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ORAÇÃO
O exercício contínuo da fé
1ª edição
©2016, John Knox e João Calvino
Compilação das obras originalmente
publicadas
Editora Vida em inglês com os títulos: Of Prayer: A
Rua Conde de Sarzedas, 246 Liberdade Perpectual Exercise of Faith.
CEP 01512-070 São Paulo, SP The Daily Benefits Derived From It.
Tel.: 0 xx 11 2618 7000 Todos os direitos desta tradução em
Fax: 0 xx 11 2618 7030 língua portuguesa reservados por Editora
www.editoravida.com.br Vida.
Editor responsável: Gisele Romão da Proibida a reprodução por quaisquer
Cruz Santiago meios, salvo em breves citações, com
Tradução: Carlos Caldas indicação da fonte.
Revisão de tradução: Rogério Portella Todos os direitos desta tradução em
Revisão de provas: Josemar de Souza língua portuguesa reservados por Editora
Pinto Vida.
Projeto gráfico e diagramação: Claudia
Fatel Lino Proibida a reprodução por quaisquer
Capa: Arte Peniel meios, salvo em breves citações, com
indicação da fonte.
Scripture quotations taken from Bíblia
Sagrada, Nova Versão Internacional, NVI
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International Bible Society ®.
Used by permission IBS-STL U.S.
All rights reserved worldwide.
Edição publicada por Editora Vida, salvo
indicação em contrário. Todas as citações
bíblicas e de terceiros foram adaptadas
segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa, assinado em 1990, em vigor
desde janeiro de 2009.
1. edição: set. 2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
No entanto, alguns dirão: Mas ele não conhece nossas dificuldades sem
precisar ser avisado, e o que é para o nosso bem, de modo que, de alguma
maneira, lhe pareça supérfluo fazer pedidos por meio de nossas orações,
como se ele estivesse cochilando, ou mesmo dormindo, até ser acordado pelo
barulho da nossa voz? Os que assim argumentam não prestaram atenção à
finalidade pela qual o Senhor nos ensinou a orar. Não é nem por causa dele,
mas por nossa causa. Ele de fato deseja, e isto é justo, que a devida honra lhe
seja dada pelo reconhecimento de que tudo que os homens desejam ou
sentem seja útil, e que oremos para obter, seja derivado dele. Contudo,
mesmo os benefícios da homenagem que nós lhe ofertamos retornam para
nós mesmos. Por isso quanto mais os santos patriarcas proclamavam com
confiança as misericórdias de Deus a si mesmos e aos outros, mais forte
sentiam a motivação para a oração. Será suficiente fazer referência ao
exemplo de Elias, que, estando seguro do propósito divino de cumprir a
promessa de chuva dada a Acabe, assim mesmo orou ansiosamente de
joelhos e enviou seu servo sete vezes para ver o que estava acontecendo
(1Reis 18.42); não que ele desacreditasse do oráculo, mas por saber que era
sua obrigação apresentar o desejo na presença de Deus, para que sua fé não
ficasse sonolenta nem entorpecida. Por conseguinte, conquanto seja verdade
que, enquanto somos indiferentes ou insensíveis à nossa desgraça, ele nos
acorda e nos vigia e algumas vezes nos ajuda mesmo que não tenhamos
pedido. É bom para nós que supliquemos sempre. Em primeiro lugar, para
que nosso coração sempre se inflame com o desejo sério e ardente de buscá-
lo, amá-lo e servi-lo, enquanto nos habituamos a procurar seu auxílio como
uma âncora sagrada em toda necessidade; segundo, para que nenhum desejo,
nenhuma vontade — da qual nos envergonhemos na presença dele — possa
penetrar na nossa mente, enquanto aprendemos a depositar todos os nossos
desejos em sua presença e a derramar nosso coração diante dele; e que, por
fim, estejamos preparados para receber todos os seus benefícios com
verdadeira gratidão, enquanto nossas orações nos fazem lembrar de que tudo
procede de suas mãos. Além disso, tendo obtido o que pedimos, sejamos
persuadidos de que ele respondeu às nossas orações, sejamos conduzidos a
desejar seu favor de modo mais ardente e, ao mesmo tempo, ter maior prazer
em receber as bênçãos — cuja obtenção percebemos serem respostas às
nossas orações. Por fim, a prática e a experiência confirmam o pensamento de
sua providência em nossa mente, de maneira adaptada à nossa fraqueza,
quando ele não apenas promete que nunca falhará conosco, e com
espontaneidade nos concede acesso para a aproximação dele em todo
momento de necessidade, e que sua mão tem sido estendida para auxiliar seu
povo, não para diverti-lo com palavras, mas demonstrando ser ele um auxílio
presente. Por essas razões, ainda que nosso misericordioso Pai jamais cochile
nem durma, parece que isto acontece, para que ele possa nos exercitar,
quando de outra maneira estaríamos indiferentes ou preguiçosos para pedir, e
rogar, e suplicar com ardor por nossa necessidade. Logo, é um absurdo muito
grande dissuadir os homens da oração, por fingir que a Divina Providência,
sempre vigilante no governo do Universo, seja em vão importunada por
nossas súplicas, quando, ao contrário, Deus mesmo declara: “O Senhor está
perto de todos os que o invocam, de todos os que o invocam com
sinceridade” (Salmos 145.18). Não é melhor a alegação frívola de outros que
é supérfluo orar por coisas que o Senhor está pronto a conceder por sua
própria decisão; pois é o prazer dele que essas mesmas coisas, que fluem de
sua espontânea liberalidade, sejam reconhecidas como concedidas por nossas
orações. Isso é testificado pela sentença memorável nos salmos, à qual várias
outras correspondem: “Os olhos do Senhor voltam-se para os justos e os seus
ouvidos estão atentos ao seu grito de socorro” (Salmos 34.15). Esta
passagem, enquanto exalta o cuidado que a Divina Providência exerce de
modo espontâneo pela segurança dos cristãos, não omite o exercício da fé
pelo qual a mente é despertada da preguiça. Os olhos de Deus estão despertos
para assistir aos cegos em suas necessidades, mas ele, de igual maneira, se
satisfaz em ouvir nossos gemidos, para que nos dê prova melhor do seu
amor.
Dessa maneira, ambas as coisas são reais: “sim, o Protetor de Israel não
dormirá; ele está sempre alerta!” (Salmos 121.4); e ainda que nos pareça que
ele está mudo e entorpecido, ele se retira como se tivesse se esquecido de
nós.
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Regras a serem observadas na oração. A primeira:
reverência a Deus. Como a mente deve se comportar.
Que, então, a primeira regra da oração correta seja ter o coração e a mente
moldados para que se tornem os que entram em conversação com Deus. Nós
o conseguiremos em relação à mente se, deixando de lado pensamentos e
preocupações carnais que possam interferir na pura e direta contemplação a
Deus, a mente tenha como único intento se encontrar em oração, mas
também, tanto quanto possível, ser elevada de si mesma. Não insisto com a
mente tão desengajada que não sinta as perturbações da ansiedade; ao
contrário, o fervor da oração é inflamado pela ansiedade. Assim, vemos que
os santos servos de Deus sofrem grande angústia, para não dizer solicitude,
quando fazem subir ao Senhor a voz do queixume a partir do abismo
profundo e das mandíbulas da morte. Digo que todas as preocupações
estranhas sejam expulsas — preocupações pelas quais a mente pode se
dispersar, se afastar do céu e rastejar sobre a terra. Quando digo que ela deve
ser elevada, quero dizer que ela não deve levar à presença de Deus quaisquer
coisas que nossa razão cega e estúpida tem o hábito de inventar, nem se
manter confinada nas pequenas medidas da própria vaidade, mas se elevar à
pureza digna de Deus.
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Toda a distração da mente deve ser excluída, e todos os nossos
sentimentos devem ser envolvidos com seriedade. Isso é confirmado pela
forma de levantar as mãos em oração. Devemos pedir apenas o que Deus
permite. Para nos ajudar em nossa fraqueza, Deus concede o Espírito para
ser nosso guia em oração. O papel do Espírito nesse sentido. Devemos orar
com o coração e os lábios.
Se há objeção a este ponto, admito que a necessidade que nos impele a orar
nem sempre é igual, e a distinção nos é ensinada com proveito por Tiago:
“Entre vocês há alguém que está sofrendo? Que ele ore. Há alguém que se
sente feliz? Que ele cante louvores” (Tiago 5.13). Por conseguinte, o próprio
senso comum afirma que, como somos muito preguiçosos, precisamos ser
estimulados por Deus a orar de modo fervoroso sempre que se fizer
necessário. Davi fala do tempo em que Deus “pode ser encontrado” (um
tempo oportuno); pois, como ele declarou em várias outras passagens, quanto
mais difíceis as circunstâncias, os aborrecimentos, os temores e outros tipos
de pressão sobre nós, mais livre é nosso acesso a Deus, como se ele nos
convidasse para si mesmo. Não é menos verdadeira a injunção de Paulo de
orar “em todas as ocasiões” (Efésios 6.18); pois, conquanto prosperemos, de
acordo com nosso ponto de vista, as coisas acontecem, e ainda que possamos
estar rodeados de alegria por todos os lados, não há um momento em que
nossa vontade não nos exorte a orar. Um homem tem muito trigo e vinho;
mas como ele não pode desfrutar de um pedaço de pão, a não ser pela
contínua generosidade de Deus, seus armazéns ou celeiros não o impedirão
de pedir o pão diário. Então, se considerarmos os perigos iminentes a cada
momento, o próprio medo nos ensinará que nenhum tempo deve ser vivido
sem oração. Mas isso pode ser mais bem conhecido em questões espirituais.
Quando os muitos pecados, dos quais temos consciência, permitirão que nos
assentemos seguros sem suplicar libertação da culpa e do castigo? Quando as
tentações nos darão uma trégua, tornando desnecessário que a ajuda chegue
depressa? Mais que isto, o zelo pelo Reino e glória de Deus não nos deveria
prender pelo começo, mas nos impulsionar sem pausa, para que todo
momento pareça apropriado. Mas não é sem motivo que a assiduidade na
oração é ordenada com tanta frequência. Não falo da perseverança, que será
considerada mais adiante; as Escrituras, porém, ao nos lembrar da
necessidade de constante oração, nos acusam de preguiça, porque não
sentimos quanto precisamos desse cuidado e dessa assiduidade. Por esse
princípio são restringidos, da mesma forma, e banidos da oração a hipocrisia
e o artifício de mentir a Deus. Deus promete estar próximo de quem o invoca
em verdade e declara que quem o busca de todo o coração o encontrará; por
conseguinte, quem se compraz na própria sujeira não pode ter desejo dele.
