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1. Introdução
Diante desses paralelos e analogias, podemos atrever-nos a considerar a neurose obsessiva com o
correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose obsessiva como uma
religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal. A semelhança fundamental
residiria na renúncia implícita à ativação dos instintos constitucionalmente presentes (...) (Freud,
1917/2006, p. 116).
Na obra Totem e Tabu (1912/2006), a ligação básica entre neurose e devoção religiosa
permanece e ganha novas formulações. Freud direciona sua atenção para os costumes das
tribos aborígenes da Austrália que, segundo o autor, por serem a sociedade mais distante
culturalmente da nossa, podem fornecer uma imagem próxima de como se deu a socialização
dos primeiros homens.
Posteriormente, na obra, Freud (1912/2006) propõe uma narrativa mítica que procura
reconstruir o momento primeiro que deu início às organizações sociais e à prática religiosa.
Na narrativa, os primitivos viveriam em pequenas hordas chefiadas por um macho mais velho,
poderoso, violento e ciumento. Todas as fêmeas da horda seriam sua propriedade. Os outros
machos, na medida em que ameaçavam o seu poder, eram mortos, castrados ou expulsos da
horda. Um dia, todos os filhos expulsos uniram-se com o intuito de derrotar o pai. Eles o
mataram e o devoraram cru. Tomados por muito remorso e um enorme sentimento de culpa,
os irmãos selaram um acordo: para que a vida em comunidade pudesse existir, ninguém mais
ficaria no lugar que outrora havia sido ocupado pelo pai e os homens renunciaram a posse das
mulheres, instituindo a lei do incesto.
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O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e,
pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua
força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma
repetição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da
organização social, das restrições morais e da religião (Freud, 1912/2006, p.170).
O autor supõe que o sistema totêmico tenha surgido a partir das mesmas condições
existentes no complexo de Édipo. Irá interpretar, então, que o animal totêmico é um substituto
do pai. Sendo o totem um substituto da figura do pai, as duas principais restrições do
totemismo – não matar o totem e não ter relações com as mulheres de um mesmo clã –
coincidem com os dois crimes do Édipo: assassinar o pai e dormir com a mãe.
Jacques Lacan (1995), em sua releitura da obra de Freud (1912), propõe a seguinte
interpretação do mito: os filhos mataram o pai para interditarem a si mesmos, e esse ato
acabou demostrando a impossibilidade de se dar um fim à figura paterna. “O pai simbólico é
uma necessidade da construção simbólica, que só podemos situar num mais-além, diria quase
que numa transcendência” (Lacan, 1995, p. 225). Quando o pai é elevado à condição
simbólica, torna-se o Nome-do-Pai, termo usado por Lacan para designar o papel da lei e da
interdição que regulamentará o desejo e a estrutura psíquica. Há nesse processo a necessidade
de se buscar uma proteção mais eficaz e permanente, resultando na criação de um mito
detentor de grande poder, na criação de um Deus. Nesse sentido o homem é o pai do Deus pai.
É a partir desse lugar deixado pelo pai, portanto, que a cultura se institui. É deste lugar
vazio também que o pai morto readquire sua potência. Primeiramente, isso se reflete sob a
forma do animal totêmico do clã, depois na figura dos heróis, deuses e demônios, e
posteriormente na imagem do Deus-Pai do monoteísmo judaico-cristão. Para Freud, todas as
religiões posteriores ao totemismo serão tentativas falhas de lidar com esse sentimento
ambivalente em relação ao pai.
de Freud se deu nas religiões monoteístas, ainda que o mito narrado em Totem e Tabu (1912)
representasse o surgimento da religião de maneira geral. Partindo de uma análise das
demonstrações religiosas de seu tempo, que remetiam ao comportamento neurótico obsessivo,
Freud procurou construir um sistema que englobasse as questões referentes à religião de
maneira mais ampla. Posteriormente, contudo, outros autores fizeram análises divergentes e
bastante interessantes. Diferentes narrativas sobre a origem da religião e sobre os tipos de
relação que os homens estabelecem com o sagrado ganharam destaque. Vários dos autores
recebem influência direta de Freud, ainda que construam caminhos e conclusões distintas. É o
caso, por exemplo, de Georges Bataille.
Na passagem do animal ao homem, sobre a qual sabemos pouca coisa, é dada a determinação
fundamental. (...) Sabemos que os homens fabricaram ferramentas e as utilizaram para prover sua
subsistência; depois, sem dúvida em pouco tempo para satisfazer "necessidades" supérfluas. Numa
palavra, distinguiram-se dos animais pelo trabalho. Paralelamente, impuseram-se restrições conhecidas
pelo nome interditos. Esses interditos recaíram essencialmente – e certamente – sobre a atitude com os
mortos. É provável que tenham tocado ao mesmo tempo – ou à mesma época - a atividade sexual.
