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João Calvino

ORAÇÃO
O exercício contínuo da fé

1ª edição
©2016, John Knox e João Calvino
Compilação das obras originalmente
publicadas
Editora Vida em inglês com os títulos: Of Prayer: A
Rua Conde de Sarzedas, 246 Liberdade Perpectual Exercise of Faith.
CEP 01512-070 São Paulo, SP The Daily Benefits Derived From It.
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Cruz Santiago meios, salvo em breves citações, com
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indicação em contrário. Todas as citações
bíblicas e de terceiros foram adaptadas
segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa, assinado em 1990, em vigor
desde janeiro de 2009.
1. edição: set. 2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Calvino, João, 1509-1564.


Oração : o exercício contínuo da fé / João Calvino ; [tradução Carlos Caldas]. -- São Paulo : Editora
Vida, 2016.
Título original: Of Prayer : A Perpetual Exercise of Faith. The Daily Benefits Derived From It.
1. Igreja Reformada - Doutrinas 2. Igreja Reformada - Doutrinas - Obras anteriores a 1800 3.
Teologia doutrinária - Obras anteriores a 1800 I. Título.
Oração: o exercício
contínuo da fé
João Calvino

Da oração — o exercício perpétuo da fé


e os benefícios diários derivados dele.

As principais divisões do presente texto:


I. Conexão do tema da oração com os textos anteriores. A natureza
da oração e sua necessidade como exercício cristão (1, 2).
II. A quem a oração deve ser oferecida. Refutação da objeção apta
demais para se apresentar à mente (3).
III. Regras a serem observadas na oração (4-16).
IV. Por meio de quem a oração deve ser feita (17-19).
V. Refutação de um erro a respeito da doutrina de nosso Mediador e
Intercessor, com respostas aos principais argumentos formulados a favor da
intercessão dos santos (20-27).
VI. A natureza da oração, e algumas de suas ocorrências (28-33).
VII. A forma perfeita da invocação, ou uma exposição da Oração do
Senhor (34-50).
VIII.Algumas regras a serem observadas a respeito da oração, como o
tempo, a perseverança, a sensação da mente e a certeza da fé (50-52).
1
Resumo do conteúdo da parte anterior deste livro.
A transição para a doutrina da oração e sua
conexão com o tema da fé.

Da parte anterior deste trabalho, vimos com clareza quão completamente


destituído o homem é de todo o bem, quão desprovido, em todos os sentidos,
de buscar a própria salvação. Por conseguinte, se deseja encontrar auxílio em
sua necessidade, ele precisa ir além de si mesmo e procurar socorro em outro
lugar. Já se demonstrou que o Senhor se manifesta de forma bondosa e
espontânea em Cristo, em quem ele oferece toda a felicidade para nossa
miséria, toda a abundância para nossa necessidade, abrindo os tesouros do
céu para nós, para que possamos nos voltar com toda a fé para seu Filho
amado, depender dele em plena expectativa, descansar nele e nos apegarmos
a ele em plena esperança. Esta, de fato, é a filosofia secreta e oculta que não
pode ser aprendida por silogismos: a filosofia entendida de modo completo
pelas pessoas cujos olhos Deus abriu para contemplarem a luz em sua luz
(Salmos 36.9). Mas, depois que aprendemos pela fé que todas as coisas que
nos são necessárias ou defeituosas em nós são supridas em Deus e em nosso
Senhor Jesus Cristo — em quem está o prazer do Pai e em quem toda a
plenitude habita —, resta-nos extrair dessa fonte inexaurível e, em oração,
implorar dele o que aprendemos que nele se encontra. Saber que Deus é o
fornecedor soberano de todo o bem, que nos convida a apresentar a ele
nossos pedidos, e mesmo assim não nos aproximarmos dele nem lhe
pedirmos nada — longe de ser algo útil para nós —, será como quem sabe de
um tesouro, mas lhe permite permanecer enterrado. Por isso o apóstolo, a fim
de demonstrar que a fé desacompanhada de oração a Deus não pode ser
genuína, declara e afirma: a fé tem sua fonte no Evangelho; assim, pela fé em
nosso coração somos capacitados a invocar o nome de Deus (Romanos
10.14). E é exatamente o que ele expressou pouco antes, ou seja: o Espírito
de adoção, que sela o testemunho do Evangelho em nosso coração, nos dá
coragem para que façamos nossos pedidos conhecidos diante de Deus, e se
expressa com gemidos inexprimíveis, e nos capacita a clamar Aba, Pai
(Romanos 8.26). Este último ponto, que tocamos apenas com brevidade,
precisa agora ser considerado com mais detalhes.
2
Definição de oração. Sua necessidade e uso.

À oração, então, somos devedores para descobrir as riquezas entesouradas


para nós com nosso Pai celestial? Pois há um tipo de relacionamento entre
Deus e os homens pelo qual, tendo entrado no santuário superior, eles se
postam em sua presença e invocam suas promessas para que, quando a
necessidade obriga, aprendam pela experiência que não era vão tudo que eles
acreditavam apenas pela autoridade de sua palavra. Da mesma forma, vemos
que nada é colocado diante de nós como objeto de expectativa da parte do
Senhor que não sejamos ordenados a lhe pedir em oração, e isso é tão
verdadeiro que a oração desenterra os tesouros que o Evangelho de nosso
Senhor revela aos olhos da fé. Nenhuma palavra pode expressar com
suficiência a necessidade e a utilidade do exercício da oração. Não é sem
motivo que o Pai celestial declara que nossa única segurança reside em
invocar seu nome, pois, ao assim fazer, pedimos a presença de sua
providência para cuidar de nossos interesses, do seu poder para nos sustentar
quando estamos fracos e quase desfalecendo, de sua bondade para nos
receber com favor, ainda que estejamos miseravelmente carregados de
pecado; em suma, invocá-lo para que se manifeste a nós em todas as suas
perfeições. A partir daí, paz e tranquilidade admiráveis são concedidas à
nossa consciência; pois, lançando sobre o Senhor os apertos pelos quais
somos pressionados, descansamos plenamente satisfeitos com a segurança de
que nenhum dos nossos males lhe é desconhecido e de que ele é capaz de
fazer o melhor para nós e está desejoso de fazê-lo.
3
Objeção: a oração parece inútil, pois Deus já conhece nossas
necessidades. Resposta da instituição e finalidade da oração. Confirmação
pelo exemplo. Sua necessidade e propriedade. A oração nos lembra de modo
constante da nossa obrigação e nos leva a meditar sobre a divina
providência. Conclusão. A oração, um exercício muito útil. Comprovação de
tudo isso por meio de três passagens das Escrituras.

No entanto, alguns dirão: Mas ele não conhece nossas dificuldades sem
precisar ser avisado, e o que é para o nosso bem, de modo que, de alguma
maneira, lhe pareça supérfluo fazer pedidos por meio de nossas orações,
como se ele estivesse cochilando, ou mesmo dormindo, até ser acordado pelo
barulho da nossa voz? Os que assim argumentam não prestaram atenção à
finalidade pela qual o Senhor nos ensinou a orar. Não é nem por causa dele,
mas por nossa causa. Ele de fato deseja, e isto é justo, que a devida honra lhe
seja dada pelo reconhecimento de que tudo que os homens desejam ou
sentem seja útil, e que oremos para obter, seja derivado dele. Contudo,
mesmo os benefícios da homenagem que nós lhe ofertamos retornam para
nós mesmos. Por isso quanto mais os santos patriarcas proclamavam com
confiança as misericórdias de Deus a si mesmos e aos outros, mais forte
sentiam a motivação para a oração. Será suficiente fazer referência ao
exemplo de Elias, que, estando seguro do propósito divino de cumprir a
promessa de chuva dada a Acabe, assim mesmo orou ansiosamente de
joelhos e enviou seu servo sete vezes para ver o que estava acontecendo
(1Reis 18.42); não que ele desacreditasse do oráculo, mas por saber que era
sua obrigação apresentar o desejo na presença de Deus, para que sua fé não
ficasse sonolenta nem entorpecida. Por conseguinte, conquanto seja verdade
que, enquanto somos indiferentes ou insensíveis à nossa desgraça, ele nos
acorda e nos vigia e algumas vezes nos ajuda mesmo que não tenhamos
pedido. É bom para nós que supliquemos sempre. Em primeiro lugar, para
que nosso coração sempre se inflame com o desejo sério e ardente de buscá-
lo, amá-lo e servi-lo, enquanto nos habituamos a procurar seu auxílio como
uma âncora sagrada em toda necessidade; segundo, para que nenhum desejo,
nenhuma vontade — da qual nos envergonhemos na presença dele — possa
penetrar na nossa mente, enquanto aprendemos a depositar todos os nossos
desejos em sua presença e a derramar nosso coração diante dele; e que, por
fim, estejamos preparados para receber todos os seus benefícios com
verdadeira gratidão, enquanto nossas orações nos fazem lembrar de que tudo
procede de suas mãos. Além disso, tendo obtido o que pedimos, sejamos
persuadidos de que ele respondeu às nossas orações, sejamos conduzidos a
desejar seu favor de modo mais ardente e, ao mesmo tempo, ter maior prazer
em receber as bênçãos — cuja obtenção percebemos serem respostas às
nossas orações. Por fim, a prática e a experiência confirmam o pensamento de
sua providência em nossa mente, de maneira adaptada à nossa fraqueza,
quando ele não apenas promete que nunca falhará conosco, e com
espontaneidade nos concede acesso para a aproximação dele em todo
momento de necessidade, e que sua mão tem sido estendida para auxiliar seu
povo, não para diverti-lo com palavras, mas demonstrando ser ele um auxílio
presente. Por essas razões, ainda que nosso misericordioso Pai jamais cochile
nem durma, parece que isto acontece, para que ele possa nos exercitar,
quando de outra maneira estaríamos indiferentes ou preguiçosos para pedir, e
rogar, e suplicar com ardor por nossa necessidade. Logo, é um absurdo muito
grande dissuadir os homens da oração, por fingir que a Divina Providência,
sempre vigilante no governo do Universo, seja em vão importunada por
nossas súplicas, quando, ao contrário, Deus mesmo declara: “O Senhor está
perto de todos os que o invocam, de todos os que o invocam com
sinceridade” (Salmos 145.18). Não é melhor a alegação frívola de outros que
é supérfluo orar por coisas que o Senhor está pronto a conceder por sua
própria decisão; pois é o prazer dele que essas mesmas coisas, que fluem de
sua espontânea liberalidade, sejam reconhecidas como concedidas por nossas
orações. Isso é testificado pela sentença memorável nos salmos, à qual várias
outras correspondem: “Os olhos do Senhor voltam-se para os justos e os seus
ouvidos estão atentos ao seu grito de socorro” (Salmos 34.15). Esta
passagem, enquanto exalta o cuidado que a Divina Providência exerce de
modo espontâneo pela segurança dos cristãos, não omite o exercício da fé
pelo qual a mente é despertada da preguiça. Os olhos de Deus estão despertos
para assistir aos cegos em suas necessidades, mas ele, de igual maneira, se
satisfaz em ouvir nossos gemidos, para que nos dê prova melhor do seu
amor.
Dessa maneira, ambas as coisas são reais: “sim, o Protetor de Israel não
dormirá; ele está sempre alerta!” (Salmos 121.4); e ainda que nos pareça que
ele está mudo e entorpecido, ele se retira como se tivesse se esquecido de
nós.
4
Regras a serem observadas na oração. A primeira:
reverência a Deus. Como a mente deve se comportar.

Que, então, a primeira regra da oração correta seja ter o coração e a mente
moldados para que se tornem os que entram em conversação com Deus. Nós
o conseguiremos em relação à mente se, deixando de lado pensamentos e
preocupações carnais que possam interferir na pura e direta contemplação a
Deus, a mente tenha como único intento se encontrar em oração, mas
também, tanto quanto possível, ser elevada de si mesma. Não insisto com a
mente tão desengajada que não sinta as perturbações da ansiedade; ao
contrário, o fervor da oração é inflamado pela ansiedade. Assim, vemos que
os santos servos de Deus sofrem grande angústia, para não dizer solicitude,
quando fazem subir ao Senhor a voz do queixume a partir do abismo
profundo e das mandíbulas da morte. Digo que todas as preocupações
estranhas sejam expulsas — preocupações pelas quais a mente pode se
dispersar, se afastar do céu e rastejar sobre a terra. Quando digo que ela deve
ser elevada, quero dizer que ela não deve levar à presença de Deus quaisquer
coisas que nossa razão cega e estúpida tem o hábito de inventar, nem se
manter confinada nas pequenas medidas da própria vaidade, mas se elevar à
pureza digna de Deus.
5
Toda a distração da mente deve ser excluída, e todos os nossos
sentimentos devem ser envolvidos com seriedade. Isso é confirmado pela
forma de levantar as mãos em oração. Devemos pedir apenas o que Deus
permite. Para nos ajudar em nossa fraqueza, Deus concede o Espírito para
ser nosso guia em oração. O papel do Espírito nesse sentido. Devemos orar
com o coração e os lábios.

Ambas as coisas são especialmente dignas de nota. Primeira, todos os que


professam orar voltem os pensamentos e sentimentos e não sejam (como é
comum) distraídos por pensamentos dispersos; porque nada é mais contrário
à reverência devida a Deus que a frivolidade — indicativo da mente muito
dada à leniência e destituída de temor. Quanto a isso, devemos trabalhar com
a máxima diligência que pudermos, quanto mais difícil o percebermos; pois
não há homem que seja tão devotado à oração que não sinta muitos
pensamentos rastejantes em sua mente, ou que quebrem o ritmo da oração, ou
que o atrasem por alguma volta ou digressão. Consideremos quão
inconveniente isso é quando Deus nos admite em um relacionamento
familiar, mas, mesmo assim, abusamos de sua grande condescendência,
misturando coisas sagradas e profanas, e não o reverenciamos mantendo a
mente sob controle; é como se na oração estivéssemos conversando com uma
pessoa igual a nós, e assim nos esquecemos dele, permitindo que nossos
pensamentos vão e voltem. Saibamos então que só quem se impressiona com
a majestade de Deus e se envolve na oração livre de todos os afetos e
preocupações terrenas está preparado da forma devida. A cerimônia da
elevação das mãos em oração objetiva nos fazer lembrar de que estamos
muito distantes de Deus, a não ser que nossos pensamentos se elevem, como
está dito em Salmos: “A ti, Senhor, elevo a minha alma” (Salmos 25.1). E as
Escrituras repetidas vezes usam a expressão elevar nossas orações,
significando que as pessoas ouvidas por Deus não devem rastejar no atoleiro.
A suma é: quanto mais liberalmente Deus lida conosco, nos convidando com
condescendência a descarregarmos nossos fardos em seu colo, menos
desculpáveis seremos se essa bênção admirável e incomparável não superar
as demais coisas em nossa avaliação, e que a oração envolva com seriedade
todo nosso pensamento e sentimento. Isso não acontecerá, a não ser que
nossa mente se empenhe muito contra todos os impedimentos e assim se
eleve. Nossa segunda proposição é que devemos pedir a Deus só o que ele
permite. Pois ainda que ele nos peça para derramarmos o coração (Salmos
62.8), ele não permite desejos tolos e depravados; e quando ele promete que
concederá aos que creem os seus desejos, sua indulgência não chega a ponto
de se submeter aos caprichos deles. Falhas graves são cometidas em toda
parte nessas duas questões. Pois não apenas muitos sem modéstia e
reverência presumem invocar a Deus a respeito de suas frivolidades, mas
levam seus sonhos de modo desavergonhado, quaisquer que sejam, ao
tribunal de Deus. Tamanha é a tolice ou estupidez na qual laboram que têm a
audácia de impor a Deus desejos tão vis que eles se envergonhariam de
compartilhá-los com outros homens. Escritores profanos ridicularizaram e até
mesmo expressaram seu desprezo quanto a essa pretensão; mesmo assim, o
vício sempre prevalece. Por isso, os ambiciosos adotaram Júpiter como seu
patrono; os avarentos, Mercúrio; pessoas com aspirações literárias, Apolo e
Minerva; os belicosos, Marte; os licenciosos, Vênus; da mesma forma, no
tempo presente, como tenho observado, homens em oração dão licença a seus
desejos ilícitos como se estivessem contando histórias jocosas entre seus
companheiros. Deus não concede sua condescendência para ser ridicularizado
dessa maneira, mas vindica a própria luz e põe nossos desejos sob o limite de
sua autoridade. Por conseguinte, devemos atender à observação de João:
“Esta é a confiança que temos ao nos aproximarmos de Deus: se pedirmos
alguma coisa de acordo com a vontade de Deus, ele nos ouvirá” (1João 5.14).
Mas como nossas faculdades estão longe dessa perfeição, devemos tentar
auxiliá-las de alguma maneira. Como o olho da mente deve estar voltado para
Deus, a afeição do coração deve seguir na mesma direção. Para nos assistir
em nossa fraqueza, Deus nos dá a orientação do Espírito em nossas orações
para ditar o que é certo e regular nossos afetos. Porque “não sabemos como
orar”, o “próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis”
(Romanos 8.26). Isso não quer dizer que ele de fato ore ou gema, mas nos
estimula em nossos suspiros e desejos e confiança — incapazes de serem
concebidos por nossas forças naturais. Não sem razão Paulo dá o nome de
gemidos inexprimíveis às orações feitas pelos cristãos sob a orientação do
Espírito Santo, pois os exercitados de verdade em oração têm consciência de
que ansiedades cegas os oprimem e os deixam perplexos, para que eles
possam descobrir o que os faz orar; mas eles param e hesitam na tentativa de
sussurrar. Daí que orar da maneira correta é um dom especial. Não fazemos
esta afirmação como desculpa para nossa preguiça como se fôssemos deixar a
responsabilidade de orar com o Espírito Santo e assim darmos vazão ao
descuido ao qual somos tão inclinados, ainda que ouçamos algumas vezes a
expressão ímpia de que devemos esperar até que ele tome posse de nossa
mente enquanto ocupados de outra maneira. Nosso sentido é que, cansados
do desânimo e da preguiça, desejamos a ajuda do Espírito com ardor. E nem
Paulo, quando nos exorta a orar com o Espírito (1Coríntios 14.15), cessa de
nos estimular à vigilância, intimando que, enquanto a inspiração do Espírito é
efetiva para a formação da oração, ela não impede nem retarda os nossos
esforços; nesta questão Deus se agrada de testar quão eficientemente a fé
influencia nosso coração.
6
A segunda regra da oração: um sentimento da nossa necessidade.
Esta regra é violada por: a) Orações formais e superficiais; b) Hipócritas,
que não têm consciência dos seus pecados; e pela c) Distração na oração.
Alternativas.

Outra regra de oração é: ao pedir, devemos sempre sentir de verdade


nossas necessidades, e considerar com seriedade a carência de todas as coisas
pedidas, acompanhando a oração com o desejo sincero de obter o que
pedimos. Muitos repetem orações de maneira superficial, em uma forma já
estabelecida, como se estivessem realizando uma tarefa para Deus, ainda que
a confessem um remédio necessário para os males da sua condição, pois lhes
seria fatal serem deixados sem o auxílio divino pelo qual imploram; mesmo
assim, parecem realizar um dever por costume, porque a mente deles
permanece fria nesse ínterim, e eles não ponderam no que pedem. Um
sentimento geral e confuso de sua necessidade os impulsiona a orar, mas isso
não os faz solícitos como em uma questão de consequência presente, para que
eles possam obter o suprimento de suas necessidades. Além disso, não
podemos imaginar nada mais odioso, nem mais execrável a Deus, que a
ficção de pedir o perdão dos pecados, enquanto quem pede, ao mesmo tempo,
não se considera pecador ou, pelo menos, não se vê nesse momento como
pecador; em outras palavras: uma ficção que Deus tem na conta de um
escárnio? No entanto, a humanidade, como já disse, é cheia de depravação;
então, no modo do culto superficial, eles sempre pedem muitas coisas a Deus
que pensam que lhes acontecerão sem a beneficência divina, ou que lhes
virão de algum outro lugar, ou que já são sua propriedade. Essa é outra falta
que parece menos hedionda, mas não deve ser tolerada. Alguns murmuram
orações sem meditar, sendo seu único princípio que Deus deve ser propiciado
pela oração. Os cristãos devem ser vigilantes quanto a nunca aparecer na
presença de Deus com a intenção de apresentar um pedido, a não ser que
estejam sob séria impressão e, ao mesmo tempo, desejem obter o que pedem.
Embora se deva pedir só o que for para a glória de Deus, não se pode, no
primeiro momento, pensar em nossas necessidades, ainda que não peçamos
com menos fervor e veemência de desejo. Por exemplo, quando oramos que o
nome divino seja santificado, essa santificação deve, por assim dizer, ser
desejada por nós com fervor, como uma intensa fome e sede.
7
Objeção ao fato de que nem sempre precisamos orar. Resposta: devemos
orar sempre. Esta resposta é confirmada mediante o exame dos perigos pelos
quais nossa vida e salvação são ameaçadas a cada momento. É confirmada
ainda pelo mandamento e permissão de Deus, pela natureza do verdadeiro
arrependimento e pela consideração da impenitência. Conclusão.