Um dos requisitos da oração legítima é o arrependimento. Daí a constante
declaração das Escrituras e Deus não ouve os ímpios; que as orações deles,
bem como seus sacrifícios, são abominação a ele. Pois é certo que quem
fecha seu coração encontrará os ouvidos de Deus fechados, e quem, pela
dureza de coração, provoca sua severidade o encontrará inflexível. Por isso
ele afirma em Isaías: “‘Quando vocês estenderem as mãos em oração,
esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas
orações, não as escutarei! As suas mãos estão cheias de sangue!’” (Isaías
1.15). Da mesma forma, em Jeremias: “[...] ‘[...] Ainda que venham a clamar
a mim, eu não os ouvirei’” (Jeremias 11.11); pois ele considera o mais alto
insulto o ímpio se orgulhar de sua aliança enquanto lhe profana o nome
sagrado com sua vida. Daí as queixas de Isaías: “[...] ‘Esse povo se aproxima
de mim com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe
de mim. A adoração que me prestam é feita só de regras ensinadas por
homens’” (Isaías 29.13). De fato, ele não limita isso apenas às orações, mas
declara que abomina o fingimento em todas as partes do culto. Daí as
palavras de Tiago: “Quando pedem, não recebem, pois pedem por motivos
errados, para gastar em seus prazeres” (Tiago 4.3). É mesmo verdade (como
em breve veremos mais uma vez) que o piedoso, nas orações que pronuncia,
não confia no próprio valor; assim, a admoestação de João não é supérflua: “e
recebemos dele tudo o que pedimos, porque obedecemos aos seus
mandamentos e fazemos o que lhe agrada” (1João 3.22); a consciência má
nos fecha as portas. Segue-se daí que ninguém, a não ser os adoradores
sinceros de Deus, ora de maneira certa, ou é ouvido. Portanto, que quem ora
se sinta insatisfeito com o que está errado com sua condição e assuma a
incapacidade de fazer algo sem o arrependimento — algo que diz respeito ao
caráter e sentimento do suplicante humilde.
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A terceira regra: a supressão de todo o orgulho.
Exemplos: Daniel, Davi, Isaías, Jeremias, Baruque.
A terceira regra a ser adicionada é: quem vai até a presença de Deus para
orar deve se despir de todos os pensamentos vangloriosos, deixar de lado toda
ideia de valor; em suma, descartar toda a autoconfiança e humildemente dar a
Deus toda a glória, para não se arrogar a nada, mesmo que pouco, de si
mesmo, nenhum orgulho vão que faça com que Deus desvie seu rosto. Dessa
submissão, que lança fora toda a altivez, temos numerosos exemplos nos
servos de Deus. Quanto mais santos, mais humildes se prostravam quando
iam à presença do Senhor. Por isso Daniel, a quem o Senhor mesmo
concedeu altos elogios, disse: “Inclina os teus ouvidos, ó Deus, e ouve; abre
os teus olhos e vê a desolação da cidade que leva o teu nome. Não te fazemos
pedidos por sermos justos, mas por causa da tua grande misericórdia. Senhor,
ouve! Senhor, perdoa! Senhor, vê e age! Por amor de ti, meu Deus, não te
demores, pois a tua cidade e o teu povo levam o teu nome” (Daniel 9.18-20).
Ele não faz isso de forma indireta, da maneira costumeira, como se fosse um
dos indivíduos na multidão: antes, confessa individualmente culpa, e, como
suplicante comprometendo-se no asilo do perdão, declara de modo distinto
ter confessado o próprio pecado e o pecado do seu povo, Israel. Davi também
nos apresenta um exemplo dessa humildade: “Mas não leves o teu servo a
julgamento, pois ninguém é justo diante de ti” (Salmos 143.2). De maneira
semelhante, Isaías ora: “Vens ajudar aqueles que praticam a justiça com
alegria, que se lembram de ti e dos teus caminhos. Mas, prosseguindo nós em
nossos pecados, tu te iraste. Como, então, seremos salvos? Somos como o
impuro — todos nós! Todos os nossos atos de justiça são como trapo imundo.
Murchamos como folhas, e como o vento as nossas iniquidades nos levam
para longe. Não há ninguém que clame pelo teu nome, que se anime a
apegar-se a ti, pois escondeste de nós o teu rosto e nos deixaste perecer por
causa das nossas iniquidades. Contudo, Senhor, tu és o nosso Pai. Nós somos
o barro; tu és o oleiro. Todos nós somos obra das tuas mãos. Não te ires
demais, ó Senhor! Não te lembres constantemente das nossas maldades. Olha
para nós! Somos o teu povo!” (Isaías 64.5-9). Veja que eles não confiam em
nada, a não ser nisto: considerando que são do Senhor, eles não se
desesperam, pois são objetos do cuidado divino. Jeremias diz: “Embora os
nossos pecados nos acusem, age por amor do teu nome, ó Senhor! [...]”
(Jeremias 14.7). Isso foi escrito de maneira verdadeira e piedosa por um autor
incerto (quem quer que tenha sido ele), que compôs o livro atribuído ao
profeta Baruque: “Mas não são os que estão vivos que louvam a tua grandeza
e a tua justiça, isto é, aqueles que estão muito aflitos, os que andam curvados
e enfraquecidos, os que terão ficado cegos e os que estão com fome. ‘Ó
Senhor, nosso Deus, não pedimos que tenhas pena de nós por causa das
coisas boas que nossos antepassados e nossos reis fizeram’. [...] ‘Ouve-nos,
Senhor, e tem compaixão de nós, pois temos pecado contra ti’” (Baruque
2.18,19; 3.2).
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Vantagem da supressão do orgulho. Essa atitude conduz ao sincero pedido
de perdão, acompanhado da confissão humilde e da segura confiança na
misericórdia divina. Isso nem sempre pode ser expresso por palavras. Essa é
uma atitude peculiar aos penitentes piedosos. Nunca se deve omitir a
introdução geral à busca do favor para nossas orações.
aos pios quando invocam a Deus. Sua realização, apesar de não contarmos
com a mesma santidade que outros distintos servos de Deus, ainda que não
nos comprazamos na confiança vã, e nos apeguemos com sinceridade à
misericórdia de Deus. Quem não invoca a Deus pela necessidade premente
não é melhor que o idólatra. Essa concorrência de temor e confiança une
passagens diferentes da Escritura, para nos humilhar a nós mesmos por meio
da oração, fazendo nossas orações ascenderem.
É estranho que essas promessas agradáveis nos afetem de maneira tão fria,
ou rara, se o fazem, pois a maioria dos homens prefere oscilar entre altos e
baixos, esquecendo-se da fonte de águas vivas, e procure cisternas vazias em
vez de abraçar a liberalidade divina que lhes é oferecida de maneira
voluntária (Jeremias 2.13). “O nome do Senhor”, diz Salomão, “é uma torre
forte; os justos correm para ela e estão seguros” (Provérbios 18.10). Joel,
depois de predizer o desastre terrível e próximo, apresenta uma declaração
memorável: “‘E todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo [...]”
(Joel 2.32). Sabemos que isso se refere ao Evangelho. Apenas um em cem é
movido a se dirigir à presença de Deus, ainda que exclame como Isaías:
“‘Antes de clamarem, eu responderei; ainda não estarão falando, e eu os
ouvirei’” (Isaías 65.24). Em outro momento, essa honra é outorgada de modo
geral a toda a Igreja — honra pertencente a todos os membros de Cristo:
“‘Ele clamará a mim, e eu lhe darei resposta, e na adversidade estarei com
ele; vou livrá-lo e cobri-lo de honra’” (Salmos 91.15). Todavia, minha
intenção, como já declarei, não é enumerar todas as passagens, mas apenas
selecionar algumas delas, dentre as mais admiráveis, como modelos da forma
tão bondosa com que Deus nos atrai para si mesmo, e quão extrema é nossa
ingratidão quando, mesmo com motivos tão poderosos, nossa preguiça ainda
nos impede. Por conseguinte, que estas palavras sempre ressoem em nossos
ouvidos: “O Senhor está perto de todos os que o invocam, de todos os que o
invocam com sinceridade” (Salmos 145.18). De modo semelhante, Deus
declara, nas passagens citadas de Isaías e Joel, a abertura de seus ouvidos às
nossas orações e seu prazer quando lançamos a ele nossas preocupações,
como se fosse um sacrifício de odor suave. O benefício especial das
promessas que recebemos quando formulamos nossa oração, não com medo e
dúvidas, mas quando confiamos em sua palavra — cuja majestade em outro
momento nos paralisaria —, é o fato de ousarmos chamar-lhe Pai, com ele
mesmo condescendendo na sugestão desse nome amabilíssimo. Fortificados
por tais convites, é necessário saber que temos material suficiente para a
oração, pois nossas orações não dependem do nosso mérito, mas todo o seu
valor e esperança de sucesso são encontrados nas promessas de Deus e
dependem delas, de modo que não precisam de outro fundamento — sendo
necessário olharmos para cima ou para baixo, para a direita ou para a
esquerda. É preciso, por conseguinte, que se fixe em nossa mente que,
conquanto não nos igualemos à tão exaltada santidade dos patriarcas, profetas
e apóstolos, mesmo assim a ordem para orar é comum a eles e a nós também,
e a fé é comum, pois se dependemos da Palavra de Deus, somos, a esse
respeito, companheiros deles. Pois o fato de Deus declarar, tal como já
vimos, que ouvirá a todos e lhes será favorável encoraja o maior de todos os
miseráveis a esperar alcançar seu pedido; por isso, devemos atender às
formas gerais de expressão, que, tais como indicadas de forma geral, não
excluem ninguém, do primeiro ao último; o que se deve ter é sinceridade de
coração, consciência da própria indignidade, humildade e fé, que não
podemos, pela hipocrisia da oração enganadora, profanar o nome de Deus.
