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Religião e economia no medievo

O antropólogo E. E. Evans-Pritchard, numa série de conferências realizadas em


Aberystwyth em 1965, abordando as principais teorias acerca da religião primitiva dominantes
na Antropologia Social, propunha que a religião devia ser abordada não como um fenômeno
social isolado, mas concebida nos termos da totalidade da cultura e da sociedade nas quais estão
situadas. Tratava-se de compreendê-la à maneira como os psicólogos da Gestalt se referiam à
Kulturganze, ou pelo que Mauss chamava de fait total. “Eles (os fatos religiosos) devem ser
vistos como uma relação de partes entre si dentro de um sistema coerente, de modo que cada
parte só faz sentido quando considerada em relação às demais e o próprio sistema também
fazendo sentido somente enquanto relacionado com outros sistemas institucionais, agora num
sistema mais amplo de relações” (Evans-Pritchard, 1978, 154).
Passados mais de cinquenta anos a perspectiva, inovadora em sua época, tornou-se,
pouco a pouco, um consenso (Rodríguez Becerra, 1989, 7). Centrada na análise dessa sua forma
elementar de manifestação que são os rituais, a Antropologia da Religião ressalta, da
complexidade das mensagens que veiculam, o caráter polissêmico que os caracteriza, ao
exprimirem relações que remetem ao sobrenatural, mas também ao econômico, ao social, e a
todo um sistema cultural de um povo. Assim, em seus processos de constituição e
transformação, destacam-se as relações da religião com a economia, mas também com a
política, com as formas de organização social, com a ecologia, e com todos os elementos
constitutivos da cultura. As crenças e práticas religiosas cumprem, portanto, um papel
destacado na preservação e na transformação das estruturas humanas, sociais e psíquicas.
Como bem destacou Jean-Claude Schmitt, “no mundo medieval, onde as forças
produtivas conhecem apenas fraco desenvolvimento (em vista daqueles da economia industrial)
e onde as relações dos homens entre si e com a natureza eram singularmente estreitas, a religião,
entendida num sentido amplo, como sistema de interpretação do mundo e de ação simbólica
sobre este, possuía um campo de extensão extremamente vasto: ela informava o conjunto das
representações que os homens tinham de suas atividades [...].” (Schmitt, 1976, 945). Em grande
parte das sociedades pré-modernas em que a terra é o meio de produção fundamental – dentre
elas a sociedade medieval – a natureza é representada como se fosse regida por um conjunto de
forças misteriosas e superiores ao homem, mas que precisam ser mobilizadas uma vez que são
determinantes para o resultado da atividade produtiva. Não é à toa, portanto, que a produção
envolve, com frequência, uma série de atos simbólicos por meio dos quais os indivíduos
procuram agir sobre os poderes invisíveis que controlam a reprodução da natureza e que se
imagina que podem conceder ou negar ao homem a realização de seus desejos, o de uma boa
colheita, o da reprodução dos rebanhos, o da própria mão-de-obra familiar, o da abundância da
caça.
Toda prática, a produtiva inclusive é, portanto, uma totalidade orgânica na qual os
aspectos materiais e os ideais estão intimamente articulados, e não há sentido em pretender
atribuir maior importância ou primazia a qualquer um deles. O conjunto de atividades que
materializam a produção humana das suas condições sociais de existência, assim como a
apropriação desigual dos seus frutos nas sociedades fundadas na desigualdade, constitui um
“ato” complexo que, em contextos como o medieval, fazia convergir em si diversas
manifestações que diferenciamos hoje sob o rótulo de econômicas, religiosas, políticas,
ideológicas etc. Esse todo complexo e tão intrinsecamente articulado torna extremamente difícil
e artificial qualquer pretensão de seccioná-lo em níveis distintos e isolados com base em rígidas
fronteiras de separação.
Em tais sociedades, apesar da diversidade das formas e níveis que a referência assume
em cada uma delas, concebe-se o funcionamento da natureza a partir de regras decalcadas de
uma analogia com o “mundo humano”. As forças invisíveis que regem a natureza assumem a
condição de “sujeitos”, de seres dotados de vida própria, de consciência, de vontade, e que são
capazes de se relacionarem entre si e com o homem (antropomorfização). Além de seus
elementos visíveis, a natureza é também integrada por mundos profundos imaginários habitados
por sujeitos, ideias, que personificam as forças invisíveis, os poderes superiores e misteriosos
do universo. Assim, poderíamos dizer que, nestas sociedades, o que chamamos de mundo
natural e de mundo social se equivalem mais ou menos plenamente, e, o que é mais importante,