Se há objeção a este ponto, admito que a necessidade que nos impele a orar
nem sempre é igual, e a distinção nos é ensinada com proveito por Tiago:
“Entre vocês há alguém que está sofrendo? Que ele ore. Há alguém que se
sente feliz? Que ele cante louvores” (Tiago 5.13). Por conseguinte, o próprio
senso comum afirma que, como somos muito preguiçosos, precisamos ser
estimulados por Deus a orar de modo fervoroso sempre que se fizer
necessário. Davi fala do tempo em que Deus “pode ser encontrado” (um
tempo oportuno); pois, como ele declarou em várias outras passagens, quanto
mais difíceis as circunstâncias, os aborrecimentos, os temores e outros tipos
de pressão sobre nós, mais livre é nosso acesso a Deus, como se ele nos
convidasse para si mesmo. Não é menos verdadeira a injunção de Paulo de
orar “em todas as ocasiões” (Efésios 6.18); pois, conquanto prosperemos, de
acordo com nosso ponto de vista, as coisas acontecem, e ainda que possamos
estar rodeados de alegria por todos os lados, não há um momento em que
nossa vontade não nos exorte a orar. Um homem tem muito trigo e vinho;
mas como ele não pode desfrutar de um pedaço de pão, a não ser pela
contínua generosidade de Deus, seus armazéns ou celeiros não o impedirão
de pedir o pão diário. Então, se considerarmos os perigos iminentes a cada
momento, o próprio medo nos ensinará que nenhum tempo deve ser vivido
sem oração. Mas isso pode ser mais bem conhecido em questões espirituais.
Quando os muitos pecados, dos quais temos consciência, permitirão que nos
assentemos seguros sem suplicar libertação da culpa e do castigo? Quando as
tentações nos darão uma trégua, tornando desnecessário que a ajuda chegue
depressa? Mais que isto, o zelo pelo Reino e glória de Deus não nos deveria
prender pelo começo, mas nos impulsionar sem pausa, para que todo
momento pareça apropriado. Mas não é sem motivo que a assiduidade na
oração é ordenada com tanta frequência. Não falo da perseverança, que será
considerada mais adiante; as Escrituras, porém, ao nos lembrar da
necessidade de constante oração, nos acusam de preguiça, porque não
sentimos quanto precisamos desse cuidado e dessa assiduidade. Por esse
princípio são restringidos, da mesma forma, e banidos da oração a hipocrisia
e o artifício de mentir a Deus. Deus promete estar próximo de quem o invoca
em verdade e declara que quem o busca de todo o coração o encontrará; por
conseguinte, quem se compraz na própria sujeira não pode ter desejo dele.
Um dos requisitos da oração legítima é o arrependimento. Daí a constante
declaração das Escrituras e Deus não ouve os ímpios; que as orações deles,
bem como seus sacrifícios, são abominação a ele. Pois é certo que quem
fecha seu coração encontrará os ouvidos de Deus fechados, e quem, pela
dureza de coração, provoca sua severidade o encontrará inflexível. Por isso
ele afirma em Isaías: “‘Quando vocês estenderem as mãos em oração,
esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas
orações, não as escutarei! As suas mãos estão cheias de sangue!’” (Isaías
1.15). Da mesma forma, em Jeremias: “[...] ‘[...] Ainda que venham a clamar
a mim, eu não os ouvirei’” (Jeremias 11.11); pois ele considera o mais alto
insulto o ímpio se orgulhar de sua aliança enquanto lhe profana o nome
sagrado com sua vida. Daí as queixas de Isaías: “[...] ‘Esse povo se aproxima
de mim com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe
de mim. A adoração que me prestam é feita só de regras ensinadas por
homens’” (Isaías 29.13). De fato, ele não limita isso apenas às orações, mas
declara que abomina o fingimento em todas as partes do culto. Daí as
palavras de Tiago: “Quando pedem, não recebem, pois pedem por motivos
errados, para gastar em seus prazeres” (Tiago 4.3). É mesmo verdade (como
em breve veremos mais uma vez) que o piedoso, nas orações que pronuncia,
não confia no próprio valor; assim, a admoestação de João não é supérflua: “e
recebemos dele tudo o que pedimos, porque obedecemos aos seus
mandamentos e fazemos o que lhe agrada” (1João 3.22); a consciência má
nos fecha as portas. Segue-se daí que ninguém, a não ser os adoradores
sinceros de Deus, ora de maneira certa, ou é ouvido. Portanto, que quem ora
se sinta insatisfeito com o que está errado com sua condição e assuma a
incapacidade de fazer algo sem o arrependimento — algo que diz respeito ao
caráter e sentimento do suplicante humilde.
8
A terceira regra: a supressão de todo o orgulho.
Exemplos: Daniel, Davi, Isaías, Jeremias, Baruque.

A terceira regra a ser adicionada é: quem vai até a presença de Deus para
orar deve se despir de todos os pensamentos vangloriosos, deixar de lado toda
ideia de valor; em suma, descartar toda a autoconfiança e humildemente dar a
Deus toda a glória, para não se arrogar a nada, mesmo que pouco, de si
mesmo, nenhum orgulho vão que faça com que Deus desvie seu rosto. Dessa
submissão, que lança fora toda a altivez, temos numerosos exemplos nos
servos de Deus. Quanto mais santos, mais humildes se prostravam quando
iam à presença do Senhor. Por isso Daniel, a quem o Senhor mesmo
concedeu altos elogios, disse: “Inclina os teus ouvidos, ó Deus, e ouve; abre
os teus olhos e vê a desolação da cidade que leva o teu nome. Não te fazemos
pedidos por sermos justos, mas por causa da tua grande misericórdia. Senhor,
ouve! Senhor, perdoa! Senhor, vê e age! Por amor de ti, meu Deus, não te
demores, pois a tua cidade e o teu povo levam o teu nome” (Daniel 9.18-20).
Ele não faz isso de forma indireta, da maneira costumeira, como se fosse um
dos indivíduos na multidão: antes, confessa individualmente culpa, e, como
suplicante comprometendo-se no asilo do perdão, declara de modo distinto
ter confessado o próprio pecado e o pecado do seu povo, Israel. Davi também
nos apresenta um exemplo dessa humildade: “Mas não leves o teu servo a
julgamento, pois ninguém é justo diante de ti” (Salmos 143.2). De maneira
semelhante, Isaías ora: “Vens ajudar aqueles que praticam a justiça com
alegria, que se lembram de ti e dos teus caminhos. Mas, prosseguindo nós em
nossos pecados, tu te iraste. Como, então, seremos salvos? Somos como o
impuro — todos nós! Todos os nossos atos de justiça são como trapo imundo.
Murchamos como folhas, e como o vento as nossas iniquidades nos levam
para longe. Não há ninguém que clame pelo teu nome, que se anime a
apegar-se a ti, pois escondeste de nós o teu rosto e nos deixaste perecer por
causa das nossas iniquidades. Contudo, Senhor, tu és o nosso Pai. Nós somos
o barro; tu és o oleiro. Todos nós somos obra das tuas mãos. Não te ires
demais, ó Senhor! Não te lembres constantemente das nossas maldades. Olha
para nós! Somos o teu povo!” (Isaías 64.5-9). Veja que eles não confiam em
nada, a não ser nisto: considerando que são do Senhor, eles não se
desesperam, pois são objetos do cuidado divino. Jeremias diz: “Embora os
nossos pecados nos acusem, age por amor do teu nome, ó Senhor! [...]”
(Jeremias 14.7). Isso foi escrito de maneira verdadeira e piedosa por um autor
incerto (quem quer que tenha sido ele), que compôs o livro atribuído ao
profeta Baruque: “Mas não são os que estão vivos que louvam a tua grandeza
e a tua justiça, isto é, aqueles que estão muito aflitos, os que andam curvados
e enfraquecidos, os que terão ficado cegos e os que estão com fome. ‘Ó
Senhor, nosso Deus, não pedimos que tenhas pena de nós por causa das
coisas boas que nossos antepassados e nossos reis fizeram’. [...] ‘Ouve-nos,
Senhor, e tem compaixão de nós, pois temos pecado contra ti’” (Baruque
2.18,19; 3.2).
9
Vantagem da supressão do orgulho. Essa atitude conduz ao sincero pedido
de perdão, acompanhado da confissão humilde e da segura confiança na
misericórdia divina. Isso nem sempre pode ser expresso por palavras. Essa é
uma atitude peculiar aos penitentes piedosos. Nunca se deve omitir a
introdução geral à busca do favor para nossas orações.

Em resumo, a súplica por perdão, com confissão humilde e sincera da


culpa, forma a preparação e o começo da oração justa. Pois o mais santo dos
homens não pode esperar obter algo de Deus, a não ser que tenha sido
livremente reconciliado a ele. Deus não pode ser propício a ninguém, a não
ser a quem ele perdoa. Logo, não é estranho que essa seja a chave pela qual
os cristãos abrem a porta da oração, como aprendemos de várias passagens de
Salmos. Davi, ao apresentar um pedido em um assunto diferente, diz: “Não te
lembres dos pecados e transgressões da minha juventude; conforme a tua
misericórdia, lembra-te de mim, pois tu, Senhor, és bom” (Salmos 25.7). E
outra vez: “Olha para a minha tribulação e o meu sofrimento, e perdoa todos
os meus pecados” (Salmos 25.18). Vemos também aqui a insuficiência de nos
responsabilizarmos por nossos pecados a cada dia que passa;
devemos também ter em mente os que podem há muito estar sepultados no
esquecimento. Pois em outra passagem o mesmo profeta, confessando um
crime grave, aproveita a oportunidade para retroceder até o próprio
nascimento: “Sei que sou pecador desde que nasci; sim, desde que me
concebeu minha mãe” (Salmos 51.5); não para extenuar a falta pela
corrupção de sua natureza, mas como que para acumular os pecados de toda a
sua vida, pois, quanto mais rigoroso ele fosse em condenar a si mesmo, mais
aplacável Deus seria. Ainda que os santos nem sempre expressem termos de
perdão de pecados, se refletirmos com cuidado sobre as orações apresentadas
nas Escrituras, a verdade do que declaro aparecerá com rapidez, isto é, a
coragem deles em orar era derivada apenas da misericórdia divina, e sempre
começavam pedindo-lhe perdão. Pois, quando o homem interroga sua
consciência, tão distante ele está de se considerar capaz de lançar suas
preocupações com confiança na presença de Deus que, se não confiasse na
misericórdia e no perdão, tremeria só de pensar em se aproximar de Deus.
Há, de fato, outra confissão especial. Quando os cristãos desejam libertação
do castigo, ao mesmo tempo eles oram para que seus pecados sejam
perdoados; pois seria absurdo desejar que o efeito fosse retirado enquanto a
causa permanece. Pois devemos nos acautelar de não imitar os tolos que,
ansiosos apenas para curar os sintomas, negligenciam a raiz da doença. De
fato, nosso esforço deve ser para ter Deus propício mesmo antes que ele
ateste seu favor por sinais externos, porque essa é a ordem que ele mesmo
escolhe, e será de pouco proveito experimentar sua bondade se não houver
consciência de que ele está apaziguado, e isso nos capacita a considerar seu
amor para conosco. Disso somos lembrados com constância pela resposta do
Salvador. Tendo determinado curar o paralítico, ele diz: “Teus pecados te são
perdoados”; em outras palavras, ele eleva nossos pensamentos ao objeto que
deve ser particularmente desejado, isto é, a admissão no favor de Deus, e
então concede o fruto da reconciliação ao nos perdoar. Mas além da
confissão especial da culpa presente — que deve ser feita pelos cristãos —,
ao suplicar o perdão de cada falta e castigo, a introdução geral que procura o
favor às orações nunca deve ser omitida, porque as orações nunca chegarão a
Deus, a não ser que sejam encontradas em livre misericórdia. Quanto a isso,
podemos usar as palavras de João: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é
fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injustiça”
(1João 1.9). Sob a Lei era necessário consagrar as orações pela expiação do
sangue, para que pudessem ser aceitas e para que o povo fosse advertido de
sua indignidade com relação àquele alto privilégio, e, sendo purgados de toda
impureza, eles encontrariam confiança na oração inteiramente na
misericórdia de Deus.
10
Objeção à terceira regra da oração. Da glória dos santos.
Resposta. Confirmação da resposta.

Todavia, algumas vezes, os santos, ao suplicar a Deus, pareciam confiar


em sua própria justiça, tal como quando Davi disse: “Guarda a minha vida,
pois sou fiel a ti [...]” (Salmos 86.2). Ezequias disse: “‘Lembra-te, Senhor, de
como tenho te servido com fidelidade e com devoção sincera, e tenho feito o
que tu aprovas’ [...]” (Isaías 38.3). Essas expressões querem dizer que pela
regeneração eles estão entre os servos e filhos a quem Deus demonstrará
favor. Já vimos como ele declara por meio do salmista: “Os olhos do Senhor
voltam-se para os justos e os seus ouvidos estão atentos ao seu grito de
socorro” (Salmos 34.15), e mais uma vez pelo apóstolo: “e recebemos dele
tudo o que pedimos, porque obedecemos aos seus mandamentos e fazemos o
que lhe agrada” (1João 3.22). Nessas passagens ele não estabelece um valor
para a oração como obra meritória, mas designa estabelecer a confiança dos
conscientes da integridade e inocência não fingidas, que todos os cristãos
devem ter, pois a afirmação do cego que teve a visão restabelecida está em
perfeito acordo com a verdade divina: Deus não ouve pecadores (João 9.31);
considerando que usamos a palavra “pecadores” no sentido comum das
Escrituras para designar os que, sem qualquer desejo por justiça, dormem
seguros em seus pecados; pois nenhum coração apresentará uma oração
genuína se ao mesmo tempo não desejar a santidade. As alegações feitas
pelos santos quanto à sua pureza e integridade correspondem às promessas
feitas em sua própria experiência, uma manifestação do que todos os servos
de Deus devem esperar. Por isso eles quase sempre usam esse modo de
oração quando se comparam com seus inimigos diante de Deus — eles
desejam ser libertos da injustiça pela mão divina. Ao fazer essas
comparações, não causa admiração que eles apresentem sua integridade e
simplicidade de coração e que, pela justiça de sua causa, o Senhor esteja
disposto a lhes dar socorro. Não tiramos do piedoso o privilégio de desfrutar
de uma consciência pura perante o Senhor, e assim se sentindo, assegurado
das promessas com as quais ele conforta e apoia seus verdadeiros adoradores,
mas devemos deixar de lado todo pensamento dos méritos próprios deles e
encontrar a confiança deles de sucesso na oração somente na divina
misericórdia.
11
Quarta regra da oração: a confiança inabalável de sermos ouvidos
nos incentiva à oração. O tipo de confiança necessária, ou seja, a
convicção profunda da nossa miséria, unida à esperança absoluta.
A partir dessas verdadeiras fontes de oração. Como a desconfiança
prejudica a oração. Em geral, a fé é necessária.

A quarta regra de oração é que, não obstante nosso ser se encontrar


rebaixado e verdadeiramente humilhado, devemos ter ânimo para orar com a
segura esperança de sermos ouvidos. Há de fato uma aparência de
contradição entre essas duas afirmações, entre o sentimento de justa vingança
divina e a firme confiança em seu favor, mas elas estão perfeitamente de
acordo, pois a bondade de Deus exalta os esmagados pelos próprios pecados.
Pois, como já demonstramos (cap. III, seções 1 e 2) que o arrependimento e a
fé andam de mãos dadas, sendo unidos por um laço indissolúvel — um
provocando terror, e a outra, alegria —, assim, na oração, ambos devem estar
presentes. Davi concorda com isso em poucas palavras: “Eu, porém, pelo teu
grande amor, entrarei em tua casa; com temor me inclinarei para o teu santo
templo” (Salmos 5.7). Deus, em sua bondade, inclui a fé, mas ao mesmo
tempo não exclui o temor; pois não só a majestade divina impele nossa
reverência, mas nossa própria indignidade também tira de nós todo o orgulho
e a autoconfiança e nos mantém em temor. A confiança da qual falo não é a
que liberta a mente da ansiedade e a suaviza com doce e perfeito descanso; tal
descanso é peculiar aos que em todos os seus assuntos não são perturbados
por nenhuma preocupação, feridos por nenhum remorso, agitados por
nenhum temor. Mas o melhor estímulo dos santos para orar é quando, em
consequência de suas necessidades, sentem a maior inquietude, e são levados
ao desespero, até que a fé, em momento oportuno, venha em seu auxílio;
porque em apuros dessa natureza a bondade de Deus resplandece sobre eles,
de modo que, enquanto gemem, sobrecarregados pelo peso das calamidades
do presente, e atormentados pelo medo de calamidades ainda maiores,
confiam na bondade e, dessa maneira, têm aliviadas as dificuldades das
provações e recebem conforto na esperança da libertação final. Por
conseguinte, é necessário que a oração de quem crê resulte desses
sentimentos e manifeste a influência deles; a saber, ainda que o cristão gema
no presente e ansiosamente tema novos males, ele ao mesmo tempo deve
recorrer a Deus, não duvidando de que este está pronto para estender sua mão
ajudadora. Pois não é fácil dizer quanto Deus se irrita por nossa falta de
confiança quando pedimos, mas não temos confiança na sua bondade. Por
conseguinte, nada está mais de acordo com a natureza da oração que
apresentá-la como uma regra fixa, que não deve ocorrer por acaso, mas sim
seguir os passos da fé. A este princípio Cristo nos direciona com as seguintes
palavras: “‘Portanto, eu digo: Tudo o que vocês pedirem em oração, creiam
que já o receberam, e assim sucederá’” (Marcos 11.24). Ele declara o mesmo
em outra passagem: “‘E tudo o que pedirem em oração, se crerem, vocês
receberão’” (Mateus 21.22). As palavras de Tiago concordam com isso: “Se
algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá
livremente, de boa vontade; e lhe será concedida” (Tiago 1.5). Ele expressa
com adequação o poder da fé ao contrapô-la à dúvida. Não menos digna de
menção é sua declaração adicional: quem se aproxima de Deus com a mente
hesitante, que duvida, sem a certeza de ser ouvido ou não, não obterá nada
em suas orações. Ele compara tais pessoas a ondas do mar, impelidas e
agitadas pelo vento. Por isso que em outra passagem ele denomina a oração
genuína de “oração feita com fé” (Tiago 5.15). Mais uma vez, considerando-
se que Deus declara que dará a cada homem de acordo com sua fé, ele afirma
a impossibilidade de obter algo sem fé. Em suma, a fé obtém tudo o que é
oferecido na oração. Este é o sentido de Paulo na passagem bem conhecida à
qual homens fracos dão pouca atenção: “Como, pois, invocarão aquele em
quem não creram? E como crerão naquele de quem não ouviram falar? E
como ouvirão, se não houver quem pregue? [...] Consequentemente, a fé vem
por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de
Cristo” (Romanos 10.14,17). Deduzindo-se de forma gradual a origem da
oração na fé, ele mantém que Deus não pode ser invocado com sinceridade, a
não ser por quem, mediante a pregação do Evangelho, sua misericórdia e boa
vontade se tornaram conhecidas, isto é, explicadas de termos conhecidos.
12
Essa fé e esperança plena consideradas extremamente absurdas por
nossos oponentes. Seu erro descrito e refutado por várias passagens da
Escritura, mostrando que a oração aceitável é acompanhada por essas
qualidades. Não há incompatibilidade entre essa certeza e o reconhecimento
de nossa destituição.

Nossos oponentes não consideram de modo algum essa necessidade. Como


consequência, quando dizemos que os cristãos devem sentir firme segurança,
eles pensam que estamos dizendo a coisa mais absurda do mundo. Mas, se
eles tivessem qualquer experiência com a oração verdadeira, sem dúvida
entenderiam que Deus não pode ser invocado de maneira tola sem o sentido
firme da benevolência divina. No entanto, como nenhum homem pode
perceber bem o poder da fé, sem ao mesmo tempo senti-lo no coração, que
proveito há em discutir com homens desse caráter, que com clareza
demonstram que jamais contaram com algo além da imaginação fútil? O
valor e a necessidade da segurança pela qual contendemos são aprendidos
principalmente por meio da oração. Quem não o enxerga dá prova de uma
consciência muito estúpida. Portanto, deixando os cegos dessa maneira,
fixemos nossos pensamentos nas palavras de Paulo: Deus só pode ser
invocado como tal por quem obteve conhecimento de sua misericórdia no
Evangelho e se sente seguro e firme de que a misericórdia está pronta a lhe
ser concedida. Que tipo de oração seria essa? “Senhor, estou de fato em
dúvida se tu te inclinas ou não para me ouvir; mas, estando oprimido pela
ansiedade, eu me dirijo a ti para que se for digno, tu possas me auxiliar.”
Nenhum dos santos — cujas orações nos são apresentadas nas Escrituras —
orou assim. Nem somos ensinados dessa maneira pelo Espírito Santo, que nos
diz: “Assim, aproximemo-nos do trono da graça com toda a confiança, a fim
de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento
da necessidade” (Hebreus 4.16); e em outro lugar nos ensina: “por intermédio
de quem temos livre acesso a Deus em confiança, pela fé nele” (Efésios
3.12). A confiança relativa à obtenção do que pedimos, a confiança ordenada
pelo Senhor, e ensinada por todos os santos mediante seu exemplo, deve ser
mantida com firmeza por nós, com as duas mãos, caso venhamos a orar com
algum proveito. A única oração aceitável a Deus é a que flui (se assim posso
me expressar) desse pressuposto de fé e é encontrada em plena segurança de
esperança. Ele poderia se contentar em usar o simples nome da fé, mas ele
acrescenta não apenas a confiança, mas liberdade ou ousadia, para que por
essa marca ele possa nos distinguir dos incrédulos, que de fato gostam de que
oremos a Deus, mas oram de maneira aleatória. Por isso, toda a igreja ora da
seguinte maneira: “Esteja sobre nós o teu amor, Senhor, como está em ti a
nossa esperança” (Salmos 33.22). A mesma condição é apresentada pelo
salmista em outra passagem: “Os meus inimigos retrocederão, quando eu
clamar por socorro. Com isso saberei que Deus está a meu favor” (Salmos
56.9). E mais uma vez: “De manhã ouves, Senhor, o meu clamor; de manhã
te apresento a minha oração e aguardo com esperança” (Salmos 5.3). Por
essas palavras concluímos que as orações são lançadas com inutilidade ao ar,
caso não sejam acompanhadas da fé, por meio da qual, como uma torre de
vigia, pode-se esperar por Deus em quietude. Com isso concorda a ordem da
exortação de Paulo. Pois antes de instar os cristãos à oração contínua no
Espírito, com vigilância e assiduidade, ele os exorta a tomar o “escudo da fé
[...] o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus”
(Efésios 6.16,17).
Que o leitor se lembre do que já observei: a fé jamais fracassa, mesmo que
acompanhada do reconhecimento da nossa impiedade, pobreza e iniquidade.
Quando os cristãos mais se sentem oprimidos pela pesada carga de
iniquidade, e destituídos não apenas de tudo o que pode buscar para eles o
favor de Deus, mas sobrecarregados com muitos pecados que fazem deles um
motivo de horror, mesmo assim eles não cessam de se apresentar, e esse
sentimento não os impede de comparecer à sua presença, pois não há outro
acesso a ele. A oração genuína não é aquela pela qual nós nos exaltamos com
arrogância diante de Deus, ou damos muito valor a tudo que seja nosso, mas
aquela pela qual, enquanto confessamos a culpa, apresentamos nossas
tristezas a Deus, como as crianças apresentam suas reclamações aos pais.
Disso o salmista nos dá exemplo: “[...] ‘Misericórdia, Senhor! Cura-me, pois
pequei contra ti’” (Salmos 41.4). Eu confesso de fato que esses aguilhões
seriam dardos mortais se Deus não desse socorro; no entanto, nosso Pai
celestial adicionou, com inefável bondade, a cura pela qual, acalmando toda a
perturbação, suaviza nossas preocupações e faz nossos medos desaparecerem.
Ele, em bondade, nos atrai para si mesmo; assim, removendo todas as
dúvidas e obstáculos, torna o caminho mais suave para nós.
13
À nossa indignidade opomos: a) O mandamento de Deus.
b) A promessa. Rebeldes e hipócritas de todo condenados.
Passagens da Escritura que confirmam o mandamento de orar.