Nosso misericordioso Pai não rejeitará a quem ele não só encoraja a
comparecer à sua presença, mas o insta de todas as maneiras possíveis. Eis o
método de oração de Davi ao qual já me referi: “‘Ó Soberano Senhor, tu és
Deus! Tuas palavras são verdadeiras, e tu fizeste essa boa promessa a teu
servo’” (2Samuel 7.28). Em outra passagem, igualmente é dito: “Seja o teu
amor o meu consolo, conforme a tua promessa ao teu servo” (Salmos
119.76). E todo o conjunto dos israelitas sempre se fortificava com a
memória da aliança, pois Deus prescreveu que eles não deveriam orar com
medo (Gênesis 32.13). Nisso eles imitaram o exemplo dos patriarcas, em
particular Jacó, que, depois de confessar-se indigno das muitas misericórdias
recebidas da mão do Senhor, diz-se encorajado a fazer pedidos ainda maiores,
pois Deus prometera que os concederia a ele. No entanto, quaisquer que
sejam os pretextos empregados pelos não cristãos, quando não se dirigem a
Deus sempre que necessário, nem o buscam, nem imploram sua ajuda, eles
lhe tiram a honra devida, como se estivessem fabricando para si mesmos
novos deuses e ídolos, pois dessa forma negam que Deus seja o autor de
todas as suas bênçãos. Ao contrário, nada liberta de modo mais eficiente a
mente dos pios da dúvida que se armar com o pensamento de que nenhum
obstáculo será capaz de impedi-los enquanto forem obedientes ao
mandamento de Deus, segundo o qual nada lhe é mais grato que a obediência.
Então, uma vez mais, o que já disse fica ainda mais claro. Isto é, o espírito
ousado em oração lida bem com o medo, a reverência e a ansiedade, e não há
incoerência no fato de Deus erguer os prostrados. Dessa maneira, formas de
expressão aparentemente inconsistentes se harmonizam de maneira
admirável. Jeremias e Davi falam em apresentar com humildade nossas
súplicas a Deus (Jeremias 42.9; Daniel 9.18). Em outra passagem, Jeremias
diz: “[...] ‘Por favor, ouça a nossa petição e ore ao Senhor, ao seu Deus, por
nós e em favor de todo este remanescente [...]’” (Jeremias 42.2). Já aos
crentes sempre se diz que devem elevar as preces. Assim diz Ezequias,
pedindo ao profeta que assuma o ofício da intercessão (2Reis 19.4). E Davi
diz: “Seja a minha oração como incenso diante de ti e o levantar das minhas
mãos como a oferta da tarde” (Salmos 141.2). A explicação é que, mesmo
sendo crentes, persuadidos do amor paternal de Deus, alegremente confiantes
em sua fidelidade, e não tendo hesitação em implorar a ajuda que ele oferece
de modo voluntário, eles não exultam com uma segurança orgulhosa ou
supina, mas permanecem suplicantes humildes.
15
Objeção fundamentada em alguns exemplos, ou seja, as orações se
provaram eficientes, ainda que não segundo a forma prescrita. Resposta.
Tais exemplos, mesmo que não objetivem ser imitados por nós, são muito
úteis. Objeção: as orações dos fiéis algumas vezes não são eficientes.
Resposta confirmada por uma nobre passagem de Agostinho. Regra para a
oração correta.
<
Devemos prestar atenção às circunstâncias do tempo com cuidado. Cristo
ordena aos discípulos que recorram à sua intercessão depois de sua ascensão
ao céu: “‘Nesse dia, vocês pedirão em meu nome [...]” (João 16.26). De fato,
é correto que, desde o princípio, quem orou foi ouvido por causa do
Mediador. Por essa razão Deus ordenou na Lei que apenas o sacerdote
entraria no santuário, levando o nome das 12 tribos de Israel sobre seus
ombros, e com a mesma quantidade de pedras preciosas em seu peito,
enquanto o povo permanecia à distância no átrio exterior e de lá unia suas
orações às do sacerdote. O sacrifício objetivava ratificar e confirmar as
orações deles. A sombria cerimônia da Lei ensinava em primeiro lugar que
todos estamos excluídos da face de Deus, e, por conseguinte, há a
necessidade do surgimento de um Mediador em nosso nome, que nos leve
sobre seus ombros e nos mantenha junto ao seu peito, para que sejamos
ouvidos na pessoa dele. Em segundo lugar, que nossas orações, como
dissemos, nunca estão livres de impureza, mas são purificadas pela aspersão
de seu sangue. E vemos que os santos, quando desejavam obter alguma coisa,
encontravam esperança nos sacrifícios, porque sabiam que dessa maneira
todas as orações seriam confirmadas. “Lembre-se de todas as tuas ofertas”,
diz Davi, “e aceite os teus holocaustos” (Salmos 20.3). Daí se infere que
desde o princípio Deus era aplacado pela intercessão de Cristo, ao receber as
orações do seu povo. Então por que Cristo fala de um novo tempo (“neste
dia”) quando os discípulos deveriam orar em seu nome, a não ser que essa
graça, agora apresentada de maneira mais luminosa, deveria também receber
nossa mais alta consideração? Nesse sentido, pouco antes ele disse: “‘Até
agora vocês não pediram nada em meu nome [...]’” (João 16.24). Não que
eles desconhecessem o ofício do Mediador (todos os judeus eram instruídos
nos rudimentos), mas eles não entenderam com clareza que Cristo, por sua
ascensão aos céus, seria o advogado da Igreja em maior escala. Por
conseguinte, para consolá-los da dor de sua ausência, ele assegura seu ofício
de advogado e diz que até aquele momento eles não contavam com o
benefício especial que teriam o privilégio de desfrutar quando, auxiliados
pela intercessão dele, invocariam a Deus com maior liberdade. Nesse sentido,
o apóstolo diz que temos “plena confiança para entrar no Lugar Santíssimo
pelo sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que ele nos abriu”
(Hebreus 10.19,20). Portanto, somos indesculpáveis se não abraçamos de
peito aberto (como se diz) o dom inestimável que nos está destinado.
19
A ira de Deus jaz sobre quem rejeita Cristo como Mediador.
Isso não exclui a intercessão recíproca dos santos na terra.
A respeito dos santos que tendo morrido no corpo vivem em Cristo, se lhes
atribuímos orações, não imaginemos que contem com outro meio de suplicar
a Deus além de Jesus — o único caminho —, ou que as orações deles são
aceitas por Deus em outro nome que não o de Jesus. Portanto, como as
Escrituras nos conduzem só a Cristo, e como o Pai celestial se agrada em unir
todas as coisas nele, é o extremo da estupidez, para não dizer loucura, tentar
obter acesso por meio de outros, só para ser afastado dele sem quem o acesso
seja obtido. Mas quem pode negar que essa foi a prática por muito tempo, e
ainda é, onde quer que o papado prevaleça? Para buscar o favor de Deus,
impõem-se sempre os méritos humanos e sempre que Cristo é deixado de
lado, suplica-se a Deus em nome deles (dos santos falecidos).
Pergunto se isso não é transferir para eles o ofício de único intercessor que
há pouco alegamos para Cristo? Que anjo ou demônio já pronunciou uma
sílaba a qualquer humano a respeito da fantasiosa intercessão dos santos
falecidos? Não há uma palavra sobre o assunto nas Escrituras. Qual é então a
base para essa ficção? Com certeza, enquanto a mente humana busca ajuda
no que não é sancionado pela Palavra de Deus, ela manifesta sua
desconfiança de forma plena (cf. seç. 27). Mas, se apelarmos à consciência de
todos os que se alegram na intercessão dos santos, descobriremos que a única
razão é o fato de estarem cheios de ansiedade, como se supusessem a
insuficiência de Cristo ou seu excesso de rigor. No entanto, com essa
ansiedade eles desonram Cristo e roubam dele o título de único
Mediador, dado a ele pelo Pai como privilégio especial — e não deve ser
transferido a nenhum outro. Ao assim fazer, eles obscurecem a glória da sua
natividade e anulam sua cruz; em suma, privam e defraudam do devido
louvor tudo que ele fez ou sofreu, e tudo isso objetivou demonstrar que ele é
e deve ser considerado o único Mediador. Ao mesmo tempo, eles rejeitam a
bondade de Deus ao se manifestar a eles como Pai, pois ele não lhes é Pai
caso não reconheçam Cristo como irmão. Isso eles se recusam plenamente a
fazer se não pensam que Jesus sente por eles a afeição de um irmão; ninguém
terá afeição mais gentil ou terna que a dele. Por isso as Escrituras falam só a
respeito dele, enviam-nos só a ele e nos estabelecem nele. “Ele”, diz
Ambrósio, “é a boca pela qual falamos ao Pai; os olhos pelos quais vemos o
Pai; a mão direita pela qual nos oferecemos ao Pai. A não ser pela intercessão
dele, nem nós nem qualquer dos santos podemos manter o relacionamento
com Deus” (Ambrósio, De Isaac et anima). Se eles objetam que as orações
públicas oferecidas nas igrejas concluem com as palavras por meio de Jesus
Cristo, nosso Senhor, essa é uma fuga frívola, pois o insulto menor não é
oferecido à intercessão de Cristo ao confundi-la com as orações e méritos dos
mortos do que por omiti-la por completo e fazer menção apenas dos mortos.
Então, em todas as suas litanias, hinos e discursos — em que todo tipo de
honra é prestada aos santos falecidos —, não há menção de Cristo.
22
Erros monstruosos resultantes dessa ficção.
Refutação. Exceção feita por seus advogados. Resposta.
Mas aqui a estupidez chegou a tal ponto que dá espaço para a manifestação
do gênio da superstição, que, uma vez sacudida a rédea, costuma agir sem
limites. Depois de os homens começarem a olhar para a intercessão dos
santos, a administração peculiar foi gradualmente designada a cada um deles,
de modo que ora um, ora outro, intercessor é invocado — conforme a
diversidade dos assuntos. Indivíduos adotaram santos particulares e
depositaram fé neles como divindades tutelares. E logo havia deuses
estabelecidos não apenas conforme o número de suas cidades (acusação
levantada pelo profeta contra o antigo Israel, Jeremias 2.28; 11.13), mas
conforme o número de pessoas. No entanto, enquanto os santos em todos os
seus desejos referem-se apenas à vontade divina, veja só, e com essa vontade
concordam, destinar-lhes qualquer outra oração, a não ser o desejo da vinda
do Reino de Deus é pensar de forma estúpida, carnal e até mesmo insultuosa
a respeito deles. Nada pode estar mais distante da compreensão assim que
imaginar que cada um deles, sob a influência de um sentimento particular,
está disposto a ser mais favorável a seus adoradores. Muitas pessoas caíram
nessa horrível blasfêmia de invocá-los não para simplesmente ajudar, mas
para presidir sua salvação. Observe a profundidade em que homens
miseráveis caem quando se esquecem do seu lugar, isto é, a Palavra de Deus.
