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FACULDADE DAMAS – CADERNO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS – V.3, N.

5 (2012)
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UM COEFICIENTE RELIGIOSO NAS TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS? :


paradigmas, teóricos e soft power

Pedro Gustavo Cavalcanti Soares1

Resumo

Com a evolução do debate dos paradigmas das relações internacionais, o caráter social
da sociedade internacional, a questão da identidade dos Estados, o terrorismo, entre
outros fatores, a religião passou a ter destaque, se não, um aspecto primordial nas
teorias internacionalistas. Nessa perspectiva, propomos analisar se a religião pode ser
inclusa no debate dos paradigmas das relações internacionais. Se sim, nos indagamos,
onde se encontra a religião nas teorias dessa disciplina. Em termos específicos,
observamos que em alguns paradigmas, como o realismo, a religião esteve presente
durante sua evolução, contudo imbricada e sem destaque. Já em outros, como o
liberalismo, que reconhece a potencialidade e a importância de atores religiosos no
cenário internacional, e também, o poder da religião, como uma forma de soft power.

Introdução

Recentemente várias notícias na mídia aqueceram o debate entre religião e


relações internacionais. A primeira envolve os escritores e acadêmicos Richard
Dawkins e Christopher Hitchens, defensores do ateísmo e críticos ferrenhos da
religião. Eles declararam que têm a intenção de mover um processo contra o papa
Bento XVI na Corte Penal Internacional, acusando o pontífice de omissão diante das
inúmeras denúncias de abusos de menores nos últimos anos ao redor do mundo por
religiosos católicos2. A segunda questão é que a triagem de segurança nos aeroportos
dos Estados Unidos pode considerar a raça e a religião na elaboração de perfis dos
passageiros, com o objetivo de determinar quais devem passar por uma triagem
externa3. Esses fatos tornam evidente a influência de doutrinas religiosas na esfera dos
assuntos internacionais hoje, fazendo da religião, não mais um ator coadjuvante, mas
sim, um dos principais vetores no cenário da política internacional.
Estudar a relação entre religião e relações internacionais não é uma tarefa
simples. Cada um desses termos envolve domínios tão vastos e complexos que parece
impossível explorar suas relações. No contexto das democracias ocidentais hoje, tratar
de religião e política internacional é investigar a relação do cristianismo e/ou do islã

1
O autor é doutorando e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e, professor da Faculdade Damas da Instrução Cristã e da Faculdade Joaquim Nabuco.
2
Intelectuais britânicos querem prisão do papa por abusos na Igreja. BBC Brasil, 2010.
Disponível em:<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/04/100412_papa_prisao_pu.shtml>.
Acesso em: 20 maio 2010.
3
Triagem de segurança nos aeroportos dos EUA pode considerar raça e religião. G1, 2010.
Disponível em:< http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1555329-5602,00-
TRIAGEM+DE+SEGURANCA+NOS+AEROPORTOS+DOS+EUA+PODE+CONSIDERAR+RACA+E+RELIGIAO.htm
l>. Acesso em: 20 maio 2010.
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com a modernidade. Em vista disto, iniciaremos conceituando os dois termos,


pontuando de que forma eles serão usados neste trabalho.
Entendemos o termo relações internacionais como um campo de estudos que
focaliza a relação entre estados e atores não-estatais, constituindo uma abordagem
interdisciplinar que envolve aspectos políticos, históricos, econômicos, sociais, etc.
Essas relações podem explorar questões de política econômica internacional; política
entre organizações, entre estados e organizações internacionais; questões envolvendo
diplomacia, guerra, terrorismo ou eventos históricos relevantes que influenciam na
construção do cenário atual. Dentro da esfera das relações internacionais, a religião é
vista como um ator não-estatal que causa impacto sobre a natureza do estado, suas
leis e instituições e sobre o processo governamental, assim como pode moldar
valores, práticas e normas da sociedade e da moral (WILKINSON, 2010, p.74).
Por exemplo, o cristianismo construiu a civilização ocidental influenciando
majoritariamente a formação dos Estados-Nação europeus e o sistema de estados de
forma geral (WILKINSON, 2010, p.74; WOODS JR., 2008). As fundações morais do
direito internacional e o conceito de sociedade internacional assentam-se no
cristianismo. Isso pode ser visto na obra sobre direito internacional O Direito da Guerra
e da Paz (1625), de Hugo Grotius (1583-1645), advogado, diplomata e pensador
católico. Grotius argumentou sobre a ordem nas relações entre Estados, ao contrário
da anarquia hobbesiana, mas uma ordem que não dependesse de uma potência
hegemônica. De acordo com as regras do direito internacional de Grotius, o direito dos
estados de irem à guerra são bem limitados e a força militar deve ser usada apenas em
benefício de toda a sociedade internacional. O objetivo de Grotius era criar um corpo
de regras amplamente derivado da ordem divina ou das tradições antigas, ou seja,
regras aceitáveis para Deus e para os príncipes, descrevendo as práticas reais e
sugerindo como poderiam ser tornados mais racionais e mais conducentes à ordem e à
paz (WATSON, 2004, p.266).
Estabelecer um conceito para religião é bastante laborioso. Há inúmeras
definições para tal; definições que refletem a perspectiva de antropólogos, sociólogos,
filósofos, historiadores, psicólogos, teólogos, biólogos, escrituras, entre outras
faculdades. Ou seja, não existe nenhuma definição universalmente aceita de religião, e
de acordo com os pensadores e especialistas de cada área, as definições diferem entre
si (CRAWFORD, 2005, p.14). O termo religião a que nos referimos no trabalho está
intrinsecamente ligado ao conceito de religião civil, desenvolvido pela primeira vez em
Do Contrato Social (1762), por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778):

A religião, considerada em relação à sociedade, que é geral ou particular pode dividir-se em


duas espécies, a saber: a religião do homem e a do cidadão. A primeira, desprovida de templos,
altares, ritos, limitada unicamente ao culto interior do Deus Supremo e aos eternos deveres da
moral, é a pura e simples religião dos evangelhos, o verdadeiro teísmo, é o que se pode
denominar de direito divino natural. A segunda, alicerçada num único país, fornece-lhe os
deuses, os patronos próprios e tutelares; possui seus dogmas, seus rituais, seu culto exterior
prescrito por leis; afora a única nação que a cultua, as demais são consideradas infiéis,
estrangeiras e bárbaras (p.186-187).

Religião e Relações Internacionais no Mundo Contemporâneo

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O estudo conjunto da religião e das relações internacionais é uma variante


relativamente nova no universo acadêmico. As muitas obras publicadas sobre o tema
não alcançaram uma relevância tão grande, nem conseguiram achar atenção suficiente
da academia quanto O Choque de Civilizações (1996), de Samuel Huntington, que
contem o artigo seminal publicado em 1993 na Foreign Affairs. Não desconsiderando o
mérito de outros autores, Huntington tem conseguido essa atenção pelo caráter
profundamente controverso4, se não ideológico e etnocêntrico, de sua tese. Apesar de
a religião ser a base para a teoria das civilizações, observa-se pouco o debate sobre
religião na obra. No trabalho denota-se que, após o fim da Guerra Fria, os conflitos
ocorridos ao redor do mundo aconteceriam entre civilizações (os países ou conjuntos
de países seriam identificados dessa forma) sendo cada uma delas reconhecidas pela
cultura e pela religião. Nesse sentido é que, para alguns estudiosos, essa obra se torna
um “divisor de águas” nesse campo de estudo. Huntington alertava para a emergência
de regimes islâmicos e antiocidentais (ou anticristãos) no Afeganistão e no Sudão; e
que a segurança da civilização ocidental (e consequentemente, a da ordem mundial)
estaria sob a ameaça da militância islâmica.
Durante a Guerra Fria, o papel da religião foi praticamente ignorado pelos
estudiosos das relações internacionais e, principalmente, por aqueles que estudavam
os conflitos internacionais. De fato, os círculos acadêmicos ocidentais consideravam a
religião um aspecto em declínio no que diz respeito à política em geral. (FOX;
SANDLER, 2004. p.10). Muitos autores, influentes teóricos do século XIX, que ainda
hoje continuam a moldar as ciências sociais, incluindo Auguste Comte, Karl Marx,
Émile Durkheim, e Max Weber, concluíram que a religião era uma força em declínio no
mundo, e rapidamente desapareceria (SAHLIYEH, 1990, p. 19). Eles acreditavam que
todos os antigos sistemas militares e teológicos estavam em estado de colapso e
seriam substituídos por um moderno sistema secular. Norris e Inglehart (2004, p.3)
argumentam ainda que esses teóricos sustentavam a ideia de que a secularização, uma
tendência global da modernidade, anularia a importância da religião, sobrepondo-a, de
modo que esta desapareceria gradualmente perante o advento da sociedade
industrial. Embora a compreensão da religião e da sociedade por estes estudiosos
fosse claramente muito mais complexa do que aqui representadas, a ideia era de que a
religião se tornaria um fator menos importante no mundo moderno.
Ninguém poderia ter previsto que a religião, nas suas muitas formas, seria
durante a década de 1990 uma alternativa para as correntes ideológicas que
dominaram a política mundial nas décadas de 1950 e 1960, como por exemplo: o
comunismo, o socialismo, o liberalismo e o capitalismo.
A extrema diferença ideológica no cenário bélico da Guerra Fria não permitia
espaço para uma discussão entre o “sagrado” e o internacional, nem a identificação de
um denominador comum entre eles. Além disso, a herança secularista (o declínio da
4
O caráter controverso do Choque de Civilizações é debatido por Jonathan Fox, pesquisador de
religião e relações internacionais e crítico árduo de Huntington, em algumas de suas obras. As críticas se
concentram na metodologia usada por Huntington, a qual contém defeitos e simplificações da
realidade. Um dos pontos criticados é o uso do termo “civilizações”, que poderia ser substituído por
outra forma de identidade de base mais importante para grupos políticos, como o Estado, a nação e
grupos étnicos. Além disso, Huntington ignora alguns fatores importantes no mundo político, como o
poder da modernidade e do secularismo, questões populacionais e ambientais, o poder econômico e
militar, entre outros, que fazem sua teoria falhar mais uma vez.
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influência da religião nas instituições sociais e políticas) deslocou a expressão


