cenário internacional
como eminentemente conflituoso. “Os processos de construção e reconstrução são
permanentes e abrem espaço para a contínua possibilidade de mudança” (NOGUEIRA;
MESSARI, 2005, p. 167). A lógica de funcionamento da anarquia (um conceito tido
como permanente na arena global) muda na escola construtivista, pois o processo de
formação da identidade de cada Estado na sociedade internacional é uma
consequência das trocas relacionais entre eles, o que está em constante mudança. Isso
quer dizer que, na relação entre os Estados, pode haver uma variação entre conflito e
cooperação.
Aprofundando essa linha de raciocínio, a definição de construtivismo baseado
no fato de que a realidade é socialmente construída, é muito ampla. Por isso, vamos
nos ater a um dos conceitos que mais chamam a atenção para essa escola, que é o
conceito de identidade. Apesar de não ser uma característica comum a todos os
construtivistas, Wendt (2003, p.336) é um dos autores que mencionam a questão da
identidade tratando o conceito de maneira endógena e não considerando as
identidades como simplesmente predeterminadas. Esse autor discute a identidade de
uma maneira flexível, permitindo assim, as mesmas se transformarem e se adaptarem
aos processos e às necessidades da política internacional.
Valendo-se dessas ideias, os construtivistas enfatizam as características sociais
da sociedade internacional, e ainda argumentam que o ambiente internacional no qual
os Estados operam não é apenas regido pelo hard power, como a força militar, fatores
econômicos e políticos, mas também por forças sociais, ideais, valores, cultura e
religião. É nesse sentido que esse paradigma procura entender os interesses e o
comportamento de cada Estado, investigando a sua estrutura social que fornece
diversos significados e valores, que compõe à sociedade internacional. De acordo com
Thomas:
O mundo social das relações internacionais influencia não apenas os incentivos por diferentes
tipos de comportamentos estatais, mas também a identidade dos Estados, que é a
característica básica na sociedade internacional. Em outras palavras, a identidade dos Estados,
assim como sua ação social, é explicada por uma construção sistêmica que pode ser chamada
de sociedade internacional (THOMAS, 2005, p.81).
Conclusão
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