Nem falo sobre os tipos mais monstruosos de impiedade que, mesmo
detestáveis a Deus, anjos e homens, praticam e não sentem dor ou vergonha.
Prostrados perante uma estátua ou um quadro de Bárbara ou Catarina ou de
qualquer outro, eles balbuciam um Pater Noster, e tão distantes estão os
pastores deles que, seduzidos pela fragrância do ganho, aprovam e aplaudem
tal atitude. Mas enquanto tentam se livrar do ódio desse procedimento vil e
criminoso, sob cujo pretexto defendem a prática de invocar Eloi (Elígio) ou
Medardo para ajudar seus servos e enviar-lhes ajuda dos céus, ou que a Santa
Virgem ordene a seu Filho que faça tudo que ela pedir? O Concílio de
Cartago proibiu que no altar orações fossem dirigidas aos santos. É provável
que esses homens santos, incapazes por completo de suprimir a força de
costumes depravados, chegassem a este ponto, que orações públicas não
poderiam ser viciadas com formas como a expressão Sancte Petre, ora pro
nobis [São Pedro, rogai por nós]. Mas quão longe a extravagância diabólica
não foi, a ponto de homens não hesitarem em transferir aos mortos os
atributos peculiares de Cristo e de Deus?
23
Argumentos dos papistas a respeito da intercessão dos santos:
a) Com base no dever e ofício dos anjos. Resposta. b) Com base em uma
expressão de Jeremias a respeito de Moisés e Samuel. Resposta: réplica
do argumento; c) O significado do profeta confirmado por uma
passagem semelhante de Ezequiel, e o testemunho de um apóstolo.
Eles laboram em vão para provar que a intercessão tem apoio das
Escrituras. Muitas vezes lemos (eles dizem) das orações dos anjos, e não
apenas isso, mas se diz que as orações dos cristãos são levadas à presença de
Deus mediante as orações deles. Mas, se eles forem comparar os santos que
partiram desta vida com os anjos, será necessário provar que os santos são
espíritos ministradores, aos quais foi delegado o ofício de superintender nossa
salvação e ainda a tarefa de nos guiar em todos os nossos caminhos, de nos
envolver, admoestar, confortar e vigiar. Tudo isso foi designado aos anjos,
mas nada aos santos. A forma absurda de sua confusão dos santos falecidos
com os anjos é aparente pelos muitos ofícios pelos quais as Escrituras
distinguem uns dos outros. Ninguém, a não ser que seja solicitado, presumirá
executar o ofício de testemunhar a favor de um juiz terreno. De onde então
esses vermes tiram base para se colocarem diante de Deus como
intercessores, quando o ofício não lhes foi designado? Deus se agradou de dar
aos anjos o encargo da nossa segurança. Por isso eles participam das nossas
reuniões solenes, e a igreja para eles é um teatro onde eles contemplam a
manifesta sabedoria de Deus (Efésios 3.10).
Os que transferem para os outros o encargo que lhes é peculiar sem dúvida
pervertem e confundem a ordem estabelecida por Deus e que deve ser
inviolável. Com destreza semelhante, eles citam outas passagens. Deus disse
a Jeremias: “[...] ‘Ainda que Moisés e Samuel estivessem diante de mim,
intercedendo por este povo, eu não lhes mostraria favor. Expulse-os da minha
presença! Que saiam!’” (Jeremias 15.1). Como (perguntam eles) Deus teria
falado assim dos mortos, a não ser que ele soubesse que intercedem pelos
vivos? Minha inferência, pelo contrário, é a seguinte: como nem Moisés nem
Samuel intercederam pelo povo de Israel, então não há intercessão pelos
mortos. Pois quem dos santos pode trabalhar pela salvação das pessoas
quanto Moisés, que, enquanto em vida, ultrapassou a todos, não fez nada?
Portanto, se insistirem nas artimanhas miseráveis de que os mortos
intercedem pelos vivos, porque o Senhor disse: “Ainda que [eles]
intercedessem (intercesserint), argumentarei da seguinte maneira: Moisés, a
respeito de quem é dito, “se tivesse intercedido”, não intercedeu pelo povo na
necessidade mais extrema: por conseguinte, é provável que nenhum outro
santo interceda, pois todos eles estão atrás de Moisés em humanidade,
bondade e solicitude paternal. Por isso o que eles receberão pelos sofismas
são ferimentos causados pelas próprias armas com as quais acreditam estar
muito protegidos. Contudo, é ridículo usar assim essa simples sentença, pois
o Senhor apenas declara que não poupará as iniquidades do povo, mesmo que
algum Moisés ou Samuel, com quem ele foi tão indulgente em suas orações,
intercedesse por eles. O sentido é extraído com mais clareza de uma
passagem semelhante em Ezequiel: “‘Mesmo que estes três homens — Noé,
Daniel e Jó — estivessem nela, por sua retidão eles só poderiam livrar a si
mesmos. Palavra do Soberano, o Senhor’” (Ezequiel 14.14). Não há dúvida
aqui que as palavras devem ser entendidas como foram pronunciadas: se duas
dessas pessoas citadas vivessem de novo, pois a terceira ainda estava viva na
época, ou seja, Daniel, que se encontrava no auge de sua juventude e de
piedade incomparável. Por conseguinte, deixemos de lado as pessoas a
respeito de quem as Escrituras declaram ter cumprido sua missão. Quando
Paulo menciona Davi, ele não diz que o rei ajudou sua posteridade por meio
de orações, mas apenas que ele (Davi) serviu “‘ao propósito de Deus em sua
geração’” (Atos 13.36).
24
d) Quarto argumento papista com base na natureza
da caridade, mais perfeita nos santos glorificados. Resposta.
Eles mais uma vez objetam: “Seremos privados dos desejos piedosos de
quem a vida toda respirou apenas piedade e misericórdia?”. Não tenho o
desejo de bisbilhotar o que eles fazem ou meditam; mas a probabilidade é
que, em vez de estarem sujeitos ao impulso de vários desejos particulares,
com uma vontade fixa e inamovível desejam o Reino de Deus, que consiste
não menos na destruição dos ímpios que na salvação dos cristãos. Sendo
assim, não pode haver dúvida de que a caridade deles está confinada à
comunhão do corpo de Cristo e não vai além do compatível com a natureza
da comunhão. Mas, ainda que eu admita que oram assim por nós, eles, no
entanto, não perdem a tranquilidade a ponto de serem distraídos por
preocupações terrenas: menos longe estão eles, por conseguinte, de serem
invocados por nós. Nem se segue que a invocação deva ser usada porque,
enquanto os homens estão vivos na terra, eles podem orar uns pelos outros.
Isso serve para manter vivo o sentimento de caridade, quando eles, como
deve ser, compartilham as necessidades e levam as cargas uns dos outros.
Eles o fazem por ordem do Senhor, e não sem uma promessa, as duas coisas
de importância primária na oração.
Mas as razões são inaplicáveis aos mortos, aqueles com quem o Senhor,
tendo retirado da sociedade, nos deixou sem a possibilidade de
relacionamento (Eclesiastes 9.5,6), e a eles também, tanto quanto podemos
conjecturar, ele deixou sem possibilidade de se relacionar conosco. Contudo,
se alguém alegar que eles conservam a mesma caridade para conosco, como
unidos a nós na única fé, quem nos revelou que eles têm ouvidos capazes de
ouvir os sons da nossa voz ou ouvidos claros o bastante para discernir nossas
necessidades? Nossos oponentes, porém, falam de fato na ilusão dos seus
pensamentos a respeito de algum tipo de luz que brilha dos santos falecidos e
na qual, como em um espelho, eles, do alto de sua elevada morada,
contemplam os assuntos dos homens; mas afirmá-lo com a confiança
presumida por esses homens significa apenas desejar, por meio de sonhos
extravagantes do cérebro, e sem nenhuma base de autoridade, bisbilhotar e
penetrar nos juízos ocultos de Deus e pisotear as Escrituras, que tantas vezes
declaram estar a sabedoria da carne em inimizade com a sabedoria divina,
condenam de modo completo a vaidade da nossa mente e, humilhando-nos a
razão, nos pedem que olhemos apenas para a vontade divina.
25
Argumento fundamentado em uma
passagem de Moisés. Resposta.
As outras passagens das Escrituras empregadas por eles para defender seu
erro são muito distorcidas. Jacó (eles dizem) pede aos filhos de José: “‘[...]
Sejam eles chamados pelo meu nome e pelos nomes de meus pais Abraão e
Isaque [...]’” (Gênesis 48.16). Em primeiro lugar, vejamos como era a
natureza da invocação entre os israelitas. Eles não imploram aos antepassados
que os socorram, mas pedem a Deus que se lembre dos seus servos Abraão,
Isaque e Jacó. Logo, o exemplo deles não dá apoio para que se dirijam de
maneira direta aos santos. Mas sendo assim a dureza mental de quem assim
procede, por não compreenderem o significado de invocar o nome de Jacó,
nem porque este deve ser invocado, não é estranho que eles se equivoquem
de maneira tão pueril para fazer o que fazem. A expressão ocorre repetidas
vezes nas Escrituras. Isaías fala de mulheres sendo chamadas pelo nome de
homens, quando elas os têm por marido e vivem sob sua proteção (Isaías
4.1). Invocar o nome de Abraão sobre os israelitas consistia em referir a
origem da sua raça nele e conservá-lo em lembrança distinta como fundador e
pai da nação. Jacó não o faz por qualquer ansiedade de preservar a
celebridade do seu nome, mas por saber que toda a felicidade de seus
descendentes consistia na herança da aliança estabelecida com eles por Deus.
Entendendo que lhes daria a soma de todas as bênçãos, ele ora para ser
contado como pertencente a seu povo; isso não era outra coisa senão a
transmissão da sucessão da aliança a eles. Também eles, quando fazem
menção do assunto em suas orações, não se entregam à intercessão dos
mortos, mas se lembram da aliança que seu Pai mui misericordioso
estabeleceu para ser-lhes bondoso e propício por causa de Abraão, Isaque e
Jacó. Mas, em outros aspectos, quão pouco os santos confiavam nos méritos
dos seus antepassados, pois a voz pública da Igreja declara nos profetas “[...]
