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Allbert Kreinheder

CONVERSANDO
COMADOENÇA
Um diálogo de
COrDOe allma

nmuseditoria!

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA. 7

PREFÁCIO. 9

1 O DIA EM QUE O GATOMORREU 13

2 COM OS OLHOS DE QUEM? 17


3 LIMPANDO O JARDIM... 21
4 A CURA É UM MILAGRE 25
5 VIVENDO A ALMA 29
6 TRAGA A CADEIRA DE RODAS 35
7 O GUIA ESPIRITUAL 39
8 DORES NO PEITO 43
9 ONDE BROTA A PAIXÃO? 45
10 A IMAGEM POR TRÁS DO SINTOMA. 51

11 E DAÍ SE GOSTO DE MIM COMO SOU? 55


12 EXISTE UMA HISTÓRIA. 59
13 EXISTE UMA FORÇA 63

14 MAIS SOBRE A FORÇA... 67


15 TERROR OU ÊXTASE.. 69
16 SANGRANDO NA BOCA... 75

17 ANSIEDADE PODE MATAR... 81

18 POR TODA A PELE.. 91

19 O PROBLEMA OU A FORÇA? 99

20 POR QUE NÃO MUDAR O ENREDO? 103

21 E DEPOIS DE TUDO A ESCURIDÃO. 107

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A Summus lança a edição brasileira desta obra comohomenagem


póstuma à sua amiga e colaboradora Fanny Ligeti. Esta foi sua
última indicação editorial.

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APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Observamos já nas primeiras linhas que este não é um livrO


comum ou mais uma re exāo sobre o problema mente-corpo. Eu diria
mesmo que é um livro pós-moderno, se houvesse uma classi cação
deste tipo na área de psicologia.
Albert Kreinheder não tem medo de misturar poesia, religião e
as próprias vivências com descrições clínicas precisas e de fazer um
relato emocionante e ao mesmo tempo cientí co, fato raro nos
ambientes pro ssionais. Contaminados ainda pela ciência mecanicista
e redutivista, percebemos quão pobres somos frente à grandeza e à
coragem com que o autor descreve suas experiências.
O conceito de vida é retomado como mistério e milagre, frente
aos quais podemos somente ter uma atitude humilde, de respeito e
compreensão. A idéia de corpo como presente divino nos remonta
a mitos de diferentes culturas e propõe uma reavaliação dos métodos
atuais de tratamento, que enfatizamo corpo mas tratam-no apenas
como objeto que deve ser relaxado, desarmado, desencouraçado.
As relações entre ego e arquétipo e entre profanoe sagrado são
revistas, lembrando-nos que, quando energias arquetípicas tocam a
consciência, ocorre uma experiência tanto física quanto emocional.
E é neste momento, segundo o autor, que a alma é criada'".
O encontro com a Totalidade e com a Verdade -- e não a
sobrevivência – é o objetivo do processo de individuação. Talvez
aqui esteja a idéia mais preciosa deste trabalho: "o objetivo da cura
não é carmos vivos, mas nos aproximarmos da Totalidade", isto
é, a realização do processo de individuação não está necessariamente
submetida ao processo de cura de uma determinada doença. E tem
mais: o sentimento de culpa frente a sofrimentos e tragédias maiores
é visto comno uma in ação egóica, pois o self tenm razões que a própria
razão desconhece...

Denise Gimenez Ramos


São Paulo, 1993

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PREFÁCIO

A cura da mente, assim como a do corp0, provavelmente já


era praticada em épocas pré-históricas. De fato, é bem possível
que o tratamento mais primitivo, com exceção dos cuidados com
cortes, contusões e ossos quebrados, tenha sido a reparação da
alma ou do espírito de pessoas a itas. O que mais se poderia fa-
zer quando a cabeça de alguém explodia de dor ou o ventre
consumia-se num fogo interno?
Em épocas posteriores, xamās, curandeiros e, mais tarde, psi-
coterapeutas, com o auxílio da psicologia, prestaram ajuda no tra-
tamento das doenças do corpo. Com o advento da ciência, os xa-
mãs tornaram-se psicólogos e os curandeiros transformaram-se
em médicos, e, raramente, psicólogos e médicos caminha
mesmadireção - atéSigmundFreude C. G. Jung.
Em casos de doenças psicossomáticas, Freud percebeu um cor-
po atormentado por complexos irreparáveis, criados pelo compul-
sivo treinamento do esfíncter para tirar a fralda dos bebês. De al-
guma forma, Jung teve a mesma visāo, mas substituiu o "abu-
so" dos pais por arquétipos negativos. Dando um passo à frente,
embora não tenha sido o pioneiro, o dr. Albert Kreinheder ima-
ginou muito mais uma inter-relação ou uma união de corpo e al-
ma do que uma simples relação de causa e efeito. O que torna
seu livro original é o fato de apresentar um conceito teórico (ele
não teria usado este termo) e um método de tratamento baseado
em sua própria experiência imediata, fundamentado em extensas
pesquisas cientí cas e em uma longa análise pessoal.
Mas o que faz sua obra verdadeiramente única é que, sur-
preendentemente, nos dias de hoje, em que publicações de jargão
"psicologuês"" se fazem passar por cientí cas, Kreinheder escre-
obra de leitura incrivelmente fácil (alguns capítulos po-

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dem ser lidos como prosa poética) sobre o corpo e a psique, sem
torná-la "psicológica'". Compreendeu que a essência daexperiênca
humana não é psicológica e racional; é algo inefável e imediato.
apaixonante e doloroso, espiritual e profano, que deve aomesmo
tempo ser suportado e celebrado. A psicologia de Kreinhederre-
sulta de sua experiência e de sua proximidade com a morte. E,
como já foi observado, é fundamentada numa sólidaformação
cientí ca.
O livro não se limita também unicamente à experiênciapes-
soal de Kreinheder. Quando ele escreve "Tudo no cếu e na terra
me in uencia e é por mim in uenciado", está fazendo eco a "Song
of Myself", de Walt Whitman, obra que conhecia muito bem.Is-
to é, ele usa os pronomes pessoais eu e nós com o signi cado de
Todos os homens.
Albert Kreinheder nasceu em 1913, em Buffalo, estado deNo-
va York. Freqüentou a Syracuse University e fez bacharelado emes-
trado em língua inglesa. Nessa época, pretendia sustentar-secomo
escritor, lecionando, mas a Segunda Guerra Mundial interompeu
seus planos. Paci sta, recusou-se a combater e passou todo o período
da guerra em campos de trabalho forçado, em parques nacionais.
Após o m da guerra, matriculou-se no curso de psicologia
clínica da Claremont Graduate School, na Califórnia. Ao rece-
ber o título de Ph.D., em 1952, começou a clinicar em Los Ange-
les. Dez anos mais tarde, tornou-se analista junguiano pelo C. G.
Jung Institute de Los Angeles, onde, em diferentes ocasiões, ocu-
pou os cargos de diretor de treinamento, presidente da banca exa-
minadora e presidente do instituto.
Há cerca de quinze anos, Kreinheder, que na juventude havia
sido atleta e corredor, muito antes de os tênis de corrida serem in-
ventados, cou virtualmente paralisado pela artrite. Embora te-
nha tentado uma combinação de tratamentos médico, nutricional
e quiroprático, foi por uma intensiva exploração dascausasda dor,
usando a técnica da imaginação ativa, que conseguiu a total re-
missão da doença. O resultado dessa experiência tornou-se uma
série de artigos sobre sua cura pelo uso dessa técnica, publicados
na revista junguiana Psychological Perspectives, de Los Angeles.
Dois anos e meio antes de começar a escrever Conversando
com a doença, Kreinheder submeteu-se a uma cirurgia na qual um

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tecido canceroso foi descoberto e retirado. O primeiro capitulo
do livro conta esse episódio. Nos capítulos seguintes, o autor narra
sua experiência e a de vários pacientes no confronto com o espec-
tro da dor e da morte. Terminou o livro algumas semanas antes
de completar 76 anos. Quatro meses mais tarde, em abril de 1990,
Conversando com a doença foi aceito para publicação. Em me-
nos de dois meses, Kreinheder morreu de uma recidiva do câncer.
Este livro é o testamento de um homem às portas da morte,
um homem com profundo insight mas também um livro sobre
a vida e o viver. O último capítulo é um presente de Kreinheder
aos leitores. Ele conta como morrer com dignidade, serenidade
e coragem. Como ele próprio morreu.
Kreinheder deve ter conhecido a letra da famosa canção dos
anos 30, que inspirou o título de seu livro. Três frases dela pode-
riam ser seu discurso para a Morte:

De minha vida um inferno você vai fazendo,


Você sabe que sou seu, é só levar porque
Eu de bom grado me rendo,
De corp0 e alma a você. *

"A cura pode acontecer na morte", a rmou seu espírito mé-


dium. A morte é a cura nal."

Al Kreinheder pediu que este livro fosse dedicado à sua ama-


da companheira dos últimos onze anos, Linda Gilbert, e à inspi-
ração espiritual de sua cura, o amigo, colegae mentor, dr. Kief-
fer Frantz.

William O. Walcott
analista junguiano, Los Angeles

*O tíitulo original do livro é Body and Soul, "Corpo e Alma'".

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0 DIA EM QUEO GATO MORREU

A história começacom Willie Willie é um gato. Cinza co-


mo uma nuvem escura, e listrado como um tigre. Willie me am.
De um jeito simples e descomplicado, assim: "Claro que te amo,
quem está duvidando?". Mas agora tudo isso é passado.
Ele fazia parte da família. Havia Linda (minha esposa), Mi-
chael (meu enteado de dez anos), eu e Willie. Era como se fôsse-
mos seu bando de leões. Deitava-se na cama conosco, na cama
de ver televisão. Ron. Ron. Ou passeava por cima da gente a seu
bel-prazer.
Tenho também uma "comunidade'" maior ao meu redor, em-
bora bastante reduzida pela idade e coisas assim. Os médicos fa-
zem parte dela, minha equipe médica particular. Monitoram meu
corpo mês a mêse me dizem como cuidar dele. Havia um peque-
no tumor na virilha, provavelmente um cisto gorduroso, disse o
dr. Mosky. Nada realmente sério, mas vamos retirá-lo para dar
uma olhada.»
Eles me pegaram de jeito no hospital e o dr. Kukenbecker,
o cirurgião, começou a escavar minha virilha. Por que demorava
tanto? Devagar, cuidadosamente, pedacinho por pedacinho, co-
locou tudo dentro de um vidro que foi direto para o laboratório.
Ele ainda me costurava, quando chegouo relatório com o resul-
tado.
Era um melanoma, disse com voz monocórdica, como se es-
tivesse rezando o terço. Eu sabia o que era um melanoma, mas
não me dei conta disso naquele momento. Apenas no dia seguin-
te, quando me lembrei de que melanoma era câncer, e um tipo
muito grave, principalmente quando se espalhava pelos nódulos
linfáticos. Asituaçāoeraessa - melanoma,nóduloslinfáticos,
virilha esquerda.

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Era necessário, disse o dr. K., encontrar a origem, o foco pri-
mário. O melanoma começa em algum lugar e se in ltra pelos nó-
dulos linfáticos. Nada era visível na super cie da pele; portanto,
era necessária uma cirurgia exploratória. Uma incisão de cercade
15 centímetros que se juntaria à minha antiga cicatriz de hérnia,
percorrendo o peritônio até as artérias mais profundas e os nódu-
los linfáticos, toda a planície pélvica.
O dr. Kukenbecker tem 1,96 metro de altura e pesa 98 qui-
los. Ele inspira ao mesmo tempo con ançae medo. Qualquer pes-
soa com todo esse tamanho deveria ser pelo menos duas vezesmais
sensível e madura do que eu. Mas como conseguiria remexer deli-
cadamente a cavidade mais sensível do meu corpo, com aqueles
dedos enormes?
Eu tinha umacomunidade o dr. Mosky, o dr. Klein,o dr.
Kukenbecker e também Linda, Michael e Willie. Querido Willie,
eu o amava tanto! Ele parecia o próprio Deus, com as patas em
meu rosto, lambendo minhas mãos, brincando de me arranhar.
Duas horas após o grande evento cirúrgico, lá estava eu dei-
tado na cama do hospital, ainda com restos de mancha desangue
e assombrado comno buraco de 15 centímetros em minha barriga.
O telefone tocou e ao tentar alcançá-lo senti algo como se minha
virilha estivesse se rompendo novamente.
<Estamos com um problema na família." Era Linda. "Willie
morreu'", disse ela. “A vizinha o encontrou e apareceu aqui solu-
çando." Ela perdera o marido havia apenas um mnêse agora isso!
"Já o enterrei", a rmou Linda, "peguei uma pá na gara-
gem e o enterrei, mas agora Michael está chorando, quer que de-
senterre Willie para que possa segurá-lo. Não sei o que fazer. En-
contrei Michael todo sujo, cavoucando a terra, tentando achar
Willie.".
Bem, de qualquer forma tinha que desenterrá-lo, pois o pes-
da Sociedade Protetora dos Animais avisou que era contra
a lei enterrar animais. "Coloque-o na calçada dentro de um saco
plástico e iremos apanhá-lo." Assim, Linda o colocou na calçada
dentro de um saco plástico preto com os dizeres: Gato morto.'"
Enquanto ela me contava essas coisas, o dr. Kukenbecker en-
trou no quarto. Sempre com o mesmo tom. Boas notícias, más
notícias, apenas os fatos. “Não restou nada lá" (na região pélvica),

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disse ele. "Está tudo normal. Suas artérias parecem muito boas,
sem sinais de arteriosclerose. Pode voltar para casa hoje à tarde.'
Não tenho mais uma visão estritamente racional da vida e
estou começando a acreditar que muitos dos acontecimentos já
são predestinados, de acordo com o sonho de algum deus capri-
choso. Portanto, não estranhei ter murmurado a mim mesmo:
"Oh, meu Deus, aqui estou eu vivo e Willie, morto'". E mais: Es-
tou vivo porque Wllie está morto. Ele morreu para que eu pu-
desse viver''.
Alguém da comunidade tinha que se ir e Willie fora o esco-
Ihido. De todos nós, ele tinha a alma mais generosa. Não que sou-
besse fazer grandes coisas. Embora tivesse sempre um jeito de Deus
encarnado, com in nita sabedoria instintiva, não exercia muita
in uência no sentido puramente prático. Entretanto, criava um
clima de alegria na família. E soube como morrer. Estou vivo por-
que ele morreu. E assim que penso. Esta é a minha percepção dos
fatos e tenho vivido de acordo com minhas percepções.
Estamos mudando para uma nova casa, e Michael pediu um
carpete cor-de-Willie para o seu quarto.
Hoje, sinto que estar vivo é algo realmente muito especial para
mim. Talvez ainda esteja aqui por causa de algo importante que
tenha de realizar. O que, exatamente, não sei, mas o fato de eu
não saber não causa qualquer dúvida ou confusão.
Talvez, o motivo seja escrever este livro. Escrever é di cil para
mim; ainda assim, passou a representar um caminho para minha
saúde emnocional. Nesse momento de profunda concentração, com
a tela do computador à minha frente, mergulho num outro mun-
do. Sou eu mesmo, de um modo muito especial, esforçando-me
apenas para ser eu mesmo da forma mais autêntica possivel. E
uma outra realidade, uma realidade em que me sinto inteiro e re-
novado. Acredito que enquanto escrever continuarei vivo. Mas
se parar, se perder o contato com essa realidade que cura, temo
que meus dias estejam contados.

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COM OS OLHOS DE QUEM?

Mandei uma cópia da história de Willie para o dr. K., já que


era um dos principais personagens do drama. Não soube mais dele.
Quando o vi, mais tarde, para um dos check-ups pós-operatórios,
não mencionou a história. Nem eu. Sem dúvida, ele me via como
um sonhador sentimental, muito mais desligado do que o normal
por terem aberto meu corpo, além daquela assustadora palavra
-câncer agora dentro de mim e parte de mim como mais um
sobrenome.
Li a história novamente. E a repensei. Conseguia entender
seu ponto de vista. De certa forma, me agrada seu sangue-frio,
essa atitude realista. O que é real é real e o que não se pode tocar
ou cheirar não é verdadeiramente real. Nãoo quero desmaiando
em cima de mim, enquanto seus dedões tateiam meu corpo.
A história de Willie, da forma que a criei, é como uma fan-
tasia mágica de criança. Isso combina comisso0, aquilo com aqui-
lo, porque é assim que me agrada. Quando não estou preocupa-
do com a lógica, qualquer coisa combina com qualquer coisa, de
acordo com minha vontade. É assim que funciona o nosso lado
pré-consciente. E se o corpo raciocinasse, o que provavelmente
acontece, seria com essa lógica primitiva, em linguagem de sonhos.
E quase como se o corpo estivesse sempre se comunicando,
expressando-se e se manifestando de várias maneiras. Como se
ele próprio fosse consciente, sensível, emotivo, extremamente elo-
qüente, nmas de uma forma totalmente não-verbal e não-linear.
Se pudéssemos aprender a "ser'' novamente nosso próprio
corpo, o conhecimento instintivo, infantil, animal, estaria lá, la-
do a lado, com nosso aspecto dr. Kukenbecker. Quando penso
em Willie e me deixo levar pelo fascínio irracional de sua histó-
ria, estou com meu corpo e não lutando contra ele. Então, sin-

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to-me vivo e bem. Isso me desperta um novo estado deconsciên-
cia. O tipo especial de consciência que me acompanha eestácomi-
go em tudo o que escrevo. Ela é meu objeto de busca,dessa"coj-
sa'" sobre a qual falarei mais e mais nos capítulos que seseguem.
Essa coisa, essa atitude, esse mundo de consciência diferente é o
clima psíquico onde a cura acontece. Onde se alojam ascoisasda
alma. E aquele algo que todos desejamos e buscamos, semnem
ao menos saber o que queremos ou de que necessitamos.
Médicos que cortam pessoas precisam acreditar narealidade
da carne, da lâmina, do bisturi e também na relação direta do v-
rus com o sangue, com a célula, com o nódulo linfático. O dr.
K. poderia car paralisado de dúvidas se eu o convencessedahis-
tória de Willie.
Entretanto, nós, pacientes, precisamos de nossos sonhos,de
nossas fantasias e mitologias. Deixe que o dr. K. veja ascoisas
a seu modo. Esse jeito tem respeitabilidade e até mesmofunciona
bem, na maioria das vezes, na maior parte dos casos. Eimpossí-
vel que todo mundo lá fora esteja completamenteenganado.Mas
permitam-me também encará-las à minha maneira. Não setrata
de uma ilusão, mas sim de minha experiência, de minharealida-
de, de minha verdade psicológica. E me faz bem. Eu poderiater
morrido três vezes nos últimos dez anos se não tivesseessa 'reali-
dade psicológica"" para me levar adiante. Por que a realidadedos
outros é melhor que a minha? O que é realidade a nal? Paraco-
meçar, foi uma visão limitada, rígida, objetivamente evidenteda
realidade, a provável causadora de minha doença. O esforçoque
isso requer. A tensão... Sempre ajustando, reprimindo erefrean-
do nosso comportamento, no esforço de seguir aquelemodelohi-
potético que se tornou padrão o cial de sanidade.
Sei quando me confronto com forças maiores que eu. Osacon-
tecimentos vão se desenrolando enos adaptamos a eles. Éassimque
as coisas funcionam. Con o na ciência, até onde elapossaalcançar.
Portanto, faço o que a lógica, o senso comume aspesquisasmaisela-
boradas sugerem. E então, muito além, há algo mais, algoestranho
e inacreditável. Ela, Isto, Eles, as Coisas, as In uências. Estarãome
observando? Serei o centro de algum projeto, com algumsentido?
Parece que há duas realidades. A realidade interna oudife-
renciada que mostra os acontecimentos através da nossaimagina-

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ção e fantasia e pela qual percebemos diferentes relações e signi-
cados. Ela está além do alcance dos fatos e dos sentidos; entre-
tanto, in uencia demais a formação do nosso comportamento e,
especialmente, nossas reações corporais.
Embora esse lado das coisas pareça louco e irrelevante para
a maioria das pessoas, faz parte úo ser humano. Se você conse-
guir se enlouquecer sem perder a sanidade, isso lhe trará confor-
to e talvez alguma sabedoria. Nunca fui tão saudável como ago-
ra. As crises de enxaquecae o torcicolo desapareceram, minhas
juntas estão menos emperradas e já consigo dormir à noite.
Como diz Ann Landers: "Uma loucurazinha de vez em quan-
do poderá salvá-lo de uma lesão cerebral permanente" (Los An-
geles Times, 4 de junho de 1989).
E claro que a vida é muito mais do que apenas cultivar a arte
de ser louco. Mas é um passo importante da caminhada. Mergu-
Ihar no que pintar e bendizer tudo aquilo que você é. Acolher os
impulsos bizarros, os pensamentos fantásticos, aceitá-los simples-
mente, sem questionar sua adequabilidade.
Se, como eu, você prestar atenção a algumas pesquisas, irá
se perguntar por que a nal se dão ao trabalho de fazê-las. Mui-
tas vezes, não descobrem nada de realmente importante ou, após
minuciosa coleta de dados e surpreendentes proezas estatísticas,
concluem, por exemplo,quea correlação entre tomar cafée car
acordado é de 0,73 ponto.
A realidade é verdadeiramente ilusória e sua verdade não é
a minha verdade. Com o passar do tempo, umn fato que é hoje
cienti camente provado poderá simplesmente deixar de ser ver-
dade amanhã. Entretanto, em algum lugar nesse ávido labirinto
de publicações cientí cas surge ocasionalmente uma verdade ver-
dadeira'" que muda todo o curso da civilização. Mas os grandes
gênios, que produziram essas importantes explosões de conheci-
mento, tornaram-se célebres mais por suas hipóteses surpreendentes
do que por seu árduo trabalho.
E importante testare provar uma hipótese, mas o verdadei-
ro brilho está no cérebro de seu criador. Hipóteses surgem da in-
teração de fato e imaginação. Novas verdades são descobertas por
pessoas que têm imaginação para percebê-las. Assim, a experimen-
tação cientí ca se faz necessária para veri car esses insights.