Antes de qualquer outra coisa, ao unir-se conosco em oração, por essa


injunção mesma ele nos convence de uma teimosia ímpia, se não
obedecemos. Ele não poderia dar um mandamento mais preciso que o
presente em Salmos: “‘clame a mim no dia da angústia [...]’” (50.15). Como
não há ofício de piedade mais frequente nas Escrituras, não há motivo para
que dele nos afastemos. “‘Peçam’”, diz nosso Divino Mestre, “‘será dado;
busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta’” (Mateus 7.7). Nesse
ponto, uma promessa é adicionada ao preceito, e isso é necessário. Porquanto,
ainda que todos confessem que precisamos obedecer aos preceitos, muitos
recusariam o convite divino, se ele não tivesse prometido ouvir e encontrar-se
pronto para responder. Apresentadas essas duas posições, é certo que todos os
que alegam, na base de sofismas, que não precisam se apresentar de forma
direta a Deus não são apenas rebeldes e desobedientes, mas também culpados
de incredulidade, na medida de sua desconfiança das promessas. É o
momento certo para prestar atenção a isso, porque os hipócritas, fingindo
humildade e modéstia, desprezam o preceito, cheios de orgulho, bem como
negam todo o crédito ao convite gracioso de Deus; isto é, eles tiram de Deus
uma parte preciosa da adoração devida. Pois quando ele rejeitou os sacrifícios
— que pareciam consistir em algo santo —, declarou que o principal e mais
precioso à sua vista, acima de tudo, é ser invocado no dia da necessidade.
Portanto, quando ele pede o que lhe pertence, e insta conosco e urge de nós o
entusiasmo para lhe obedecer, não deve haver pretexto para dúvidas, não
importa quão especiais estas possam ser, pois nada disso nos servirá como
desculpa. Logo, todas as passagens das Escrituras que nos ordenam a orar são
colocadas diante de nossos olhos como muitas bandeiras para inspirar nossa
confiança. Seria muita pretensão ir à presença de Deus se ele não nos tivesse
convidado de antemão. Ele abre o caminho para nós por sua própria voz:
“‘[...] É o meu povo, direi; e ela dirá: “O Senhor é o meu Deus”’” (Zacarias
13.9). Vemos como ele se antecipa aos adoradores e deseja que eles o sigam,
por isso não precisamos temer que a melodia por ele entoada se mostre
desagradável. Tragamos à mente, de maneira especial, a nobre descrição do
caráter divino, pela confiança na superação de todos os obstáculos: “Ó tu que
ouves a oração, a ti virão todos os homens” (Salmos 65.2). Pode existir algo
mais amável ou agradável que contemplar o próprio Deus apresentado com
um título que nos assegura de que nada está de acordo com sua natureza do
que ouvir as orações dos suplicantes? Por essa razão o salmista infere que o
livre acesso não é concedido a uns poucos indivíduos, mas a todos os
homens, pois Deus se dirige a todos nos seguintes termos: “‘e clame a mim
no dia da angústia; eu o livrarei, e você me honrará’” (Salmos 50.15). Davi
apela à promessa concedida para obter o que pede: “‘Ó Senhor dos Exércitos,
Deus de Israel, tu mesmo o revelaste a teu servo, quando disseste:
“Estabelecerei uma dinastia para você”. Por isso o teu servo achou coragem
para orar a ti’” (2Samuel 7.27). Concluímos daí que ele estaria com medo,
mas a promessa lhe deu coragem. Por isso, em outra passagem, ele se
fortifica com o ensino geral de que Deus “realiza os desejos daqueles que o
temem; ouve-os gritar por socorro e os salva” (Salmos 145.19). Podemos
observar em Salmos como a continuidade da oração é quebrada, e uma
transição é feita, em um momento, ao poder de Deus, em outro, à sua
bondade, e em outro ainda, à fidelidade de suas promessas. Parece que Davi
mutila suas orações ao apresentar seus sentimentos. Os cristãos, contudo,
bem sabem por experiência que seu ardor cresce lânguido somente se novo
combustível for adicionado, e, por conseguinte, a meditação sobre a natureza
da Palavra de Deus na oração não é de modo algum supérflua. Não
declinemos a imitação do exemplo de Davi e a apresentação de pensamentos
que nos possam reanimar a mente apática com novo vigor.
14
Outras passagens a respeito das promessas pertencentes

aos pios quando invocam a Deus. Sua realização, apesar de não contarmos
com a mesma santidade que outros distintos servos de Deus, ainda que não
nos comprazamos na confiança vã, e nos apeguemos com sinceridade à
misericórdia de Deus. Quem não invoca a Deus pela necessidade premente
não é melhor que o idólatra. Essa concorrência de temor e confiança une
passagens diferentes da Escritura, para nos humilhar a nós mesmos por meio
da oração, fazendo nossas orações ascenderem.
É estranho que essas promessas agradáveis nos afetem de maneira tão fria,
ou rara, se o fazem, pois a maioria dos homens prefere oscilar entre altos e
baixos, esquecendo-se da fonte de águas vivas, e procure cisternas vazias em
vez de abraçar a liberalidade divina que lhes é oferecida de maneira
voluntária (Jeremias 2.13). “O nome do Senhor”, diz Salomão, “é uma torre
forte; os justos correm para ela e estão seguros” (Provérbios 18.10). Joel,
depois de predizer o desastre terrível e próximo, apresenta uma declaração
memorável: “‘E todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo [...]”
(Joel 2.32). Sabemos que isso se refere ao Evangelho. Apenas um em cem é
movido a se dirigir à presença de Deus, ainda que exclame como Isaías:
“‘Antes de clamarem, eu responderei; ainda não estarão falando, e eu os
ouvirei’” (Isaías 65.24). Em outro momento, essa honra é outorgada de modo
geral a toda a Igreja — honra pertencente a todos os membros de Cristo:
“‘Ele clamará a mim, e eu lhe darei resposta, e na adversidade estarei com
ele; vou livrá-lo e cobri-lo de honra’” (Salmos 91.15). Todavia, minha
intenção, como já declarei, não é enumerar todas as passagens, mas apenas
selecionar algumas delas, dentre as mais admiráveis, como modelos da forma
tão bondosa com que Deus nos atrai para si mesmo, e quão extrema é nossa
ingratidão quando, mesmo com motivos tão poderosos, nossa preguiça ainda
nos impede. Por conseguinte, que estas palavras sempre ressoem em nossos
ouvidos: “O Senhor está perto de todos os que o invocam, de todos os que o
invocam com sinceridade” (Salmos 145.18). De modo semelhante, Deus
declara, nas passagens citadas de Isaías e Joel, a abertura de seus ouvidos às
nossas orações e seu prazer quando lançamos a ele nossas preocupações,
como se fosse um sacrifício de odor suave. O benefício especial das
promessas que recebemos quando formulamos nossa oração, não com medo e
dúvidas, mas quando confiamos em sua palavra — cuja majestade em outro
momento nos paralisaria —, é o fato de ousarmos chamar-lhe Pai, com ele
mesmo condescendendo na sugestão desse nome amabilíssimo. Fortificados
por tais convites, é necessário saber que temos material suficiente para a
oração, pois nossas orações não dependem do nosso mérito, mas todo o seu
valor e esperança de sucesso são encontrados nas promessas de Deus e
dependem delas, de modo que não precisam de outro fundamento — sendo
necessário olharmos para cima ou para baixo, para a direita ou para a
esquerda. É preciso, por conseguinte, que se fixe em nossa mente que,
conquanto não nos igualemos à tão exaltada santidade dos patriarcas, profetas
e apóstolos, mesmo assim a ordem para orar é comum a eles e a nós também,
e a fé é comum, pois se dependemos da Palavra de Deus, somos, a esse
respeito, companheiros deles. Pois o fato de Deus declarar, tal como já
vimos, que ouvirá a todos e lhes será favorável encoraja o maior de todos os
miseráveis a esperar alcançar seu pedido; por isso, devemos atender às
formas gerais de expressão, que, tais como indicadas de forma geral, não
excluem ninguém, do primeiro ao último; o que se deve ter é sinceridade de
coração, consciência da própria indignidade, humildade e fé, que não
podemos, pela hipocrisia da oração enganadora, profanar o nome de Deus.
Nosso misericordioso Pai não rejeitará a quem ele não só encoraja a
comparecer à sua presença, mas o insta de todas as maneiras possíveis. Eis o
método de oração de Davi ao qual já me referi: “‘Ó Soberano Senhor, tu és
Deus! Tuas palavras são verdadeiras, e tu fizeste essa boa promessa a teu
servo’” (2Samuel 7.28). Em outra passagem, igualmente é dito: “Seja o teu
amor o meu consolo, conforme a tua promessa ao teu servo” (Salmos
119.76). E todo o conjunto dos israelitas sempre se fortificava com a
memória da aliança, pois Deus prescreveu que eles não deveriam orar com
medo (Gênesis 32.13). Nisso eles imitaram o exemplo dos patriarcas, em
particular Jacó, que, depois de confessar-se indigno das muitas misericórdias
recebidas da mão do Senhor, diz-se encorajado a fazer pedidos ainda maiores,
pois Deus prometera que os concederia a ele. No entanto, quaisquer que
sejam os pretextos empregados pelos não cristãos, quando não se dirigem a
Deus sempre que necessário, nem o buscam, nem imploram sua ajuda, eles
lhe tiram a honra devida, como se estivessem fabricando para si mesmos
novos deuses e ídolos, pois dessa forma negam que Deus seja o autor de
todas as suas bênçãos. Ao contrário, nada liberta de modo mais eficiente a
mente dos pios da dúvida que se armar com o pensamento de que nenhum
obstáculo será capaz de impedi-los enquanto forem obedientes ao
mandamento de Deus, segundo o qual nada lhe é mais grato que a obediência.
Então, uma vez mais, o que já disse fica ainda mais claro. Isto é, o espírito
ousado em oração lida bem com o medo, a reverência e a ansiedade, e não há
incoerência no fato de Deus erguer os prostrados. Dessa maneira, formas de
expressão aparentemente inconsistentes se harmonizam de maneira
admirável. Jeremias e Davi falam em apresentar com humildade nossas
súplicas a Deus (Jeremias 42.9; Daniel 9.18). Em outra passagem, Jeremias
diz: “[...] ‘Por favor, ouça a nossa petição e ore ao Senhor, ao seu Deus, por
nós e em favor de todo este remanescente [...]’” (Jeremias 42.2). Já aos
crentes sempre se diz que devem elevar as preces. Assim diz Ezequias,
pedindo ao profeta que assuma o ofício da intercessão (2Reis 19.4). E Davi
diz: “Seja a minha oração como incenso diante de ti e o levantar das minhas
mãos como a oferta da tarde” (Salmos 141.2). A explicação é que, mesmo
sendo crentes, persuadidos do amor paternal de Deus, alegremente confiantes
em sua fidelidade, e não tendo hesitação em implorar a ajuda que ele oferece
de modo voluntário, eles não exultam com uma segurança orgulhosa ou
supina, mas permanecem suplicantes humildes.
15
Objeção fundamentada em alguns exemplos, ou seja, as orações se
provaram eficientes, ainda que não segundo a forma prescrita. Resposta.
Tais exemplos, mesmo que não objetivem ser imitados por nós, são muito
úteis. Objeção: as orações dos fiéis algumas vezes não são eficientes.
Resposta confirmada por uma nobre passagem de Agostinho. Regra para a
oração correta.

Neste ponto, como objeção, várias questões são levantadas. As Escrituras


relatam que Deus algumas vezes atendeu a algumas orações feitas por mentes
que não estavam em ordem nem em paz. É verdade que era bem fundada a
razão pela qual Jotão imprecou contra os habitantes de Siquém: que um
desastre sobreviria sobre eles, pois ele estava inflamado com ódio e desejo de
vingança (Juízes 9.20); e Deus, ao atender à execração, parece aprovar os
impulsos apaixonados. Fervor semelhante aprisionou Sansão, quando orou
“[...] ‘[...] Ó Deus, eu te suplico, dá-me forças, mais uma vez, e faze com que
eu me vingue dos filisteus por causa dos meus dois olhos!’” (Juízes 16.28).
Pois, ainda que houvesse um tanto de bom zelo, o sentimento predominante
nele era o desejo fervente e, por conseguinte, vicioso por vingança. Deus
permite, e aparentemente pode se inferir que essas orações são efetivas, ainda
que não formuladas em conformidade com a regra da palavra. Como
resposta, digo em primeiro lugar que a lei perpétua não é revogada por
exemplos singulares; em segundo lugar, sugestões especiais algumas vezes
são feitas por alguns indivíduos, cujos casos se tornam diferentes dos da
maioria dos homens. Pois devemos prestar atenção à resposta que nosso
Salvador deu a seus discípulos quando eles pediram de maneira descuidada
para imitar o exemplo de Elias: “[...] ‘Vocês não sabem de que espécie de
espírito vocês são [...]’” (Lucas 9.55). Devemos, por isso, ir além e dizer que
os desejos concedidos por Deus nem sempre lhe são agradáveis; mas ele os
atende, porque é necessário, como uma forma de dar o exemplo, para
evidenciar a clara doutrina das Escrituras, isto é, que ele auxilia os miseráveis
e ouve os gemidos dos afligidos com injustiça que lhe imploram o auxílio.
Dessa maneira, ele executa seu juízo quando as queixas dos necessitados,
ainda que em si mesmas indignas de atenção, sobem a ele. Pois com que
frequência, ao infligir castigo aos ímpios por sua crueldade, roubo, violência,
luxúria e outros crimes, ao refrear a audácia e a fúria, e também ao derrubar
poderes tirânicos, ele declarou conceder assistência aos imerecidamente
oprimidos, ainda que, ao se dirigir a uma divindade desconhecida, eles
simplesmente dão murros no ar? Há um salmo que ensina com nitidez que as
orações não são sem efeito, ainda que não penetrem os céus pela fé (Salmos
107.6,13,19). Pois ele enumera as orações que, por instinto natural, a
necessidade obriga os não cristãos a fazer, não menos que os cristãos, e pelas
quais revela que Deus, ainda assim, lhes é propício. Isso serve para testificar,
mediante a disposição para ouvir, que as orações deles lhe são agradáveis?
Não; antes, em primeiro lugar, é para magnificar ou apresentar a misericórdia
de Deus pelas circunstâncias, que mesmo os desejos dos não cristãos não são
negados; e, em segundo lugar, para estimular os verdadeiros adoradores a
orarem com fervor, quando virem que algumas vezes mesmo os lamentos dos
ímpios não ficam sem resposta. Mas isso não é razão para que os cristãos se
desviem da lei divinamente imposta, ou tenham inveja dos não cristãos, como
se estes tivessem obtido muita coisa ao receber seu pedido. Observamos (cap.
III, seç. 25) que dessa maneira Deus deu preferência ao arrependimento
fingido de Acabe, para poder demonstrar quão pronto ele está a ouvir seus
eleitos quando, com contrição verdadeira, buscam seu favor. Ele também
repreende os judeus, que, pouco depois de experimentar a boa vontade divina
em ouvir suas orações, voltaram às suas inclinações perversas. Isso está
plenamente claro no livro de Juízes: sempre que eles choravam, mesmo que
suas lágrimas fossem enganosas, eram libertos das mãos dos inimigos.
Portanto, como Deus faz o sol brilhar de modo indiscriminado sobre maus e
bons, ele não despreza as lágrimas de quem tem uma boa causa, cujas
tristezas merecem alívio. Entretanto, ainda que os ouça, isso se deve mais à
salvação que ao suprimento de comida dado por ele a quem despreza sua
bondade.
Parece haver uma questão ainda mais difícil referente a Abraão e a Samuel.
Abraão, sem qualquer instrução da Palavra de Deus, orou a favor do povo de
Sodoma, e Samuel, contrariando a proibição expressa, orou a favor de Saul
(Gênesis 18.23; 1Samuel 15.11). Semelhante é o caso de Jeremias, que orou
para que a cidade não fosse destruída (Jeremias 32.16ss). É verdade que essas
orações foram recusadas, mas é difícil afirmar que eles oraram sem fé. Os
leitores simples, assim espero, ficarão satisfeitos com esta solução, isto é, que
se inclinando ao princípio geral pelo qual Deus se agrada em ser
misericordioso até mesmo com os indignos, eles não estavam de todo
destituídos de fé, ainda que nesse exemplo particular seu desejo não tenha
sido atendido. Agostinho observa com sagacidade: “Como os santos oram
com fé quando pedem a Deus algo contrário a seu decreto? A saber, porque
eles oram de acordo com sua vontade, não a vontade oculta e imutável, mas a
que ele lhes sugere, para que ele os ouça de outra maneira; e ele faz essa
distinção com sabedoria” (A cidade de Deus, livro XXII, cap. 2). Isso é dito
em verdade; pois, em seu conselho incompreensível, ele regula os
acontecimentos, para que as orações dos santos, ainda que envolvam a
mistura de fé e erro, não sejam vãs. E mesmo que isso não sancione a
imitação que sirva de desculpa para os santos, duvido que excedam os
devidos limites. Por conseguinte, mesmo não havendo uma promessa
específica, nosso pedido a Deus deve ter uma condição anexada. Aqui
podemos nos referir à oração de Davi: “[...] Desperta-te, meu Deus! Ordena a
justiça!” (Salmos 7.6); pois ele nos lembra que recebeu uma instrução
especial para orar pela bênção temporal.
16
As quatro regras de oração a seguir não devem ser seguidas com
rigidez, como se cada oração deficiente nelas em algum aspecto
fosse rejeitada por Deus. Sua demonstração por meio de exemplos.
Conclusão, ou resumo desta seção.

É também importante observar que as quatro leis da oração tratadas aqui


por mim não são reforçadas com muito rigor, como se Deus rejeitasse as
orações nas quais não encontrasse perfeita fé ou arrependimento,
acompanhadas de zelo fervoroso e desejos devidamente moldados. Dissemos
(seç. 4): ainda que a oração seja a relação familiar dos cristãos com Deus,
devem-se observar a reverência e a modéstia. Não devemos dar livre vazão a
nossos desejos, nem desejar nada distante do que Deus permite; além disso, a
não ser que a majestade de Deus seja desprezada, nossa mente deve ser
elevada à veneração pura e casta. Nenhum homem jamais o conseguiu com
perfeição absoluta. Pois, sem falar dos homens em geral, com que frequência
reclamações de Davi são intemperantes? Não que ele queira de fato
argumentar com Deus ou reclamar em seu juízo; no entanto, mediante a
enfermidade, ele não encontra consolo melhor que derramar suas dores no
colo do Pai celestial. Até mesmo nosso gaguejar é tolerado por Deus, e
perdão é concedido à nossa ignorância tantas vezes quantas necessitamos; de
fato, sem essa indulgência, não teríamos liberdade para orar. Mas ainda que
fosse intenção de Davi se submeter por inteiro à vontade de Deus, e orasse
com o mesmo fervor e não menor paciência, mesmo assim emoções
indesejáveis surgiriam — emoções que não variariam muito da primeira lei
que expusemos. Em particular, podemos ver em uma afirmação do salmo 39
como esse santo foi levado pela veemência da dor e se tornou incapaz de não
expressá-la. “Desvia de mim os teus olhos, para que eu volte a ter alegria,
antes que eu me vá e deixe de existir” (Salmos 39.13). Essa poderia ser
chamada “linguagem do homem desesperado”, cujo único desejo é que Deus
se retire e o deixe em seus dissabores. Não que sua mente devota mergulhe
nessa destemperança, ou que, como os réprobos, deseje se ver livre de Deus;
ele apenas reclama que a ira divina é mais do que pode suportar. Nesses
testes, surgem desejos que não estão de acordo com a regra da Palavra, na
qual os santos não consideram de forma devida o que é legal e correto. De
fato, orações contaminadas por tais faltas merecem ser rejeitadas; mas Deus
as perdoa, desde que os santos se lamentem, corrijam-se e caiam em si.
Faltas semelhantes são cometidas em consideração à segunda lei (quanto a
isso, veja a seç. 6), pois os santos sempre têm de lutar contra a própria frieza,
seus desejos e sua miséria, que nem sempre os motivam o suficiente à oração
séria. Também a mente deles vagueia e quase sempre se perde; por isso,
nessa questão, há também necessidade de perdão, para que suas orações,
longe de serem lânguidas ou mutiladas, interrompidas ou difusas, sejam
recebidas com uma recusa. Um dos sentimentos naturais que Deus imprimiu
em nossa mente é que a oração só é genuína caso os pensamentos se elevem.
Daí a cerimônia de levantar as mãos, a respeito da qual já advertimos — uma
cerimônia conhecida de todas as épocas e nações, ainda em uso. Mas quem,
ao levantar as mãos, não está consciente da preguiça e do coração apegado à
terra? Com respeito ao pedido por remissão de pecados (seç. 8), ainda que
nenhum cristão o omita, todos os exercitados de verdade na oração sabem
que eles não contam com um décimo do sacrifício a respeito do qual Davi
fala: “Os sacrifícios que agradam a Deus são um espírito quebrantado; um
coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás” (Salmos 51.17).
Logo, deve-se buscar sempre o perdão duplo; primeiro, porque há
consciência de muitas faltas que não os tocam para fazer que se sintam
insatisfeitos consigo mesmos como deveriam; segundo, na medida de sua
capacidade para desfrutar de ganho no arrependimento e no temor de Deus,
eles são humilhados com tristeza por suas ofensas, e oram pela remissão do
castigo determinado pelo juiz. O que mais deturpa a oração, caso Deus não se
manifeste com indulgência, é a fraqueza ou imperfeição da fé; mas é
maravilhoso que esse defeito seja perdoado por Deus, que sempre exercita
seu povo com juízos severos, como se ele quisesse mesmo lhes extinguir a fé.
A mais dura das provações é quando os crentes são forçados a exclamar: “Ó
Senhor, Deus dos Exércitos, até quando arderá a tua ira contra as orações do
teu povo?” (Salmos 80.4), como se as próprias orações deles o tivessem
ofendido. Da mesma maneira, Jeremias diz: “Mesmo quando chamo ou grito
por socorro, ele rejeita a minha oração” (Lamentações 3.8), não deixando
dúvida de que se encontrava muito perturbado. Muitos exemplos do mesmo
tipo ocorrem nas Escrituras, nos quais se manifesta que a fé dos santos
sempre foi misturada com dúvidas e temores, pois mantinham algum grau de
descrença ao mesmo tempo em que criam e esperavam. No entanto, pelo fato
de nunca chegarem ao limite extremo, essa é apenas uma razão adicional para
corrigirem suas faltas, para que a cada dia cheguem mais perto da lei perfeita
da oração e ao mesmo tempo percebam o abismo de males em que estavam
mergulhados. Eles tentavam encontrar a cura, mas trouxeram sobre si novas
doenças, pois não há oração que Deus não desdenhe sem causa; ele não
desconsiderou as manchas com as quais todos estavam poluídos. Não
menciono essas coisas para que os cristãos possam perdoar a si mesmos de
quaisquer faltas que tenham cometido, mas para que possam se vigiar e, por
conseguinte, suportar os obstáculos até vencê-los; e ainda que Satanás tente
bloquear todos os caminhos para nos impedir de orar, eles são capazes, não
obstante, de superar tudo, estando persuadidos com firmeza de que, mesmo
não isentos de problemas, seus esforços são agradáveis a Deus, e seus desejos
são aprovados, desde que se esforcem e mantenham o objetivo, mesmo que
não o alcancem de imediato.
17
Por meio de quem Deus deve ser invocado, ou seja, Jesus Cristo.
Isto se fundamenta na consideração da majestade divina e no preceito
e na promessa do próprio Deus. Portanto, Deus deve ser invocado
apenas em nome de Cristo.

