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A epistemologia dos Estudos da Religião

Antes de discorrer sobre a epistemologias dos Estudos das religiões, é


imprescindível destacar o significado das palavras: epistemologia e religião.
1. Religião: crença na existência de um poder ou princípio superior,
sobrenatural, do qual depende o destino do ser humano e ao qual se
deve respeito e obediência.
2. 2.
postura intelectual e moral que resulta dessa crença.

Epistemologia:
Segundo o dicionário Definições de Oxford Languages:
Reflexão geral em torno da natureza, etapas e limites do conhecimento
humano.
2.
Estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber
científico, ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade
cognitiva, ou descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas
estruturais ou suas relações com a sociedade e a história; teoria da ciência.

Portanto, é uma palavra que envolve a reflexão de vários métodos dos


diferentes saberes, no caso sobre ao o estudo das ciências da religião.
As diversas correntes de estudo:
A teoria sociológica DURKHEIM
Queremos, agora, abordar aqui, ainda que de forma mais breve, uma teoria
sociológica do século XX que, na realidade, tem pouco em comum com as
teorias precedentes. Essa teoria sociológica está ligada ao nome de Émile
Durkheim (1858-1917), fundador da Escola Sociológica francesa e, certamente,
o autor que mais influenciou e influencia a Sociologia da Religião. Sua obra que
trata do fenômeno religioso é As Formas Elementares da Vida Religiosa,
publicada em 1912. É importante observarmos que a teoria de Durkheim tem
um fundo etnológico e se refere ao conceito de totemismo como sendo a
religião primária dos homens primitivos. Totemismo é uma categoria etnológica-
religiosa utilizada por quase todos os estudiosos das culturas primitivas,
contudo, segundo Terrin (2003), nunca foi explicada. Frazer (1987), na tentativa
de explicar, disse que o totemismo consiste na ligação existente entre um clã e
uma classe de animais, razão pela qual há uma consideração para com esse
animal, certa reverência, acreditando-se num parentesco remoto: o animal
totêmico (totem = parente) é considerado o antepassado mítico do qual o clã
descende. A Teoria Sociológica de Durkheim Reprodução proibida. Art. 184 do
Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 81 O uso que Durkheim
faz do totem parte do pressuposto de que o totemismo é uma das expressões
básicas e mais elementares da cultura e da religião dos povos primitivos. O
totem cumpre uma variedade de funções. Ele é, antes de tudo, um símbolo, um
emblema do clã, é desenhado na frente das casas dos chefes e esculpido nos
objetos que são considerados como os monumentos do clã. Tem um caráter
religioso, serve para classificar o que é sagrado em relação ao que é profano.
O totem é o tipo de tudo que é sagrado, é uma expressão eminente do
sagrado. A partir dessa conceituação, Durkheim pôde sistematizar sua tese:
sendo o totem a forma mais sensível de religião, ele é o próprio deus totêmico.
Dessa forma, sendo ao mesmo tempo o símbolo do clã e o emblema do grupo
social, significa que o símbolo principal da religião e o fundamental da
sociedade são a mesma coisa e que, definitivamente, o deus totêmico do clã
nada mais é que o próprio clã, porém personificado e compreendido em sua
forma mais ideal. A tese de Durkheim diz que a religião é o mito que a
sociedade faz de si mesma. O culto prestado ao totem é um culto prestado a
própria sociedade. Logicamente, é verdade que em seus rituais de culto, que
são sempre em comunidade, os membros dos clãs aborígenes, por exemplo,
entendem que estão prestando culto à divindade (um animal, uma planta) que
está fora da comunidade, em algum lugar do mundo, que pode controlar a
chuva ou mesmo fazê-los prosperar. O que realmente está acontecendo,
porém, é algo que pode ser mais bem compreendido em termos de função
social. A sociedade precisa do comprometimento individual dos seus membros.
Esse comprometimento, segundo Durkheim, “não pode existir senão através da
consciência do indivíduo; por isso que o princípio totêmico deve sempre
penetrar e se organizar conosco” (DURKHEIM, 1915, p. 419). O sociólogo
francês Émile Durkheim foi o primeiro a definir o totemismo como a primeira
representação sistêmica que o homem fez do mundo e de si mesmo, em que é
possível obter uma visão do mundo. Como para Durkheim a Filosofia e a
Ciência se originaram da religião, o totemismo ofereceu rica contribuição para a
organização das construções intelectuais do ser humano moderno. Fonte:
adaptado de Durkheim (1915). A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA
RELIGIÃO Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de
fevereiro de 1998. 82 UNIDADE III Além disso, podemos saber exatamente
quando e como isso ocorre: naqueles cerimoniais inspiradores e, ao mesmo
tempo, intimidadores, que causam medo, terror, respeito e reverência. São
ocasiões em que a comunidade toda se reúne para praticar seus ritos, seja o
clã ou a tribo. Nessas grandes e inesquecíveis cerimônias, os adoradores
selam seu comprometimento com a própria comunidade: No princípio, sagrado
é nada mais, nada menos do que a sociedade transfigurada. Isto deveria ser
possível interpretar em termos sociais. E, como uma questão de fato, a vida
social, tal como o ritual, move-se em um círculo. Por um lado, o indivíduo
recebe da sociedade a melhor parte de si mesmo, tudo o que lhe dá um caráter
distinto e lugar especial entre os outros seres, sua cultura intelectual e moral
[...] Mas por outro lado, a sociedade existe e vive somente em/e através de
indivíduos. Se a ideia da sociedade fosse extinta em mentes individuais, as
crenças, tradições e aspirações do grupo não seriam mais sentidas e
partilhadas pelos indivíduos, a sociedade iria morrer. [...] Vemos agora a
verdadeira razão pela qual os deuses não podem fazer, sem os seus
adoradores, mais do que estes podem fazer sem os seus deuses, é porque a
sociedade, de quem os deuses são apenas uma expressão simbólica, não
pode prescindir de indivíduos mais do que estes podem fazer sem a sociedade
(DURKHEIM, 1915, p. 347). Nesse parágrafo conclusivo, Durkheim deixa claro
sua tese, que é o cerne de sua teoria. A crença religiosa e os rituais são, em
última análise, expressões simbólicas da realidade social. O culto ao totem é,
na realidade, a afirmação da fidelidade ao clã. Caro(a) aluno(a), embora
Durkheim tenha se preocupado com a forma mais primitiva de religião, sua
busca principal não se fundamentava na descoberta da origem do fenômeno
religioso e seu elemento comum a todas as formas de religião. Como
sociólogo, ele preferiu direcionar sua teoria para esclarecer a funcionalidade da
religião como produtora de solidariedade
Contribuição da psicanalise nos estudos da religião.
a Teoria Psicanalítica da origem da religião de Sigmund Freud (1856-1939) é
outro exemplo do desenvolvimento dos estudos da religião no final do século
XIX e início do século XX. Segundo Terrin: O plano de trabalho de Freud é
muito ambicioso: na realidade tem a pretensão de fazer com que os etnólogos
entendam o que não conseguem compreender, fazendo que enxerguem
primeiro uma analogia e depois uma identidade de comportamento entre o
homem primitivo com os seus tabus e o seu totemismo, e o neurótico, que por
sua vez, também está sujeito a tabus que ele mesmo cria e a uma forma
particular de totemismo (TERRIN, 2003, p. 65). A teoria de Freud se baseia
num espesso entrelaçamento de caráter etnográfico e de caráter psicanalítico
(TERRIN, 2003, p. 65), envolvendo o totem e o tabu, dos quais consideraremos
os aspectos principais. Primeiramente, é preciso que os termos principais
sejam esclarecidos. A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 84 UNIDADE III O Tabu é uma proibição fortíssima e antiquíssima
para o qual não existe uma razão imediata. É exogâmico, por exemplo, um
membro do clã não pode se casar com uma mulher do mesmo clã. Por sua
vez, o totem é considerado o “deus totêmico”, isto é, como o animal ao qual o
clã atribui um culto especial e do qual se sente dependente. Terrin esclarece:
Ora, a teoria de Freud sobre a origem da religião poderia ser resumida nestas
poucas palavras: considerada a semelhança existente entre os tabus do
neurótico e os tabus do homem primitivo, e considerando que na origem de
toda neurose há um chamado complexo de Édipo, o autor é levado a prefigurar
um complexo de Édipo como uma história verdadeira projetada no início da
humanidade, segundo a qual os filhos — num tempo histórico ou mítico —
teriam se revoltado contra o pai e o teriam matado por ciúme e para possuir as
mulheres que eram, todas, monopólio do pai. Porém, essa morte do pai
(parricídio) teria imediatamente criado uma fonte de perturbação e um remorso
sem igual, razão pela qual os filhos não estariam mais em condições de
suportar diretamente a lembrança da imagem paterna, que precisaria ser
substituída simbolicamente (TERRIN, 2003, p. 66). Os primitivos são culpados
por matarem o pai, mas não podem suportar a lembrança desse fato. Para
aplacar o remorso daí decorrente, criam o símbolo totêmico, que nada mais é
do que a imagem disfarçada do pai odiado, mas com o qual querem se
reconciliar de qualquer maneira. Totem e Tabu foi publicado por Freud em
1913. É considerado a sua maior contribuição à Etnologia, resgatando as
origens da organização social e das hierarquias das sociedades primitivas que
influenciaram a nossa atual configuração de sociedade. Os argumentos de
Freud configuram suas opiniões sobre a formação da cultura atual, baseada,
segundo ele, nos antigos sistemas totêmicos que, atualmente, podem ser
encontrados somente em algumas localidades da Austrália e África. Fonte:
Koltai (2010). As Contribuições da Psicanálise:Freud e Jung Reprodução
proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 85 A
religião é explicada nessa tentativa de superar a dor da culpa e do remorso
pelo parricídio, mostrando sentimentos de reverência para o totem, o símbolo
do pai, elevando-o à divindade para não senti-lo mais hostil e para se
reconciliar com ele. Enfim, a religião seria uma espécie de neurose universal e
estaria contida dentro do complexo de remorso e reconciliação. Segundo Terrin
(2003, p. 67) “Não é necessária muita acuidade crítica para reconhecer a frágil
teoria freudiana como algo sem sentido, acreditando poder explicar também o
cristianismo nessa mesma dimensão psicanalítica defeituosa”. A crítica de
Terrin faz sentido, uma vez que argumenta que Freud deu muito valor ao
inconsciente. Para tanto, “a tese funcionalista de Freud quanto à religião afirma
que esse fenômeno social é um subproduto do inconsciente, com a função de
reprimir pulsões instintivas antissociais”. Quem contrariou as teses de Freud
sobre a religião, especialmente seu conceito de religião como neurose coletiva,
foi o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875- 1961). Já em 1913, Jung se
afasta definitivamente da corrente freudiana, passando a ser considerado como
um rebelde da Psicanálise ortodoxa de Freud. Jung reputava a religião como
muito benéfica para a sociedade e, assim, deveria permanecer para sempre. O
pensador defendia que a religião era uma expressão natural do inconsciente
coletivo, muito mais arcaico que o inconsciente individual. Para ele, o
inconsciente coletivo é uma espécie de memória ancestral, uma sedimentação
da vivência das primeiras gerações dos seres humanos, que se manifesta em
profundas marcas psíquicas. A essas marcas, Jung chamou de arquétipos:
“Assim como ocorria nas sociedades totêmicas, a violação ou o não
cumprimento de um ritual sagrado cria desconforto psicológico, e o sujeito é
levado a crer que algum mal irá lhe ocorrer, pois não atendeu a uma exigência
sagrada”. (Sigmund Freud) A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA
RELIGIÃO Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de
fevereiro de 1998. 86 UNIDADE III Os arquétipos do inconsciente seriam a
fonte, tanto dos sonhos como dos mitos da religião (Jung sempre insistiu na
associação entre uns e outros). De maneira que essa associação tem para ele
um papel positivo: os mitos, como os sonhos, têm um papel estabilizador na
constituição da personalidade (o Selbst ou “Si Mesmo”, diferente do “Eu”)
(CROATTO, 2001, p. 21). Palmer (2001, p. 125) esclarece que mesmo que
Jung partilhe o ponto de vista de Freud sobre o consciente — algo como o leigo
tem a respeito de si mesmo — “o inconsciente pessoal para ele é uma mistura
do inconsciente e do pré-consciente freudianos”. Nesse caso, “os conteúdos do
inconsciente pessoal são acessíveis à consciência (Ego) e contém apenas os
materiais que chegaram ao inconsciente como resultado das experiências
pessoais do indivíduo e do inconsciente coletivo” (PALMER, 2001, p. 149).
