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Resumo
Partindo da contribuição sociológica sobre o campo religioso de Pierre Bourdieu, o presente texto
procura esboçar uma breve reflexão sobre como a burocracia torna-se um aporte às religiões
sacerdotais que se relacionam com grupos dominantes e dominados, no pretexto de balizar um
imaginário social onde a desigualdade, exploração e as várias formas de discriminação perdurem de
modo latente e justificado. Para tanto, explora-se aspectos pertinentes da teoria de Bourdieu e a
contribuição sobre os estudos da burocracia, no intento de evidenciar como as instituições religiosas
burocráticas operam a fim de buscar a monopolização desse campo em disputa. Como consideração
diante do panorama suscitado, é possível indicar proposições emancipatórias, ainda que diminutas,
oriundas do próprio campo religioso.
Palavras-Chave: Sociologia da religião. Burocracia. Desigualdade. Discriminação.
Abstract
Accepting the sociological contribution on religious field of the sociologist Pierre Bourdieu, this
paper searches to delineate a brief reflection on how the bureaucracy become an support to the
sacerdotal religions that interact with dominant and dominated groups above the pretext of marking
a social imaginary which the inequality, exploitation and the many forms of discrimination continue
hardly and justifiably. Therefore, we examine many aspects of Bourdieu’s theory and the studies of
bureaucracy attempting to show how the bureaucrat religious institutions operate in order to seek
the monopolization of this field in dispute. As a consideration in front of this panorama, it is
possible to indicate emancipatory propositions, coming from the religious field itself.
Keywords: Sociology of religion. Bureaucracy. Inequality. Discrimination.
INTRODUÇÃO
O cenário do mundo globalizado onde o sistema capitalista impõe seus tentáculos em todas
as direções para manter a produção e reprodução dos bens materiais e simbólicos que estruturam
sua sobrevivência carrega consigo aspectos intrínsecos à modernidade. No limiar desse percurso
constata-se a potencialidade contínua da exploração, desigualdade e discriminação, portanto uma
configuração social que não cria condições favoráveis à emancipação dos povos sejam eles
pensados a partir de classes ou de grupos.
1
Mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (PPGS-UFGD). Endereço eletrônico: vitor_guidotti@live.com / vitor.guidotti@uniesp.edu.br
Pensar a relação entre religião e a condição social de grupos sejam opressores e oprimidos é
exercitar um raciocínio que coloca as atividades religiosas como não simplesmente algo que busque
a fé em si mesma, isto é, ao pensar a religião meramente como uma organização cujo intuito é
apenas dedicar-se a uma divindade ou divindades, perde-se todo o potencial implicado numa análise
de estruturas estruturantes e estruturadas, ou seja, de mecanismos onde são desenvolvidos e
reproduzidos discursos que contemplam alianças entre grupos e instituições. É preciso, portanto, ao
pensar as religiões de modo sociológico, compreender qual seu propenso papel na configuração
social imposta.
Está é a contribuição que Bourdieu (2011) nos traz. Ao elaborar a gênese e estrutura do
campo religioso, abarcando a contribuição dos clássicos da sociologia no que tange a religião e
apontando a partir desse contraste teórico direcionamentos que são propriamente seus, o autor
A primeira tradição trata a religião como língua, ou seja, ao mesmo tempo enquanto um
instrumento de comunicação e enquanto um instrumento de conhecimento, ou melhor,
enquanto um veículo simbólico a um tempo estruturado (e portanto, passível de uma análise
estrutural) e estruturante, e a encara enquanto condição de possibilidade desta forma
primordial de consenso que constitui o acordo quanto ao sentido dos signos e quanto ao
sentido do mundo que os primeiros permitem construir (BOURDIEU, 2011, p. 28).
Portanto, a religião pretende arquitetar explicações de mundo cuja aceitação seja condição
sine qua non para sua existência. Suas explicações precisam atender as ansiedades de todos os
grupos a partir das condições materiais e sociais de suas existências, respectivamente. Não seria
oportuno elaborar uma explicação teológica sobre a configuração social em que seja facilmente
identificada uma impossibilidade de transformação para aqueles em situação caótica ou uma
explicação em que os grupos dominantes fossem condenáveis, diante de sua posição opressora.
