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O Trajeto Antropológico nos filmes de Sci-Fi: Um Estudo do Filme Blade Runner

2049 na Perspectiva do Imaginário Midiático

The Anthropological Path in Sci-Fi Films: Blade Runner 2049’ study from the
Perspective of the Mediatic Imaginary

RESUMO

O presente artigo tem por escopo o estudo da narrativa exposta no filme Blade Runner
2049 (EUA, 2017), dirigido por Denis Villeneuve, a partir da perspectiva da mitocrítica
proposta pelo antropólogo Gilbert Durand. O autor postula que há perenidade entre as
antigas mitologias e as narrativas modernas correntes na literatura, no cinema e em
outros produtos culturais midiáticos. Ainda que o mito não seja nomeado ou apareça
diretamente nessas narrativas, ele está presente, em um nível latente, sustentando o
sentido desses textos culturais. A intenção do estudo é desvelar o mito, que subjaz na
narrativa deste filme, em relação à questão da revelação de um milagre e de uma
revolução para a liberdade dos replicantes. O tratamento metodológico ou,
mitodológico, é a mitocrítica. Os resultados apontam que o mito presente é o das
passagens bíblicas como o nascimento de Moisés, o milagre da gravidez de Rachael e a
presença do antagonista Niander Wallace, que remete à figura de um Deus criador de
milhões de replicantes, aos quais chama de anjos, e que deseja invadir o Éden e retomá-
lo.

PALAVRAS-CHAVE: Comunicação e Religião; Imaginário Midiático; Blade Runner.

ABSTRACT

This article is about the study of the narrative exposed in the film Blade Runner 2049
(EUA, 2017) directed by Denis Villeneuve from the perspective of the myth criticism
proposed by the anthropologist Gilbert Durand. The author postulates that there is
continuity between the ancient mythologies and the current modern narratives in
literature, in the cinema and other cultural media products. Although that myth is not
named nor appears directly in these narratives, it is present on a latent level, sustaining
the meaning of those cultural texts. The intention of this study is to unveil the myth that
lies beneath this film, related to the question of the revelation of a miracle and a
revolution for the freedom of replicants. The methodological or mythological approach
is myth criticism. The results point out that the present myth has biblical passages such
as the birth of Moses, the miracle of Rachel’s pregnancy and the presence of the
antagonist Niander Wallace that refers to the figure of a God who created millions of
replicants, to whom he calls angels and he wants to invade Eden and resume it.

KEYWORDS: Communication and Religion; Media Imaginary; Blade Runner.

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INTRODUÇÃO

Porque você nunca viu um milagre.


Sapper Morton

Este artigo tem como objetivo fazer um exercício de desvelar mitos arcaicos que
estão presentes nos textos culturais midiáticos contemporâneos.
O filme de ficção científica Blade Runner 2049 (Blade Runner 2049, EUA),
lançado em 2017 e dirigido pelo canadense Denis Villeneuve, revela-nos as questões de
mitos bíblicos inseridas na narrativa tanto de forma explícita quanto velada.
A película também trata de questionamentos da existência, identidade, memória,
autoconhecimento, verdade e da relação do homem com a bioengenharia, no caso dos
modelos replicantes.
De acordo com os fundamentos metodológicos da Antropologia do Imaginário,
com destaque à mitocrítica, proposta por Gilbert Durand, os mitos arcaicos presentes no
inconsciente coletivo (Jung, 2000) ascendem para o plano da consciência e circulam na
cultura de massa.
Com a finalidade de compreender a metodologia em questão e sua contribuição
para os modos de interpretação do tempo presente e para que os mitos venham à tona, é
importante destacar que embora os mesmos permaneçam arcaicos, vêm adaptados e
moldados.
Blade Runner 2049 é, acima de tudo, reflexivo, complexo e instigante. O diretor
trouxe a essência de Blade Runner – O Caçador de Andróides (Blade Runner), dirigido
por Ridley Scott e lançado em 1982, ao dar mais profundidade à história dos replicantes.
A intenção deste artigo não é realizar uma análise fílmica nem técnica, mas
apresentar um estudo sob o ponto de vista da mitocrítica, pela perspectiva do
antropólogo Gilbert Durand.
O ser humano precisa de mitos, de narratividade, do simbólico para a (re)
significação de si mesmo e para o sentido da vida. Assim, olhar o mito que está por
detrás do filme Blade Runner 2049 significa compreender o que está velado na
narrativa, pois são passagens bíblicas moldadas para o contemporâneo, no universo da
ficção científica.