organizada e individual da religião da esfera pública para a privada. Nas décadas de
1950 e 1960, muitos cientistas sociais defendiam que a modernidade reduziria o
significado político da religião e diminuiria o apego individual aos valores religiosos
(SAHLIYEH, 1990, p.3). Outro fator importante é que, segundo Fox (2001, p.54), o
círculo das ciências sociais (incluindo o estudo das relações internacionais) tem sua
origem na rejeição da religião, porque a tradição perpetuou a explicação racional como
fonte exclusiva de resposta aos atos e comportamentos do ser humano. Ou seja, o
estudo da religião na esfera política foi se transformando num fator sem importância
no mundo moderno até a primeira metade do século XX, quando em 1970 e 1980,
ocorre a consolidação e a revitalização política de grupo religiosos nos Estados Unidos,
América Latina, no Oriente Médio e em países em desenvolvimento. A ascensão da
Direita Religiosa e outros grupos religiosos norte-americanos nesse período mostra a
persistência e a resiliência da religião, questionando a validade de um modelo secular
de desenvolvimento político e exibindo a adaptabilidade da religião aos requisitos da
modernidade política e econômica. Em algumas partes do Terceiro Mundo, a religião
serviu como um agente da modernização e da mudança social (SAHLIYEH, 1990, p.5).
Na América Latina, por exemplo, a Igreja Católica teve um papel primordial no
desenvolvimento social, político e econômico. Na Ásia e no Oriente Médio, a religião
continuou a assumir uma posição central na vida política de sociedade. Em alguns
casos, incluindo o Irã5, o clero representou um papel definitivo na queda dos regimes
seculares estabelecidos.
O cenário mundial que observamos atualmente, evidenciado pela
multilateralidade de culturas e pelo questionamento da dominância das ideologias
ocidentais, não era previsto até o último quartel do século XX. Devido ao avanço
constante da modernidade, os pensadores secularistas entreviam os princípios da
ciência e a racionalidade encobrirem e eliminarem as crenças e os mitos das religiões
no mundo:

Os conservadores preocupados... alertavam sobre as graves consequências do desaparecimento


das crenças religiosas, das instituições religiosas e da orientação moral que a religião dava para
o comportamento humano individual e coletivo. O resultado final seria a anarquia, a
depravação e o solapamento da vida civilizada (HUNTINGTON, 2002, p. 116).

O fator da modernidade, que deveria ter funcionado como causa principal da


rejeição religiosa (THOMAS, 2005, p.50) ou provocado a extinção de tais valores, foi o

5
A Revolução Iraniana de 1979, um movimento que derrubou um regime secularista e
estabeleceu um regime islamista. Expressado pela vontade política da grande maioria do povo, foi
consolidada a República Islâmica do Irã, um regime misto teocrático-democrático, mas com maior
influência teocrática. Considerada a primeira revolução urbana da história, liderada pelo Aiatolá
Khomeini, o movimento conseguiu unir um clero tradicional, os Mujahedin e-Khalq (muçulmanos
esquerdistas e outros grupos de extrema esquerda formados por alunos, funcionários e trabalhadores
comunistas) e uma minoria liberal. Apesar de Khomeini ter introduzido uma abrangente islamização das
leis e normas sociais, como um código de vestimentas, incluindo a obrigação da mulher cobrir os cabelos
em público, é essencial notar que o regime iraniano foi mais liberal do que se podia prever, permitindo
liberdade de expressão para sunitas (haja vista que o governo era xiita) e para cristãos em geral
(DEMAND, 2008, p.233-234).

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mais importante nesse processo. Segundo Fox (2001, p.56), existem vários processos
relacionados com a modernização que têm contribuído para a revitalização da religião.
Primeiro, as tentativas de modernização têm sido vencidas, em grande parte nos
países em desenvolvimento e que tenham minadas as tradições locais e valores da
comunidade, provocando uma reação de ressentimentos por movimentos religiosos;
isso tem levado de certa forma ao crescimento dos movimentos fundamentalistas em
torno do mundo.
Uma segunda razão é que os cientistas sociais ocidentais, especialmente as
provenientes dos Estados Unidos, muitas vezes ignoram a religião, pois desde a
infância, a maioria deles é socializada a acreditar no liberalismo clássico, que, entre
outros princípios, defende a separação de Igreja e Estado. Embora uma discussão
global sobre a influência deste sobre a socialização, as visões de mundo dos cientistas
sociais está além do escopo desta questão; é provável que a socialização,
particularmente a universitária, faça com que os cientistas sociais ignorem a religião
como um fator importante no estudo da política internacional. Outra razão pela qual
alguns cientistas sociais não incluem a religião nas suas explicações dos fenômenos
internacionais aplica-se aos estudos quantitativos. Aqueles que se dedicam a estudos
quantitativos são frequentemente acusados de ignorar as variáveis, complicadas de
determinar, relativas às várias dimensões do fenômeno religioso; nessa perspectiva,
religião é talvez uma das variáveis mais difíceis de mensurar. Isso porque as teorias e
variáveis têm sido quantificadas com base na literatura qualitativa desse tópico, e por
sua vez, a escassez da literatura sobre relações internacionais e religião tem dificultado
os esforços para essa mensuração.
Sendo assim, os pesquisadores utilizam métodos quantitativos para mensurar
as religiões no mundo (FOX, 2004, p.172); ou alguns estudos são realizados apenas
para quantificar o número de religiões envolvidas em conflitos ou se os grupos
envolvidos em conflitos são de diferentes religiões. Alguns estudos medem aspectos
específicos da influência da religião que são informativos, mas também limitados como
a frequência a cerimônias religiosas, ou o percentual de pessoas que acreditam em
Deus ou em certas doutrinas religiosas, especialmente aquelas oriundas do
cristianismo. Embora estes indicadores de sucesso avaliem alguns aspectos da
influência da religião no comportamento político, todas as variáveis são um aspecto
relativamente bruto da realidade.
A modernização econômica, política e social levou a um ressurgimento da
religião (FOX, 2001, p. 56) como elemento importante das relações sociais e
internacionais. Para explicar tal afirmação nos basearemos, primeiramente, no
conceito de Scott Thomas (2005, p.26), do que é o ressurgimento da religião hoje:

O ressurgimento global da religião é uma crescente proeminência e poder de persuasão da


religião, ou seja, a ascendente importância das crenças, práticas e discursos religiosos na vida
pública e privada, assim como o crescente papel dos grupos não-estatais, partidos políticos,
comunidades e organizações na política doméstica de caráter religioso, vêm ocorrendo de um
modo que tem implicações significantes para a política internacional.

Segundo Berger, em sua obra The desecularization of the world (1999), a


assertiva de que nós vivemos em um mundo secular é falsa; isto é, o mundo hoje é
inegavelmente religioso. Isso reforça a ideia de difusão do ressurgimento da religião no
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debate político. O “ressurgimento” é algo que só é assim caracterizável para quem


tinha deixado de ver a religião como fenômeno público ou com repercussões públicas
claras; ou seja, para os adeptos da tese da secularização, ou para os europeus
ocidentais, onde de fato alguma plausibilidade para aquela tese ainda é relevante. Se
tomarmos um olhar global, a tese do ressurgimento não se sustenta. Nunca houve
desaparecimento da religião como fenômeno público ou como extensão da identidade
cultural em boa parte do mundo, especialmente no mundo pós-colonial americano,
africano e asiático. Além do mais, boa parte do que se chama de “ressurgimento global
da religião” corresponde a um viés fortemente centrado na evidência internacional do
islamismo ou dos fundamentalismos religiosos. Para Thomas (2005, p.29), alguns
autores consideram que esse ressurgimento é parte do processo de globalização e que
este está mudando a paisagem religiosa no mundo. Isso porque, a ordem mundial está
constituindo atores religiosos (assim como, delineando ainda mais os blocos de
civilizações-religiões, proposto por Huntington), de constante envolvimento na cena
internacional. Como por exemplo, o mundo islâmico tem produzido uma série de
atores não-estatais terroristas – Al-Qaeda, Hamas, Jihad Islâmica – e outros não-
terroristas que atuam em diversos países, como as organizações islâmicas dos Estados
Unidos, sendo a mais influente a Nação do Islã6.
Outra razão importante, a globalização está facilitando a disseminação cultural
e o pluralismo religioso. Percebemos isso em muitas comunidades nas quais é possível
serem encontradas igrejas, sinagogas, mesquitas e templos. Além disso, a sociedade
acompanha o crescimento e a vitalidade do Cristianismo e do Islã, as duas religiões que
mais crescem em números de adeptos no mundo7.
A análise de Thomas remonta a um esquema no qual o ressurgimento da
religião pode ser observado também no nível individual, perpassando as escolhas, as
crenças e os valores dos indivíduos, incluindo o impacto que eles podem ter no cenário
político. Como expoentes nesse quesito, evidenciamos o Aiatolá Khomeini, o Dalai