Nenhum homem é merecedor de avançar no próprio nome e aparecer na


presença de Deus, nosso Pai celestial, para nos livrar de uma vez por todas do
temor e da vergonha, com os quais todos se sentem oprimidos. Por isso nos
deu seu Filho, Jesus Cristo nosso Senhor, para ser nosso Advogado e
Mediador, e sob sua guia podemos nos aproximar seguros, confiantes de que
com ele como nosso Intercessor nada que pedimos em seu nome nos será
negado, como não há nada que o Pai possa negar a ele (1Timóteo 2.5; 1João
2.1; cf. seç. 36 e 37). Para isso é necessário fazer referência a tudo que
ensinamos antes a respeito da fé; pois, como a promessa nos dá Cristo como
nosso Mediador, a não ser que nossa esperança de obter o que pedimos esteja
baseada nele, isso tirará de nós o privilégio da oração. Pois é impossível
pensar da terrível majestade de Deus sem que nos alarmemos; e o sentido da
nossa própria indignidade deve nos manter em nosso próprio lugar, até que
Cristo se interponha e converta um trono de glória terrível em um trono de
graça, como o apóstolo ensina que devemos nos aproximar “do trono da
graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos
graça que nos ajude no momento da necessidade” (Hebreus 4.16). Como se
estabeleceu uma regra sobre como orar, também uma promessa foi feita de
que: quem ora será ouvido, de modo que devemos orar em nome de Cristo. A
promessa é de que obteremos o que pedirmos em seu nome: “‘E eu farei o
que vocês pedirem em meu nome’”, diz nosso Salvador, “‘para que o Pai seja
glorificado no Filho. [...] Até agora vocês não pediram nada em meu nome.
Peçam e receberão, para que a alegria de vocês seja completa’” (João 14.13;
16.24). Então está claro que quem ora a Deus em outro nome — que não o de
Cristo — falsifica suas ordens com teimosia e considera a vontade dele como
nada, e com isso não obterá nenhuma promessa. Como Paulo disse: “pois
quantas forem as promessas feitas por Deus, tantas têm em Cristo o ‘sim’.
Por isso, por meio dele, o ‘Amém’ é pronunciado por nós para a glória de
Deus” (2Coríntios 1.20), isto é, são confirmadas e cumpridas nele.
18
Desde o princípio todos os cristãos foram ouvidos apenas
por meio dele: contudo, isso se restringe de modo especial ao período
subsequente à sua ascensão. O fundamento dessa restrição.

<
Devemos prestar atenção às circunstâncias do tempo com cuidado. Cristo
ordena aos discípulos que recorram à sua intercessão depois de sua ascensão
ao céu: “‘Nesse dia, vocês pedirão em meu nome [...]” (João 16.26). De fato,
é correto que, desde o princípio, quem orou foi ouvido por causa do
Mediador. Por essa razão Deus ordenou na Lei que apenas o sacerdote
entraria no santuário, levando o nome das 12 tribos de Israel sobre seus
ombros, e com a mesma quantidade de pedras preciosas em seu peito,
enquanto o povo permanecia à distância no átrio exterior e de lá unia suas
orações às do sacerdote. O sacrifício objetivava ratificar e confirmar as
orações deles. A sombria cerimônia da Lei ensinava em primeiro lugar que
todos estamos excluídos da face de Deus, e, por conseguinte, há a
necessidade do surgimento de um Mediador em nosso nome, que nos leve
sobre seus ombros e nos mantenha junto ao seu peito, para que sejamos
ouvidos na pessoa dele. Em segundo lugar, que nossas orações, como
dissemos, nunca estão livres de impureza, mas são purificadas pela aspersão
de seu sangue. E vemos que os santos, quando desejavam obter alguma coisa,
encontravam esperança nos sacrifícios, porque sabiam que dessa maneira
todas as orações seriam confirmadas. “Lembre-se de todas as tuas ofertas”,
diz Davi, “e aceite os teus holocaustos” (Salmos 20.3). Daí se infere que
desde o princípio Deus era aplacado pela intercessão de Cristo, ao receber as
orações do seu povo. Então por que Cristo fala de um novo tempo (“neste
dia”) quando os discípulos deveriam orar em seu nome, a não ser que essa
graça, agora apresentada de maneira mais luminosa, deveria também receber
nossa mais alta consideração? Nesse sentido, pouco antes ele disse: “‘Até
agora vocês não pediram nada em meu nome [...]’” (João 16.24). Não que
eles desconhecessem o ofício do Mediador (todos os judeus eram instruídos
nos rudimentos), mas eles não entenderam com clareza que Cristo, por sua
ascensão aos céus, seria o advogado da Igreja em maior escala. Por
conseguinte, para consolá-los da dor de sua ausência, ele assegura seu ofício
de advogado e diz que até aquele momento eles não contavam com o
benefício especial que teriam o privilégio de desfrutar quando, auxiliados
pela intercessão dele, invocariam a Deus com maior liberdade. Nesse sentido,
o apóstolo diz que temos “plena confiança para entrar no Lugar Santíssimo
pelo sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que ele nos abriu”
(Hebreus 10.19,20). Portanto, somos indesculpáveis se não abraçamos de
peito aberto (como se diz) o dom inestimável que nos está destinado.
19
A ira de Deus jaz sobre quem rejeita Cristo como Mediador.
Isso não exclui a intercessão recíproca dos santos na terra.

Além disso, considerando que Jesus é o único caminho e o único acesso


pelo qual podemos nos aproximar de Deus, os que se desviam do caminho e
rejeitam o acesso não têm qualquer outro recurso; o trono dele será apenas de
ira, juízo e terror. Em suma, como o Pai o consagrou nosso guia e cabeça,
quem o abandona ou o deixa de lado em qualquer esforço mancha e oculta o
selo que Deus imprimiu. Cristo, por conseguinte, é o único Mediador por cuja
intercessão o Pai se mostra propício e disposto a ouvir (1Timóteo 2.5). Pois
ainda que aos santos seja permitido usar intercessões, pelas quais eles
imploram a Deus a favor da salvação uns dos outros, e da qual o apóstolo faz
menção (Efésios 6.18,19; 1Timóteo 2.1), as intercessões dependem daquela
intercessão, tão distantes que estão dele. Pois as intercessões que como
membros do corpo de Cristo oferecemos uns pelos outros brotam do
sentimento de amor e têm como referência a cabeça do corpo, que é Jesus.
Assim, feitas em nome de Cristo, que mais podem declarar, a não ser que
nenhum homem deriva o menor benefício da oração senão pela intercessão de
Jesus? Como não há nada na intercessão de Cristo que impeça os membros da
igreja de oferecerem orações uns pelos outros, de modo que seja estabelecido
como princípio fixo, que todas as intercessões na igreja, portanto, tenham
como referência a intercessão de Cristo. Por isso devemos ser especialmente
cuidadosos para demonstrar nossa gratidão nesta questão: Deus perdoa nossa
indignidade, e não apenas permite que cada indivíduo ore por si mesmo, mas
permite que os cristãos intercedam uns pelos outros. Deus deu lugar na igreja
aos intercessores que mereceriam ser rejeitados quando oram por conta
própria; assim, quão presunçoso seria abusar da bondade ao usá-la para
obscurecer a honra de Cristo?
20
Refutação dos erros que interferem na intercessão de Cristo:
a) Cristo, o Mediador da redenção; os santos, mediadores da intercessão.
Resposta confirmada pelo claro testemunho da Escritura e por uma
passagem de Agostinho. A natureza da intercessão de Cristo.

Além do mais, os sofistas são culpados da mais pura leviandade quando


alegam que Cristo é o Mediador da redenção, mas os crentes são mediadores
da intercessão; como se Jesus tivesse realizado apenas a mediação temporária
e deixado a mediação eterna e imperecível para seus servos. Esse de fato é o
tratamento que ele recebe dos que fingem roubar-lhe o mínimo da sua honra.
Muito diferente é a linguagem das Escrituras, cuja simplicidade deve
satisfazer todo homem piedoso, sem se importar com os fingidos. Pois
quando João diz: “[...] Se, porém, alguém pecar, temos um intercessor junto
ao Pai, Jesus Cristo, o Justo” (1João 2.1), ele não anuncia apenas o advogado;
não está ele atribuindo a Cristo a intercessão perpétua?
O que Paulo quer dizer quando declara que Jesus “está à direita de Deus, e
também intercede por nós” (Romanos 8.34)? Quando, em outra passagem, ele
declara que Jesus é o único Mediador entre Deus e o homem (1Timóteo 2.5),
não está ele se referindo às súplicas mencionadas pouco antes? Tendo
previamente dito que orações devem ser oferecidas por todos os homens, ele
acrescenta de imediato, para confirmar a declaração, que há um só Deus e um
só Mediador entre Deus e o homem. Agostinho não apresenta uma
interpretação diferente, ao afirmar: “Os cristãos recomendam-se mutuamente
em suas orações. Mas aquele por quem ninguém intercede, enquanto ele
mesmo intercede por todos, é o único Mediador verdadeiro”. Ainda que o
apóstolo Paulo fosse um membro importante abaixo da autoridade de Cristo,
por ser membro do corpo de Cristo, e saber que o verdadeiro sumo sacerdote
da Igreja rasgou o véu do Santo dos Santos, e por firme e expressa verdade
entrou no mais íntimo santuário do céu em santidade — santidade não
imaginária, mas eterna (Hebreus 9.11,24) —, ele também pede orações dos
fiéis a seu favor (Romanos 15.30; Efésios 6.19; Colossenses 4.3). Paulo não
faz de si mesmo o mediador entre Deus e o povo, mas pede que todos os
membros do corpo de Cristo orem uns pelos outros, pois eles devem ser
simpáticos uns com os outros: se um sofre, todos sofrem com ele (1Coríntios
12.26). E assim as orações mútuas dos cristãos que trabalham na terra sobem
até o Cabeça, que subiu primeiro ao céu, e em quem há propiciação pelos
nossos pecados. Pois se Paulo fosse mediador, então os outros apóstolos
também o seriam, e assim haveria muitos mediadores, e a declaração de
Paulo não se sustentaria: “Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e
os homens: o homem Cristo Jesus” (1Timóteo 2.5), “em quem também
somos um” (Romanos 12.5), “se mantemos a unidade da fé no vínculo da
paz” (Efésios 4.3) (Agostinho, Contra Parmenian, livro II, cap. 8). De igual
maneira, em outra passagem Agostinho diz: “Se tu precisas de um sacerdote,
ele está acima dos céus, onde intercede por quem na terra morreu por ti”
(Agostinho sobre Salmos 94). Não imaginamos que ele se lance sob os
joelhos do Pai e, suplicante, interceda por nós; mas entendemos com o
apóstolo que ele aparece na presença de Deus e que o poder de sua morte tem
o efeito da intercessão perpétua por nós; tendo adentrado o interior do
santuário, ele continua até o fim do mundo a apresentar as orações do seu
povo, que permanece do lado de fora, no átrio exterior.
21
Sobre a intercessão dos santos que vivem com Cristo no céu. Ficção
dos papistas a esse respeito. Refutação: a) Absurdo; b) Ausência de
menção na Escritura; c) Apelo à consciência dos supersticiosos;
d) Blasfêmia. Exceção. Respostas.

A respeito dos santos que tendo morrido no corpo vivem em Cristo, se lhes
atribuímos orações, não imaginemos que contem com outro meio de suplicar
a Deus além de Jesus — o único caminho —, ou que as orações deles são
aceitas por Deus em outro nome que não o de Jesus. Portanto, como as
Escrituras nos conduzem só a Cristo, e como o Pai celestial se agrada em unir
todas as coisas nele, é o extremo da estupidez, para não dizer loucura, tentar
obter acesso por meio de outros, só para ser afastado dele sem quem o acesso
seja obtido. Mas quem pode negar que essa foi a prática por muito tempo, e
ainda é, onde quer que o papado prevaleça? Para buscar o favor de Deus,
impõem-se sempre os méritos humanos e sempre que Cristo é deixado de
lado, suplica-se a Deus em nome deles (dos santos falecidos).
Pergunto se isso não é transferir para eles o ofício de único intercessor que
há pouco alegamos para Cristo? Que anjo ou demônio já pronunciou uma
sílaba a qualquer humano a respeito da fantasiosa intercessão dos santos
falecidos? Não há uma palavra sobre o assunto nas Escrituras. Qual é então a
base para essa ficção? Com certeza, enquanto a mente humana busca ajuda
no que não é sancionado pela Palavra de Deus, ela manifesta sua
desconfiança de forma plena (cf. seç. 27). Mas, se apelarmos à consciência de
todos os que se alegram na intercessão dos santos, descobriremos que a única
razão é o fato de estarem cheios de ansiedade, como se supusessem a
insuficiência de Cristo ou seu excesso de rigor. No entanto, com essa
ansiedade eles desonram Cristo e roubam dele o título de único
Mediador, dado a ele pelo Pai como privilégio especial — e não deve ser
transferido a nenhum outro. Ao assim fazer, eles obscurecem a glória da sua
natividade e anulam sua cruz; em suma, privam e defraudam do devido
louvor tudo que ele fez ou sofreu, e tudo isso objetivou demonstrar que ele é
e deve ser considerado o único Mediador. Ao mesmo tempo, eles rejeitam a
bondade de Deus ao se manifestar a eles como Pai, pois ele não lhes é Pai
caso não reconheçam Cristo como irmão. Isso eles se recusam plenamente a
fazer se não pensam que Jesus sente por eles a afeição de um irmão; ninguém
terá afeição mais gentil ou terna que a dele. Por isso as Escrituras falam só a
respeito dele, enviam-nos só a ele e nos estabelecem nele. “Ele”, diz
Ambrósio, “é a boca pela qual falamos ao Pai; os olhos pelos quais vemos o
Pai; a mão direita pela qual nos oferecemos ao Pai. A não ser pela intercessão
dele, nem nós nem qualquer dos santos podemos manter o relacionamento
com Deus” (Ambrósio, De Isaac et anima). Se eles objetam que as orações
públicas oferecidas nas igrejas concluem com as palavras por meio de Jesus
Cristo, nosso Senhor, essa é uma fuga frívola, pois o insulto menor não é
oferecido à intercessão de Cristo ao confundi-la com as orações e méritos dos
mortos do que por omiti-la por completo e fazer menção apenas dos mortos.
Então, em todas as suas litanias, hinos e discursos — em que todo tipo de
honra é prestada aos santos falecidos —, não há menção de Cristo.
22
Erros monstruosos resultantes dessa ficção.
Refutação. Exceção feita por seus advogados. Resposta.

Mas aqui a estupidez chegou a tal ponto que dá espaço para a manifestação
do gênio da superstição, que, uma vez sacudida a rédea, costuma agir sem
limites. Depois de os homens começarem a olhar para a intercessão dos
santos, a administração peculiar foi gradualmente designada a cada um deles,
de modo que ora um, ora outro, intercessor é invocado — conforme a
diversidade dos assuntos. Indivíduos adotaram santos particulares e
depositaram fé neles como divindades tutelares. E logo havia deuses
estabelecidos não apenas conforme o número de suas cidades (acusação
levantada pelo profeta contra o antigo Israel, Jeremias 2.28; 11.13), mas
conforme o número de pessoas. No entanto, enquanto os santos em todos os
seus desejos referem-se apenas à vontade divina, veja só, e com essa vontade
concordam, destinar-lhes qualquer outra oração, a não ser o desejo da vinda
do Reino de Deus é pensar de forma estúpida, carnal e até mesmo insultuosa
a respeito deles. Nada pode estar mais distante da compreensão assim que
imaginar que cada um deles, sob a influência de um sentimento particular,
está disposto a ser mais favorável a seus adoradores. Muitas pessoas caíram
nessa horrível blasfêmia de invocá-los não para simplesmente ajudar, mas
para presidir sua salvação. Observe a profundidade em que homens
miseráveis caem quando se esquecem do seu lugar, isto é, a Palavra de Deus.
Nem falo sobre os tipos mais monstruosos de impiedade que, mesmo
detestáveis a Deus, anjos e homens, praticam e não sentem dor ou vergonha.
Prostrados perante uma estátua ou um quadro de Bárbara ou Catarina ou de
qualquer outro, eles balbuciam um Pater Noster, e tão distantes estão os
pastores deles que, seduzidos pela fragrância do ganho, aprovam e aplaudem
tal atitude. Mas enquanto tentam se livrar do ódio desse procedimento vil e
criminoso, sob cujo pretexto defendem a prática de invocar Eloi (Elígio) ou
Medardo para ajudar seus servos e enviar-lhes ajuda dos céus, ou que a Santa
Virgem ordene a seu Filho que faça tudo que ela pedir? O Concílio de
Cartago proibiu que no altar orações fossem dirigidas aos santos. É provável
que esses homens santos, incapazes por completo de suprimir a força de
costumes depravados, chegassem a este ponto, que orações públicas não
poderiam ser viciadas com formas como a expressão Sancte Petre, ora pro
nobis [São Pedro, rogai por nós]. Mas quão longe a extravagância diabólica
não foi, a ponto de homens não hesitarem em transferir aos mortos os
atributos peculiares de Cristo e de Deus?
23
Argumentos dos papistas a respeito da intercessão dos santos:
a) Com base no dever e ofício dos anjos. Resposta. b) Com base em uma
expressão de Jeremias a respeito de Moisés e Samuel. Resposta: réplica
do argumento; c) O significado do profeta confirmado por uma
passagem semelhante de Ezequiel, e o testemunho de um apóstolo.

Eles laboram em vão para provar que a intercessão tem apoio das
Escrituras. Muitas vezes lemos (eles dizem) das orações dos anjos, e não
apenas isso, mas se diz que as orações dos cristãos são levadas à presença de
Deus mediante as orações deles. Mas, se eles forem comparar os santos que
partiram desta vida com os anjos, será necessário provar que os santos são
espíritos ministradores, aos quais foi delegado o ofício de superintender nossa
salvação e ainda a tarefa de nos guiar em todos os nossos caminhos, de nos
envolver, admoestar, confortar e vigiar. Tudo isso foi designado aos anjos,
mas nada aos santos. A forma absurda de sua confusão dos santos falecidos
com os anjos é aparente pelos muitos ofícios pelos quais as Escrituras
distinguem uns dos outros. Ninguém, a não ser que seja solicitado, presumirá
executar o ofício de testemunhar a favor de um juiz terreno. De onde então
esses vermes tiram base para se colocarem diante de Deus como
intercessores, quando o ofício não lhes foi designado? Deus se agradou de dar
aos anjos o encargo da nossa segurança. Por isso eles participam das nossas
reuniões solenes, e a igreja para eles é um teatro onde eles contemplam a
manifesta sabedoria de Deus (Efésios 3.10).
Os que transferem para os outros o encargo que lhes é peculiar sem dúvida
pervertem e confundem a ordem estabelecida por Deus e que deve ser
inviolável. Com destreza semelhante, eles citam outas passagens. Deus disse
a Jeremias: “[...] ‘Ainda que Moisés e Samuel estivessem diante de mim,
intercedendo por este povo, eu não lhes mostraria favor. Expulse-os da minha
presença! Que saiam!’” (Jeremias 15.1). Como (perguntam eles) Deus teria
falado assim dos mortos, a não ser que ele soubesse que intercedem pelos
vivos? Minha inferência, pelo contrário, é a seguinte: como nem Moisés nem
Samuel intercederam pelo povo de Israel, então não há intercessão pelos
mortos. Pois quem dos santos pode trabalhar pela salvação das pessoas
quanto Moisés, que, enquanto em vida, ultrapassou a todos, não fez nada?
Portanto, se insistirem nas artimanhas miseráveis de que os mortos
intercedem pelos vivos, porque o Senhor disse: “Ainda que [eles]
intercedessem (intercesserint), argumentarei da seguinte maneira: Moisés, a
respeito de quem é dito, “se tivesse intercedido”, não intercedeu pelo povo na
necessidade mais extrema: por conseguinte, é provável que nenhum outro
santo interceda, pois todos eles estão atrás de Moisés em humanidade,
bondade e solicitude paternal. Por isso o que eles receberão pelos sofismas
são ferimentos causados pelas próprias armas com as quais acreditam estar
muito protegidos. Contudo, é ridículo usar assim essa simples sentença, pois
o Senhor apenas declara que não poupará as iniquidades do povo, mesmo que
algum Moisés ou Samuel, com quem ele foi tão indulgente em suas orações,
intercedesse por eles. O sentido é extraído com mais clareza de uma
passagem semelhante em Ezequiel: “‘Mesmo que estes três homens — Noé,
Daniel e Jó — estivessem nela, por sua retidão eles só poderiam livrar a si
mesmos. Palavra do Soberano, o Senhor’” (Ezequiel 14.14). Não há dúvida
aqui que as palavras devem ser entendidas como foram pronunciadas: se duas
dessas pessoas citadas vivessem de novo, pois a terceira ainda estava viva na
época, ou seja, Daniel, que se encontrava no auge de sua juventude e de
piedade incomparável. Por conseguinte, deixemos de lado as pessoas a
respeito de quem as Escrituras declaram ter cumprido sua missão. Quando
Paulo menciona Davi, ele não diz que o rei ajudou sua posteridade por meio
de orações, mas apenas que ele (Davi) serviu “‘ao propósito de Deus em sua
geração’” (Atos 13.36).
24
d) Quarto argumento papista com base na natureza
da caridade, mais perfeita nos santos glorificados. Resposta.

Eles mais uma vez objetam: “Seremos privados dos desejos piedosos de
quem a vida toda respirou apenas piedade e misericórdia?”. Não tenho o
desejo de bisbilhotar o que eles fazem ou meditam; mas a probabilidade é
que, em vez de estarem sujeitos ao impulso de vários desejos particulares,
com uma vontade fixa e inamovível desejam o Reino de Deus, que consiste
não menos na destruição dos ímpios que na salvação dos cristãos. Sendo
assim, não pode haver dúvida de que a caridade deles está confinada à
comunhão do corpo de Cristo e não vai além do compatível com a natureza
da comunhão. Mas, ainda que eu admita que oram assim por nós, eles, no
entanto, não perdem a tranquilidade a ponto de serem distraídos por
preocupações terrenas: menos longe estão eles, por conseguinte, de serem
invocados por nós. Nem se segue que a invocação deva ser usada porque,
enquanto os homens estão vivos na terra, eles podem orar uns pelos outros.
Isso serve para manter vivo o sentimento de caridade, quando eles, como
deve ser, compartilham as necessidades e levam as cargas uns dos outros.
Eles o fazem por ordem do Senhor, e não sem uma promessa, as duas coisas
de importância primária na oração.
Mas as razões são inaplicáveis aos mortos, aqueles com quem o Senhor,
tendo retirado da sociedade, nos deixou sem a possibilidade de
relacionamento (Eclesiastes 9.5,6), e a eles também, tanto quanto podemos
conjecturar, ele deixou sem possibilidade de se relacionar conosco. Contudo,
se alguém alegar que eles conservam a mesma caridade para conosco, como
unidos a nós na única fé, quem nos revelou que eles têm ouvidos capazes de
ouvir os sons da nossa voz ou ouvidos claros o bastante para discernir nossas
necessidades? Nossos oponentes, porém, falam de fato na ilusão dos seus
pensamentos a respeito de algum tipo de luz que brilha dos santos falecidos e
na qual, como em um espelho, eles, do alto de sua elevada morada,
contemplam os assuntos dos homens; mas afirmá-lo com a confiança
presumida por esses homens significa apenas desejar, por meio de sonhos
extravagantes do cérebro, e sem nenhuma base de autoridade, bisbilhotar e
penetrar nos juízos ocultos de Deus e pisotear as Escrituras, que tantas vezes
declaram estar a sabedoria da carne em inimizade com a sabedoria divina,
condenam de modo completo a vaidade da nossa mente e, humilhando-nos a
razão, nos pedem que olhemos apenas para a vontade divina.
25
Argumento fundamentado em uma
passagem de Moisés. Resposta.