O Papel da Narrativa Mítica

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“O mito o ajuda a colocar sua mente em contato com esta experiência de estar vivo.”
Joseph Campbell

As duas definições mais comuns de mito subestimam a importância cultural e


social do tema. A primeira define o mito como aquilo que nunca aconteceu, uma fábula;
a outra define o mito como relatos extremamente fascinantes, mas que, como histórias,
estão presas e ancoradas no passado.
A investigação de um mito não pode ser alçada de seu contexto social e
histórico. O mito não pode ser investigado pelo processo de dissecação nem
considerado, estritamente, como uma estrutura mórbida e sem vida que só se transforma
em objeto de estudo, após a sua morte, perdendo sua existência presente e aniquilando
sua projeção futura. Eguizábal (2012, p.98) define o mito como “um relato alegórico
[...] que traduz uma generalidade histórica, sociocultural, física e filosófica”. Percebe-se
a partir dessa definição, que o mito está entretecido nos liames da vida histórica, social,
cultural, biológica e filosófica.
O mito cumpre, pelo menos, quatro funções específicas: 1) função mística –
fala-nos das maravilhas do universo, da maravilha que somos, e sempre nos deixa
perplexos diante do mistério. A função mítica nos dirige ao mistério transcendente
através de circunstâncias do cotidiano; 2) função cosmológica – explica o universo e o
lugar que ocupamos nele, produzindo senso de propósito; 3) função sociológica – os
mitos funcionam como suporte e validação de determinada ordem social; 4) função
pedagógica – ensina-nos como viver e nos comportar nas mais variadas circunstâncias.
(CAMPBELL, 1990, p.44-45).
Apropriando-se da música como metáfora, Joseph Campbell (1990, p.10)
defende a ideia de que a mitologia participa das esferas da vida cotidiana de maneira
dinâmica e viva, influenciando nossos movimentos e nossa leitura do mundo. Na
definição poética do autor, “mitologia é a ‘canção do universo’, a ‘música das esferas’ –
música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia”.
Para Eliade (1992), a narrativa mítica na religião conta uma história sagrada que
oferece explicações para a origem de uma realidade. Ela revela os mistérios da criação,
já que seus personagens são divinos e heroicos. O autor afirma que o mito “proclama a
aparição de uma nova ‘situação’ cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto,
é sempre a narração de uma ‘criação’: conta-se como qualquer coisa foi efetuada.”
(ELIADE 1992, p.50).

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Ao narrar essas histórias divinas e criadoras e atualizá-las no tempo, com o
objetivo de eternizá-las, o mito estabelece para o homem religioso o modelo exemplar
dos deuses que impregna toda a vida profana. O mito passa a estabelecer modelos
sagrados para o homem nas práticas mais comuns da vida profana: lavrar a terra,
alimentar-se, descansar, viver em família; todas essas ações passam a ser balizadas pelo
modelo estabelecido pelos deuses e disseminadas por meio da narrativa mítica.
O processo de construção do sagrado na narrativa mítica se dá pelo
encadeamento de razões explicativas. Para narrar a existência de algo, é preciso
descrever como essa realidade veio a existir. Para justificar esse como, é preciso
explicar o porquê desta criação. Desta forma, em um mesmo movimento, a narrativa
mítica estabelece um propósito existencial para tudo o que existe e revela a irrupção do
sagrado nos liames da vida profana.
Blade Runner 2049 refere-se às narrativas bíblicas, mas vem moldado ao mundo
contemporâneo, em que a replicante Rachael gera uma criança em seu ventre, o que é
visto como um milagre perante os outros replicantes. A criança significa a liberdade
para essa raça de replicantes: é ter a liberdade de escolha e não servir mais aos humanos
na escravidão.