Abraão não nos conhece e Israel nos ignora [...]” (Isaías 63.16). Enquanto a
Igreja assim se pronuncia, ela ao mesmo tempo acrescenta: “Volta por amor
dos teus servos, por amor das tribos que são a tua herança”, não pensando em
termos de intercessão, mas advertindo apenas acerca dos benefícios da
aliança. Agora, de fato, quando temos o Senhor Jesus, em cuja mão a eterna
aliança de misericórdia foi não apenas estabelecida, mas confirmada, que
nome melhor que o dele podemos usar em nossas orações? E desde que os
bons doutores concluiriam com base nos textos que os patriarcas são
intercessores, gostaria que eles me dissessem o motivo pelo qual, dentre a
multidão tão grande, não há lugar para Abraão, o pai da Igreja? Sabemos bem
de que grupo eles selecionam seus intercessores. Que eles me digam que
coerência há em negligenciar e rejeitar Abraão, a quem Deus preferiu aos
demais e elevou ao mais alto grau de honra. A única razão é que não existia a
prática na Igreja antiga, de modo que eles acharam melhor ocultar a novidade
da prática não dizendo nada dos patriarcas: como se por mera diversidade de
nomes eles pudessem desculpar a prática ao mesmo tempo nova e impura.
Eles também objetam algumas vezes que se pede a Deus misericórdia do
povo: “Por amor ao teu servo Davi [...]” (Salmos 132.10). Isso está tão longe
de dar base ao erro deles que consiste na sua mais forte refutação. Devemos
considerar o caráter de Davi. Ele foi separado do grupo dos fiéis para
estabelecer a aliança preparada por Deus. Isso tem mais relação com a aliança
que com o indivíduo. Davi é um tipo da intercessão única de Cristo. Mas o
aspecto peculiar a Davi como tipo de Cristo com certeza não se aplica aos
outros.
26
Argumento fundamentado no fato de as orações dos
santos serem ouvidas. Resposta confirmada pela
Escritura e ilustrada com exemplos.
Mas alguns parecem ser movidos pela afirmação geral de que as orações
dos santos geralmente são atendidas. Por quê? Porque eles oravam.
“Clamaram a ti” (diz o salmista), “e foram libertos; em ti confiaram, e não se
decepcionaram” (Salmos 22.5). Vamos também orar seguindo o exemplo
deles, para que também sejamos ouvidos. Quão melhor argumenta Tiago:
“Elias era humano como nós. Ele orou fervorosamente para que não
chovesse, e não choveu sobre a terra durante três anos e meio. Orou outra
vez, e os céus enviaram chuva, e a terra produziu os seus frutos” (Tiago
5.17,18). Teria ele inferido que Elias contava com algum privilégio particular
e que faríamos bem recorrer a ele por causa disso? De modo algum. Ele
demonstra a eficácia perpétua da oração pura e piedosa, para que sejamos
induzidos a orar da mesma maneira. A bondade e a prontidão de Deus em
ouvir são interpretadas de maneira perversa, se o exemplo deles não nos
inspirar com confiança cada vez mais forte na promessa divina, pois ele
declarou que inclinará o ouvido não para um, dois ou poucos indivíduos, mas
a quem invocar seu nome. Na ignorância eles são os menos desculpáveis,
pois entendem como se fossem desprezar de forma ativa as muitas
admoestações das Escrituras. Repetidas vezes Davi foi libertado pelo poder
de Deus. Isso lhe concedeu poder para sermos libertos por suas súplicas?
Muito diferente é a afirmação que ele fez: “Liberta-me da prisão, e renderei
graças ao teu nome. Então os justos se reunirão à minha volta por causa da
tua bondade para comigo” (Salmos 142.7). E outra vez: “Os justos verão isso
e temerão [...]” (Salmos 52.6). “Este pobre homem clamou, e o Senhor o
ouviu; e o libertou de todas as suas tribulações” (Salmos 34.6). Em Salmos há
muitas orações semelhantes, e nelas Davi pede a Deus que lhe conceda o que
pede por esta razão, isto é, que o justo não seja envergonhado, e sim
encorajado a esperar. Uma passagem é suficiente: “Portanto, que todos os que
são fiéis orem a ti enquanto podes ser encontrado [...]” (Salmos 32.6). Citei a
passagem porque os delirantes empregam a língua venal em defesa do papado
e não se envergonham de aduzir a isso em prova da intercessão dos mortos.
Como se Davi quisesse outra coisa senão mostrar os benefícios obtidos da
clemência e condescendência divinas quando tiver sido ouvido. Em geral,
podemos nos apegar à experiência da graça de Deus, para nós mesmos e para
os outros, o que confirmará nossa fé em suas promessas. Não vou citar as
muitas passagens nas quais Davi apresenta a graça divina como base para a
confiança, pois todos os leitores de Salmos delas se lembrarão. Jacó ensinara
a mesma coisa antes por seu próprio exemplo: “‘não sou digno de toda a
bondade e lealdade com que trataste o teu servo [...]’” (Gênesis 32.10). Ele de
fato alega a promessa, mas não apenas a promessa; pois ao mesmo tempo
acrescenta o efeito, para animá-lo a ter confiança maior na futura bondade
divina. Deus não é como os homens que se cansam da própria libertinagem;
ele deve ser estimado por sua natureza, como Davi faz com acerto quando
diz: “[...] resgata-me, Senhor, Deus da verdade” (Salmos 31.5). Depois de
atribuir o louvor da salvação a Deus, ele complementa que Deus é
verdadeiro, pois, se não fosse como é, os favores concedidos no passado não
seriam a base infalível para a oração confiante. No entanto, quando sabemos
com que frequência ele nos ajuda, isso demonstra e prova sua bondade e
fidelidade, de modo que não há motivo para temer que nossa esperança seja
envergonhada ou frustrada.
27
Conclusão: os santos não podem ser invocados sem impiedade.
Ela: a) Rouba a glória de Deus; b) Destrói a intercessão de Cristo;
c) Repugna à Palavra de Deus; d) Opõe-se ao método devido
de oração; e) Não dispõe de exemplo aprovado; f) Flui da falta
de confiança. Última objeção. Resposta.
Mas ainda que a oração esteja confinada com adequação a votos e súplicas,
é tão forte a afinidade entre a petição e a ação de graças que as duas podem
ser compreendidas com o mesmo nome. Pois as formas enumeradas por
Paulo (1Timóteo 2.1) se enquadram na primeira parte da divisão. Pela oração
e súplica, derramamos nossos desejos diante de Deus, pedindo também as
coisas que tendem a promover a glória divina e a exaltação do nome de Deus,
bem como os benefícios contribuintes para nosso bem. Pela ação de graças,
celebramos, da forma devida, a bondade divina para conosco, atribuindo à
liberalidade dele toda bênção recebida. Davi inclui os dois aspectos em uma
sentença: “‘e clame a mim no dia da angústia; eu o livrarei, e você me
honrará’” (Salmos 50.15). As Escrituras, com razão, nos ordenam a usar as
duas formas de maneira contínua. Já descrevemos a grandeza do nosso
desejo, enquanto a experiência proclama que os apuros que nos pressionam
de todos os lados são tão numerosos e tão grandes a ponto de nos fazerem
suspirar e gemer sem parar diante de Deus e implorar a ele com súplicas.
Ainda que fossem isentos de adversidades, mesmo o mais santo deveria ser
estimulado primeiro pelos próprios pecados e, depois, pelos inumeráveis
assaltos das tentações, para desejar uma cura. O sacrifício de louvor e ação de
graças nunca pode ser interrompido sem culpa, pois Deus não cessa de
derramar sobre nós favor após favor para nos levar à gratidão, não importa
quão lentos ou preguiçosos sejamos. Em suma, tão grandes e variadas são as
riquezas de sua liberalidade para conosco, tão maravilhosos e grandiosos os
milagres que contemplamos em toda parte, que nunca nos faltará assunto e
material para louvor e ação de graças.
Para deixar a questão ainda mais clara: como todas as nossas esperanças e
todos os nossos recursos estão depositados em Deus (isso já foi plenamente
demonstrado), nem nós mesmos nem nossos interesses podem prosperar sem
a bênção dele; devemos então submeter a ele com constância o que somos e
tudo o que possuímos. Independentemente do que deliberarmos, falarmos ou
fizermos, tudo deve ser deliberado, falado e realizado sob sua mão e vontade,
ou seja, sob a esperança de sua assistência. Deus pronunciou uma maldição
sobre quem confia em si mesmo ou em outras pessoas, faz planos e
resoluções sem considerar a vontade dele ou sem invocar sua ajuda para
planejar e executar
(Tiago 4.14; Isaías 30.1; 31.1). Assim, como já se observou, ele recebe a
honra devida quando é reconhecido como o autor de todo o bem. Segue-se
que, ao derivar todo o bem das suas mãos, devemos continuamente expressar
nossa gratidão, pois não temos o direito de usar os benefícios procedentes de
sua liberalidade se não proclamarmos seu louvor de forma assídua e não lhe
dermos graças, pois é com essa intenção que os benefícios nos são dados.
Quando Paulo declara que toda criatura de Deus “é santificad[a] pela
palavra de Deus e pela oração” (1Timóteo 4.5), ele indica que sem a palavra e
sem a oração nada é santo e puro, sendo a palavra usada por metonímia para
designar fé. Davi, ao experimentar a graça do Senhor, declarou com
elegância: “Pôs um novo cântico na minha boca” (Salmos 40.3); com isso ele
indica a malignidade de nosso silêncio quando não louvamos a Deus por suas
bênçãos e não enxergamos que cada bênção concedida a nós é motivo de
nova ação de graças. Por isso Isaías, ao anunciar as singulares misericórdias
de Deus, diz: “Cantem ao Senhor um novo cântico [...]” (Isaías 42.10). Pela
mesma forma, Davi diz em outra passagem: “Ó Senhor, dá palavras aos meus
lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor” (Salmos 51.15). De igual
maneira, Ezequias e Jonas declaram que quando fossem libertados
“celebrariam a bondade de Deus com canções em seu templo” (Isaías 38.20;
Jonas 2.1-10). Davi apresenta uma regra para todos os crentes com as
seguintes palavras: “Como posso retribuir ao Senhor toda a sua bondade para
comigo? Erguerei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor”
(Salmos 116.12,13). A Igreja segue essa regra em outro salmo: “Salva-nos,
Senhor, nosso Deus! Ajunta-nos dentre as nações, para que demos graças ao
teu santo nome e façamos do teu louvor a nossa glória” (Salmos 106.47). E
outra vez: “Escreva-se isto para as futuras gerações, e um povo que ainda será
criado louvará o Senhor [...]. Assim o nome do Senhor será anunciado em
Sião e o seu louvor em Jerusalém” (Salmos 102.18,21). Onde quer que os
cristãos peçam ao Senhor para fazer alguma coisa por causa do seu nome,
enquanto se declararem indignos de obter o que for em nome deles mesmos,
eles se obrigam a dar graças e prometem fazer bom uso da graça divina sendo
seus proclamadores.