6
Os antecedentes deste movimento recuam aos primeiros vinte anos do século XX, com o
surgimento de inúmeras seitas e cultos negros tanto em Chicago como Nova Iorque. Em 1913, Thimothy
Drew, que mais tarde adotou o nome de Drew Ali, fundou o Templo Americano da Ciência Moura, uma
seita baseada em princípios islâmicos que adotou uma versão do Alcorão que exortava os seus
seguidores a recuperar a sua herança moura - religião, terra, poder e cultura - que havia sido usurpada
pelos brancos. Noble Drew Ali, como era conhecido, foi assassinado em 1929, mas os seus seguidores
consideravam-no um profeta e esperavam a sua reencarnação. Mais ou menos nos finais dos anos 20,
um vendedor ambulante dos guetos de Detroit, Wallace D. Fard, assumiu-se como “árabe” e profeta
com a missão de conduzir os negros de volta à sua origem africana e islâmica. Segundo Fard, os afro-
americanos eram descendentes dos primeiros humanos, cuja versão mais pura poderia ser encontrada
entre os muçulmanos de África, Ásia e Médio Oriente. Esses primeiros humanos eram negros
possuidores de uma civilização altamente avançada em que cientistas tinham conseguido isolar dois
genes humanos: um negro e forte e outro mais claro e fraco. Através da engenharia genética o gene
claro e fraco reproduziu-se até formar os atuais brancos, uma "raça" degenerada, adepta do roubo e
que assumiu o controlo do mundo e escravizou os negros. Após o desaparecimento misterioso de Fard
em 1934, um dos seus seguidores, Elijah Muhammed, assumiu a missão de divulgar as revelações de
Fard, organizando de forma eficaz o movimento e angariando adeptos famosos como Malcom X e
Muhammed Ali (Cassius Clay).
7
Pesquisa publicada no site The Daily Oracle (http://thedailyoracle.com/index.php/religious-
trends-the-growth-of-secularism), em 2008, revela que o Cristianismo é a religião que mais cresce em
número de adeptos, seguido do Islamismo e Hinduísmo.
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Lama, o Papa, Martin Luther King, entre outros, que sendo líderes religiosos, se
tornaram atores individuais nas relações internacionais.
No contexto global, as transformações e migrações sociais em ebulição deram
margem às correntes religiosas para consolidarem novas redes sociais, afirmar
personalidades e amenizar males da modernidade, como o egoísmo e o consumismo.
Além disso, o fator religião supriu as carências negligenciadas pela burocracia do
Estado. Dessa forma, através da adaptação a valores seculares e da reestruturação do
pensamento sagrado, a religião reaparece sob um novo enfoque. A segunda metade
do século XX marcou a “volta” da religião em escala global ao palco do debate político.
E esse novo enfoque religioso estava voltado para movimentos locais de caráter
político-religioso, como a Revolução Iraniana (1979), que tiveram relevância
internacional ou que, tendo a religião como sua base estrutural, influenciaram o
contexto sócio-político e econômico do mundo.
Em um cenário de diversidade religiosa na qual a possibilidade de escolha de
crença se tornou maior8 e a busca pela verdade da fé se manteve constante, tornam-se
mais evidentes os fundamentalistas com o objetivo de purificação da doutrina religiosa
e reelaboração das atitudes da militância para a afirmação de sua ideologia e combate
ao secularismo e às ideias modernas. Por isso, Ruthven argumenta que:

Numa cultura globalizada onde as religiões estão diariamente em contato com seus
competidores, a negação do pluralismo é um caminho para o conflito. Porém, a aceitação do
pluralismo diz respeito à verdade. Uma vez admitido que haja caminhos diferentes para a
verdade, a fidelidade religiosa de uma pessoa torna-se uma questão de escolha e a escolha é
inimiga do absolutismo. Fundamentalismo é a resposta para a crise da fé provocada pela
consciência das diferenças. (2004, p. 47-48).

O fenômeno fundamentalista, no termo geral do conceito, é consequência do


pluralismo advindo dos princípios democráticos; essa diversidade cultural e religiosa
cria uma individualidade na construção de identidades, dando sentido lógico à
expansão da democracia. Nessa perspectiva, Burity (2001, p.29-36) observa que:

O avanço dos processos de democratização, se levou, por um lado, à disseminação das


instituições da democracia liberal, provocou, por outro, a progressiva e conflitiva difusão de
uma lógica pluralista, cujo efeito mais importante é abrir espaço para que a construção da
diferença se dê através da afirmação de identidades. (...) O efeito mais importante disso para
nossa discussão é a afirmação de identidades religiosas a partir de reações, respostas ou
diálogos frente à cultura e a política seculares. Identidades religiosas afirmadas como refúgio
contra o abandono, a solidão, a incerteza ou os efeitos das crises e reestruturações econômicas,
das mudanças tecnológicas e de globalização.

Um fator importante, em evidência, e influenciador na arena política, a


tendência fundamentalista tem a missão de “renovar” a religião retornando aos
princípios básicos por meio da interpretação rígidas dos textos sagrados, e se
8
Segundo Huntington (1996, p.116), “essa revitalização religiosa envolveu em parte a
expansão de algumas religiões, que conquistaram novos recrutas em sociedades nas quais não os
tinham tido anteriormente. Entretanto, num grau muito maior, o ressurgimento religioso redundou em
que as pessoas voltassem para as religiões tradicionais de suas comunidades, revigorando e dando novo
significado a essas mesmas religiões. O Cristianismo, o Islamismo,... todos tiveram surtos de
engajamento, de relevância e de práticas por fieis que, até então, eram apenas praticantes ocasionais”.
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manifestam de forma violenta (ou não) na conquista e purificação da nova militância.


Esse tipo de manifestação pode estar interligado tanto ao Islã9, como o Cristianismo;
em ambos os casos, o fundamentalismo transforma o cenário social, político e
econômico, modifica decisões governamentais e, pode evidenciar a cultura do medo
em tempos de terrorismo.
Nessa perspectiva, observamos de que maneira a religião influencia as relações
internacionais (FOX, 2001, p. 59). O primeiro aspecto é que as políticas externas são
influenciadas pelas opiniões e crenças religiosas das autoridades políticas e os seus
constituintes. Segundo, a religião é uma fonte de legitimidade, tanto para apoiar ou
criticar o comportamento do governo local ou internacional. Em terceiro lugar, muitos
fenômenos e questões religiosos, incluindo os conflitos de caráter religioso espalhados
por inúmeras fronteiras tornam-se questões internacionais.
A afirmação de que a religião pode influenciar a nossa opinião não é nova. A
religião influencia pessoas de visões de mundo diferentes e a sua percepção de
eventos e, consequentemente as suas ações. Embora seja evidente que alguns
indivíduos hoje não deem muita importância à religião; a maioria dos estudiosos que
discutem a influência da religião sobre os seres humanos argumentam que, há uma
influência de aspectos religiosos no modo em que pensamos (STARK; BAINBRIDGE,
1985, p. 366).
O argumento de que a religião pode influenciar a opinião das pessoas está na
pauta internacionalista. Isso pode influenciar as relações internacionais de duas
maneiras. Em primeiro lugar, na medida em que a religião influencia o ponto de vista
de um político influente, isso também influencia as suas decisões. Isto pode conduzir a
política de um país, que pode ou não levar a incidentes internacionais, incluindo
guerras. Por exemplo, a decisão do clero iraniano10 de considerar que suas ações são
divinamente inspiradas e, portanto, não pode estar errado. Isto sem dúvida contribuiu,
entre outras coisas, à pressão internacional para travar os seus programas de armas
nucleares.
Outro exemplo gira em torno do conflito árabe-israelense11, em que os líderes
de ambos os lados precisam ponderar de que forma os seus respectivos povos irão

9
Um dos temas centrais da obra Orientalismo (2007) de Edward Said, é a crítica de que o
Ocidente, tendo como representante maior os Estados Unidos, cria estereótipos à cultura árabe, de que
o fundamentalismo religioso, a brutalidade e a violência seriam inerentes ao islamismo, que por sua vez,
seria uma religião intolerante, fanática, segregacionista, medieval. Para Said, esse repertório de
preconceitos está ligado à ignorância ocidental sobre a cultura árabe. Por isso, ele argumenta a
construção dessas ideias pelo Ocidente, terminando por haver uma invenção do mundo islâmico. Então,
Said tenta criar um paradigma para desmistificação dessas ideias.
10
O regime estabelecido pela Revolução Iraniana, com maior influência teocrática, tem no
Conselho dos Guardiões (clero), uma comissão presidida pelo presidente (também chefe do legislativo e
judiciário) que confere as leis do parlamento e podem vetá-las caso contrariem as normas do islã
(DEMANT, 2008, 233).
11
Esse conflito só tem início realmente depois da década de 1920, pois em 1919, árabes e
sionistas tentam negociar e debater uma solução que acomodasse ambos os lados. Já em 1922, eles
chegam a um acordo que poderia poupar décadas de desentendimento. “Sua ideia era criar um Estado
único, com liberdade religiosa plena e participação política para todos os grupos étnicos da Terra Santa
– pretendiam, inclusive, instituir o ensino do hebraico e do árabe em todas as escolas”. (SACHAR, 1996,
p.166). Mas a utopia durou pouco. No mesmo ano, a comunidade judaica não aceitou o estado
multinacional, o que refletia a influência da Grã-Bretanha, que para manter o poder absoluto não
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reagir a qualquer acordo. Isto é particularmente verdade no caso dos acordos que
tratam da disposição de lugares santos, como a cidade de Jerusalém 12. Além de
religiosamente inspirar atitudes para com questões específicas, políticos que tem
poder de decidir em nome da nação também podem ser restringidos por uma
influência religiosa.
O fundamentalismo islâmico, um segmento que aliou ainda mais a religião às
relações internacionais, se segmenta em duas partes, o conservador e o radical. Apesar
de a sociedade islâmica girar em torno de princípios religiosos, não significa que todo o
conjunto seja fundamentalista. Contudo, a maioria da sociedade se permite reger
através de um contexto político-religioso, no qual a Sharia (lei divina constituída pelo
Corão) é interpretada e aplicada no cotidiano de acordo com as autoridades políticas
conservadoras ou radicais (CASTELLS, 2002, p.31).
A manifestação do fundamentalismo islâmico tornou-se visível mediante o
forte vínculo com a exposição do mundo islâmico ao advento da globalização e aos
seus princípios majoritariamente ocidentais. Para Zakaria (2004, p.143), “se há uma
grande causa para o crescimento do fundamentalismo islâmico, ela é a total falha das
instituições políticas do Mundo Árabe”, pois as organizações fundamentalistas
fornecem uma estrutura básica à população que o Governo não proporciona, como
assistência social, médica e moradia. A Revolução Iraniana é um exemplo dessa
omissão política, chefiada pelo Aiatolá Khomeini, que foi responsável pelo crescimento
do extremismo religioso, do radicalismo, do ódio às ideologias ocidentais e a
modernidade.
Na visão de Castells (2002, p. 33):

a explosão dos movimentos islâmicos parece estar relacionada tanto à ruptura das sociedades
tradicionais (inclusive o enfraquecimento do poder do clero tradicional) quanto ao fracasso do
Estado-Nação, criado pelos movimentos nacionalistas com o objetivo de concluir o processo de
modernização, desenvolver a economia e/ou distribuir os benefícios do crescimento econômico
entre a maioria da população.