Para Jung, os arquétipos são instalações mentais que “criam” imagens de
certas coisas e resultam dos mitos e das produções artísticas. Sendo assim,
representam algo adquirido na experiência externa do indivíduo, que opera
universalmente como força elementar presente na essência humana. Segundo
o psicólogo suíço, os seres humanos nasceram com um “arquétipo” de Deus,
uma imagem que todos estão predispostos a ter. Por isso, Jung não se
preocupou com a existência ontológica de Deus, mas com sua existência como
realidade psíquica, ou seja, “fenomenológica”. Assim, Jung afirmava que não
acreditava em Deus, mas sabia que ele existia, por se tratar de um fenômeno
psíquico e só. Ele descartava qualquer conotação transcendental ao termo.
Jung defendia que a religiosidade era uma maneira de ajudar o processo de
individuação: a exploração de nós mesmos e a aceitação final de quem somos.
Ele fornece evidência para isso, referindo-se ao fato de que, embora existam
milhares de religiões existentes, todas têm ideias centrais comuns:
compartilham fortes valores infalíveis, regras etc. Isso sugere que a religião,
independentemente de qual seja, funciona como um processo de estabilização
do indivíduo, como apontou Croatto (2001). Mesmo considerando que muito da
estrutura psíquica freudiana tenha sido aproveitada na sua teoria, Jung
discorda de Freud em vários aspectos. Aquilo que seria comum a toda a
humanidade, as imagens primordiais e universais, é para Jung uma camada
mais profunda do inconsciente, o inconsciente coletivo. De modo que os fatores
psicológicos agem independentemente da experiência do indivíduo. As
Contribuições da Psicanálise:FTais fatores são adquiridos por meio de uma
memória refratária e ancestral vinda de antepassados, que o indivíduo,
portanto, carrega no seu DNA. Por mais estranhas que pareçam as acepções
acerca de Deus ou do divino, a questão é que a experiência religiosa
representa um campo aberto aos pesquisadores da religião de diversas áreas
das ciências na busca de pistas que levem a decifrar o numinoso de Rudolf
Otto, como destaca Libório: O problema de Deus e do nascer da “experiência
religiosa” — se proveniente de dentro, de fora do homem ou de ambos — é
uma questão aberta para todos os estudiosos da Religião, através das diversas
ciências (antropologia, sociologia, psicologia, filosofia, teologia, etc.) que
abordam a experiência que o homem faz do numinosum, em sua breve ou
longa caminhada, na face da terra, em busca do pleroma tão sonhado
consciente ou inconsciente por todos os povos e culturas das mais primitivas
às mais cultas (LIBÓRIO, 2005, p. 75). Como pesquisadores do fenômeno
religioso, devemos considerar os subsídios que buscam prover sentido à
experiência religiosa, distinguida nas correntes teóricas de Freud e Jung, assim
como nas de outros pensadores que trouxeram novas formulações e críticas.
Por mais que pareçam haver intransponíveis obstáculos para reunir ciência e
religião, a experiência individual ainda é a mais apropriada, como sugere
Muller: [...] há de se estar aberto para deixar-se tocar pelo sagrado. Quem o
estiver — e minhas reflexões pretendem ser um estímulo para isto — verá que
isso lhe há de trazer um grande enriquecimento para a sua vida. Com isto, ele
estará satisfazendo um anseio que é parte essencial da natureza de todo
homem. [...] Na experiência do sagrado, eu entro em contato com um mundo
que não conheço a não ser através da imaginação. Jamais o hei de ver —
pelos menos enquanto estiver vivo. Jamais o poderei tocar. E, no entanto, ele
existe (MULLER, 2004, p. 9, 25). Caro(a) aluno(a), tanto a explicação freudiana
quanto a junguiana para a religião são uma comprovação de que as
explicações funcionalistas motivam reducionismos na compreensão do
fenômeno religioso, dando-lhe apenas o status de organizador da vida social
(Freud) ou emancipador do indivíduo (Jung). A explicação que veremos a
seguir também segue nesse mesmo sentido, só que negando totalmente a
religião.
Maxista
A ALIENAÇÃO MARXISTA Prezado(a) aluno(a), para Karl Marx (1818-1883),
religião é a mais pura ilusão. Pior talvez, é uma ilusão com consequências
muito negativas. É um exemplo extremo de ideologia, de um sistema de crença
cujo propósito do dirigente é simplesmente prover razões — desculpas, na
verdade — para manter exatamente a forma de organização social dominadora
que o opressor aprecia. Marx também entendeu que a religião deve ser
investigada em razão das funções que desempenha na sociedade e não com
base em seus conteúdos e elementos internos. Ele postula um conjunto de
causas que estão diretamente relacionadas com a “miséria real” construída por
meio de processos econômicos, sociais e políticos, pela luta de classes e seu
impacto na sociedade e na história. Assim, para ele, não faz sentido uma
pesquisa que centre seus interesses no conteúdo das crenças, nas aquisições
ou nas perdas intelectuais ou emocionais produzidas por elas, na reunião de
mitologias, nos rituais e suas comparações etc., pois que o que realmente
importa é a compreensão dos processos econômicos produtores da miséria,
bem como sua reflexão e expressão na religião e a função que ela exerce no
quadro geral da vida coletiva. Os conteúdos desenvolvidos pela religião são, na
melhor das hipóteses, ideologias — ideias tendenciosas, representações
falsas, parciais e incompletas da realidade — construídas para reforçar a
dominação e a opressão, além de impedir a sua superação. A religião e suas
instituições sancionam as formas econômicas de exploração, apoiam os
governos que as promovem, defendem a divisão desigual de poderes e
riquezas e as apresentam como a ordem natural das coisas, senão a
expressão da vontade divina. A Alienação Marxista Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 89 Prometem, em
um mundo futuro, uma vida plena e feliz para desviar a atenção dos oprimidos
no seu presente, assim, evitam que eles se esforcem para mudar as estruturas
que produzem sua miséria (FILHO, 2004, p. 50). Diante de sua abordagem
“econômica” do fenômeno religioso, Marx afirma que a religião é irracional,
superstição, o ópio do povo. A manutenção de sua existência se dá por ela
estar ligada a processos sociais fundamentais, não simplesmente formas
individuais de expressão ou resposta para explicar o mundo e suas vicissitudes
(FILHO, 2004). Embora tenha escrito mais de meio século antes de Freud e
Durkheim, Marx aborda o fenômeno religioso de forma similar a eles, ou seja, a
partir de seus aspectos funcionais e não essenciais ou fenomenológicos. O que
lhe interessa não são os conteúdos das crenças religiosas, muito menos o que
as pessoas dizem ser verdade a respeito de Deus, céu, Bíblia ou qualquer
outro elemento sagrado. Seu interesse é pelo papel que essas crenças
desempenham na luta social, no sentido de inibir e acomodar os fiéis numa
formatação social que mantém as diferenças de classe e a exploração do
trabalho, fatos que fazem parte do seu conceito de alienação. Para Marx, o
ateísmo é algo bem claro, tão claro que não carece de nenhuma investigação
mais apurada de sua parte. Deus não passa de uma projeção do homem, e
assim a religião nada mais é que produção e alienação do homem; Berger diria
que ela (a religião) seria uma legitimadora das questões humanas, logo,
manipulável. Para saber mais, acesse: . Fonte: Lopes (2003, p. 2). A
EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 90 UNIDADE III
Como vimos, os funcionalistas insistem que a chave para a compreensão do
fenômeno religioso só pode ser encontrada quando se descobre a função que
a religião exerce na sociedade e somente quando se esclarecem os efeitos
sociais e psicológicos da fé na vida das pessoas. A REAÇÃO
FENOMENOLÓGICA Caro(a) aluno(a), a Fenomenologia foi se estruturando
como disciplina autônoma no estudo da religião e da experiência religiosa no
decorrer do século XX, em resposta e como reação aos pressupostos
funcionalistas. Ela se estendeu ao campo da religião, pretendendo-se uma
“ciência” autônoma, ou seja, como Fenomenologia da Religião. “A religião
serve, assim, para manter a realidade daquele mundo socialmente construído
no qual os homens existem nas suas vidas cotidianas.” (Peter L. Berger) A
Reação Fenomenológica Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei
9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 91 Essa definição como “ciência”
independente aconteceu pelo fato de se apresentar como um método de
abordagem ampla e não exigir restrições quanto ao objeto de estudo. Essa
terminologia foi cunhada pelo historiador Gerardus van der Leeuw (1890-1950),
cujo trabalho se tornou clássico nessa abordagem. Outros representantes são:
Brede Kristensen (1867-1953), Geo Widengren (1907-1996), C. J. Bleeker
(1898-1993), Max Scheler (1874-1928), Edith Stein (1891-1942), Jean Héring
(1890-1966), entre outros. FENOMENOLOGIA COMO UMA CIÊNCIA Há, no
estudo da religião, uma pluralidade de perspectivas e níveis de análise. Cada
uma dessas perspectivas tem o seu método de trabalho e pesquisa para o