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LIMPANDO 0 JARDIM

O grande Céuma coisa séria e não pensei ingenuamente que,


de repente, tudo havia melhorado só porque o gato havia morri-
do. O gato me ajudou e me salvou de um perigo imediato, mas
eu ainda tinha medo, dúvidas e preocupações. E difícil sentir-se,
de uma hora para outra, um simples lho de Deus, após Ihe de-
sencavarem um melanoma. Sem dúvida, restaram limpezas e mu-
danças a serem feitas. Na verdade, alguns anos mais tarde, houve
uma recidiva do melanoma.
Tive um sonho com o dr. Kukenbecker. O dr. K. do meu so-
nho não é igual ao outro dr. K. Respeito ambos, mas o dr. K.
do sonho tem as qualidades de curandeiro arquetípico e de velho
sábio.
No sonho, ele me levou de minha velha casa para uma nova.
Então, começou a tirar as ervas daninhas do jardim. As ervas da-
ninhas eram aquela praga que chamamos erva-do-diabo e que pa-
rece sempre voltar a crescer e se espalhar por todo lugar, não im-
porta quantas vezes arrancamos suas raízes.
Vi ervas daninhas eliminarem canteiros de ores e rapidamente
assumirem o controle de todo um projetopaisagístico. Eo cân-
do jardim, com tentáculos virulentos, que agarra cada peda-
ço de chão, centímetro por centímetro. Eu estava agora em uma
nova casa, talvez com uma nova atitude, e isso era promissor. O
dr. K. ainda estava comigo, removendo pacientemente os "peque-
nos estranguladores'", mais ou menos como havia arrancado pe-
dacinho por pedacinho de minha virilha. Precisava da minha ajuda,
como se eu não pudesse apenas observar passivamente e nutrir
a esperança de car bom.
Ainda sonhando, agora na imaginação, perguntei-lhe como
poderia ajudá-lo, e o dr. K. do sonho respondeu: "Seja forte no

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que diz respeito à saúde; assim, seu desenvolvimento saudável con-
quistaráe esmagará o intruso. Esforce-se também paradesenrai-
zar e destruir o inimigo".
Perguntei-lhe como poderia fazer isso. Ele respondeu:
“Pense. A resposta está em você. Estamos lidando com a mor-
te, com o destruidor. Ele é o usurpador diabólico, o veneno, a
malignidade, o mal. Representa todos os sentimentos distorcidos,
sombrios, maldosos, vingativos, desonestos e odiosos. E também
o sentimento derrotista, amargo e pesado de que tudo está perdi-
do, de que tudo está acabado. É a víbora, o polvo, os tentáculos
prontos para agarrá-lo e submetê-lo. Tenha consciência dessessen-
timentos sombrios, mas não se entregue a eles. Peça ajuda ao gran-
de poder benevolente. Sinta a energia do triunfo e da superiori-
dade. Fique com o poder da cura. Sinta-o. Abrace-o. Deixe-o vi-
ver em você. Volte-se para seus sonhos e descubra a esperançane-
les. Aí estão a plenitude, a esperança que equilibra o desespero,
a energia de vida que contrabalança a energia de morte. Não faz
sentido morrer antes da hora. A parábola da sua vida chegaaté
o futuro, não a interrompa'.
Quatro dias depois, tive outro sonho.
Estava numa reunião pro sional. O dr. Gallupapresentava
um trabalho sobre o desenvolvimento de uma doença. Tratava-se
de uma mulher que fora informada da necessidade de sesubme-
ter a uma cirurgia. Sua história era apresentada num livro com
ilustrações que a mostravam conversando com os parentes, sain-
do para o hospital, falando como médico, despedindo-se doama-
do, etc. Havia também uma série de poemas nos quaisexpressa-
va seus sentimentos. Então, em outra cena, aparecia um dia som-
brio e chuvoso. Encontrava-me junto a meus colegas de pro s-
são, líderes em suas respectivas comunidades, quando vimos uma
procissão de elefantes saindo do oceano, caminhando em nossa
direção. O dr. Gallup, já falecido, era um clínico-geral quefazia
parte da banca examinadora que me interrogou no exame oral -
nal, antes de me tornar um analista junguiano. Sua presençano
sonho, portanto, faz lembrar uma importante vivência deinicia-
ção e dá a impressão de que uma nova experiência iniciatória está
ocorrendo. Não a iniciação de meu ego consciente em um novo
papel pro ssional, mas a de meu aspecto feminino interior, de

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minha ânima. A ânima, geralmente, é tida como a imagem da al-
inconsciente do homem. Podemos concluir, então, que a
alma adoeceu e que meu corpo, em sua enfermidade, está re e-
tindo a enfermidade de minha alma mais profunda.
Podemos também perceber que um processo de cura está em
andamento, o que pressupõe alguns procedimentos bastante ra-
dicais, como, por exemplo: internar-se num hospital, viajar para
um país estrangeiro, despedir-se dos parentes e até mesmo do
amante. Concluímos ainda que esse é um processo de iniciação
que lhe permite alcançar um patamar mais alto.
Uma vez que no sonho a mulher havia escrito poemas, senti-
me na obrigação de registrá-los para que viessem a ser literalmen-
te um instrumento pelo qual seus sentimentos poéticos pudessem
car claros. Assim, da maneira mais livre possível, deixo que ela
use minha mão e minhas palavras para dar uma forma visível a
seus anseios e seu desespero. Eis aqui um de seus poemas:

Como posso chorar


Quando ninguém ouve meu pranto?
Como posso derramar lágrimas
Quando elas já secaram?
Como posso ver quando a escuridão turva meus olhos?
Vem, amigo abençoado, e me descobre
Iu e eu. "

E aqui está outrO poema, que expressa seus sentimnentos no


momento em que chegou ao hospital para se submeter à cirurgia
e tudo o que iria lhe acontecer:

Verei a luz da aurora


Após essa longa noite de ansiedade?
Virá uma visão mne despertar
da morte para vida nova?
Salve-me alguém da escuridāo.
Faze brilhar a uz para que eu possa ver.

Poderão me perguntar por que acredito conhecer a interpre-


tação de meus sonhos. Um simples sonho não pode ter diferentes
interpretações? Sim, é verdade que há muitas interpretações possí-

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veis e todas elas plausíveis. No entanto, o sonho é meu e veio a
mim para me ajudar. Portanto, o signi cado correto éaqueleque
cala no meu espírito, que transforma minha consciência e meu
comportamento. Além do mais, a maior parte do que z commeus
sonhos não foi interpretação, mas sim ampliação eenriquecimento
da experiência pelo uso da inmaginação.
Tomei consciência de como havia negligenciado a minha âni-
ma e vivido predominantemente o meu lado masculino. Antes,
se de algum modo a notasse, seria apenas como uma simples di-
versão, estimulando meu desejo sexual, tornando-me charmoso
e provocante. Agora, ela parece pronta para atingir sua maturi-
dade, para conduzir a função da alma, inspirando-me eguiando-
me ao encontro com o divino.
A transformação pela qual ela estava prestes a passarmepa-
recia ser aquela que a conduziria mais rmemente ao Self, pen-
sando no Self como o centro da psique, lugar de imensopoder
onde o ego e o inconsciente, o sagrado e o profano, se encontram
e se unem.
Senti que a manada de elefantes que saíam do oceano e vi-
nham em minha direção representava o advento do Selfdentro
da consciência. Junto com as imagens dos elefantes, ouvi a can-
ção When the saints come marching in ("Quando os santosche-
gam marchando'"). Relembrar a imagem desses poderososanimais
se balançando majestosamente, enquanto caminhavam em minha
direção, me dá uma sensação de força, de vitória, de poder in-
vencível. Sinto dentro de mim a energia da saúde, de uma inteire-
za que pode vencer todos aqueles pequenos estranguladores".

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A CURA É UM MILAGRE

Foi assim: o gato morreu, o câncer desapareceu e não voltou


mais. Pelo menos até agora. E me sinto vivendo em estado de des-
lumbramento, como uma criança. Gosto disso. É muito bom. Não
há tensãoe não me into absolutamentedoente. Soua criançaque
sempre fui. Livrei-me de muitas responsabilidades. De alguma for-
ma, o mundo continua girando sem o meu controle. O ar me aca-
ricia, e minha energia se expande ao meu redor.
Isso acontece porque voltei a ser criança. A pensar como crian-
ça, a me mover como criança e a crer como criança. Recentemen-
te, cortei o dedo. Ele sangrou e latejou de dor; entretanto, hoje,
uma semana depois, está novinho em folha. A cura é um mila-
gre. A própria vida é um milagre, assim como a rosa que brota
da semente e do botão e o casulo que dá origem à borboleta.
Por cura devemos entender milagre. Tudo o que acontece no
céu e na terra me in uencia e é por mim in uenciado. Quando
camos de fora, observando a vida à distância, analisando-a,
separando-a em partes distintas, interrompemos a vida em nós e
quebramos um elo vital da corrente da existência. A partir de nossa
visão isolada, concluímos que A causa Be achamos que entende-
mos tudo. Acreditamos que possuímos a sabedoria. Na realida-
de, esse tipo de compreensão é o começo do caos, porque é uma
falsa sabedoria e nos faz sentir superiores à rosa e à borboleta.
Em nossa so sticação, perdemos a base fundamental da sabedo-
ria. Perdemos nossa capacidade de deslumbramento. E deixamos
de apreciar o milagre da vida.
De alguma forma, nos sentimos mais seguros quando pode-
mos imaginar o mundo dentro de um modelo mecânico racional.
Então, perdemos a capacidade de nos extasiarmos diante das ma-
ravilhas que nos cercam. Essa é a ruptura. Rotina, labuta, segu-

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rança, uma mente cautelosa, com visão estreita, tristementedes-
conectada das in nitas riquezas que nos cercam. Quando acons-
ciência está morta, com medo da imaginação, dos impulsos e do
instinto, essas atitudes opressivas restringem o corpo e impedem
O processo de cura.
A doença, quando chega, traz consigo a idéia da inevitabili-
dade da morte e a fantasia do próprio corpo sem vida. Ao pen-
sarmos no entorpecimento inerte da morte, nos damos conta de
que, em todo lugar, ao nosso redor e dentro de nós, acontece o
surpreendente milagre da vida. Como o mundo é lindo! Com que
tristeza tomamos consciência de que em breve não mais desfruta-
remos dessas maravilhas, e o espírito da vida deixará nosso corpo
para sempre.
Dessa forma, a doença e os pensamentos de morte que a acom-
panham podem expandir noSso estado de consciência em direção
a um universo maior e minimizar as preocupações do cotidiano.
Ao nos despertar para a realidade dessa dimensão sagrada, adoen-
ça promove a salvação e a cura da alma.
Geralmente, nossa consciência é limitada, cheia de fatos e coi-
sas, bloqueada para o milagre eo esplendor da vida e, portanto,
não muito a nada com nosso poder de cura.
Esse "outro mundo", a que chamamos arquetípico, ou a sa-
grada dimensão, parece ser completamente diferente de nosso pró-
prio ego. Não é "parte de mim'" nem meu inconsciente". É o
inconsciente. Não-pessoal ou suprapessoal. Quando nos defron-
tamos com ele, quando ele nos toca, sentimo-nos na presençado
divino. Ficamos surpresos, assustados, admirados, como se esti-
véssemos frente a algo misterioso e milagroso. Senti-me assim
quando Willie morreu, como se minha vida tivesse sido tocada
pela mão do destino.
Esse encontro do humano com o divino torna possíveis as
curas milagrosas. Não é su ciente ter em você a energia da cura.
Ela está sempre lá. O importante é perceber sua presença sica.
O processo de cura só atinge todo o seu potencial quando
Ocorre esse encontro consciente. Lembremos Fausto, a quem os
espíritos disseram: "Estávamos sempre aqui, mas você não nos
via'". E Jesus, que se lamentou: "Estive no meio de vocês, mas
não me reconheceram".

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Segundo Platão, sempre que alguém se depara com a expe-
riência da beleza original (uma experiência arquetípica), as "pe-
nas da alma cam eriçadas. Como ele explicou antigamente,
acreditava-se que a alma tinha penas eo arrepio da pele seria o
brotar das penas da alma.
Até hoje, quando nos deparamos com aspectos de um mun-
do superior, sentimos um arrepio, um calor, um calafrio, como
penas que começam a se eriçar.
Quando as energias arquetípicas tocam nossa consciência, há
um encontro entre o sagrado e o profano. E uma experiência ao
mesmo tempo sica e psíquica não apenas na mente, mas tam-
bém no corpo, com uma nítida sensação de penas que se eriçam.
Essassensações sicas podem ser um pouco perturbadoras no iní-
cio, mas, à medida que nos tornamos mais con antes nesse es-
tado diferenciado', podem tornar-se verdadeiramente extasiantes.
Uma onda de calor percorre o corpo, curando por onde quer
que passe, como se fosse uma onda repentina de saúde. É a união
momentânea entre corpoe alma. Quando isso acontece, você se
sente inteiro e curado de todos os males. Teoricamente, esse en-
contro entre o sagrado e o profano acontece todos os dias. Entre-
tanto, ele não é consumado por mneio de rituais feitos mecanica-
mente, con ssões anotadas num diário, meditação constante nem
preces rotineiras à Virgem Maria (embora essascoisas possam aju-
dar, quem sabe?). Tudo o que sabemos é que, quando o encontro
acontece, sabemos que aconteceu. Porque, nesse momnento, as pe-
nas se eriçam. A beleza e a verdade estão presentes. "Isso é tudo
o que sabeis e tudo o que precisais saber.""
Quando os opostos se tocam, liberam uma extraordinária
energia. Os milagres da cura são então possíveis e alterações sur-
preendentes, boas ou más, acontecerão. Portanto, não importa
quão e cazes e necessários possam ser os remédios tradicionais,
como repouso, dieta, medicamentos e outros cuidados, não há in-
ervenção de efeito tão dramático quanto aquela que pode ocor-
rer quando mente e corpo, ego e arquétipo se encontram para criar
a alma.

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VIVENDO A ALMA

Você já pensou em se perguntar: "Quem sou eu? Quem sou


eu mesmo, a nal?"". Por um lado, parece a pergunta mais simples
do mundo. Por outro, como na advertência "conhece-te a ti mes-
mơ", encerra todos oS mistérios do signi cado da existência humana.
Digo a mim mesmo que devo ser muito mais do que aparento
externamente. Sou um psicólogo com algumas conquistas pro ssio-
nais. Sou um homem com uma esposae lhos adultos. Tenho uma
biogra a e uma genealogia. Provavelmente, duas páginas em espa-
ço duplo seriam su cientes para conter um relato satisfatório de mi-
nha aparência externa. Podenmme considerar um introvertido e um
tipo depessoa intuitiva, com um corpo metade atleta, metade rato-
de-biblioteca. Escrevi alguns artigos, z algumaspalestras, partici-
pei do time de natação da faculdade, etc. A nal, nada de extraordi-
nário. Todas as informações a meu respeito que pudessem interes-
sar a alguém continuariam a caber em duas páginas, em espaço duplo.
Certa vez, um de meus alunos que pretendia se formar ana-
lista quis saber no que eu estava trabalhando, a minha especiali-
dade, meu interesse, “qual era a minha". Responder a essa per-
gunta foi quase tão difícil quanto responder quem sou eu. De re-
pente, me senti um fracasso. Talvez devesse estar apresentando
seminários sobre feitiçarias ou escrevendo artigos sobre a vida ín-
tima de Edgar Allan Poe. Mas não. Tudo levava a crer que eu
não tinha qualquer interesse especial. Eu simplesmente cumpria
meu papel. Por que não estou descobrindo o corpo do sonho co-
mo Arnold Mindell ou o eixo do ego como Ed Edinger ou discor-
rendo sobre a relação mente-corpo como Ernest Rossi? Fiquei ima-
ginando se deveria prestar algum tipo de grande contribuição ao
mundo como essas ou seria su ciente dizer apenas: "Eu sou. Ve-
ja, estou vivo"?

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É estranho. É como se não estivesse fazendo nada,delibera-
damente, por não querer me envolver com aquele meu lado ani-
mal louco e voraz, que anseia por algum destaque ou até fama.
Entretanto, tenho que fazer alguma coisa. Tenho que me reali-
zar, ser alguém. E então há uma voz que responde: "Ora, você
é alguém'".
Se sou alguém, imagino que ele aparecerá e se mostrará em
ação. Não há diferença essencial entre ser e fazer. O "eu" quer
emergir e ser aquilo que for possível. Não é megalomania, quero
somente dizer: “Por favor, Mundo, veja o que eu sou, não sou
maravilhoso? Não seríamos todos maravilhosos se nosconhecês-
semos?".Quero me conhecer para que todos meconheçamepa-
ra que possa gerar toda a energia que tenho dentro de mim. Não,
não é grandioso. É apenas mediano. Einstein era mediano. Sha-
kespeare era mediano. Marilyn Monroe era mediana.
Seres humanos em sua condição normal, de simples sereshu-
manos, são surpreendentemente maravilhosos por natureza. Em
algumas pessoas o prodígio transparece e se torna evidente a to-
dos. Podemos ver claramente a maravilha que um ser humanopode
ser um Einstein, um Shakespeare, uma Marilyn Monroe.
Ah! Se ao menos nos conhecêssemos! Essa busca do eu é o
anseio pela alma. Eo anseio arquetípico de voltar asercriança.
Ser criança é tão importante porqte assim me parece quando
revejo o passado -, quando eu era criança, eraverdadeiramente
eu mesmo, vivendo minha própria alma. Por outro lado, quando
me tornei adulto representava papéis que se pareciam muito pou-
cO com aquilo que eu realmente era. E isso causava tanta tensão,
desgaste e sofrimento ao corp0, que me pareceu extremamente im-
portante buscar minha alma e conhecê-la tão bem, que a incor-
porasse no meu comportamento ea sentisse no meu corpo diaria-
mente.
A alma vive no limite exato do milagre. Quando encontro
minha alma, mesmo que seja de vez em quandoe apenas por um
momento, nesse exato momento sinto que aconteceu um milagre.
A alma é minha parte mais verdadeira. E diria mais, a parte de
todos nós que se assemelha mais elmente à imagem de Deus. Se
isso for verdade, a experiência da alma é também a experiência
de Deus, como se a própria alma zesse contato e se unisse

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com Deus. O que é uma idéia extraordinária – a alma em si é
onde o humano eo divino se encontrame se tocam. Além disso,
se estamos presentes e vivemos no plano da alma, somos fortes
e saudáveis tanto sica como emocionalmente, até onde é possí-
vel para um ser humano.
Na prática, porém, a maior parte do tempo vivemos como
impostores, escondendo nosso verdadeiro eu. Somos alienígenas
em terra estranha, confusos e perturbados, não sendo exatamen-
te do jeito que achamos que deveríamos ser. E, uma vez que não
entendemos o que está faltando, temos a esperança patética de
que o vazio será preenchido por um emprego melhor, um carro
mais so sticado ou o parceiro ideal no amor. Essa dolorosa insa-
tisfação foi chamada de perda da alma. Sem ao menos perceber,
procuramos freneticamente nossa alma, aquele ingrediente que fal-
ta para nos sentirmos completos e, nalmente, tornar nossa vida
feliz. Se nada mais der certo, quem sabe não seja possível ganhar
na loteria? Ansiamos por um milagre, por um novo eu brilhante.
Deve existir alguma coisa, alguma pista dessa possibilidade real;
caso contrário, por que continuaríamos ansiando por ela? Há al-
go dentro de nós que projetamos para o mundo e que, na verda-
de, não pode ser encontrado lá fora porqueé a nós mesmos que
buscamos.
Durante vinte anos desejei ter um Cadillac. Hoje, tenho um
Cadillac, mas não me basta. De alguma forma, a alma saiu do Ca-
dillac. Sempre quis ter uma casa com uma linda vista. Hoje, tenho
uma casa com vista para o mar, mas a alma também saiu da casa.
Se você viu um oceano, viu todos. Desejava uma mulher que tives-
se pernas compridas e gostasse de sexo. Acredite ou não, eu a en-
contrei. Era minha alma há tanto perdida, mas a alma afastou-se
dela também. Então, comecei a olhar as mulheres misteriosas, poe-
tisas com olhares vagos. Mulheres assimsâãomais difíceis de encon-
trar, mas elas existem, e a que encontrei conquistou minha alma por
vinte e três semanas. E, então, veio a desilusāo.
Comecei a me ver como duas pessoas diferentes. Há o eu em-
pírico descrito por tudo o que sou externamente. E háo que cha-
mo de meu próprio eu. Há momentos em que digo a mim mes-
mo: "Este é meu eu real. Agora sou verdadeiramente eu''. Enes-
ses momentos tenho uma sensação muito grande de felicidade, ale-

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gria e plenitude. Pareço então me expandir para além
normal, como se a alma incluísse não somente a mim, mas tam-
bém poderes acima de mim. E um eu maior, muito maior do que
minha própria pessoa, mas, por alguma razāo, totalmente eu.
Não é fácil descrever. Mas tive essa sensação aos 11 anos, no
dia em que ganhei uma bicicleta. Sempre desejei ter uma bicicleta.
Nada era mais importante para mim do que ter uma bicicleta. Nunca
me cansaria de andar de bicicleta. Seria sempre um prazer, nunca
mais me sentiria entediado. Havia momentos em que todas as mi-
nhas facetas eram absorvidas pela experiência alegre da bicicleta e
eu e do vento em meu rosto. Naturalmente, não durou para sem-
pre, mas, enquanto durou, foi glorioso.
Em outra ocasião, passeando pelo bosque, sentindo o cheiro
acre da cicuta e das folhas no chão eo esforço dos músculos da
perna, pensei: "E isso aqui. E isso que devo fazer. Agora estou
onde deveria estar"
Quando minha alma é tocada, sei por que estou aqui. Meu
propósito e meu destino é apenas ser, o simples fato de ser a alma
que sou. Isso me basta. É mais do que su ciente.
Acho que uma pessoa jamais chegaria a perceber a alma se tu-
do corresse bem com seu ego. Na verdade, é através das derrotas
do ego que descobrimos a oportunidade de viver a alma. Temos que
experienciar a completa humilhação eo fracasso da egolatria para
ao menos começarmos a perceber que falta alguma coisa. As desi-
lusões vêm uma atrás da outra, porque, em última análise, tudo “lá
fora'' é decepcionante. Só Deus é Deus. E só a alma é a alma.
Mesmo se “alma parece ser um conceito nebuloso ou poé-
tico demais, é preferível conservá.lo assim. Conhecer
mo" é tão impossível quanto conhecer a Deus. Não deixemos que
o mistério se perca, simulando um conhecimento que não temos.
Tudo o que podemos fazer é conversar sobre a palavra "alma",
ampliá-la, exempli cá-la, fazer anedotas e analogias. Quando a
encontrar, você saberá.
Se a encontrar e car com ela, estará curado. Segundo o -
lósofo Plotino, na doença o corpo perde contato com a alma e
não se parece com ela. Viver a alma signi ca que nossas ativida-
des, nossos pensamentos, todo o desenrolar da vida são a expres-
são dos signi cados e intenções da alma.

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Nas últimas semanas, tenho observado um bulbo de açucena
brotando da terra e se transformando nesa admirável criação car-
mesim. Sei que a ciência esclarece como tais fenômenos aconte-
cem. Mas, por favor, não me dêem explicações. Deixem-me ser
um louco romântico de miolo mole. Aquilo parece mais verda-
deiro do que as sábias explicações cientí cas. A admiração, o mis-
tério e a ignorância também fazem parte dele e seria, digamos,
não cientí co deixá los de fora.