Desse modo, a identidade islâmica é (re)construída pelos fundamentalistas por


oposição ao capitalismo, ao socialismo e ao nacionalismo, árabe ou de qualquer outra
origem, que, em sua visão, são todas ideologias fracassadas provenientes da ordem
pós-colonial.

autorizava acordos entre a comunidade judaica e a árabe. As sementes para o conflito árabe-israelense
estão depositadas entre o final do século XIX até 1947. Nesse período ocorreu a migração dos judeus
para a Terra Santa, que por sua vez já é consequência do movimento sionista, interesses políticos e
perseguição nazista, o que culminará com a criação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948. Desde
então, com o reconhecimento do Estado de Israel pelos Estados Unidos e pela União Soviética, o conflito
passa a ter um caráter internacional. Com isso passam a ocorrer uma série de guerras curtas entre Israel
e os Estados árabes, no qual “a mais espetacular dessas guerras foi sem dúvida a de 1967, quando, em
seis dias, as forças armadas israelenses infligiram derrotas esmagadoras, em rápida sucessão, aos
exércitos do Egito, Jordânia e Síria e a uma força expedicionária do Iraque”. (LEWIS, 1995, p. 321).
12
Jerusalém é, como se sabe, um lugar sagrado para o judaísmo, o cristianismo, e o islamismo.
Cercada pelo simbolismo e por episódios místicos e históricos que envolvem distintamente as três
religiões, Jerusalém é um símbolo divino. Assim como um texto sacro, a encarnação do sagrado na
figura humana, uma doutrina, entre outros, a cidade figura como um símbolo onipresente na crença dos
indivíduos, e através da arquitetura religiosa e dos aspectos geográficos do lugar, termina sendo para os
crentes das religiões mencionadas um canal ao divino (ARMSTRONG, 2008, p.18).
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O que entendemos por fundamentalismo é um sentimento de defesa aos


dogmas religiosos e um movimento contra o racionalismo científico ocidental oriundo
do século XX. As ideias fundamentalistas atuais que se encontram arraigadas pelo
mundo tiveram origem no Ocidente. Isso aconteceu porque a história da civilização
ocidental contemporânea e a religião sempre estiveram em contato, o que
desencadeou a formação de uma sociedade diversificada religiosamente e o
surgimento de questões filosóficas que punham em xeque a existência de Deus. Essa
perspectiva de diversidade causou, por parte das religiões monoteístas, uma rejeição
ao racionalismo e a reafirmação das tradições religiosas. Essa série de reações (sejam
políticas, filosóficas, culturais) à modernidade pode provocar consequências brandas,
ou agressivas, a exemplo do terrorismo.
Para Armstrong (2001, p.12), o mundo está passando por um período
transitório, no qual a sociedade presencia um desenvolvimento de teor racional e
religioso, em vigor das transformações econômicas e políticas recentes. Essa transição
aconteceu nos mesmos moldes da Era Axial, período equiparado ao que estamos
vivendo, “que se estende aproximadamente de 700 a 200 a. C., porque foi crucial para
o desenvolvimento espiritual da humanidade. Esse período resultou de uma evolução
econômica – e, portanto, social e cultural – de milhares de anos que se iniciou na
Suméria, onde hoje é o Iraque, e no antigo Egito”. O cenário de riqueza cultural,
intelectual e de espiritualidade foi primordial para o desenvolvimento religioso. Isso
porque naquele momento, as religiões se baseavam em velhas tradições para cultivar
a espiritualidade de acordo com as aflições de sua época. Nesse sentido, Armstrong
(2001, p.13) argumenta que é a partir das mudanças contemporâneas que surgem os
princípios fundamentalistas:

Acompanharam as mudanças econômicas dos últimos quatrocentos anos imensas revoluções


sociais, políticas e intelectuais, com o desenvolvimento de um conceito da natureza da verdade
totalmente diverso, científico e racional; e, mais uma vez, uma mudança religiosa radical
tornou-se necessária. No mundo inteiro acha-se que as velhas formas de fé já não funcionam
nas circunstâncias atuais: não conseguem prover o esclarecimento e o consolo que parecem
vitais para a humanidade. Assim, tenta-se encontrar novas maneiras de ser religioso; como os
reformadores e os profetas da Era Axial, homens e mulheres procuram usar as percepções do
passado para evoluir no mundo novo que construíram. Uma dessas experiências modernas –
por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista – é o fundamentalismo.

Para Almond, Sivan e Appleby (2004, p.426), o fundamentalismo varia em


definição e extensão de acordo com o entendimento particular de cada grupo sobre os
conceitos de espaço e tempo. Por esse motivo, Bruce (2008, p.9) expõe que, há dois
tipos de fundamentalismo: um comunitário e outro individual. O fundamentalismo
comunitário, o autor exemplifica com o fundamentalismo islâmico no Oriente Médio,
onde a religião é envolvida com questões de desenvolvimento econômico, poder
geopolítico e evolução social, onde o que está em jogo é o poder das comunidades; já
o fundamentalismo como movimento norte-americano pode ser considerado
individual, pois se tratar de um conjunto de indivíduos competindo para moldar a
cultura de estado-nação. Nas últimas décadas do século XIX, várias denominações
protestantes dos Estados Unidos começaram a adaptar suas crenças a fim de entrarem
em sintonia com o pensamento científico e social moderno. Nesse período, a Bíblia
não seria vista por essas denominações protestantes como a verdade infalível dos
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fatos, mas sim como uma coleção de metáforas (BRUCE, 2008, p.68). Por isso um
grupo de protestantes se organizou com a proposta de defender a ortodoxia cristã
elaborando um documento chamado Fundamentais: Um testemunho da Verdade,
publicado em vinte panfletos e financiado por Lyman e Milton Stewart, nos Estados
Unidos em 1909. Esse documento solidificou a posição fundamentalista protestante no
país por duas décadas e marcou o início do movimento (HANSON, 2006, p.54). É nesse
episódio que a palavra fundamentalismo foi primeiramente evidenciada. Segundo
Hanson (2006, p.51), o nacionalismo cultural norte-americano moldou o ethos
protestante dominante no país a ponto deles se declararem “o povo escolhido de
Deus, cujo destino manifesto é acalmar um continente bruto, e assim produzir uma
república superior como sinal vivo da providência divina para a nação e para o
mundo”.
Com relação à vertente cristã, no catolicismo, o fundamentalismo religioso é
conhecido como “integrismo” e “restauração”; a luta da militância católica se
estabelece em favor do resgate de uma hegemonia espiritual, à medida que eles se
declaram como única religião detentora da verdade de Cristo. O papa Bento XVI, então
cardeal Joseph Ratzinger e figura máxima do corpo hierárquico eclesiástico, representa
o conservadorismo e a intolerância católica nesse século, por proclamar abertamente
a doutrina tradicional da Igreja. Na ideologia do papa é quase inaceitável o diálogo
com outras religiões. Por isso, se torna necessário manter uma identidade forte
fundada nas tradições para combater os inimigos prósperos que a ameaçam, como por
exemplo, o Islã.
A religião além de ser uma questão interna, é atualmente uma questão que
atravessa fronteiras, uma questão internacional. Existem várias formas pelas quais
questões religiosas atravessam fronteiras. Conflitos locais religiosos muitas vezes
chegam a dimensões internacionais. Existem inúmeras maneiras de como estes
conflitos podem se espalhar para além das fronteiras. Em caso de conflitos etno-
religiosos, as populações envolvidas representam, muitas vezes, diásporas ou grupos
que vivem em outros estados. Um exemplo específico é a revolta da etnia albanesa no
Kosovo contra o Governo Sérvio (1999). A violência no Kosovo se espalhou para uma
considerável minoria albanesa na Macedônia. Além disso, houve muito apoio para os
albaneses advindos da Albânia, bem como de numerosos Estados islâmicos. Da mesma
forma, a rebelião de muçulmanos na província da Caxemira na Índia tem contribuído
para esporádicos conflitos militares com o vizinho Paquistão, o qual é religiosamente e
etnicamente semelhante. As ramificações internacionais do presente conflito são
ainda mais intensificadas por que ambos os países, Paquistão e Índia, são potências
nucleares.
Argumentando que a religião influencia crenças e comportamentos, a ideia de
que a religião é uma fonte de legitimidade não é nova. Max Weber, considerado um
dos fundadores da sociologia, já escrevia sobre a legitimidade na religião em um de
seus breves ensaios, Três Tipos Puros de Poder Legítimo, além de ter dedicado vários
livros e uma substancial seção de seu Economia e Sociedade ao tema da religião. Para
Weber (2005, p. 11), a legitimidade da fé é um dos três poderes que exerce influência
na sociedade, por isso, trata-se de “um dos grandes poderes revolucionários da
história, mas, na sua forma mais pura, é de caráter plenamente autoritário,
dominador”. Nesse sentido, entende-se por legitimidade “a crença normativa por um

