Você está na página 1de 4

A VISÃO DO SOCIAL NA PSICOLOGIA

Neste texto nos propomos refletir sobre a visão do social na Psicologia a partir do
modo como este se apresenta e é compreendido em três abordagens representativas do
pensamento psicológico no século XX.

1. A PSICOLOGIA COMPORTAMENTALISTA

Embora Wundt, fundador da psicologia científica, estivesse consciente da especificidade de


uma psicologia orientada para os comportamentos sociais e culturais dos povos (Psicologia dos
Povos), o desenvolvimento da psicologia científica nos Estados Unidos reificou o método
experimental a partir de uma perspectiva totalmente empirista, voltada essencialmente para
processos de percepção e sensação. Progressivamente foi se consolidando um verdadeiro “culto
ao empírico” e a psicologia foi, cada vez mais, adotando uma concepção instrumentalista de
ciência, reproduzindo as tendências à objetividade e à verificação que caracterizavam o
desenvolvimento das ciências naturais da época.

A naturalização predominante no desenvolvimento do pensamento psicológico foi gerando


uma representação dos processos psíquicos que os delimitava no espaço do indivíduo. No
entanto, essa orientação que definia o psíquico no indivíduo nunca apresentou uma definição
ontológica do psíquico, e nela ele aparece apenas associado a reações comportamentais diante
de agentes externos.

Para essa psicologia experimental, e também para a psicologia behaviorista que surgiu
posteriormente, o externo referia-se mais a coisas ou fenômenos que atuavam como estímulos
objetivos, do que a um sistema que poderíamos definir propriamente como social. A visão do
externo poderia ser mais facilmente inserida em um tipo de ambientalismo do que em uma
definição de cultura. A dimensão simbólica e cultural do social era totalmente ignorada por uma
psicologia que se concentrava nos indivíduos como seres naturais e que via a realidade como
conjuntos de eventos e estímulos objetivos. O resultado foi uma visão objetivista do meio e do
próprio indivíduo. A consciência se localizava “dentro” e o comportamento se situava “fora”,
mas, na realidade, ambos se apresentavam no território objetivo, e o interno era definido por
reações comportamentais no plano experimental. As duas tendências se situavam em uma
epistemologia cujo núcleo era a relação estímulo-resposta.

De uma perspectiva epistemológica, esse ideal comportamentalista enfatizava a


padronização, a medição e a universalidade dos problemas estudados, sobre os quais tentava-
se estabelecer leis de caráter indutivo. Essa psicologia comportamental centrava-se no indivíduo
como definição natural, mas omitia totalmente a definição de sujeito, enquanto indivíduo
singular, capaz de atuar sobre os próprios contextos e processos que o determinam e de ser
constituinte desses mesmos contextos.

Nesse quadro de uma psicologia naturalista e individualista orientada para o


comportamento, a perspectiva sociopsicológica dos fenômenos históricos foi totalmente
ignorada. O fenômeno natural foi totalmente separado de sua determinação social e de seu

1
caráter subjetivo. Dentro dessa visão comportamental do pensamento psicológico, o social e o
subjetivo, em sua relação íntima e necessária, foram eliminados.

A psicologia comportamental reduziu a psique a formas de comportamento e o social a


variáveis e a condições isoladas que influíam no comportamento das pessoas. Isso produziu, por
exemplo, estudos descritivos capazes de medir atitudes racistas ou pró-sociais, mas incapazes
de produzir uma única ideia sobre o tipo de sujeito e de espaço social em que essas atitudes
eram produzidas.

2. A PSICANÁLISE E O HUMANISMO

Embora tenha surgido no contexto da instituição médica e recebido forte influência do


modelo médico positivista e mecanicista, a psicanálise introduziu a ideia da origem psíquica de
sintomas somáticos. Além disso, Freud nos convidou a vislumbrar as complexidades da vida
psíquica do ser humano, transcendendo, portanto, as representações comportamentais até
então vigentes.

A psicanálise freudiana, no entanto, nos apresenta a psique através de um modelo


bioenergético, no qual os processos apresentados existem como entidades metafísicas de
caráter universal e invariável. Freud, apesar de sua perspicácia para representar os processos e
conflitos psíquicos do homem de sua época, não conseguiu diferenciar a natureza dos processos
subjetivos, sua flexibilidade e independência com relação a uma suposta natureza humana
universal. E é por essa razão que ele considera a sexualidade uma supercategoria, a partir de
cujo funcionamento organiza-se não só toda a dinâmica que caracteriza a vida psíquica como
também os diferentes níveis de organização da psique humana.

O social não é integrado na definição da qualidade da psique e um exemplo disso são as


invariantes universais do pensamento psicanalítico. Se Freud tivesse compreendido a
importância do social como constituinte da psique, nunca teria generalizado suas
representações sobre o caráter sexual da neurose, ou sobre a definição da moral através do
superego. No entanto, apesar dessas limitações que estão no contexto e na linguagem de sua
época, Freud na verdade nos coloca diante de uma visão da mente como organização dinâmica,
com processos próprios que se escondem da consciência e aparecem unicamente de forma
indireta no comportamento. É bem verdade que Freud tende a psicologizar o social mais do que
a compreender o caráter social dos processos psíquicos humanos, mas, apesar disso, foi capaz
de fazer análises psicológicas importantes sobre a religião e outros fenômenos sociais na última
parte de sua obra.