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TRAGA A CADEIRA DE RODAS

Antes de ter câncer, tive outras doenças graves, mais exatamen-


te: artrite e tuberculose. Acho importante narrar minuciosamente
minhas experiências com elas, pois oferecem uma compreensão va-
liosa do signi cado das doenças e das possibilidades de sua cura.
Pensei que só me restava a cadeira de rodas e que a vida, co-
mo a conhecia, tinha acabado. A doençaestava evoluindo havia me-
ses. Dor, rigidez e fraqueza. Isso vinha ocorrendo há dez anos. Pri-
meiro o quadril, depois o joelho, em seguida cotovelos e tornoze-
los, dedos das mãos e dos pés. Até o maxilar! Artrite reumatóide,
uma estranha doença invasiva havia assumido o comando do meu
corpo. E da minha mente, pois cava questionandoo signi cado
de tudo, o motivo de estar aqui, confuso e desconectado, sem ter
certeza do que era verdadeiro ou importante. Quando setemna cons-
ciência do corpo durante todo o tempo, com suas dores e fadigas
determinando tudo o que se faz, há um grande realinhamnento de
prioridades e nada é exatamente como antes. A vida em si parece
muito frágil, o que modi ca radicalmente a perspectiva da gente.
Principalmente, se você não tem certeza de que irá andar no-
vamente. Uma tarde, me deitei para tomar banho de sol e, como
uma tartaruga quando vira de costas, não consegui me levantar.
Tive que rastejar até os degraus e subir devagarinho, serpentean-
do como uma minhoca. Algumas vezes, o medo me dominava.
Especialmente porque morava sozinho e cava observando os mús-
culos se atro arem por falta de uso e me perguntando se um dia
caria com as juntas tão travadas e rígidas que não conseguiria
nem ao menos me arrastar até a geladeira.
O corpo estava fraco e a mente, sombria. Eu me levantava,
engolia um café da manhã, dava uma folheada em alguns jornais
e, duas horas depois, voltava para a cama, exausto.

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No entanto, estranhamente, a despeito de tudo e apesar da
dor, em alguns momentos havia um forte sentimento de prazer
e uma alegre sensação de satisfação por estar doente. O mundo,
com todas as suas responsabilidades, desapareceu, tornou-se ir-
real. E uma nova consciência emergiu, como se, com o ego enfra-
quecido, o inconsciente se permitisse extravasar e com isso reali-
zasse um encontro mais íntimo entre o sagrado e o profano.
As vezes, queria apenas me deixar levar e imaginar que era
capaz de ouvir o barulho da grama crescendo. Soava como o ron-
ronar de um gato. As plantas, as árvores, a terra, o ar, tudo ao
redor vibrava suavemente como o ronronar de um gato.
Estava tomando 24 aspirinas por dia. Os ossos secosraspa-
vam uns contra Os outros, e a dor era horrorosa. Comecei a ima-
ginar o responsável pela coreogra a de minha vida. Comcerteza
não era eu. E essa em si já era uma lição. Era algo que já imagi-
nara e que aprendera na teoria, mas que jamais assimilara pois
só então me conscientizei de que, quem quer que estivessetraçan-
do meu destino, esse alguém não era eu.
Nem eu, nem toda a equipe médica, na condição de repre-
sentantes remunerados, tínhamos qualquer poder de modi car a
situação que estava dominando minha vida. Foi uma licão de hu-
mildade. Já me sentira inferior antes, mas nunca humilhado, nunca
nessa situação existencial especí ca.
Era a dor. Ela era maior e mais forte que eu. Tinha mais au-
toridade sobre mim do que eu mesmo.
Pensava na dor como minha adversária e senhora. Certa noite,
quando senti que não poderia mais suportar, conversei com ela:

EU: Você me prendeu em suas garras e não quer me soltar.


Se o que queria era toda a minha atenção, você conseguiu. Qual-
quer coisa que faço, sou obrigado a fazer com você. Mesmo en-
quanto escrevo, sinto-a em minha mão e em todo o meu corpo.
Sinto um medo terrível de você. Por quê? Por que você está aqui?
DOR: Estou aqui para chamar sua atenção. Eu me faço pre-
sente. Meu poder transcende o seu. Minha vontade é mais forte
que a sua. Você não consegue me vencer, mas eu o venço com
facilidade.

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EU: Mas por que você precisa mostrar este poder e com ele
me destruir?
DOR: Eu faço isso porque não deixarei mais que você me
despreze. Você não pode mais me tratar como se eu não existisse.
Você conhecerá mneu podere se humilhará diante de mim. Sou
o começo de todas as coisas, a origem de tudo, e sem mim nada
existe. Quero que você me veja, me sinta, me ouça e me entregue
o melhor de si. Quero estar intimamente em contato com você em
seus pensamentos. Agora, com a minha presença, não poderá mais
viver como antes. Não poderá mais usar sua mente comno fazia,
pois deve entregar-se somente à minha contemplação. E disso re-
sultarão muitas coisas boas.

Esse foi o primeiro de muitos diálogos com a deusa dor. O


começo de uma percepção diferente da dor. Eu a sentia como uma
presença, uma inteligência, uma entidade, um demônio extrema-
mente poderoso, intimamente envolvido comigo. Ela ainda era do-
lorosa, mas também uma companheira que, embora me castigas-
se, me amava profundamente.

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O GUIA ESPIRITUAL

Muito do conhecimento que tenho sobre a cura veio de meu


"guia espiritual'". Aos 64 anos, tive um sonho com o dr. Kieffer
Frantz, um colega já falecido. No sonho, ele havia tecido um ca-
saco para mim. Era folgado, em estilo mexicano, com estampa
de cores vivas. Lembrava o casaco colorido de José e comecei
acreditar que, de algum modo, meu mito minha história ou
meu signi cado – era muito parecido com o dele. O dr. Frantz
tinha sido como um pai para mim e sentia que ao me presentear
com o casaco estava me convocando para continuar sua obra ina-
cabada. O dr. F. se dedicava profundamente à pesquisa da al-
ma'" e estava particularmente interessado na unidade do corpo
e da psique. Por muitos anos, havia sido diretor da Clínica C. G.
Jung, de Los Angeles. Era muito respeitado por sua integridade
e delidade aos mais altos padrões tanto no ensino quanto no tra-
balho com os pacientes. Poucos meses antes de morrer, havia se
demitido da clínica para dar mais atenção às suas pesquisas sobre
cura e à jornada de sua própria alma.
Comecei a escrever diálogos em que conversava como dr.
Frantz. Após concluir cerca de 35 deles, quando estava quase com
a idade em que ele havia morrido, o tema de nossas conversas pas-
sou a ser a cura. Sem a ajuda desses diálogos, jamais teria uma
compreensão tão grande da cura como tenho hoje. Quando mer-
gulho em meus diálogos com o dr. Frantz, tenho a sensação exa-
ta de estar me dirigindo ao seu espírito, e sou muito grato por pos-
suir o dom da fé, que me permite viver essa experiência.
A loso a da doença e da cura que aprendi com o dr. Frantz
era cristalinamente simples. A doença representava uma quebra
emnossa inteireza, um distúrbio na relação do homem como uni-
verso. A posiçāo do homem no universo é de delicado equilibrio.

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Cada indivíduo é único, mas também está, de alguma forma, i-
gado ao restante do universo.
Como a rmou Kieffer: "Quando morri e vim para esta di-
mensão, subitamente experienciei a totalidade, de uma forma que
nenhum mortal jamais conheceu. Estava imerso na totalidade. O
universo uía através de mim como se, de repente, eu fosse tudo,
conhecesse tudo. Agora, ao estar neste lugar, sinto-me perfeita-
mente bem. E, nalmente, conheço a natureza da saúde. Toda
doença é uma investida violenta contra o que somos. Por alguma
razão, camos tão alienados do todo da vida, que se faznecessá-
ria uma invasão radical para romper nossa estrutura enrijecida.
Precisamos ser enfraquecidos e esmagados até que, nalmente,
quemos tão amolecidos e liquefeitos, que o espírito da vida pos-
sa nos inundar novamente. Estar doente é estar desligado, isola-
do. Toda doença é como uma força invasora que tenta destruir
nossa estrutura rígida e nos torna mais inteiros.
Todo sintoma invasor traz consigo um conteúdo simbólico
eétarefa da alma se expandir para que possa agregar os símbolos
e as imagens invasores. Isso pode ser uma batalha, mas, em últi-
ma análise, nãoé uma luta e sim um processo de libertação e ex-
pansão, à medida que ultrapassamos nossos limites anteriores.
Perguntei então: "Mas o que, especi camente, posso fazer
tenho as juntas travadas, sinusite alérgica ou dores no peito?
Parece que não adianta só aceitar, é mais lógico fortalecer minhas
defesas e livrar-me dos sintomas
Sim, respondeu ele, "mas essa fala ainda é do seu velho eu.
A doença não nos deixará viver como antes. Na verdade, ela vem
para destruir o que somos. As obstruções em seu trato respirató-
rio e a rigidez dos movimentos resultam da maneira como você
tem se comportado. De uma postura cautelosa, defensiva e me-
drosa, de uma preocupação em controlar as lágrimas, a raiva e
oS movimentos livres e espontâneOs. Os sintomas são o pranto do
corpo, alertando-o de que já basta. Os sintomas vão quebrá-lo
exatamente nos lugares em que você mais se conteve.33
É verdade", concordei. Eles atacammeuslocaisdedefe-
sa. Abrem caminho através de minha couraça. Mas não consigo
simplesmente deixar que tudo ua para dentro e para fora de mim.
Está acima de minhas forças."

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Talvez pareça, mas não é verdade. Nunca recebemos mais
do que podemos agüentar. Mesmo que isso signi que morrer, po-
demos lidar com a morte. O objetivo da cura não é permanecer
vivo, mas sim caminhar em direção à plenitude. A cura pode acon-
tecer na morte, morte como a cura nal. O que quer que chegue
a nós, é nosso, e podemos enfrentá-lo."

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DORES NO PEITO

Acho que grande parte da história de vida de uma pessoa ou


de seu histórico familiar ca gravada nas deformidades e enfer-
midades do corpo. Minhas velhas dores no peito estavam voltan-
do, a dor aguda lateral da época em que tive pleurite, aos quinze
anos. A dor no peito despertou minha preocupação de que, as-
sim como minha mãe, eu também iria contrair tuberculose e mor-
rer. E, efetivamente, junto com a artrite reumnatóide e a debilida-
de resultante, havia problemas adicionais. A anáise de escarro
revelou que eu era portador de tuberculose ativa.
Eu me dei conta de que tinha uma identi cação inconsciente
minha mãe, principalmente no que se referia ao corpo. Era
como se o meu corpo fosse o corpo dela ou, até mesmo, eu fosse
seu próprio corpo. Ou meu corpo fosse efetivamente minha mãe.
Então me pareceu que não se tratava apenas de minha mãæ, mas
da própria grande deusa mãe. E eu tinha as dores no peito e to-
das as outras doenças, porque estava em péssimas relações com
ela. Conversei com a deusa mãe e ela me contou que esperava ser
amada e adorada por mim.
Assim, aprendi a rezar para a deusa mãe, a amá-la e a venerá-
la. O que era uma grande façanha, pois sempre fui uma pessoa an-
timãæ. Na época em que me preparava para ser analista junguiano
e tentava convencer meus mentores do grande potencial que tinha
como analista, tive um sonho que anunciava que antes de me tor-
analista teria de conseguir a permissão de duzentas mães.
Por meio de minhas preces à deusa mãe, desenvolvi o senti-
mento de que ela estava o tempo todo a meu lado e de que era,
literalmente, o meu corpo. A idéia de que o corpo é Deus e, por-
tanto, deve ser adorado, era um conceito totalmente novo para
mim. Quando Ihe perguntei quem era ela, respondeu:

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<Sou a origem, a base e o alicerce de sua vida. Seu corpo
ainda é meu, como sempre foi, meu presente a você. Ame-meem
seu corpo e em seu corpo me venere'".
Parei de me preocupar em ser vaidoso ou narcisista e sim-
plesmente me encantei com a beleza de meu corpo. Então,surgiu
uma energia calmae suave dentro de mim, quepareciaincompa-
tível com qualquer doença.
Kieffer, meu guia espiritual, enfatizou também anaturezadi-
vina do corpo. "O corpo", disse ele, é o que há demaisimpor-
tante. Ele tem sido negligenciado porque as pessoas nãovivem
dentro dele, mas sempre limitadas por seus sentidos e no mundo
exterior. O corpo é principalmente um objeto do qual falam eso-
bre o qual pesquisam. A razão e o pensamento são o que háde
menos divino e mais humano. Mas Deus está no corpo.'"
<"Quando o corpoé adorado, quando suasformasgraci
e funções misteriosas são exaltadas, recobra o esplendor e a tran-
qüilidade. Se anmamos suas formas e funções, se o adoramos co-
mo o deus que é, então brilhará com o poder da natureza.Ele
se renovará e devolverá radiante todo o amor que recebe.Mesmo
na velhice, quando de nha, o corpo ainda é bonito, e Deusestá
nele.»

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ONDE BROTA A PAIXÃO?

Essa coisa do corpo é tão importante que vou continuar fa-


lando dele. Eo corpo que está doente, certo? Se o observarmos
mais atentamente, veremos com muita clareza que ele não rece-
beu bastante amor e atenção. Em nossa cultura, a despeito da tão
propalada "nova liberdade'', o corpo e, principalmente, os ór-
gãos sexuais não são mencionados entre os membros de qualquer
sociedade bem educada. Parece que temos medo de certas fun-
ções e secreções espontâneas do corpo e de algumas partes que
não ousamos nomear, além de quase todas as suas manifestações
incontroláveis. Quando irrompe uma manifestação de paixão, ela
pode se dever ao álcool ou à cocaína ou pode ser um ato impulsi-
vo, isolado, enquanto o resto da pessoa, a parte bem comporta-
da, está momentaneamente inativa.
Escrevi um capítulo sobre a cura holistica em um livro diri-
gido a pro ssionais de saúde e leigos relativamente cultos. Acre-
ditem ou não, a palavra "vulva'', que fazia parte do texto, foi
cortada. Acho que o motivo do corte foi não tê-la descrito sob
a óptica clínica, como um órgão impessoal, mas sim como um lu-
gar felpudo, sedoso, macio, exível, como a pata de um tigre, es-
corregadio e intumescido de sangue, que me convidava a entrar.
Em outras palavras, não falava como um professor de anatomia,
mas como uma pessoa comum.
Noscírculosquefreqüentei - dosquaisestoutentandome
afastar -, esse tipo de neutralidade é regra. O que falta é a pai-
xão. A ausência de paixão é como uma doença cultural, e deve
car claro que tal negligência e negação do corpo não pode fazer
muito bem à saúde do corpo. Não quero que isso soe como um
apelo a mais pornogra a. E que a paixão está bem presente no
corpo e, geralmente, é gerada próÓximo à base da espinha, na re-

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gião dos órgãos genitais. O rumo que vai tomar depende do de-
senvolvimento individual de cada pessoa. Mas é lá que começa,
e se você quiser ser sensual, amoroso, o tipo de pessoa com um
corpo vivo, precisa receber o estímulo que vem da base e parar
com essa história de sufocá-lo.
Para me libertar e conseguir esse tipo de prazer, tive que me
ornar muito mais íntimo da deusa que conheci em conseqüência
das dores no peito. Aos poucos, à medida que conversava com
ela, tornava-se muito mais uma deusa do amor do que uma deusa
mãe.
Parecia-me um enorme desa o. Durante toda a vida havia
sentido esses anseios, como uma loucura se apoderando de mim:
ver o corpo feminino, ansiar ardentemente pelo toque sensual,sen-
tir aquela estranha sensação na boca do estômago. Como essas
sensações podiam continuar vivas e não reprimidas, sem tomar
a forma de algum episódio psicótico selvagem, fruto da minha
fantasia? Não podia manter tudo aquilo contido e ainda esperar
que meu corpo não sofresse. As energias precisam uir com to-
das as válvulas abertas, com os membros soltose livres e os mús-
culos do esfíncter relaxados. Não podia ser criativoe saudável com
todos os canais naturais bloqueados,
Conversei com a deusa mulher que, àquela altura, se parecia
mais com um sábio oráculo. Falei sobre o desejo louco e iracio-
nal que sentia por uma certa Beverly, uma pessoa cheia de vida.
<*Não pode ser de todo mau'", disse a ela, "porque meu anseio
tem um enorme poder de vibração. Sei que não posso expressá-lo
e não o farei. Mas o que posso fazer?
<Por favor, não o reprima desta vez'', disse ela, isso pode-
rá matá-lo. Não diga que é impossivel. Deus sabe como deve acon-
tecer, e você tem que se arriscar. Direcione o seu desejo, mas não
O censure."
Bem, ela não disse nem sim, nem não. O desejo era terrivel-
mente forte e tinha de lutar dentro de mim com o sim e o não.
Escrevi o seguinte no meu diário:
"Dia após dia, continuo lutando penosamente, me a igin-
do, me preocupando, passivo, recuando para dentro do cenário,
como se eu não fosse nada. Entretanto, eis aqui Kundalini, re-
freada dentro de mim. Aqui está Mercúrio. Aqui está Shakti. Sou

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mais do que aparento ser. Por que escolhi este papel, para man-
ter Kundalini aprisionada na garrafa? Medo. Medo. Medo de quê?
Devo destampar a garrafa e descobrir? Algum dia, antes que se
vá para sempre, devemos correr esse risco. Temos que viver antes
de morrer. Se for pedir demais, teremos que descobrir",
Então, falei à senhora lá de dentro: "Quer que destampe a
garrafa, que abrace Shakti?"".
Quero. Abra a garrafa. Abrace-a. Mas não me pergunte co-
mo. Sinta a vida. Sinta a energia. Deixe-a agitá-lo. Viva o poder.
Sempre lhe pedi para se abrir, se dar, ousar. Nunca lhe pedi para
se esconder, para se encobrir, para não ser nada. O poder está na
pélvis, na base de sua espinha, em seu tronco. Ele agita os pulmões.
Ele é enorme e inacreditavelmente poderoso. Sinta-o. Ame-o. Vi-
va com ele. Não o deixe desaparecer. Que bênção! Que sentimento
maravilhoso! Você é um vaso que contém o grande poder da vida.
Que paz! Que esplendor! Está sempre com você. Não o deixe esca-
par. Carregue-o. Deixe-o conduzi-lo. Honre-o. Ame-o. Idolatre-
o. Deixe que se expresse em tudo o que você faz. É seu, para viver
com ele. Você não sabe como ele irá se manifestar, mas sabe que
sem ele a vida é nada."
Enquanto ela dizia essas palavras, senti as penas da alma se
eriçando eo calor subindo e descendo pela minha espinha.
A medida que os diálogos com a deusa prosseguiam, tornava-
me mais alerta à intensidade dos meus desejos. Parecia que não
havia nada mais importante, era como se contivesse minha pró-
pria salvação e todas as coisas importantes e como se tudo o mais
pudesseserprontamentedeixadode lado - carreira,reputação,
riqueza -, seconseguisseapenas satisfazeressedesejo de paixāo.
Percebi que ele sempre estivera comigo, despertando os desejos
mais sublimes e extasiantes. Revelava-se o centro eo signi cado
de tudo. AS outras coisas só tinham signi cado na medida em que
o contivessem, que o simbolizassem ou que se tornassem seu
substituto.
Era o anseio pela mulher sensual, mas muito mais que isso,
era como se contivesse tudo o que até então fora o oposto de mi-
nha vida, tudo o que era feminino, sensual, emocional, tudo o
que deixara para trás, ao supervalorizar o masculino e o intelec-
tual. Parecia que o signi cado maior de estar vivo era ter um corpo.

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Vivê-lo e desfrutá-lo enquanto o temos. Enquanto minhas fanta-
sias eróticas progrediam, via a mulher interior cada vez mais co-
mo a personi cação da sensualidade e via a proximidade com ela
como o meio de recuperar minhas funções mais negligenciadas,
aquelas relacionadas ao mundo das sensações, com a pura inti-
midade física, o prazer do toque, do gosto, do cheiro e também
o impulso para se unir eroticamente com outra pessoa.
Era a deusa do amor que representava todas essas qualida-
des. Freqüentemente, conversava com ela. "E por mim quevocê
anseia"", dizia ela. *Você anseia pela união dos nossos corpos,
o seu com o meu. Chamei-o para torná-lo pleno, parapreencher
sua vida com Eros. Sou a deusa do amor. Eu, Afrodite. Nãose
lembra de mim? É você que desejo. É a mim que deseja. Corpo,
calor, o ardor do desejo. Não pode tê-lo só na mente. Nãopode
tê-lo somente dentro de você. Você precisa ser homem parauma
mulher. A deusa está em toda parte. Procure-a, toque-a,abrace-a,
penetre-a. Você sente Kundalini se agitando?O ardor eocalor
da paixāão crescendo? Sinta seu corpo. Fique com ele. A baseda
espinha... A caldeira esquentando... "3
Kundalini estava sendo despertada. Conseguiria dar contade-
la? Conseguiria deixar que ativasse meu ser? Poderia dar-lhevoz,
braços, pernas, expressá-la, deixá-la viver?
Oh, amada'', gritei, Afrodite, amada, évocė?Desperte-
me. Enriqueça-me. Abrigue meu ser. Viva em mim.Finalmente
eu a recebo de braços abertos. Abrirei os portões e deixarei ome-
do de lado. Deixe-me tomar seu poder em minhas mãos.Deixe-o
vibrar. Sacuda-me. Abrace-me. Deixe-o a orar.'"
Eu a vi ondulando, contorcendo-se, brilhando noescuro.
"Grande deusa'", exclamei, 'por favor, viva em mimparasem-
pre. Não me deixe nunca. Agora, guardo seu poder dentrodemim.
Sinto-o agitando-se apaixonadamente. Você veio e estácomigo,
querida e eterna Afrodite, sempre jovem. O que é a vida semvo-
cế? Vazia, rígida, morta e velha. Agora você resplandeceebri-
Iha. Eu abri a garrafa. Você está comigo, e como brilha! Iso é
poder e poder em abundância. Kundalini, Deusa, maravilha.Mi-
nha alma se expande de admiracão."
Enquanto passava por essas experiências, tinha aimpressāo
de que nada no mundo inebria tantoo corpo,preenche-o
com

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tantas sensações de alegria e vibrante vitalidade, como as sensa-
Ções eróticas que sobem pela espinha. Naturalmente, esse desper-
tar do Eros afeta também as relações externas e me abriu a mui-
tas tentações; por isso, é preciso ter sabedoria para escolher quando
dizer sim e quando dizer não. Descobri que os momentos com
Afrodite in uenciaram profundamente meu comportamento. Pa-
recia que as pessoas de ambos os sexos se sentiam mais atraídas
por mim, como jamais acontecera. Agia de uma forma totalmen-
te nova. Um dia, por exemplo, conversando com uma senhora
em quem jamais havia tocado, sem qualquer pensamento prévio
ou preocupação, meus braços a enlaçaram num gesto natural e
apropriado.
Sonhei que estava com uma mulher. Dessa vez, sem abraços
eróticos. Nossos rostos estavam colados, tocando-se lenta e cui-
dadosamente, os lábios se roçando, beijando-se suavemente.
Foi uma das experiências mais sensuais de toda a minha vi-
da. Estava ali, acontecendo em um sonho. E não tanto nos ór-
gãos genitais, mas em todo o corpo. Era a sensualidade cem ve-
zes ampliada pelo elemento $imaginação", por estar nos pulmões
e em toda a super cie do corpo, tanto quanto na base da espi-
nha. O mais leve toque de lábios, de dedos ou o encontro de olhares
era mais selvagem e excitante que a maior orgia que alguém pos-
sa imaginar.
Continuando o sonho em minha imaginação, disse a ela: "Es-
calamos juntos os chacras e estão todos iluminados"'.
"Era tudo o que desejava", respondeu ela. “Penetrei todo
o seu ser. Centímetro por centímetro, cada recanto profundo, to-
da a superfície. Encontramo-nos agora face a face. O poder da
vida está no rosto. Está em todo lugar. Iluminou os planos mais
elevados. Deus penetrou seu ser mais consciente e o êxtase é ex-
traordinário. Deus está vivo em seus olhos, seus ouvidos e em sua
visão interior. Agora, Ele nos conduzirá até o centro e a essência
dos domínios divinos onde ca a fonte. Veja, Deus está conosco
e o poder está em toda parte.""