(Bataille, 2014, p. 54)
[...] a transgressão nada tem a ver com a liberdade primeira da vida animal: ela abre um acesso para
além dos limites ordinariamente observados, mas reserva esses limites. A transgressão excede, sem o
destruir, um mundo profano de que é o complemento. A sociedade humana não é apenas o mundo do
trabalho. Simultaneamente – ou sucessivamente – o mundo profano e o mundo sagrado a compõe,
sendo suas duas forças complementares. O mundo profano é aquele dos interditos. O mundo sagrado se
abre a transgressões limitadas. É o mundo da festa, dos soberanos e dos deuses. (Bataille, 2014 p. 91)
Essa manifestação do sagrado como transgressão, porém, será revelada dentro das
religiões pagãs. Bataille afirma que o sagrado do monoteísmo cristão possui um caráter
qualitativamente diferente. No cristianismo, ele não é a busca pela continuidade e o retorno a
um modo de ser na imanência do universo, mas é determinado por uma unidade divina:
No mundo religioso primitivo, tinha-se de um lado um mundo das coisas transcendentes, das coisas de
que não havia participação a não ser quando eram destruídas, como coisas, na festa; definia-se assim o
mundo profano; e o mundo sagrado no mundo da imanência, da violência, da participação. A partir do
momento em que aparecem como sagrados o direito, a moral e a pessoa divina, o domínio do sagrado
deixa de ser inteiramente o domínio da imanência. Existe um mundo sagrado transcendente que não
existia na situação primitiva. Esse mundo sagrado transcendente é precisamente o que estipula a
necessidade de Deus como fiador de um mundo de coisas sagradas. De fato, a partir do momento em
que existe um mundo de coisas sagradas, o que se tornam as coisas que não o são? (Bataille, 2016, p.
114).
Bataille (2017), portanto, propõe que há mais de uma manifestação do sagrado, e mais
de uma maneira de se relacionar com ela. Seu foco se direciona ao sagrado das culturas pagãs,
nas quais o erotismo e o sacrifício são formas religiosas de se alcançar aquilo que é maior e
mais poderoso. O sagrado nessas religiões pagãs, diferentemente do cristianismo, se encontra
na relação entre transgressão e interdito. Os interditos revelariam e fomentariam a
transgressão, que por sua vez é dependente do interdito. (Bataille, 2014)
(...) o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais
assumidas pelo homem ao longo de sua história. Estes modos de ser do Mundo não interessam
unicamente à história das religiões ou a sociologia, não constituem apenas o objeto de estudo histórico,
sociológico, etnológico. Em última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem das
diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao
filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência
humana. (Eliade, 1992, p. 20)
outro. Caso o mundo fosse completamente sagrado, nada seria sagrado, pois o sagrado é
justamente aquilo que é incrivelmente superior a este mundo. Ele precisa de algo neutro que o
defina como algo superior. Essa neutralidade se encaixa no conceito de profano determinado
por Eliade (2001).
Em meio a esse processo, pretendemos trabalhar as seguintes questões: (i) Quais são
os limites da interpretação do fenômeno religioso como uma atitude neurótica? (ii) Quais as
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possíveis alternativas a essa interpretação dentro da psicanálise? (iii) Quais críticas podem ser
formuladas tomando como base as teorias de Bataille e Eliade? (iv) Quais possíveis
contribuições para a interpretação psicanalítica sobre a religião surgem do diálogo entre as
teorias?
2. Objetivos
Objetivo Geral -
Objetivos Específicos -
3. Metodologia
O objetivo, nesse primeiro momento, é identificar qual a perspectiva central sob a qual
a psicanálise interpreta a atitude religiosa e o fenômeno religioso e, também, quais as
alternativas dentro da própria psicanálise a essa perspectiva. Aqui, encaixam-se os objetivos
a), b) e c) de nossa pesquisa.
Num segundo momento, realizaremos a leitura analítica dos autores da filosofia que
trabalham o tema da religião. Será feita a leitura dos principais livros onde Georges Bataille
desenvolve sua teoria da religião, como "O erotismo", "O culpado", "Teoria da Religião", "A
experiência interior". Também investigaremos as considerações e teorias de Mircea Eliade
sobre o fenômeno religioso nos livros "O sagrado e o profano", "Mito e realidade", "História
das crenças e das ideias religiosas", "Imagens e símbolos".
4. Plano de trabalho
5. Cronograma
6. Referencias
Eliade, M. (2001) O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes
Freud, S. (2006). Atos Obsessivos e Prática Religiosa In: Edição Standard Brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.9. Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S. (2006). Totem e Tabu In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, v.13. Rio de Janeiro: Imago
Freud, S. (2006) O Futuro de uma Ilusão In: Edição Standard Brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, v.21. Rio de janeiro: Imago
Freud, S. (2006) O Mal-Estar na Civilização In: Edição Standard Brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, v.21. Rio de janeiro: Imago
Lacan, J. (1991) O Seminário, livro 4: A relação de objeto (2a ed.). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar
Lacan, J. (1991) O Seminário. Livro 7: A ética da psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar
Zizek, S. (2003) O real da ilusão cristã: notas sobre Lacan e a religião. São Paulo:
UNESP