mesmo objeto. Para ilustrarmos esses diferentes saberes, apresentamos a
classificação que Martin Valasco (1976) traz para delimitar as diferentes formas
de abordar o religioso (GOTO, 2004, p. 55). O Quadro 1 mostra como a
Fenomenologia da Religião se estabeleceu na ordem das ciências religiosas,
enquanto a Teologia se configura como uma reflexão de caráter normativo ao
lado da Filosofia. A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 92 UNIDADE III Quadro 1 — Esquema resumido dos diferentes
saberes sobre o religioso Fonte: Valasco (1976, p. 77). A Fenomenologia da
Religião teve como um dos vetores de sua constituição a polêmica contra as
teorias da religião primitiva e também a reação aos postulados reducionistas e
funcionalistas. Entre os autores mais contemporâneos, dois se destacam:
Rudolf Otto (1869-1939) e Mircea Eliade (1907-1986). Rudolf Otto, em seu livro
Das Heilige (O Sagrado), procurou expor a ideia do sagrado compreendido
como algo divino, diferente de qualquer realidade natural perceptível e que
escapa aos processos de racionalização. No subtítulo do livro, ele mostra o
caminho que percorreria: uma análise dos elementos irracionais e racionais
que compõem o sagrado. A Reação Fenomenológica Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 93 Mircea Eliade
tem como uma de suas principais divisas a revalorização das religiões
“primitivas” e tradicionais e a refutação da ideia de que eram portadoras de
superstições irracionais ou pertencentes a um estágio primitivo, mágico, na
aurora da humanidade. Contra o funcionalismo, opôs aquilo que se tornou uma
das principais características de seu pensamento, a irredutibilidade do sagrado
e a incisiva defesa da autonomia e independência do fenômeno religioso. O
CONCEITO DE SAGRADO Uma definição científica do termo “sagrado”
sempre esbarra na forma como é feito o seu uso tradicional. Isto porque ele
vem sempre associado a outro termo muito utilizado na História e na Filosofia
das religiões: o profano. Segundo Neto (2008, p. 1) ambos conceitos
convergem para uma oposição dicotômica e dão origem ao binômio
sagrado/profano, que tradicionalmente divide toda a experiência humana entre
a esfera religiosa/espiritual (sagrada) e o campo das atividades não
religiosas/cotidianas (profanas). Dessa forma, é preciso conhecer as aplicações
feitas dos dois termos para poder chegar a uma definição mais precisa sobre o
que é o sagrado. De acordo com Neto (2008, p. 1), a “origem latina do termo
sagrado é sacer, muito próxima do termo sanctus. O seu significado mais
preciso está no verbo sanctio, que significa tornar sagrado ou tornar
propriedade dos deuses”. Desse modo, o sagrado está relacionado diretamente
como pertencente aos deuses ou à dimensão espiritual, “sendo inviolável ou
inalcançável para os homens, especialmente aqueles que participam da esfera
profana, comum ou ordinária” (NETO, 2008, p. 1). Somente com um pacto
estabelecido entre seres humanos e deuses é possível o ato de tornar sagrado.
Nesse caso, as literaturas míticas demonstram um bem oferecido pelos
humanos aos deuses, na esperança de receber outro bem em contrapartida.
Quem faz a intermediação dessas oferendas é a classe sacerdotal ou outro
determinado grupo, como os oráculos. Os eventos religiosos são utilizados
para aproximar os profanos do sagrado. A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS
DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de
19 de fevereiro de 1998. 94 UNIDADE III Por sua vez, o termo “profano”
também tem origem latina, profanum, e desde a sua origem tem estado
associado ao termo “sagrado” ou à margem dele. Na verdade, não há profano
se não houver o sagrado e vice-versa. Isso indica que é “profano” todo
elemento ou indivíduo “que coexiste juntamente com o sagrado, mas sem
participar nessa sacralidade. É assim que toda a vida cotidiana, relativa à
produção e à economia, torna-se profana” (NETO, 2008, p. 2). De forma geral,
os elementos considerados sagrados provêm dos mitos e estão presentes nos
rituais das sociedades em que tais mitos estão inseridos. Apenas participam
desses rituais aqueles que estão aptos a adentrar nos espaços divinos. “O
restante das atividades humanas que não dizem respeito a esse contato com a
dimensão espiritual continua na dimensão do profano” (NETO, 2008, p. 3).
Contudo, há outras duas categorias subjacentes a essas, que são capazes de
inverter a ordem estabelecida e transformar elementos sagrados em profanos e
vice-versa: sacralização e dessacralização. Esses conceitos também serão
muito utilizados nos estudos sobre religião, e não há como abrir mão deles
para compreender o conceito de sagrado. Desse modo: Geralmente essa
transformação deve-se à purificação de algo que estava no campo do profano
e que possibilita a sua ligação com a esfera do sagrado, ou eventualmente que
um elemento sagrado, devido à decorrência de um ato impuro, seja convertido
para o campo do profano, ao menos até que seja novamente purificado das
impurezas que incorreram sobre si (DI NOLA, 1987, p. 123). Embora pareçam
indissociáveis do fenômeno religioso, as filosofias p
Fenomenológica
Caro(a) aluno(a), a Fenomenologia foi se estruturando como disciplina
autônoma no estudo da religião e da experiência religiosa no decorrer do
século XX, em resposta e como reação aos pressupostos funcionalistas. Ela se
estendeu ao campo da religião, pretendendo-se uma “ciência” autônoma, ou
seja, como Fenomenologia da Religião. “A religião serve, assim, para manter a
realidade daquele mundo socialmente construído no qual os homens existem
nas suas vidas cotidianas.” (Peter L. Berger) A Reação Fenomenológica
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 91 Essa definição como “ciência” independente aconteceu pelo fato
de se apresentar como um método de abordagem ampla e não exigir restrições
quanto ao objeto de estudo. Essa terminologia foi cunhada pelo historiador
Gerardus van der Leeuw (1890-1950), cujo trabalho se tornou clássico nessa
abordagem. Outros representantes são: Brede Kristensen (1867-1953), Geo
Widengren (1907-1996), C. J. Bleeker (1898-1993), Max Scheler (1874-1928),
Edith Stein (1891-1942), Jean Héring (1890-1966), entre outros.
FENOMENOLOGIA COMO UMA CIÊNCIA Há, no estudo da religião, uma
pluralidade de perspectivas e níveis de análise. Cada uma dessas perspectivas
tem o seu método de trabalho e pesquisa para o mesmo objeto. Para
ilustrarmos esses diferentes saberes, apresentamos a classificação que Martin
Valasco (1976) traz para delimitar as diferentes formas de abordar o religioso
(GOTO, 2004, p. 55). O Quadro 1 mostra como a Fenomenologia da Religião
se estabeleceu na ordem das ciências religiosas, enquanto a Teologia se
configura como uma reflexão de caráter normativo ao lado da Filosofia. A
EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 92 UNIDADE III
Quadro 1 — Esquema resumido dos diferentes saberes sobre o religioso
Fonte: Valasco (1976, p. 77). A Fenomenologia da Religião teve como um dos
vetores de sua constituição a polêmica contra as teorias da religião primitiva e
também a reação aos postulados reducionistas e funcionalistas. Entre os
autores mais contemporâneos, dois se destacam: Rudolf Otto (1869-1939) e
Mircea Eliade (1907-1986). Rudolf Otto, em seu livro Das Heilige (O Sagrado),
procurou expor a ideia do sagrado compreendido como algo divino, diferente
de qualquer realidade natural perceptível e que escapa aos processos de
racionalização. No subtítulo do livro, ele mostra o caminho que percorreria:
uma análise dos elementos irracionais e racionais que compõem o sagrado. A
Reação Fenomenológica Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei
9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 93 Mircea Eliade tem como uma de suas
principais divisas a revalorização das religiões “primitivas” e tradicionais e a
refutação da ideia de que eram portadoras de superstições irracionais ou
pertencentes a um estágio primitivo, mágico, na aurora da humanidade. Contra
o funcionalismo, opôs aquilo que se tornou uma das principais características
de seu pensamento, a irredutibilidade do sagrado e a incisiva defesa da
autonomia e independência do fenômeno religioso. O CONCEITO DE
SAGRADO Uma definição científica do termo “sagrado” sempre esbarra na
forma como é feito o seu uso tradicional. Isto porque ele vem sempre
associado a outro termo muito utilizado na História e na Filosofia das religiões:
o profano. Segundo Neto (2008, p. 1) ambos conceitos convergem para uma
oposição dicotômica e dão origem ao binômio sagrado/profano, que
tradicionalmente divide toda a experiência humana entre a esfera
religiosa/espiritual (sagrada) e o campo das atividades não religiosas/cotidianas
(profanas). Dessa forma, é preciso conhecer as aplicações feitas dos dois
termos para poder chegar a uma definição mais precisa sobre o que é o
sagrado. De acordo com Neto (2008, p. 1), a “origem latina do termo sagrado é
sacer, muito próxima do termo sanctus. O seu significado mais preciso está no
verbo sanctio, que significa tornar sagrado ou tornar propriedade dos deuses”.