Oseias, falando da futura redenção da Igreja, diz: “[...]’Perdoa todos os
nossos pecados e, por misericórdia, recebe-nos, para que te ofereçamos o
fruto dos nossos lábios’” (Oseias 14.2). Não apenas nossa língua proclama a
bondade divina, mas também nos inspira a amar a Deus: “Eu amo o Senhor,
porque ele me ouviu quando lhe fiz a minha súplica” (Salmos 116.1). Em
outra passagem, ao falar da ajuda experimentada, ele disse: “Eu te amo, ó
Senhor, minha força” (Salmos 18.1). Nenhum louvor jamais agradará a Deus
se não fluir do amor. Precisamos prestar atenção à declaração de Paulo: todos
os desejos são viciosos e perversos se não forem acompanhados de ação de
graças. Suas palavras são: “[...] em tudo, pela oração e súplicas, e com ação
de graças, apresentem seus pedidos a Deus” (Filipenses 4.6). Muitos,
influenciados por preguiça, cansaço, impaciência, amargura e medo, usam
murmurações em suas orações; assim, Paulo nos exorta ao controle de nossos
sentimentos para bendizermos a Deus com alegria mesmo antes de obter o
que pedimos. Entretanto, se essa conexão deve subsistir em pleno vigor entre
coisas quase contrárias, mais sagrado é o laço que nos une para celebrar os
louvores de Deus sempre que ele atende a nossos pedidos. Como já
demonstramos, nossas orações, que de outra maneira seriam poluídas, passam
a ser santificadas pela intercessão de Cristo. Assim, o apóstolo, ao nos exortar
a oferecer “continuamente a Deus um sacrifício de louvor, que é fruto de
lábios que confessam o seu nome” (Hebreus 13.15), faz-nos lembrar de que
sem a intervenção do sacerdócio de Jesus nossos lábios não são puros o
bastante para celebrar o nome de Deus. Daí se infere o engano monstruoso
prevalecente entre os papistas, pois a maioria deles se admira quando Cristo é
chamado de intercessor. A razão pela qual Paulo nos exorta dizendo “orem
continuamente [e] deem graças em todas as circunstâncias”
(1Tessalonicenses 5.17,18) se encontra no desejo de que nós dirijamos nossas
orações a Deus com a maior assiduidade, em todo tempo, em todo lugar, em
todas as coisas e em todas as circunstâncias. Quando obtidas, sejam
atribuídas a ele, fornecendo assim base perpétua para oração e louvor.
29
As propriedades da oração: particular e pública, constante, em
épocas determinadas etc. Exceção no tempo de necessidade.
Orar sem cessar. Sua natureza. Refutação da tagarelice de papistas e
hipócritas. O escopo e as partes da oração. A oração em segredo.
Orar em todos os lugares. Oração particular e pública.
Compreende-se daí a clareza perfeita de que nem palavras nem cânticos (se
usados em oração) são de menor importância ou valem um “i” diante de
Deus, a não ser que procedam de sentimentos profundos do coração. Antes,
provocam a ira divina contra nós caso sejam apenas da boca para fora, pois
isso significa abusar do seu sagrado nome e zombar de sua majestade. Isso se
infere das palavras de Isaías que, ainda que tenham significado mais amplo,
repreendeu também o seguinte vício: “[...] ‘Esse povo se aproxima de mim
com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.
A adoração que me prestam é feita só de regras ensinadas por homens’”
(Isaías 29.13). Não condenamos palavras ou cânticos; antes, os
recomendamos, desde que sejam apresentados em sinceridade. Pois assim o
pensamento de Deus é mantido vivo em nossa mente, pensamento que por
sua natureza volúvel e inconstante logo se enfraquece e é distraído por vários
assuntos, a não ser que meios sejam usados para ajudá-lo. Além disso, como
a glória divina deve ser apresentada em todas as partes do nosso corpo, o
serviço especial ao qual a língua deve ser devotada é o de cantar e falar,
contanto que pronuncie o que tenha sido expressamente criado para declarar e
proclamar o louvor de Deus. Esse emprego da língua é principalmente no
culto público que deve acontecer quando os santos se reúnem. Dessa maneira,
o Deus a quem servimos em um espírito e uma fé é por nós glorificado como
se tivéssemos uma única voz e uma única boca; e isso abertamente, para que
cada um possa receber a confissão da fé de seu irmão, e ser convidado e
incitado a imitá-la.
32
O ato de cantar conta com grande antiguidade,
mas não é universal. Como realizá-lo.
Devemos agora atentar não apenas para o método mais certo, mas também
à forma da oração, entregue a nós pelo Pai celestial por intermédio do seu
Filho amado, mediante a qual podemos reconhecer sua bondade e
condescendência sem limites (Mateus 6.9; Lucas 11.2). Além de nos
admoestar e exortar a buscá-lo em todas as nossas necessidades (como os
filhos se entregam à proteção dos pais quando oprimidos por qualquer
ansiedade), entendendo que não estávamos tão conscientes de quão grande
era nossa pobreza, ou o que era certo ou interessante pedirmos, ele
providenciou, por conta da nossa ignorância, um modelo de oração. Onde
fracassamos, ele generosamente providenciou. Foi nos dada uma forma que
nos apresenta em um quadro o que é correto desejar, bom para nossos
interesses e necessário pedir. Da sua bondade nesse sentido derivamos o
maior conforto de saber que, quando pedimos usando suas palavras, não
pedimos nada absurdo, estranho ou sem razão; em suma, nada que não lhe
seja agradável. Platão, vendo a ignorância dos homens em apresentar seus
desejos a Deus, deseja que, se os pedidos forem atendidos, estes lhes sejam
os mais injuriosos, e declara que a melhor forma de oração é a que um antigo
poeta apresentou: “Ó rei Júpiter, dê o que é melhor, queiramos isto ou não;
mas livre-nos do que é mal mesmo quando o pedimos” (Alcibíades II). O
pagão demonstra sabedoria ao discernir quão perigoso é pedir a Deus a
determinação de nossas paixões; ao mesmo tempo, ele nos lembra de nossa
condição infeliz por não sermos capazes de abrir os lábios diante de Deus
sem perigo, a não ser que seu Espírito nos instrua a orar da maneira correta
(Romanos 8.26). Portanto, o valor mais elevado que devemos ter como
privilégio é quando o Filho unigênito de Deus põe palavras em nossa boca e
assim liberta nossa mente de toda hesitação.
35
A Oração do Senhor divide-se em seis petições.
Subdivisão em duas partes principais: a primeira se refere
à glória de Deus; a segunda, à nossa salvação.
A primeira sugestão, feita logo no início, é, tal como já dissemos (seç. 17-
19), que todas as nossas orações a Deus devem ser apresentadas apenas em
nome de Cristo, pois não há outro nome que as possa recomendar. Ao chamar
Deus de Pai, com certeza pedimos em nome de Cristo. Pois com que
confiança poderia qualquer homem chamar Deus de Pai? Quem teria a
presunção de se arrogar a honra de filho de Deus, a não ser que fôssemos
graciosamente adotados como seus filhos em Cristo? Sendo ele o verdadeiro
Filho, ele nos foi dado como irmão, de modo que o que ele possui por
natureza se torne nosso por adoção, se abraçarmos essa grande misericórdia
com fé firme. Pois como João diz: “Contudo, aos que o receberam, aos que
creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (João
1.12). Por conseguinte, ele se chama nosso Pai, e se agrada em ser assim
chamado por nós, para que por esse nome agradável sejamos libertos de toda
falta de confiança, pois em nenhum lugar se pode encontrar afeição mais
forte que no pai. Também ele não poderia nos ter dado testemunho mais forte
de seu amor ilimitado que em nos chamar de filhos. Mas seu amor a nós é tão
maior e mais excelente que o dos pais terrenos, pois ele em muito ultrapassa
todos os homens em bondade e misericórdia (Isaías 63.16). Os pais terrenos,
deixando de lado todos os afetos paternais, são capazes de abandonar os
filhos; Deus, no entanto, nunca nos abandonará (Salmos 27.10), visto que não
pode negar a si mesmo. Pois nós temos sua promessa: “‘Se vocês, apesar de
serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai de
vocês, que está nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!’” (Mateus
7.11). O profeta disse algo parecido: “‘Haverá mãe que possa esquecer seu
bebê que ainda mama e não ter compaixão do filho que gerou? Embora ela
possa esquecê-lo, eu não me esquecerei de você!’” (Isaías 49.15). Contudo,
se somos seus filhos, como o filho não se entrega à proteção de um estranho
sem ao mesmo tempo reclamar da crueldade ou pobreza do seu pai, nós não
podemos pedir ajuda a nenhum outro que não ele, a menos que queiramos
acusá-lo de pobreza, descuido, crueldade ou austeridade excessiva.
37
Objeção: nossos pecados nos excluem da presença daquele a quem
constituímos Juiz, não Pai. Resposta com base na natureza de Deus
(descrita por um apóstolo), da parábola do filho pródigo
e da expressão Pai nosso. Cristo, o zeloso da nossa adoção;
o Espírito Santo, a testemunha.
Entretanto, a instrução que nos foi dada não é que cada indivíduo em
particular o chame Pai, mas que todos em comum o chamemos Pai nosso.
Assim, somos lembrados de quão forte sentimento de amor fraternal deve
haver entre nós, pois somos todos, pela mesma misericórdia e livre bondade,
filhos do Pai. Pois se ele, de quem todos obtemos tudo que é bom, é o nosso
Pai comum (Mateus 23.9), tudo que foi distribuído a nós deve ser
comunicado aos outros, assim que a ocasião solicitar. Mas, se estivermos
desejosos de estender as mãos e ajudar uns aos outros, não há nada pelo qual
possamos beneficiar mais nossos irmãos que entregá-los ao cuidado e à
proteção do melhor dos pais, pois não podemos desejar nada melhor se ele
nos é propício e favorável. E, de fato, também devemos isso a nosso Pai.
