Você está na página 1de 4

Giddens, A. (2002), Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

540 RELIGIÃO

tre e não um profeta à maneira dos chefes religiosos inteiramente a sua própria história, tendem a atribuir
do M é d i o Oriente. Confúcio não é vislo pelos seus valores e normas criadas socialmente à acção dos
seguidores como um deus, mas como o 'mais sábio deuses. Deste modo, a história dos dez mandamentos
dos homens sábios*. O Confucionismo pretende ajus- dados a Moisés por Deus é uma versão mítica das ori-
tar a vida humana à harmonia interior da natureza, gens dos preceitos morais que norteiam a vida dos
realçando a veneração dos antepassados. O Taoísmo crentes judeus e cristãos.
partilha princípios semelhantes, insistindo na medita- Feuerbach defende que, enquanto não entender-
ção e na não violência como meios para atingir uma mos a natureza dos símbolos religiosos que criámos,
vida superior. O Confucionismo e o Taoísmo perde- estamos condenados a ser prisioneiros das forças da
ram muita da sua influência na China devido à oposi- história que não podemos controlar. Feuerbach usa o
ção determinada do Governo. termo alienação para se referir à criação de deuses ou
forças divinas distintas dos seres humanos. Os valo-
res e ideias criados pelos seres humanos acabaram

Teorias da Religião por ser vistos como o produto de seres alheios ou dis-
tintos - forças religiosas e deuses. Enquanto no pas-
sado os efeitos da alienação foram negativos, o reco-
As abordagens sociológicas da religião ainda são for-
nhecimento da religião como alienação, de acordo
temente influenciadas pelas ideias dos três teóricos
com Feuerbah, promete grandes esperanças para o
'clássicos* da Sociologia: M a r x , Durkheim e Weber.
futuro. A partir do momento em que os seres huma-
Nenhum era crente e todos achavam que a importân-
nos entendam que os valores projectados na religião
cia da religião iria diminuir nos tempos modernos.
são, de facto, os seus, será possível concretizar esses
Todos acreditavam que a religião era, num sentido
valores na terra, em vez de os diferir para a outra
fundamental, uma ilusão. Os defensores das diferen-
vida. Os poderes que se acreditava'pertencerem a
tes doutrinas podem estar inteiramente convencidos
Deus, no Cristianismo, podem ser apropriados pelos
da validade das crenças que defendem e dos rituais em
próprios seres humanos. Os cristãos acreditam que,
que participam, contudo, estes três pensadores susten-
enquanto Deus é todo-poderoso e todo-misericordio-
taram que a grande diversidade de religiões e as suas
so, os seres humanos são imperfeitos e defeituosos.
ligações óbvias a diferentes tipos de sociedade fazem
Contudo, Feuerbach acreditava que o potencial para
com que essas convicções não sejam plausíveis. U m
o amor e para a bondade, e o poder de controlo sobre
indivíduo nascido numa sociedade australiana de
as nossas próprias vidas, estão presentes nas institui-
caçadores e recolectores tem forçosamente que ter
ções sociais humanas e podem materializar-se se
crenças religiosas completamente diferentes das de
entendermos a sua verdadeira natureza.
alguém nascido num sistema de castas na índia ou na
Europa medieval dominada pela Igreja Católica.
M a r x aceitou o ponto de vista de que a religião
representa a alienação humana. Julga-se frequente-
mente que Marx desprezava a religião, mas tal está
Marx e a religião
longe de ser verdade. Marx afirmou que a religião 'é
Apesar da sua influência nesta matéria, Kart Marx o coração de um mundo sem coração* - o.refúgio da
nunca estudou a religião em pormenor. A maior parte crueldade da realidade diária. N a opinião de M a r x , a
das suas ideias derivaram dos escritos de vários auto- religião na sua forma tradicional tende a desaparecer
res, teólogos e filósofos, do começo do século X I X . e tal deverá suceder. N o entanto, tal acontecerá por-
U m deles foi Ludwig Feuerbach, que escreveu um que os valores positivos incorporados na religião
U podem tomar-se ideais a seguir para melhorar a
trabalho famoso chamado A Essência do Cristianis-
mo" (Feuerbach, 1957; publicado pela primeira vez humanidade, e não porque os ideais e os valores em
em 1841). De acordo com Feuerbach, a religião con- si mesmos estejam errados. Não deveríamos temer os
siste em ideias e valores produzidos pelos seres deuses que nós próprios criámos e deveríamos deixar
humanos no decurso do seu desenvolvimento cultu- de lhes atribuir valores que podemos concretizar.
ral, mas projectados erroneamente em forças divinas Marx declarou, numa frase famosa, que a religião
ou deuses. Como os seres humanos não percebem tem sido o 'ópio do povo' . A religião adia a felicida-
RELIGIÃO 541