As outras passagens das Escrituras empregadas por eles para defender seu
erro são muito distorcidas. Jacó (eles dizem) pede aos filhos de José: “‘[...]
Sejam eles chamados pelo meu nome e pelos nomes de meus pais Abraão e
Isaque [...]’” (Gênesis 48.16). Em primeiro lugar, vejamos como era a
natureza da invocação entre os israelitas. Eles não imploram aos antepassados
que os socorram, mas pedem a Deus que se lembre dos seus servos Abraão,
Isaque e Jacó. Logo, o exemplo deles não dá apoio para que se dirijam de
maneira direta aos santos. Mas sendo assim a dureza mental de quem assim
procede, por não compreenderem o significado de invocar o nome de Jacó,
nem porque este deve ser invocado, não é estranho que eles se equivoquem
de maneira tão pueril para fazer o que fazem. A expressão ocorre repetidas
vezes nas Escrituras. Isaías fala de mulheres sendo chamadas pelo nome de
homens, quando elas os têm por marido e vivem sob sua proteção (Isaías
4.1). Invocar o nome de Abraão sobre os israelitas consistia em referir a
origem da sua raça nele e conservá-lo em lembrança distinta como fundador e
pai da nação. Jacó não o faz por qualquer ansiedade de preservar a
celebridade do seu nome, mas por saber que toda a felicidade de seus
descendentes consistia na herança da aliança estabelecida com eles por Deus.
Entendendo que lhes daria a soma de todas as bênçãos, ele ora para ser
contado como pertencente a seu povo; isso não era outra coisa senão a
transmissão da sucessão da aliança a eles. Também eles, quando fazem
menção do assunto em suas orações, não se entregam à intercessão dos
mortos, mas se lembram da aliança que seu Pai mui misericordioso
estabeleceu para ser-lhes bondoso e propício por causa de Abraão, Isaque e
Jacó. Mas, em outros aspectos, quão pouco os santos confiavam nos méritos
dos seus antepassados, pois a voz pública da Igreja declara nos profetas “[...]
Abraão não nos conhece e Israel nos ignora [...]” (Isaías 63.16). Enquanto a
Igreja assim se pronuncia, ela ao mesmo tempo acrescenta: “Volta por amor
dos teus servos, por amor das tribos que são a tua herança”, não pensando em
termos de intercessão, mas advertindo apenas acerca dos benefícios da
aliança. Agora, de fato, quando temos o Senhor Jesus, em cuja mão a eterna
aliança de misericórdia foi não apenas estabelecida, mas confirmada, que
nome melhor que o dele podemos usar em nossas orações? E desde que os
bons doutores concluiriam com base nos textos que os patriarcas são
intercessores, gostaria que eles me dissessem o motivo pelo qual, dentre a
multidão tão grande, não há lugar para Abraão, o pai da Igreja? Sabemos bem
de que grupo eles selecionam seus intercessores. Que eles me digam que
coerência há em negligenciar e rejeitar Abraão, a quem Deus preferiu aos
demais e elevou ao mais alto grau de honra. A única razão é que não existia a
prática na Igreja antiga, de modo que eles acharam melhor ocultar a novidade
da prática não dizendo nada dos patriarcas: como se por mera diversidade de
nomes eles pudessem desculpar a prática ao mesmo tempo nova e impura.
Eles também objetam algumas vezes que se pede a Deus misericórdia do
povo: “Por amor ao teu servo Davi [...]” (Salmos 132.10). Isso está tão longe
de dar base ao erro deles que consiste na sua mais forte refutação. Devemos
considerar o caráter de Davi. Ele foi separado do grupo dos fiéis para
estabelecer a aliança preparada por Deus. Isso tem mais relação com a aliança
que com o indivíduo. Davi é um tipo da intercessão única de Cristo. Mas o
aspecto peculiar a Davi como tipo de Cristo com certeza não se aplica aos
outros.
26
Argumento fundamentado no fato de as orações dos
santos serem ouvidas. Resposta confirmada pela
Escritura e ilustrada com exemplos.

Mas alguns parecem ser movidos pela afirmação geral de que as orações
dos santos geralmente são atendidas. Por quê? Porque eles oravam.
“Clamaram a ti” (diz o salmista), “e foram libertos; em ti confiaram, e não se
decepcionaram” (Salmos 22.5). Vamos também orar seguindo o exemplo
deles, para que também sejamos ouvidos. Quão melhor argumenta Tiago:
“Elias era humano como nós. Ele orou fervorosamente para que não
chovesse, e não choveu sobre a terra durante três anos e meio. Orou outra
vez, e os céus enviaram chuva, e a terra produziu os seus frutos” (Tiago
5.17,18). Teria ele inferido que Elias contava com algum privilégio particular
e que faríamos bem recorrer a ele por causa disso? De modo algum. Ele
demonstra a eficácia perpétua da oração pura e piedosa, para que sejamos
induzidos a orar da mesma maneira. A bondade e a prontidão de Deus em
ouvir são interpretadas de maneira perversa, se o exemplo deles não nos
inspirar com confiança cada vez mais forte na promessa divina, pois ele
declarou que inclinará o ouvido não para um, dois ou poucos indivíduos, mas
a quem invocar seu nome. Na ignorância eles são os menos desculpáveis,
pois entendem como se fossem desprezar de forma ativa as muitas
admoestações das Escrituras. Repetidas vezes Davi foi libertado pelo poder
de Deus. Isso lhe concedeu poder para sermos libertos por suas súplicas?
Muito diferente é a afirmação que ele fez: “Liberta-me da prisão, e renderei
graças ao teu nome. Então os justos se reunirão à minha volta por causa da
tua bondade para comigo” (Salmos 142.7). E outra vez: “Os justos verão isso
e temerão [...]” (Salmos 52.6). “Este pobre homem clamou, e o Senhor o
ouviu; e o libertou de todas as suas tribulações” (Salmos 34.6). Em Salmos há
muitas orações semelhantes, e nelas Davi pede a Deus que lhe conceda o que
pede por esta razão, isto é, que o justo não seja envergonhado, e sim
encorajado a esperar. Uma passagem é suficiente: “Portanto, que todos os que
são fiéis orem a ti enquanto podes ser encontrado [...]” (Salmos 32.6). Citei a
passagem porque os delirantes empregam a língua venal em defesa do papado
e não se envergonham de aduzir a isso em prova da intercessão dos mortos.
Como se Davi quisesse outra coisa senão mostrar os benefícios obtidos da
clemência e condescendência divinas quando tiver sido ouvido. Em geral,
podemos nos apegar à experiência da graça de Deus, para nós mesmos e para
os outros, o que confirmará nossa fé em suas promessas. Não vou citar as
muitas passagens nas quais Davi apresenta a graça divina como base para a
confiança, pois todos os leitores de Salmos delas se lembrarão. Jacó ensinara
a mesma coisa antes por seu próprio exemplo: “‘não sou digno de toda a
bondade e lealdade com que trataste o teu servo [...]’” (Gênesis 32.10). Ele de
fato alega a promessa, mas não apenas a promessa; pois ao mesmo tempo
acrescenta o efeito, para animá-lo a ter confiança maior na futura bondade
divina. Deus não é como os homens que se cansam da própria libertinagem;
ele deve ser estimado por sua natureza, como Davi faz com acerto quando
diz: “[...] resgata-me, Senhor, Deus da verdade” (Salmos 31.5). Depois de
atribuir o louvor da salvação a Deus, ele complementa que Deus é
verdadeiro, pois, se não fosse como é, os favores concedidos no passado não
seriam a base infalível para a oração confiante. No entanto, quando sabemos
com que frequência ele nos ajuda, isso demonstra e prova sua bondade e
fidelidade, de modo que não há motivo para temer que nossa esperança seja
envergonhada ou frustrada.
27
Conclusão: os santos não podem ser invocados sem impiedade.
Ela: a) Rouba a glória de Deus; b) Destrói a intercessão de Cristo;
c) Repugna à Palavra de Deus; d) Opõe-se ao método devido
de oração; e) Não dispõe de exemplo aprovado; f) Flui da falta
de confiança. Última objeção. Resposta.

No todo, como as Escrituras colocam a principal parte do culto na


invocação a Deus (sendo esse o ofício de piedade que ele requer de nós em
preferência a todos os sacrifícios), é um sacrilégio manifesto oferecer orações
a outros. Pois é dito no salmo: “Se tivéssemos esquecido o nome do nosso
Deus e tivéssemos estendido as nossas mãos a um deus estrangeiro, Deus não
o teria descoberto? Pois ele conhece os segredos do coração!” (Salmos
44.20,21). Mais uma vez, Deus deseja ser invocado apenas por causa da fé, e
ele nos insta a que moldemos nossas orações de acordo com a regra da sua
Palavra: em resumo, como a fé se fundamenta na Palavra, e é a matriz da
oração correta, nossas orações se tornam impuras no momento em que nos
afastamos dela. Entretanto, já demonstramos que, se consultarmos o conjunto
das Escrituras, descobriremos que Deus reclama essa honra apenas para si
mesmo. Quanto ao ofício de intercessor, vimos que ele é peculiar a Cristo, e
que nenhuma oração é agradável a Deus, a não ser a santificada pelo
Mediador. E ainda que os crentes ofereçam orações a Deus a favor dos
irmãos, vimos que isso em nenhum momento tira as prerrogativas da
intercessão única de Cristo, pois a confiança está depositada em que eles se
encomendem a Deus. Mais além, vimos sua transferência, por ignorância,
para os mortos, a respeito de quem não lemos em nenhum lugar a recepção da
ordem de orar por nós. As Escrituras sempre nos exortam a que oremos uns
pelos outros, mas não dizem uma sílaba a respeito dos mortos. Tiago
tacitamente exclui os mortos quando combina as duas coisas: “Portanto,
confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros para serem
curados [...]” (Tiago 5.16). Isso é suficiente para condenar neste erro, que o
início da oração certa flui da fé, e que a fé deriva-se de ouvir a Palavra de
Deus — e nela não há nem uma menção a uma intercessão fictícia, pois é
superstição adotar intercessores sem serem devidamente apontados. Enquanto
as Escrituras falam em várias formas de oração, não encontramos exemplo
dessa intercessão, sem a qual os papistas pensam não haver oração. Ainda
mais, evidencia-se que a superstição resulta dessa desconfiança, pois não
estão satisfeitos com Cristo como intercessor ou privaram-no dessa honra. A
última possibilidade é provada com facilidade por sua afronta ao manter,
como o argumento mais forte a favor da intercessão dos mortos, que não
somos dignos de acesso a Deus. Sim, reconhecemos a verdade da afirmação,
mas daí inferimos que eles não deixam nada para Cristo, porque consideram a
intercessão dele como nada, a menos que seja suplementada pela intercessão
de George, Hipólito e outros fantasmas.
28
Tipos de oração: votos, súplicas, petições e ações de graças.
Conexões entre elas, seu uso e necessidades constantes.
Explicação particular confirmada pela razão, pela Escritura
e pelo exemplo. Regras para a súplica e ação de graças.

Mas ainda que a oração esteja confinada com adequação a votos e súplicas,
é tão forte a afinidade entre a petição e a ação de graças que as duas podem
ser compreendidas com o mesmo nome. Pois as formas enumeradas por
Paulo (1Timóteo 2.1) se enquadram na primeira parte da divisão. Pela oração
e súplica, derramamos nossos desejos diante de Deus, pedindo também as
coisas que tendem a promover a glória divina e a exaltação do nome de Deus,
bem como os benefícios contribuintes para nosso bem. Pela ação de graças,
celebramos, da forma devida, a bondade divina para conosco, atribuindo à
liberalidade dele toda bênção recebida. Davi inclui os dois aspectos em uma
sentença: “‘e clame a mim no dia da angústia; eu o livrarei, e você me
honrará’” (Salmos 50.15). As Escrituras, com razão, nos ordenam a usar as
duas formas de maneira contínua. Já descrevemos a grandeza do nosso
desejo, enquanto a experiência proclama que os apuros que nos pressionam
de todos os lados são tão numerosos e tão grandes a ponto de nos fazerem
suspirar e gemer sem parar diante de Deus e implorar a ele com súplicas.
Ainda que fossem isentos de adversidades, mesmo o mais santo deveria ser
estimulado primeiro pelos próprios pecados e, depois, pelos inumeráveis
assaltos das tentações, para desejar uma cura. O sacrifício de louvor e ação de
graças nunca pode ser interrompido sem culpa, pois Deus não cessa de
derramar sobre nós favor após favor para nos levar à gratidão, não importa
quão lentos ou preguiçosos sejamos. Em suma, tão grandes e variadas são as
riquezas de sua liberalidade para conosco, tão maravilhosos e grandiosos os
milagres que contemplamos em toda parte, que nunca nos faltará assunto e
material para louvor e ação de graças.
Para deixar a questão ainda mais clara: como todas as nossas esperanças e
todos os nossos recursos estão depositados em Deus (isso já foi plenamente
demonstrado), nem nós mesmos nem nossos interesses podem prosperar sem
a bênção dele; devemos então submeter a ele com constância o que somos e
tudo o que possuímos. Independentemente do que deliberarmos, falarmos ou
fizermos, tudo deve ser deliberado, falado e realizado sob sua mão e vontade,
ou seja, sob a esperança de sua assistência. Deus pronunciou uma maldição
sobre quem confia em si mesmo ou em outras pessoas, faz planos e
resoluções sem considerar a vontade dele ou sem invocar sua ajuda para
planejar e executar
(Tiago 4.14; Isaías 30.1; 31.1). Assim, como já se observou, ele recebe a
honra devida quando é reconhecido como o autor de todo o bem. Segue-se
que, ao derivar todo o bem das suas mãos, devemos continuamente expressar
nossa gratidão, pois não temos o direito de usar os benefícios procedentes de
sua liberalidade se não proclamarmos seu louvor de forma assídua e não lhe
dermos graças, pois é com essa intenção que os benefícios nos são dados.
Quando Paulo declara que toda criatura de Deus “é santificad[a] pela
palavra de Deus e pela oração” (1Timóteo 4.5), ele indica que sem a palavra e
sem a oração nada é santo e puro, sendo a palavra usada por metonímia para
designar fé. Davi, ao experimentar a graça do Senhor, declarou com
elegância: “Pôs um novo cântico na minha boca” (Salmos 40.3); com isso ele
indica a malignidade de nosso silêncio quando não louvamos a Deus por suas
bênçãos e não enxergamos que cada bênção concedida a nós é motivo de
nova ação de graças. Por isso Isaías, ao anunciar as singulares misericórdias
de Deus, diz: “Cantem ao Senhor um novo cântico [...]” (Isaías 42.10). Pela
mesma forma, Davi diz em outra passagem: “Ó Senhor, dá palavras aos meus
lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor” (Salmos 51.15). De igual
maneira, Ezequias e Jonas declaram que quando fossem libertados
“celebrariam a bondade de Deus com canções em seu templo” (Isaías 38.20;
Jonas 2.1-10). Davi apresenta uma regra para todos os crentes com as
seguintes palavras: “Como posso retribuir ao Senhor toda a sua bondade para
comigo? Erguerei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor”
(Salmos 116.12,13). A Igreja segue essa regra em outro salmo: “Salva-nos,
Senhor, nosso Deus! Ajunta-nos dentre as nações, para que demos graças ao
teu santo nome e façamos do teu louvor a nossa glória” (Salmos 106.47). E
outra vez: “Escreva-se isto para as futuras gerações, e um povo que ainda será
criado louvará o Senhor [...]. Assim o nome do Senhor será anunciado em
Sião e o seu louvor em Jerusalém” (Salmos 102.18,21). Onde quer que os
cristãos peçam ao Senhor para fazer alguma coisa por causa do seu nome,
enquanto se declararem indignos de obter o que for em nome deles mesmos,
eles se obrigam a dar graças e prometem fazer bom uso da graça divina sendo
seus proclamadores.
Oseias, falando da futura redenção da Igreja, diz: “[...]’Perdoa todos os
nossos pecados e, por misericórdia, recebe-nos, para que te ofereçamos o
fruto dos nossos lábios’” (Oseias 14.2). Não apenas nossa língua proclama a
bondade divina, mas também nos inspira a amar a Deus: “Eu amo o Senhor,
porque ele me ouviu quando lhe fiz a minha súplica” (Salmos 116.1). Em
outra passagem, ao falar da ajuda experimentada, ele disse: “Eu te amo, ó
Senhor, minha força” (Salmos 18.1). Nenhum louvor jamais agradará a Deus
se não fluir do amor. Precisamos prestar atenção à declaração de Paulo: todos
os desejos são viciosos e perversos se não forem acompanhados de ação de
graças. Suas palavras são: “[...] em tudo, pela oração e súplicas, e com ação
de graças, apresentem seus pedidos a Deus” (Filipenses 4.6). Muitos,
influenciados por preguiça, cansaço, impaciência, amargura e medo, usam
murmurações em suas orações; assim, Paulo nos exorta ao controle de nossos
sentimentos para bendizermos a Deus com alegria mesmo antes de obter o
que pedimos. Entretanto, se essa conexão deve subsistir em pleno vigor entre
coisas quase contrárias, mais sagrado é o laço que nos une para celebrar os
louvores de Deus sempre que ele atende a nossos pedidos. Como já
demonstramos, nossas orações, que de outra maneira seriam poluídas, passam
a ser santificadas pela intercessão de Cristo. Assim, o apóstolo, ao nos exortar
a oferecer “continuamente a Deus um sacrifício de louvor, que é fruto de
lábios que confessam o seu nome” (Hebreus 13.15), faz-nos lembrar de que
sem a intervenção do sacerdócio de Jesus nossos lábios não são puros o
bastante para celebrar o nome de Deus. Daí se infere o engano monstruoso
prevalecente entre os papistas, pois a maioria deles se admira quando Cristo é
chamado de intercessor. A razão pela qual Paulo nos exorta dizendo “orem
continuamente [e] deem graças em todas as circunstâncias”
(1Tessalonicenses 5.17,18) se encontra no desejo de que nós dirijamos nossas
orações a Deus com a maior assiduidade, em todo tempo, em todo lugar, em
todas as coisas e em todas as circunstâncias. Quando obtidas, sejam
atribuídas a ele, fornecendo assim base perpétua para oração e louvor.
29
As propriedades da oração: particular e pública, constante, em
épocas determinadas etc. Exceção no tempo de necessidade.
Orar sem cessar. Sua natureza. Refutação da tagarelice de papistas e
hipócritas. O escopo e as partes da oração. A oração em segredo.
Orar em todos os lugares. Oração particular e pública.

A assiduidade na oração, ainda que se refira em especial às orações


particulares de indivíduos, se estende também em alguma medida às orações
públicas da igreja. Estas, deve-se dizer, não podem ser contínuas e não devem
ser feitas, a não ser da maneira que, pelo bem da ordem, foi estabelecida pelo
consenso público. Isso eu admito, e como há certas horas previamente
estabelecidas, horas que, conquanto não façam diferença para Deus, são
necessárias para o uso do homem, que a conveniência geral possa ser
consultada, e que todas as coisas sejam feitas na igreja, como Paulo ordena,
“com decência e ordem” (1Coríntios 14.40). No entanto, não há nada que
impeça cada igreja de estar agora e sempre movida ao uso mais frequente da
oração e a ser mais afetada com zelo pelo impulso de alguma necessidade
maior. Da perseverança na oração, muito próxima da assiduidade, falaremos
no fim deste capítulo (seçs. 51 e 52). Essa necessidade é muito diferente do
termo grego battologian (em português, “tagarelar”), repetir a mesma coisa,
que nosso Salvador proibiu (Mateus 6.7). Ele não nos proíbe de orar muito,
com frequência, ou grande fervor, mas nos adverte contra a suposição da
possibilidade de extorquir alguma coisa de Deus pela importunação com o
falatório tagarela — como se ele pudesse ser persuadido à semelhança dos
homens. Sabemos que os hipócritas, por não considerarem sua relação com
Deus, apresentam orações tão pomposas como se integrassem um espetáculo.
O fariseu, que agradeceu a Deus por não ser como o outro homem,
proclamou seus louvores diante dos homens, como se desejasse ganhar
reputação pela santidade ou por suas orações. Assim, a vã repetição, que por
motivo semelhante prevalece agora no papado — algumas pessoas repetem
as mesmas orações frívolas o tempo todo —, e outras empregam uma longa
série de frases para a ostentação vulgar. O falatório infantil é uma zombaria
em relação a Deus, e não se estranha sua proibição na igreja, para que todo
sentimento lá expresso seja sincero, procedente do mais fundo do coração.
Outro abuso também condenado pelo Salvador, próximo deste, ocorre quando
os hipócritas, por pura ostentação, cortejam a presença de muitas testemunhas
e preferem orar em lugares públicos e obter aplausos. O verdadeiro objeto da
oração, como já dissemos (seç. 4 e 5), é levar os pensamentos diretamente a
Deus para celebrar seu louvor ou implorar sua ajuda; daí se entende com
facilidade que o lugar primário da oração se encontra na mente e no coração,
ou, antes, a oração é propriamente uma efusão e manifestação do sentimento
íntimo diante de quem nos sonda o coração. Eis por que (como já foi dito)
quando nosso divino Mestre se agradou em apresentar a melhor regra para a
oração, disse: “‘Mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore
a seu Pai, que está em secreto [...]’” (Mateus 6.6). Dissuadindo-nos do
exemplo dos hipócritas, que buscam o aplauso dos homens pela ostentação
ambiciosa na oração, ele acrescenta o melhor caminho: entrar no quarto,
fechar a porta, e lá orar. Por meio dessas palavras (segundo o meu
entendimento), ele nos ensinou a buscar um lugar de retiro que possa nos
capacitar a voltar para ele todos os nossos pensamentos e a entrar
profundamente em nosso coração, prometendo que Deus manteria uma
conversa com os sentimentos da nossa mente, da qual o corpo é o templo.
Com isso, ele não disse ser impossível orar também em outros lugares, mas
demonstra que a oração é de alguma maneira de natureza secreta, tendo o
principal lugar na mente e exigindo a tranquilidade distanciada dos tumultos
das preocupações comuns. Eis o motivo pelo qual nosso Senhor, quando ia se
dedicar com mais intensidade à oração, se retirava para lugares afastados do
alvoroço do mundo, lembrando-nos assim, por seu exemplo, que não
devemos negligenciar os auxílios que nos capacitam a mente — disposta por
si mesma a vaguear — e a se tornar sincera no propósito da oração. Mesmo
assim, ele não se absteve de orar quando a ocasião o exigiu, ainda que
estivesse no meio de uma multidão; assim devemos, sempre que necessário,
levantar “mãos santas” (1Timóteo 2.8) em todos os lugares. Por esse motivo,
acreditamos que quem se recusa a orar nas reuniões públicas dos santos
desconhece o significado de orar à parte, sozinho ou em casa. Já quem
negligencia a oração solitária, em particular, ainda que frequente com
diligência reuniões públicas, ora ao vento, pois se preocupa mais com a
opinião dos homens que com o juízo secreto de Deus. Para que as orações
públicas da igreja não fossem desprezadas, o Senhor lhe concedeu
antigamente a mais honorável denominação, em especial quando chamou o
templo de “casa de oração” (Isaías 56.7). Por meio dessa expressão, Deus
lhes mostrou que o dever da oração é a parte principal no culto e que, para
capacitar os cristãos a se envolverem de maneira voluntária com a oração, o
templo lhes é apresentado como uma espécie de bandeira. Uma nobre
promessa foi acrescentada: “O louvor te aguarda em Sião, ó Deus; os votos
que te fizemos serão cumpridos” (Salmos 65.1). Com essas palavras, o
salmista nos lembra de que as orações da igreja nunca são vãs, pois Deus
sempre fornece a seu povo material para uma canção de alegria. Ainda que as
sombras da Lei tenham cessado, porque Deus se agradou por esta ordem
manter a unidade da fé também entre nós, não pode haver dúvida de que a
mesma promessa nos pertence — promessa sancionada por Cristo com os
próprios lábios e que Paulo declara estar perpetuamente em vigor.
30
Sobre os lugares públicos, ou igrejas, em que as orações comunitárias
são oferecidas. O uso correto pelas igrejas. Abuso.