MÉTODO

Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a imagem mítica fala
diretamente à alma.
Gilbert Durand

O método utilizado para esta pesquisa é o da mitocrítica, com ênfase na bacia


semântica, que explica os caminhos, as permanências, mudanças e alterações míticas de
determinados momentos da vida e de uma sociedade, de um renascimento, ressurgência
ou emergência, adormecidos no mito, conforme os estudos do antropólogo Gilbert
Durand.
O autor refere-se em seu texto à metáfora potamológica, termo que surge a partir
do grego “potamos” (rio), daí o conceito de “bacia semântica”, que permite a
“integração das evoluções científicas supracitadas e, em seguida, uma análise mais
detalhada em subconjuntos (...) de uma era e área do imaginário: seu estilo, mitos
condutores, motivos pictóricos, temáticas literárias etc.” (DURAND, 1994, p.103).

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Entende-se por “bacia semântica” aquilo que irriga, como se fosse um rio dos nossos
inconscientes, em que as raízes saem dessa bacia para buscar novos sentidos e novas
(re) significações aos mitos enraizados.
Para esse método, aplica-se a mitocrítica, que se percebe como o imaginário
atualizado, que reprime e exclui o imaginário em potencial e, com isso, multiplica-se
nas redundâncias para ocupar o lugar de outro. As raízes se dispersam e se colocam nos
campos do imaginário. Nas palavras de Durand (1994, p.74), são processos míticos que
se manifestam pela redundância imitativa de um modelo arquetípico.

RESULTADOS

Assim como um rio é formado por seus afluentes, uma corrente nitidamente
consolidada necessita ser reconfortada pelo reconhecimento, o apoio das autoridades
locais e das personalidades e instituições.
Gilbert Durand

Ao assistir o filme Blade Runner 2049, foi realizado um mapeamento para


identificar as imagens, metáforas e diálogos obsessivos na bacia semântica, como
propõe Gilbert Durand. Nesse contexto, foram analisadas quantitativamente as
referências a milagre, revelação, revolução (exército), de forma explícita ou velada.
Segue tabela abaixo:

Filme: Blade Runner 2049 (EUA, 2017)


1. Sapper Morton ao agente K: “Como se sente matando sua própria gente?”.
Réplica do Agente K: “Eu não aposento a minha gente, porque nós não
fugimos. Só modelos antigos fogem. (0:09:12).
2. Sappper Morton ao agente K: “E vocês, modelos novos, se contentam em
limpar a merda, porque nunca viram um milagre.” (0:09:26).

3. No departamento de polícia acontece a análise dos ossos encontrados no


terreno de Sapper. Agente Coco: “Ela morreu dando à luz. (0:24:45).

Dialógo entre a Chefe e o Agente K (0:25:39).

4. Chefe: “E cadê a criança? Isso não é possível. Ela era uma replicante.
Grávida. O mundo é construído sobre um muro que separa as espécies.

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Diga a qualquer dos lados que não há muro e você terá uma guerra. Ou um
massacre. Então, o que você viu não aconteceu.”.

5. Agente K: “Sim, chefe.”.

6. Chefe: “É meu dever manter a ordem. É o que fazemos aqui: mantemos a


ordem.”.