de e a recompensa para a eternidade e prega uma N a religião, o objecto de veneração é, na verdade, a


aceitação resignada das condições existentes nesta própria sociedade.
vida. A atenção é, deste modo, desviada das desi- Durkheim realça fortemente o facto de as religiões
gualdades e injustiças deste mundo pela promessa do não serem nunca apenas uma questão de fé. Todas as
que está para vir no outro. A religião tem um ele- religiões implicam cerimónias e rituais regulares, que
mento ideológico muito forte. As crenças e valores reúnem grupos de crentes. Nas cerimónias colectivas
religiosos justificam muitas vezes as desigualdades afirma-se e exalta-se um sentimento de solidariedade
de riqueza e de poder. O ensinamento de que 'o de grupo. A s cerimónias desviam os indivíduos dos
mundo será dos humildes*, por exemplo, sugere ati- problemas da vida social profana para uma esfera
tudes de humildade e de não resistência à opressão. mais elevada, onde se sentem em contacto com for-
ças superiores. Estas forças superiores, atribuídas aos
totems, influências divinas ou deuses, são realmente
Durkheim e o ritual religioso
a expressão da influência da colectividade sobre o
indivíduo.
A o contrário de M a r x , Émile Durkheim passou gran-
de parte da sua vida intelectual a estudar a religião, D o ponto de vista de Durkheim, as cerimónias e os
especialmente as religiões e m sociedades pequenas, rituais são essenciais para manter a coesão entre os
tradicionais. O trabalho de Durkheim, As Formas membros do grupo. É por esta razão que eles existem
Elementares da Vida Religiosa, publicado pela pri- não apenas em situações regulares de culto, mas tam-
meira vez em 1912, é talvez o estudo mais influente bém em vários momentos críticos da vida, quando se
de sociologia da religião (Durkheim, 1976). Dur- passa por transições sociais importantes como, por
kheim nâo relaciona a religião, em primeiro lugar, exemplo, o nascimento, o casamento e a morte. E m
com as desigualdades sociais ou o poder, mas com a praticamente todas as sociedades, há cerimónias e
natureza geral das instituições de uma sociedade. rituais em tais circunstâncias. Durkheim pensa que as
Baseia o seu trabalho num estudo sobre o totemismo, cerimónias colectivas reafirmam a solidariedade do
tal como este é praticado pelas sociedades aborígenes grupo num período e m que as pessoas são forçadas a
australianas, e argumenta que o totemismo represen- ajustar-se a grandes mudanças nas suas vidas. Os
ta a religião na sua forma mais 'elementar 1 ou sim- rituais funerários mostram que os valores do grupo
ples - daí o título do seu livro. sobrevivem à morte de cada indivíduo, e por isso for-
necem às pessoas enlutadas um meio de se ajustarem
U m totem, como já foi dito, era originariamente
às suas novas circunstâncias. O luto não é a expres-
um animal ou planta que tinha um significado simbó-
são espontânea da dor - ou, pelo menos, só o é para
lico especial para um determinado grupo. É um
os afectados pessoalmente pela morte. O luto é u m
objecto sagrado, olhado com veneração e rodeado
dever imposto pelo grupo.
por várias actividades rituais. Durkheim define a reli-
gião em termos de distinção entre o sagrado e o pro- Durkheim argumenta que nas pequenas culturas
fano. Objectos sagrados e símbolos, sustenta, são tra- tradicionais quase todos os aspectos da vida são per-
tados como separados dos aspectos de rotina da exis- meados pela religião. A s cerimónias religiosas tanto
tência - o domínio do profano. Excepto em cerimó- originam novas ideias e categorias de pensamento
^ nias especiais, é normalmente proibido comer o ani- como reafirmam os valores existentes. A religião não
mal ou a planta totem. Acreditava-se que o totem, consiste apenas numa série de sentimentos e de acti-
como objecto sagrado, tinha propriedades divinas vidades. N a verdade, condiciona o modo de pensar
que o separavam completamente de outros animais dos indivíduos nas culturas tradicionais. Mesmo as
que podiam ser abatidos ou de plantas que podiam ser categorias mais básicas do pensamento, incluindo as
consumidas pelo grupo. ideias de tempo e de espaço, foram moldadas origi-
Porque é que o totem é sagrado? D e acordo com nalmente e m termos religiosos. O conceito de
Durkheim, porque é o símbolo do próprio grupo e 'tempo*, por exemplo, tem a sua origem na contagem
representa os seus valores centrais. A reverência que dos intervalos das cerimónias religiosas.
as pessoas sentem pelo totem provém, de facto, do Durkheim acreditava que com o desenvolvimento
respeito que têm pelos valores sociais fundamentais. das sociedades modernas a influência da religião
542 RELIGIÃO