Como Deus em sua Palavra ordena a oração comum, os templos públicos


são lugares destinados à oração, e quem se recusa a se unir ao povo de Deus
nessa observância não tem base para o pretexto usado, de que entra em seu
quarto para poder obedecer ao mandamento do Senhor. Pois quem promete
conceder o desejo de duas ou três pessoas reunidas em seu nome (Mateus
18.20) declara que de modo algum despreza as orações feitas em público,
desde que não ocorra ostentação nem a busca de aplauso humano, e que haja
afeição verdadeira e sincera nos recônditos do coração. Se esse é o uso
legítimo das igrejas (e sem dúvida é), devemos tomar cuidado com a imitação
da prática, que começou séculos atrás, de imaginar que as igrejas são
habitações de Deus, onde ele está mais pronto a nos ouvir, ou de pensarmos
que há algum tipo de santidade secreta que torna a oração mais santa. Pois,
sabendo que somos os verdadeiros templos de Deus, oramos em nós mesmos
se vamos invocar a Deus em seu santo templo. Deixemos as ideias grosseiras
para os judeus ou para os pagãos, sabendo que temos mandamento de orar
sem distinção de lugar “em espírito e em verdade” (João 4.23). É verdade que
por ordem de Deus o templo antigamente era dedicado a orações e sacrifícios,
mas isso na época em que a verdade (agora plenamente manifesta, não temos
permissão de confinar a nenhum templo material) estava oculta sob a figura
de sombras. Mesmo o templo não foi apresentado aos judeus como
confinamento da presença de Deus em suas paredes; seu objetivo de prepará-
los para contemplar a imagem do verdadeiro templo. Uma repreensão severa
foi feita por Isaías e por Estevão aos que pensavam que Deus pudesse de
alguma maneira habitar em templos feitos por mãos humanas (Isaías 66.2;
Atos 7.48).
31
A respeito de falar e cantar. Isso não ajuda, se não proceder do
coração. O uso da voz se refere mais à oração pública que à particular.

Compreende-se daí a clareza perfeita de que nem palavras nem cânticos (se
usados em oração) são de menor importância ou valem um “i” diante de
Deus, a não ser que procedam de sentimentos profundos do coração. Antes,
provocam a ira divina contra nós caso sejam apenas da boca para fora, pois
isso significa abusar do seu sagrado nome e zombar de sua majestade. Isso se
infere das palavras de Isaías que, ainda que tenham significado mais amplo,
repreendeu também o seguinte vício: “[...] ‘Esse povo se aproxima de mim
com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.
A adoração que me prestam é feita só de regras ensinadas por homens’”
(Isaías 29.13). Não condenamos palavras ou cânticos; antes, os
recomendamos, desde que sejam apresentados em sinceridade. Pois assim o
pensamento de Deus é mantido vivo em nossa mente, pensamento que por
sua natureza volúvel e inconstante logo se enfraquece e é distraído por vários
assuntos, a não ser que meios sejam usados para ajudá-lo. Além disso, como
a glória divina deve ser apresentada em todas as partes do nosso corpo, o
serviço especial ao qual a língua deve ser devotada é o de cantar e falar,
contanto que pronuncie o que tenha sido expressamente criado para declarar e
proclamar o louvor de Deus. Esse emprego da língua é principalmente no
culto público que deve acontecer quando os santos se reúnem. Dessa maneira,
o Deus a quem servimos em um espírito e uma fé é por nós glorificado como
se tivéssemos uma única voz e uma única boca; e isso abertamente, para que
cada um possa receber a confissão da fé de seu irmão, e ser convidado e
incitado a imitá-la.
32
O ato de cantar conta com grande antiguidade,
mas não é universal. Como realizá-lo.

Sem dúvida, o uso de cânticos nas igrejas (que mencionei de passagem)


não é apenas muito antigo, mas também foi usado pelos apóstolos, como
podemos compreender das palavras de Paulo: “[...] cantarei com o espírito,
mas também cantarei com o entendimento” (1Coríntios 14.15). Da mesma
maneira, ele diz aos colossenses: “[...] ensinem e aconselhem-se uns aos
outros com toda a sabedoria, e cantem salmos, hinos e cânticos espirituais
com gratidão a Deus em seu coração” (Colossenses 3.16). Na primeira
passagem, ele nos ordena cantar com a voz e com o coração; na última, ele
recomenda cânticos espirituais, pelos quais os piedosos se edificam
mutuamente. No entanto, essa não era a prática universal — como atesta
Agostinho (Confissões, livro IX, cap. 7) — ao declarar que a igreja de Milão
começou a usar cânticos no tempo de Ambrósio e que, quando a fé ortodoxa
era perseguida por Justina, mãe de Valentiniano, as vigílias do povo eram
mais frequentes que o normal; a prática foi mais tarde seguida pelas outras
igrejas ocidentais. Pouco antes ele disse que esse costume veio do Oriente. E
também sugere (Retractationes, livro II) que o costume foi recebido na África
em seu tempo. Suas palavras são: “Hilário, homem que tinha posição de
tribuno, atacou com as invectivas mais amargas que conseguiu usar o
costume que passou a existir em Cartago, de cantar hinos do livro de Salmos
no altar, seja antes da oferta, seja quando esta era distribuída ao povo; eu lhe
respondi, a pedido dos meus irmãos”. Se o cantar estiver equilibrado pela
gravidade conveniente à presença de Deus e dos anjos, ele concederá
dignidade e graça às ações sagradas, pois tem a capacidade poderosa de
estimular a mente ao verdadeiro zelo e ardor na oração. Todavia, devemos
tomar cuidado para que os ouvidos não estejam mais atentos à música que a
mente ao sentido espiritual das palavras. Agostinho confessa (Confissões,
livro X, cap. 33) que o medo desse perigo algumas vezes fez que ele
desejasse a introdução de uma prática observada por Atanásio, que ordenou
aos leitores usarem apenas uma gentil inflexão de voz, mais próxima à
recitação que ao cântico. Contudo, mais uma vez, considerando as vantagens
advindas do canto, estamos inclinados na outra direção. Se houver
moderação, não há dúvida do caráter sagrado e salutar da prática. No entanto,
os cânticos compostos apenas para agradar e dar prazer aos ouvidos são
indignos da majestade da Igreja, e não podem ser agradáveis a Deus.
33
As orações públicas devem ser feitas na língua comum, não em um idioma
estrangeiro. Razão: a) A natureza da Igreja; b) A autoridade do apóstolo. A
necessidade perene da afeição sincera. A língua nem sempre é necessária.
Genuflexão, e cobertura da cabeça.

Também sabemos que as orações públicas não devem ser proferidas em


grego entre os latinos ou em latim entre os franceses e ingleses (como até o
momento se pratica), mas na língua comum, para que todos os presentes
possam entendê-las, pois elas devem ser usadas para a edificação de toda a
igreja — que não será beneficiada nem um pouco por sons não inteligíveis.
As pessoas que não são movidas por nenhum sentido de humanidade ou
caridade devem, pelo menos de alguma maneira, ser advertidas pela
autoridade de Paulo, cujas palavras não são ambíguas: “Se você estiver
louvando a Deus em espírito, como poderá aquele que está entre os não
instruídos dizer o ‘Amém’ à sua ação de graças, visto que não sabe o que
você está dizendo? Pode ser que você esteja dando graças muito bem, mas o
outro não é edificado” (1Coríntios 14.16,17). Como pode alguém admirar a
licença desabrida dos papistas, quando o apóstolo protesta contra isso de
forma pública, e não hesita em prorromper em orações longas em uma língua
estrangeira, orações nas quais ele mesmo muitas vezes não entende uma
sílaba, e que não deseja que os outros entendam? Diferente é o que Paulo
prescreve: “Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento;
cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento”, querendo
dizer por espírito um dom especial de línguas, que alguns receberam, mas o
distorceram quando o dissociaram da mente, isto é, do entendimento. O
princípio ao qual devemos sempre nos apegar é: que na oração, pública e
particular, a língua sem a mente torna-se desagradável a Deus. Mais que isso,
a mente deve ser incitada a ir além do que a língua é capaz de expressar. Por
fim, a língua não é nem mesmo necessária nas orações particulares, a não ser
na medida em que o sentimento interno é insuficiente para a incitação ou a
veemência do incitamento transporta a pronúncia da língua juntamente
consigo. Pois ainda que as melhores orações sejam algumas vezes proferidas
sem palavras, quando o sentimento da mente é avassalador, a língua
espontaneamente irrompe em palavras, e os outros membros do corpo em
gestos. Daí o murmúrio dúbio de Ana (1Samuel 1.13), algo semelhante ao
que é experimentado por todos os santos quando expressões concisas e
abruptas lhes escapam. Os gestos corporais geralmente observados em
oração, como ajoelhar-se e descobrir a cabeça (Atos 20.36), são exercícios
pelos quais tentamos nos elevar à mais alta veneração a Deus.
34
O modelo da oração apresentado por Cristo demonstra a bondade ilimitada
do nosso Pai celestial. O grande consolo recebido por ela.

Devemos agora atentar não apenas para o método mais certo, mas também
à forma da oração, entregue a nós pelo Pai celestial por intermédio do seu
Filho amado, mediante a qual podemos reconhecer sua bondade e
condescendência sem limites (Mateus 6.9; Lucas 11.2). Além de nos
admoestar e exortar a buscá-lo em todas as nossas necessidades (como os
filhos se entregam à proteção dos pais quando oprimidos por qualquer
ansiedade), entendendo que não estávamos tão conscientes de quão grande
era nossa pobreza, ou o que era certo ou interessante pedirmos, ele
providenciou, por conta da nossa ignorância, um modelo de oração. Onde
fracassamos, ele generosamente providenciou. Foi nos dada uma forma que
nos apresenta em um quadro o que é correto desejar, bom para nossos
interesses e necessário pedir. Da sua bondade nesse sentido derivamos o
maior conforto de saber que, quando pedimos usando suas palavras, não
pedimos nada absurdo, estranho ou sem razão; em suma, nada que não lhe
seja agradável. Platão, vendo a ignorância dos homens em apresentar seus
desejos a Deus, deseja que, se os pedidos forem atendidos, estes lhes sejam
os mais injuriosos, e declara que a melhor forma de oração é a que um antigo
poeta apresentou: “Ó rei Júpiter, dê o que é melhor, queiramos isto ou não;
mas livre-nos do que é mal mesmo quando o pedimos” (Alcibíades II). O
pagão demonstra sabedoria ao discernir quão perigoso é pedir a Deus a
determinação de nossas paixões; ao mesmo tempo, ele nos lembra de nossa
condição infeliz por não sermos capazes de abrir os lábios diante de Deus
sem perigo, a não ser que seu Espírito nos instrua a orar da maneira correta
(Romanos 8.26). Portanto, o valor mais elevado que devemos ter como
privilégio é quando o Filho unigênito de Deus põe palavras em nossa boca e
assim liberta nossa mente de toda hesitação.
35
A Oração do Senhor divide-se em seis petições.
Subdivisão em duas partes principais: a primeira se refere
à glória de Deus; a segunda, à nossa salvação.

Essa forma ou regra de oração é composta por seis petições. Posso


concordar com os que a dividem em sete, pelo modo adversativo de dicção
usado pelo evangelista, que parece ter pretendido unir duas cláusulas da
oração em uma só, como se tivesse dito: “Não nos deixeis cair em tentação,
mas ajuda-nos em nossa fragilidade, e livra-nos para que não caiamos”.
Escritores antigos concordam conosco: a adição por Mateus da sétima
cláusula deve ser considerada a explicação da sexta petição. Mas, ainda que o
primeiro lugar da oração seja designado à glória de Deus, mesmo isso é mais
especialmente o objeto das três primeiras petições, nas quais devemos ver
apenas a glória de Deus, sem qualquer referência ao nosso benefício. As três
petições seguintes são devotadas a nossos interesses e relacionam-se às coisas
úteis para a petição. Quando pedimos que o nome de Deus seja santificado,
como Deus deseja provar se o amamos e o servimos livremente ou se por
promessa de recompensa, não devemos pensar em absoluto em nossos
interesses. Nas outras petições semelhantes, essa é a única maneira pela qual
devemos ser afetados. É verdade que dessa maneira nossos interesses são
bastante promovidos, pois, quando o nome de Deus é santificado da maneira
pedida, nossa santificação é também promovida. Mas com respeito a esse
benefício, devemos, como já disse, fechar os olhos e ficarmos cegos de certa
forma, para não o vermos; e, estando eliminadas todas as esperanças das
vantagens pessoais, ainda assim não devemos cessar de desejar e orar pela
santificação e por tudo mais que pertence à glória de Deus. Temos exemplos
em Moisés e em Paulo: eles não consideraram difícil desviar o olhar e os
pensamentos de si mesmos, e com intenso e fervente zelo desejar a morte, se
por meio da perda o Reino e a glória de Deus pudessem ser promovidos
(Êxodo 32.32; Romanos 9.3). Quando pedimos o pão diário, ainda que
desejemos o que é vantajoso para nós mesmos, devemos também buscar em
especial a glória divina, a ponto de não pedirmos nada que não seja para a
glória de Deus. Prossigamos agora para uma exposição da oração.
Pai nosso, que estás nos céus.
36
O uso do termo Pai implica: a) A oração a Deus de forma
exclusiva em nome de Cristo; b) Deixar de lado toda a falta de
confiança; c) A esperança de todas as coisas para o nosso bem.

A primeira sugestão, feita logo no início, é, tal como já dissemos (seç. 17-
19), que todas as nossas orações a Deus devem ser apresentadas apenas em
nome de Cristo, pois não há outro nome que as possa recomendar. Ao chamar
Deus de Pai, com certeza pedimos em nome de Cristo. Pois com que
confiança poderia qualquer homem chamar Deus de Pai? Quem teria a
presunção de se arrogar a honra de filho de Deus, a não ser que fôssemos
graciosamente adotados como seus filhos em Cristo? Sendo ele o verdadeiro
Filho, ele nos foi dado como irmão, de modo que o que ele possui por
natureza se torne nosso por adoção, se abraçarmos essa grande misericórdia
com fé firme. Pois como João diz: “Contudo, aos que o receberam, aos que
creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (João
1.12). Por conseguinte, ele se chama nosso Pai, e se agrada em ser assim
chamado por nós, para que por esse nome agradável sejamos libertos de toda
falta de confiança, pois em nenhum lugar se pode encontrar afeição mais
forte que no pai. Também ele não poderia nos ter dado testemunho mais forte
de seu amor ilimitado que em nos chamar de filhos. Mas seu amor a nós é tão
maior e mais excelente que o dos pais terrenos, pois ele em muito ultrapassa
todos os homens em bondade e misericórdia (Isaías 63.16). Os pais terrenos,
deixando de lado todos os afetos paternais, são capazes de abandonar os
filhos; Deus, no entanto, nunca nos abandonará (Salmos 27.10), visto que não
pode negar a si mesmo. Pois nós temos sua promessa: “‘Se vocês, apesar de
serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai de
vocês, que está nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!’” (Mateus
7.11). O profeta disse algo parecido: “‘Haverá mãe que possa esquecer seu
bebê que ainda mama e não ter compaixão do filho que gerou? Embora ela
possa esquecê-lo, eu não me esquecerei de você!’” (Isaías 49.15). Contudo,
se somos seus filhos, como o filho não se entrega à proteção de um estranho
sem ao mesmo tempo reclamar da crueldade ou pobreza do seu pai, nós não
podemos pedir ajuda a nenhum outro que não ele, a menos que queiramos
acusá-lo de pobreza, descuido, crueldade ou austeridade excessiva.
37
Objeção: nossos pecados nos excluem da presença daquele a quem
constituímos Juiz, não Pai. Resposta com base na natureza de Deus
(descrita por um apóstolo), da parábola do filho pródigo
e da expressão Pai nosso. Cristo, o zeloso da nossa adoção;
o Espírito Santo, a testemunha.

Não aleguemos timidez por causa da consciência do pecado, pelo qual


nosso Pai, ainda que bondoso e misericordioso, se sente ofendido todos os
dias. Pois se entre os homens o filho não pode ter advogado melhor para
pleitear sua causa que seu pai, e não terá intercessor melhor para reconquistar
seu favor perdido, mesmo que ele se torne um suplicante abatido por
reconhecer a própria falta, desanimado até para implorar a misericórdia do
pai, cujos sentimentos paternais não podem ser movidos por tais rogos, o que
fará o “Pai das misericórdias e Deus de toda consolação” (2Coríntios 1.3)?
Não atentará ele para as lágrimas e os gemidos dos filhos que suplicam por si
mesmos (em especial quando veem que ele os convida e os exorta a assim
fazer), mais que qualquer outro advogado a quem os tímidos podem recorrer,
não sem alguma aparência de desespero, porque eles não confiam na bondade
e clemência do pai? A exuberância do seu cuidado paternal lhes é apresentada
na parábola (Lucas 15.20), quando o pai com braços abertos recebe o filho
que se afastara dele, e gastara seu sustento em uma vida suja, e de todas as
maneiras pecou de modo terrível contra ele. Ele não espera que o perdão seja
pedido com palavras, mas, antecipando o pedido, o reconhece ao longe, corre
ao seu encontro, o consola e restaura seu favor. Ao nos apresentar o
admirável exemplo de brandura em um homem, ele determinou mostrar quão
maior abundância podemos esperar dele que não é apenas um Pai, mas o
melhor e mais misericordioso de todos os pais, a despeito de quão ingratos,
rebeldes e ímpios filhos sejamos, desde que nos entreguemos à sua
misericórdia. E a melhor garantia que temos é que ele é como um pai, se
somos cristãos; ele se agradou de ser chamado não apenas Pai, mas Pai nosso,
como se pedíssemos a ele da seguinte maneira: Ó Pai, que tens tanta afeição
por teus filhos, estás tão pronto a perdoar, nós, teus filhos, nos aproximamos
de ti e apresentamos nossos pedidos, completamente persuadidos de que não
tens outro sentimento para conosco que o de um pai, ainda que não sejamos
dignos de um pai assim. Mas como nosso coração pequeno é incapaz de
compreender favor tão ilimitado, Cristo é não apenas a garantia da nossa
adoção, mas também nos dá o Espírito como testemunha da adoção, para que
por meio dele possamos clamar em voz alta e com liberdade “Aba, Pai”. Por
conseguinte, sempre que estivermos oprimidos por qualquer sentimento de
hesitação, lembremo-nos de pedir a ele que corrija nossa timidez e nos ponha
sob a orientação magnânima do Espírito, que nos capacita a orar com
ousadia.
38
Porque Deus é chamado Pai nosso de forma geral.

Entretanto, a instrução que nos foi dada não é que cada indivíduo em
particular o chame Pai, mas que todos em comum o chamemos Pai nosso.
Assim, somos lembrados de quão forte sentimento de amor fraternal deve
haver entre nós, pois somos todos, pela mesma misericórdia e livre bondade,
filhos do Pai. Pois se ele, de quem todos obtemos tudo que é bom, é o nosso
Pai comum (Mateus 23.9), tudo que foi distribuído a nós deve ser
comunicado aos outros, assim que a ocasião solicitar. Mas, se estivermos
desejosos de estender as mãos e ajudar uns aos outros, não há nada pelo qual
possamos beneficiar mais nossos irmãos que entregá-los ao cuidado e à
proteção do melhor dos pais, pois não podemos desejar nada melhor se ele
nos é propício e favorável. E, de fato, também devemos isso a nosso Pai.
Pois, como quem ama de verdadeira e de todo o coração o pai da família, essa
pessoa estende o mesmo amor e a boa vontade em relação a toda a sua casa,
para que o zelo e a afeição sentidos em relação ao Pai celeste sejam
estendidos a seu povo, sua família, e, por fim, à sua herança — tão honrada
por ele a ponto de lhes conceder a designação da “plenitude” do Filho
unigênito (Efésios 1.23). Que dessa maneira os cristãos modelem sua oração
para torná-la comum e abracem todos os irmãos em Cristo; não apenas os que
no presente podem ser vistos e identificados, mas todos os homens vivos
sobre a terra. O que Deus determinou com respeito a eles é piedoso e
humano. Devemos considerar em especial os da família da fé, a quem o
apóstolo recomendou expressamente que devemos cuidar em tudo (Gálatas
6.10). Em resumo, todas as nossas orações devem se referir à comunidade
estabelecida por nosso Senhor em seu Reino e família.
39
Podemos orar de modo especial por nós mesmos e por outras pessoas,
conquanto tenhamos em mente a referência geral a todos.

Isso não nos impede de orarmos de forma específica por nós mesmos e
pelos outros, desde que não percamos de vista a comunidade, mas a ela
sempre façamos referência. Pois as orações, ainda que veiculadas em termos
especiais, mantendo seu objeto em vista, nunca deixam de ser comuns. Tudo
isso pode ser facilmente entendido por analogia. Há o mandamento geral de
Deus para socorrer as necessidades de todos os pobres, e o mandamento é
obedecido pelos que com essa visão socorrem todos os que veem ou sabem
que estão em crise, ainda que deixem de lado pessoas cujas necessidades não
são menos urgentes — por ignorância ou incapacidade de ajudar de um modo
ou de outro. Nesse sentido, não há nada repugnante à vontade de Deus em
quem formula orações particulares, tendo em vista a sociedade comum da
igreja, orações nas quais, publicamente, ainda que em termos especiais,
recomendem a Deus, ou aos outros, as necessidades das quais se agradou
tornar conhecidas.
É verdade que a oração e a entrega do nosso ser não são iguais em tudo.
Podemos apenas conceder a bondade da nossa liberdade às pessoas de cujas
necessidades estamos cientes, ainda que em oração possamos ajudar
estranhos, não importa quão longe estejamos deles. Faz-se isso pela forma
geral de oração que, incluindo todos os filhos de Deus, nos inclui também. A
exortação de Paulo aos cristãos dos seus dias para levantar “mãos santas, sem
ira e sem discussões” (1Timóteo 2.8) é semelhante. Ao lembrar-lhes que a
dissensão consiste em uma barreira à oração, ele demonstra o desejo de que
eles façam suas orações de comum acordo.
40
Em que sentido se diz que Deus está no céu.
O uso tríplice da doutrina para nosso consolo. Três causas.
Resumo do prefácio da Oração do Senhor.

