Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1. Introdução
Numa Igreja (e podemos com proveito tomar a Igreja Católica como exemplo
típico), bem como num exército, por mais diferentes que ambos possam ser em
outros aspectos, prevalece a mesma ilusão de que há um cabeça — na Igreja
Católica, Cristo; num exército, o comandante-chefe — que ama todos os
indivíduos do grupo com um amor igual. Tudo depende dessa ilusão; se ela
tivesse de ser abandonada, então tanto a Igreja quanto o exército se
dissolveriam, até onde a força externa lhes permitisse fazê-lo. (FREUD,
1921/2010, p. 35)
1
Sem tradução literal correspondente, o termo Weltanschauung pode ser compreendido em português
como “visão de mundo”. Nesse texto, Freud elabora considerações a respeito dos saberes que se
constituem enquanto visões de mundo, sendo a religião e a ciência os principais temas debatidos.
De modo muito semelhante à religião, o bolchevismo tem de compensar seus
fiéis pelos sofrimentos e privações da vida presente com a promessa de um
Além melhor, em que todas as necessidades serão satisfeitas. No entanto, esse
paraíso deverá ser aqui, estabelecido na terra e inaugurado num tempo não
muito distante.
Desde o começo tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que
outrora eram as coisas naturais. [...] A religião é feita para isso, para curar os
homens, isto é, para que não percebam o que não funciona. (Lacan, 1974/2005,
p. 65,66)
Além de propor uma construção de sentido que valora os objetos naturais e a
realidade, a religião se encarrega de oferecer uma possibilidade de amparo e de
significado para os encontros com aquilo que é radicalmente desprovido de sentido, as
imprevisibilidades, e o que insiste em não funcionar na sociedade, em outras palavras,
para os encontros com o real. Nesse sentido, frente à angústia da morte, e a toda
angústia inassimilável em outras construções de sentido discursivas, a religião surge
como possibilidade de amparo (LACAN, 1974/2005).
Um dos pontos nodais no qual Lacan situa o discurso religioso é o de causa final
(DRAWIN; KYRILLOS NETO, 2018). O individuo religioso delega a Deus a tarefa da
causa, impedindo o seu acesso à verdade. O saber da religião remete tanto às questões
fundamentais quanto aos acontecimentos previstos para um juízo acerca do fim do
mundo, organizando-se como uma doutrina para o final dos tempos, de modo que a
religião seja capaz de subtrair o real em meio a elaborações teológicas que ocultem a
falta, oferecendo uma construção de saber totalizante.
Essa noção de totalidade é imanente ao político como tal. Essa noção sempre
usada na pregação dos partidos políticos para transmitir a ideia de satisfação e
completude, ideia essa que devemos nos opor, pois se perde a direção – isso faz
a manutenção do discurso do senhor. (Lacan 1969-1970 / 1992, p. 29)
3. Ideologia na religião?
O autor propõe um sistema composto de três teses para sua definição conceitual.
A primeira, “A ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos
com suas condições reais de existência.” (ALTHUSSER, 1996, p. 126). Essa tese
procura romper com a ideia disseminada de que ideologia corresponderia a uma “falsa
consciência”. Para o filósofo, o que é representado na ideologia não se trata das
condições da realidade em si, mas das relações imaginárias que os indivíduos mantem
com as condições reais de existência: “É esta relação que está no centro de toda
representação ideológica, e, portanto, imaginária do mundo real. É nesta relação que
está a “causa” que deve dar conta da deformação imaginária da representação ideológica
do mundo real” (ALTHUSSER, 1996, p. 127). A segunda tese, “A ideologia tem uma
existência material” (ALTHUSSER, 1996 p. 128), afirma a existência de instituições
que atuam como aparelhos ideológicos do estado (AIE’s). Não somente na instituição
enquanto presença física, mas também nas práticas individuais reproduzidas pelas
mesmas. A ideologia, portanto, passa a ser compreendida no terreno da prática social:
3
Além dos incisos VI VII e VIII do artigo 5°, onde a inviolabilidade da liberdade de crença é assegurada,
foi vedado aos entes estatais associar-se a organismos religiosos, exceto na colaboração de interesses
coletivos, por meio do inciso I do artigo 19°. (BRASIL, 1988).
ou de reabilitação penal, vinculadas a religiões cristãs, ambas previstas em constituição
e que, em projetos políticos recentes, ocupam o polo central no qual se direcionam as
escassas políticas sociais.
4
Abreviação utilizada durante o artigo cuja qual a Igreja Universal comumente é referenciada.
nacionais que não compartilham do pensamento judaico cristão (EL PAÍS; JUCÁ,
2019), aliança político-ideológica com Israel (EL PAÍS; GORTÁZAR, 2019), entre
outros projetos e discursos divulgados.
Talvez o que Weber (2004) muito assertivamente propôs como uma aliança ética
e cultural dos ideais protestantes e capitalistas, a partir dos desdobramentos da
secularização, tenha se estendido ao campo da prática estatal. Há de se considerar, nesse
sentido, a afinidade entre os valores da lógica de nosso sistema neoliberal com a
teologia expressa pelas igrejas pentecostais nessa afiliação. Mais do que isso, das
promessas de tal teologia frente ao que falha na atual organização social
contemporânea. Nas palavras de Birman:
7. Referências
FREUD, S. [1913] Totem e Tabu. In Freud, S. Obras completas volume 11. São Paulo:
Cia das Letras, 2012.
FREUD, S. [1927] O Futuro de uma Ilusão. In Freud, S. Obras completas volume 18.
São Paulo: Cia das Letras, 2010.
JUCÁ, B. Censura, um efeito cascata que corrói a arte no Brasil de Bolsonaro. El País,
São Paulo, 22 set. 2019. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/17/politica/1568751185_533748.html> Acesso
em: 25 set. 2019.
ROUANET, S.P. A volta de Deus. In: Folha de S. Paulo: Caderno Mais, pp. 8-11 maio
2002.
SOUZA, L. M. O diabo e a terra de santa cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.