diminui. O pensamento científico substitui, cada vez moderno. Os primeiros empresários seriam, na sua
mais, as explicações religiosas e as actividades ceri- maioria. Calvinistas. O seu desejo de sucesso, que
moniais e rituais passam a ocupar só uma pequena ajudou a iniciar o desenvolvimento económico do
parte das vidas dos indivíduos. Durkheim pensa Ocidente, foi inicialmente inspirado pelo desejo de
como M a r x que a religião tradicional - isto é, a reli- servir a Deus. O sucesso material era, para eles, um
gião que envolve forças divinas ou deuses - está sinal de favor divino.
prestes a desaparecer. 'Os antigos deuses estão mor- Weber viu a sua pesquisa sobre as religiões mun-
tos', escreve Durkheim. N o entanto, afirma que, num diais como um só projecto. O seu debate sobre o
certo sentido, a religião, sob uma forma alterada, irá impacto do Protestantismo no desenvolvimento do
provavelmente continuar. M e s m o as sociedades Ocidente faz parte de uma tentativa global de enten-
modernas dependem para a sua coesão de rituais que der a influência da religião na vida social e económi-
reafirmem os seus valores. Assim, pode esperar-se ca em várias culturas. A o analisar as religiões orien-
que surjam novas actividades cerimoniais que substi- tais, Weber conclui que elas forneceram baneiras
tuam as antigas. Durkheim é vago acerca do carácter insuperáveis ao desenvolvimento do capitalismo
das mesmas, mas parece que tinha e m mente a cele- industrial, tal como este aconteceu no Ocidente. Isto
bração de valores humanos e políticos como a liber- não se deve ao facto das civilizações não ocidentais
dade, a igualdade e a cooperação social. serem atrasadas. Elas aceitaram simplesmente valores
diferentes dos que vieram a predominar na Europa.

Weber salienta que na China e na índia tradicio-


Weber e as religiões mundiais
nais houve, em certos períodos, um desenvolvimento
Durkheim baseia os seus argumentos num número significativo do comércio, da manufactura e do urba-
limitado de exemplos, embora defenda que as suas nismo, mas que estes não geraram os padrões radicais
ideias se aplicam à religião em geral. M a x Weber, de mudança social envolvidos no crescimento do
pelo contrário, efectuou um estudo profundo sobre as capitalismo industrial no Ocidente. A religião foi o
religiões de todo o mundo. Nenhum académico antes principal obstáculo a tal mudança. O Hinduísmo é,
ou depois dele efectuou um trabalho de tal alcance. por exemplo, o que Weber designa como uma reli-
A maior parte da sua atenção concentrou-se no que gião 4 do outro mundo*. O que quer dizer que os seus
chamou religiões mundiais ~ aquelas que atraíram um valores mais altos exaltam a fuga das fadigas do
grande número de crentes e que afectaram decisiva- mundo material para o plano mais elevado da exis-
mente o curso global da história. Estudou pormenori- tência espiritual. Os sentimentos religiosos e as moti-
zadamente o Hinduísmo, o Budismo, o Taoísmo e o vações geradas pelo Hinduísmo não se centram no
Judaísmo antigo (Weber, 1 9 5 1 , 1 9 5 2 , 1 9 5 8 , 1 9 6 3 ) e controlo ou na estruturação do mundo material. Pelo
na Ética protestante e o Espírito do Capitalismo contrário, o Hinduísmo concebe a realidade material
(1976; publicado pela primeira vez em 1904-5) e nou- como um véu que oculta os verdadeiros interesses
tros escritos debateu longamente o impacto do Cris- que deveriam orientar a humanidade. O Confucionis-
tianismo na História do Ocidente. Contudo, não com- mo também agiu de forma a afastar os esforços do
pletou o seu projectado estudo sobre o Islamismo. desenvolvimento económico, tal como este Veio a ser
entendido no Ocidente, insistindo mais na realização
Os escritos de Weber sobre religião diferem dos de
da harmonia com o mundo do que promovendo o
Durkheim, na medida em que concentrou a sua aten-
controlo activo deste. Embora a China tenha sido,
ção na relação entre a religião e as mudanças sociais,
durante um longo período, a civilização mais podero-
coisa a que Durkheim deu pouca atenção. Também
sa e culturalmente mais desenvolvida do mundo, os
contrastam com o trabalho de M a r x , porque Weber
seus valores religiosos dominantes actuaram como
defende que a religião não é necessariamente uma
travão em relação a um envolvimento sólido como o
força conservadora. Pelo contrário, os movimentos
desenvolvimento económico (per se).
inspirados na religião têm muitas vezes produzido
transformações sociais espectaculares. Assim, o Pro- Weber vê o Cristianismo como uma religião de
testantismo - em particular o Puritanismo - foi a salvação, que envolve a crença de que todos os seres
fonte da visão do mundo capitalista no Ocidente humanos podem ser * salvos* se adoptarem a fé reli-
543 R E L I G I Ã O