As palavras seguintes são que estás nos céus. Não devemos daí inferir que
ele está enclausurado e confinado na circunferência do céu, como que por um
tipo de limite. Pois Salomão confessa: “‘[...] Os céus, mesmo os mais altos
céus, não podem conter-te [...]’” (1Reis 8.27), e o próprio Deus por
intermédio do profeta diz: “[...] ‘O céu é o meu trono; e a terra, o estrado dos
meus pés [...]’” (Isaías 66.1); assim ele afirma que sua presença não está
confinada a nenhuma região, e Deus se encontra em todo o espaço. Contudo,
nossa mente grosseira é incapaz de conceber sua glória inefável, designada
pela palavra céu, pois nada que nossos olhos podem contemplar é tão repleto
de esplendor e majestade. Considerando-se nosso costume com os objetos
confinados ao lugar discernido por nossos sentidos, nenhum lugar pode ser
designado para Deus; por conseguinte, caso o busquemos, devemos nos
elevar acima de todo o discernimento corpóreo e mental. Mais uma vez, a
expressão nos lembra de que ele se encontra muito além do alcance de
variação ou corrupção, pois ele sustém todo o Universo com sua mão e a tudo
governa com seu poder. Portanto, o efeito da expressão é idêntico à
afirmação de sua majestade infinita, essência incompreensível, poder
ilimitado e duração eterna. Quando falamos a respeito de Deus dessa
maneira, nossos pensamentos devem ser elevados ao máximo; não lhe
devemos atribuir nada terrestre ou de natureza carnal, nem medi-lo por
nossos padrões diminutos, ou supor que a vontade dele seja como a nossa. Ao
mesmo tempo, devemos depositar nele nossa confiança, entender que o céu e
a terra são governados por sua providência e por seu poder. Em resumo, sob
o nome do Pai somos informados de que Deus, manifestado a nós em sua
própria imagem, pode ser por nós invocado com fé confiante; o nome Pai não
foi concedido apenas para inspirar em nós confiança, mas também para frear
nossa mente e impedi-la de seguir deuses fictícios ou imaginários. Assim,
ascendemos do Filho unigênito ao supremo Pai dos anjos e da Igreja. Seu
trono está fixado nos céus; portanto, não é em vão que nos aproximamos
dele, cujos cuidados experimentamos de fato. “Aquele que se aproxima de
Deus”, diz o apóstolo, “precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles
que o buscam” (Hebreus 11.6). Cristo clama ao Pai, em primeiro lugar, para
que depositemos nossa fé nele, e em segundo, para que estejamos seguros de
que nossa salvação não é negligenciada por ele, pois Deus se compraz em nos
estender sua providência. Por meio desses princípios elementares, Paulo nos
prepara para orar com correção; pois antes de dizer da necessidade de tornar
nossos pedidos conhecidos a Deus, ele afirma: “[...] está o Senhor. Não
andem ansiosos por coisa alguma [...]” (Filipenses 4.5,6). Daí se conclui que
a dúvida e a perplexidade pairam sobre as orações das pessoas cuja mente
não conta com a crença firmemente estabelecida de que “Os olhos do Senhor
voltam-se para os justos” (Salmos 34.15).
41
A necessidade da primeira petição: prova da nossa injustiça.
O significado do nome de Deus. Como ele é santificado. Partes da
santificação. Lamento pelos pecados que profanam o nome de Deus.

A primeira petição é: Santificado seja o teu nome. A necessidade de


apresentar a petição indica nossa grande desgraça. O que pode ser mais
descabido que nossa ingratidão e malícia, nossa audácia e petulância serem
tais, a ponto de querer destruir a glória de Deus? No entanto, mesmo que
todos os ímpios irrompam com fúria sacrílega, a santidade do nome de Deus
ainda resplandece. O salmista exclama: “Como o teu nome, ó Deus, o teu
louvor alcança os confins da terra [...]” (Salmos 48.10). Onde Deus se faz
conhecido, suas perfeições devem ser expostas; seu poder, bondade,
sabedoria, justiça, misericórdia e verdade nos enchem de admiração e nos
incitam a manifestar seu louvor. Portanto, como o nome de Deus não é
devidamente santificado na terra — e nós não temos condições de fazê-lo —,
nossa obrigação consiste em, pelo menos, fazer que ele seja objeto das nossas
orações. O resumo de tudo isso é: devemos desejar que Deus receba a honra
devida, e os homens nem sequer pensem em falar dele sem a maior
reverência. O oposto da reverência é a profanidade, sempre comum no
mundo, e prevalecente hoje em dia. Daí a necessidade da petição, incabível se
a piedade existisse de fato em nosso meio. Porém, se o nome de Deus é
santificado da forma devida apenas ao ser separado dos demais nomes,
suplicamos não apenas que Deus vindique seu nome santo de todo desprezo e
insulto, mas também que ele leve toda a raça humana a reverenciá-lo. Pois
Deus se nos manifesta em parte por sua Palavra e, em parte, por suas obras.
Ele não é santificado, a não ser que atribuamos a ele o que lhe é devido, e
assim recebamos tudo que provém dele, dando louvor igualmente à sua
justiça e misericórdia. Na diversidade manifesta de suas obras, ele inscreveu
as marcas de sua glória, e deve receber de cada língua o louvor por tudo que
fez. Assim, as Escrituras manterão a devida autoridade sobre nós, e nada nos
impedirá de celebrar os louvores de Deus, em relação a todo o seu domínio.
A petição implica o desejo do perecimento e extinção de toda a impiedade
poluente do nome sagrado, e a cessação de tudo que obscurece ou prejudica
sua glória, o fim de todo insulto, a supressão de toda blasfêmia e a
manifestação cada vez maior da majestade divina.
42
Distinção entre a primeira e a segunda petições. O que é o Reino de
Deus. Como ele deve vir. Exposição especial da petição. Ela nos faz
lembrar de três coisas. O advento do Reino de Deus ao mundo.

A segunda petição é: Venha o teu Reino. Não há aqui nada de novo, mas
mesmo assim há boa razão para distingui-la da primeira. Pois, se levarmos
em conta nossa letargia no mais importante de todos os assuntos, veremos
como é necessário que o que deveria ser, em si, perfeitamente conhecido
precise ser inculcado com mais extensão. Por isso, depois de recebermos o
mandamento de pedir que Deus sujeite e, por fim, destrua por completo tudo
que mancha seu nome santo, adiciona-se outra petição, contendo quase o
mesmo desejo, a saber: “Venha o teu Reino”. A definição do Reino já foi
apresentada. Agora repetirei de forma resumida que Deus reina quando os
homens, negando a si mesmos e desprezando o mundo e esta vida terrena,
devotam-se à justiça e desejam o céu. Assim, o Reino consiste em duas
partes: a primeira ocorre quando Deus corrige todos os desejos depravados da
carne, que guerreiam contra ele, pela ação de seu Espírito; a segunda, quando
ele trouxer todos os nossos pensamentos em obediência à sua autoridade.
Logo, a petição se apresenta de forma devida só por quem começa por si
mesmo; em outras palavras, quem ora para ser purificado de todas as
corrupções prejudiciais à tranquilidade e pureza do Reino de Deus. Então,
como a Palavra divina representa seu cetro real, recebemos a ordem de orar
para que ele nos subjugue a mente e o coração para a obediência voluntária.
Isso ocorre quando ele apresenta a eficácia de sua Palavra pela inspiração
secreta do seu Espírito e a eleva ao merecido lugar de honra. Precisamos,
depois disso, ir até os ímpios, que com perversidade e loucura desesperada
resistem à sua autoridade. Portanto, Deus estabelece seu Reino ao humilhar o
mundo todo, ainda que em diferentes maneiras, domando a luxúria de alguns,
quebrando o orgulho ingovernável de outros. Deveríamos desejar sua
ocorrência todos os dias, para que Deus reúna as igrejas para si mesmo de
todos os cantos do mundo, fazendo que cresçam em número e sejam
enriquecidas com seus dons e entre elas estabeleça a sua ordem; além disso,
que ele castigue todos os inimigos da doutrina e da religião pura, dissipe seus
planos e destrua seus esforços. Conclui-se daí haver boa base para o preceito
que ordena o progresso diário, pois os esforços humanos nunca prosperam
tanto quando as impurezas do vício são purgadas e a integridade floresce em
pleno vigor. Mas sua completude se dará no advento final de Cristo, como
Paulo declarou: “[...] Deus seja tudo em todos” (1Coríntios 15.28). Essa
oração, por conseguinte, deve nos retirar das corrupções do mundo que nos
separam de Deus e impedem o florescimento de seu Reino entre nós; em
segundo lugar, deve nos inflamar com o desejo ardente da mortificação da
carne; por fim, deve nos ensinar a suportar a cruz; pois o progresso do Reino
de Deus se dará assim. Não devemos nos preocupar se o homem exterior
decair e se o homem interior for renovado. Eis a natureza do Reino de Deus:
enquanto nos submetemos à sua justiça, ele nos faz participantes de sua
glória. Assim se propagam a sua luz e a sua verdade de forma contínua, e as
mentiras e as trevas de Satanás e seu reino são dissipadas, se extinguem e são
destruídas. Deus protege seu povo e o guia pela ação do seu Espírito, e o
confirma em perseverança, e ao mesmo tempo frustra as conspirações ímpias
dos inimigos, dissipa seus enganos e fraudes, impede sua malícia e freia sua
petulância até que por fim destrua o anticristo “com o sopro de sua boca” e
destrua toda impiedade “pela manifestação de sua vinda” (2Tessalonicenses
2.8).
43
Distinção entre a segunda e a terceira petições. A vontade aqui não
significa a vontade secreta ou o beneplácito de Deus, mas a vontade
manifestada na Palavra. Conclusão das três primeiras petições.

A terceira petição é: Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.
Ainda que isso dependa do Reino, e não possa ser desvinculado dele, ele não
recebe um lugar separado, de forma indevida, por conta de nossa ignorância,
incapaz de apreender com facilidade, e de uma vez só, o significado da
afirmação “Deus reina no mundo”. Isso, portanto, não deve ser tomado
inadequadamente como a explicação de que Deus será o Rei do mundo
quando todos se submeterem à sua vontade. Não tratamos aqui do segredo
pelo qual ele governa todas as coisas e as destina a seu fim (cf. cap. 24, seç.
17). Pois, ainda que demônios e homens se levantem em tumulto contra ele,
Deus é capaz, por seu incompreensível conselho, não apenas de destruir a
violência, mas de torná-la subserviente à execução dos seus decretos.
Falamos aqui a respeito da outra vontade de Deus: a que consiste no
contraponto da obediência voluntária. Por conseguinte, o céu é
expressamente contrastado com a terra, pois, como se diz em Salmos, os
anjos “obedecem à sua palavra” (Salmos 103.20). Portanto, somos ordenados
a orar para que tudo que é feito no céu por ordem de Deus, com os anjos
sempre dispostos a fazer o que é certo, seja realizado na terra sob a mesma
autoridade, e que toda rebelião e depravação sejam extintas. Ao apresentar
esse pedido, renunciamos aos desejos da carne, pois quem não submete por
completo as afeições a Deus faz o oposto à vontade divina — tudo que
procede de nós é vicioso. Mais uma vez, somos ensinados por essa oração a
negar a nós mesmos para que Deus nos governe de acordo com sua vontade.
Não apenas isso, mas, tendo aniquilado nossos pensamentos, possa criar
novos pensamentos e nova mentalidade para que não tenhamos outro desejo
senão a conformidade absoluta com sua vontade. Em resumo, não desejar
nada de nós mesmos, mas ter o coração governado por seu Espírito, sob cuja
orientação interna aprendemos a amar o que agrada a Deus e a detestar o que
lhe desagrada. Deve-se então almejar o que anula e suprime os desejos
repugnantes à vontade divina.
Estes são os três primeiros tópicos da oração, e ao apresentá-los se deve ter
em mente apenas a glória de Deus, não levando em conta a nós mesmos, nem
considerando nossas vantagens — as quais, ainda que sejam bastante
promovidas, não devem neste momento constituir o objeto da nossa petição.
Ainda que tudo pelo qual oramos aconteça no devido tempo, mesmo que
nada peçamos ou nem pensemos a seu respeito, é nossa obrigação orar e
pedir. Não é de somenos importância que assim façamos, para podermos
testificar e professar nossa condição de servos e filhos de Deus, desejosos de,
por todos os meios a nosso alcance, promover a honra devida a nosso Senhor
e Pai e nos devotarmos, com confiança, a seu serviço. Se os homens — ao
orar pedindo a santificação do nome de Deus, a vinda do Reino e a realização
da sua vontade — não o fazem pelo desejo de lhe promover a glória, não
devem ser considerados entre os servos e filhos de Deus, e tudo acontecerá
contra a vontade deles, para que se voltem de sua confusão e destruição.
44
O resumo da segunda parte da Oração do Senhor. Três petições.
O que está contido na primeira. Declaração da bondade sobejante
de Deus e da nossa falta de confiança. O que pão quer dizer.
O motivo de o pedido de pão preceder o do perdão de pecados.
A razão de ele se chamar nosso. Por que buscá-lo hoje, ou todos
os dias. A doutrina resultante dessa petição, ilustrada por um
exemplo. Duas classes de homens pecam em relação a essa petição.
Em que sentido se pode dizer pão nosso. A causa de pedirmos a
Deus que ele o dê a nós.

Vem agora a segunda parte da oração; nela descemos aos nossos


interesses, não para que percamos de vista a glória de Deus (à qual, Paulo
declara, devemos ter respeito até por questões de comida e bebida, 1Coríntios
10.31) e peçamos apenas o que nos é necessário, mas a distinção, como já
observamos, é a seguinte: Deus declara as três primeiras petições
pertencentes a ele e assim nos atrai a si mesmo, para que assim possamos
provar nossa piedade. Depois ele nos permite olhar para nossos benefícios,
mas ainda sob uma condição, a saber, quando pedirmos algo para nós
mesmos, será para que todos os benefícios concedidos manifestem a glória
divina, pois não temos obrigação maior que viver e morrer por ele.
Pela primeira petição da segunda parte, Dá-nos hoje o nosso pão de cada
dia, oramos em geral para que Deus nos dê todo o necessário ao corpo na
nossa condição atual, não apenas comida e roupas, mas tudo que ele sabe que
nos ajudará a comer o pão em paz. Lançamos sobre ele nossas preocupações
e nos entregamos à sua providência, para que ele possa nos alimentar,
proteger e preservar. Pois nosso Pai celestial não desdenha cuidar do nosso
corpo e protegê-lo, para que nossa fé seja exercitada nessas questões
pequeninas, enquanto o buscamos para tudo, mesmo uma fatia de pão e um
gole de água. Pois, em razão de uma estranha desigualdade, preocupamo-nos
mais com o corpo que com a alma, e muitos que entregam a alma a Deus
continuam ansiosos pelas questões do corpo, temerosos de não ter o que
comer, bem como quanto ao que vestirão, e tremem de medo, a não ser que
tenham as mãos cheias de milho, vinho e azeite (Salmos 4.8). Então muito
mais valor damos a esta vida sombria e passageira que à imortalidade
bendita. Mas quem confia em Deus lança fora toda ansiedade quanto à carne
e o busca para receber dádivas ainda maiores, como a salvação e a vida
eterna. Logo, não é um pequeno exercício de fé esperar em Deus por coisas
que, de outro modo, nos dariam muita preocupação; nem fizemos pouco
progresso quando nos livramos da descrença, que nos fere até os ossos.
A especulação de alguns concernente ao pão para a subsistência não está
nem um pouco de acordo com o ensino do Salvador; pois nossas orações
seriam defeituosas se não buscássemos de Deus até a nutrição da vida
passageira. A razão da dúvida é profana, incoerente com o caráter dos filhos
de Deus, que deve ser caráter espiritual, não apenas para ocupar a mente com
preocupações terrenas, mas para imaginar que Deus também se ocupa delas.
Como se sua bênção e seu favor paternal não fossem apresentados ao nos dar
o alimento, ou como se não houvesse uma declaração de que a piedade tem a
“promessa da vida presente e da futura” (1Timóteo 4.8). Mas, ainda que o
perdão dos pecados seja muito mais importante que a nutrição do corpo,
Cristo pôs o inferior em primeiro lugar, para assim nos elevar de modo
gradual às duas outras petições, que pertencem propriamente à vida celestial
— dessa maneira providenciando para nossa preguiça. Somos ordenados a
pedir pelo nosso pão, para que estejamos contentes com a medida que nosso
Pai celestial se agradou em nos conceder, e para que não tentemos conseguir
as coisas por meios ilícitos. Ao mesmo tempo, devemos nos apegar a fato de
que tudo isso é nosso por doação, porque, como Moisés afirma (Levítico
26.20; Deuteronômio 8.17), nosso esforço, trabalho e mãos nada adquirem
para nós mesmos, a não ser que a bênção divina esteja presente; mesmo o pão
sobejante não teria utilidade se Deus não o transformasse para nossa nutrição.
E essa liberalidade de Deus não é menos necessária para o rico que para o
pobre, pois, ainda que os celeiros e armazéns deles estejam repletos, eles
ressecariam e ficariam ansiosos por suas necessidades se não desfrutassem do
favor divino junto com o pão. A expressão hoje usada pelos evangelistas
impõe uma restrição no desejo imoderado pela busca de bens — desejo ao
qual somos extremamente aptos para julgar com indulgência, mas daí advêm
outros males: quando nossos recursos são de rica abundância,
ambiciosamente os desperdiçamos em prazeres, luxo, ostentação e outros
tipos de extravagância. Por isso somos ordenados a pedir apenas o que a
necessidade exige, para cada dia, confiando que o Pai celestial, que supre o
dia de hoje, não falhará conosco no dia de amanhã. Quão maior nossa
abundância seria, não importando quão repletos estejam nossos celeiros e
armazéns, se mesmo assim pedirmos pelo pão diário, pois precisamos ter
convicção de que toda a substância é nada, a não ser que o Senhor derrame
sua bênção e a torne frutífera. Mesmo o que está em nossas mãos não é
nosso, a não ser que ele a nós o conceda e nos permita usar. Nada é mais
difícil para o orgulho humano que admitir essa verdade, e o Senhor declara
que disso deu prova especial para todos os tempos, quando alimentou seu
povo com maná no deserto (Deuteronômio 8.3), para assim nos lembrar de
que “‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da
boca de Deus’” (Mateus 4.4). Dessa maneira, fica claro que apenas pelo
poder de Deus nossa vida e força são sustentadas, ainda que ele nos abençoe
por meio de instrumentos corporais. Assim, desde que ele se agrade, nos dá
prova de uma descrição oposta, ao quebrantar a força, ou como ele mesmo
diz: “‘Quando eu cortar o suprimento de pão [...]’” (Levítico 26.26),
deixando-nos insatisfeitos mesmo quando comemos e com sede mesmo
quando bebemos. Quem, insatisfeito com o pão diário, permite-se a cupidez
sem limite e insaciável, ou está cheio da própria abundância, e assim confia
na própria riqueza, zomba de Deus ao orar. Pois uns pedem o que não querem
obter, o que muitos deles abominam, isto é, apenas o pão de cada dia, e
muitos deles escondem sua avareza de Deus, enquanto a oração verdadeira
deve derramar toda a alma e cada sentimento interior na presença dele. Os
outros pedem o que não esperam receber, isto é, o que imaginam já possuir.
Ao chamá-lo nosso, Deus, como já dissemos, demonstra sua bondade de
forma poderosa, tornando nosso o que não podemos reivindicar. Nem
devemos rejeitar a afirmação pela qual já adverti, isto é, que esta palavra é
dada ao que se obtém mediante trabalho justo e honesto, em contraste com o
que é obtido por fraude e roubo, pois nada pode ser nosso se obtido do
prejuízo alheio.
45
Conexão íntima entre essa petição e a seguinte. Por que nossos pecados
são chamados dívidas. A violação da petição: a) Por quem pensa ser
capaz de satisfazer Deus pelos próprios méritos ou de outras pessoas;
b) Por quem sonha com a perfeição que torna o perdão desnecessário.
A razão de o eleito ser incapaz de alcançar a perfeição nesta vida.
Refutação dos sonhadores libertinos a respeito da perfeição. Objeção
refutada. Em que sentido devemos perdoar quem pecou contra nós.
Como se deve entender a condição.

A sexta petição é: Perdoa as nossas dívidas. Nela e na seguinte, nosso


Salvador resumiu tudo que diz respeito à vida celestial, pois as duas cláusulas
contêm a aliança espiritual feita por Deus para a salvação da Igreja: “‘[...]
Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus corações [...]’”
(Jeremias 31.33); “‘Eu os purificarei de todo o pecado [...]’” (33.8). Nesse
ponto o Salvador inicia com o perdão de pecados e então acrescenta a bênção
subsequente, isto é, que Deus nos protegerá pelo poder e auxílio do seu
Espírito, para que possamos permanecer invencíveis contra as tentações. Aos
pecados, ele dá o nome de dívidas, porque merecemos o castigo que lhes é
devido — dívida impagável, se não fôssemos desobrigados por essa remissão
resultante de sua livre misericórdia, quando ele cancelou a dívida, não
aceitando nada em troca; por sua própria misericórdia, recebeu a satisfação
em Cristo, que se entregou em resgate por nós (Romanos 3.24). Portanto,
quem espera satisfazer Deus por méritos próprios ou por méritos de outros,
ou compensar ou barganhar o perdão por meio de satisfações, não tem parte
no seu perdão, e, quando se dirige a Deus nessa petição, não faz mais que
subscrever a própria acusação e selar a condenação com seu testemunho. Pois
se confessa devedor, a menos que seja desobrigado por meio do perdão. Mas
ele não recebe o perdão; antes, o rejeita, quando quer apresentar a Deus seus
méritos e satisfações, pois ao agir assim não lhe implora misericórdia, mas
apela à sua justiça. Então quem sonha com a perfeição que torne
desnecessário pedir perdão e encontre discípulos entre os que têm coceira nos
ouvidos e se inclinam para ouvir falsidades; que eles entendam que esses a
quem eles adquirem foram afastados de Cristo, pois o Senhor, instruindo
todos a confessar suas culpas, não apenas pecadores, não para tranquilizá-los
ou encorajá-los nos pecados, mas por saber que os crentes nunca estarão
isentos dos pecados da carne; assim que não permaneçam sempre sujeitos à
justiça de Deus. Isso deve ser desejado, deve ser de fato nosso dever extremo,
para realizar todas as partes da nossa tarefa, bem como para que nos
congratulemos de verdade diante de Deus como puros de toda mancha; mas
assim como Deus se agrada em renovar sua imagem em nós por etapas, pois
sempre haverá o resíduo de corrupção na nossa carne, nunca devemos
negligenciar o remédio. Mas se Cristo, de acordo com a autoridade que lhe
foi dada pelo Pai, nos ordena que, no curso da vida, imploremos perdão,
podemos tolerar os novos mestres que, pelo fantasma da perfeita inocência,
se esforçam para deslumbrar os simples e fazê-los crer que podem ficar
completamente livres da culpa? Isso, como João declarou, não é outra coisa
senão fazer Deus mentiroso (1João 1.10). Do mesmo modo, os homens tolos
mutilam a aliança que contém nossa salvação ao omitir seu único cabeça (da
aliança) e assim a destroem por inteiro; são culpados não só de profanidade
ao separar o que deveria ser conectado de forma indissolúvel, mas também da
impiedade e crueldade de subjugar almas miseráveis com desespero — de
traição a eles mesmos e a seus seguidores, em que se estimulam à falta de
cuidado diametralmente oposta à misericórdia divina. É excessivamente
infantil objetar que quando desejam a vinda do Reino de Deus oram ao
mesmo tempo pela abolição do pecado. A perfeição absoluta é posta diante
de nós na primeira divisão da oração, mas na última, nossa própria fraqueza.
Então as duas correspondem com perfeição uma à outra — nós buscamos o
alvo e, ao mesmo tempo, não negligenciamos o remédio exigido por nossas
necessidades. Na parte seguinte da petição, oramos para que sejamos
perdoados “assim como perdoamos aos nossos devedores”; isto é, da mesma
forma que poupamos e perdoamos quem nos ofendeu de alguma maneira, por
palavra ou tratamento abusivo. Não que possamos perdoar a culpa da falta ou
ofensa; isso pertence só a Deus; mas podemos perdoar na seguinte medida: é
possível nos despirmos em caráter voluntário de ira, ódio e vingança e apagar
a lembrança das injúrias mediante o esquecimento voluntário. Por
conseguinte, não devemos pedir o perdão dos nossos pecados a Deus, a não
ser que perdoemos os ofensores ou todos os que nos injuriaram. Se
retivermos qualquer ódio na mente, se pensarmos em vingança e criarmos
meios de retribuir o mal com o mal, se não nos entendermos com nossos
inimigos, se não formos bondosos para com eles e se não nos esforçarmos
para a reconciliação com eles, pedimos a Deus que não nos perdoe. Pois
pedimos a ele que faça conosco o que fazemos com os outros. É o mesmo
que pedir a ele que faça apenas o que fizermos. Assim, o que algumas
pessoas obterão com a petição, a não ser o juízo mais severo? Por fim, deve-
se observar que a condição de ser perdoado como perdoamos nossos
devedores não é acrescentada porque ao perdoar os outros nós merecemos
perdão, como se a causa do perdão fosse expressa; mas pelo uso da expressão
o Senhor se agradou em consolar parcialmente a fraqueza da nossa fé,
usando-a como sinal para nos assegurar de que nossos pecados estão
perdoados quando temos a consciência de perdoar os outros, quando nossa
mente está completamente limpa de inveja, ódio e malícia; e parcialmente
usando como distintivo para excluir do número de seus filhos quem, disposto
a vingar e relutante em perdoar, obstinadamente mantém a inimizade,
lançando sobre os outros a indignação desaprovada nele mesmo; para que não
se aventure a invocá-lo como Pai. No evangelho de Lucas, temos isso
declarado de forma distinta nas palavras de Cristo.
46
A sexta petição reduzida a três pontos: a) As várias formas da tentação.
As ideias depravadas da nossa mente. As astúcias de Satanás, à direita e
à esquerda; b) O que significa cair em tentação. Não pedimos para não
sermos tentados por Deus. Qual o significado de o mal, ou do maligno.
Resumo dessa petição. Quão necessária ela é. Condena o orgulho dos
supersticiosos. Inclui muitas qualidades excelentes. Em que sentido se
pode dizer que Deus nos conduz à tentação.