Desse modo, o sagrado está relacionado diretamente como pertencente aos
deuses ou à dimensão espiritual, “sendo inviolável ou inalcançável para os
homens, especialmente aqueles que participam da esfera profana, comum ou
ordinária” (NETO, 2008, p. 1). Somente com um pacto estabelecido entre seres
humanos e deuses é possível o ato de tornar sagrado. Nesse caso, as
literaturas míticas demonstram um bem oferecido pelos humanos aos deuses,
na esperança de receber outro bem em contrapartida. Quem faz a
intermediação dessas oferendas é a classe sacerdotal ou outro determinado
grupo, como os oráculos. Os eventos religiosos são utilizados para aproximar
os profanos do sagrado. A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 94 UNIDADE III Por sua vez, o termo “profano” também tem origem
latina, profanum, e desde a sua origem tem estado associado ao termo
“sagrado” ou à margem dele. Na verdade, não há profano se não houver o
sagrado e vice-versa. Isso indica que é “profano” todo elemento ou indivíduo
“que coexiste juntamente com o sagrado, mas sem participar nessa
sacralidade. É assim que toda a vida cotidiana, relativa à produção e à
economia, torna-se profana” (NETO, 2008, p. 2). De forma geral, os elementos
considerados sagrados provêm dos mitos e estão presentes nos rituais das
sociedades em que tais mitos estão inseridos. Apenas participam desses rituais
aqueles que estão aptos a adentrar nos espaços divinos. “O restante das
atividades humanas que não dizem respeito a esse contato com a dimensão
espiritual continua na dimensão do profano” (NETO, 2008, p. 3). Contudo, há
outras duas categorias subjacentes a essas, que são capazes de inverter a
ordem estabelecida e transformar elementos sagrados em profanos e vice-
versa: sacralização e dessacralização. Esses conceitos também serão muito
utilizados nos estudos sobre religião, e não há como abrir mão deles para
compreender o conceito de sagrado. Desse modo: Geralmente essa
transformação deve-se à purificação de algo que estava no campo do profano
e que possibilita a sua ligação com a esfera do sagrado, ou eventualmente que
um elemento sagrado, devido à decorrência de um ato impuro, seja convertido
para o campo do profano, ao menos até que seja novamente purificado das
impurezas que incorreram sobre si (DI NOLA, 1987, p. 123). Embora pareçam
indissociáveis do fenômeno religioso, as filosofias platônicas e neoplatônicas
trabalham esses termos em outra esfera: Em concepções platônicas e
neoplatônicas esse binômio sagrado/profano pode ser entendido através da
dicotomia entre o mundo inteligível e o mundo sensível sugeridos por Platão.
Segundo esse raciocínio, os elementos que dizem respeito ao superior plano
das ideias seriam traduzidos para a esfera do sagrado, enquanto todos os
elementos e eventos dentro do mundo material participariam do campo da vida
profana (NETO, 2008, p. 2). É com base nessas filosofias que a relevância do
sagrado em termos históricos só se torna possível por meio de uma dialética
com o profano. Conforme as concepções da Escola Francesa (História e
Sociologia), há uma bipolaridade entre os dois conceitos que, ao mesmo
tempo, se opõem e se complementam: A Reação Fenomenológica Reprodução
proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 95
[...] as relações humanas em sociedade são diferentes das relações religiosas
que acontecem entre homens e divindades, porém há sempre um resquício de
profano em qualquer ritual sagrado e às vezes algo de sagrado nas relações
profanas (NETO, 2008, p. 4). Os termos são novamente indissociáveis,
entretanto desfrutam de uma mesma importância diante das ciências humanas
interessadas em estudar o fenômeno sagrado. Contudo, aqui reside todo o
problema, ou a solução, para o entendimento do conceito de sagrado: [...]
mesmo na dialética francesa, uma análise do sagrado, em perspectivas
históricas, é possível apenas a partir de uma subversão do que até aqui temos
definido como a explicação dos termos sagrado e profano. O único respaldo
historiográfico para o conceito do sagrado é justamente como ele se configura
a partir da experiência humana em sua vida ordinária no campo do profano
(NETO, 2008, p. 4). Pensadas dessa forma, as categorias que se propõem
como sagradas dentro de sistemas religiosos e sociais são um reflexo das
expectativas, das ideias e dos pensamentos moldados no interior do cotidiano
de uma determinada sociedade ou de um dado grupo social. Foi a Escola
Italiana de História e Estudos das Religiões que conseguiu trazer as análises
da religião e de suas concepções de sagrado para o campo da Ciência
Histórica. Nas interpretações dessa escola, tanto o sistema religioso em si
quanto suas noções de sacralidade são entendidos como fenômenos formados
a partir de um contexto histórico específico. Esclarece a proposta de
interpretação dada por Di Nola: A civilização é definida por duas instâncias, que
são o cotidiano laico do trabalho, da razão e do conhecimento e a experiência
religiosa e metafísica dos mitos e dos ritos. Estabelece-se aqui uma sincronia
entre uma realidade funcional e o fenômeno espiritual, que se complementam
dialeticamente na dinâmica da vida social (DI NOLA, 1987, p. 152). Assim,
concluímos que a “simbiose” entre sagrado e profano configura, na explicação
religiosa, sentidos que são conferidos por signos elaborados dentro dos
quadros simbólicos da sociedade estudada, significados no contexto de um
pensamento e uma cultura específicos. Tanto Mircea Eliade quanto Rudolf Otto
vão elaborar seus pensamentos ora concordando ora criticando esses
pressupostos. Será por intermédio desses dois autores que veremos como se
deu a reação fenomenológica nas Ciências da Religião. A EPISTEMOLOGIA
DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal
e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 96 UNIDADE III MIRCEA ELIADE
Mircea Eliade nasceu e foi educado na Romênia, estudou e ensinou na Europa
ocidental e finalizou sua carreira nos Estados Unidos como professor na
Universidade de Chicago. Falava e escrevia em várias línguas europeias.
Apesar de seu interesse intelectual ser vasto e ter um talento fabuloso para
escrever, decidiu dedicar seus estudos ao campo religioso. Em sua carreira
profícua, como escritor e professor, teve um papel importantíssimo
desenvolvendo ideias em oposição às teorias reducionistas que, em seu
parecer, não compreendem o papel da religião na vida humana. Como
defensor da autonomia do campo religioso, Mircea Eliade sugeriu que a religião
fosse avaliada com critérios religiosos, pois o sagrado não pode ser submetido
ao reducionismo das Ciências Sociais, da História ou da Psicologia, afinal,
religião faz parte de uma categoria sui generis. Para ele: Mircea Eliade (1907-
1986) nasceu em Bucareste, na Romênia, em uma família de cristãos
ortodoxos. Formou-se em Filosofia na Universidade de Bucareste, onde
também fez o mestrado. Poliglota (falava inclusive o hebraico), foi para a Índia,
onde estudou sânscrito e filosofia hindu na Universidade de Calcutá. De volta à
Romênia, em 1932, doutorou-se em Filosofia com uma tese em francês sobre a
Yoga, trabalho que lhe deu reconhecimento internacional, tendo trabalhado
como adido cultural nas embaixadas romenas em Londres e em Portugal.
Serviu na legião romena durante a Segunda Guerra Mundial e, após o fim dos
conflitos, decidiu se estabelecer em Paris por não compactuar com o governo
comunista romeno. Na França, ensinou na École Pratique des Hautes Études
até 1956, quando foi convidado a lecionar na Universidade de Chicago, onde
assumiu a chefia do Departamento de Religião, permanecendo neste cargo até
sua morte. Publicou vasta obra como filósofo, poeta, romancista e, sobretudo,
historiador das religiões. Fonte: os autores. A Reação Fenomenológica
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 97 Um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a
condição de ser apreendido dentro da sua própria modalidade, isto é, de ser
estudado à escala religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela fisiologia,
pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela linguística e
pela arte, etc... é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe
de único e de irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado. É verdade não
existirem fenômenos religiosos “puros”, assim como não há fenômeno única e
exclusivamente religioso. Sendo a religião uma coisa humana, é também, de
fato, uma coisa social, linguística e econômica — pois não podemos conceber
o homem para além da linguagem e da vida coletiva. Mas seria vão querer
explicar a religião por uma dessas funções fundamentais que definem o
homem, em última análise (ELIADE, 2010, p. 2). Já no prefácio do livro Tratado
de História das Religiões, o romeno de Bucareste deixa claro como ele trataria
o fenômeno religioso de forma diferente da abordagem funcionalista. Isto
porque a complexidade do fenômeno religioso se destinava a sustentar que
qualquer religião, mesmo a dos povos mais primitivos e com nenhuma
sofisticação do ponto de vista material ou tecnológico, possuía um complicado
sistema simbólico e um conjunto de mitos e ritos que traduzem uma
cosmovisão profunda do mundo, da vida humana e comunitária. Eliade
sustentou que o conhecimento antropológico sobre as religiões primitivas não
encontrou qualquer possibilidade de estabelecer um marco zero, uma origem
comum ou única, e que as religiões das sociedades primitivas sempre se
revelaram num contexto histórico, negando o esquema evolucionista do
simples ao complexo, da magia ou animismo às ideias de Deus. Eliade nunca
negou que os estudos de religião pudessem se beneficiar da identificação de
processos históricos ou sociais com as quais se relacionam, mas, como já
adiantado anteriormente, sempre defendeu que o fenômeno religioso possui
uma dimensão autônoma irredutível, que é aquilo que a diferencia e a
caracteriza como religião e que precisa ser captado e compreendido. O
argumento “eliadiano”, construído por analogia com a Arte ou a Filosofia,
sustenta que é necessário, para entender Platão, por exemplo, estudar a
sociedade grega e os embates políticos e culturais de sua época. No entanto,
sua filosofia tem autonomia em relação a esses dados primários e só pode ser
de fato compreendida a partir de seus textos, da pesquisa interna dos diálogos
e da sua cadeia de razões e argumentos — são esses os elementos que
constituem e tornam sua obra filosófica propriamente dita (FILHO, 2004, p. 58).