giosa e seguirem os seus princípios morais. As vezes derramamentos de sangue - através de con-
noções de pecado e de perdão pela graça de Deus são frontos armados e guerras travadas por motivos reli-
aqui importantes. Geram uma tensão e uma dinâmica giosos.
emocional ausentes no essencial das religiões do Estas influências da religião que implicam divi-
Oriente. As religiões de salvação têm uma faceta sões, tão proeminentes na história, foram pouco men-
'revolucionária'. Enquanto as religiões do Oriente cionadas no trabalho de Durkheim. Este acentua,
cultivam uma atitude de passividade face à ordem acima de tudo, o papel da religião na promoção da
existente por parte do crente, o Cristianismo implica coesão social. Nâo obstante, não é difícil utilizar as
uma luta constante contra o pecado e, por isso, pode suas ideias para explicar as divisões religiosas, o con-
estimular a revolta contra a ordem existente. Apare- flito e as mudanças, bem como a solidariedade. N o
ceram chefes religiosos - como Jesus - que reinter- fim de contas, muita da força dos sentimentos que
pretaram as doutrinas existentes de forma a pôr em podem ser gerados contra outros grupos religiosos
causa a estrutura de poder vigente. provém do compromisso com valores religiosos
gerados dentro de cada comunidade de crentes.

O realce dado aos rituais e às cerimónias é um dos


Avaliação
aspectos mais valiosos dos escritos de Durkheim.
M a r x , Durkheim e Weber identificaram algumas Todas as religiões envolvem assembleias regulares de
características genéricas importantes da religião e os crentes, onde se observam prescrições rituais. Como
seus pontos de vista são complementares em alguns ele correctamente apontou, as actividades rituais tam-
aspectos. Marx estava certo ao afirmar que a religião bém marcam as principais transições da vida - o nas-
tem frequentemente implicações ideológicas, servin- cimento, a entrada na fase adulta (encontram-se
do para justificar os interesses dos grupos dominantes. rituais associados com a puberdade em muitas cultu-
Na história existem numerosos momentos que o com- ras), o casamento e a morte (Van Gennep, 1977).
provam. Tome-se, como exemplo, a influência do A o longo deste capítulo faremos uso das ideias
Cristianismo nos esforços dos colonialistas europeus desenvolvidas por estes três autores. Em primeiro
para submeter outras culturas. Os missionários que lugar, veremos os diferentes tipos de organização
pensaram converter os povos 'pagãos' ao Cristianis- religiosa, e analisaremos a relação entre religião e
mo eram, sem dúvida, sinceros. Contudo, o efeito dos género. Depois, iremos discutir o debate sobre a
seus ensinamentos reforçou a destruição das culturas secuiarização, a ideia de que a religião se está a tor-
tradicionais e impôs o domínio dos brancos. Quase nar menos significante nas sociedades industriais.
todas as denominações Cristãs toleraram ou admiti- Em seguida, consideraremos alguns desenvolvimen-
ram a escravatura nos Estados Unidos e noutras par- tos na religião mundial que desafiam a ideia de secu-
tes do mundo durante o século X I X . Desenvolveram- iarização - nomeadamente o aparecimento de novos
•se doutrinas que afirmavam que a escravatura se movimentos religiosos e o poder do fundamentalis-
baseava na lei divina e que os escravos desobedientes mo religioso.
ofendiam tanto a Deus quanto aos senhores.

Não obstante, Weber tem razão ao realçar o impac-


to perturbador, e muitas vezes revolucionário, dos Tipos d e organização religiosa
ideais religiosos na ordem social pré-estabelecida.
Apesar do apoio inicial das igrejas à escravatura nos
Igrejas e seitas
Estados Unidos, muitos chefes religiosos tiveram
posteriormente um papel-chave na luta pela sua abo- Todas as religiões implicam comunidades de crentes,
lição. As crenças religiosas impulsionaram muitos mas estas encontram-se organizadas de maneiras
movimentos sociais para derrubar sistemas de autori- muito diferentes. M a x Weber e o seu colega, o histo-
dade injustos, desempenhando, por exemplo, um riador de temas religiosos Ernst Troeltsch (Troeltsch,
papel importante no movimento dos direitos civis da 1981), foram os primeiros a apresentar uma classifica-
década de 60 nos Estados Unidos. A religião também ção das organizações religiosas. Weber e Troeltsch
influenciou mudanças sociais - provocando muitas estabeleceram uma distinção entre igrejas e seitas.

Você também pode gostar