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A IMAGEM POR TRÁS DO SINTOMA

Percebi que cada dor, cada doença, cada sintoma tem um


componente psicológico. Esse componente é a parte simbólica, a
maneira como nossa imaginação percebe a doençaeo sintoma.
Por exemplo, quando conversei com a dor da artrite, minha ima-
ginação percebeu-a como um demônio ou um deus que buscava
minha intimidade. Como era de se supor, à medida que nossa in-
timidade crescia, ele se sentia menos propenso a me torturar com
a dor. A dor no peito encerrava todo aquele conteúdo simbólico
de que eu tinha o corpo de minha mãe ea idéia de que devia amá-
la e venerá-la através de meu corpo. Por outro lado, havia o pen-
samento negativo de que minha mãe me puxava para o túmulo,
para junto dela.
Geralmente, é di cil entender o conteúdo simbólico. Entre-
tanto, ele está sempre presente. Se nos permitirmos penetrar o sin-
toma suavemente, lá está a imagem. Mesmo depois de curado da
artrite reumatóide, ainda tinha alguma dor residual e fraqueza no
pé esquerdo. Apresentei o problema a Kieffer, explicando que es-
tava fazendo tudo o que podia, massageando, exercitando e
forçando-0.
"Ora'', respondeuele, é claro que você utiliza todasessas
práticas, mas o problema real está nos símbolos. Que me diz do
seu pé? Qual a imagem que tem dele? Pode falar um pouco sobre
ele?"
"Sim", respondi. Vejo um velho manco de bengala. Não
está muito preocupado com o pé aleijado. Já o aceitou e voltou
sua atenção para outras coisas."
"Que coisas? Que tipo de pessoa ele é?"
"Tem a mente muito viva. Acho que pode ser considerado
a pessoa séria, religiosa talvez, uma espécie de lósofo. Ele é

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como um sábio professor. As pessoas o procuram porqueeleas
inspira e Ihes proporciona insights."
“Então", respondeu Kieffer, "veja bem. Todasessasquali
dades estão encerradas no pé doente. Na verdade, não temim-
portância se melhorar ou não. Isso vai se resolver por si, poisnão
é esse realmente o problema. O fato é que você tem ignoradoesse
velho interessante. Talvez o problema do pé ocorra paraquevo-
cê possa mancar um pouco e assim sentir sua presença,sentir-se
um pouquinho como ele, mesmo que seja só por algunsinstan-
tes. Provavelmente, sua presença o fará mudar um bocado.Ve-
ja, quando pára de amaldiçoar os sintomas e se aprofundanas
imagens, a cura acontece. Mas ela nunca começa no local dosin-
toma. Seu pé não melhora. Talvez mais tarde isso venha aacon-
tecer, mas não será a primeira mudança. Inicialmente, temque
se curar na alma.
"0 paradoxo é que a ferida, a doença são também otesou-
ro. O sofrimento sico concentra sua atenção. Mas, então,semer-
gulhar fundo nele, encontrará muito mais: lembranças,fantasias
e medo do futuro. Como quando teve as dores no peito etodas
aquelas imagens voltaram sua mãe e a doença, sua identi ca-
ção mística com ela. Era exatamente do que precisava: voltarpa-
ra a mãe, sentir seu amor e ser nutrido por ela. E ai queseencon-
tra o tesouro, nas imagens psíquicas que surgem com osintoma.
Os sintomas provocam a abertura e literalmente oescancarampara
que as coisas de que necessita poSsam uir para dentro de si."
Então, em poucas palavras, resumiu sua visão de doençae
de cura. "Quando você ca doente", explicou, é comosetives-
se sido escolhido ou eleito, não para ser limitado ou inválido,mas
para ser curado. A doença sempre traz consigo a própria curae
a cura de sua personalidade como um todo. Se tomar para si a
nova experiência e a conservar, com a dor, O medo e todas asima-
gens que os acompanham, será curado e alcançará umaplenitude
muito além da pretensa saúde que tinha antes.'"
Naquele momento, minha grande pergunta era como.Como,
se estou tão destruído pela dor que não consigo nem aomenos
car quieto e re etir?
"Certamente', disse Kieffer, "você quer lutar contra ela,mas
talvez, quando ela se tornar insuportável a ponto de impedi-lode

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lutar, você irá se abrir. Então, em seu desespero, estará pronto para
fazer qualquer coisa. Talvez, mande a prudência para o espaço e
continue para o que der e vier. Ễ uma batalha de vida e morte,
testando seu ânimo. Você tem que estar aberto para ser curado.
Algumas pessoas nunca se abrirão. Elas não mudam nem um milí-
metro, apenas cerram os dentes e deixam que a doença as mate.
Ao agir assim, demonstram o medo que têm das imagens. E talvez
por uma boa razão, pois, se são pessoas tão intransigentes, é por-
que tais imagens poderão levá-las à loucura. Talvez não tenham
força pessoal para assimilar o poder que há nas imagens. Portan-
to, de um jeito ou de outro, serão apanhadas pela morte ou pela
insanidade. De qualguer forma, já é um bom sinal a pessoa se per-
mitir estar consciente do próprio dilema. Tal consciência poderá
conferir a ela bastante poder espiritual para lidar com as imagens.
Esse é o seu destino. E melhor encarálo de frente.
"Bom", respondi, acho que tenho que correr esserisco. Vou
deixar que toda a loucura entre em mim, mas espero que não to-
me conta de minha sanidade. Fique comigo, Kieffer. Preciso de
Você,"
"Estou falando das doenças sérias'', disse Kieffer, "não ape-
nas de dores de cabeça, indigestão e outras coisas do gênero. Es-
tas podem ser o resultado de um jeito de viver errado e são facil-
mente remediáveis. Estou falando de coisas esmagadoras, pelas
quais não se pode culpar a pessoa ou seus maus hábitos. Uma força
externa, sem qualquer lógica, que chega e o aniquila completa-
mente. Que tem o poder de uma experiência religiosa. Então, amal-
diçoamos Deus e perguntamos: Por que eu?, como se houvesse
uma causa e um efeito, como se tivéssemos feito algo errado. Não
se sinta culpado e nem se culpe. Talvez faça parte de seu destino.
Deus não está punindo. Ele escolheu você. Ele mostra, com todo
o Seu poder,, que está lá. Ele lhe concede atenção."
Em seguida, mostrou algumas das maneiras pelas quais eu
estava impedindo que o poder das imagens chegasse até mim.
<Há muita coisa errada com você", a rmou, "e você deve-
ria estar preocupado. Você se recusa a encarar seus medos. Fica
Só na superfície das coisas. Porque tem medo de seu próprio cor-
po e de suas próprias reações. Você poderia corar ou gaguejar ou
chorar. O corpo não estaria sob controle. Por isso você evita as si-

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tuações imprevisíveis -nenhuma lágrima,nenhumsolee
bor, desmaio ou nariz escorrendo. Entenda, tudo issoyolta
pre parao corpo. Você tem medo dele. Maslembre-sedoquejá
estabelecemos: o corpo é Deus. O corpo é algo quedeve
ado-
rado. Não cabe a você controlá-lo. Você e o corpo, éissogueim-
porta. Lembre-se: ele é sua mãe; sua grande deusa. Ame-anelae
suas grandes dádivas. Deixe-a ser ela mesma emvocĝ. »

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E DAÍ SE GOSTO DE MIM COMO SOU?

Quando as pessoas estão doentes, querem car boas. Ponto


nal. Não querem mudar a personalidade, as atitudes ou qual-
quer de seus hábitos. Considere, por exemplo, fumantes com
sema, que não conseguemn parar de fumar ou alcoólatras com
problemas no gado, que não conseguem parar de beber. Se as
pessoas não podem parar, quando a causa e o efeito são tão ób-
vios, o que se pode esperar quando os elos causais são mais sutis?
Pessoas com doenças realmente graves muitas vezes estão
dispostas a se submeter a tratamentos alternativos. Geralmente,
cam mais satisfeitas se o tratamento for ministrado por outras
pessoas -massagem, música suave, imposiçāo de mãos demo-
do que sejam meramente participantes passivas. Algumas se ofe-
recem de bom grado para tratamentos hipnóticos ou de biofeed-
back. Podem até se dispor a assistir a cerimônias religiosas que
invocam energias divinas de cura. Ou, então, os mais aventurei-
ros experimentam os terreiros, cantos e tambores, as magiase fei-
tiçarias de um ritual primitivo de cura. Qualquer uma dessasexx-
periências ou todas elas podem ter um efeito bené co, mas a
cura só será duradoura se tais experiências ajudarem o indivíduo
a se lançar em direção a um novo modo de vida.
As vezes, os psicoterapeutas explicam a um paciente que a
enxaqueca, por exemplo, é causada por seu perfeccionismo e que,
se conseguir car um pouco mais calmoe ser menos exigente, a
dor de cabeça irá embora. Ou, ao paciente de câncer dizem que
a doença manifesta-se em pessoas <boazinhas'", que nunca cam
Com raiva e que assumem a culpa de tudo o que acontece ao seu
redor. Então, será aconselhado a ser um pouco mais duro com
0S outros, mais gentil consigo mesmo e viver mais em função do
prazer e menos das obrigações.

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Em outras palavras, estou dizendo que, às vezes, épossivel
identi car a personalidade que tem predisposição à doença.Po-
demos dizer ao paciente, com alguma razão, que se eleconseguir
mudar os padrões de comportamento arraigados é bempossivel
que a doença desapareça.. O problema é que conhecer tais fatos
parece ter muito pouco ou nenhum efeito sobre ascondiçõesfísi:-
do paciente e pode, de fato, piorá-las.
Na verdade, as pessoas não mudam só porque alguémdisse
que devem mudar. Mesmo que concordem, na maioria dasvezes
são totalmente incapazes de realizar uma mudança genuínadeati-
tude e de comportamento. Se uma mudança de rumo for provo-
cada por pura força de vontade, não será realmente umatrans-
formação, mas simplesmente uma fonte de maior estresse.O la-
do mais prejudicial de tudo isso é a culpa. A maioria daspessoas
já se sentem bastante inferiorizadas e culpadas só por estaremdoen-
tes, e impor-lhes outra carga de culpa, sugerindo que seuajuste
neurótico foi a causa de tudo, cria o pior tipo de atmosferamen-
tal para a cura.
O paradoxo é que elas precisam realmente mudaro compor-
tamento e a perspectiva mental, mas não conseguem ou não o fa-
rão, e dizer-Ihes que devem realizar algo que lhes pareç
vel torna a situação ainda mais insuperável. Entretanto, emmui-
tos casos há a necessidade clara de uma total reestruturação da
personalidade. A necessidade é de virem a ser cada vez maisaqui-
lo que a natureza planejou que fossem e deixarem para trás toda
a bagagem neurótica que carregam, não por culpa delas.
Quando Kieffer falou em alcançar a imagem que está portrás
do sintoma, trouxe à baila a importância de penetrar em outra
dimensão. E uma maneira de ver a doença em sua dimensão não
estritamente sica. É olhar a "alma" da doença. Mas, aomesmo
tempo, advertiu, não deveríamos car obsessivamenteansiosos
para nos livrarmos dos sintomas. O sintoma, na verdade, não é
o problema. Ele é simplesmente a sua manifestação visível. O pro-
blema é a maneira global de pensar, sentir e agir. O sintoma é um
tipo de indicador que mostra que algo saiu errado com omeca-
nismo como um todo. Em geral, a maioria das pessoas nãocon-
segue encarar tal possibilidade, a possibilidade de que, atéesse
nomento, toda a sua vida e todas as suas percepções de vida es-

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tavam erradas. Ë difícil encarar a idéia de eliminaro velho eu e
começar novamente do nada, com premissas totalmente novas.
Entretanto, é exatamente isso que se deve fazer.
Na realidade, a doença em si faz parte de seu crescimento ru-
mo à "revolução"" na maneira de ver as coisas. A doença ataca
e exige efetivamente que sejam realizadas mudanças. Infelizmen-
te, há inúmeros casos de indivíduos in exíveis que jamais muda-
rão. O tema de sua canção é My Way. Seu mote é "Gosto de mim
como sou'', mesmo que ninguém mais os suporte. Entretanto, as
pessoas que mais se culpam e criticam agarram-se obstinadamen-
te aos velhos hábitos. Ser um reeducador ou um psicoterapeuta
não é tarefa fácil. Os pacientes, no fundo, quase nunca querem
mudar, e, na realidade, bem mais lá no fundo, eles realmente de-
sejam mudar. Existe um anseio nostálgico pela reconciliação com
um eu, há muito perdido, do qual se lembram vagamente -quan-
do lembram.
Descobri que é necessário ir contra o senso comum. Não
adianta dizer ao doente: “Encare isto e aquilo relacionados a sua
alma doente, eles contribuíram para sua doença e se quiser sarar
deve mudar''. Esse tipo de abordagem direta e sensata não resol-
ve nada e faz a pessoa sentir-se pior. Portanto, se alguém gosta
de si como é, digo: "Otimo, é um bom começo. Fico contente
de ver algum sentimento de bem-estar e satisfação. E disso que
precisamos".
Direi também que dentro dele estão todas as tendências e to-
dos os sentimentos adequados e instintos saudáveis que irão tirá-
lo do abismo.
"Fico contente que goste de você mesmo do jeito que é, por-
que descobrirá mais coisas em você para gostar e posso ver que
isso o fará sentir-se ainda melhor e gostar de si mais do que nunca."
E óbvio que a coisa menos útil do mundo a fazer seria impu-
tar aos pacientes mais culpa e responsabilidade por serem como
são. São os sentimentos de alegria, esperança e harmonia que es-
timulam as energias da cura e não mais culpa.
Entretanto, não podemos esperar que tais atitudes
e transformações bené cas ocorram só porque as prescrevemos.
O objetivo é ser individualizado, fertilizado, regenerado, trans-
formado e, portanto, curado. Não podemos impor ou desejar que

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isso aconteça. Nem podemos esperar a cura dos sintomassema
cura da pessoa como um todo. O processo de cura emseuverda-
deiro sentido é, portanto, individuação. Individuação écomoche
gar em casa, é um tipo de renascimento do eu autêntico,verda-
deiro e completo.
O paciente, como mostrei, não consegue escolher ouserins-
truído para fazer isto ou aquilo. Não é um processológico,sujei-
to à força de vontade ou a qualquer procedimentoracionalmente
correto. É um milagre da natureza. Como terapeutas, o quepo-
demos fazer é cativar a pessoa em direção ao processo. Uma ez
iniciado, a natureza se encarrega de conduzi-lo e realiza osmilagres.
Estamos a rmando, portanto, que dentro de cadapessoaexis-
te um outro lado. Há uma outra pessoa dentro de cada umdenós.
Vamos chamá-la a "criança que já fomos". Há tambémumano-
va maneira de pensar. Vamos chamá-la de fantasia ouimagina-
ção" ou "o mundo dos sonhos"". Se, como terapeuta, euconse-
guir conduzir o paciente a entrar nesse mundo e leválo asério,
é provável que se interesse e seja cativado por ele, com umacon-
centração profunda e uma vontade renovada de acreditar e deser
envolvido pela mesma plenitude que experimentava nasbrinca-
deiras infantis. Se o zer, terá realizado algo importante. Terá
abandonado a habitual postura rígida e autodirigida do ego,com
ênfase no bom senso, no controle, no conformismo e naprudên-
cia, e se deixado levar de um jeito mais fácil e natural pela cor-
rente da vida.
Se for tomado por essa fascinaçãoe se permitir sermoldado
e renovado através das incursões pelo mundo da fantasia, nunca
mais será a mesma pessoa.

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EXISTE UMA HISTÓRIA

Espero não ter sido mal compreendido quando a rmei que


sentimentos mais alegres, harmoniosos e estimulantes levam à
cura. Em geral, os sentimentos saudáveis e positivos não apare-
logo de início. Nem podemos produzi-los apenas a partir da
força de vontade. Também faz mal evitar, reprimir ou negar to-
dos os pensamentos negativos – ou mesmo a culpa. Eu não dis-
se: *Livre-se da culpa'". Disse apenas: "Não acrescente mais àquela
que já existe".
Há uma linha mestra muito mais importante que qualquer
outra coisa: a verdade. Temos de ser total e completamente ver-
dadeiros com nós mesmos. O chamado pensamento positivo é al-
go frágil e sentimentalóide se estiver apenas encobrindo a reali-
dade. A alma não oresce na mentira. A verdade é o elixir. A ver-
dade é a panacéia. A verdade é o mais precioso dos ingredientes
psíquicos. e é quase um sinônimo para Deus.
Fui obrigado a dizer a mim mesmo: *Encare a realidade, ami-
go, você tem câncer –C-Ä-N-C-E-R. Há uma grande probabili-
dade de que morra antes do m do ano'.
Há sempre uma tendência muito forte no sentido da nega-
ção; por isso, temos de saber como evitá-la, como entrar na reali-
dade dos sentimentos e parar de encobri-los. Quando estou no pa-
pel de psicoterapeuta e tenho que lidar com uma pessoa com ten-
dência à negação, sei que, se em algum momento ela for capaz
de transpor essa barreira, esse será o momento. Agora que a doença
a esmurrou e a enfraqueceu, talvez a criança angustiada, escon-
dida lá no fundo, esteja pronta para pedir socorro.
Mesmo quando todas as técnicas terapêuticas tenham falha-
do, ainda restam os sonhos. Um sonho pode surgir como um sal-
vador, trazendo esperança, sugerindo um caminho. O sonho é a voz

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da alma. Sua função consiste em nos preparar para a jornadada
alma. Essa é a coisa mais importante a fazer. Lembre-se deque
estamos doentes, em primeiro lugar, porque nos afastamosdajor-
nada da alma. Precisamos retomar a história. E a história danossa
vida, e o sonho surge para nos relembrar.
"Lembre-se'", diz ele, "essa é a história. E isso que estáacon-
tecendo agora e é aqui que você deveria estar."
C. G. Jung descobriu que os sonhos têm uma funçãocom-
pensatória. Eles trazem à tona aquilo que omitimos. Elescontam
o outro lado da história. Na verdade, dizem: "Isso tambéméver-
dadeiro. Não se esqueça desses outros grandes acontecimentosque
também estão se desenrolando". Os sonhos nos impelem a ser-
mos mais completos, verdadeiros e autênticos.
Eles fazem também com que nos sintamos bem, porquenos
põem em contato com amigos há muito perdidos. Ecomnoumen-
contro, uma volta ao lar. Trazem símbolos poderosos,cheiosde
encantamento e fascinação. Têm o poder de prender nossaaten-
ção, como um livro emocionante, cheio de suspense, que nãocon-
seguimos parar de ler.
Sim, o outro lado é sedutor e nos conduz a um outro mun-
do. E, então, nos envolve com sua magia até que não maispossa-
mos distinguir um mundo do outro. Os sonhos são tão reaisquanto
a própria vida. E a vida é como um sonho. Onde um começa e
o outro termina não parece ter importância. O melhor de tudo
é que nos faz sentir bem, pois provoca uma extraordinária dimi-
nuição da tensão e uma agradável sensação de calor. A história
continua – nos nossos sonhos e na vida diária. Se conseguirmos
superar nossa descrença e recuperar a capacidade imaginativa da
criança, daremos o maior passo em direção à saúde verdadeira.
Há uma história acontecendo e fazemos parte dela. Não im-
porta se é agradável ou desagradável. Ela é apenas a história cer-
ta. Então, encontrei minha história e sei, sem nenhuma sombra
de dúvida, que estou onde deveria estar. Nem mesmo uospergun-
tamos: "Sou feliz ou infeliz?". Eu apenas sou, e é certo e bom
que eu exista e esteja aqui fazendo o que faço. Não tenho a míni-
ma idéia do rumo que irá tomar, mas isso não me causa medo,
apenas excitacão e curiosidade. Se eu estiver por inteiro nessa his-
tória, isso me trará grandeza e alegria. Esse é o amor fati ("'amor
ao destino'"), que deve ser em nós uma forte aspiração.

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Meu destino se revela. Sou uma criança e descubro minha
vida. Coisas novas e estranhas acontecem e co tomado por
elas. É o desenrolar do futuro, sempre vivo e novo, sempre sur-
preendente, uma trama fascinante que me mantém enfeitiçado em
minha trajetória sagrada.