A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 98 UNIDADE III
Não pode ser diferente com a religião. A compreensão de tudo que envolve o
ambiente cultural, econômico, social e histórico que envolve o fenômeno
religioso estudado é imprescindível, porém as ciências que estudam esse
cenário são apenas auxiliares para seu entendimento, já que têm a sua
compreensão fundamentada em sua linguagem interna, seus mitos, seus ritos
e sua simbologia, que são autônomos e irredutíveis. Outra característica
fundamental do pensamento de Mircea Eliade é a universalidade da religião,
que pode ser compreendida a partir de duas constatações: 1) jamais foi
encontrada uma sociedade sem religião e 2) em qualquer religião encontram-
se formas constantes universais e símbolos que revelam conteúdos também
universais. Tais constatações exigem um método específico, comparativo,
histórico e universal que abarque a complexidade de seu objeto. Essas
peculiaridades do fenômeno religioso (complexidade, irredutibilidade e
universalidade) mostram ou pelo menos permitem a suspeita de que a religião
é um dos aspectos mais fundamentais da realidade humana e social. Assim, a
Fenomenologia concebe uma visão de homem que sustenta a existência do
homo religious como o mais originário e fundamental. O homem religioso quer
viver no espaço sagrado o maior tempo possível, um espaço-tempo
experiencial, expressão radical de tudo aquilo que é primeiro, absoluto,
importante e tem valor. Um centro que é real por excelência e o fundamento
último do cosmos da vida. O homem primitivo, que é difamado pelos cientistas
da religião, tem aqui primazia, pois o que o caracteriza é sua proximidade com
o sagrado. O homem das sociedades arcaicas tem a tendência de viver o mais
possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é
compreensível, pois para os “primitivos” como para o homem de todas as
sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder em última análise, à
realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada
quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição
sagrado/profano traduz-se muitas vezes como oposição entre o real e o irreal
ou pseudo-real. [...] É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso
deseja profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder
(ELIADE, 1992, p. 18-19). O sagrado é o oposto do que é profano. Existem
dois modos de ser no mundo: o sagrado e o profano. O profano é o que
acontece todos os dias, o espaço onde as coisas ordinárias são realizadas. O
sagrado é a esfera do sobrenatural, das coisas A Reação Fenomenológica
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 99 extraordinárias, memoráveis e monumentosas. Enquanto o
profano se desvanece pela fragilidade, o sagrado é eterno, completo de
substância e realidade. A sacralidade é, em primeiro lugar, real. Quanto mais
religioso é o homem, mais real ele é, e mais ele se desvia da irrealidade de um
devir privado de significação. Daí a tendência do homem para “consagrar” toda
a sua vida. As hierofanias sacralizam o cosmos, os ritos sacralizam a vida. Esta
sacralização pode ser também obtida de maneira indireta, isto é, pela
transformação da vida num ritual (ELIADE, 2010, p. 374). O profano é a arena
dos afazeres humanos, os quais são instáveis e, normalmente, caóticos. O
sagrado é a esfera da ordem e da perfeição, a casa dos ancestrais, dos heróis
e dos deuses. De qualquer lugar que olhemos para as sociedades arcaicas, a
religião tem sua fundamentação nessa separação (PALS, 2006, p. 199). Eliade
foi educado na França, e seu conceito de religião fundamentado nas esferas do
sagrado e do profano tem suas bases no pensamento de Durkheim. A diferença
entre os dois é que quando Durkheim menciona o sagrado e o profano está
pensando na sociedade e nas suas necessidades. O sagrado para ele se
refere à sociedade e ao clã, enquanto o profano se refere ao indivíduo. Para
Durkheim, símbolos e rituais parecem aludir ao sobrenatural, mas tudo não
passa de aparência superficial. O propósito dos símbolos é simplesmente fazer
as pessoas tomarem consciência de seu papel social, já que o deus totêmico é
simplesmente um símbolo do próprio clã. Por outro lado, Eliade, quando se
refere ao sagrado não é o clã cultuado que ele tem em mente. Para ele, o
cerne da religião é evidentemente o sobrenatural. Embora ele se valha da
linguagem durkheimiana e concorde que são termos que envolvem mais do
que deuses pessoais, a visão de religião de Eliade é mais próxima da de Tylor
e Frazer, que concebem a crença em seres sobrenaturais. Pode-se medir o
precipício que separa as duas modalidades de experiência — sagrada e
profana — lendo-se as descrições concernentes ao espaço sagrado e à
construção ritual da morada humana, ou as diversas experiências religiosas do
Tempo, ou as relações do homem religioso com a Natureza e o mundo dos
utensílios, ou à consagração da própria vida humana, à sacralidade de que
podem ser carregadas suas funções vitais (alimentação, sexualidade, trabalho
etc.). Bastará lembrar no que se tornaram, para o homem moderno e a
religioso, a cidade, a casa, a natureza, os utensílios ou o trabalho, para
perceber claramente tudo o que o distingue de um homem pertencente às
sociedades arcaicas ou A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 100 UNIDADE III mesmo de um camponês da Europa cristã. Para a
consciência moderna, um ato fisiológico — a alimentação, a sexualidade etc. —
não é, em suma, mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que seja o
número de tabus que ainda o envolva (que impõe, por exemplo, certas regras
para o “comer convenientemente” ou que interdiz um comportamento sexual
que a moral social reprova). Mas para o “primitivo” um tal ato torna-se um
“sacramento”, quer dizer, uma comunhão com o sagrado. (ELIADE, 1992). Mais
ainda: [...] O sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no
Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua
história. Esses modos de ser no Mundo não interessam unicamente à história
das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objeto de estudos
históricos, sociológicos, etnólogos. Em última instância, os modos de ser
sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou
no Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao filósofo, mas também
a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da
existência humana (ELIADE, 1992, p. 20). Apesar da terminologia de Durkheim,
é mais plausível pensarmos em outro cientista como mais incisivo nas
elaborações teóricas de Eliade: o teólogo alemão e historiador das religiões
Rudolf Otto. RUDOLF OTTO Rudolf Otto nasceu na Alemanha, em Peine,
próximo a Hanover. Estudou nas Universidades de Erlangen e Göttingen onde
lecionou, além de Breslau e Marburg, nesta última exerceu o cargo de reitor.
Luterano convicto, austero e profundamente dedicado aos estudos, foi
apelidado de “o santo” por seus alunos em Marburg. Nessa universidade, Otto
montou um acervo denominado “Coleção Religiosa”, que reunia materiais
sobre símbolos, rituais e aparatos religiosos diversos, formando um centro de
estudos da religião. A Reação Fenomenológica Reprodução proibida. Art. 184
do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 101 Sua principal
obra, O Sagrado (1916), apresenta uma síntese de suas inquietações
filosóficas, fenomenológicas e teóricas que já haviam sido evidenciadas em
outros textos. Em seu trabalho, o sagrado aparece como categoria complexa,
que se constitui de dois elementos importantes: o elemento não racional, ao
qual ele define como numinoso, e o elemento racional, definido como
predicador. Ao lançar sua crítica em relação ao racional presente na ideia de
sagrado, Otto procura esclarecer que enunciados, conceitos e definições, por
mais claros que transpareçam, em nenhum momento explicam por completo o
sentimento religioso. Por esse argumento, ele procura reconsiderar, para a
Filosofia e para a Teologia do século XX, o elemento não racional da religião, o
numinoso colocado de lado pela excessiva atenção dada à racionalização na
cultura ocidental. Dessa forma, o resgate do que se pode chamar de essência
da religião coincide com a necessidade de compreendê-la como uma
experiência humana originária. O núcleo central da religião deve, então, ser
redescoberto, já que a ênfase intelectualista acabou acobertando seu caráter
não racional. Recuperar a importância e a consideração pelo caráter não
racional do fenômeno religioso não implica colocar a religião alheia ao plano
racional, mas resgatar, na ideia de Deus, o que havia sido colocado de lado
pelo racionalismo. Sua busca, então, é desenvolver as categorias dos
elementos racionais e não racionais que formam o sagrado, além de observar e
avaliar as relações intrínsecas que existem entre eles para evidenciar a
complexidade do sagrado. Tal complexidade é proveniente de sua composição,
que acontece na interação entre o que é numinoso e o que é predicador. Nessa
perspectiva, o racional é tomado em seu sentido mais amplo e profundo, porém
obscuro, escapando à explicação racional e não se valendo a um simples e
equivocado sentido, como se simplesmente ainda não fosse abarcado pela
razão afinal: Por irracional não entendemos o que é informe e estúpido, o que
ainda não está sob controle da razão, o que na nossa vida instintiva ou no
mecanismo do mundo, é rebelde à racionalização. Partimos do sentido habitual
da palavra, daquele que tem, por exemplo, quando dizemos a propósito de um
acontecimento singular que, pela sua profundidade, se furta a uma explicação
racional [...] chamamos racional na ideia do divino ao que pode ser claramente
captado pelo nosso entendimento e passar para o domínio dos conceitos que
nos são familiares e susceptíveis de definição (OTTO, 1985, p. 86). A
EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 102 UNIDADE III
Segundo Cruz (2009), para Rudolf Otto, Deus e o sagrado não podem caber na
razão pura, e ainda que tais ideias estejam presentes nas religiões, nada mais
são do que uma ideia de sagrado carregada de noções racionais, sendo
apenas predicados que esquematizam ou racionalizam o elemento
originalmente não racional identificado como numinoso. Os conceitos causam
um encobrimento do númen, objeto próprio da ideia de sagrado, impossível de
ser comunicado em sua totalidade por conceitos racionais. Os conceitos podem
somente indicar analogamente, pois falam, ainda, do campo da razão e não
pertencem ao domínio da religião. É o caso, por exemplo, do sentimento
sublime, termo emprestado do domínio da estética, que apenas indica um
pálido reflexo do que realmente seria a experiência religiosa. Uma
compreensão verdadeira só pode acontecer pela experiência do numinoso, um
estado puramente afetivo da alma, realidade que se encontra numa profunda
obscuridade e escapa a qualquer tentativa de explicação ou mesmo de
conceituação. Contudo, existe no ser humano uma necessidade natural de se
dirigir racionalmente ao mundo à sua volta. Do ponto de vista fenomenológico,
acontece um acesso racional à essência não racional própria do domínio do
religioso. Nesse sentido, “O elemento numinoso não racional esquematizado
por meio de noções racionais, dá-nos a categoria complexa do sagrado no
sentido pleno da palavra, na totalidade do seu conteúdo” (OTTO, 1985, p. 69).