A sexta petição corresponde (como já observamos) à promessa de escrever


a lei em nosso coração; mas, por não obedecemos a Deus sem uma luta
contínua, sem esforços agudos e árduos, aqui oramos para que ele nos
capacite com uma armadura e nos defenda com sua proteção, pare sermos
capazes de obter a vitória. Por essa petição, somos lembrados de que não
apenas necessitamos do dom do Espírito para interiormente nos abrandar o
coração, e assim voltá-lo à obediência e direcioná-lo a Deus, mas também da
sua ajuda, que nos fará invencíveis contra todos os enganos e ataques
violentos de Satanás. As formas da tentação são muitas e variadas. Os
pensamentos depravados da nossa mente nos provocam a transgredir a lei —
pensamentos que nossa concupiscência sugere ou que o Diabo excita são
tentações; e coisas que pela própria natureza não são más tornam-se tentações
pelos enganos do Diabo, quando apresentadas a nossos olhos de maneira tal
que sua visão nos afasta de Deus. Essas tentações estão à direita e à esquerda.
À direita, quando riquezas, poder e honra, que por seu deslumbramento e
semelhança com o bem que apresentam, geralmente deslumbram os olhos dos
homens e tanto os enganam com suas lisonjas que, apanhados em seus laços e
intoxicados por sua doçura, acabam se esquecendo de Deus; à esquerda,
quando ofendidos pela dificuldade e amargura da pobreza, desgraça,
desprezo, aflições e outras coisas parecidas, eles se desesperam, lançam fora
toda a confiança e esperança, e se encontram totalmente distanciados de
Deus. Com respeito a esses tipos de tentação, acesa pela nossa
concupiscência, ou apresentada por artimanhas da guerra de Satanás contra
nós, oramos a Deus, o Pai, que não nos permite sermos vencidos; antes, ele
nos leva e apoia com sua mão, para que, fortalecidos assim por seu poder
grandioso, possamos permanecer firmes contra todos os ataques do inimigo
maligno, quaisquer que sejam os pensamentos enviados à nossa mente;
oramos também para que, independentemente da situação, voltemo-nos para
o bem, isto é, não fiquemos inflados com a prosperidade nem derrubados pela
adversidade. Todavia, não pedimos para nos isentar da tentação — necessária
para nos provocar, estimular e pressionar, para que não fiquemos letárgicos.
Não sem razão, Davi desejou ser provado, e não sem causa o Senhor a cada
dia prova seus eleitos, castigando-os pela desgraça, pobreza, tribulação e
outros tipos de cruz. Mas as tentações de Deus e de Satanás são muito
diferentes: Satanás tenta para destruir, condenar, confundir, derrotar; Deus,
ao demonstrar a seu povo que lhes provará a sinceridade e assim exercitar a
força deles. Desse modo, eles mortificarão, domarão e cauterizarão a carne, a
qual, se não for assim tratada, se exultará sem medida. Além disso, Satanás
ataca os desarmados e despreparados, para destruí-los por estarem
desprevenidos; contudo, Deus, junto com a tentação, providenciará “um
escape, para que o possam suportar”. Não vem tanto ao caso se pela palavra
mal podemos entender o Diabo ou o pecado. Satanás é de fato o inimigo que
lança redes contra nossa vida, mas pelo pecado ele se armou para nos
destruir.
Nossa petição, portanto, é que não sejamos vencidos nem sobrepujados
pela tentação, mas que na força do Senhor permaneçamos firmes contra todos
os poderes pelos quais somos atacados; em outras palavras, que não caiamos
em tentação: que, estando sob o cuidado e a proteção de Deus,
permaneçamos invencíveis diante do pecado, da morte, das portas do inferno
e de todo o poder do Diabo; em outras palavras, que sejamos libertos do mal.
Deve-se observar isso com cuidado, pois não temos força para combater o
Diabo ou resistir à violência dos seus ataques. Pedir a Deus o que já está em
nosso poder significaria zombar dele. Sem dúvida, quem se prepara para a
luta por si mesmo não entende quão ousado e bem preparado é o inimigo a
ser enfrentado. Por isso pedimos libertação do poder dele, como se fosse a
boca de um leão furioso que, em um instante, nos rasgaria com suas presas e
garras e nos engoliria, se o Senhor não nos tivesse resgatado da morte;
sabendo ao mesmo tempo que, se o Senhor está presente e luta por nós, aí
permanecemos firmes e por meio dele “conquistaremos a vitória” (Salmos
60.12). Quem quiser que confie nos recursos e forças que pensa possuir. Para
nós, basta a permanência firme e forte apenas no poder do Senhor. Contudo,
a oração abrange muito mais coisas. Se o Espírito de Deus é nossa força na
luta contra Satanás, não obteremos vitória, a menos que sejamos cheios do
Espírito e assim libertos de toda a enfermidade da carne. Portanto, quando
oramos para ser libertos do pecado e de Satanás, ao mesmo tempo desejamos
ser enriquecidos com novos suprimentos da graça divina, até que, repletos
dela, triunfemos sobre todo o mal. Para alguns, pode parecer rude e difícil
pedir a Deus não nos deixar cair em tentação, pois, como Tiago declara
(Tiago 1.13), a tentação é contrária à natureza divina. A dificuldade já foi em
parte resolvida pelo fato de que nossa concupiscência é a causa e, portanto,
recebe a culpa de todas as tentações que nos vencem. Tiago quis dizer que é
injusto e vão atribuir a Deus vícios que nossa consciência nos leva a atribuir a
nós mesmos. Mas isso não impede que Deus, quando julga necessário,
permita que Satanás nos ataque e nos entregue à mente réproba e a desejos
vergonhosos e assim, por motivo justo, mas frequentemente oculto, permite
que sejamos tentados. Ainda que a causa seja com frequência oculta aos
homens, é conhecida dele. Daí se vê que a expressão não é inadequada, se
estivermos convencidos de que não é sem motivo sua ameaça de dar sinais
seguros de vingança, ao cegar os reprovados e lhes endurecer o coração.
47
As três últimas petições demonstram que as orações dos
cristãos devem ser públicas. A conclusão da Oração do Senhor.
Motivo da adição da palavra amém.

Essas três petições, às quais nos recomendamos a Deus, e a tudo que


temos, mostram com clareza o que já observamos (seç. 38 e 39): as orações
dos cristãos devem ser púbicas e respeitar a edificação da Igreja e o progresso
dos cristãos na comunhão espiritual. Pois ninguém pede que algo lhe seja
dado como indivíduo, mas pedimos em conjunto pelo pão diário e o perdão
dos pecados, para que não caiamos em tentação e sejamos libertos do mal.
Mais ainda, está subentendida a razão da nossa grande ousadia em pedir e
confiar no recebimento (seç. 11 e 36). Ainda que a expressão não exista nos
manuscritos latinos, está tão bem de acordo com o todo que não podemos
pensar em omiti-la.
As palavras são: Teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Eis a
tranquila e firme segurança da fé. Fossem nossas orações dirigidas a Deus
pelo nosso mérito, quem se aventuraria a sussurrar diante dele? Agora, não
importa quão miseráveis, indignos e isentos de valor sejamos, nunca nos
faltará razão para orar, nem base para a confiança, pois o Reino, o poder e a
glória nunca deixarão de ser do Pai. A última palavra é Amém, pela qual se
expressa a prontidão do nosso desejo de obter o que pedimos, enquanto nossa
esperança é confirmada — todas as coisas já foram obtidas e serão
concedidas a nós, pois foram prometidas por Deus, que não pode mentir. Isso
concorda com a expressão a respeito da qual já fizemos advertência:
“Concede, ó Senhor, por causa do teu nome, não por causa de nós ou pela
nossa justiça”. Por isso os santos não apenas expressam o fim de suas
orações, mas se confessam indignos de obter se a razão não estivesse em
Deus mesmo e se a confiança deles não fosse encontrada inteiramente na
natureza divina.
48
A Oração do Senhor contém tudo que podemos ou devemos
pedir a Deus. Quem a ultrapassa peca de três formas.

Todas as coisas que devemos pedir a Deus (das quais somos capazes) estão
contidas nessa fórmula, como se ela fosse uma regra de oração concedida por
Cristo, nosso Mestre divino, quem o Pai apontou como nosso professor e o
único que devemos ouvir (Mateus 17.5). Ele é a sabedoria eterna do Pai e,
sendo feito homem, foi manifestado como o Maravilhoso Conselheiro (Isaías
11.2; 9.6). Por isso essa oração é tão completa em todas as suas partes.
Qualquer coisa que lhe seja estranha, qualquer coisa que a ela não se refira, é
ímpia e indigna da aprovação divina. Pois Deus, nessa oração, prescreveu de
forma resumida o que é digno dele, o que lhe é aceitável e o que nos é
necessário; em resumo, tudo que ele se agrada em conceder. Portanto, quem
presume ir além e pedir algo mais de Deus, em primeiro lugar busca
acrescentar algo à sabedoria divina (agir assim é blasfêmia insana); segundo,
recusando-se a se confinar nos limites da vontade divina e desprezando-a,
fica perdido, sendo dirigido pelas próprias ambições; por fim, nunca obterá
nada, pois ora sem fé. E as orações pronunciadas sem fé, por estarem em
desacordo com a Palavra de Deus, não podem subsistir. Quem,
desconsiderando a regra do Mestre, é indulgente com os próprios desejos, não
apenas não tem a palavra de Deus, mas se opõe a ela. Por isso Tertuliano (De
fuga in persecutione) de maneira correta e elegante a denominou oração
legítima, tacitamente indicando que todas as outras orações são ímpias e
ilícitas.
49
Podemos, de acordo com o exemplo dos santos, moldar nossas orações
com palavras diferentes, conquanto não haja diferença no sentido.

Todavia, não queremos dar a entender que nos restringimos tanto a essa
forma de oração que seja ilegal mudar dela uma palavra ou sílaba. Pois nas
Escrituras encontramos muitas orações com palavras bastante diferentes
dessa, mas formuladas pelo mesmo Espírito, e podemos utilizá-las com
grande proveito. Muitas orações são também sugeridas aos cristãos pelo
mesmo Espírito, e de modo contínuo, ainda que em sua forma não sejam
muito parecidas com essa. Queremos dizer que homem nenhum deve desejar,
esperar ou pedir algo que não esteja compreendido nessa oração. Ainda que
as palavras difiram muito, não há diferença no sentido. Assim, todas as
orações — provenientes das Escrituras e de corações piedosos — devem se
referir à oração ensinada por Jesus, ainda que nenhuma possa se igualar a ela,
muito menos ultrapassá-la em perfeição. Ela não omite nada que possamos
conceber em louvor a Deus e considerar bom para o homem, e é tão exata
que qualquer esperança de melhorá-la deve ser renunciada. Em resumo,
lembremo-nos de ter aqui a doutrina da sabedoria celestial. Deus nos ensinou
o que ele deseja; ele deseja o necessário.
50
Devem-se observar algumas circunstâncias. Sobre a designação
de horas especiais de oração. O que se deve objetivar e o que se deve
evitar. A vontade de Deus, a regra das nossas orações.

Ainda que se tenha dito (seç. 7 e 27) que devemos sempre elevar a mente a
Deus, e orar sem cessar, mesmo em nossa fraqueza, tal é nosso torpor que
precisamos ser apoiados e estimulados, e para tanto precisamos separar horas
especiais para esse exercício — horas que não podem ser passadas sem
oração, durante as quais todo o interesse da nossa mente deve estar
completamente ocupado. Quando nos levantamos pela manhã, antes do início
do dia de trabalho, quando nos assentamos para nos alimentar, quando, pela
bênção divina, recebemos o alimento e quando nos recolhemos para
descansar. Mas isso não deve ser uma observação supersticiosa das horas,
como se estivéssemos realizando tarefas para Deus, e assim estaríamos
isentos de orar nas demais horas; antes, devemos considerar isso uma
disciplina pela qual nossa fraqueza é exercitada e repetidas vezes estimulada.
Em particular, deve ser nossa vontade, sempre que estivermos ansiosos, ou
virmos os outros pressionados por apertos, recorrer a Deus no mesmo
momento, não apenas em ritmo acelerado, mas com a mente disposta. Mais
uma vez, não devemos omitir o testemunho do nosso reconhecimento da mão
divina, louvando e agradecendo a Deus, quando passarmos por um momento
de prosperidade. Por último, devemos evitar o confinamento de Deus em
certas circunstâncias, em todas as nossas orações, ou de lhe prescrever tempo,
lugar ou modo de ação. Assim, a oração nos ensina a não fixar nenhuma lei
ou não impor nenhuma condição a ele, mas deixar a seu cargo completo a
adoção do curso de procedimento que ele achar melhor (quanto ao método,
tempo ou lugar). Pois antes que nós mesmos lhe ofereçamos qualquer oração,
pedimos que a vontade dele seja feita, e, ao assim fazer, subordinamos nossa
vontade à dele, como se tivéssemos colocado um freio na nossa vontade e,
em vez de presumir que damos licença a Deus, que o tenhamos como quem
governa e dispõe sobre todos os desejos.
51
Recomendação especial da perseverança na oração por preceito e
exemplo. Condenação de quem atribui a Deus um tempo
e uma forma especial de ouvir.

Se com a mente assim moldada à obediência nos permitirmos ser


governados pelas leis da Divina Providência, aprenderemos com facilidade a
perseverar em oração e permitir que todos os nossos desejos esperem de
modo paciente no Senhor, pois, ainda que não pareça, ele está sempre
presente conosco e, no tempo por ele determinado, manifestará quão distante
estava de ter os ouvidos fechados às nossas orações, ainda que aos olhos dos
homens pareça que Deus não se importa. Isso será um consolo, se a qualquer
tempo não conceder resposta imediata às nossas orações, impedindo-nos de
desanimar ou de dar lugar ao abatimento, como acontece com quem, ao
invocar a Deus, o faz com fervor, mas, a não ser que ele responda da primeira
vez e lhe atenda de imediato, imagina-o com raiva e ofendido e, abandonando
toda a esperança de sucesso, para de orar. Ao contrário, deferindo nossa
esperança com bem temperada equidade de ânimo, insistamos que a
perseverança nos é bastante recomendada nas Escrituras. Podemos ver com
frequência em Salmos como Davi e outros crentes, depois de quase esgotados
de orar, parecendo até dar socos no ar quando se dirigiam ao Deus que não os
ouvia, mesmo assim não pararam de orar porque a autoridade devida não é
dada à Palavra de Deus, a não ser que a fé nele depositada seja superior a
todos os eventos. Outra vez, não vamos provocar Deus, cansando-o com
nossa importunação e provocando sua ira contra nós. Muitos praticam a
barganha com Deus sobre certas condições e, como servos da própria luxúria,
querem submetê-lo a algumas estipulações, e, se ele não concordar de
imediato com eles, ficam indignados, com raiva, murmuram, reclamam e
fazem barulho. Ofendido assim, ele sempre concede a essas pessoas, em sua
ira, o que a outras nega por misericórdia e bondade. Temos prova disso nos
filhos de Israel, que melhor lhes teria sido se não fossem ouvidos pelo
Senhor, pois eles comeram carne junto com a indignação divina (Números
11.18,33).
52
Sobre a dignidade da fé, em resposta à oração, por meio da qual
sempre obtemos o que nos é mais importante. O conhecimento
disso é de extrema importância.

Se mesmo depois de uma longa espera nossos sentidos não são capazes de
perceber os resultados da oração ou de experimentar qualquer dos seus
benefícios, nossa fé nos assegurará do que não se pode perceber pelos
sentidos: a obtenção do melhor para nós, tendo o Senhor prometido se
interessar por todos os nossos problemas a partir do momento em que os
depositamos diante dele. Assim, teremos abundância na pobreza e conforto
na aflição. Ainda que todas as coisas falhem, Deus nunca nos abandonará e
ele não pode frustrar a expectativa e a paciência do seu povo. Só ele é
suficiente para tudo, pois compreende todo o bem, e nos irá revelá-lo no Dia
do Juízo — o dia em que seu Reino será manifesto de forma plena. Podemos
acrescentar: ainda que Deus atenda a todos os nossos pedidos, ele nem
sempre dará a resposta nos termos das nossas orações, mas, enquanto
aparentemente nos mantém em suspense, nos mostra que, mesmo de maneira
desconhecida, nossas orações não são vãs. Esse é o significado das palavras
de João: “E, se sabemos que ele nos ouve em tudo o que pedimos, sabemos
que temos o que dele pedimos” (1João 5.15). Pode parecer que há um
exagero de palavras, mas a declaração é a mais útil, a saber: mesmo quando
Deus não atende a nossos pedidos, ele os ouve e é favorável às nossas
orações, para que nossa esperança, baseada na sua Palavra, nunca seja
desapontada. Mas os cristãos sempre carecem do apoio da paciência divina,
pois não podem subsistir muito se não a tiverem como base. São severos os
juízos pelos quais o Senhor nos prova e nos exercita, pois ele sempre nos leva
a extremos; e, quando ele o faz, nos permite sofrer antes de obtermos o gosto
da sua doçura. Como disse Ana: “‘O Senhor mata e preserva a vida; ele faz
descer à sepultura e dela resgata’” (1Samuel 2.6). O que poderiam eles fazer,
a não ser perder o ânimo e cair no desespero, aflitos, desolados e meio
mortos, confortados com o pensamento de que são considerados por Deus e
que haverá fim para os males do presente? Por mais seguras que sejam suas
esperanças, eles não cessam de orar, pois oração desacompanhada de
perseverança não leva a resultado algum.
Índice de referências bíblicas

Gênesis 18.23; 22.1; 32.10; 32.13; 48.16


Êxodo 32.32
Levítico 26.20; 26.26
Números 11.18,33
Deuteronômio 8.2; 8.3; 8.17; 13.3
Juízes 9.20; 16.28
1Samuel 1.13; 2.6; 15.11
2Samuel 7.27; 7.28
1Reis 8.27; 18.42
2Reis 19.4
Salmos 4.8; 5.3; 5.7; 7.6; 15.1 18.1; 20.3; 22.5; 25.1; 25.7; 25.18; 26.2;
27.10; 31.5; 32.6; 33.22; 34.6; 34.15; 34.15; 34.15; 36.9; 39.13; 40.3; 41.4;
41.15; 44.20,21; 48.10; 50.15; 50.15; 50.15; 51.5; 51.15; 51.17; 52.6; 56.9;
60.12; 62.8; 65.1; 65.2; 80.4; 86.2; 91.15; 94; 102.18, 21; 103.20; 106.47;
107.6,13, 19; 116.1; 116.12,13; 119.76; 121.4; 132.10; 141.2; 142.7; 143.2;
145.18; 145.19
Provérbios 18.10
Eclesiastes 9.5,6
Isaías 1.15; 4.1; 9.6; 11.2; 29.13; 29.13; 30.1; 31.1; 38.3; 38.20; 42.10;
49.15; 56.7; 63.16; 63.16; 64.5-9; 65.24; 66.1; 66.2
Jeremias 2.13; 2.28; 11.11; 11.13; 14.7; 15.1; 31.33; 32.16; 33.8; 42.2;
42.9
Lamentações 3.8
Ezequiel 14.14
Daniel 9.18; 9.18-20
Oseias 14.2
Joel 2.32
Jonas 2.1-10
Zacarias 13.9
Mateus 4.1,3; 4.4; 6.6; 6.7; 6.9; 7.7; 7.11; 17.5; 18.20; 21.22; 23.9
Marcos 11.24
Lucas 9.55; 11.2; 15.20
João 1.12; 4.23; 9.31; 14.13; 16.24; 16.24; 16.26
Atos 7.48; 13.36; 20.36
Romanos 3.24; 8.26; 8.26; 8.26; 8.34; 9.3; 10.14; 10.14,17; 12.5; 15.30
1Coríntios 10.13; 10.31; 12.26; 14.15; 14.15; 14.16,17; 14.40; 15.28
2Coríntios 1.3; 1.20; 6.7,8
Gálatas 6.10
Efésios 1.23; 3.10; 3.12; 4.3; 6.16,17; 6.18; 6.18,19; 6.19
Filipenses 4.5,6; 4.6
Colossenses 3.16; 4.3
1Tessalonicenses 3.5; 5.17,18
2Tessalonicenses 2.8
1Timóteo 2.1; 2.1; 2.5; 2.5; 2.5; 2.5; 2.8; 2.8; 4.5; 4.8
Hebreus 4.16; 9.11,24; 10.19,20; 11.6; 13.15
Tiago 1.2,14; 1.5; 1.13; 4.3; 4.14; 5.13; 5.15; 5.16; 5.17,18
1Pedro 5.8
2Pedro 2.9
1João 1.9; 1.10; 2.1; 2.1; 3.22; 3.22; 5.14; 5.15
Baruque 2.18,19; 3.2

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