7. Agente K: “Quer sumir com aquilo?” .

8. Chefe: “Apague tudo.”.

9. Agente K: “Até a criança?”.

10. Chefe: “Qualquer rastro. Tem algo mais a dizer?”.

11. Agente K: “Eu nunca aposentei nada que tenha nascido.”.

12. Chefe: “Qual a diferença?”.

13. Agente K: “Nascer é ter uma alma, eu acho.”.

14. Chefe: “Você tem se saído bem sem uma.” (0:28:09.

15. Agente K: “Sem o que Chefe?” (0:28:11).

16. Chefe: “Uma alma.” (0:28:13). Agent K relembra as palavras de Sapper:


“E vocês, modelos novos, se contentam em limpar a merda, porque nunca
viram um milagre.” (0:29:04).

Na Wallace Corporation, o Agente K busca dados do registro da replicante


que estava na caixa de ossos. (0:30:59).

17. Recepcionista ao Agente K: “Eu estava com os meus pais, e foram 10 dias
na escuridão. Todas as máquinas congelaram. Quando as luzes voltaram,
tudo tinha sido apagado. (...) Só restou o que estava em papel.” (0:31:07).

Aparece Luv, que representa o sr. Niander Wallace.

18. Luv: “Outro número de série pródigo que retorna. Um caso aberto há 30

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anos que se encerra. Todos os registros de memória da época foram
danificados no blecaute. Mas, às vezes, há fragmentos. (0:32:08).

Diálogo entre Luv e Niander Wallace (0:37:21).

19. Luv: “Bem-vindo de volta, senhor. Queria revisar o novo modelo antes do
envio?”.

20. Wallace: “Um anjo nunca deve entrar no reino do céu sem um presente.
Pode ao menos anunciar: uma criança nasceu?”.

21. Wallace: “Nós fazemos anjos a serviço da civilização. Sim, já houve anjos
maus. Eu faço Anjos bons agora. (...) Deveríamos ser donos das estrelas.”.

22. Wallace: “Este pasto infértil, vazio, e salgado, bem aqui (Wallace toca no
ventre do novo modelo da replicante). O espaço morto entre as estrelas. E
este, o lugar que temos que trocar pelo céu.”. Logo em seguida, ele a
mata. (0:41:18).

23. Wallace: “Não consigo procriá-los. E acredite, eu já tentei. Precisamos de


mais replicantes do que jamais poderemos produzir. Milhões, para que
sejamos trilhões a mais. Poderíamos invadir o Éden e retomá-lo.”.
(0:41:42).

24. Wallace: “A mágica final da Tyrell: procriação, aperfeiçoada e perdida.


Mas existe uma criança. Traga-a para mim.” (0:42:10).

25. Joi (Inteligência Artificial) para o Agente K: “Eu sempre soube que você
era especial. Talvez por isso. Um filho, do útero de uma mulher. Parido no
mundo. Desejado. Amado.” (0:56:37).

26. Na busca pela verdade, o Agente K tem uma revelação de uma memória
sua, que pode ter sido ou não implantada. (1:14:28.

27. Joi ao Agente K: “Eu sempre te disse. Você é especial. Nascido. Não
feito. Escondido com carinho. Um menino de verdade. Um menino de
verdade precisa de um nome de verdade. Joe.” (1:14:41).

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O Agente K vai ao encontro da Dra Ana Stelline, a pessoa responsável
pelos implantes de memórias. Segue o diálogo (1:18:18):

28. Agente K: “O que torna suas memórias tão autênticas?”.

29. Ana: “Bom, tem um pouco de cada artista em sua obra. Mas eu fui
trancada numa câmara estéril aos 8 anos, então, se quisesse ver o mundo,
eu tinha que imaginá-lo. Fiquei com ótima imaginação. (...) Replicantes
levam vidas difíceis, criados para fazer o que não queremos. Não posso
ajudar o seu futuro, mas posso lhes dar boas memórias para vocês
recordarem e sorrirem. E se você tem memórias autênticas, tem reações
humanas verdadeiras.”.

30. Luv para a Chefe do Agente K: “Ser insignificante. Diante da fabulosa


novidade, seu único pensamento é matá-la? Por medo da grande
mudança? Não vai deter a maré com uma vassoura.” (1:38:49).