Dessa forma, a categoria do numinoso se caracteriza como algo sui generis,
não passível de definição explícita, mas sim de observação e descrição como
todo fenômeno originário. A presença do númen desencadeia um estado de
alma, uma reação consciente que pode ser objeto de análises psicológicas ou
fenomenológicas, as quais procuram descrever o sentimento numinoso.
Quando a alma se abre às impressões do Universo, a elas se abandona e
nelas mergulha, torna-se susceptível, segundo Schleiermacher, de
experimentar intuições e os sentimentos de algo que é, por assim dizer, um
excesso característico e livre que se acrescenta à realidade empírica, um
excesso não apreendido pelo conhecimento teórico do mundo e da conexão
cósmica, tal como está constituído pela ciência (OTTO, 1985, p. 188). A
Reação Fenomenológica Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei
9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 103 Os elementos que compõem a parte
irracional do sagrado são descritos a partir da reação sentimental que
vivenciamos diante do objeto numinoso, uma vez que este pertence ao plano
da experiência religiosa vivida. A presença e a experiência do númen provoca
uma reação emotiva denominada “estado de criatura” ou “sentimento de
criatura”, que desencadeia uma espécie de aniquilamento do ser ou percepção
pura da existência. De acordo com Bay (2004), esse sentimento de ínfima
criatura frente ao mistério do divino é experimentado como se fosse a projeção
de uma sombra, oriunda do objeto numinoso na consciência. Nesse momento,
fica-se presente, diante do mysterium tremendum et fascinans, o conjunto de
sentimentos que correspondem à apreensão do numinoso. O elemento
mysterium é a forma; seu conteúdo qualitativo repulsivo é tremendum, pois
provoca o terror; e o fascinans o que atrai e o que provoca desejo, encanto e
fascinação. O texto de Isaías, capítulo seis, é, para Otto, um exemplo pleno de
toda a sua teoria da experiência religiosa: Enquanto os sentimentos do não
racional e numinoso constituem um fator vital em todas as formas de religião,
eles estão em eminente evidência na religião semita e mais do que tudo, na
religião da Bíblia [...] A instância capital da interpenetração mútua e íntima do
numinoso com o racional e moral é Isaías. A nota atingida na visão de seu
chamado é a tônica de sua profecia inteira. E nada é, nesse sentido, mais
significativo em escala do que o fato de que é em Isaías que a expressão o
Santo de Israel se estabelece primeiro como a excelência de expressão, sem
par, para a divindade, prevalecendo sobre todos os outros por sua potência
misteriosa (OTTO, 1985, p. 74-8). A evidência do numinoso é clara nas reações
de Isaías e na atmosfera de sua experiência. O mistério está na forma em que
a experiência se apresenta, na visão, nos sons, no cenário (um lugar
extraterreno) e nos seus movimentos. O temor de Isaías e sua reflexão “ai de
mim...” deixa claro o tremendum, a aversão que ele sente por aquela
experiência e o temor por estar diante de um ser tão grande e poderoso. Ao
mesmo tempo, porém, sua atenção a todos os detalhes, a observação e a
descrição que ele faz, a disposição que apresenta diante de seu chamamento,
“eis-me aqui...” demonstram a fascinação por aquele momento, pelo divino,
pelo próprio mistério que lhe é parcialmente desvendado e pela participação
que terá dali pra frente, a experiência acontece em todo o tempo de sua
profecia, em toda a sua vida. A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA
RELIGIÃO Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de
fevereiro de 1998. 104 UNIDADE III O divino apresenta-se em nosso
sentimento como um mistério inefável, suprarracional. Este ser numinoso
qualitativamente diferente exerce sobre nós uma estranha harmonia de
contrastes: uma repulsa demoníaca e, ao mesmo tempo, uma tração que
fascina e cativa (BIRCK, 2004, p. 23). O teólogo de Göttingen fez, a partir da
vivência religiosa, a descrição de alguns elementos numinosos que se
manifestam por sentimentos religiosos. Essa descrição se apresenta de forma
fenomenológica, porque sempre se estabelece a relação do homem com o
sentido da religião na experiência originária, sem recorrer a deduções ou
induções racionais. A descrição da experiência numinosa que Rudolf Otto
desenvolveu em sua obra se dá de forma fenomenológica. Em O Sagrado, não
temos uma descrição objetivando dados empíricos, somente uma descrição em
termos fenomenológicos, uma descrição densa, exaustiva que, diante daquilo
que permite compreender, conduza à essência do fenômeno em questão. A
proposta de Otto é encontrar e fundamentar o sagrado na esfera não racional,
sem a necessidade de conceituá- -lo numa categoria do entendimento, isso só
é possível fenomenologicamente. A descrição fenomenológica é o melhor
método para explicitar de forma não conceitual um fenômeno, porque se limita
em descrever o visto, o sentido ou o vivido do sujeito, sem entrar no mérito do
julgamento ou das avaliações. Entretanto, descrever não é suficiente para
chegarmos à essência do fenômeno, apesar de ser o melhor caminho. A
descrição não se esgota como método de investigação, mas precisamos
recorrer à interpretação daquilo que é vivenciado. Dessa maneira, temos a
descrição expressa por uma linguagem, esta sendo interpretada segundo os
seu sentido. Assim, completa-se o esquema da descrição como: coisa
percebida/percepção/explicitação do percebido; e o da hermenêutica: símbolo
(ou sinal)/significado/significante/contexto cultural. Assim, a fenomenologia
torna-se hermenêutica para ampliar a descrição nos seus aspectos mais
originários e significativos (GOTO, 2004, p. 89). O ser humano, quando se
encontra com o sagrado, vivencia um estado de ser, um sentimento de criatura
que se assombra em sua insignificância e desaparece diante do que está
acima de toda a criatura. O mistério é o objeto do numinoso e, no sentido geral,
apresenta-se como algo secreto e estranho que causa espanto. Segundo Otto
(1985, p. 38), “o espanto, no sentido próprio da palavra é um estado de alma
que, em primeiro lugar, pertence exclusivamente ao domínio do numinoso”.
Otto, então, define: A Reação Fenomenológica Reprodução proibida. Art. 184
do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 105 Mas tal realidade,
o misterioso em sentido religioso, o verdadeiro mirum, é, para empregar o
termo que é a sua expressão mais exata, “totalmente outro”, aquilo que nos é
estranho e nos desconcerta, o que está absolutamente fora do domínio das
coisas habituais, compreendidas, bem colocadas e, por conseguinte
“familiares”; é o que se opõe a esta ordem de coisas e, por isso, nos enche de
espanto e paralisa (OTTO, 1985, p. 39). Portanto, o mistério é tudo aquilo que
aparece de estranho, alheio à ordem do profano, que remete a uma dimensão
existencial diferente das vivências normais, terrenas. É por isso que a
experiência numinosa se difere de qualquer outra, por proporcionar o
sentimento de criatura diante da estranheza que paralisa o ser (OTTO, 1985).
O mysterium tremendum é o temor místico ou religioso, que nos faz temer
diante do sobrenatural. Não pode ser confundido com um medo psicológico,
pois esse está sempre relacionado àquilo que se conhece, que se tem certo
controle ao menos cognitivo. Assim, o mysterium tremendum é o medo do
desconhecido, do misterioso, do sobrenatural e do inacessível, que só pode ser
vivenciado, não cabe na razão. Rudolf Otto enfatiza que a religião nasce desse
medo, do terror mesmo. Ele argumenta que: Deste terror, na sua forma bruta,
que apareceu originariamente como sentimento de alguma coisa de “sinistro” e
que surgiu como uma estranha novidade na alma da humanidade primitiva é
que procede todo o desenvolvimento histórico da religião (OTTO, 1985, p. 24).
