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Totem e Tabu

Na obra Totem e Tabu, Freud procura analisar o fenômeno conhecido pelos


antropólogos como totemismo, forma de organização social presente em diversas
sociedades primitivas. Por meio dessa análise, o autor elabora teorias que abrangem,
entre outros assuntos, o surgimento da religião, a devoção religiosa, o caráter
ambivalente dos sentimentos humanos, o papel da lei e da culpa no surgimento da
cultura. Para Freud, o sistema totêmico ocupa o lugar das instituições religiosas e
sociais que esses povos não possuíam até então.
Dividido em quatro capítulos, Freud dialoga com o trabalho de antropólogos e
estudiosos que procuraram criar sistemas que possibilitem a compreensão do totemismo
e suas características. Os capítulos são: O horror ao incesto, O tabu e a ambivalência
dos sentimentos, Animismo, magia e onipotência do pensamento e O retorno do
totemismo na infância.
No primeiro, Freud analisa os tabus observados na organização social dos
homens primitivos – principalmente dos aborígenes da Austrália. As proibições
existentes no interior das tribos eram relacionadas ao seu totem – um animal específico
representante da tribo. O animal eleito como totem era considerado sagrado. Entre as
proibições relacionadas ao totem, as principais se consistiam em não o matar e não o
comer, exceto em ocasiões especiais, e em não ter relações sexuais com membros da
mesma tribo. Diversas regras de evitação eram postuladas para o cumprimento do
segundo tabu citado, e a morte era a punição para a infração dos dois interditos.
A partir desse fato, Freud insere em seu sistema de interpretação sobre a religião
a analogia ao complexo de Édipo. Os crimes prescritos pelo Tabu nas tribos primitivas
são os mesmos efetuados pelo édipo. A proibição de tais ações denuncia a existência
dos desejos incestuosos. Apenas há interdição onde há desejo. Tais desejos incestuosos
são, para Freud, o núcleo do surgimento das neuroses. Neste sentido, aquilo relatado
referente à organização social e aos costumes das tribos primitivas coincidia com as
observações clínicas realizadas por Freud com pacientes neuróticos. Vemos, aqui,
indícios de uma elaboração presente na obra do autor, já apresentada em parte, em
Rituais obsessivos e práticas religiosas: a analogia entre neurose e religião, e, também, a
condição neurótica em que se constitui a cultura.
Na segunda parte, Freud discorre a respeito da ambivalência existente entre os
homens primitivos e nos sentimentos humanos de maneira geral. Os tabus, nos homens
primitivos, não possuem fundamentação lógica e nem mesmo proveniência divina como
em outras religiões. Seus integrantes apenas as cumprem considerando a evidente
punição acarretada pela possível desobediência. O autor ressalta, então, o caráter
ambivalente de tais proibições. De origem polinésia, a palavra “tabu” pode reunir
sentidos opostos: sagrado, consagrado ou então, misterioso, perigoso, impuro. Tal
análise fundamentará, posteriormente na obra, a maneira como o desejo, sua repressão e
a culpa são alicerces no surgimento da cultura e em sua manutenção.
Em animismo, magia e pensamento onipotente, terceiro capítulo, Freud aponta
algumas considerações a respeito do que seria a primeira visão de mundo construída
pela humanidade. O animismo, considerado como um precursor das religiões, procura
uma compreensão do mundo enquanto unidade. Tal discussão será retomada em Acerca
de uma verdade de mundo. Como ressalta Freud, a necessidade da produção de sentido
para fenômenos incompreensíveis fez com que os homens criassem um sistema,
baseado na existência de espíritos, que respondesse a questões práticas e metafísicas. “A
necessidade prática de sujeitar o mundo teve, certamente, participação nesse esforço.
Por isso não nos surpreendemos ao saber que, de mãos dadas com o animismo, há
instruções de como proceder para assenhorar-se de homens, coisas e animais, isto é, de
seus espíritos.” Além da função de fornecer um sistema de como se comportar no
mundo, Freud destaca o papel de buscar uma resposta para a morte, fundamental no
animismo e em todas as religiões posteriores. Nas palavras do autor, “O problema da
morte, mais que tudo, teria sido o ponto de partida da teorização. Para os primitivos, o
prosseguimento da vida — a imortalidade — seria algo evidente.”
Uma vez que o significado dos tabus colocados pelo totemismo pode ser
explicado a partir do complexo de édipo, da ambivalência e da necessidade de um
discurso que forneça sentido ao mundo, ao mesmo tempo prescrevendo modos de agir e
preparações para a morte, Freud, no quarto capítulo, propõe uma teoria para o
surgimento do totemismo. Para tal, o autor lança mão da teoria das ordens primevas,
defendida por Darwin, e constrói uma narrativa em cima de tal pressuposto.
Os primitivos viveriam em pequenas hordas chefiadas por um macho mais
velho, poderoso, violento e ciumento. Todas as fêmeas da horda seriam sua propriedade.
Os outros machos, na medida em que ameaçavam o seu poder, eram mortos, castrados
ou expulsos da horda. Um dia, todos os filhos expulsos uniram-se com o intuito de
derrotar o pai. Eles o mataram e o devoraram cru. Tomados por muito remorso e um
enorme sentimento de culpa, os irmãos selaram um acordo: para que a vida em
comunidade pudesse existir, ninguém mais ficaria no lugar que outrora havia sido
ocupado pelo pai e os homens renunciariam a posse das mulheres, instituindo a lei do
incesto.
A partir de tal narrativa, Freud interpreta que o animal totêmico é um substituto
do pai. Sendo o totem um substituto da figura do pai, as duas principais restrições do
totemismo – não matar o totem e não ter relações com as mulheres de um mesmo clã –
coincidem com os dois crimes do Édipo: assassinar o pai e dormir com a mãe. O
sentimento de culpa compartilhado pelos irmãos, advindos do sentimento de
ambivalência que tinham em relação ao pai, seria o fator fundamental na constituição da
cultura que se deu ao redor desse acontecimento.
É a partir desse lugar deixado pelo pai, portanto, que a cultura se institui. É deste
lugar vazio também que o pai morto readquire sua potência. Primeiramente, isso se
reflete sob a forma do animal totêmico do clã, depois na figura dos heróis, deuses e
demônios, e posteriormente na imagem do Deus-Pai do monoteísmo judaico-cristão.
Para Freud, todas as religiões posteriores ao totemismo serão tentativas falhas de lidar
com esse sentimento ambivalente em relação ao pai.
Dessas conclusões tiramos pontos retomados por Freud em textos posteriores e
já expressos em forma embrionária em Atos obsessivos e práticas religiosas. A analogia
feita com a neurose implica nas renúncias pulsionais necessárias para a constituição da
cultura. Do mesmo modo, o compartilhamento da culpa, inicialmente na figura do
assassinato do pai primevo, mantém-se presente nas formas atuais de expressão
religiosa e na relação entre desejo e proibição existente na cultura.

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