Mais do isso, as explicações religiosas necessitam ir de acordo com os interesses dos grupos
dominantes, para que estes mantenham-se em tal situação e que os grupos dominados compreendam
a condição que lhes foi imposta, pois isto lhe propicia à religião devida aliança com aqueles que
detêm o poder, pertinente para sua situação de monopolização do campo religioso, marcadamente
em disputa com outras denominações religiosas e variados discursos teológicos – aspectos que
trataremos adiante. Para isso, as explicações religiosas atuam subordinando-se “às funções
socialmente diferenciadas de diferenciação social e de legitimação das diferenças”, de modo que “as
divisões efetuadas pela ideologia religiosa vêm recobrir (no duplo sentido do termo) as divisões
sociais em grupos ou classes concorrentes ou antagônicas” (BOURDIEU, 2011, p. 30-31), sempre
em detrimento dos oprimidos e em favor dos opressores, seja no aspecto da desigualdade ou da
discriminação.
Neste ponto, Weber está de acordo com Marx ao afirmar que a religião cumpre uma função
de conservação da ordem social contribuindo, nos termos de sua própria linguagem, para a
“legitimação” do poder dos “dominantes” e para a “domesticação dos dominados”. [...] Em
outras palavras, a religião contribui para a imposição (dissimulada) dos princípios de
estruturação da percepção e do pensamento do mundo e, em particular, do mundo social, na
medida em que impõe um sistema de práticas e de representações cuja estrutura
objetivamente fundada em um princípio de divisão política apresenta-se como estrutura
natural-sobrenatural do cosmos (BOURDIEU, 2011, p. 30-31-32).
[...] não fornece justificação para a existência humana abstrata, mas sim na forma tal como
existimos em situações socialmente determinadas. [...] Não basta, contudo, que o conjunto
de práticas e esquemas de pensamento religioso seja coerentemente estruturado para
exercer essa função social. Sua eficácia simbólica reside em sua capacidade de inculcar-se
nos membros de uma dada sociedade, e assim moldar seu comportamento. Em outras
palavras, a religião só é socialmente eficaz quando seus esquemas de pensamento se
inscrevem nas consciências individuais e nelas se incorporam como se naturais fossem,
transformando-se então em hábitos. [...] Toda religião exerceria, assim, a função política de
eternizar uma dada ordem hierárquica entre grupos, gêneros, classes ou etnias (OLIVEIRA,
2011, p. 180-181).
Certo de que a religião contribui para a conservação da configuração social que notadamente
explora a partir do trabalho e discrimina por processos históricos de desigualdade, mantendo grupos
em situação subalterna, temos que avançar no raciocínio de Bourdieu e compreender como se da as
relações no campo religioso. Se o intento das religiões é monopolizar este campo para que sua
sobrevivência seja possível e sua expansão viável conjuntamente a partir de relações com grupos
dominantes que detêm o poder no campo político, faz-se obrigatório travar a disputa com várias
denominações religiosas e discursos proféticos que também pretendem participar da disputa, sejam
por motivos iguais ou diferentes.
Bourdieu então lança mão de uma classificação que insere dois principais protagonistas na
disputa, sendo que “a luta pelo monopólio do exercício legítimo do poder religioso sobre os leigos e
da gestão dos bens de salvação organiza-se necessariamente em torno da oposição entre (I) a Igreja
e o profeta e sua seita (II)” (2011, p. 58). Os agentes da Igreja seriam os sacerdotes - portanto
religiões sacerdotais - que intentam monopolizar o campo religioso e atribuir seu trabalho a
manutenção da ordem estabelecida; os profetas seriam agentes que surgem em determinadas
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Segundo Oliveira (2011, p. 182), “há trabalho religioso quando seres humanos produzem e objetivam práticas ou
discursos revestidos de sagrado, e assim atendem a uma necessidade de expressão de um grupo ou classe social”.
