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DTLLC - FFLCH - USP

Disciplina: INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS LITERÁRIOS II


Prof. Dr. JORGE DE ALMEIDA

Mito: narrativa primordial

O mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as


sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos,
dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se
refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de “estar no mundo”
ou as relações sociais.
Vejamos:
1) o mito está localizado num tempo muito antigo, "fabuloso". Nos
tempos da "aurora" do homem; ou, pelo menos, os homens o colo-
cam nos seus tempos da "aurora" fora da história;
2) o mito não fala diretamente, ele esconde alguma coisa. Guarda
uma mensagem cifrada. O mito precisa ser interpretado;
3) o mito não é verdadeiro no seu conteúdo manifesto, literal, ex-
presso, dado. No entanto, possui um valor e, mais que isto, uma
eficácia na vida social.
ROCHA, Everardo – O que é mito [1985]. São Paulo, Brasiliense, 1999,
pp. 7-11 passim

Mito indígena brasileiro

"Houve um tempo em que os homens não possuíam o fogo. Era um


tempo difícil. Para não comer carne totalmente crua, ela era torrada ao
calor do sol, sobre uma laje de pedra.
Aí um homem descobriu uma ninhada de araras no alto de um paredão
de pedra-a-pique. Ele levou seu cunhado ainda menino pequeno para
tirar os filhotes. Cortou uma árvore e encostou-a no paredão, fazendo
uma escada para o menino subir. Quando o menino, porém, foi agarrar
os filhotes, eles gritaram tanto que ele teve medo de tocá-los. O homem
insistiu muito para que o menino jogasse logo os filhotes lá para baixo.
Como este hesitasse e ainda demonstrasse medo, o homem zangou-se
e atirou a árvore para o lado voltando sozinho para casa. O menino fi-
cou preso.
Como sem a árvore não podia descer, o pequeno ficou sentado ao lado
do ninho.
Ele ficou com muita sede, quase morreu. As araras velhas, voando em
cima, defecavam na sua cabeça a ponto de ele criar vermes. Os filhotes,
no entanto, pouco tempo depois perderam o medo.

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Nisso uma onça passou perto do paredão. Viu a sombra do menino e
tentou agarrá-lo quando ele moveu um braço. Aí o menino cuspiu para
baixo. A onça levantou a cabeça e vendo-o, perguntou: ‘O que você está
fazendo aí em cima?' Ao que o menino respondeu: 'Meu cunhado me
mandou pegar os filhotes das araras, e como eu não tive coragem de
pegá-los, ele ficou zangado e derrubou a escada por onde eu tinha su-
bido' .
A onça então mandou que ele atirasse os filhotes. Quando o menino fi-
nalmente obedeceu, a onça apanhou e devorou todos eles. 'Agora salta
você também' , ordenou a onça. O menino não quis fazer o que ela
mandava com medo de ser devorado pela onça também. 'Não, eu não
comerei você. Salta logo que eu vou aparar a sua queda', sossegou-o a
onça.
Finalmente, o menino decidiu saltar. Atirou-se lá do alto e a onça con-
seguiu apanhá-lo no ar entre as patas dianteiras. Levou-o para junto de
um ribeirão, fez com que ele bebesse água, lavou-o e o levou para casa.
Na casa da onça havia um grande moquém com muita carne. Debaixo
dele, um enorme tronco de jatobá em brasa. A onça deu ao menino um
bom pedaço do moqueado. Deixou-o em companhia de sua mulher e
foi para o mato caçar. Como a onça-fêmea não suportava o menor ruí-
do, se enfureceu muito quando o menino estalou entre os dentes um
pedaço do moqueado bem tostadinho. "Meu neto!" ela gritou, amea-
çando com as unhas e rosnando para ele.
O menino, muito assustado, fez queixa à onça quando esta voltou. A
onça lhe fez um arco e flechas. Explicou que se a onça-fêmea outra vez
se enfurecesse com ele era para o menino atirar na palma da mão dela.
Depois era para fugir pelo caminho que ela ensinou que ia de volta à
aldeia.
Quando a onça partiu outra vez pra caçar o menino teve fome de novo.
Tirou um pedaço do moqueado e comeu. Imediatamente a onça-fêmea
se irritou com o ruído de mastigar e furiosa mostrou as unhas. Na ter-
ceira vez que ela repetiu este gesto o menino flechou-lhe a mão e fugiu.
A onça-fêmea não pode persegui-lo porque estava grávida.
Seguindo o caminho que a onça ensinara, o menino foi parar na aldeia.
Ali contou ao seu pai tudo o que havia acontecido. Contou que na casa
da onça havia fogo e como era gostoso o moqueado.
O pai foi ao pátio, reuniu os chefes e o conselho, e relatou tudo. Eles
resolveram logo que iam buscar o fogo para a aldeia.
Colocaram vários homens espalhados em todo o caminho da aldeia até
a casa da onça, o melhor corredor de todos ia entrar na casa com o
sapo. A onça não estava em casa e o homem agarrou rápido o tronco de
jatobá aceso e correu com ele.
A onça-fêmea pediu que lhe deixasse ao menos um tição. Mas nada fi-
cou, pois o sapo cuspiu em tudo, apagando todas as brasas que ainda
se achavam pelo chão em volta.
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O homem com o tronco de jatobá aceso correu muito até chegar ao
primeiro estafeta que lhe tomou a carga dos ombros. Este correu muito
até o segundo e assim sucessivamente até que todos chegaram com o
fogo de volta à aldeia.” 18-21
ROCHA, Everardo – O que é mito [1985]. São Paulo, Brasiliense, 1999,
pp.18-21

Mito e rito

A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de


iniciação, quando você passa da infância para as responsabilidades do
adulto, da condição de solteiro para a de casado. Todos esses rituais
são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa
a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para voltar
com o novo, assumindo uma função responsável.
CAMPBELL, Joseph – O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe
Moisés. São Paulo, Palas Athena, 1990. p. 25

Funções do Mito

Os mitos têm basicamente quatro funções.