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EXISTE UMA FORÇA

Quando tive artrite reumatóide, descobri o quanto era limi-


tado meu dormínio sobre o corpo. Por mais que tentasse
seguia controlá-lo. Não era responsável por seu projeto original
nem por suas funções básicas. Na realidade, meu corpo não me
pertencia. A doença começou a melhorar somente depois que to-
mei consciência de minha impotência.
Encare a questão da seguinte forma: há muitas coisas sobre
nós mesmos que não controlamos. Temos de nos acostumar à idéia
de que há forças que trabalham dentro de nós. Elas fazem acon-
tecer coisas contra a nossa vontade, como sintomas e doenças.
Mas, na maioria dos casos, também trabalham bené ca e silen-
ciosamente, fazendo funcionar esse milagroso organismo, sem
qualquer orientação ou cooperação de nossa parte.
E se pudéssemos de fato cooperar com essa força enorme que
habita em nós e nos controla? Como seria?
Em nome da familiaridade, vamos chamar a força de Deus,
pois é assim que sempre foi chamada. Com base em tudo o que
discutimos até agora, cou claro que as doenças potencialmente
fatais parecem sempre ter, por trás delas, um deus ou um arqué-
tipo.Essaspalavras– deus,arquétipo,símbolo,sagrado - são
consideradas sinônimas, para efeitos práticos. Tentamos barrá-
las e elas querem entrar. Derrubam as portas, forçando a entra-
da, e, ao fazė-lo, causam terríveis feridas e mutilações.
Ora, o que se deve fazer é começar a desenvolver um relacio-
namento com essas forças. E a única solução. Todas as outras pos-
sibilidades levam à loucura ou à morte. O processo de cultivar uma
aliança de qualquer natureza é esforço tão antigo quanto a civili-
zação. Vem sendo empreendido na esperança de que algum tipo
de acordo ou entendimento entre o sagrado e o profano torne as

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coisas melhores ao longo da jornada. Isso explica a longa histó-
ria de rituais, sacrifícios de animais, construção de templos,velas
acesas e milhões de terços rezados. Talvez nossos ancestrais mais
remotos soubessem de algo que nós, em nossa so sticação, aca-
bamos esquecendo.
Uma forma mais atual de harmonizar essas forças é aquela
que chamamos Imaginação Ativa. É o método já exempli cado,
através do qual encontramos as imagens divinas e com elas con-
versamos diretamente. Com essa abordagem reconhecemos que,
de fato, Deus está conosco e que podemos sentir Seu poder den-
tro de nosso corpo, chegando até a nos comunicar com Ele. Essa
idéia é diametralmente oposta àquela mais popular segundo a qual
Deus está lá fora'", em algum lugar, no céu ou no monte Olim-
po ou, em Sua onipotência, em toda parte, vendo e regendo to-
das as coisas, mas não muito interessado em mim ou em você es-
peci camente.
Tomei conhecimento do fenômeno dapresençadivina no
po quando li A Filoso a Perene, de Aldous Huxley. Trata-sede
um estudo sobre os grandes místicos de todos os tempos, com nu-
merosas citações de seus textos. Sempre que experienciavam a di-
vina presença, relatavam uma estranha sensaçãode calor no corpo.
Tive uma sensação semelhante quando estava em um campo
quaker de trabalho forçado, por ter me recusado a lutar na Se-
gunda Guerra Mundial. Ås vezes, participava dassessõesde me-
ditação dos quakers. Nesses encontros, freqüentemente um com-
panheiro era acometido por um tremor em todo o corpo enquan-
to meditava. Nunca conversamos sobre o fato, mas presumi que
estava tendo uma vívida experiência da presença. Sei que ele não
era absolutamente excêntrico ou neurótico; na verdade, era um
dos membros mais respeitados do campo, conhecido por sua sa-
bedoria, honestidade, bondade e equilíbrio.
Sem dúvida, existe uma força. Não raro, quando a experien-
ciamos, acontece de um jeito pouco agradável. Ocorrem distúr-
bios corporais sérios, como hiperventilação, taquicardia, eleva-
ção da pressão arterial, até mesmo ataques de epilepsia, paralisia
e cegueira temporária. As pessoas acordam do pesadelo batendo
os dentese com os joelhos tremendo. Há períodos de depressão
e angústia chamados de a noite negra da alma'". Curiosamente,

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quase nunca o paciente ou seus médicos conseguem dar alguma
explicação plausível para tais ocorrências.
Entretanto, existe algo que sabemos: qualquer que seja a es-
curidão, mergulhe, e a ansiedade se transformará em alegriaeo
sofrimento, em êxtase. Lembra-se de quando eu conversava com
a dor? Quando a imagem se formou em minha mente como um
ser divino e senti sua presença em todas as juntas de meu corpo?
Quando conversei com ela, senti um calor se irradiar por meu cor-
po. Era a sensação de um ser, de uma inteligência, e não apenas
de uma energia. Havia também a consciência de que ela sabia que
eu sentia sua presença. Era como uma onda de amor divino aca-
riciando meu corpo atormentado.
Essa foi a revelação que, inesperadamente, trouxe a resposta
a todas as perguntas. Quem me dera conseguisse aprender a re-
criar esse acontecimento! Se pudesse levar essa presença comigo
aonde quer que fosse! Havia lido relatos sobre curas inesperadas,
feitas por imposição de mãos de pessoas capazes de transmitir ener-
gia curativa ao corpo doente, produzindo surpreendentes melho-
ras e sensação de bem-estar e até mesmo a cura de casos conside-
rados irreversíveis pelos médicos.
Os pesquisadores que estudaram tais casos observaram que,
aparentemente, a cura se processou da mesma forma que se pro-
cessa na natureza, pela ação natural dos anticorpos e das funções
anabólicas naturais do corpo. A diferença está no fato de a cura
se dar de forma mais drástica e com rapidez bem maior.
Obviamente estamos chegando a algum lugar. Podemos
de ni-lo? Podemos mostrar aos outros como ter a mesma expe-
riência? Se, ao menos uma vez, sentirem o tépido tremor e perce-
berem que foram divinamente tocados, não poderão evitar a trans-
formação de todos os valores de sua vida. Depois disso, jamais
deixarão de ansiar por essa incomparável comunhão.
Meu próprio objetivo passou a ser cultivar a relação com es-
a energia para que, enm princípio, casse a meu lado todo o tem-
po, como um companheiro íntimo, proporcionando-me bem-estar,
segurança e a sensação de ser profundamente amado. Estava con-
victo de que, se fosse capaz de manter tal relação, meus proble-
mas de saúde aos poucos desapareceriam.

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MAIS SOBRE A FORÇA

Eu me tornei obcecado pela idéia da força. Era a única coisa


que tinha alguma importância. Aonde quer que fosse, o que quer
que zesse, estava sempre buscando a força. Algumas experiên-
cias de vida a tinham; outras, não. E era algo muito individual.
O que representava força para mim podia não ter signi cado al-
gum para outros. Se não encontrasse a força em uma pessoa, um
objeto, uma atividade, perdia todoo interesse e me afastava. A
vida é preciosa e a força, tão vital, sublime e energizante! Por que
desperdiçar um único momento do pequeno espaço de tempo que
me resta com qualquer outra coisa que não essa força que acabo
de descobrir?
"Sr. Periwinkle, infelizmente não posso car aqui nem mais
um segundo. O senhor simplesmente não tem a força.'"
E incrível como essa atitude simpli ca nossa existência. E tão
fácil reconhecer e descartar o que não é essencial! E como uma
bússola que guia meu caminho. Não tem nada de esnobismo, pois
a força pode ser a coisa mais corriqueira e simples que se possa
imaginar. Ela é única e exclusivamente aquilo que me dá arrepios.
Esse arrepio, essa corrente elétrica que faz meus pēlos eriça-
rem, pode acontecer de várias maneiras. Freqüentemente, me pe-
ga de surpresa. Mas também sou capaz de produzi-lo, voltando-
me para dentro de mim mesmo, chamando-o suavemente. Meu
desejo é tê-lo comigo todos os dias, ininterruptamente, acordar
cada manhã com sua presença e deixar seu abraço me envolver
quando adormeço. Desse modo, o êxtase é menos repentino, mas
Sua presença calorosa e constante me envolve e me preenche. En-
tão, sei que Deus está comigo e sinto-me bem.
Com algumas pessoas, em algumas situações, eu sentia a for-
ça. Se, por exemplo, havia honestidade e con ança entre mim e

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outra pessoa, entāão ela estava lá. Freqüentemente acontececom
um paciente em análise, por trás de portas fechadas.Encontramo-
nos com o exato propósito de "fazer alma''. A frase queJung
gravou na entrada da torre Bollingen é totalmenteverdadeira--
"Sempre que duas ou mais pessoas se reunirem em Meunome.
estarei presente'"- porque, quando nos reunimos comumpro-
pósito elevado, nossas almas despertame os deusessefazempre-
sentes.
Quando estou vulnerável, enfraquecido em minhacapacida-
de de lutar, ferido pela doença ou pela dor e ciente daaproxima-
ção da morte, co em maior harmonia com a natureza.Quando
somos humildes em nossa insigni cância, dóceis esubmissos,te-
mos a consciência viva da presença de Deus em todos oslugares.
E então, quando o ego tocao arquétipo, paradoxalmente adoen-
ça nos traz um efeito bené co.
A força está em toda parte, em tudo na vida. Masnossaca-
pacidade de vê-la é limitada. Assim, temos de procurar coisases-
peciais, coisas que ainda sejam capazes de nos sensibilizar.
Certa vez, achei na praia um chumbo de pescausado porpes
cadores. Tinha uma linha amarrada na ponta de tal formaque
formava um pêndulo simplesmente perfeito. Passei a vê-locomo
um instrumento divino. Ele responde sim ou não ao sercolocado
sobre objetos, girando no sentido horário ou anti-horário. Vez
ou outra uso-o quando desejo descobrir a sabedoria dosdeuses
ou preciso sentir sua força em minhas mãos.
Um dia, encontrei larvas na lata de lixo. Em vez derecuar
com nojo, como sempre fazia, quei maravilhado com suavibrante
energia. Senti-me como o velho marinheiro que, ao sersurpreen-
dido pelo esplendor das viscosas cobras do mar, foi nalmente
capaz de rezar. Então o vento soprou, o barco moveu-se e aespe-
rança renasceu.

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TERROR OU ÊXTASE

Por que, algumas vezes, a força irrompe violentamente em


nós? Geralmente, quando ela vem, é maior que a nossa capacida-
de de suportá-la, quente demais para que possamos segurá-la. Vem
junto com um pesadelo, um medo exagerado do escuro ou do des-
conhecido. Ou, então, nós a projetamos em qualquer objeto que
nos incomoda. Mas nem sempre é negativa. Pode ser uma visão
ou uma realização, uma súbita explosão de alegria ou paixāo, mas
sempre com a sensação de um "outro" que invadiu nosso espaço.
Quanto mais fechados e envolvidos estamos no mundo do
nosso pequeno ego, mais misteriosa, estranha e chocante é sua
entrada. Quando estamos enrijecidos demais, nem consegue pe-
netrar a consciência. Em vez disso, ataca o corpo, podendo algu-
mas vezes provocar doenças graves.
Teoricamente, se estivermos em Tao" ou em "estado de gra-
ça'' estaremos conscientemente em harmonia com as outras for-
ças e, portanto, os encontros não serão tão violentos. Entretan-
to, na prática, a maioria de nós evita e nega esses poderes, a me-
nos que a doença ou a psicose quebrem as barreiras. Então pas-
samos a enfrentá-la, e segue-se uma batalha acirrada. Os deuses
nos consomem e nos destroem, o corpo e a alma, ou então pre-
servamos a sanidade e somos capazes de nos expandir e incorpo-
rar essas novas forças e, conseqüentemente, orescemos em uma
alma maior.
Tenho um amigo, Henry, que cursava a faculdade de farmá-
cia. Depois de algum tempo, cou insatisfeito pelo fato de o curso
exigir constánte memorização e longas horas solitárias no labora-
tório. Achava tudo aquilo áridoe chato e não era o que desejava
fazer nos cinqüenta anos seguintes de sua vida. Certo dia, com
um misto de medo e alegria, decidiu redirecionar toda a sua car-

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reira para psicologia. Uma tarde, depois de passar algumashoras
felizes em companhia dos novos livros de psicologia, deitou-sepa-
ra tirar uma soneca. Então, como relatou, "aparentemente,estava
pegando no sono quando, de súbito, senti meu corpo vibrandovio-
lenta e incontrolavelmente, uma movimentação internaenlouque-
cedora de intensidade espantosa. Passou tão repentinamentequanto
começou. Talvez tenha perdido a consciência por algunssegundos.
Não podia ter certeza. Senti-me extremamente fraco e no iníciotive
medo de que não conseguisse me mover. Depois de algunsinstan-
tes, recuperei-me por completo, mas imediatamente re eti sobrea
possibilidade de ter tido um ataque epiléptico brando'
Após algumas semanas, teve outro ataque semelhante.Por
m, Henry foi ao centro de saúde do estudante para fazerumexa-
me de EEG, mas nenhuma causa física foi diagnosticada.
Os ataques tornaram-se cada vez menos freqüentes, atésere-
duzirem gradualmente a apenas alguns por ano. Henry seformou
em psicologia clínica, casou-se, teve lhos e procurou nãopensar
mais no problema. Nunca mencionou o caso à esposa,mesmo
quando ela demonstrou curiosidade em saber se ele tinha cons-
ciência de que, de vez em quando, tremia um pouco durante osono.
Mais tarde, quando estava na casa dos trinta, teve umaex-
periência incrível. Deixemos que ele conte com as própriaspala-
Vras:
"Comecei a ter novamente um ataque. Estavaquaseatingindo
terrível intensidade de pico, quando uma mudança súbitame
conduziu a um sonho simples mas maravilhoso. No sonho, vimeu
querido avô, morto havia muito tempo, sentado nosdegrausda
varanda, esperando que eu voltasse do trabalho.
«Vovô, você está vivo!', gritei comalegria.
Naquele momento, parecia que o terror máximo daexpe-
riência do ataque tinha dado lugar à alegria de ver vovô emmeu
sonho e, em vez do pânico epiléptico enlouquecedor, sentiuma
onda de êxtase. Em outro nível de consciência, sabia dauniãoapa-
rentemente acidental das duas experiências. Imediatamente,de-
cidi que, se eu tivesse outro ataque, pensaria na alegria derever
meu avô e transformaria aquela intensidade assustadora emèxtase.
<E não é que funcionou! Entre os trinta e os quarentaanos
tornei-me um especialista em transformar os sinaisprodrômicos

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de um 'ataque subclínico' na experiência do êxtase. Ainda não
contava nada disso a ninguém, mas estava muito contente comi-
go mesmo.
"Alguns anos mais tarde, já beirando os cinqüenta, tive real-
mente a grande experiência que me ensinou novamente o que é
humildade. Durante algum tempo, meus ataques transformados
em êxtase continuaram aleatoriamente, sempre com intervalos ines-
perados, uma ou duas vezes por an0. As vezes, eram bem leves,
outras, moderados, mas nunca preocupantes. Entretanto, a situa-
ção mudou inesperadamente, durante uma tarde, quando o ata-
que veio com uma megacarga que começou quase no meio da es-
pinha e chegou até o cérebro com tamanha intensidade que, ins-
tintivamente, soube que não conseguiria controlá-lo. Enquanto
uía para o meu cérebro, eu utuava em um líquido puro e cla-
ro, mais brilhante do que mil sóis. Senti-me completamente para-
lisado, certo de que, no mínimo, tinha cado cego para sempre.
Mais um segundo e parecia que meu cérebro iria se estilhaçar. En-
tão, sem nenhum esforço de minha parte, a intensidade começou
a diminuir junto com o que parecia uma investida de som aluci-
natório, muito alto, como o bater de asas de um bando de pássa-
ros ou abelhas. A medida que a intensidade diminuía, o som pa-
recia o de um pesado balaústre de cama batendo contra a parede,
isso porque meu corpo vibrava com tanta violência que jogava
a cama contra a parede. Mas acho que tudo não passou de um
sonho, pois, na verdade, minha cama não tem nenhuma guarda
pesada de madeira, nem cabeceira.
"Demorei quase dez minutos para me recuperar dessa expe-
riência até conseguir me movimentar e sentar-me na cama. Foi
e reconheci a semelhança entre essa experiência ea experiên-
cia espontânea de Kundalini relatada por Gopi Krishna tempos
atrás. Estava muito trêmulo e fraco, mas não tão machucado co-
mo ele. Estava também muito envergonhado. Havia perdido to-
dos esses anos brincando com o ataque de êxtase de uma forma
que agora me parecia totalmente idiota. Sabia que, para sobrevi-
ver, precisava fortalecer meu corpo de alguma maneira. Exercí-
cio sico não me parecia tão apropriado quanto o ioga. Por isso,
nos últimos anos tenho feito meditação com o pessoal zen, os su-
s, os seikhs e, mais recentemente, com a linha de meditação bu-

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dista chamada Vipassana. Minha meditação, na maior partedas
vezes, é monótona e aparentemente não produz grandesresulta-
dos. Consigo me sentar por apenas trinta minutos, mas,pelome-
nos, faço isso todos os dias. A cada ano ou dois, souacometido
por um ataque extraordinário e às vezes consigo ter o tipo deex-
periência mística característica relatada nos livros. Entretanto,pa-
rece que não tenho habilidade su ciente para me tornar sábioou
iluminado.
"Algumas semanas atrás, tive um ataque que,aparentemen-
te, poderia se transformar numa 'experiência fora do corpo'.Es-
tava cochilando havia cerca de meia hora, quando elacomeçou.
Sentia-mne exultante com a perspectiva, já que fazia bastantetem-
po que não tỉnha tal experiência. No entanto, parece que acons-
ciência do meu ego era forte demais e muito desajeitadapara
alcançá-la, e ela começou a diminuir. Recuei, esperando quevol-
tasse - e voltou. Mas, em vez de culminar demaneiradireta,pa-
receu retroceder e desviar por algum outro canal. Derepente,me
dei conta de que havia saltado alguns centímetros acima,como
uma pipoca que pula da panela. Devagar, fui puxado paracima
mais alguns centímetros e então percebi, desesperado, que oquarto
estava tão escuro, que não conseguia nem ao menoS ver ocontor-
no de meu corpo adormecido na cama. Tentei permaneceralerta,
mas depois de alguns momentos senti que acordava edeslizava
de volta para o meu corpo."

As experiências de Henry fornecem algumas provasadicio-


nais de como a sintomatologia sica está intimamente ligadaà
psique com medo, esperança, prazer ou desprazer.Vemostam-
bém como a energia arquetípica é surpreendentemente poderosa.
Henry acreditou que seria capaz de manipular a energia deacor-
do com sua vontade. Ao acolher seu avô do mundo dosmortos,
estava também se abrindo à poderosa força do grande deuspai.
Como ele mesmo sugeriu, talvez houvesse uma grandearrogân-
cia por ter a presunção de ser capaz de transformar terror emêx-
tase. Hoje, ele se pergunta se essa força não seria muito maior
do que conseguira imaginar.
Quem somos nós para desvendar a experiência fora docof-
po"? Nessa área crepuscular entre corpo e mente, nãosabemosclara

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e decididamente o que é de fato real. E ainda não estamos prepa-
rados para fazer julgamentos e recomendar: Faça desse jeito e
não daquele"". Como se tivéssemos escolha. Isso acontece, não
escolhemos. Mas podemos perguntar: "Será que é o nosso orga-
nismo se defendendo?"n "Será que estamos totalmente prontos para
o pleno encontro com o reino sagrado?"" Se deixamos o corpo,
ele não contém a experiência e então o encontro sagrado entre o
corpo e a psique não é consumado.
Em geral, quando camos doentes é porque não consegui-
mos levar adiante nosso projeto de desenvolvimento. A nova ener-
gia de crescimento impele-nos em direção à consciência, tentan-
do tornar-se verdadeira. Se conseguirmos levá-la para dentro de
nós e viver com ela conscientemente, haverá uma reestruturação
e um renascimento da personalidade.
Um poderoso desconhecido havia invadido Henry. Que bom
que ele conseguiu reconhecê-lo como seu amado avô! Isso mos-
tra em Henry uma capacidade para amar e expandir o círculo do
ego para incluir mais e mais experiênciasde vida.E quandoo ca-
minho cou difícil, não recuou, mas lutou para se tornar mais
forte e assim poder crescer para a nova experiência. Se conseguir-
mos desenvolver a capacidade de conter o invasor, sem sermos
completamente destruídos, isso nos conduzirá a sentimentos de
contentamento e de alegriae a uma serena sensação de integra-
ção com a vida.
Na melhor das hipóteses, essa não é apenas uma realização
mental, mas uma realidade sensual e vibrante, que percorre todo
o corpo. Encarando dessa maneira, eé assim que a encaro, sou
naturalmente cético quanto à validade das experiências fora do
corpo", exceto, talvez, como um acontecimento enriquecedor ao
longo da jornada, embora não seja a fantástica maravilha que,
em geral, se acredita ser.

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SANGRANDO NA BOCA

Georgia, que já está na casa dos sessenta, tem piorréia desde


os dezoito anos. Nos últimos tempos o problema se agravou; por
isso procurou um periodontista para evitar futuros sangramentos
e infecções na gengiva. Ela acha que os sintomas são o resultado
direto do estresse pelo qual está passando e a rma: Sempre que
estou estressada o sangramento aumenta".
O estresse surge de uma variedade de situações. No caso de
Georgia, resulta principalmente de sua luta com o próprio fra-
casso. Usando uma linguagem mais psicológica, Georgia tende
compensar os sentimentos de inferioridade, mas nunca é capaz
de viver à altura de suas compensações. Assim, ela oscila entre
a supervalorização e depreciação de si própria. Acha, por exem-
plo, que se tivesse alguma iniciativa largaria o marido. Entretan-
to, sente-se totalmente incapaz de enfrentar os perigos da vida se
ele não estiver a seu lado.
Seu relacionamento é o típico não-relacionamento de dois es-
tranhos. Cada um tem sua vida própria. Encontram-se entre os
lençóis e a toalha de mesa, trocam banalidades vazias, pratica-
mente sem se olhar nos olhos.
Ele gosta mesmo é de beber. Depois das seis da tarde, é diff-
cil encontrá-lo sóbrio. Trabalha em seu escritório de advocacia
e, de alguma forma, conserva a capacidade de chegar ao nal de
cada dia e trazer dinheiro su ciente para pagar o clube de golfe,
a análise de Georgiae sustentar uma casa maravilhosa e dois Mer-
cedes. Gosta muito do corpo da esposa e a persegue com desejo,
depois do primeiro meio litro de vinho.
Georgia se esforça no sentido de libertar seu casamento des-
se padrão melancólico. No entanto, as tentativas, invariavelmen-
, fracassam, pois muito além de seus bem-intencionados esforços

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está o fato de que precisa do marido. E precisa que elesejaalcoó-
lico. Sua dependência do álcool dá-lhe a segurança de quejamais
irá deixá-la e, ao mesmo tempo, a faz sentir-se superior e mais
forte que ele.
Insatisfeita com o casamento, Georgia tem se aventuradoem
várias áreas e, apesar de ter talento, energia e inteligência, sem-
pre consegue, de alguma forma, deixar de atingir as metas.
Atualmente, participa de um programa de pós-graduaçāopara
ser conselheira matrimonial. Embora estude em tempo integral,
está atrasada um ano no programa devido à demora em terminar
sua tese. Passou milhares de horas escrevendo centenas de pági-
nas, mas não consegue compilar as informações para transformá-
las em tese.
Não por falta de compreensão do tema. Conhece bemdemais
o assunto, tem idéias demais, todas ao mesmo tempo, e muito co-
nhecimento teórico que acumulou com as leituras. Ainda assim,não
é capaz de alcançar uma meta tangível. Ela sabe o que todos disse-
ram a respeito de seu tema, mas ainda não percebe as próprias idéias.
E suas gengivas sangram.
Ela teve um sonho: encontrava-se em uma o cina mecânica
onde havia um Chevrolet muito comum e barato, parecido com
um que o marido quase comprara. Enquanto conversava com o
gerente sobre o carro, percebeu que sua boca estava sangrando.
Ficou morta de medo de perder muito sangue. Lembrou-se deque
tinha hora marcada com o periodontista, mas já estavaatrasada.
Saiu correndo com a esperança de chegar a tempo. Ela corria por
entre pessoas que andavam de bicicleta, e isso a atrasou ainda mais.
Finalmente, chegou à casa de uma jovem que lhe explicou como
ir ao consultório do dentista.
O sonho e suas associações revelaram muitas coisas. A nfa-
se ao carro e às pessoas comuns mostrou-lhe o medo que teve,
ao longo da vida, de ser uma pessoa comum. Seu pai era um ho-
mem comum. A mãe, uma mulher comum. Sempre achou o ma-
rido uma pessoa bastante comum; no entanto, a imagem por ele
projetada não era nem um pouco comum. Ele havia sido o cial
do exército e agora era diretor de um escritório de advocacia muito
conceituado. Era bonitão, relacionava-se com pessoas in uentes
e, certamente, não dirigiria um Chevrolet comum.