ambos dependem da ação de poderes e/ou seres que nós consideraríamos sobrenaturais. Ora,
num mesmo movimento em que se “humanizam” as forças sobrenaturais, por analogia também
se sobrenaturalizam as potências sociais.
Claude Lévi-Strauss demonstrou, em um célebre estudo (Lévi-Strauss apud Godelier,
1981, 159), que nas sociedades primitivas as relações de parentesco constituem a estrutura de
organização do mundo mítico. Todas as narrativas míticas que “explicam” a origem do fogo,
da água, da comida, dos animais, por exemplo, descrevem as aventuras de personagens sobre-
humanos que, ligados entre si por relações de pais a filhos, de irmãos e irmãs etc., estão sujeitos
a todos os conflitos inerentes às relações de parentesco. Ora, na maioria das sociedades
primitivas, as relações de parentesco constituem objetivamente a estrutura dominante das
relações sociais, o esquema essencial de organização da sociedade. Parece haver, portanto, uma
relação de correspondência íntima entre a condição objetivamente dominante das relações de
parentesco na vida social e seu papel de armadura sociológica do mundo ideal dos mitos.
A Antropologia nos fornece, assim, uma achega importante para considerarmos as
articulações profundas que se manifestam no campo das religiosidades e das formas de
apropriação material e simbólica da natureza na sociedade medieval. Comecemos por reafirmar
a unidade profunda dos fenômenos a que nos referimos, explicitando, ademais, aquela que nos
parece configurar a sua mais adequada percepção. Não se trata, em primeiro lugar, de conceber
as expressões da religiosidade como meros reflexos do processo de produção e apropriação da
natureza, mas de ressaltar a estreita articulação destes elementos: na sociedade em questão, nem
a produção pode ser pensada como forma material apenas, alheia às manifestações da
sacralidade, nem a religião pode ser concebida como expressão puramente ideal ou metafísica,
alheia as atividades cotidianas da existência e da reprodução da existência humana.
Em segundo lugar, afirmar a unidade profunda destes fenômenos não implica em negar
as contradições e conflitos que esgarçam e tensionam as suas articulações, simplificando e
empobrecendo o seu funcionamento como se fosse pautado por uma mera repetição ad
nauseam. Mesmo as sociedades alheias à oposição de classes, estruturadas com base no
parentesco, não estão isentas de conflitos que se expressam também no campo mítico. E o que
diremos de uma sociedade como a que abordamos, em especial da sua armadura sociológica
estruturante do campo mítico, sociedade caracterizada por níveis extremos de hierarquia e
desigualdade sociais, fundada na exploração de classe, em especial na apropriação senhorial
dos excedentes camponeses? Se as distintas classes sociais vivenciam, até certo ponto, um
mesmo sistema social de forma diversa e até contraditória, talvez seja esta a referência de base
que faz com que nestas sociedades complexas o fenômeno religioso seja complexo e diverso
em suas manifestações.
Ou seja, mais do que uma atividade ou ato restrito em seu campo de realização, a
produção e apropriação do produto do trabalho constituem uma atividade plural, complexa e
múltipla em suas esferas de manifestação, encharcadas, poderíamos dizer, de religiosidades no
caso da sociedade medieval. Da leitura essencialmente religiosa do mundo – que o concebe
governado por seres dotados de uma consciência e de um poder superiores aos do homem –
decorre que a religião se configura imediatamente como um meio de ação sobre estes
personagens ideais, análogos ao homem, portanto capazes de escutar, de ouvir seus apelos e de
responder favoravelmente. Por esta razão, toda representação religiosa do mundo é inseparável
de uma prática (imaginária) sobre o mundo, a da prece, do sacrifício, da magia, do ritual.
Portanto, todo fenômeno religioso envolve sempre, necessariamente, crenças e práticas, fé
subjetiva e pragmática.
Dentre a documentação medieval, a liturgia da Igreja nos fornece indicações preciosas
sobre a articulação que consideremos. Um exemplar seu, o Liber Ordinum (Férotin, 1996),
coletânea de rituais e orações da Igreja ibérica vigente entre os séculos VI e XI, registra uma
série de bênçãos e orações reveladores da concepção cristã da divindade provedora, do “Deus
Produtor”. Fonte do milagre da reprodução das sementes, senhor das condições ideais da
produção, uma série de ritos definem o sentido cristão das relações do homem com a natureza,
contrapondo-se aos rituais de fertilidade e de proteção circunscritos e combatidos sob a
acusação de pagãos. Assim, na bênção das sementes, o oficiante refere-se a Deus como Criador
de todas as criaturas, “que deste condição a todas as sementes de gerar, criar e frutificar;