A primeira é a função mística – e é disso que venho falando, dando
conta da maravilha que é o universo, da maravilha que é você, e viven-
ciando o espanto diante do mistério. Os mitos abrem o mundo para a
dimensão do mistério, para a consciência do mistério que subjaz a to-
das as formas. (…)
A segunda é a dimensão cosmológica, a dimensão da qual a ciência se
ocupa – mostrando qual é a forma do universo, mas fazendo-o de uma
tal maneira que o mistério, outra vez, se manifesta. (…)
A terceira função é a sociológica – suporte e validação de determinada
ordem social. E aqui os mitos variam tremendamente, de lugar para
lugar. Você tem toda uma mitologia da poligamia, toda uma mitologia
da monogamia. Ambas são satisfatórias. Depende de onde você estiver.
(…)
Mas existe uma quarta função do mito, aquela, segundo penso, com
que todas as pessoas deviam tentar se relacionar – a função pedagógi-
ca, como viver uma vida humana sob qualquer circunstância. Os mitos
podem ensinar-lhe isso.
CAMPBELL, Joseph – O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe
Moisés. São Paulo, Palas Athena, 1990. p. 44-45

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Mitos e arquétipos literários

O mito é o poder central inspirador que dá significação arquetípica ao


ritual e narrativa arquetípica ao oráculo. Consequentemente, o mito é
o arquétipo, embora fosse conveniente dizer mito somente quando nos
referimos à narrativa e arquétipo quando falamos de significação. No
ciclo solar do dia, no ciclo sazonal do ano e no ciclo orgânico da vida
humana, há um único padrão de significação, a partir do qual o mito
constrói uma narrativa central em torno de uma figura que é em parte
o sol, em parte fertilidade vegetativa e em parte um deus ou um ser
humano arquetípico. A importância crucial desse mito foi imposta aos
críticos literários, particularmente por Jung e Frazer, mas os vários li-
vros agora disponíveis sobre ele não são sempre sistemáticos em sua
abordagem, razão pela qual forneço o seguinte quadro de suas frases:
1. A fase da aurora, primavera e nascimento. Mitos do nascimento do
herói, de restabelecimento e ressurreição, de criação e (porque as qua-
tro fases constituem um ciclo) da derrota das forças das trevas, inverno
e morte. Personagens subordinados: o pai e a mãe. O arquétipo do ro-
manesco e da maior parte da poesia ditirâmbica e rapsódica.
2. A fase do zênite, verão e casamento ou triunfo. Mitos de apoteose,
do casamento sagrado e da entrada no Paraíso. Personagens subordi-
nados: o companheiro e a noiva. O arquétipo da comédia, pastoral e
idílio.
3. A fase do crepúsculo, outono e morte. Mitos da queda, do deus que
morre, de morte e sacrifício violentos e do isolamento do herói. Perso-
nagens subordinados: o traidor e a sereia. O arquétipo da tragédia e da
elegia.
4. A fase das trevas, inverno e dissolução. Mitos do triunfo desses po-
deres; mitos de dilúvios e o retorno do caos, da derrota do herói, e mi-
tos do Götterdämmerung. Personagens subordinados: o ogro e a bru-
xa. O arquétipo da sátira (veja, por exemplo, a conclusão de "The Dun-
ciad").
FRYE, Northrop - Fábulas da Identidade: estudos de mitologia poéti-
ca. Tradução de Sandra Vasconcelos. São Paulo, Nova Alexandria,
2000.

Mitos e super-heróis

Pesquisas recentes trouxeram à luz as estruturas míticas das imagens e


comportamentos impostos às coletividades por meio da mass media.
Esse fenômeno é constatado especialmente nos Estados Unidos. Os
personagens dos comic strips (histórias em quadrinhos) apresentam a
versão moderna dos heróis mitológicos ou folclóricos. Eles encarnam a
tal ponto o ideal de uma grande parte da sociedade, que qualquer mu-
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dança em sua conduta típica ou, pior ainda, sua morte, provocam ver-
dadeiras crises entre os leitores; estes reagem violentamente e protes-
tam, enviando milhares de telegramas aos autores dos comic strips e
aos diretores dos jornais. Um personagem fantástico, Superman, tor-
nou-se extremamente popular graças, sobretudo, à sua dupla identida-
de: oriundo de um planeta destruído por sua catástrofe, e dotado de
poderes prodigiosos, ele vive na Terra sob a aparência modesta de um
jornalista, Clark Kent; Clark se mostra tímido, apagado, dominado por
sua colega Miriam Lane. Essa camuflagem humilhante de um herói cu-
jos poderes são literalmente ilimitados, revive um tema mítico bastan-
te conhecido. Em última análise, o mito do Superman satisfaz às nos-
talgias secretas do homem moderno que, sabendo-se decaído e limita-
do, sonha revelar-se um dia um “personagem”, um “herói”.
ELIADE, Mircea - Mito e realidade. Tradução de Pola Civelli. São Pau-
lo, Perspectiva, 2010. p. 159

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