A presença do mistério é, também, vivenciada pelo elemento fascinans, que
tem a qualidade de atrair, cativar e fascinar, fazendo com que o teor do
tremendum entre em harmonia contrastante. “Por outro lado e ao mesmo
tempo, é algo que exerce atração particular, que cativa, fascina e forma o
elemento repulsivo do tremendum uma harmonia de contraste” (OTTO, 1985,
p. 49). Quanto mais terrível o mistério, mais atraente ele se torna, exatamente
por sua qualidade de maravilhoso: Estes não podem esgotar seu conteúdo,
apenas relacionam-se analogicamente. Assim, a beatitude religiosa é muito
mais que ser consolado, ter confiança felicidade presente no amor. A felicidade
religiosa não se esgota em elementos naturais elevados à perfeição do
sentimento. Esta experiência inclui elementos profundamente não racionais
(OTTO, 1985, p. 49). Assim, temos dois elementos da experiência numinosa
descrita na vivência, ou seja, como mysterium tremendum et fascinans: A
EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 106 UNIDADE III
A categoria do sagrado de Otto, na verdade, não é uma categoria de
compreensão, mas uma intuição categoral. A categoria do sagrado não tem
uma função lógica de compreensão de algo já percepcionado. A categoria do
sagrado é a intuição da essência divina. O numinoso só é captado, identificado,
significado. [...] O numinoso só é captado enquanto experiência viva. [...] O
sagrado, tal como Otto o descreve não é um conceito formal, mas descrição
fenomenológica do fato primeiro da religião. É a descrição do numem tal como
se manifesta na consciência religiosa (BRUNO apud GOTO, 2004, p. 47).
Quadro 2— A complexidade do conceito do sagrado Fonte: Bay (2004, p. 15).
“A fenomenologia não é o nome de uma nova ciência, nem uma palavra de
substituição para a filosofia, mas uma postura espiritual.” (Alfredo Di Stefano).
As Críticas à Fenomenologia Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e
Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 107 Caro(a) aluno(a), a reação
fenomenológica nos estudos sobre a religião produziu uma vasta coleção de
estudos, que levou a disciplina das Ciências da Religião a outros patamares.
Contudo, a própria Fenomenologia entra em crise no mundo do pós-guerra, e
uma série de críticas são feitas a essa proposta com o surgimento dos novos
referenciais metodológicos e da interdisciplinaridade das Ciências da Religião.
AS CRÍTICAS À FENOMENOLOGIA Prezado(a) aluno(a), a crítica ao ramo
clássico da Fenomenologia da Religião tem sido incisiva nas últimas décadas.
No âmbito das Ciências da Religião, a mais polêmica é a crítica ao sagrado.
Nos parágrafos seguintes, vamos apresentar como exemplo duas das
principais razões do ceticismo diante da abordagem fenomenológica do
conceito de sagrado. Em 2004, o professor Frank Usarski, em artigo para a
Revista de Estudos da Religião da PUC de São Paulo, depois condensado em
livro (USARSKI, 2006), apresentou uma síntese das críticas ao ramo clássico
da Fenomenologia da Religião e seus conceitos-chaves. Usarski (2006) faz
uma apresentação de oito temas que se opõem ao conceito de sagrado e
outros aspectos particulares da Fenomenologia da Religião, são eles: A
EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 108 UNIDADE III
1. A crítica à negligência do contexto sócio-histórico em que surgiu o termo, e a
falta de reflexão sobre suas implicações confessionais; 2. A crítica à suposta
universalidade do significado do termo; 3. A crítica às implicações ontológicas e
“criptoteológicas” da noção do sagrado; 4. As reflexões críticas sobre o objeto
privilegiado pela Fenomenologia; 5. A crítica à negligência das referências
múltiplas à transcendência no mundo religioso empírico; 6. A crítica à suposta
singularidade da “experiência do sagrado”; 7. A crítica às implicações
normativas na abordagem da Fenomenologia da Religião; 8. A crítica à
metodologia da Fenomenologia da Religião. A título de exemplo de como está o
debate e qual o nível das críticas impostas à Fenomenologia da Religião,
apresentamos resumidamente as duas primeiras críticas que o autor sintetizou
em seu trabalho. O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO TERMO “SAGRADO”
A primeira crítica que se faz contra o conceito do sagrado vem da negligência
do contexto sócio-histórico em que o termo ganhou seu valor e da falta de
atenção às implicações que limitam sua validade como conceito no campo de
ação das Ciências da Religião. O texto de Rudolf Otto, Das Heilige (O
Sagrado), foi publicado em 1917, quando a Europa vivia a Primeira Guerra
Mundial. Aquele era um momento histórico marcado pelo desespero diante da
disparidade acentuada entre os anseios humanos e a realidade de suas ações.
Por outro lado, a intelectualidade não foi capaz de apresentar horizontes que
pudessem direcionar para a superação dos pesares produzidos pelos seguidos
anos de conflito entre as nações europeias. As Críticas à Fenomenologia
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 109 O sonho de um mundo harmonioso, ambicionado pelos
pensadores iluministas, experimentava a frustração de uma Europa destruída
pela guerra, consequência da incapacidade de seus líderes superarem suas
diferenças e suas ambições econômicas e políticas pela lógica da razão e
pelas promessas da ciência. Esse foi um cenário apropriado para a grande
aceitação da obra alentadora de Otto. Ela foi recebida como um consolo
providencial pelo leitor comum e como um manancial de esperança para os
teólogos mais conservadores atordoados pelo Liberalismo e pela Teologia
Dialética. Esses dois grupos de leitores de O Sagrado entenderam-se supridos,
como se o texto fosse o peso colocado do outro lado da balança, dando um
equilíbrio para a ênfase da racionalidade, que tomava conta do pensamento
teológico, e para o desencantamento do mundo, já que resgata a existência
universal do sagrado ontologicamente, independentemente dos “fatos reais”,
contudo imanente no interior do ser humano. Considerando esse ambiente, os
precursores do termo e seu envolvimento com a fé cristã protestante, a crítica
de Frank Usarski se dá no sentido de que o termo é cunhado e usado de forma
não refletida. Isto diante da afinidade do conceito de sagrado com a
religiosidade das famílias e sociedades desses autores precursores e pioneiros
da Fenomenologia, que tem seu ápice no texto de Rudolf Otto. Rudolf Otto será
sempre conhecido pela obra Das Heilige, livro escrito em 1917 e que figura
entre os clássicos da Filosofia da Religião. Nasceu em Peine, na Alemanha, em
1869, e faleceu em 1937, quando o nazismo já dominava a Alemanha. Era de
família protestante e se tornou pastor luterano, teólogo e filósofo. Foi professor
da Universidade de Göttingen de 1897 a 1907. De 1901 a 1907 foi colega de
Edmund Husserl. Neste período, Husserl lança o novo método de investigação
filosófica, denominado posteriormente Fenomenologia. Fonte: os autores. A
EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art.
184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 110 UNIDADE III
Mais concretamente falando, é o “esquema protestante” no sentido da relação
imediata do ser humano diante do “seu” Deus que constitui o padrão básico de
todas as interpretações do termo. Portanto, quem o emprega de maneira
afirmativa não está apenas promovendo uma abordagem sentimentalista e
romântica, mas também simpatiza como o pensamento evangélico
característico de autores como Schleiermacher, Söderblom, van der Leeuw,
Wach, Otto ou Mensching (USARSKI, 2006, p. 37). Essa primeira crítica
apresentada por Usarski se resume, então, ao emprego indevido do termo
“sagrado”, já que é feito a despeito da consideração do contexto histórico,
social e religioso em que foi conceituado por Rudolf Otto, o qual, segundo a
crítica, é tendencioso, pois está muito arraigado a um referencial cristão
protestante. Sendo assim, a afirmação de que o conceito de sagrado pode ser
universalizado fica comprometida e passível de reavaliação. Segue-se, então, à
segunda crítica, justamente relacionada à universalização do termo “sagrado”.
A UNIVERSALIZAÇÃO DO TERMO “SAGRADO” O sagrado “é uma categoria
universal no mundo religioso mais essencial do que a palavra Deus”
(USARSKI, 2006, p. 38). Essa afirmação de Söderblom mostra que ele é
consciente de um estudo da religião abrangente, que não se limita às religiões
monoteístas, mas alcança as politeístas e aquelas que não estão preocupadas
com um aparato teológico, como o Budismo primitivo. Assim, torna-se
necessário uma terminologia que supere os conceitos das religiões
monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). Para os críticos da
Fenomenologia, essa não é a realidade do termo e, portanto, do conceito de
sagrado, uma vez que adquiriu seu valor num determinado contexto
sociocultural e a partir de um significado muito amplo nas traduções dos textos
da Bíblia, sendo muito mais análogo do que conceitual de fato. Assim: [...] uma
comparação em várias linguagens religiosas revela que a palavra “Heilig” não é
universalmente traduzível, mas apenas desempenhou um papel particular
conforme o consenso linguístico de uma geração dominante de pesquisadores
nas primeiras décadas da história da Ciência da Religião como disciplina
institucionalizada (USARSKI, 2006, p. 39). As Críticas à Fenomenologia
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 111 As críticas à Fenomenologia da Religião nos ensinam que sua
terminologia, por se tratar de uma ciência hermenêutica, necessita ser utilizada
com cuidado e precisão, pois só o termo “sagrado” é rodeado de uma polêmica
bastante acentuada. Por outro lado, ele é de grande validade por realmente
alcançar a grande maioria das manifestações religiosas em prol da descrição
de uma determinada crença. No mundo acadêmico, pode ser usado, então,
como uma referência a crentes que acreditam na qualidade sagrada de sua
tradição, seja ela escrita ou de outra forma. Contudo, as categorias
desenvolvidas na Fenomenologia da Religião precisam ser consideradas em
função de sua potencialidade de imprimir autonomia ao objeto religião.
