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Atos obsessivos e práticas religiosas

Rodolfo Rodrigues

A reflexão de Freud acerca da religião ganha sua primeira sistematização no


texto Atos Obsessivos e Práticas Religiosas. Nele, Freud analisa algumas semelhanças
entre comportamentos existentes em casos de neuroses obsessivas e as ações religiosas,
tendo como ideia norteadora a analogia entre os cerimoniais performados nas duas
práticas. A religião, nessa comparação, equivaleria à uma neurose obsessiva coletiva.

Os cerimoniais obsessivos consistem em práticas e ações triviais, sempre


realizadas de uma maneira específica ou com pequenas variações, geralmente com
atenção integral, que, caso não praticadas ou interrompidas, causam uma angustia
insuportável ao sujeito. Do mesmo modo, a atenção dada aos detalhes da execução da
atividade, o isolamento em relação à outras tarefas, a proibição da interrupção junto à
angustia acometida caso determinada ação não seja realizada, são características
marcantes nos rituais religiosos.

Postos as semelhanças mais evidentes, Freud analisa as aparentes diferenças


entre as duas práticas. Enquanto os cerimoniais obsessivos possuem uma ampla
variação de práticas de acordo com cada indivíduo e competem ao âmbito privado, os
rituais religiosos possuem um caráter estereotipado e ocorrem coletivamente em espaços
públicos. Além disso, ao passo que os ritos possuem significados simbólicos, os atos
obsessivos parecem totalmente desprovidos de sentido.

Contudo, Freud descreve como, embora a priori apresentem-se como sem


sentido, a prática psicanalítica revela que os significados dos atos obsessivos podem ser
alcançados no conteúdo psíquico inconsciente do sujeito neurótico. A neurose obsessiva
revela entre suas causas o recalcamento de impulsos sexuais. Uma vez recalcados,
entretanto, continuam exercendo sua força no inconsciente, gerando o que Freud chama
de angústia expectante. O sintoma surge, portanto, como uma forma de conciliação
entre o desejo representado no impulso recalcado e a instância responsável pelo
recalque. Dentro do processo, o mecanismo de deslocamento existente no inconsciente
faz com que o conteúdo original da ideia recalcada seja deslocado para outras
representações, produzindo as práticas aparentemente sem sentido dos atos obsessivos.
Do mesmo modo como na neurose obsessiva existe a renúncia a certos instintos
pulsionais, também na religião ocorre tal processo. A culpa e a angústia expectante
gerada por tais forças pulsionais também atuaria de modo semelhante na religião, sendo
necessário a constante renovação da prevenção contra o pecado em ritos e atos de
penitência. Freud chega a afirmar: "o sentimento de culpa dos neuróticos obsessivos
corresponde à convicção dos indivíduos piedosos de serem, no íntimo, apenas
miseráveis pecadores". A única diferença que Freud considera significativa entre o
mecanismo desempenhado na neurose obsessiva e o existente na prática religiosa é uma
diferença no caráter das pulsões que são recalcadas. Enquanto na neurose obsessiva os
impulsos recalcados são de ordem sexual, na religião a censura recairia nos impulsos de
natureza egoísta e antissocial.

Aqui, vemos uma linha de construção teórica que será aprofundada em obras
posteriores, principalmente em Totem e Tabu. Para Freud, o sentimento de culpa possui
um papel fundamental dentro do processo de constituição da civilização. A religião
seria uma maneira encontrada de conciliar o recalcamento dos desejos e amenizar o
sentimento de culpa, uma espécie de regulação da economia libidinal que possibilitou,
nos primeiros grupos de homens, uma forma de convivência diferente daquelas até
então existentes, abrindo espaço para o surgimento de formas sociais cada vez mais
semelhantes àquelas existentes hoje.

Um ponto interessante do texto, sob a perspectiva do processo de secularização,


é o momento onde Freud afirma que, apesar de os atos cerimoniais serem carregados de
sentido simbólico, os praticantes religiosos, grande parte das vezes, não possuem
consciência do significado original dos atos que performam, passando a ser uma
repetição semelhante à do neurótico que desconhece a razão original de sua prática
obsessiva. O neurótico apenas tem ciência de que caso não realize seu ritual uma
punição recairá sobre ele. Assim também ocorre com grande parte dos praticantes
religiosos.

Utilizando a diferenciação de campos semânticos exposta por Libânio na obra A


religião no início do milênio, vemos uma predominância da religião enquanto
instituição para com o sentimento e fenômeno religioso. A institucionalização da crença
que ocorre na religião acaba produzindo um contexto social no qual as práticas
estereotipadas, as tarefas institucionais e o processo de reconhecimento grupal
sobrepõem-se à experiência religiosa em si, frequentemente perdendo contato com os
significados originais dos ritos. Dessa forma, como aponta também Freud, não é raro na
história das religiões processos de reformas intermitentes que reestabeleçam os valores
esquecidos.

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