Pois, como quem ama de verdadeira e de todo o coração o pai da família, essa
pessoa estende o mesmo amor e a boa vontade em relação a toda a sua casa,
para que o zelo e a afeição sentidos em relação ao Pai celeste sejam
estendidos a seu povo, sua família, e, por fim, à sua herança — tão honrada
por ele a ponto de lhes conceder a designação da “plenitude” do Filho
unigênito (Efésios 1.23). Que dessa maneira os cristãos modelem sua oração
para torná-la comum e abracem todos os irmãos em Cristo; não apenas os que
no presente podem ser vistos e identificados, mas todos os homens vivos
sobre a terra. O que Deus determinou com respeito a eles é piedoso e
humano. Devemos considerar em especial os da família da fé, a quem o
apóstolo recomendou expressamente que devemos cuidar em tudo (Gálatas
6.10). Em resumo, todas as nossas orações devem se referir à comunidade
estabelecida por nosso Senhor em seu Reino e família.
39
Podemos orar de modo especial por nós mesmos e por outras pessoas,
conquanto tenhamos em mente a referência geral a todos.
Isso não nos impede de orarmos de forma específica por nós mesmos e
pelos outros, desde que não percamos de vista a comunidade, mas a ela
sempre façamos referência. Pois as orações, ainda que veiculadas em termos
especiais, mantendo seu objeto em vista, nunca deixam de ser comuns. Tudo
isso pode ser facilmente entendido por analogia. Há o mandamento geral de
Deus para socorrer as necessidades de todos os pobres, e o mandamento é
obedecido pelos que com essa visão socorrem todos os que veem ou sabem
que estão em crise, ainda que deixem de lado pessoas cujas necessidades não
são menos urgentes — por ignorância ou incapacidade de ajudar de um modo
ou de outro. Nesse sentido, não há nada repugnante à vontade de Deus em
quem formula orações particulares, tendo em vista a sociedade comum da
igreja, orações nas quais, publicamente, ainda que em termos especiais,
recomendem a Deus, ou aos outros, as necessidades das quais se agradou
tornar conhecidas.
É verdade que a oração e a entrega do nosso ser não são iguais em tudo.
Podemos apenas conceder a bondade da nossa liberdade às pessoas de cujas
necessidades estamos cientes, ainda que em oração possamos ajudar
estranhos, não importa quão longe estejamos deles. Faz-se isso pela forma
geral de oração que, incluindo todos os filhos de Deus, nos inclui também. A
exortação de Paulo aos cristãos dos seus dias para levantar “mãos santas, sem
ira e sem discussões” (1Timóteo 2.8) é semelhante. Ao lembrar-lhes que a
dissensão consiste em uma barreira à oração, ele demonstra o desejo de que
eles façam suas orações de comum acordo.
40
Em que sentido se diz que Deus está no céu.
O uso tríplice da doutrina para nosso consolo. Três causas.
Resumo do prefácio da Oração do Senhor.
As palavras seguintes são que estás nos céus. Não devemos daí inferir que
ele está enclausurado e confinado na circunferência do céu, como que por um
tipo de limite. Pois Salomão confessa: “‘[...] Os céus, mesmo os mais altos
céus, não podem conter-te [...]’” (1Reis 8.27), e o próprio Deus por
intermédio do profeta diz: “[...] ‘O céu é o meu trono; e a terra, o estrado dos
meus pés [...]’” (Isaías 66.1); assim ele afirma que sua presença não está
confinada a nenhuma região, e Deus se encontra em todo o espaço. Contudo,
nossa mente grosseira é incapaz de conceber sua glória inefável, designada
pela palavra céu, pois nada que nossos olhos podem contemplar é tão repleto
de esplendor e majestade. Considerando-se nosso costume com os objetos
confinados ao lugar discernido por nossos sentidos, nenhum lugar pode ser
designado para Deus; por conseguinte, caso o busquemos, devemos nos
elevar acima de todo o discernimento corpóreo e mental. Mais uma vez, a
expressão nos lembra de que ele se encontra muito além do alcance de
variação ou corrupção, pois ele sustém todo o Universo com sua mão e a tudo
governa com seu poder. Portanto, o efeito da expressão é idêntico à
afirmação de sua majestade infinita, essência incompreensível, poder
ilimitado e duração eterna. Quando falamos a respeito de Deus dessa
maneira, nossos pensamentos devem ser elevados ao máximo; não lhe
devemos atribuir nada terrestre ou de natureza carnal, nem medi-lo por
nossos padrões diminutos, ou supor que a vontade dele seja como a nossa. Ao
mesmo tempo, devemos depositar nele nossa confiança, entender que o céu e
a terra são governados por sua providência e por seu poder. Em resumo, sob
o nome do Pai somos informados de que Deus, manifestado a nós em sua
própria imagem, pode ser por nós invocado com fé confiante; o nome Pai não
foi concedido apenas para inspirar em nós confiança, mas também para frear
nossa mente e impedi-la de seguir deuses fictícios ou imaginários. Assim,
ascendemos do Filho unigênito ao supremo Pai dos anjos e da Igreja. Seu
trono está fixado nos céus; portanto, não é em vão que nos aproximamos
dele, cujos cuidados experimentamos de fato. “Aquele que se aproxima de
Deus”, diz o apóstolo, “precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles
que o buscam” (Hebreus 11.6). Cristo clama ao Pai, em primeiro lugar, para
que depositemos nossa fé nele, e em segundo, para que estejamos seguros de
que nossa salvação não é negligenciada por ele, pois Deus se compraz em nos
estender sua providência. Por meio desses princípios elementares, Paulo nos
prepara para orar com correção; pois antes de dizer da necessidade de tornar
nossos pedidos conhecidos a Deus, ele afirma: “[...] está o Senhor. Não
andem ansiosos por coisa alguma [...]” (Filipenses 4.5,6). Daí se conclui que
a dúvida e a perplexidade pairam sobre as orações das pessoas cuja mente
não conta com a crença firmemente estabelecida de que “Os olhos do Senhor
voltam-se para os justos” (Salmos 34.15).
41
A necessidade da primeira petição: prova da nossa injustiça.
O significado do nome de Deus. Como ele é santificado. Partes da
santificação. Lamento pelos pecados que profanam o nome de Deus.
A segunda petição é: Venha o teu Reino. Não há aqui nada de novo, mas
mesmo assim há boa razão para distingui-la da primeira. Pois, se levarmos
em conta nossa letargia no mais importante de todos os assuntos, veremos
como é necessário que o que deveria ser, em si, perfeitamente conhecido
precise ser inculcado com mais extensão. Por isso, depois de recebermos o
mandamento de pedir que Deus sujeite e, por fim, destrua por completo tudo
que mancha seu nome santo, adiciona-se outra petição, contendo quase o
mesmo desejo, a saber: “Venha o teu Reino”. A definição do Reino já foi
apresentada. Agora repetirei de forma resumida que Deus reina quando os
homens, negando a si mesmos e desprezando o mundo e esta vida terrena,
devotam-se à justiça e desejam o céu. Assim, o Reino consiste em duas
partes: a primeira ocorre quando Deus corrige todos os desejos depravados da
carne, que guerreiam contra ele, pela ação de seu Espírito; a segunda, quando
ele trouxer todos os nossos pensamentos em obediência à sua autoridade.
Logo, a petição se apresenta de forma devida só por quem começa por si
mesmo; em outras palavras, quem ora para ser purificado de todas as
corrupções prejudiciais à tranquilidade e pureza do Reino de Deus. Então,
como a Palavra divina representa seu cetro real, recebemos a ordem de orar
para que ele nos subjugue a mente e o coração para a obediência voluntária.
Isso ocorre quando ele apresenta a eficácia de sua Palavra pela inspiração
secreta do seu Espírito e a eleva ao merecido lugar de honra. Precisamos,
depois disso, ir até os ímpios, que com perversidade e loucura desesperada
resistem à sua autoridade. Portanto, Deus estabelece seu Reino ao humilhar o
mundo todo, ainda que em diferentes maneiras, domando a luxúria de alguns,
quebrando o orgulho ingovernável de outros. Deveríamos desejar sua
ocorrência todos os dias, para que Deus reúna as igrejas para si mesmo de
todos os cantos do mundo, fazendo que cresçam em número e sejam
enriquecidas com seus dons e entre elas estabeleça a sua ordem; além disso,
que ele castigue todos os inimigos da doutrina e da religião pura, dissipe seus
planos e destrua seus esforços. Conclui-se daí haver boa base para o preceito
que ordena o progresso diário, pois os esforços humanos nunca prosperam
tanto quando as impurezas do vício são purgadas e a integridade floresce em
pleno vigor. Mas sua completude se dará no advento final de Cristo, como
Paulo declarou: “[...] Deus seja tudo em todos” (1Coríntios 15.28). Essa
oração, por conseguinte, deve nos retirar das corrupções do mundo que nos
separam de Deus e impedem o florescimento de seu Reino entre nós; em
segundo lugar, deve nos inflamar com o desejo ardente da mortificação da
carne; por fim, deve nos ensinar a suportar a cruz; pois o progresso do Reino
de Deus se dará assim. Não devemos nos preocupar se o homem exterior
decair e se o homem interior for renovado. Eis a natureza do Reino de Deus:
enquanto nos submetemos à sua justiça, ele nos faz participantes de sua
glória. Assim se propagam a sua luz e a sua verdade de forma contínua, e as
mentiras e as trevas de Satanás e seu reino são dissipadas, se extinguem e são
destruídas. Deus protege seu povo e o guia pela ação do seu Espírito, e o
confirma em perseverança, e ao mesmo tempo frustra as conspirações ímpias
dos inimigos, dissipa seus enganos e fraudes, impede sua malícia e freia sua
petulância até que por fim destrua o anticristo “com o sopro de sua boca” e
destrua toda impiedade “pela manifestação de sua vinda” (2Tessalonicenses
2.8).
43
Distinção entre a segunda e a terceira petições. A vontade aqui não
significa a vontade secreta ou o beneplácito de Deus, mas a vontade
manifestada na Palavra. Conclusão das três primeiras petições.
A terceira petição é: Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.
Ainda que isso dependa do Reino, e não possa ser desvinculado dele, ele não
recebe um lugar separado, de forma indevida, por conta de nossa ignorância,
incapaz de apreender com facilidade, e de uma vez só, o significado da
afirmação “Deus reina no mundo”. Isso, portanto, não deve ser tomado
inadequadamente como a explicação de que Deus será o Rei do mundo
quando todos se submeterem à sua vontade. Não tratamos aqui do segredo
pelo qual ele governa todas as coisas e as destina a seu fim (cf. cap. 24, seç.
17). Pois, ainda que demônios e homens se levantem em tumulto contra ele,
Deus é capaz, por seu incompreensível conselho, não apenas de destruir a
violência, mas de torná-la subserviente à execução dos seus decretos.