A psicanálise mantém uma representação pulsional do homem, o que define o lugar


predominante de uma natureza humana universal. Na obra de Freud, o social se manifesta
através de sua influência sobre a psique, basicamente em nível micro, no sistema familiar,
tomando forma diante da expressão de tendências pulsionais da criança com relação à mãe. Ou
seja, o social adquire sua importância psíquica a partir de um processo básico de expressão
libidinosa. O outro, nesse caso a mãe, aparece como objeto da pulsão, enquanto a figura paterna
aparece como agente repressor, funções que produzem emoção através da pulsão. As relações
com os pais não definem um espaço social qualitativamente diferenciado; ao contrário, elas
representam um padrão universal definido a priori pela natureza pulsional da criança.

2
Com a psicanálise, pela primeira vez na literatura psicológica, o social se expressa em nível
simbólico nas consequências do conflito edipiano. No entanto, no pensamento psicanalítico,
mantém-se a dicotomia entre o social e a psique, na medida em que a psique é considerada
como atributo relevante do individual e que as unidades para compreendê-la estão baseadas
em aspectos bioenergéticos dos indivíduos.

A separação entre o social e a psique impede que se saia de uma representação naturalista
da psique e que se passe a uma compreensão do impacto da condição histórico-cultural do ser
humano na organização e no funcionamento de sua vida psíquica.

Ao desenvolver um imaginário pulsional, a psicanálise faz com que seja mais difícil pensar
nas outras unidades de organização da psique, pois a pulsão induz a que busquemos os núcleos
dinâmicos da psique na natureza humana; e induz também a uma representação da organização
psíquica centrada no inconsciente como instância de base, a partir do conceito de repressão.
Dessa forma, cria-se uma representação da psique como um espaço interno a que só se chega
através da compreensão do inconsciente como linguagem, desenvolvida por Lacan.

A psicologia humanista rompeu com o legado pulsional com relação à organização da


psique, já que ela modifica totalmente a concepção sobre o tipo de conteúdos que dinamizam
o comportamento humano. Esses conteúdos são vistos como positivos, como tendências à auto-
realização e ao crescimento. Isso elimina o caráter necessário da repressão e, portanto, da
fundação do inconsciente como instância. Apesar disso, o humanismo se mantém dentro do
esquema pulsional na definição de tendências universais e teleológicas na natureza humana,
embora o centro de sua construção teórica seja o sujeito individual e seus processos de
regulação do comportamento.

A psicanálise influencia todas as escolas dinâmicas, que continuam representando a psique


como um sistema interno que se organiza em um sujeito individual e em relação ao qual o social
favorece, influencia, mas não representa o caminho de constituição e organização da psique.
Essa segunda tendência geral de evolução do pensamento psicológico, que podemos identificar
como psicodinâmica, representa a psique como um sistema interno, individual e dinâmico,
configurado por forças em conflito e contraditórias. Opondo-se à psicanálise, o humanismo
acaba por reificar o lugar da consciência na organização dos processos psíquicos, nos trazendo
a representação de um sujeito capaz de conseguir níveis de congruência com relação a seu
comportamento que nos levariam a considerar as possibilidades absolutas da consciência na
produção do conhecimento do indivíduo sobre si mesmo.

Nesse sentido, o ideal auto-regulador do sujeito reduz toda a complexidade que sua
condição social envolve, cercada permanentemente por formas simbólicas que estão mais além
de sua capacidade consciente. O humanismo nos transmite um quadro transparente de
processos que, na realidade, são opacos e inacessíveis de forma direta à consciência. E mais
ainda, a consciência não representa uma capacidade onipotente do homem, a partir da qual
este pode controlar-se a si próprio e a tudo que o rodeia. Isso significa uma compreensão
racionalista da consciência muito presente na concepção de sujeito desenvolvida pela psicologia
humanista.

É inegável que a consciência é uma via de produção de sentido que implica representações
e formulação intencionais, no entanto, ela está sempre constituída por processos de sentido
que se integram a essas representações e que ficam fora da “visibilidade” consciente do sujeito.

3
O humanismo, assim como a psicanálise, especialmente, a partir da década de 1960, foi-se
orientando cada vez mais à análise do mundo social em que o sujeito se desenvolvia. Isso
permitiu, sobretudo a Rollo May e Carl Rogers desenvolver reflexões sobre os impactos de
situações sociais complexas sobre o desenvolvimento do indivíduo...
Quero examinar esta crise [refere-se à crise gerada pela guerra no Vietnã]
como um exemplo ilustrativo do fato de que todos nós, sejamos a favor ou
contra a guerra, estamos presos em uma situação histórica de convulsão na
qual não existe uma noção clara do certo e do errado, e na qual a confusão
psicológica é, portanto, inevitável; e – um fato mais aterrador que os demais
– nenhuma pessoa ou grupo de pessoas encontra-se na posição de exercer
um poder significativo. O poder assume um caráter anônimo, automático e
impessoal. (MAY, 1974, apud GONZÁLEZ REY, 2004, p.22).

Nesta reflexão, May nos coloca diante de um sujeito dominado por forças sociais que
transcendem a onipotência da consciência. Assim, progressivamente vai-se ampliando a
reflexão acerca das dimensões de subjetivação do social, com contribuições significativas da
Psicologia Social.

**************************************************************************

Texto para uso em sala de aula, compilado pela Profª Cida Craveiro a partir de:

GONZÁLEZ REY, Fernando Luís. O social na psicologia e a psicologia social: a emergência do


sujeito, Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

Você também pode gostar