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No sonho, quando viu o carro barato que o marido quase com-
prara, sua gengiva começou a sangrar, como se aquela imagerm de-
cadente da família fosse a ferida, o medo, o complexo. O marido
com sua bebida e sua falta de consciência poderia muito bem ser
reduzido a uma gura muito comum, até mesmo insigni cante.
Serão todas as conquistas externas apenas uma na camada de ver-
niz que pode facilmente desaparecer? Então Georgia seria nova-
mente uma criatura desamparada, com a boca sangrando.
Não se pode negar que as conquistas do marido são reais.
Mas hoje Georgia tem consciência de que ele não é o herói que
um dia acreditou que fosse. Ele se parece mais com um garoti-
nho, que a usa como se ela fosse sua mãe; ou é o pai que toma
conta dela como se fosse sua lhinha. Georgia já tem alguma idéia
desse acordo secreto. Assim mesmo considera de vital importân-
cia conservar a imagem que mostra ao mundo.
Embora muito da históriae dos antecedentes de Georgia
jam bastante comuns, ela tem espírito de heroísmo e determina-
ção para superar seu profundo sentimento de inferioridade. Não
suporta ser tratada como inferior ao que é ou simplesmente co-
mo uma mulher ou uma pessoa incompetentee desinformada. Na
verdade, ela tem boa formação escolar e amplos conhecimentos
em uma variedade de áreas.
Não é aconselhável tratar essa mulher Com condescendência.
O periodontista, por exemplo, trata-a como uma velhinha, o que
a deixa enfurecida. "Tomamos nosso remédio esta manhā?", per-
gunta ele. Ela nãoé uma velhinha trêmula que esquece de tomar
remédio. É So sticada e inteligente, bem mais do que o dentista
Por favor, tenha cuidado com a maneira com que se dirige a ela.
Mas por que tanta raiva? Que botão foi apertado? Há aí um
complexo que ela está começando a identi car. Contou-me deta-
lhadamente sobre os pais e expressou uma raiva imensa da mãe.
Georgia tem uma ferida na boca, uma ferida em sua necessidade
básica de alimento e carinho maternos. Falou do sangramento na
boca e dos dentes não muito rmes, como se representassem seu
fraco controle sobre o mundo e sua incapacidade de abocanhar
as coisas e segurá-las com rmeza.
Um lado do complexo reside nos dentes fracos, incapazes de
morder qualquer coisa. O outro, na fase oral. Georgia odeia a mãe

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que não cuidou dela como devia. E, em seu ódio, cerra osdentes.
Durante toda a vida cerrou os dentes.
Quando tinha dez anos, os pais encontraram seu diário.
Leram-no em voz alta e zeram zombarias, humilhando-a e
enchendo-a não só de raiva, mas também de desesperança,como
se apoio e compreensão fossem impossíveis naguela família desu-
nida. Ela não tem nenhuma lembrança positiva dos pais,nenhum
sentimento de que alguma vez satis zeram suas legítimasnecessi-
dades da infância.
Junto a esses traumas, recebeu também a maldição comum
às meninas. O papel da mulher era inguestionavelmente de nido
como menos capaz, menos inteligente, mais adequado aserviços
domésticos e à criação dos lhos, eternamente infantil elimitada.
Examinando as lembranças que a boca ensangüentadaescon-
dia, cou mais claro que, por trás de todas ascongquistas,daspro-
priedades, da elegante aparência e posição social, haviasentimentos
de inferioridade, impotência, ódio e injustiça. Ela é umapessoa
com uma boca que sangra e com a segurança extremamente
abalada.
Obviamente, muito de seu esforço foi no sentido decultivar
uma persona marcante e de acumular tanto bens materiais quan-
o conhecimentos e habilidades, com o objetivo de superar seu
sentimento de inferioridadee tornar-se merecedora do amor e da
aceitação que toda criança deveria ter naturalmente como umdi-
reito inato.
Discussões posteriores sobre o sonho e todas asassociações
e lembranças que provocou ajudaram-na a perceber que a ferida
na boca permeia todas as suas atividades. Percebeu como na re-
lação com o marido está recriando todos os padrões de suafamí-
lia de origem. Agora distingue o con ito que está por trásdo fra-
casso com a tese e do medo de batalhar por uma carreira. A me-
dida que aumenta sua consciência, o estresse e outros sintomas
parecem se exacerbar. E como se a determinação de abrir cami-
nho para uma nova liberdade despertasse toda a força latentede
sua resistência, de modo que, nesse momento de transição, ocon-
ito aumenta e ela parece piorar em vez de melhorar.
A construção da alma não é fácil. Todoo materialadjacente
que está por trás dos sintomas é di cil e perturbador, muitasve-

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zes acima da resistência humana. E isso mesmo, e é onde come-
çamos. Só conseguimos suportar tudo se tivermos uma visão, se
acreditarmos que tudo aquilo nos conduzirá a algum lugar. É a
busca da alma que nos inspira e nos dá condição de enfrentar o
perigo e a adversidade. Porque, em algum lugar, em alguma épo-
ca, experienciamos a alma e sua lembrança nos encorajará a se-
guir emn frente nos piores momentos.
Mas nem tudo é tumulto e escuridão. Estamos recuperando
partes de nós mesmos, reconhecendo que isso também sou eu. Com
a auto-aceitação de todo o nosso ser, tanto o lado bom quanto
O mal, há um relaxamento e uma plenitude, porque camos mais
inteiros. Estamos em harmonia. Demos os primeiros passos no
sentido de acolher tudo o que somos. Há um sentimento honesto
e saudável na plenitude, na inteireza e na liberação da tensão pro-
vocada pelo con ito internoe pelo encobrimento de noss0 eu ver-
dadeiro, diante de nós mesmos e dos outros. A verdade é a pana-
céia. Portanto, ao mesmo tempo que nos sentimos horrorizados
com a exposição de nossa vergonha secreta, também nos senti-
imediatamente iluminados e renovados.
Georgia está longe de car curada. Mas ela penetrou as ima-
gens que estão por trás dos sintomas do sangramento da boca.
Está acordando para a criança triste e perdida que precisa de aju-
da e consolo. Ela está sentindo toda a intensa raiva por ter sido
rebaixada e negligenciada. Está consciente de seu medo e de sua
fraqueza para seguir adiante com seu destino. Essas realizações
são um começo, mas, sozinhas, não trazem a cura. Segundo Jung,
a única terapia verdadeira é o contato com os símbolos, isto é,
com as imagens arquetipicas. "0 menor contato com esses con-
teúdos', disse Jung, "traz uma experiência do eterno.'" Eé atra-
vés de sua in uência que somos fertilizados, inspirados, regene-
rados e renascemos.
Georgia se preparou para a entrada dos símbolos. A con s-
são e exposição de seu lado $sombra" e a conseqüente humilda-
de esvaziaram o ego in ado, permitindo que compreendesse os
limites de seu poder e as dimensões de sua necessidade. Ả medida
que o ego recua da própria dominação agressiva, abre-se um ca-
minho para a entrada dos simbolos. Consciente de sua grande ne-
cessidade, hoje ela sabe o que pedir. "Pede e receberás.'"

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A última vez que vi Georgia, ela me relatou uma novaexne.
riência. "Estava andando no bosque com meu cachorro e,dere.
pente, tive a sensação de estar acompanhada. Soube o que era
eu mesma. Toda a culpa se foi e me senti totalmente em pazco-
migo mesma, como se tudo estivesse bem e não houvessenada
com que me preocupar. Podia cuidar de mim ou, talvez,alguma
coisa tomasse conta de mim e de todo o resto.'"
Georgia começou a jornada da alma. Agora ela acreditaque
encontrará o caminho para sua própria história e deixará o
coração ser levado para dentro da trama arquetípica. Elaprecisa
entender que as gengivas que sangram não são a essência deseu
problema. O problema é a alma. Tanto a renovação de seucorpo
como o progresso de sua alma serão auxiliados por seumergulho
voluntário no próprio destino.

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ANSIEDADE POODE MATAR

O pai de Richard morreu de ataque cardíaco. Seu irmão mor-


reu de ataque cardíaco. E Richard teve um ataque cardíaco aos
cinqüenta anos. Era como se estivesse esperando por ele há qua-
renta anos, desde a morte do pai. Felizmente, recuperou-se e ho-
je faz psicoterapia.
Revendo o passado, parece que, desde pequeno, Richard de-
senvolveu uma auto-imagem muito negativa. Temia nunca ser ca-
paz de corresponder às ambições dos paise às expectativas da es-
cola, da comunidade e dos colegas. Embora tais exigências pe-
sem muito para a maioria dos jovens, para Richard eram dupla-
mente pesadas, pois ele era, sem dúvida, uma pessoa diferente-
mais sensível, com temperamento artístico, mais consciencioso,
e suscetível demais às críticas. E, para culminar, no nal da ado-
lescência, começou a nutrir a suspeita de que talvez fosse homos-
sexual.
Essa era uma possibilidade aterradora, principalmente numa
cidadezinha do interior. Escondeu-a de todos, inclusive de si mes-
mo, pois a simples idéia de ser um 'pervertido" era mais do que
podia suportar. Conseqüentemente, todo o seu desenvolvimento
tornou-se uma elaborada negação de sua verdadeira natureza e
de todas as suas características aparentemente anormais, inclusi-
ve a tendência sexual. Quase tudo o que era real e verdadeiro a
respeito dele próprio tinha de ser escondido, enquanto procurava
se transformar naquilo que, segundo a cultura de sua cidadezi-
nha, era um jovem americano normal do sexo masculino. Saía
Com garotas e até cou noivo – várias vezes. E, apesar do pro-
fundo sentimento de inferioridade, fez um extremo esforço para
sobressair.
Jogava na equipe principal de basquete do colégio,
editor do anuário da escola, secretário da classe de bachare-

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landos. A lista de realizações que aparecia sob sua fotogra ano
livro anual da escola era mais longa que a de qualquer colegade
classe.
Entre suas últimas conquistas, estavam um certi cado depós-
graduação em administração de empresas em uma dasprestigia-
das universidades da Ivy League e um cargo em umarenomada
empresa. Aos quarenta anos, tornou-se presidente dacompanhia,
com um salário talvez dez vezes maior que o do mais ricocolega
de turma. Tudo isso a despeito do pouco interesse que nutriape-
lo mundo dos negócios. Este servia apenas para provar suaade-
quação e indiscutível masculinidade. Seus interesses autênticos
eram música, literatura, psicologia e arte.
Apesar disso, sentia-se um impostor. Principalmente noca-
samento, pois nunca amara de fato a esposa, nem sentiradesejo
sexual por ela. A vida social que levavam, especialmentecomou-
tros executivos e suas esposas, era maçante e arti cial. Richard
nada tinha em comum com aquelas pessoas. Ainda assim,pare-
cia ser o certo a fazer. Sua vida inteira era uma charada,cheia
de pressões intoleráveis, pois representava um papel que eraes-
tranho à sua natureza.
Mesmo na época da faculdade, o estresse havia sidoenorme
e agora piorava provavelmente porque estava cada vez maisen-
volvido com uma vida totalmente falsa e insuportável paraseu
verdadeiro eu.
O que chamava suas "dores de ansiedade'" tinhacomeçado
quando estava no colégio e, desde então, repetia-seesporadica-
mente. Elas provocavam aperto na garganta, pressão no peito,
batidas cardíacas aceleradas, rubor no rosto e pressão alta. Junto
com esses sintomas, vinha o medo de morrer, o que, é óbvio, aca-
bava aumentando a ansiedade.
Como era previsível, aos 53 anos teve o ataque cardíaco que
sempre esperara. Embora já tivesse uma inegávelpredisposição
hereditária ao problema cardíaco, seu estilo de vida só pode ter
contribuido bastante para ele. Essa a rmação é con rmada pela
diminuição signi cativa dos sintomas da ansiedade quando apsi-
coterapia o colocou em contato mais próximo com seuverdadei-
ro eu, produzindo mudanças em seu comportamento e estilo de
vida.

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Richard não se aposentou imediatamente após o infarto, em-
bora tivesse condições de fazê-lo. Continuou com seu jeito cons-
ciencioso, colocando tudo em ordem com cuidado. Entretanto,
o ataque cardíaco o convenceu, por m, de que estava vivendo
uma vida completamente inadequada para alguém com seu tem-
peramento. O que estava tentando provar? Agora fazia psicote-
rapia comigo e, sem dúvida, foi in uenciado pela minha visão de
que precisava urgentemente de um total realinhamento de sua per-
sonalidade, se quisesse sobreviver.
Decidiu aposentar-se, o que, de início, foi muito estressante.
Ao car mais tempo em casa, adquiriu uma consciência mais pre-
cisa da falsidade de seu casamento. As vezes, entrava impulsiva-
mente no cinema para assistir a um lme pornográ co e cava
excitado ao ver o desempenho sexual dos homens nus. Jamais ti-
vera qualquer contato sexual com outros homens, embora ansiasse
tê-lo e se entretivesse com pensamentos a esse respeito. Não ha-
via ninguém com quem pudesse conversar sobre essas fantasias.
Ele próprio não sabia quem era nem qual era seu lugar no mun-
do. E continuava apavorado com a possibilidade de outro ataque
cardíaco.
As dores na garganta e no peito provocadas pela angina
repetiam-se com freqüência. Estava convicto de que tinham rela-
ção com seus sentimentos de segurança e bem-estar. "Uma parte
de minha personalidade está causando isso'", disse ele, “e está me
dizendo que preciso cuidar de alguma coisa, que a situação está
tomando um rumo pessimistae que só eu posso resolvê-la. E um
sinal de que minha saúde está se deteriorando."
Qual seria a emoção que está por trás disso?", perguntei.
Medo"', respondeu ele. Medo da morte, da doença, de mi-
nha vulnerabilidade." E continuou discorrendo sobre a vontade
que tinha de ir embora, de morar sozinho por quatro ou seis me-
ses ou talvez para sempre, de fazer o que gostava e de ter os pró-
prios amigos. Precisava pelo menos experimentar essa nova situa-
ção. Talvez se sentisse só, mas tinha de descobrir quem era, longe
da interferência de outras pessoas, com outras idéias.
Jane não me entende mais, continua querendo me levar de
volta ao ponto em que estava para que aja como seu marido. Mas
esse não sou eu. É tudo uma mentira. Ela não me entende. Diz

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que estou sendo egoísta. Talvez esteja, não sei. Mas não dámais.
Não existe mais nada verdadeiro entre nós. Preciso irembora,mas
tenho medo. Estarei sendo egoísta?"
Então, dias depois, teve novamente aquela sensaçãonagar-
ganta e no peito, os sintomas de doença cardíaca". Dessavez.
o aperto na garganta veio como uma presença que entravaeha-
bitava seu corpo. Chamou-a Feiticeira'' e decidiu ter umdiálo-
go com ela.

RICHARD: Aí vem você de novo. Como posso me livrarde


você? Acho que é porque estava me divertindo hoje. Conhecial-
gumas pessoas que gostaram de mim e me convidaram parapar-
ticipar de sua equipe como consultor. Essas pessoas merespei-
tam e me admiram. E aí vem você, me ameaçando comataques
cardíacos e morte. Agarra minha garganta e me faz sentir-mecul-
pado, como se tivesse feito algo errado.
FEITICEIRA: Está enganado se pensa que o estoucritican-
do. Apenas quero você atento a mim, de vez em quando. Está
sempre tão excitado com os grandes negócios e realizaçõesque
o fazem sentir-se importante. Por que não pode esquecertodaes-
sa droga? Ela apenas o estimula e o deixa mais nervoso etenso.
Eu só quero chamar sua atenção. Se me desse um pouquinhode
atenção, sua vida seria bem melhor.
RICHARD: Não quero ninguém, nem mesmo você me di-
tando regras. Não quero ser uma personalidade arti cial.Quero
apenas ser eu mesmo.
FEITICEIRA: Mas ainda tem medo de doença e demorte.
Não temn coragem de ser você mesmo.
RICHARD: Sim, tenho. Você está me ajudando a voltarpa-
ra os trilhos. Ando com medo. Continuo adiando asdecisões.Não
tenho tido a coragem de ser eu mesmo, mas as coisas estãocla-
reando em minha mente. Parece-me cada vez mais importantemo-
sozinho por algum tempo. Tenho de escolherentredoiscami-
nhos muito arriscados: continuar como estou ou sair porminha
própria conta.
FEITICEIRA: Acho que só você pode decidir isso.Quemsa-
be, pelo menos uma vez, vai tomar sua própria decisão. É tãofa-
cil manipulá-lo. Posso bater você no liquidi cador como sefosse

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milk-shake. Você me dá muito poder. A resposta está em você
mesmo. Não force a natureza. Tente, ao menos uma vez, ser Vo-
cê mesmo.

Junto como diálogo, relatou algumas fantasias sobre o que


faria se tivesse um apartamento e um estilo de vida próprios. En-
contraria um lugar com um pequeno jardim, livros e um bom apa-
relho de som, um lugar perto o bastante para ser atendido pelo
terapeuta semanalmente, onde pudesse caminhar na praia, parti-
cipar de um grupo masculino de discussões e, simplesmente, se-
guir seus instintos aonde quer que o levassem. Perguntava a si mes-
mo se iria sentir-se solitário de vez em quando. Sentiria falta de
alguém como Jane, ligada a ele por um compromisso? Seria ca-
paz de fazer novos relacionamentos? Perderia algumas coisas im-
portantes, sua família, seus amigos? Não havia garantia de que
encontraria uma vida melhor, mas a possibilidade de car estag-
nado na situação atual parecia cada vez mais intolerável.
Então, teve um sonho:

"Estava na faculdade conversando com um jovem estudan-


te que tinha o rosto coberto por uma máscara de couro macio.
A máscara tinha óculos de proteção e um ltro para respirar. Pa-
recia muito natural que a estivesse usando. O jovem tinha uma
personalidade muito forte e falava com convicção. Podia-se ver,
através da máscara, um olho vivo e penetrante.
"Estava pensando que gostaria de usar uma máscara pareci-
da. Ela me dava uma impressão agradável, do ponto de vista es-
tético, uma espécie de Darth Vader. *
"0 jovem terminou a conversa e saiu. Mais tarde, voltou sem
a máscara e parecia uma pessoa bastante comum."

Richard fez uma associação ao sonho. Pensou na máscara


como a de uma persona, o rosto que alguém mostra para o mun-
do ou o papel que representa para nele funcionar. Ela esconde
um pouco a pessoa; entretanto, projeta uma imagem de masculi-
nidade, sensualidade e mistério, tudo o que admirava. Era uma es-

* Personagem do lme Guerra nas Estrelas. (N.T.)

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pécie de adaptação à vida, que fazia Richard sentir-se bem. Tal-
compensasse a indecisão mencionada pela feiticeira. Equili-
brava o seu lado habitualmente divertido e agradável comalguns
aspectos pesados de seu lado sombrio. Entretanto, era mais forte
e mais real. Para levar a cabo aqueles planos radicais, tinha que
estar disposto a ser um sujeito mau.
Usei a máscara durante muitos anos'', disseRichard. "Ela
cortou meu contato direto com os outros e com a vida. Gostaria
de ter esse tipo de persona, se conseguisse arrancar a máscara e
saber quem é o verdadeiro eu que se esconde atrás dela e não ape-
nas consumir todo o meu esforço tentando saber se minhaperso-
na é convincente, sem medo de ser desmascarado. Mas, a nal,
quem sou eu? E tudo o que quero saber.'"

Em seguida, fez associações como olho atrás dos óculos.Pen-


sou no olho como a luz do corpo, lembrando apassagemdo "Ser-
mão da Montanha'":
"0 olho é a lâmpada do corpo. Se o olho for são, todo
o corpo terá luz. Mas, se teus olhos forem defeituosos, todo0
teu corpo estará nas trevas. Se, pois, a luz que há em ti é trevas,
quão espessas serão as próprias trevas!""
Leu, em seguida:
"Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar
um e amar o outro, ou há de afeiçoar-se a um e desprezar 0 ou-
tro. Não podeis servir a Deus e à riqueza.
<Portanto vos digo: Não vos preocupeis nem com a vossa
vida, acerca do que haveis de comer, nem com o vosso corpo,acer-
ca do que haveis de vestir. Certamente a vida vale mais que o ali-
mento eo corpo mais que a vestimenta. Olhai para asavesdocêu,
que não semeiamn, nem ceifam, nem fazem provisões no celeiro...*
Ao ler essa passagem, desatou a chorar. Eu também estava
muito emocionado. Embora conhecesse bem o "Sermão da Mon-
tanha', o trecho que fala sobre o olho como a luz do corpo era
totalmente desconhecido para mim. Mas expressava a tesesobre
todo o mneu trabalho com a cura: "Se teus olhos forem sãos, todo o
teu corpo terá luz. Mas, se teus olhos forem defeituosos, todo
o teu corpo estará nas trevas'".

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Fica bem claro nessa citação que a função mais essencial, que
mais diretamente afeta todas as outras, é a verdade e a clareza
de visão, a função da consciência mais profunda, a função da al-
ma. Para mim, aquele foi um momento de sincronicidade no qual
o símbolo que tocou o ponto mais sensível de Richard atingiu o
meu também.
Dias depois, Richard sonhou que estava voltando à faculda-
de. la matricular-se no curso de administração novamente. Era
como se precisasse voltar àquele momento de sua vida e, dessa
vez, fazê-lo sem errar. Talvez conseguisse aprender a ser um em-
presário, sem perder a alma; a se adaptar ao mundo dos negó-
cios, sem manchar nem obscurecer totalmente seu verdadeiro eu.
No sonho, havia um objeto chamado lâmpada, mas muito mais
complexo que uma simples lâmpada, pois incluía também um te-
lefone. No momento em que a ligou na tomada, ela esquentou
e explodiu em chamas. Richard pediu ajuda e recebeu uma outra
lâmpada de um técnico, que o ajudou a montá-la. Uma das par-
tes do instrumento era um enorme pênis, que segurou entre as per-
nas. Era arti cial, excessivamente grande, mas parecia muito real.
Seu ajudante, o técnico, comentou que na Jamaica, onde eram
fabricados, os homens devem ter pênis gigantescos. Em seguida,
o técnico começou a juntar e arrumar todo o equipamento de forma
correta. Enquanto isso, Richard se deleitava com a sensação do
enorme pênis entre as pernas e o alisava sensualmente. A lâmpa-
da compunha-se também de uma cinta de operário com ferramen-
tas amarradas. Entre as ferramentas havia um suprimento de ca-
misinhas. E parecia que toda a cinta era algum tipo de “kit se-
xual'". E agora Richard estava pronto para o sexo, como se com-
petência sexual fosse uma arte ou um o cio no qual pudesse se
tornar um competente pro ssional.
Richard chamou-o de Sonho do Grande Pênis"". Mais tar-
de, no sonho, de volta ao Alabama, conversava com o ministro
da igreja de sua cidade natal e falava sobre a lâmpada eogrande
pênis. Infelizmente, o ministro, que é de uma linha repressorae
retrógrada, cou muito constrangido com a ligação entre idéias
do cristianismo e grandes pênis. Nesse momento, durante o so-
nho, Richard mediu sua pressão arterial e descobriu que tinha su-
bido assustadoramente.