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ator no qual uma regra ou uma instituição deve ser obedecida” (HURD, 1999, p. 381).
Ou seja, é a capacidade de determinado poder para conseguir obediência sem a
necessidade de recorrer à coação, que envolve a ameaça da força; com isso, para
convencer alguém de que nossa causa é legítima, devemos convencer outros de que
somos moralmente corretos ou de que representamos interesses feridos ou causas de
amplo apelo social e de que nossos interlocutores devem apoiar nossa causa.
Dessa forma, a religião pode ser utilizada para legitimar os Governos, bem
como aqueles que se opõem a eles. Alguns estudiosos insistem em que a legitimidade
dos Governos não pode ser totalmente separada da religião (KOKOSALAKIS, 1985, p.
371). Mas outros defendem que a religião, como qualquer outro fator, é provável que
ao ser adotada por um movimento de oposição do Estado apenas na medida em que
ela é percebida como um meio aceitável e capaz de resolver as questões que dividem a
sociedade. Sendo aplicado dessa forma, a religião pode legitimar a política
internacional. Em um exemplo extremo, nos referimos para a guerra que pode ser
justificada como guerra santa. Embora esta seja atualmente a maioria das vezes
associada com Governos e movimentos terroristas islâmicos, não é exclusiva deles. A
chamada intervenção humanitária também pode ser justificada como exemplo dessa
questão. Além disso, o moderno conceito de guerra justa tem suas origens nas
justificativas teológicas da guerra13.
Outro indicador da legitimidade da religião nas relações internacionais é
a atenção dada aos líderes religiosos pelos políticos influentes e os meios de
comunicação. Por exemplo, o episódio em que o Papa João Paulo II pede desculpas
para o papel desempenhado por católicos (em oposição à Igreja Católica em si) no
Holocausto, destaca o sentimento de muitos judeus de que se o papa antecessor a
João Paulo tivesse exposto abertamente as atividades dos nazistas na Segunda Grande
Guerra, teria forçado os nazistas a diminuir as suas perseguições aos judeus. Outros
indicadores da legitimidade da religião no cenário internacional são: a perseguição de
líderes das minorias, movimentos de oposição e de independência, trazendo assim à
tona o exemplo de líderes antigos a atuais, incluindo Mahatma Gandhi (1869-1948) na
Índia14, o Dalai Lama (1937-) no Tibete15, Arcebispo Desmond Tutu (1931-) na África do

13
As origens da teoria da guerra justa se encontram no pensamento de Cícero, Santo Agostinho,
São Thomas de Aquino e Hugo Grotius. Thomas de Aquino herdou o entendimento de guerra de Santo
Agostinho como uma consequência do pecado. Mas contra a visão de que toda guerra é um pecado,
Aquino argumenta que a guerra pode ser justificada se for para punir quaisquer tipos de agressão ou
injúria. Para ele, guerra não é apenas um pecado, é um meio de combater um pecado e preservar o bem
comum. Logo, a força pode ser usada para combater o inimigo, como também para fazer o bem. Nesse
sentido, as circunstâncias de cada guerra devem ser justificadas. Para que uma guerra seja justa é
necessário três razões: ela deve ser travada sob os auspícios de uma autoridade pública; ter razões
justas, ou seja, o inimigo deve ser culpado por ter feito algo errado; ou em caso de autodefesa (BROWN
et al, 2002, p. 183-184).
14
Gandhi é a figura político-religiosa mais importante na primeira metade do século XX. Ele
destacou-se não apenas por sua integridade na vida religiosa, mas também pelo impacto político
nacional e global de sua visão estratégica. Gandhi, nascido na Índia sob os auspícios do Império
Britânico, vai para Londres, onde fará a graduação de Direito. É na capital inglesa que ele lê a Bhagavad
Gita, e começa, então, a aprofundar seus conhecimentos e apreciação no Hinduísmo. Ao se tornar
advogado, Gandhi viaja à África do Sul para lidera um movimento de protesto islâmico-hindu contra os
aspectos do Apartheid. De volta à Índia, ele adota o satyagraha (significa “força verdadeira”) para
convencer os britânicos do erro de sua dominação. Gandhi e seus seguidores se dedicaram a não-
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Sul16, e de numerosos membros do clero católico na América Latina (com referência à


teologia da libertação, com obras de Leonardo Boff17 e José Comblin18).
Embora a literatura sobre as relações internacionais raramente aborde a
legitimidade da religião, tem havido um crescente debate sobre o papel do seu poder
normativo nas relações exteriores. Pois como visto a religião não deixa de ser uma
fonte em potencial para os assuntos internacionais.

Teoria das Relações Internacionais e Religião

O avanço triunfal da ciência e da tecnologia, e o domínio do ateísmo


metodológico (a deliberada ignorância da religião na construção do saber científico),
construíram uma sociedade em que Deus não era tido como hipótese de confiança.
Com essa afirmação não quero dizer que a religião tenha desaparecido; ela
simplesmente foi ignorada da arena internacional. Mas, o debate emergente entre os
aspectos religiosos e políticos no final do século XX ganhou destaque com os ataques
terroristas do 11 de setembro de 2001. A situação tinha mudado, e a visão dos

violência. E como forma de protesto, ele adota uma vestimenta de tecido nacional para boicotar a
indústria têxtil britânica, assim como liderou uma marcha ao mar para protestar contra a taxação
imposta pelos ingleses. Gandhi pregava o respeito a todas as religiões, e defendia tratamento igualitário
aos cidadãos de diferentes classes e castas. Ele terminou não participando das comemorações da
independência indiana em 1947, por está sentido com a tensão religiosa entre hindus e muçulmanos,
que ele mesmo recrutou para a separação da colônia britânica na Índia e no Paquistão. Então, Gandhi
começa um período de jejum para protestar contra as regras britânicas, a violência religiosa e a
separação de hindus e islâmicos em nação diferentes. (HANSON, 2006, p. 199-200)
15
A disputa entre o Governo chinês e o Dalai Lama, líder espiritual do Tibete, sobre a designação
dessa região, é a segunda figura religiosa mais importante no cenário global, destacando a importância
do poder local e internacional na legitimação da religião. A oposição do Dalai Lama ao Estado chinês do
Tibete é bem conhecida. No entanto, o mais recente episódio envolveu o Panchen Lama, a segunda
figura mais importante na hierarquia budista, que morreu em 1989. Essa questão gira em torno de que
budistas acreditam na transmigração das almas de vida para a vida, de modo que as principais figuras
religiosas, incluindo o Dalai Lama e o Panchen Lama, são reencarnadas depois da sua morte. A
nomeação do novo Panchen Lama tem implicações consideráveis para o controle de legitimidade
religiosa no conflito sobre o Tibete. Além disso, a nova encarnação do Panchen Lama irá desempenhar
um papel importante na determinação da próxima reencarnação do Dalai Lama. Em 1995, o Dalai Lama
determinou que Gehun Choeky Nyima, então um garoto de seis anos de idade, era a reencarnação do
Panchen Lama. O Governo Chinês se opôs a esta decisão, e prendeu Gehun Choeky Nyima, entronando
um garoto diferente com seis anos de idade, Yaincain Tashi Lhunpo, como a décima reencarnação do
Panchen Lama. A escolha do Dalai Lama é vista ainda sob detenção pelo Governo chinês (FOX, 2001, p.
67).
16
O Arcebispo Anglicano Desmond Tutu, chefe do Conselho Ecumênico Sul Africano de Igrejas,
adquiriu o papel de defensor da ética, ou seja, um árbitro legítimo para tratar questões éticas nacionais,
na luta contra o Apartheid na África do Sul.
17
Expoente da Teologia da Libertação (corrente teológica cristã e utiliza como ponto de partida de sua
reflexão a situação de pobreza e exclusão social à luz da fé cristã) no Brasil, seus questionamentos a
respeito da hierarquia da Igreja, expressos no livro Igreja, Carisma e Poder, renderam-lhe um processo
junto à Congregação para a Doutrina da Fé, então sob a direção de Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento
XVI. Em 1985, foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso", perdendo sua cátedra e suas funções
editoriais no interior da Igreja Católica. Em 1986, recuperou algumas funções, mas sempre sob severa
vigilância. Em 1992, ante nova ameaça de punição, desligou-se da Ordem Franciscana e pediu dispensa
do sacerdócio.
18
Lança em 1970, a Teologia da Revolução, iniciando a Teologia da Libertação no Brasil.
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internacionalistas para a religião também. A primeira década do século XXI


testemunhou um resgate da religião, que não era previsto, na arena global. A
percepção dos secularistas de que o mundo se tornava dessacralizado desmoronou. Na
busca para compreensão dos acontecimentos internacionais atuais, como conflitos de
caráter político-religiosos que se tornaram questões internacionais, o crescimento e a
influência de atores estatais e não-estatais religiosos no âmbito nacional e o
terrorismo de organizações religiosas extremistas, alguns teóricos internacionalistas
(vistos a seguir) tem se proposto a analisar a religião em trâmite com os paradigmas
das teorias das relações internacionais.
As teorias das relações internacionais não são oriundas de um complexo de
ideias vazio. Elas evoluem amparadas por diferentes escolas filosóficas, também
chamados de paradigmas, e compostas por conceitos advindos de alguns dos
principais ramos das ciências sociais. Contudo, elas diferenciam-se de outras teorias
sociais por apresentarem uma ontologia própria, por desenvolverem e organizarem
conceitos úteis para o entendimento dos fenômenos averiguados pelos analistas das
relações internacionais. Além disso, são essas teorias que constituem a disciplina
acadêmica, definindo as relações internacionais como um ramo das ciências sociais
contemporâneas.
A forma como nos referimos à palavra paradigma, está correlacionada à
maneira de Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas (1962). O
argumento central do autor tem como inovador o conceito de paradigmas e o
tratamento da ciência como um processo de rupturas, e não um processo contínuo e
acumulativo. Kuhn preconiza que os períodos de acumulação gradativa de
conhecimento pela comunidade científica, denominados por ele de ciência normal, são
interrompidos ou intercalados por períodos da chamada ciência extraordinária,
quando os paradigmas científicos são questionados e revistos através das revoluções
científicas (KUHN, 2007, p.122-123). Neste caso, a ciência evolui tanto de forma
acumulativa, nos períodos de ciência normal, quanto aos saltos, quando ocorrem as
revoluções científicas.
A obra se inicia com a conceituação de ciência normal (uma pesquisa
firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas) e paradigmas
(um composto de suposições teóricas gerais e de leis e técnicas para a sua aplicação
adotado por uma comunidade científica específica). O alicerce da ciência normal é o
paradigma. Os que trabalham dentro de certo paradigma, praticam a ciência normal. É
o paradigma que determina os padrões para o trabalho dentro da ciência que governa.
É a existência de um paradigma sólido, capaz de sustentar uma tradição de ciência
normal o que difere a ciência da não-ciência.
Kuhn analisa a necessidade de novas gerações de cientistas para a aceitação de
novos paradigmas. Partindo desta indicação, sugerimos que a religião, sendo uma das
forças influenciadoras do mundo globalizado, pode ser analisada e integrada aos
paradigmas das relações internacionais, dessa forma permitindo-nos melhor observar
o impacto desta nos assuntos internacionais.
A relação entre religião e os paradigmas das teorias das relações internacionais
é bem singular. Isso porque o primeiro tratado interestatal da Era Moderna foi
assinado em decorrência de guerras religiosas internacionais, em Vestfália (1648).
Contudo, grande parte da teoria e do estudo das relações exteriores hoje tem