Enquanto considerado apenas no âmbito empírico e funcional, a religião é
privada de sua originalidade como fenômeno humano, limitando o alcance de
sua compreensão. Nesse sentido, Terrin (1998) é um defensor de um estudo
do fenômeno religioso caracterizado como tal: Os fenômenos religiosos, para
poder manter a própria e verdadeira identidade, devem ser estudados em
escala religiosa. Não é possível pensar que os fenômenos religiosos sejam
apenas estudados com métodos que não têm relação com o religioso e que
sejam interpretados e “explicados” por aproximações que até podem ser
importantes e necessárias nos planos histórico, sociológico, psicológico ou
outro qualquer, mas que são “redutivos” do mundo religioso (TERRIN, 1998, p.
17-18). Em nosso juízo, essa posição é satisfatória quanto à sua sutileza em
considerar as abordagens reducionistas ou funcionalistas como importantes,
formando uma parceria com o estudo da religião enquanto objeto autônomo de
investigação científica e hermenêutica. UMA QUESTÃO EPISTEMOLÓGICA
DIFÍCIL Para os estudos fenomenológicos da religião, esta parece uma
questão bem resolvida. A definição terminológica da disciplina foi definida por
Frederic Max Müller, quando propôs “uma ciência da religião”, um método de
abordagem único para um único objeto. Os pesquisadores e autores
fenomenológicos se familiarizam bem com “os singulares”, afinal é um método
(a Fenomenologia da Religião) e um objeto (o Fenômeno Religioso)
indistintamente com categorias universalizadas. A EPISTEMOLOGIA DOS
ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei
9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 112 UNIDADE III A questão mais delicada é:
como uma ciência da religião não fenomenológica que depende do
instrumental teórico-metodológico de outras disciplinas consegue manter sua
autonomia e identidade no mundo acadêmico? Quem fala de Ciência da
Religião tende, de um lado, a pressupor a existência de um método científico e,
de outro, também de um objeto unitário. Quem ao contrário [...] prefere falar de
ciências das religiões, o faz porque está convencido tanto do pluralismo do
metodológico (e da impossibilidade de reduzi-lo a um mínimo denominador
comum) quanto do pluralismo do objeto (e da não liceidade e até
impossibilidade no plano da investigação empírica, e de construir sua unidade).
Assim, haverá quem fale de ciência das religiões ou, então, quem prefira falar
de ciências da religião (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 12). A ideia de uma
Ciência da Religião provoca um questionamento sobre a pretensa necessidade
de um enfoque singular para o estudo do fenômeno religioso. Segundo
Camurça (2008, p. 20-21) “o nome da disciplina sugeriria que um fenômeno
empírico — histórico e cultural (também ‘espiritual’) — como o é a religião,
exigiria uma ciência específica [...] para seu tratamento”. Qual seria essa
ciência? Ou melhor, quais seriam os métodos aplicados no estudo da religião
que a distinguiria como uma ciência autônoma do ferramental teórico-
metodológico das disciplinas que lhe dão suporte (História, Sociologia,
Psicologia, entre outras)? Essa questão não tem uma resposta, há um
consenso entre os estudiosos de que o estudo não fenomenológico do
fenômeno religioso é devedor das metodologias dessas disciplinas, contudo
alguns argumentos são levantados para que a autonomia do estudo da religião
seja evidenciado, compreendido e aceito. Primeiramente, há uma defesa do
teor interdisciplinar do estudo da religião, como o item que singulariza,
assegura e justifica uma Ciência da Religião autônoma. Camurça (2008)
defende a tese de que Joachim Wach (1898-1955) foi quem, primeiramente,
defendeu a interdisciplinaridade aplicada aos estudos da religião pela
pluralidade disciplinar com uma abordagem articulada entre as ciências
humanas. As Críticas à Fenomenologia Reprodução proibida. Art. 184 do
Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 113 Uma concepção
peculiar do conceito de “Ciência da Religião” em uma direção plural, no meu
juízo, foi realizada por Joachim Wach. Para ele, a “Ciência da Religião”
assentava “na necessidade de várias ciências abordarem não justapostas, mas
organicamente associadas, tanto a natureza da religião e da experiência
religiosa como das expressões objetivadas”. Com esta perspectiva Wach não
desejava criar nenhuma ciência particular, nem um conjunto de disciplinas que
estudassem separadamente a religião, mas uma abordagem articulada entre
as ciências humanas para o fenômeno religioso (CAMURÇA, 2008, p. 21).
Adiante, ele conclui que: Portanto, Wach, no meu entender, foi um autor que,
ao levar em conta a pluralidade disciplinar no tratamento da religião, foi
pioneiro na defesa do que veio a se chamar posteriormente de
interdisciplinaridade. Ao considerar dois níveis de abordagem do fenômeno
religioso — um primeiro que trataria da experiência religiosa tout court,
circunscrito à fenomenologia, psicologia, psiquiatria, e um segundo que trataria
da “expressão objetivada dessa experiência religiosa” nos rituais, doutrinas e
organizações religiosas, objeto da sociologia, antropologia, História — ele
defendia que tanto as abordagens fenomenológicas não deveriam ser feitas
arbitrariamente, mas retiradas das análises objetivas que a Sociologia da
Religião realiza por meio da elaboração de “tipos sociológicos, quanto as
análises sociológicas da religião, sob pena de criar um reducionismo, não
poderiam fugir às implicações da experiência religiosa” parte de sua própria
natureza particular, trazidas à tona pelo enfoque fenomenológico (CAMURÇA,
2008, p. 22). O pioneirismo de Wach, para os pesquisadores não
fenomenólogos, tem seu valor por conta da sua proposta interdisciplinar.
Quanto a incluir a Fenomenologia como uma abordagem da experiência que
deve se entrelaçar às outras disciplinas como condição sine qua non para um
alcance pleno do objeto abordado é totalmente rejeitada. É esta convergência,
afunilamento para uma ciência particular no tratamento da religião, que
considero problemática! Primeiramente porque a Teologia parece já cobrir este
lado da irredutibilidade da experiência religiosa. E, em segundo lugar, porque a
“ciência da religião”, tal como preconizada, incorreria no risco de, ao privilegiar
a compreensão de uma estrutura e essência religiosa universal, terminar por
amesquinhar a interdisciplinaridade disciplinar em seu tratamento ao
estabelecer uma hierarquização, como o primado de uma reflexão nobre — a
fenomenológica — que captaria o sentido último deste a priori religioso,
relegando a um papel auxiliar e coadjuvante das Ciências Sociais que se
ocupariam de seus epifenômenos e formas contingentes (CAMURÇA, 2008, p.
23). A EPISTEMOLOGIA DOS ESTUDOS DA RELIGIÃO Reprodução proibida.
Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 114
UNIDADE III Caro(a) aluno(a), as críticas à Fenomenologia da Religião,
especialmente às formas de abordar a religião como sendo a essência da
revelação, da intuição e da transcendência, são úteis para que possamos
compreender um debate que atualmente se mantém vivo na definição
epistemológica das Ciências da Religião. “A questão que se coloca na
formulação hard de uma ‘ciência da religião’ é: além da teologia, ainda será
necessário uma ciência de novo tipo, para tratá- -la enquanto fenômeno
material e não espiritual?” (Marcelo Camurça) Considerações Finais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro
de 1998. 115 CONSIDERAÇÕES FINAIS Caro(a) aluno(a), as Ciências da
Religião não são um saber sobre religiões, tampouco uma ciência integral das
religiões. Elas têm percorrido um longo e árduo caminho de debates e
afirmações na academia para ser uma disciplina que utiliza métodos e
referenciais de análise próprios para se debruçar sobre o fenômeno religioso.
Libertando-se das amarras funcionalistas e reducionistas e se tornando crítica
à Fenomenologia da Religião, as Ciências da Religião contribuem para um
correto entendimento do fenômeno religioso enquanto expressão social,
cultural, filosófica, política, entre tantos. Suas pesquisas reúnem cientistas com
dois focos. Uns destacam, de maneira universalista, as constituintes e
estruturas comuns da religião como essência do real mundo religioso em suas
manifestações múltiplas. Outros enfatizam a importância de um levantamento
empírico e histórico em favor de uma reconstrução, mais detalhada, de cada
tradição religiosa em sua singularidade. Ambas linhas de pesquisa são
complementares e formam a riqueza das Ciências da Religião. Contudo, isso
não significa que o caminho atual seja simples ou mais seguro do que outrora.
A Teologia ainda assombra as Ciências da Religião, bem como a interpretação
do sagrado como algo dado ou relativo a um ente superior. Por conta disso, os
estudos produzidos pelos cientistas da religião comprometidos com a
autonomia da disciplina têm avançado sobre as questões epistemológicas e
apresentado métodos e teorias dedutivas e abstratas, que permitem a
explicação dos fenômenos religiosos em detrimento das ideologias. Por fim,
não há como fazer ciência da religião sem a interdisciplinaridade, sem um
diálogo aberto com as ciências humanas e sociais, utilizando seus referenciais
e reelaborando seus conceitos. Essa será a nossa abordagem na próxima
unidade. 116 DEUS E O DIVINO NA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E NA
RELIGIOSIDADE CONTEMPORÂNEA Uma religião se constrói sobre a
concepção e sobre a ideia de Deus. Tudo parte e converge em direção àquele
ponto que é o catalisador indispensável e fundamental da experiência religiosa
do homem. Deus é certamente a palavra maior e a mais sublime que
encontramos no mundo das religiões, é o centro de qualquer reflexão séria
sobre o significado que deve ser atribuído ao sentido da existência humana, é o
núcleo de significado em volta do qual gravitam os sentidos que são atribuídos
a esta e à outra vida, ao valor do homem, à sua existência, ao seu destino. É
evidente, portanto, que dentro ou fora de um contexto revelado, o problema de
Deus resume todos os problemas do homem e é, então, visto como o último
ponto de referência de experiências humanas que ultrapassam todos os
tempos e vão além de todas as épocas históricas. As religiões passadas e as
presentes não colocam certamente em discussão a existência de Deus ou do
divino, pois o divino é o próprio leit-motiv da religião. Não existe religião sem
uma concepção do divino e o próprio budismo e jainismo, que para muito

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