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Agora entendemos como Richard, através da observaçãode
seu interior, no decorrer de uma semana, trouxe à consciênciaparte
dos conteúdos psicológicos embutidos nos sintomas. A pressão
arterial, por exemplo, subiu devido ao con ito entre amoralida-
de do ministro de sua cidade natal e a nova consciência quedes-
pertava dentro dele. Richard está descobrindo instrumentos",
conceitos, mecanismos de ajuste para fortalecer e reforçar seus
modos masculinos de adaptação. A imagem que tem do olho é
como a da lâmpada que ilumina o corpo. Ele está começando a
sentir a possibilidade de trazer a energia sexual e criativa para o
próprio corpo e para sua concreta adaptação à vida. Está perce-
bendo também que as dores na garganta e no peito estãoassocia-
das a uma feiticeira e podem ser o equivalente ouo substituto pa-
ra sua profunda angústia e mal disfarçado choro, localizadosnas
mesmas áreas. Percebeu tambémn que vem tentando servir a dois
senhores, outro con ito que exige solução.
Hoje, consciente de todos os componentes psicológicos deseus
problemas, talvez possa lidar com a ansiedade como um fenôme-
no psíquico sem precisar encará-la como um sintoma inteiramen-
te físico do qual só consegue se livrar tomando medidas concre-
tas como repouso, dieta e medicação.
Na verdade, quando se reprime a ansiedade, ela é empurra-
da para dentro do corpo e se transforma emn tensão sica que,
por sua vez, produz outros sintomas e enfermidades sicasreais.
À medida que os con itos e as ansiedades são compreendidos,
dentro de sua realidade psíquica, como memórias con itantes, ex-
pectativas assustadoras, risco de perda da alma, e quando se tem
uma visão dos sonhos e fantasias que ilustram a natureza dos dis-
túrbios psíquicos, então ca-se mais próximo da própria verda-
de, sem máscara alguma. Momentaneamente, quandopercebemos
todo o horror de nossa condição psíquica, podemos car maisan-
siosos, mas o corpo se relaxa, porque estamos absorvendo o ver-
dadeiro sofrimento da alma. Cono não estamos mais fugindo,
a verdade não parece tão abominável como temíamos, de forma
que, em breve espaço de tempo, experimentamos uma profunda
sensação de paz. Quando aceitamos tudo o que somos, não há
mais contra o que lutar.
Hoje, Richard acredita que ao seguir seu próprio caminho
não está sendo egoísta, mas está tentando, sinceramente, ser el

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à sua natureza e equilibrar a verdade interior com a realidade da
vida exterior. Agora, encara as dores no peito de outra forma,
como explicou: “As vezes, a dor é como Deus, como se alguém
meavisassepara tomar cuidado, dizendo: Você pode partir a qual-
quer momento. Cuidado! Você pode cair morto'. Ele não me deixa
esquecer. Isso me faz car atento para que não cometa nenhum
erro. Não quero car do lado errado de Deus. Mesmo em minhas
preces, agora inclu0 as palavras: aceito minha morte como parte
do plano de Deus".
Encarara realidade da morte diariamente fez com que ela
perdesse seu poder de aguilhoar. Ela se tornou uma realidade,
tornou-se parte da vida como um todo e não a causa de ataques
inesperados de ansiedade
Se a psicoterapia for uma in uência que cura, restabelecerá
não somente os complexos emocionais e as neuroses, mas tam-
bém, simultaneamente, o corpo. Só pode ser assim, porque o corpo
não está separado da mente. O que afeta um afeta o outro. Se
uma pessoa sofre de algum mal sico e assegura que não tem nem
ansiedade, nem sonhos perturbadores, nem imagens ou fantasias
que aparecem junto com os sintomas, então devemos concluir que,
nesse nível especi co, ela é bastante inconsciente. Como psicote-
rapeutas, nossa tarefa é facilitar a emersão desse material psíqui-
co, para ajudá-la a entender como a doença física é encarada pe-
la alma.
Se conseguirmos atravessar as grossas camadas da resistente
couraça, algo muito suave e volátil será tocado. E, ao ser tocado,
provocará uma reação física especí ca. Por exemplo, quando Ri-
chard leu sobre o olho como a luz do corpo e sobre a idéia de
servir a dois senhores, começou a chorar convulsivamente. A pres-
são arterial subiu quando o recém-descoberto "aparato-sexual-
lâmpada-grande pênis'" entrou em con ito com as atitudes do mi-
nistro da igreja de sua cidade natal.
Nosso local de maior vulnerabilidade é também onde se ma-
nifestam os mais graves sintomas sicos. Esse local de maior vul-
nerabilidade é também um lugar sagrado, de cura e de milagre.
Aqueles pontos "nevrálgicos'" parecem estar conectados em pri-
meiro lugar com nossos medos, con itos pessoais, culpas e me-
mórias desagradáveis. Mas basta nos atermos um pouco mais a

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elese nos aprofundarmos - por trásdeles,encontraremosasima-
gens arquetípicas, o poder dos deuses.
A experiência de Richard é típica e não é rara. Ao entrar em
contato com os componentes psicológicos que estavam por trás
da doença, chegou às lutas pessoais e na retaguarda, prontamen-
te, vieram os mais profundos acontecimentos arquetípicos, nocaso.
o alívio das lágrimas e as palavras de Jesus, o divino curandeiro.
Ajudamos melhor nossos pacientes quando somos capazes de
reconduzi-los sempre ao lugar onde o ego mundano e o arquétipo
sagrado se encontram e se tocam.

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POR TODA A PELE

Durante quase toda a sua vida, Melanie sofrera de erupções


na pele, que, nos últimos cinco anos, haviam se tornado insupor-
táveis. Embora tivesse feito análise, o que resultou num amadu-
recimento signi cativo durante esse período, o problema de pele
persistia. Ela tinha algumas explicações lógicas parao seu apare-
cimento, mas, infelizmente, não basta apenas o raciocinio men-
tal para afastar os sintomas, Só porque se tem consciência dos mo-
tivos de sua instalaçāo.
Finalmente, os sintomas estavam dominando seus pensamen-
tos ao longo do dia e mantendo-a acordada metade da noite.
Tornaram-se o assunto principal de seu diário, e, em seu desespe-
ro, começou a conversar diretamente com a própria erupção.
Assim, escreveu no diáio:

A urticáriaestárealmenteardendo muito agora. A coceira


nas costas está muito forte. O que está acontecendo? Obviamen-
te, não estou vivendo minha própria vida. Pensei que tivesse re-
solvido tudo, mas me enganei. Estou agitada e nervosa e sinto como
se uma força violenta passasse enfurecida por sob minha pele. As
vezes, acho que é o Self que quer encarnar. Ou algo que exige que
eu caia fora desse cenário'".

Então, começou a conversar diretamente com a erupção.

MELANIE: Erupção, agora você tem toda a minha atençāo!


Você queima minha pele e se alastra sob ela. Ế como se estivesse
em chamas, e não sei qual éo seu signi cado.
ERUPÇÃO: Sempre estive com você e só me manifestei des-
sa forma ultrajante nos últimos cinco anos. Já está na hora de
prestar atenção às minhas investidas.

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MELANIE:É você está me atacando e não entendo o quequer.
ERUPÇÃO: Você deixou de conversar comigo. Exijo sua
atenção exclusiva. Então, tudo o mais entrará nos eixos.
MELANIE: Pensei já ter feito isso.
ERUPÇÃO: Você tenta uma coisa ou outra para aliviar meu
fogo, mas o ponto não é este. Você deve entrar no meu fogo e
suportá-lo. Somente assim poderemos car juntas, unidas, como
uma coisa só sob a pele, bem mais fundo do que a pele.
MELANIE: Sinto que você está dentro de mim, queimando,
querendo irromper em minha vida. Eu quero isso também, mas
não compreendo muito bem o que você tem em mente. E tam-
bém não posso deixá-la explodir. Sua força poderia subjugar
mim e aos que estão à minha volta. Tenho medo de sua força.
Você pode me destruir.
ERUPÇÃ0: Posso, e a destruirei, se não tiver sua atençāo
exclusiva.
MELANIE: Você a tem. Você a tem. Estou aqui para fazê-
la entrar em minha vida, até onde conseguir.
ERUPÇÃO: Você negou minha existência por muito tempo
e agora me espalho como fogo fora de controle.
MELANIE: Sim, acredito no que diz. Não consigo fazė-la
desaparecer. Nem mesmo com cremes, pomadas ou antialérgicos.
Tenho uma fantasia de correr pelas ruas com o corpo em fogo,
ardendo, uma chama viva. Você está me perseguindo e não con-
sigo me livrar de seu fogo. Você está dolorosamente atada a mim,
Como uma camisa de fogo.
ERUPÇÃO: Sim, estou perseguindo-a e sou uma camisa de
fogo, queimando dentro de sua própria alma. Agora, você tem
que se curvar diante de mim.

No dia seguinte, a erupção estava pior do que nunca, mas


Melanie começava a encará-la de modo diferente. Também esta-
va cando muito interessada no diálogo e curiosa para levá-lo
adiante. Além do mais, com toda aquela dor e coceira, não con-
seguia pensar em mais nada. A seguir, o diálogo que se reiniciou:

MELANIE: Muito benm, Erupção, você não me deixou só.


Voltou com força total, exigindo toda a minha atenção.

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ERUPÇAO: Exijo, sim. Agora você tem que se curvar dian-
te de mim.
MELANIE: Sei que quer a minha atenção exclusiva e você
a tem. Tem estado comigo por longos períodos. Reconheço-a em
primeiro lugar como uma erupção que se alastra, impetuosa. To-
da a minha vida fui levada a fazer coisas impulsivamente ou mo-
vida pelo meu próprio desejo de engrandecimento. Agora que com-
preendo minha impulsividade, questiono cada pensamento, cada
gesto, perguntando: Estarei sendo excessivamente ambiciosa? Pen-
sei demais em você nos últimos cinco anos. Ainda não a entendi
completamente, mas agora estou tentando.
ERUPÇÁO: Você não pode me compreender apenas com a
mente. Tem que me integrar à sua vida. Estou sob a sua pele e
não pode mais me ignorar.
MELANIE: Sim, compreendo.
ERUPÇÁO: Você estátentandose livrar de mim - e isso
agora é inadmissível. Sou seu destino e você deve me amar tanto
nas minhas formas mais benignas como nas mais malignas.
MELANIE: Sim, mas é difícil quando você me inferniza e
me atormenta.
ERUPÇÃO: Você se curvará diante de mim. Não importa se sou
bonita ou feia, você me amará. Ficarei com você até o m. Você me
deixou de lado durante muito tempo, mas não serei mais ignorada!
MELANIE: Mais uma vez, entendo e admito que realmente
a amo. Sou sua e você é minha. Somos inseparáveis. Estamos na
mesma pele.

No dia seguinte, Melanie escreveu no diário:

“Alguma coisa aconteceu. De repente, mais ou menos às cinco


e meia, senti-me inteira, plena, autocon ante. Senti-me integra-
da e no controle de minha vida. Terá sido por causa da imagina-
ção ativa? Espero e rezo para que continue me sentindo assim e
para que possa ajudar as pessoas com quem trabalho, deixando
o amor uir através de mim".

Mas, alguns dias depois, a erupão ressurgiu gloriosa e Me-


lanie escreveu o seguinte:

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MELANIE: Estou tentando suportar esse ataque que coça,
arde, in ama e queima o meu ser. Você tem toda a minha aten-
ção. Coço-me compulsivamente. Tenho de tomar cuidado comas
roupas que visto para não me tornar sua cúmplice e ajudá-la em
sua atividade abrasadora que parece uma escova de fogo, ferindo
minha pele o tempo inteiro.
ERUPÇÃ0: Agora vejo que tenho sua atenção. Você omitiu
uma frase que diz tudo. Eu sou o "batismo-de-fogo'" da transfor-
mação. Você é obrigada a suportar os tentáculos da chama enquanto
Ihe agarram o corpo, queimando as terminações nervosas de sua
pele. Estou ardendo no fundo de sua alma. Você jamais meesque-
cerá. Você está fadada a suportar minhas chamas. Da mesma for-
ma que me manifestei na impulsividade de seu pensar, agir e mo-
ver, agora me manifesto na puri cação dessas atividades, puri -
cando sua alma até que tudo o que restar seja puro e inteiro. Sou
sua camisa de fogo para lembrá-la de sua ganânciae deseudesejo
ardente de poder que, a meu ver, já são inadmissiveis.
MELANIE: De alguma forma, suas palavras tornam o so-
frimento mais tolerável.
ERUPÇÁO: Já não era sem tempo.
MELANIE: Agora você está parecendo meu pai. Ele disse
algo parecido antes de morrer, quando estávamos todossentados
à mesa de jantar e nos emocionamos com a bênção. Senti-me hu-
milhada por aquele comentário. Não era o de um pai alegre com
a volta do lho à casa. Sinto que está sendo dura e implacável
ao fazer essa observação.
ERUPÇAO: Entendo o que quer dizer, mas tem de admitir
que já está na hora.
MELANIE: Sim, percebo que está. Já perdi muito tempo com
essa experiência. Você é tanto o fogo do inferno quanto a essên-
cia transformadora.

Naquela noite, Melanie voltou a escrever no diário, expres-


sando alguns dos sentimentos mais profundos que os diálogos ha-
viam evocado.
"0 que estará tentando abrir caminho? Que fúria descon-
trolada é essa? O que estará querendo irromper em minha vida?
Quero ser livre! Quero viver minha própria vida! Quero acordar
à hora que tiver vontade, levantar-me quando bem entender.

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Quero ser eu mesma. Será que a erupção representa a alma? Será
algo que quer se manifestar em minha vida, algo pelo qual temo
ser dominada? Sou uma morta-viva sem alma. A alma dá signi -
cado à existência. Preciso deixá-la entrar em mim. Ela é a essên-
cia da vida, a força da vida que corre em minhas veias."
Então continuou o diálogo.

MELANIE: E você continua aí. Continua tendo toda a mi-


nha atençāo. Minha pele arde em sensações abrasadoras como nu-
maexplosāão espontânea de chamas, primeiro aqui, depois lá. Mi-
nhas mãos estão constantemente ocupadas tentando extinguir suas
investidas maldosas.
ERUPÇAO: Sim, realmente eu a tenho em minhas mãos e
quero viver na mesma pele que você.
MELANIE: Aceito isso, mas não sei como analisá-lo. Digo:
venha, entre, mas você continua me al netando com seus dardos
de fogo que provocam erupções como lava ardente. E deliciosa-
mente doloroso e excessivamente diabólico de sua parte. Está ten-
tando fazer uma fogueira embaixo de mim? Está tentando me im-
pelir a alguma forma de criatividade? É esse o seu objetivo?
ERUPÇĀO: Já Ihe disse que não pode me evitar. Sou o fogo
da criação e o fogo da maldição. Somente a forma pela qual me
usará determinará o que sou.
MELANIE: Acredito, mas quando olho ao meu redor para
descobrir o que me levará a viver uma aventura criativa com vo-
cê, não vejo qualquer indício. Como posso aproveitar sua chama
criativa? Em minhas atividades corriqueiras, no meu trabalho?
Ou você espera que eu faça ainda mais?
ERUPÇÃO: Quero expressão criativa. Quero entrar na ple
nitude de sua vida de maneira criativa. Tenho a energia para isso,
você, os instrumentos, o método e as mãos.

Como resultado dessas confrontações com a força por trás da


erupção, Melanie aprofundou muito a compreensão das coisas que
lhe haviam escapado durante tanto tempo. Antes, ela compreen-
dera mal o signi cado da urticária, dos exantemas e dos vergões,
achando que eram cutucões e estímulos que a empurravam- tal-
vez devido à culpa –a mais atividades, realizações e recompensas.

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Na verdade, talvez em algum nível, essemal-entendido
tinue quando ela acredita que precisa fazer algo “criativo" em
vez de apenas desenvolver um estado de maior harmoniaamoro-
sa com o "deus do fogo'", deixando que sua magia habitenela.
Então, não precisará tentar descobrir o que fazer -pois saberá.
Esse é outro caso que ilustra bem a profundidade daexpe-
riência emocional que é mobilizada quando se dá atenção àsima-
gens que estão por trás dos sintomas, e as intensas transforma-
ções que ocorrem através da interação profunda e sincera comessas
imagens. E também um bom exemplo de vivência da força.
A psique se manifesta sicamente. Quer fazer parte de n
so corpoe de nossa existência empírica concreta. O fogoquepro-
duziu a torturante doença de pele é o mesmo que foi chamado
de "a presença'". É o mesmo eriçar das penas'" da alma.Como
tal, pode trazer alegria, êxtase, saúde eo transbordar deamor
Vemos, novamente, que o maior tesouro provém doslugaresmais
desprezados e secretos, mais baixos e humilhantes.
O primeiro trabalho de Melanie com seu problema depele
havia sido intelectual demais. Ela obteve informações,aprendeu
teorias e construiu cenas prováveis de como tudo haviacomeça-
do. Porém, todas essas interessantes especulações não foram muito
frutíferas. Isso porque o corpo raciocina à sua própria maneira,
seguindo padrões que foram estabelecidos mesmo antes deapren-
dermos a falar, de termos memória, de adquirirmos consciência
e, certamente, antes de desenvolvermos qualquer habilidade depen-
sar. E impossível para nós encontrarmos uma cura meramentera-
cional para as doenças psicossomáticas ou para qualquercomplexo
inconsciente.
A experiência é o catalisador que pode agitar os padrões já
existentes e provocar uma transformação. Não o conhecimento,
não o pensamento–mas a experiência. O tipo deexperiênciacru-
cial em tais transformações é a experiência do transcendental
a força, a presença. Os diálogos escritos com imagens interiores
ou qualquer outro tipo de encontro com elas sãoacontecimentos
bastante reais, com conseqüências igualmente reais. Essesacon-
tecimentos, invariavelmente, têm efeitos mais profundos doque
a mais intensa experiência conereta exterior. Se re etirmos inti-
mamente, de preferência escrevendo, com profunda dedicaçãoe

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concentração,em breve a recompensa virá. Então, encontraremos
osermilagroso, um encontro arrebatador. A partir daí, as mu-
dancassimplesmente acontecem. Não somos mais a mesma pes-
soa.Somos aquele que reencontrou a grande força e viveu para
recordá-la.
O aspecto interessante de uma erupção na pele é que ela po-
de muito bem ser um eriçar das penas'" de uma alma que, por
alguma razão, não deu certo. E como se tivéssemos recebido o
abraço divino e não o tivéssemos acolhido de forma correta. Es-
távamos tão distantes do poder divino e o temíamos tanto, que
vestimosnossa armadura. E ele teve de abrir caminho com vio-
lênciapara penetrar em nossa consciência. De um jeito ou de ou-
tro, a força consegue penetrar, através de Deus.

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O PROBLEMA OU A FORÇA?

“Em que posso ajudá-lo? Conte-me por que está aqui. Qual
é oseuproblema?""
Perguntas como essas são típicas do primeiro encontro entre
o psicoterapeuta e o paciente. Segue-se o exame do problema, mer-
gulhando cada vez mais fundo, como se aquele problemae sua so-
lução fossem nosso único objetivo. No entanto, por mais que a so-
lução do problema seja necessária, ela não é, em si, o processo de
cura. De fato, uma pessoa pode adoecer mais e mais se car revi-
vendo cada cena de insulto, humilhação e desespero por que pas-
sou. A menos que essas dolorosas experiências possam ser reassi-
miladas em um ego mais forte e saudável, a doença pode alimentar-se
de si própria e solidi car seus sintomas até torná-los imutáveis. Algo
novo precisa ser agregado, algo que reverterá a situação, trazendo
a energia de cura. Geralmente, contamos com o terapeuta como o
fator de intervenção. O terapeuta é uma pessoa a mais, que oferece
um novo ponto de vista, é um observador externo, com alguma ob-
jetividade. Mas a intervenção mais bené ca está na personalidade
do terapeuta. Se ele, ou ela, for uma pessoa em harmonia, alguém
que possui a força maior, então apenas sua presença já será curati-
va, pois aproxima o paciente da própria alma, dos pensamentos, das
imagens e fantasias do inconsciente. Esses são instrumentos da força
e ela ui para dentro de nós como um elixir que cura. O interessan-
te do momento analítico é que ele pode fazer isso acontecer mesmo
aos indivíduos com personalidades mais rigidas, que jamais tiveram
qualquer experiência semelhante a essa.
Apergunta importante não é: "Qual é o seu problema?", mas:
<"Onde estão sua força, sua criatividade, sua energia curativa?". E
impossível para os terapeutas mediarem o poder do inconsciente su-
perior se eles mesmos não o experienciaram.

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A experiência analítica tem algo muito especial. É um tipode
encontro singular, cujo propósito, seja ele expresso ou não, ésa-
grado e tem relação com o signi cado da vida da pessoa; e portra
de tal questão esconde-se o mistério do não visível. Quandofaze-
mos análise, devemos nalmente enfrentar asquestõesessenciais,
porque elas se revelam necessárias na resolução das questöesme-
nores que nos levaram a procurar um terapeuta. Se ele o acolher
com o devido respeito, o paciente também perceberá queesseéum
"trabalho de alma", e então os deuses da cura se farãopresentes.
Freqüentemente, os problemas ea força se entrelaçam de for-
ma curiosa. Aquele nó de complexos em nossos recantos maises-
condidose sensíveis são os pontos nevrálgicos. Sãoosnúcleos onde
a energia está represada. Aperte aquele botão e as lágrimas ui-
rão. Por trás dos sintomas estão os complexos- 1lágrimas,me
do, raiva e culpa inimagináveis. De fato, há muito mais força no
complexXo do que se possa explicar racionalmente. A verdade
que o complexo parece um ponto vulnerável em nossacouraça,
por onde podem entrar tanto seres abençoados quantomonstros
das profundezas.
Jung observou que todo complexo tem uma essênciaarque-
típica. Assim, quando penetramos a área do complexo, estamos
caminhando diretamente rumo aos deuses. E quase uma questâo
de saber o que aconteceu primeiro. Temos esse complexo porque
nascemos com o destino de carregar esse arquétipo especí co?Ou
nossa experiência de vida com uma mãe critica e indiferente, por
exemplo, colaborou para formar uma ferida pela qual a mãear-
quetípica penetrou?
E importante ter consciência dos dois níveis de umaneurose.
Apegue-se às questões de culpa, vergonha e de todas as desventu-
ras da história de sua vida e estará perdido para sempre. A forçaes-
tá lá, porém ainda represada no complexo e em seus sintomas. Mas
se a força arquetípica é percebida, encarada, incorporada no inte-
imaginação, a transformação do indivíduo que sofreées-
pantosa. Então acontece um nilagroso redespertar da vidahuma-
na e o re orescer da auto-estima. Finalmente temos a consciência
da presença do criador dentro de nós. Então podemos a rmar:"Ve-
ja, não estou só, há uma força dentro de mim e eu sou partedessa
força". Então, “rios de águas da vida'" brotarão em nossoventre.