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marginalizado a inclusão das forças sociais, excluindo, assim, a religião, dos seus
paradigmas e tradições de pensamento. Para entender a origem da marginalização da
religião no contexto internacionalista, focamos na origem do sistema de Estados
modernos nos Tratados de Vestfália (THOMAS, 2005, p. 54).
Esse conjunto de tratados, também conhecido por Paz de Vestfália, por ter
encerrado a Guerra dos Trinta Anos19 (1618-1648), além de ter mudado a
compreensão de que os Estados da Europa deveriam ser unidos na base de princípios
formais de coexistência e tolerância mútua, em vez de uniões políticas e religiosas,
propiciou algumas normas: rejeição à ortodoxia religiosa como critério de soberania e
das relações internacionais, multiplicidade dos Estados independentes e representação
dos Estados na Conferência Geral da Paz (OLIVEIRA, 2001, p. 142). Logo, observa-se
que esses tratados puseram um fim à legitimidade da religião como princípio estatal,
que era uma fonte de conflito internacional entre os Estados que emergiram da
Europa medieval. O sistema de Estados Vestfaliano reconhecia os Estados como seus
principais atores, substituindo a autoridade transnacional da Igreja Católica. Com isso,
os tratados adotaram o princípio de que cada governante estabeleceria a religião de
seu domínio, acarretando, assim, em uma tolerância religiosa e a não-interferência (do
campo religioso) nos assuntos domésticos de cada Estado, o que maximizou o poder
do governante e a pluralidade de Estados. Ou seja, a religião seria privatizada (em
certa medida, já que poderia permanecer como religião do novo Estado), nacionalizada
e posta sob os poderes do Estado, pois era considerada uma ameaça à ordem, à
civilidade e à segurança. (THOMAS, 2005, p.55) Os princípios vestfalianos
estabeleceram as raízes para a escola realista e o conceito secular da raison d’état20
(razão de estado), pondo a religião fora do foco da política internacional (PHILPOTT,
2000, p. 206-245).
A partir de então, não só a religião, mas os vetores sociais e os aspectos
culturais passaram a ser esquecidos nos paradigmas e correntes internacionalistas; o
foco do debate da arena global era mantido nos assuntos do sistema de Estados,
guerras, segurança, entre outros. Surgindo como uma disciplina acadêmica com o
término da Primeira Guerra Mundial, as relações internacionais observavam a religião
como imprópria e de pouca importância analítica para explicar os assuntos
internacionais. A religião estava fora do foco internacionalista, devido à dominância de
ideias da perspectiva realista, ou escola realista.
O realismo tem uma abordagem muito ampla dentro da pauta
internacionalista. A diversidade e a riqueza dos seus princípios básicos é caracterizada
por diferentes vertentes. A ideia central do realismo foca desde o comportamento da
natureza humana no cenário político até o comportamento dos Estados e a interação

19
Denominação de uma série de guerras que diversas nações europeias travaram entre si a partir
de 1618, por motivos variados: rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais.
20
“Dentro da França, o cardeal Richelieu (primeiro ministro de Luís XIII) aplicou uma política de
consolidação da autoridade real depois de prolongado período de guerras de religião. Ele sustinha que
para estabelecer um Estado, significando o governo efetivo de um reino, era necessário combinar o
poder de concentração de Estado com a autoridade reconhecida de um rei legítimo; e que realmente, o
rei deveria ser a personificação do Estado. Seu objetivo era unificar a França sob um monarca absoluto e
destruir qualquer oposição efetiva, especialmente os castelos fortificados dos nobres e as guarnições de
cidades huguenotes que haviam sido concebidos para resistir ao rei. Essa foi política conhecida como
raison d’état”. (WATSON, 2004, p.258).
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entre eles na sociedade internacional anárquica; no seu poder militar, como forma
dominante de força entre relações estatais; e a segurança nacional como principal
questão de confronto estatal (THOMAS, 2005, p. 56). “O realismo enfatiza a coação
política imposta pela natureza humana e a ausência de um governo internacional.
Juntos, eles fazem as relações internacionais, um domínio de poder e interesse”
(DONNELLY, 2002, p. 9). Os contornos adquiridos pelo pensamento realista no século
XX foram moldados através dos séculos, desde a civilização grega até hoje. A
construção do pensamento realista se deu através de linhagens intelectuais que se
propuseram a estudar o aspecto internacional (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p.21). É
nesse sentido que encontramos Maquiavel e Thomas Hobbes, expoentes políticos, que
trataram de assuntos que correspondem hoje ao arsenal de conceitos da escola
realista: poder, estado, guerra, sobrevivência, interesse estatais, anarquia, entre
outros. Na contínua busca por pensadores que trataram do internacional, alguns
autores foram retratados realistas devido a uma leitura e uma interpretação de caráter
realista de sua obra, assim como Tucídides e Morgenthau.
Tucídides, um estudioso em estratégia militar da Grécia antiga, foi destacado
pelos realistas como o primeiro autor a trabalhar com a guerra, um conceito-chave das
relações internacionais, em A Guerra do Peloponeso. Na visão realista, a herança de
Tucídides (2001, p.348) se coloca de seguinte forma: os fortes exercem o poder e os
fracos se submetem, ou seja, para ele “sempre foi uma norma firmemente
estabelecida que os mais fracos fossem governados pelos mais fortes”. Esse
pensamento considera que o medo de deixar de existir leva os estados a se engajarem
em uma guerra, como ele mesmo argumenta: “os habitantes mais fracos se mostraram
inclinados a submeter-se à dependência dos mais fortes, e os mais poderosos, com
seus recursos aumentados, foram capazes de levar as cidades menores à sujeição, e
mais tarde, quando essas condições ficaram completamente consolidadas,
empreenderam a expedição contra Tróia”. (TUCÍDIDES, 2001, p.6). Mais tarde, os
realistas observarão que esse tipo de leitura será uma prerrogativa para o conceito de
“anarquia internacional”, um ambiente conflituoso no âmbito global por não haver
uma autoridade legítima que garanta a sobrevivência dos atores.
Continuando na vertente realista, Hans Morgenthau, um alemão naturalizado
americano refugiado da Alemanha nazista, foi o organizador das premissas no estudo
das relações internacionais em Política entre as Nações (1948). Considerado um
apóstolo do realismo, ele numera em sua obra os seis princípios do realismo21 que se
mostraram essenciais para a análise do panorama internacional. Segundo esse autor, o

21
Os seis princípios apresentados em Política entre as Nações são: (i) o realismo político acredita
que a política, como aliás a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que deitam suas raízes na
natureza humana (2003, p. 4); (ii) a principal sinalização que ajuda o realismo político a situar-se em
meio à paisagem da política internacional é o conceito de interesse definido em termos de poder (2003,
p. 6); (iii) a noção de interesse faz parte realmente da essência da política, motivo por que não se vê
afetada pelas circunstâncias de tempo e lugar (2003, p. 16-17); (iv) o realismo sustenta que os princípios
morais universais não podem ser aplicados às ações dos Estados (2003, p. 20); (v) o realismo político
recusa-se a identificar as aspirações morais de uma determinada nação com as leis morais que
governam o universo (2003, p. 21); (vi) é real e profunda a diferença existente entre o realismo político
e outras escolas de pensamento (...) intelectualmente, o realista político sustenta a autonomia da esfera
política (2003, p. 23).
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Estado procura o poder para moldar o interesse nacional (MORGENTHAU, 2003, p. 9) e