rogamos-te que piedoso voltes o olhar à nossa prece, e assim atribuas uma graça superior nos
cultivos das sementes, a fim de que retorne cem vezes mais numerosa e fecunda pelos anos
seguintes.” (Férotin, 1996, 166)
Na bênção dos primeiros frutos da colheita, o sacerdote invoca o Senhor na sua condição
de pleno proprietário da terra que foi entregue ao homem em usufruto – elemento material
central da relação – rogando-lhe que se volte sobre as primícias “dos frutos ou qualquer gênero
de alimento, o qual nós, teus servos, oferecemos a ti; (...) pelas quais imploramos a tua
clemência, Deus Nosso Senhor, para que o sol não abrase a terra e as plantas, que o granizo não
irrompa, nem a tempestade destrua; mas, com tua proteção, sejam conduzidas à maturidade,
para que teu povo te bendiga por todos os dias de sua vida.” (Férotin, 1996, 168) Em uma outra
oração de bênção dos grãos, a liturgia avança em um paralelismo simbólico entre a
“germinação” sagrada de Jesus Cristo e o milagre cotidiano da reprodução da semente,
originado da concessão divina aos homens da chuva, “a fim de que germinasse a erva na terra,
evoluindo até a maturidade.” (Férotin, 1996, 167)
Ainda na liturgia visigótica, os rituais cristãos de fertilidade, proteção e “controle” da
natureza, submetidos em conjunto ao poder amplo e discricionário e aos dons divinos,
dirigissem-se também ao exorcismo e à bênção dos meios de produção. Após o arroteamento
de um novo campo, na cerimônia de sua sagração, o oficiante vincula a própria atividade
produtiva à prescrição divina ao homem, para que trabalhasse a terra e fosse alimentado pelo
pão, rogando, em seguida, ao Onipotente, a concessão do benefício da abundância a seus servos.
Na bênção das novas foices a serem utilizadas na poda das vinhas e de árvores frutíferas, o
produto dos campos caracteriza-se, mais uma vez, como dom divino, decorrendo a abundância
dos frutos do contato “mágico” com o instrumento ungido pelo Senhor (Férotin, 1996, 167).
E seria possível considerar, a par deste último, o ritual da bênção da rede de pesca,
ampliando-se a uma atividade vinculada ao saltus a concepção ampla da divindade provedora
que envolve, antes de mais, o próprio instrumento, neste locus tradicional de “manifestação
demoníaca”. À rede, submetida ao olhar divino diante de seu altar, requisitava o oficiante a
proteção crucial que lhe permitiria produzir o alimento em abundância. “Não permitas
embaraçá-la com alguma arte dos inimigos, nem se emaranhar pelas palavras detestáveis dos
encantadores.” (Férotin, 1996, 174) Isto posto, a bênção consecutiva requisitava “apenas” a
cotidiana manifestação do dispensador de todos os bens, concepção com base na qual o
alimento, ou o produto do trabalho, decorre menos da ação humana do que da misericórdia do
Senhor (Férotin, 1996, 174).
Assim, a relação a que este verbete remete baseia-se na perspectiva de que as relações
sociais de produção, complexo e fundamental mecanismo de estruturação das sociedades
humanas, realizam-se, organicamente, sob a forma de relações religiosas, jurídicas e políticas
particulares – modos de dominação e coerção, formas de propriedade e organização social –
que não são meros reflexos ou apoios secundários, mas elementos constitutivos das relações de
produção desde os primórdios da sua efetivação. A “esfera” da produção é dominante não no
sentido de se manter distinta das formas jurídico-políticas e religiosas, ou de precedê-las lógica
e historicamente, mas exatamente no sentido de que essas são formas da produção, são os
atributos de um sistema produtivo particular. Talvez isso nos ajude, enfim, a entender o peso
enorme da Igreja e da religião na estruturação da sociedade medieval.

Mário Jorge da Motta Bastos

Bibliografia

BASTOS, Mário Jorge da Motta. Assim na Terra como no Céu. Paganismo, Cristianismo,
Senhores e Camponeses na Alta Idade Média Ibérica (séculos IV-VIII). São Paulo: EDUSP,
2013.
EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Antropologia Social da Religião. Rio de Janeiro:
Campus, 1978.
FÉROTIN, Marius (ed.). Le Liber Ordinum en usage dans l’Église Wisigothique et Mozarabe
d”Espagne du Cinquième au Onzième Siècle. Roma: Edizioni Liturgiche, 1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mythologiques. Apud GODELIER, Maurice. Fetichismo, religião e
teoria geral da ideologia. In: CARVALHO, Edgard de Assis (org.). Godelier: antropologia.
São Paulo: Ática, 1981.
RODRÍGUEZ BECERRA, Salvador. Introducción. In: La Religiosidad Popular I.
Antropología & Historia. Barcelona: Anthropos, 1989.
SCHMITT, Jean-Claude. Religion populaire et culture folklorique, Annales E. S. C., 31, 1976,
946-947.

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