Encontro do Agente K com o Deckard (1:54:38):

31. Agente K: “Você queria achar?”

32. Deckard: “Na verdade, não!”

33. Agente K: “Por que não?”

34. Deckard: “Porque estávamos sendo caçados. Não queria que a criança
fosse encontrada, desmembrada, dissecada. Às vezes, pra amar alguém é
preciso ser um desconhecido.”

Deckard é capturado pela Corporação Wallace e o Agente K é resgatado


pelos membros da líder Freysa. Diálogo entre Agente K e Freysa
(2:04:32):

35. Agente K: “Eu reconheço você. Ajudou ele a esconder a criança.”.

36. Freysa: “Eu estava lá. Vi um milagre vir à luz. Um rostinho perfeito
chorando pra mim, com a fúria de um trovão.”.

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37. Agente K: “Você estava com ela? A Rachael?”

38. Freysa: “Ela morreu nos meus braços. Escondemos a criança e juramos
manter nosso segredo. Por isso que o Sapper deixou que você o matasse.
Eu sabia que o bebê significava que nós somos mais que meros escravos.
Se um de nós pode ter um bebê, somos donos de nós mesmos.”.

39. Mariette: “Mais humanos que humanos.” (2:05:38):

40. Freysa: “Vem uma revolução aí. E estamos formando um exército. Eu


quero libertar nossa gente. Se quiser ser livre, junte-se a nós. Deckard,
Sapper, você, eu. Nossas vidas não significam nada perto da tempestade
que se avizinha. Morrer pela causa certa é a coisa mais humana que
podemos fazer. Você levou Wallace até Deckard. Não pode deixar que
Deckard traga Wallace até mim. Você precisa matar Deckard. Deckard só
queria que sua bebê ficasse segura. E ela está. Quando chegar a hora, eu
vou mostrá-la ao mundo e ela vai liderar nosso exército.” (2:05:40):

41. Agente K: “Ela?” (2:06:53).

42. Freysa: “Rachael teve uma filha. Com meus próprios olhos, eu a vi
nascer. Eu a vesti de azul, quando chegou a hora de ela partir.” (2:06:55).

43. Agente K: “Foi um menino que você escondeu.” (2:07:07).

44. Freysa: “Você pensou que fosse você? Pensou não foi? Todos queríamos
que fôssemos nós. É por isso que acreditamos.” (2:07:31). Diálogo
entre Deckard e Wallace (2:09:13):

45. Wallace: “Você é um mistério, para mim, sr. Deckard. Eu tinha a


fechadura e achei a chave. Mas os pinos não se alinham. A porta
permanece trancada. Preciso do espécime para alcançá-la, sr. Deckard.
A criança. Preciso da criança. Para ensinar a todos a voar. E Deus
lembrou-se de Raquel e a ouviu e a tornou fértil.”.

46. Wallace sobre Rachael: “Nunca lhe ocorreu que foi por isso que você foi

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convocado até lá? Projetado para fazer nada além de se apaixonar por
ela lá, naquele momento. Tudo para fazer aquele único espécime
perfeito? Isto é, se você foi projetado. Amor... ou precisão matemática.
Sim... Não...”

Em seguida, aproxima-se uma replicante do mesmo modelo da


Rachael:

47. Deckard: “Você não tem filhos, não é?” (2:13:44).

48. Wallace: “Eu tenho milhões.”

O modelo replicante Rachael caminha até Deckard:

49. Wallace: “Um anjo refeito. Para você.” (2:14:35).

Agente K relembra das palavras de Freysa e Sapper (2:17:58):

50. “Morrer pela causa certa é a coisa mais humana que podemos fazer.”
“Porque você nunca viu um milagre.”