para a manutenção do status quo, expansão e prestígio.
No período após a Segunda Guerra Mundial, “com o crescimento do estudo
acadêmico das relações internacionais, o realismo se tornou a abordagem dominante,
senão a única na área. Ele possuía uma explicação poderosa e abrangente das relações
internacionais e do conflito”. (HALLIDAY, 2008, 25). Todavia, o domínio do realismo
começou a ser contestado na década de 1960, pelo movimento behaviorista, acabando
com a ortodoxia da disciplina das relações internacionais. O behaviorismo (conceito
advindo da palavra behavior – a conduta, o comportamento) concentrava-se no estudo
do crescimento das comunicações sociais (OLIVEIRA, 2001, p.87). Nesse ínterim, o
realismo tenta buscar sua primazia e dominância, se restabelecendo como um
movimento que preza pela excelência do Estado como ator e seu poder de força
militar no cenário internacional, através do paradigma neorrealista (DONELLY, 2002,
p.30). Tendo como seu principal teórico Kenneth Waltz, a teoria neorrealista ignora o
impacto da cultura e da religião no contexto internacionalista. Para essa vertente,
movimentos religiosos são considerados um fenômeno do sistema internacional que é
resultado da crescente desordem entre os Estados, causada pela estrutura anárquica
do sistema global, uma vez que não existe uma autoridade superior àquelas dos
Estados (THOMAS, 2005, p. 65).
Mesmo tratando de um paradigma que aborda assuntos que fogem a temática
da religião, podemos pontuar que o sistema internacional é regido por normas de
diversas ordens, incluindo as normas religiosas. Sendo assim, Thomas (2005, p. 57)
argumenta que a religião nem foi sempre ignorada pela tradição realista das relações
internacionais. A dimensão religiosa do realismo político, com ênfase no pecado, nos
limites da natureza humana, na sabedoria, na tragédia da política, foi redescoberta nas
ideias de Santo Agostinho22, que não fazia parte da escola realista, mas possuía uma
atitude realista. Exemplificando, o conceito de guerra no direito internacional é em
parte derivado da concepção religiosa de Santo Agostinho, em Cidade de Deus (410
d.C.). Para Agostinho, quando um homem escolhe travar uma guerra, ele não deseja
nada, a não ser a vitória. Por meio da guerra, eles podem alcançar paz com glória.
Logo, a paz é o desejo do final da guerra (BROWN, et al 2002, p. 126).
Em O Leviatã (1651), Thomas Hobbes, analisa a teoria política sob três pilares:
do Estado (soberano), de Deus (juntamente com a instituição da Igreja) e do súdito. Na
obra, Hobbes evidencia que o poder máximo de Deus é superior a qualquer outro, por
isso pode haver uma cisão entre Deus e a Igreja, à medida que o poder da Igreja será
autorizado pelo poder do soberano, ou seja, a Igreja tem que seguir as normas do
soberano dentro do Estado. Na vertente hobbesiana, o homem deve obedecer às
ordens de Deus em detrimento das ordens do Soberano. Segundo Hobbes (2007,
p.88), a religião foi cultivada de duas maneiras:

A religião da primeira espécie constitui parte da política humana, e ensina parte do dever que os
reis terrenos exigem de seus súditos. A religião da segunda espécie é a política divina, que

22
“As ideias de Santo Agostinho foram introduzidas no estudo americano das relações
internacionais pelo teólogo protestante americano Reinhold Niebuhr, o único teólogo no critério do
realismo clássico que contribuiu para o desenvolvimento de realismo no século XX”. (THOMAS, 2005, p.
57).
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encerra preceitos para aqueles que se erigiram como súditos do reino de Deus. Da primeira
espécie são todos os fundadores de Estados e legisladores dos gentios. Da segunda espécie são
Abraão, Moisés e nosso abençoado Salvador, dos quais chegaram até nós as leis do reino de
Deus.

Já em O Príncipe (1513), Maquiavel (2002, p. 49-77) trata da religião como


aspecto importante para se manter no poder. Na concepção maquiavélica:

A religião ensina a reconhecer e a respeitar as regras políticas a partir do mandamento


religioso. Essa norma coletiva pode assumir tanto o aspecto coercivo exterior da disciplina
militar ou da autoridade política quanto o caráter persuasivo interior da educação moral e
cívica para a produção do consenso coletivo. A religião, compreendida como instrumentum
regni, requer do príncipe a capacidade de servir-se de modo sagaz da fé do povo para levá-lo à
obediência da lei civil. Quer dizer, somente um príncipe virtuoso é capaz de levar o povo a temer
a desobediência às ordens do Estado como se fosse uma ofensa a Deus. Para Maquiavel, isso se
deve à superioridade da eficácia do mandamento divino em relação à lei humana para
submeter o povo. (AMES, 2006, p. 51-54)

Nesse sentido, aliando o poder político e a religião, o aspecto religioso pode


influenciar as relações internacionais através do ambiente doméstico. Exemplificamos,
então, através da difusão das ideias, religiosas ou não, de um Estado religioso para
outros Estados, que termina derivando uma extensão do seu poder no cenário
internacional, como os Estados Unidos. Eles se encarregam de difundir e se declaram
principais portadores das normas da democracia e dos direitos humanos, para
justificar sua interferência na política doméstica de muitos países não-democráticos.
Outra vertente das relações internacionais que, nas suas origens, rejeitou a
religião, mas hoje passa a aceitá-la como importante fator na ordem internacional é a
Escola Inglesa (HAYNES, 2007, p. 37). Liderada por Martin Wight e Hedley Bull, a escola
procura organizar propostas gerais sobre o sistema e a sociedade internacional, tanto
descritiva quanto normativas, e, assim, indaga sobre a possibilidade de ordem entre os
Estados, a natureza do poder, o papel das normas e das instituições, entre outros
fatores. De acordo com Saraiva (2006, p. 133), “a Escola Inglesa nega as premissas e as
interpretações do realismo e aproxima o entendimento das relações internacionais do
que hoje é reconhecido pelo construtivismo social como o papel das ideias, das
identidades como construtores de interesses”. O foco de estudo dessa escola gira em
torno da sociedade internacional. Para Wight (2002, p.98), a sociedade internacional é
constituída por um número de indivíduos agrupados num sistema de relações, por
certos objetivos comuns, ocorrendo assim uma cooperação. A ideia de sociedade
internacional, no dizer de Wight, é diferente de qualquer outra sociedade, pois agrega
quatro fatores: a sociedade internacional é composta por outras sociedades,
chamados Estados, que são seus membros principais, que por sua vez, tem como
integrantes fundamentais os homens; o número de membros é pequeno; esses
membros são mais heterogêneos que os indivíduos; e imortais, pois suas políticas são
voltadas para um caráter de sobrevivência. Em meio essa perspectiva e o recente
interesse do papel da religião nas relações internacionais, no entendimento de Haynes
(2007, p.37), surge uma questão teórica com relação à Escola Inglesa: “É possível a
existência de uma sociedade internacional em um cenário multicultural e
multirreligioso?” A ideia de sociedade internacional hoje deve ser vista com relação ao

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fenômeno da globalização, na qual a troca política, econômica e cultural intensifica


mudanças na configuração de um Estado. Através do surgimento de instituições
estatais e não-estatais, inclusive religiosas, o Estado não é mais o único ator no cenário
mundial, o que faz deteriorar o conceito original de sociedade internacional. Ou seja, a
sociedade internacional atualmente é composta por atores governamentais, atores
não-governamentais, Estados, empresas transnacionais, sindicatos, partidos políticos,
Igrejas e outras organizações representativas de diferentes tradições religiosas,
indivíduos que, a partir de seu prestígio e título pessoal, exercem atividades de
destaque no mundo. Na perspectiva de Adam Watson, um autor da Escola Inglesa, em
A Evolução da Sociedade Internacional (2004, p. 441-442), a cultura é realçada como
uma característica que desempenha um papel essencial na ordenação da sociedade
internacional contemporânea e a religião é exposta como fator presente e
impulsionador dessa evolução através da história das civilizações.
Continuando a integração da religião às teorias das relações internacionais,
observamos o liberalismo como um paradigma que deposita na necessidade da
construção de normas e instituições internacionais, a crença no progresso e a
possibilidade de transformar o sistema de Estados em uma ordem mais pacífica e
harmoniosa. Tendo como uma das suas principais referências à liberdade do indivíduo
e a paz, o liberalismo pode ter na religião um elo para o entendimento das diferenças
culturais; à medida que, as religiões têm uma tradição de estarem acessíveis às
múltiplas interpretações, os valores liberais vão ao encontro das normas religiosas,
promovendo assim, a cooperação e um entendimento pacífico, podendo auxiliar na
solução de um conflito político-religioso (FOX, 2004, 169). Dentro da órbita liberal, um
dos espaços dominantes do internacionalismo, observa-se atores religiosos não-
estatais e atores religiosos estatais, que compõem a sociedade internacional e têm um
papel primordial no estímulo à cooperação. “Os liberais acreditam que boas
instituições são necessárias e imprescindíveis para garantir a liberdade e o bem-estar
da sociedade” (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p.70). Os atores religiosos não-estatais são
os indivíduos e os movimentos religiosos que agem no contexto doméstico e
internacional, engajados em várias questões globais, assim como a resolução de
conflitos. Os atores religiosos estatais são aqueles ligados ao Governo, mas
conceitualmente distintos. Certos países, como os Estados Unidos, têm conjuntos de
atores religiosos com estreita relação com o Governo, pois esse país oferece um
sistema democrático onde o processo político-decisório é acessível aos atores, tanto
religiosos quanto seculares, que têm a oportunidade de influenciar a política nacional.
Outros países possuem partidos políticos religiosos em condições de participar
diretamente de decisões ou da implementação de políticas de relevância internacional.
Nesse propósito de acrescentar algo mais à integração da religião ao liberalismo,
estudaremos neste trabalho três instituições estatais religiosas americanas, que
exercem tal influência na política doméstica e internacional americana.
Segundo Haynes (2007, p. 43), “o liberalismo reconhece a potencialidade e a
importância de atores religiosos nas relações internacionais”, e também, o poder da
religião, como uma forma de soft power. O conceito de soft power, desenvolvido por
Joseph S. Nye (2005, p. 5-6), representa a ideia de um vetor, ou ideologia, agindo sobre
o alvo sem apresentar ameaças concretas, ou seja, através da argumentação e
persuasão, o detentor do soft power pode mover multidões, conquistar o desejado, ou