Falamos aqui a respeito da outra vontade de Deus: a que consiste no
contraponto da obediência voluntária. Por conseguinte, o céu é
expressamente contrastado com a terra, pois, como se diz em Salmos, os
anjos “obedecem à sua palavra” (Salmos 103.20). Portanto, somos ordenados
a orar para que tudo que é feito no céu por ordem de Deus, com os anjos
sempre dispostos a fazer o que é certo, seja realizado na terra sob a mesma
autoridade, e que toda rebelião e depravação sejam extintas. Ao apresentar
esse pedido, renunciamos aos desejos da carne, pois quem não submete por
completo as afeições a Deus faz o oposto à vontade divina — tudo que
procede de nós é vicioso. Mais uma vez, somos ensinados por essa oração a
negar a nós mesmos para que Deus nos governe de acordo com sua vontade.
Não apenas isso, mas, tendo aniquilado nossos pensamentos, possa criar
novos pensamentos e nova mentalidade para que não tenhamos outro desejo
senão a conformidade absoluta com sua vontade. Em resumo, não desejar
nada de nós mesmos, mas ter o coração governado por seu Espírito, sob cuja
orientação interna aprendemos a amar o que agrada a Deus e a detestar o que
lhe desagrada. Deve-se então almejar o que anula e suprime os desejos
repugnantes à vontade divina.
Estes são os três primeiros tópicos da oração, e ao apresentá-los se deve ter
em mente apenas a glória de Deus, não levando em conta a nós mesmos, nem
considerando nossas vantagens — as quais, ainda que sejam bastante
promovidas, não devem neste momento constituir o objeto da nossa petição.
Ainda que tudo pelo qual oramos aconteça no devido tempo, mesmo que
nada peçamos ou nem pensemos a seu respeito, é nossa obrigação orar e
pedir. Não é de somenos importância que assim façamos, para podermos
testificar e professar nossa condição de servos e filhos de Deus, desejosos de,
por todos os meios a nosso alcance, promover a honra devida a nosso Senhor
e Pai e nos devotarmos, com confiança, a seu serviço. Se os homens — ao
orar pedindo a santificação do nome de Deus, a vinda do Reino e a realização
da sua vontade — não o fazem pelo desejo de lhe promover a glória, não
devem ser considerados entre os servos e filhos de Deus, e tudo acontecerá
contra a vontade deles, para que se voltem de sua confusão e destruição.
44
O resumo da segunda parte da Oração do Senhor. Três petições.
O que está contido na primeira. Declaração da bondade sobejante
de Deus e da nossa falta de confiança. O que pão quer dizer.
O motivo de o pedido de pão preceder o do perdão de pecados.
A razão de ele se chamar nosso. Por que buscá-lo hoje, ou todos
os dias. A doutrina resultante dessa petição, ilustrada por um
exemplo. Duas classes de homens pecam em relação a essa petição.
Em que sentido se pode dizer pão nosso. A causa de pedirmos a
Deus que ele o dê a nós.
Todas as coisas que devemos pedir a Deus (das quais somos capazes) estão
contidas nessa fórmula, como se ela fosse uma regra de oração concedida por
Cristo, nosso Mestre divino, quem o Pai apontou como nosso professor e o
único que devemos ouvir (Mateus 17.5). Ele é a sabedoria eterna do Pai e,
sendo feito homem, foi manifestado como o Maravilhoso Conselheiro (Isaías
11.2; 9.6). Por isso essa oração é tão completa em todas as suas partes.
Qualquer coisa que lhe seja estranha, qualquer coisa que a ela não se refira, é
ímpia e indigna da aprovação divina. Pois Deus, nessa oração, prescreveu de
forma resumida o que é digno dele, o que lhe é aceitável e o que nos é
necessário; em resumo, tudo que ele se agrada em conceder. Portanto, quem
presume ir além e pedir algo mais de Deus, em primeiro lugar busca
acrescentar algo à sabedoria divina (agir assim é blasfêmia insana); segundo,
recusando-se a se confinar nos limites da vontade divina e desprezando-a,
fica perdido, sendo dirigido pelas próprias ambições; por fim, nunca obterá
nada, pois ora sem fé. E as orações pronunciadas sem fé, por estarem em
desacordo com a Palavra de Deus, não podem subsistir. Quem,
desconsiderando a regra do Mestre, é indulgente com os próprios desejos, não
apenas não tem a palavra de Deus, mas se opõe a ela. Por isso Tertuliano (De
fuga in persecutione) de maneira correta e elegante a denominou oração
legítima, tacitamente indicando que todas as outras orações são ímpias e
ilícitas.
49
Podemos, de acordo com o exemplo dos santos, moldar nossas orações
com palavras diferentes, conquanto não haja diferença no sentido.
Todavia, não queremos dar a entender que nos restringimos tanto a essa
forma de oração que seja ilegal mudar dela uma palavra ou sílaba. Pois nas
Escrituras encontramos muitas orações com palavras bastante diferentes
dessa, mas formuladas pelo mesmo Espírito, e podemos utilizá-las com
grande proveito. Muitas orações são também sugeridas aos cristãos pelo
mesmo Espírito, e de modo contínuo, ainda que em sua forma não sejam
muito parecidas com essa. Queremos dizer que homem nenhum deve desejar,
esperar ou pedir algo que não esteja compreendido nessa oração. Ainda que
as palavras difiram muito, não há diferença no sentido. Assim, todas as
orações — provenientes das Escrituras e de corações piedosos — devem se
referir à oração ensinada por Jesus, ainda que nenhuma possa se igualar a ela,
muito menos ultrapassá-la em perfeição. Ela não omite nada que possamos
conceber em louvor a Deus e considerar bom para o homem, e é tão exata
que qualquer esperança de melhorá-la deve ser renunciada. Em resumo,
lembremo-nos de ter aqui a doutrina da sabedoria celestial. Deus nos ensinou
o que ele deseja; ele deseja o necessário.
50
Devem-se observar algumas circunstâncias. Sobre a designação
de horas especiais de oração. O que se deve objetivar e o que se deve
evitar. A vontade de Deus, a regra das nossas orações.
Ainda que se tenha dito (seç. 7 e 27) que devemos sempre elevar a mente a
Deus, e orar sem cessar, mesmo em nossa fraqueza, tal é nosso torpor que
precisamos ser apoiados e estimulados, e para tanto precisamos separar horas
especiais para esse exercício — horas que não podem ser passadas sem
oração, durante as quais todo o interesse da nossa mente deve estar
completamente ocupado. Quando nos levantamos pela manhã, antes do início
do dia de trabalho, quando nos assentamos para nos alimentar, quando, pela
bênção divina, recebemos o alimento e quando nos recolhemos para
descansar. Mas isso não deve ser uma observação supersticiosa das horas,
como se estivéssemos realizando tarefas para Deus, e assim estaríamos
isentos de orar nas demais horas; antes, devemos considerar isso uma
disciplina pela qual nossa fraqueza é exercitada e repetidas vezes estimulada.
Em particular, deve ser nossa vontade, sempre que estivermos ansiosos, ou
virmos os outros pressionados por apertos, recorrer a Deus no mesmo
momento, não apenas em ritmo acelerado, mas com a mente disposta. Mais
uma vez, não devemos omitir o testemunho do nosso reconhecimento da mão
divina, louvando e agradecendo a Deus, quando passarmos por um momento
de prosperidade. Por último, devemos evitar o confinamento de Deus em
certas circunstâncias, em todas as nossas orações, ou de lhe prescrever tempo,
lugar ou modo de ação. Assim, a oração nos ensina a não fixar nenhuma lei
ou não impor nenhuma condição a ele, mas deixar a seu cargo completo a
adoção do curso de procedimento que ele achar melhor (quanto ao método,
tempo ou lugar). Pois antes que nós mesmos lhe ofereçamos qualquer oração,
pedimos que a vontade dele seja feita, e, ao assim fazer, subordinamos nossa
vontade à dele, como se tivéssemos colocado um freio na nossa vontade e,
em vez de presumir que damos licença a Deus, que o tenhamos como quem
governa e dispõe sobre todos os desejos.
51
Recomendação especial da perseverança na oração por preceito e
exemplo. Condenação de quem atribui a Deus um tempo
e uma forma especial de ouvir.
Se mesmo depois de uma longa espera nossos sentidos não são capazes de
perceber os resultados da oração ou de experimentar qualquer dos seus
benefícios, nossa fé nos assegurará do que não se pode perceber pelos
sentidos: a obtenção do melhor para nós, tendo o Senhor prometido se
interessar por todos os nossos problemas a partir do momento em que os
depositamos diante dele. Assim, teremos abundância na pobreza e conforto
na aflição. Ainda que todas as coisas falhem, Deus nunca nos abandonará e
ele não pode frustrar a expectativa e a paciência do seu povo. Só ele é
suficiente para tudo, pois compreende todo o bem, e nos irá revelá-lo no Dia
do Juízo — o dia em que seu Reino será manifesto de forma plena. Podemos
acrescentar: ainda que Deus atenda a todos os nossos pedidos, ele nem
sempre dará a resposta nos termos das nossas orações, mas, enquanto
aparentemente nos mantém em suspense, nos mostra que, mesmo de maneira
desconhecida, nossas orações não são vãs. Esse é o significado das palavras
de João: “E, se sabemos que ele nos ouve em tudo o que pedimos, sabemos
que temos o que dele pedimos” (1João 5.15). Pode parecer que há um
exagero de palavras, mas a declaração é a mais útil, a saber: mesmo quando
Deus não atende a nossos pedidos, ele os ouve e é favorável às nossas
orações, para que nossa esperança, baseada na sua Palavra, nunca seja
desapontada. Mas os cristãos sempre carecem do apoio da paciência divina,
pois não podem subsistir muito se não a tiverem como base. São severos os
juízos pelos quais o Senhor nos prova e nos exercita, pois ele sempre nos leva
a extremos; e, quando ele o faz, nos permite sofrer antes de obtermos o gosto
da sua doçura. Como disse Ana: “‘O Senhor mata e preserva a vida; ele faz
descer à sepultura e dela resgata’” (1Samuel 2.6). O que poderiam eles fazer,
a não ser perder o ânimo e cair no desespero, aflitos, desolados e meio
mortos, confortados com o pensamento de que são considerados por Deus e
que haverá fim para os males do presente? Por mais seguras que sejam suas
esperanças, eles não cessam de orar, pois oração desacompanhada de
perseverança não leva a resultado algum.
Índice de referências bíblicas