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Esse é o tipo de resultado que várias igrejas prometem, mas
por que apenas poucos de seus éis o alcançam? Os professores
de religiāo nos dizem que devemos crer. Entretanto, não conse-
guimos adquirir crença usando a mente nem a força de vontade.
A fé vem da experiência. Nós a percebemos quando ela acontece.
Só então conseguimos acreditar. Uma psicoterapia voltada para
o poder dos arquétipos pode mediar experiências que criam opor-
tunidades de comunhão com a força.
A água da vida'', com sua força curativa, é nossa somente
na medida em que atingimos o âmago arquetípico de nossos pro-
blemas. Como podem os poderes divinos penetrar em nós e atuar
conosco, se negamos sua existência, se não conseguimos suavizar
nossa rigidez de idéias que impede a uência dos rios?
Não se trata de um processo linear. Para encontrar o deus,
não existe um método passo a passo, com instruções precisas. Não
se trata apenas de uma questão de pecado, con ssão e penitên-
cia, nem de se obrigar novamente a rastejar no esterco malchei-
roso do passado.
Você não pode deixar de rever o passado, mas não se limite
a recordá-lo para incluí-lo na lista de pecados e se penitenciar por
eles. Você precisa se reintegrar com seu todo, tanto o lado ilumi-
nado quanto o sombrio. Recuperar a alma em sua totalidade é
como olhar nos olhos de Deus e ali descobrir um caótico abismo
de trevas e também um tênue brilho de esperança.
É melancólico e degradante vivenciar novamente as perdas,
a depressão, o medo e os sentimentos de rancor. Quem quer, a
duras penas, passar por todo esse processo de novo? Entretanto,
a força dos arquétipos está com ele. Curiosamente, à medida que
penetramos os pontos dolorosos, não camos apenas perturba-
dos, mas alcançamos tambémn uma elevação espiritual, porque a
força arquetípica foi tocada. Sentimo-nos mais corajosos e pode-
rosos porque o Grande Ser está conosco. Assim, muitas pes-
soas parecem piorar quando, na verdade, estāo melhorando. Nese
momento, preenchidas pela energia do arquétipo, nalmente são
su cientemente fortes para assumir tudo o que são, tanto a luz
quanto a sombra. Isso dá uma sensação de plenitude e paz, como
se Deus agora pudesse entrar, pois elas são simplesmente o que
são, abertas a tudo, não mais camu adas por trás de simulações.

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Fica claro então por que é muito mais importanteperguntarmos
onde está a força. Se não temos algum meio de aproximaçãoami-
gável com a força, não podemos sequer encarar nossoproblema.
Já estamos sofrendo demais. Um pouquinho mais de culpaem
relação ao problema pode ser o su ciente para desestruturarto-
talmente algumas pessoas.
Hoje, a psicoterapia encontra-se no mesmo tipo deencruzi-
Ihada que a religião. 0 que é a religião? Uma enorme lista depe-
cados ou um alegre encontro com Deus? Esse con ito foi enfati-
zado por Matthew Fox, um padre católico romano,o cialmente
silenciado pela Igreja por ser "perigoso e contestador", eproibi-
do de pregar, dar aulas e fazer conferências.
O padre Fox chama seu ponto de vista de "espiritualidade
criativa". Segundo ele, *é o oposto do fundamentalismo. Trata-
se de con ança: natureza con ante, inclusive a própria natureza
humana, nossos sonhos, corpos e imaginação. Acredita que pai-
xão, Erose êxtase são bênçãos e não maldições. Dá maisimpor-
tância à criatividade do que à obediência, ao estético do que ao
ascético. E, sobretudo, trata-se de cosmologia, dareorganização
do programa humano mais no contexto do cosmos do que no do
mundo fabricado pelo homem, no qual vivemos desde o Ilumi-
nismo" (entrevista com Matthew Fox, Psychology Today,junho
de 1989).
Fox aprecia muito a psicologia de C. G. Jung e de outros psi-
cólogos que seguem uma linha mais espiritual. Ele acredita que
nossa ferida está na criança sagrada, o verdadeiro Self. Osmeios
de cura mais valiosos são a imaginação ea criatividade. Precisa-
mos de rituais e preces que abram nosso coração à nossa dor, à
nossa admiração e ao milagre, ao mistério e à glória.
Abra-se para a força!

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POR QUE NÃO MUDAR O ENREDO?

Agora já deve estar claro queo estado da alma tem um gran-


de efeito sobre a saúde do corpo. O corpo re ete a psique. Se a
própria alma está plena e repleta de símbolos de cura, sua saúde
irradia-se por todo o corpo.
Toda doença tem um aspecto mental ou espiritual. É claro
que não está "tudo na mente', mas, sem dúvida, a mente, de al-
guma forma, está na doença, pois, se procurarmos com atenção,
descobriremos que sempre a acompanham uma imagem, uma fan-
tasia, uma história.
A pergunta surge naturalmente: O que veio primeiro? A mo-
léstia produz a fantasia ou a fantasia provoca a doença? Se são
interdependentes, então talvez algo que se agregue em cada um
dos lados leve a uma transformação. Aliviemos a doença e, quem
sabe, a fantasia se tornará mais "saudável'". Mudemos o enredo
da fantasia e a doença desaparecerá. Ou, talvez, uma nem chegue
a provocar a outra. Talvez sejam uma coisa só desde o início. Os
sintomas e as fantasias são simplesmente formas diferentes de ob-
servar o mesmo elefante. Você é que é diferente ou a perspectiva
com que olha ascoisas - sevề a orelha ou a tromba doelefante,
percebendo-o às vezes com o olho da imaginação; outras, através
dos receptores sensoriais do corpo.
Seja como for, suaalmaé a somatóriade tudo - corpo,
te, sintoma, medo, amor, dor, expectativa, sonho e fantasia. O
caos mente-corpo ocorre quando todas essas nossas facetas não
estão suavemente articuladas. Muitas coisas podem não correr bem,
as condições ambientais talvez estejam desfavoráveis ou as neces-
sidades sicas e emocionais, insatisfeitas. Mas o maior gerador
de caos éo voluntarioso ego humano. Os seres humanos têm livre-
arbítrio e, portanto, a capacidade de negar, reprimir e dominar
o comando de seus instintos. E como o fazem!

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O ego é o olho da consciência e tem a capacidade de ver e
compreender. Em uma personalidade sadia, o olho se expandee
enxerga mais e mais a verdade de sua realidade e, ao fazê-lo, es-
tabelece também uma relação com seu Self superior. Ocrescimento
espiritual é um prOcesso no qual o ego se torna mais abrangente,
incorporando mais a alma do Self ao ego. Lembre-se: o olho
a luz do corpo. Quanto mais clara for a visão da realidade, ilumi-
nando nossa própria escuridão, bem como a face de Deus, mais
nossa consciência será como uma luz que ilumina o corp0 com
o poder da cura.
Temos que penetrar no eg0 e no inconsciente, pois é lá que
se encontram noventa por cento da alma. Se a alma do incons-
ciente estiver doente e desajustada, deve ser puri cada.
Assim, suponhamos que você sintonize seu drama interior.
Suponhamos que os enredos e os subenredos que lá encontra se-
jam um verdadeiro horror. Você pode mudá-los? Conseguirá,de
fato, alterar seu destino? A resposta é sim e não. Seu destino é
seu destino. Não pode mudar a órbita dos planetas. Mas vocêpo-
de se transformar para cooperar com o seu destino, em vez de lu-
tar contra ele. A tensão, as neuroses e as doenças surgem quando
se está em oposição ao destino. Pare de lutar contra a história.
Entre nela. Abrace-a. Ajude-a. Faça com que se manifeste emseu
comportamento diário. Torne-se um ator do drama.Acrescente-
Ihe alguns novos ingredientes e tudo começará a mudar.
Quando o corpo não se cura, adotam-se procedimentos para
curá-lo. Eles se baseiam na esperança de que você, o médico ou
alguém faça algo por seu lado doente que o ajude a se recuperar
bem mais depressa do que se car apenas deitado sem fazer nada.
Teoricamente, podemos intervir a partir do corpo ou damen-
te. Podemos modi car o ambiente, encontrar um novo amigo ou
um novo amor, mudar a química do corpo, remover partesdeleque
estejam infectadas. Podemos ler livros, ouvir música, orar aosdeuses
ou afagar nosso gatinho de estimação. Podemos tambéminvestigar
o inconsciente, deixando-nos in uenciar pelos sonhos, visõese fan-
tasias e, como resposta, tentar exercer algum in uência sobreeles.
E importante observar que existe uma correspondênciaentre
corpo e psique. Eles vivem dentro e em função um do outro e o
que acontece com um é espelhado no outro. E é bem possível que

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não haja diferença alguma entre eles. Um contém o outro - e
são idênticos. Por alguma razão, hoje, em nossa cultura, o corp
é supervalorizado como se isso fosse real, enquanto a alma, por
não ser palpável e, portanto, não existir, é vista como um produ-
to da imaginação ou do mundo dos sonhos.
Mas os sonhos são reais. A imaginação é real. Produzem efei-
tos reais. São a origem da literatura, da arte e da música mun-
diais. Na verdade, todas as conquistas importantes da espécie hu-
mana começaram como idéias não-palpáveis. Nossos padrões in-
ternos de sonhos, os enredos de fantasias, parecem ser, com grande
probabilidade, as causas reais de muitas doenças, crimes e acidentes
graves. Um bom especialista em interpretação de sonhos percebe
esses perigos iminentes nos sonhos de uma pessoa.
Sonhos e fantasias são dados cientí cos. Quase sempre reve-
lam mais sobre um indivíduo do que exames de urina, pressão ar-
terial e raios X. Esses temas de fantasia que existem no incons-
ciente são padrões psíquicos a partir des quais se desenvolvem a
estrutura física e o comportamento concreto.
Alguém já disse que, se não tivermos consciência de nossas
fantasias, elas se tornarão nosso destino. Isso porque o compor-
tamento é um produto da fantasia da vida interior. E, se não ti-
vermos consciência dela, ela se realizará naturalmente. Irrompe-
rá provavelmente de forma destrutiva. Entretanto, quando esta-
mos conscientes da fantasia, podemos escolher como e quando
vivệ-la. Há o exemplo de William Shakespeare, cujo mundo da
fantasia era repleto de assassinatos, intrigas, incestos, ambições
patológicas e vinganças. Se não tivesse escrito suas famosas pe-
ças e nelas expresso conscientemente seus impulsos, provavelmente
teria se tornado o mais perigoso dos psicopatas ou o mais desa-
lentado dos inválidos.
Os padrões da psique interior, os sonhos e as fantasias têm
um poder extraordinário. Têm o poder de nos matar e de nos
curar. Quando nossa história interior se torna mórbida e doen-
tia, estamos em apuros, inclusive porque o nosso sistema imuno-
lógico enfraquece e aumenta nossa vulnerabilidade à doença.
E positivamente excepcional o que acontece quando as pes-
soas levam os sonhos a sério e se esforçam ao máximo para
compreendê-los, cooperar e interagir com seus símbolos. Elas se

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abrem e se tornam instrumentos através dos quais os sonhos fa-
lam. A cura pode se dar pelo registro por escrito dos diálogoscom
os personagens dos sonhos, pela meditação sobre seus símbolos,
fazendo com que seu poder chegue até a consciência, pelo dese-
nho cuidadoso ou modelagem em argila de cada imagem do so-
nho, por sua representação através de uma dança ou por
quisa que resulte na ampliação dos símbolos para que seu signi -
cado mais profundo possa penetrar a consciência.
A medida que você avançar na história de seus sonhos, per-
ceberá a evolução de um processo. Poderá vir a realizar, em so-
nhos futuros, coisas que outros personagens estão fazendo nos
sonhos atuais. E começará a realizar na vida real as coisas que
faz nos sonhos. Assim, seu eu potencial vai se tornando realida-
de. Ao adotar uma atitude de cooperação com seu destino, esta-
rá, conscientemente, ajudando o processo. Se no sonho estiver es-
crevendo um poema, escreva-o. Mesmo que precariamente,
comece a ser o poeta que você é. Ou, se os sonhos o sugerirem, co-
mece a conversar espontaneamente com estranhos, a pintar qua-
dros, a proferir palestras. Faça o destino se manifestar. Ajude o
seu todoa viver. Ele já está presente. Com sua colaboração cons-
ciente, ele passará a assumir uma forma positiva e criativa.
Apartir dessezeloso tipo de atividade ocorremtransformações
perceptíveis, freqüentemente muito radicais. A história muda em fun-
ção dessa nova in uência. Você também muda. Muda sua maneira
de pensar, de sentir, muda em seu comportamento e em sua aparên-
cia. Sem a resposta do ego aos sonhos, eles tendem a se manter pa-
ra sempre nos mesmos temas. Entretanto, com a participação da pes-
soa, a história se desenrola, Os sonhos se tornam mais enriquece-
dorese estimulantes. A alma épuri cada. Eo corpo também. Você
começa a compreender as famosas palavras de Sir Gallahad: "Mi-
nha forçaé como a força de dez, porque meu coração é puro".
Um coração puro, lembre-se, não signi ca ser uma pessoapu-
ra. Que Deus nos proteja das pessoas puras! Um coração puro é um
bom coração, um coração honesto. Signi ca que você parou
esconder. Signi ca que você parou de ngir que é puro, mas que
tornou realmente puro por reconhecer suas impurezas. A con ssão
faz bem à alma. Tudoo que é preciso para a salvação da alma,
a cura do corpo e da mente, já se encontra dentro de nós.

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E DEPOIS DE TUDO A ESCURIDĀ0

Então, à frente e acima de todas as coisas por vir, está a morte.


M-0-R-T-E.
A ansiedade da morte é um dos estados mais graves enfren-
tados pelos idosos. Ela é uma verdadeira assassina, uma profecia
que se auto-realiza. Paradoxalmente, aqueles que querem viver
bem devem aprender a morrer bem. Você temn de entender que,
quando os sinos dobram, eles o fazem por você. Quando os san-
tos chegam marchando, estão nos chamando para a morte, em-
bora também tragam uma vida mais rica.
Uma das personalidades mais bem-humoradas, extrovertidas
e alegres que conheci é Joe Wheelwright, um psicólogo junguia-
no de San Francisco, que estudou sob a orientação do próprio
Jung. Ele me contou que, desde os 35 anos, não passou um dia
sequer sem pensar na própria morte.
Algum tempo atrás, sonhei que era obrigadoa cavar minha
própria cova, mas, por alguma razão, cava protelando.
Obviamente, foi muito importante para mim dar maior aten-
ção à morte e me preparar melhor para os últimos dias. Por ser
um homen de espírito relativamente prático, entrei em contato
com um advogado, z um testamento e, mais do que nunca,
esforcei-me para colocar a alma em ordem.
Quando uma pessoa chega aos 65, 70 anos, ou antes dessa
idade, passa a ter um grande interesse pela longevidade. Parece
que nunca estamos totalmente prontos para morrer. Talvez mais
tarde, mas não ainda, por favor. E difícil imaginar que nun-
ca mais estaremos por aqui. Como pode existir um mundo, se eu
não estou aqui para vê-lo? E verdade que eu não existia antes, mas,
agora que estou aqui, como posso deixar de estar? Todo esse ques-
tionamento sobre o ser, sobre a existência do corpo e da alma é um

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mistério extraordinário e insondável. No entanto, a idäa da mor-
te e os preparativos para enfrentá-la são muito importantes, por-
que colocam nossa vida sob uma perspectiva mais real.
O curto espaço de tempo nesse nosso corpo termina em bre-
ve, mas a vida, em seu sentido mais amplo, continua. O fato de
saber que a morte se aproxima rapidamente nos torna maiscons-
cientes daquele outro reino, onde habitam santos e arqučtipos.
Quando deixamos de receara morte, também deixamosdetemer
os arquétipos, e seu poder entra triunfalmente em nossa vida.
Se existisse o milagre da cura, sobre o qual venho falando,
não deveríamos continuar nos curando e viver para sempre? Na
verdade, não. A pessoa que resiste à morte, quando é tempo de
morrer, não está se curando. Está se tornando mais neurótica e
proporcionando a si própria uma morte muito desagradável,cheia
de agonia. Há um modo de morrer. Pouco importa quando ela
morre, mas sim como morre. Não interessa o motivo, mas sim
está inteira, do ponto de vista psicológico. Lembro-mecom fre
qüência das palavras de Kieffer: "O objetivo da cura não é per-
manecer vivo, mas sim caminhar em direção à plenitude. A mor-
te é a cura nal'".
Agora que me tornei um defensor da cura, tenho atendēncia
de me sentir um impostor, à medida que meu corpo envelhece.
As pessoas vão me olhar e dizer: "Cure-se, velho. Se os seusensi-
namentos são tão maravilhosos, por que não está lá fora, subin-
do em árvores ou fazendo algo de bom?"".
Nos meus momentos de maior fraqueza, isso mne preocupa.
Mas é o ego, com sua preocupação com a reputação e a imagem,
ambição e cupidez pelas coisas mundanas, que está se preo-
cupando. Não é vergonhoso fracassar na saúde. A perda do con-
tato com a alma éo único verdadeiro motivo de vergonha.
O corpo envelhece. O sistema imunológico não é mais o mes-
mo. Reconheçamos o que verdadeiramente somos, mas sejamos
sensíveis, muito sensíveis aos movimentos da alma. Fiquemos com
a história para que, mesmo na enfermidade, possamos viver aquilo
que somos. Na história, somos plenos. Somos abençoados e feli-
zes porque, em nossa alma, estamos curados.
Joseph Campbell aconselha-nos a procurar a felicidade. Vi-
ver o próprio destino é a felicidade e, embora para muitos seja di -

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cil imaginar, morrer não é a pior coisa do mundo, quando alcan-
çamos o amor fatie sabemos que a força está conosco. E chega-
do o momento de Deus nos engolfar. Entregamos a última miga-
Iha de nosso poder pessoal e nos rendemos ao abraço da Dama
do Lago.
O sonho mostrou-me que, como a maioria das pessoas, eu
adio a questão da morte. Não me preparo para ela. Em meu en-
tusiasmo pela saúde e pela cura, não dou atenção a esse fato irre-
versível. Estou envelhecendo. Não podemos continuar só com as
partes agradáveis da história. Entretanto, apenas por sentirmos
o leve toque da morte, não há razão para começarmos a pensar:
Ah, lá vem ela! Agora está tudo acabado!".
Parte de nós pode querer deixar de lutar e simplesmente de-
sistir. Mas ainda há energia de vida, e talvez a proximidade da
morte traga uma qualidade muito especial à vida que ainda resta.
Seja como for, eu, pessoalmente, estou decidido a não morrer antes
da hora. Ficarei com a vida que há dentro de mim e a viverei ple-
namente. Mas, quando chegar a hora, morrerei de bom grado.
Já vi lmes em que um tigre se aproxima sorrateiramente de
um bando de cervos, escolhe um deles e se prepara para matá-lo.
O cervo recorre a toda a sua força e velocidade para não morrer.
Mas, quando nalmente é dominado e o tigre crava os dentes em
sua garganta, dá um grito, que mais parece de alegria, enquanto
abraça a morte.
Quanto mais próximos estivermos da alma, menos identi -
cados estaremos com o ego. Percebemos nossa essência como um
imenso rio de vida que transcende o ego e continua a uir depois
da morte. A alma está, de alguma forma, em união com
superior. E, à medida que me alinho mais à alma do que ao ego,
a história da alma passa a ser minha história. Então, não posso
me lamentar sem razão pelo ego. E como uma vela que brilhou
e vai se apagando lentamente. Agora que consegui tão convincen-
temente me livrar da dor aguda da morte, devo voltar à verdade,
à verdade completa. Inevitavelmente, com a consciência da apro-
ximação da morte, vem uma tristeza. E a tristeza da partida. E
também a tristeza por não ter vivido o bastante.
Se partir é uma tristeza tão suave, a morte é a mais triste e
possivelmente a mais suave de todas as dores. Não é apenas a des-

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pedida do companheiro, do amado, dos amigos, mas o afasta-
mento de tudo, de todas as coisas que gostávamos de fazer e nun-
ca mais faremos, de todas as coisas que gostaríamos de ter feito
e não zemos. Negar a tristeza da morte seria uma bravata. Do
ponto de vista do ego, que está prestes a ser extinto, a morte é
triste, assustadorae aterrorizante. Entretanto, ela é uma aventu-
ra, uma aventura que tememos enfrentar, mas sua contemplação
pode dar um sentido maior e mais elevado à nossa vida.
Mas, mesmo que eu esteja verdadeiramente sereno e comple-
tamente preparado para essa transição, há a tristeza dos que me
amam, e sua dor me faz sentir dor. Sofro profundamente pela dor
que irão sentir. Elos partidos. O que algum dia existiu não existi-
rá mais -o toque, o jeito, ascoisasque zemos juntos. Peque-
nas coisas signi cativas feitas sem perceber por força do hábito
desaparecerão para sempre e sua falta será profundamente sentida.
Conforme a morte se aproxima eo ego enfraquece, o incons-
ciente se esvai e, em breve, estaremos quase imersos no divino.
Deus, como o imaginou Meister Eckhart, é "um grande rio sub-
terrâneo'" e, à medida que somos suave emansamente levados por
suas águas, nos sentimos extremamente contentes e completamente
curados.

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Deixo este mundo tão nu quanto vim,
mas me envolve um traje invisivel,
que espero possa a outro me acompanhar.
Al Kreinheder,1913-1990

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Bste@um iuro diierente, ortginal,
Mais literário do Gue diditico,
quanto ao estile; apesar do tema,
leve e agradávelde laz quanto ao
tom,Baseia-sena experiência
pessoal do autor, terapeuta
junguiane, enirentando doenças
glravesalongodavida-
tubaraulose,artrite ecâncer- e
diversosGasOsde padentes. Sua
abordagem, com interpretacoes
sümbólicas eimaginaçãoativa, ê
de facilcOmpreensầoparatodlos
Gye tem a mante e oGOração
aberos. Recomendadoa
terapeutaE pre ssionais que
trabalhamcom pessoasdeentese
aos propriosdoentes.
Albant Kriaheder dinicou@mlos
Angles (pormaisde 25anes e
ImỘHzeudecancek.
em 1990aos76 anos.

ISBN8382304346

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