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o que quer, sem o uso da coação ou da violência. Para Nye, o soft power é a “segunda
face do poder”, pois, um país pode influenciar outro, no aspecto político e cultural,
através da divulgação de suas ideologias; e o país influenciado pode captar essa
incidência pela simples aceitação da importação de valores culturais, admiração das
ideias e imitação do exemplo de prosperidade do influenciador ou pela retradução das
mesmas em termos da cultura local. A intenção do soft power é cooptar pessoas,
moldando-se às suas preferências, ao invés de coagi-las.
Dessa forma, para Haynes (2007, p. 40), a religião se torna uma poderosa forma
de soft power, porque trata-se de um poder cultural, que usa de argumentos e
princípios para a conquista de adeptos e, atua nas decisões políticas e governamentais.
Haynes ainda argumenta que, a ideia religiosa de soft power é que os atores religiosos
podem procurar influenciar a política e as relações internacionais de tal país,
encorajando os Governos a terem políticas e programas mais em sintonia com suas
crenças e valores, buscando construir redes transnacionais para alcançar seus
objetivos. O Governo turco, por exemplo, usa o soft power religioso nos assuntos
externos através das agências de Estado, assim como o Departamento para Assuntos
Religiosos da Presidência (a mais alta autoridade da religião islâmica do país), negocia
a entrada do país na União Europeia acreditando que o diálogo entre as religiões
(cristianismo europeu e o islamismo turco – apesar da Turquia ser um Estado secular
provendo liberdade de religião) seja um passo efetivo para ultrapassar a barreira das
diferenças culturais, pois até hoje essa questão é o principal obstáculo para o país ser
um membro da União (GÖZAYDIN, 2010, p.3). Outro exemplo é a análise comparativa
feita por Haynes em seu artigo Religion, Soft Power and Foreign Policy Making in the
U.S.A., India and Iran. Os Estados Unidos representam o caso de uma sociedade com
mais pessoas religiosas, pelo menos aparentemente, e tradicionalmente, enquanto os
sucessivos governos têm procurado justificar a política externa em termos da moral
cristã, essa atitude é intrinsecamente associada à retórica secular da democracia,
liberdade e prosperidade. “Presidentes como Eisenhower, Nixon, Reagan e ambos
Bush recorreram à Igreja e empregaram sentimentos religiosos em seus discursos
políticos (HANSON, 2006, p.51). Enquanto isso, a Índia, um Estado oficialmente
secular, mas com uma população predominantemente religiosa também, tem duas
correntes religiosas influenciadoras na visão dos formuladores da política externa, a
tradição do pacifismo de Gandhi e a cultura hindu. O Governo indiano sob o poder do
partido Bharatiya Janata que é regido pelo Hindutva (um amálgama de nacionalismo e
princípios religiosos), entre 1998 e 2004, alcançou um diálogo com o Paquistão,
expansão das relações comerciais com a China e estreitamento de laços com Estados
Unidos, Rússia, Japão e alguns países europeus.
Enquanto certas formas de atuação religiosa podem ser consideradas como soft
power, há outras que não o são – intervenções na tomada de decisões políticas, ou na
implementação de políticas, com vistas a vetar ou a favorecer uma religião ou visão
religiosa sobre outras oponentes (inclusive não-religiosas); mobilização coletiva de
movimentos religiosos que envolvem o uso da força; corrupção política de atores
religiosos, levando-os a assumir determinadas posições.
O caso da relação entre o recurso ao soft power e os Estados Unidos é muito
singular. No cenário multipolar que se molda na arena internacional, os Estados Unidos
dependerão menos das medidas de poder tradicionais e mais do poder derivado do

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apelo de sua cultura, dos seus valores e das suas instituições (NYE, 2002, p.14). Nesse
sentido, o soft power é uma das fontes do poder americano, embora nem sempre
utilizadas. A expansão da ideologia democrática, da paz e dos direitos humanos, a
liberdade pessoal, a mobilidade social, são alguns dos valores que ajudam a aumentar
o soft power do país no resto do mundo. Além disso, “o papel das Igrejas Evangélicas
norte-americanas na promoção da democracia popular, das reformas sociais radicais e
dos novos alinhamentos políticos” (NYE, 2002, p. 206), é um exemplo importante da
influência que as instituições religiosas têm na propagação da cultura americana.
Por sua vez, o paradigma chamado construtivismo é atualmente o mais usado
para analisar as questões internacionalistas e salientar as questões culturais, ignoradas
pelas perspectivas tradicionais. Tal abordagem salienta que a identidade, os interesses
e as instituições internacionais nas quais cada Estado está imerso são mutuamente
interligadas; isso porque, segundo a visão desta vertente, os Estados são moldados e
formados através da interação social com outros Estados e atores não-estatais na
sociedade internacional. Na última década do século XX, o construtivismo consolidou-
se como disciplina das relações internacionais, evidenciado na obra Social Theory of
International Politics (1999), de Alexander Wendt, um dos principais acadêmicos
construtivistas. Esse trabalho desenvolve uma teoria de que o sistema internacional é
uma construção social. Wendt esclarece pontos centrais da abordagem construtivista,
apresentando uma visão estrutural e idealista. Mas isso depende da definição de
cultura e de sua interação com outras dinâmicas sociais, que contrasta com o
materialismo e o individualismo que sustentam as principais teorias das relações
internacionais. O autor constrói uma teoria cultural da política internacional,
considerando como determinante se os estados vêm uns aos outros como rivais ou
parceiros. Wendt (2003, p.246-259) caracteriza essa ideia como “cultura da anarquia”,
classificando-a como hobbesiana (cultura da inimizade: “a guerra de todos contra
todos”), lockeana (cultura da rivalidade: competição entre Estados por bens e poder) e
kantiana (cultura da amizade: relação de cooperação entre Estados, sem uso de
armas). Essa divisão ajuda a moldar os interesses e as capacidades dos Estados, através
do compartilhamento dessas ideias, gerando tendências no sistema internacional.
De modo geral, os teóricos construtivistas têm a ideia de que vivemos em um
mundo construído, em que somos os principais protagonistas, e que é produto de
nossas decisões; o mundo em permanente construção é moldado pelo que esses
teóricos chamam de agentes. “A premissa central e comum a todos os construtivistas é
que o mundo não é predeterminado, mas sim construído à medida que os atores
agem, ou seja, que o mundo é uma construção social. É a interação entre os atores,
isto é, os processos de comunicação entre os agentes, que constrói os interesses e as
preferências destes agentes”. (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 166). O paradigma
construtivista trabalha com o debate agente-estrutura. Esse debate se refere a como
cada polo constrange e limita as opções do outro, à medida que os dois são
coconstitutivos (WENDT, 2003, p. 42), ou seja, “não se pode falar em sociedade sem
falar nos indivíduos que a compõem” e vice-versa. (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p.
167).
Uma ideia importante na visão construtivista, é de que não existe uma anarquia
(estabelecida pelo paradigma realista) que rege o sistema de Estados como uma
estrutura que define as relações internacionais (WENDT, 2003, p. 70). A existência de

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um conjunto de normas e regras que organizam e norteiam essas relações faz com que
a anarquia possa existir em algum momento específico, não sendo predeterminada,
mas sim, socialmente construída. Seria um equívoco definir o cenário internacional
como eminentemente conflituoso. “Os processos de construção e reconstrução são
permanentes e abrem espaço para a contínua possibilidade de mudança” (NOGUEIRA;
MESSARI, 2005, p. 167). A lógica de funcionamento da anarquia (um conceito tido
como permanente na arena global) muda na escola construtivista, pois o processo de
formação da identidade de cada Estado na sociedade internacional é uma
consequência das trocas relacionais entre eles, o que está em constante mudança. Isso
quer dizer que, na relação entre os Estados, pode haver uma variação entre conflito e
cooperação.
Aprofundando essa linha de raciocínio, a definição de construtivismo baseado
no fato de que a realidade é socialmente construída, é muito ampla. Por isso, vamos
nos ater a um dos conceitos que mais chamam a atenção para essa escola, que é o
conceito de identidade. Apesar de não ser uma característica comum a todos os
construtivistas, Wendt (2003, p.336) é um dos autores que mencionam a questão da
identidade tratando o conceito de maneira endógena e não considerando as
identidades como simplesmente predeterminadas. Esse autor discute a identidade de
uma maneira flexível, permitindo assim, as mesmas se transformarem e se adaptarem
aos processos e às necessidades da política internacional.
Valendo-se dessas ideias, os construtivistas enfatizam as características sociais
da sociedade internacional, e ainda argumentam que o ambiente internacional no qual
os Estados operam não é apenas regido pelo hard power, como a força militar, fatores
econômicos e políticos, mas também por forças sociais, ideais, valores, cultura e
religião. É nesse sentido que esse paradigma procura entender os interesses e o
comportamento de cada Estado, investigando a sua estrutura social que fornece
diversos significados e valores, que compõe à sociedade internacional. De acordo com
Thomas:

O mundo social das relações internacionais influencia não apenas os incentivos por diferentes
tipos de comportamentos estatais, mas também a identidade dos Estados, que é a
característica básica na sociedade internacional. Em outras palavras, a identidade dos Estados,
assim como sua ação social, é explicada por uma construção sistêmica que pode ser chamada
de sociedade internacional (THOMAS, 2005, p.81).

Como foi visto, para a visão construtivista, os interesses e as identidades dos


Estados são socialmente construídos por meio da interação entre eles. Dessa forma,
sendo importantes elementos constitutivos de um Estado, a cultura e a religião podem
influenciar fortemente a identidade e a história de uma nação, ajudando e moldar seus
interesses nacionais e preferências nas relações internacionais.

Conclusão

Observando panoramicamente o nosso trabalho, consideramos estudar a


relação entre religião e relações internacionais. Sendo o campo de estudo das relações
internacionais uma área caracterizada pelo pluralismo teórico que incita diálogos
científicos em diferentes níveis de abstração, permitindo a construção de elos e
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conceitos adequados a produzir interpretações científicas da realidade internacional.


Por isso, retrocedendo o olhar pelo caminho percorrido, enveredamos por um
contexto de interseção entre a religião e o viés internacional na contemporaneidade;
expondo onde a religião se encontra nos paradigmas das teorias que constituem o
caráter acadêmico das relações internacionais.

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