51. Agente K para Deckard: “Está livre para conhecer sua filha agora.”
(2:29:31)
Fonte: DVD Blade Runner 2049

Nota-se que o antagonista Niander Wallace aparece pouco na narrativa fílmica,


mas é enfático nas suas palavras sobre a religião. A narrativa é mapeada na revelação de
uma criança nascida por causa de um milagre, escondida, para se revelar no momento
certo, para instaurar uma nova verdade, em que os replicantes são humanos, mais que
humanos.
Nos minutos iniciais do filme, antes de morrer pelas mãos do Agente K, o
personagem Sapper afirma: “Porque você nunca viu um milagre.”. E assim, fica clara a
inserção do milagre na narrativa.

DISCUSSÃO

Uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo, desponta a voz da
salvação.

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Joseph Campbell

Para Fátima Regis (2012, p. 40), muitas obras de ficção científica usam
elementos mágicos, religiosos ou sobrenaturais, aliás, percebe-se que há várias
personagens na filmografia de ficção científica que têm nomes bíblicos, como ocorre
em Blade Runner 2049.
O filme é marcado por várias passagens bíblicas, como a da revelação de um
milagre, em que podemos nos referir à mãe de Jesus, grávida de um Messias que vem
trazer as palavras de Deus ao seu povo, ou nos reportar à história de Moisés. Nascido
entre os hebreus, na época em que o antigo Império Egípcio ordenava que todos os
homens hebreus fossem mortos; para salvá-lo, sua irmã o esconde em um cesto e o
coloca no rio. A filha do faraó observa o rio, vê o cesto e pede para as escravas o
pegarem. No filme, a personagem Freysa vê apenas com um olho, é uma das que fazem
parte do novo exército dos replicantes, foi ela quem fez o parto de Rachael. E é ela
quem enxerga o milagre na criança. Freysa é a junção da irmã de Moisés - que ajuda a
esconder a criança - e a princesa que olha para além do rio e salva o milagre.
Moisés foi resgatado pela filha do faraó e criado na família real. A criança
nascida de Rachael, Ana, é escondida pelos replicantes, e será revelada no momento
certo. É adotada por outra família e trabalha indiretamente para Niander Wallace, o
antagonista, que precisa dessa criança para construir um novo Éden, como ele mesmo
diz. Moisés recebe uma mensagem de Deus para que liberte seu verdadeiro povo, os
hebreus, da escravidão e da opressão do poderoso faraó. Em seu trabalho, Ana implanta
as memórias nos replicantes, para que eles se sintam mais humanos. Moisés e Ana
foram criados por seus antagonistas.
Além dessa analogia, há outra que pode ser feita: trata-se do milagre que é a
gravidez da replicante Rachael, que assim como a Raquel da Bíblia, esposa de Jacó, era
estéril, mas consegue ter dois filhos, o primeiro deles é José, considerado especial por
Jacó, e o segundo é Benjamin. É durante o parto de Benjamin que Raquel morre, da
mesma forma que Rachael, a replicante, também morre ao dar a luz. No filme, o
antagonista Niander Wallace diz a Deckard: “E Deus lembrou-se de Raquel e a ouviu e
a tornou fértil”.
Em Blade Runner 2049, ocorre um blecaute, uma escuridão total que dura 10
dias, em que todos os dados que estavam em drives e computadores somem, e só restam
as informações anotadas em papel. Esse blecaute pode aludir às trevas e, depois, à luz,