Edição 10 – Dezembro de 2015
aos que efetuem o trabalho, (vi) o controle do trabalho dos funcionários pelo gestores, isto é,
aqueles que lideram a organização, (vii) critérios pré-estabelecidos de promoção daqueles que
fazem parte da organização e (viii) diferenciação do cargo e daquele que o ocupa. Todas essas
características trazem para a organização – neste caso a instituição burocrática religiosa – condições
favoráveis para sua atuação na sociedade e a legitimação de seu trabalho, no intento de seus
objetivos.
As partir das considerações feitas por Freund (2003) quanto à concepção weberiana de
burocracia, é possível pensar em como os sacerdotes irão atuar de acordo com os interesses da
Igreja, isto é, no intuito de corroborar para a conservação da ordem social sem que estes agentes
tenham liberdade para alteração de suas funções, visto que os papéis de seus cargos estão
previamente estipulados, e que sua formação seja especialmente dedicada à sua função. Além disso,
o sacerdote possui como aparato de seu trabalho todo um aparato burocrático, que seria a instituição
burocrática, que lhe dá credibilidade perante leigo – aqueles que demandam os bens de salvação –
para sua atuação e, mesmo que ocorra algum erro ou incoerência por parte do agente – sacerdote –,
a própria instituição burocrática terá o controle social suficiente para suprimir tal deslize.
Quanto às forças externas descritas por Bourdieu (2011), essas seriam as relações com as
classes ou grupos dominantes, a qual a Igreja deve propor concessões para que haja uma aliança, e
os próprios profetas e suas seitas, em intenso embate perante a naturalização do discurso da religião
sacerdotal. A questão é que, pelo profeta não ter um aparato burocrático que lhe dê maior
confiabilidade para uma comunidade em relação ao sacerdote, este irá atuar sempre em
desvantagem e, não obstante, a Igreja irá impor tentativas de eliminá-lo, seja “por meio da violência
física ou simbólica (excomunhão)” ou agregando o profeta a sua instituição burocrática religiosa,
perante sua submissão por meio do “reconhecimento da legitimidade do monopólio eclesiástico”,
permitindo “sua anexação pelo processo de canonização” (2011, p. 62).
O papel das organizações burocráticas não está associado apenas à produção de riqueza, de
capital e das demais mercadorias e serviços, e, tampouco, à reprodução da mão de obra
como força de trabalho ou garantia da sobrevivência do trabalhador por meio do salário. O
papel das organizações burocráticas constitui-se em garantidor do controle social por meio
do estabelecimento das relações de poder, que sempre ocorrem entre desiguais. As
organizações burocráticas servem de unidades de dominação, sendo, igualmente,
responsáveis pela inculcação ideológica, pela adoção da submissão, pelos comportamentos
controlados e socialmente aceitos, todos entendidos como naturais. Assim, a organização
burocrática configura-se numa estrutura de controle e poder (FARIA e MENEGHETTI,
2011, p. 434).
É interessante perceber a colocação feita por Faria e Meneghetti (2011) sobre a burocracia
como controle e poder e o que Bourdieu (2011) fala sobre a atuação das religiosas. Parece-nos que
ambas as considerações são sinônimas, na medida em que suas características são as mesmas,
mesmo que a burocracia seja uma ferramenta e, portanto, um meio de controle poder, e a religião a
utilize como modo de atingir seus objetivos, que seria o controle e o poder, sejam para ou por uma
classe dominante, seja para a monopolização do campo religioso.
Nesse sentido, a partir da dinâmica das instituições burocráticas religiosas é possível pensar
em como a burocracia serve como aporte a manutenção do poder da Igreja no campo religioso, em
detrimento do antagonismo do profeta que considera tal estrutura estruturante sempre como errônea,
e busca a partir dos povos o apoio necessário para a efetiva contestação da produção de bens de
salvação que propiciem a conservação da ordem estabelecida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
FARIA, José H. de; MENEGHETTI, Francis K. Burocracia como organização, poder e controle.
RAE – Revista de Administração de Empresas, vol. 51, nº. 5, 2011. Disponível em
<http://rae.fgv.br/rae/vol51-num5-2011-1/burocracia-como-organizacao-poder-controle>. Acesso
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FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
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Concepções Materialista e Idealista. São Paulo: Martin Claret, 2005.
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SOUSA SANTOS, Boaventura. Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento. In: SOUSA
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_______________. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2014.