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com a chegada dessa criança. O velho papel, a única maneira segura de salvar as
informações, remete aos velhos pergaminhos, além de ser um recurso fundamental para
esconder Ana, pois alguns replicantes colocam rastros falsos, para o momento certo da
revelação.
O antagonista Niander Wallace tem a aparência de um messias como Jesus
Cristo ou de um profeta cego que, ao proferir suas palavras, enxerga além. Ele é “O
Salvador” na figura distorcida, que se considera um Deus e quer construir um novo
paraíso com os anjos bons (replicantes).
No filme há a presença de simbologias como a da árvore e a do cavalo de
madeira. Rachael é enterrada perto da árvore seca, que não possui mais folhas, mas que
significa o ciclo da vida. Essa árvore tem uma aparência que remete ao inverno, imagem
que alude também à velhice e à morte. Deckard deixa um cavalo de madeira para a
filha, Ana. Segundo o livro dos Símbolos, a significação do cavalo é que ele voa pela
paisagem, com o estrondo dos seus cascos, como se quisesse fugir da própria pele por
amor à liberdade. É isso o que Deckard deseja a sua filha: a liberdade, e para protegê-la,
por amor, tem que abandoná-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Blade Runner 2049 é um filme que tem como gênero a ficção científica e que
traz em sua narrativa algumas passagens da Bíblia como pano de fundo - esses mitos
enraizados que vêm para o presente. Em suas obras, o diretor Denis Villeneuve costuma
mostrar mitos, revelações e a relação bíblica, um exemplo desses elementos encontra-se
no filme Incêndios (Incendies, 2011) em que o Mito de Édipo é velado assim como a
jornada do herói para a mulher.
É fundamental ressaltar a importância que Blade Runner 2049 concede à
memória, ao sentir-se vivo e humano, em uma época em que vivemos mais para o
visual, sem dar valor à capacidade de lembrar.
As alusões às passagens bíblicas precisam ser moldadas para o mundo
contemporâneo, ao serem levadas para um universo da ficção científica e tecnologia,
para que o público possa ver com outro olhar, com outra forma da narratividade.
O personagem do agente K ajuda a desvelar o milagre da criança, em que salva
Deckard para o encontro com sua filha. Este filme é uma obra importante por ter esta

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leitura simbólica e filosófica que discute a identidade, a individualidade e o
autoconhecimento.
É na trajetória do Agente K, por este caminho das passagens bíblicas, que ocorre
a inversão dos fatos, quando ele sente empatia por Deckard e tem a percepção de que
precisa proteger essa criança e, ao fazê-lo, não será mais o caçador e, sim o caçado. É a
partir da revelação do nascimento da criança, gerada por Rachael e Deckard, e por
acreditar que ele possa ser ela, que o agente K inicia seu caminho na busca de sua
própria identidade e seu autoconhecimento, em que ele se questiona sobre ter uma alma.
E é nesta mesma trajetória que o espectador/leitor descobre as questões
profundas do ser, por meio de mitos, do imaginário e do simbólico que o movem para
este universo da ficção-científica para desvelar os mistérios da sua narratividade.

REFERÊNCIAS

BAYLEY, Harold. A Linguagem Perdida do Simbolismo – Um Estudo Sobre a


Origem de Certas Letras, Palavras, Nomes, Contos de Fadas, Folclores e
Mitologia. São Paulo: Cultrix, 2005.

BATCHELOR, Mary. Bíblia em 365 Histórias. São Paulo: Edições Paulinas, 2016.

CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena,
1990.

DURAND, Gilbert. O Imaginário – Ensaio Acerca das Ciências e da Filosofia da


Imagem. São Paulo: Editora Bertrand, 2011.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões. São Paulo: M.


Fontes, 1992.

GIBSON, Clare. Como Compreender Símbolos – Guia Rápido sobre Simbologia


nas Artes. São Paulo: Senac, 2013.

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JUNG, Carl Gustav. 9/1 Obra Completa – Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
Petrópolis: Editora Vozes, 2019.

MARTIN, Kathleen (Org.). O Livro dos Símbolos – Reflexões Sobre Imagens


Arquetípicas. Taschen.

RÉGIS, Fátima. Nós, Ciborgues: Tecnologias de Informação e Subjetividade


Homem-Máquina. Curitiba: Champagnat Editora PUCPR, 2012.

ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Nos Passos de Moisés. São Paulo: Paulus, 2013.

Filme:

BLADE RUNNER 2049. Direção: Denis Villeneuve. Produção: Alcon


Entertainment/Bud Yorkin. EUA: Columbia Pictures, Warner Bros Pictures, 2017.
DVD (163 min), color. Dolby digital / surround 5.1, original language: English.

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