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PENSAMENTOS

PENSAMENTOS

Blaise Pascal

Edição, apresentação e notas


LOUIS LAFUMA

Tradução
MARIO LARANJEIRA
Revisão técnica
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Revisão da tradução
MÁRCIA VALÉRIA MARTINEZ DE AGUIAR
Introdução da edição brasileira
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

Martins Fontes
São Paulo 2005
Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título PENSÉES.
A presente edição foi baseada na edição estabelecida e anotada por Louis Lafuma,
publicada em francês com o título Pensées, por Éditions du Seuil, 1962.
Copyright © Éditions du Seuil, 1962 e 1978 para a edição de Louis Lafuma.
Copyright © 2001, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1a edição
fevereiro de 2001
2a edição
março de 2005

Tradução
MÁRIO LARANJEIRA

Revisão técnica
Franklin Leopoldo e Silva
Revisão da tradução
Márcia Valéria Martinez de Aguiar
Revisões gráficas
Ana Maria de O.M. Barbosa
Ivete Batista dos Santos
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Pascal, Blaise, 1623-1662.
Pensamentos / Blaise Pascal ; edição, apresentação e notas Louis Lafuma ;
tradução Mário Laranjeira ; revisão técnica Franklin Leopoldo e Silva ; revisão
da tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar ; introdução da edição
brasileira Franklin Leopoldo e Silva. – 2a ed. – São Paulo : Martins Fontes,
2005. – (Paideia)
Título original: Pensées.
ISBN 85-336-2114-0
1. Filosofia francesa I. Lafuma, Louis. II. Título. III. Série.
05-1456 CDD-194
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia francesa 194
2. Filosófos franceses : Biografia e obra 194
3. França : Filosofia 194

Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11)
3241.3677 Fax (11) 3101.1042
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Sumário
Introdução
Cronologia
Introdução de Louis Lafuma
Prefácio da edição de Port-Royal

PRIMEIRA SECÃO: PAPÉIS CLASSIFICADOS


I. Ordem
II. Vaidade
III. Miséria
IV. Tédio
V. Razões dos efeitos
VI. Grandeza
VII. Contrariedades
VIII. Divertimento
IX. Filósofos
X. O Soberano Bem
XI. A. P. R.
XII. Começo
XIII. Submissão e uso da razão
XIV. Excelência
XV. Transição
XV. bis. A natureza é corrompida
XVI. Falsidade das outras religiões
XVII. Tornar a religião amável
XVIII. Fundamentos
XIX. Lei figurativa
XX. Rabinagem
XXI. Perpetuidade
XXII. Provas de Moisés
XXIII. Provas de Jesus Cristo
XXIV. Profecias
XXV. Figuras particulares
XXVI. Moral cristã
XXVII. Conclusão

SEGUNDA SEÇÃO: PAPÉIS NÃO CLASSIFICADOS


Série I
Série II
Série III
Série IV
Série V
Série VI
Série VII
Série VIII
Série IX
Série X
Série XI
Série XII
Série XIII
Série XIV
Série XV
Série XVI
Série XVII
Série XVIII
Série XIX
Série XX
Série XXI
Série XXII
Série XXIII
Série XXIV
Série XXV
Série XXVI
Série XXVII
Série XXVIII
Série XXIX
Série XXX
Série XXXI

TERCEIRA SEÇÃO: MILAGRES


Série XXXII
Série XXXIII
Série XXXIV

QUARTA SEÇÃO: FRAGMENTOS NÃO REGISTRADOS PELA


CÓPIA
I. A coletânea original
II. A segunda cópia
III. A edição de Port-Royal (1678)
IV. As pastas de Vallant
V. O manuscrito Périer (1710)
VI. Os manuscritos Guerrier
Proposições atribuídas a Pascal
Nota a respeito do retrato de Pascal
Introdução

O conjunto de fragmentos aos quais se deu o título de Pensamentos


consiste no trabalho preparatório para elaboração da obra que Blaise
Pascal via como sendo a única capaz de realizar a esperança de conferir
um sentido à sua vida de cristão e de intelectual: a Apologia da
Religião Cristã, empreendimento marcado pelo duplo objetivo de
compreender e justificar a fé. Depois de coroar seus estudos de
matemática e física com notáveis realizações que lhe asseguraram lugar
de destaque na história da ciência e após um profundo exercício de
reflexão acerca das bases e do alcance do conhecimento humano,
Pascal julgou encontrar no projeto da Apologia o modo mais elevado e
autêntico de empregar o seu talento, que os historiadores e estudiosos
de sua obra não duvidam em definir como genialidade. Isso não
significa que tenha abandonado ou renegado os interesses científicos;
mas é inegável que entendia a sua opção como a forma mais perfeita de
cultivar o espírito, aplicando-o na meditação sobre as exigências
transcendentes da condição humana.
No horizonte da Apologia está, pois, o conhecimento de Deus e do
homem, mais precisamente, a tentativa de compreender a natureza
humana através de sua procedência divina, e a tentativa de compreender
algo de Deus por via de sua imagem impressa no coração do homem.
Esse projeto pode ser concebido como um grande círculo, no centro do
qual está Deus na figura de Jesus Cristo, a partir do qual se irradiam, e
para onde convergem, todos os elementos que compõem a vida humana,
desde as ações mais simples e cotidianas regidas pelo hábito, até as mais
elevadas pretensões metafísicas que pode abrigar a mente do homem. É
muito difícil atribuir ao empreendimento pascaliano uma classificação
precisa nas divisões convencionais do conhecimento. Sabemos que o
estudo de Deus é o objetivo da Teologia, que a compreensão do homem
situa-se no âmbito da Psicologia e da Antropologia e que a Metafísica
ocupa-se tanto de um quanto do outro na dimensão em que a natureza
humana e a ideia de Deus podem ser pensadas como pertinentes à
Filosofia. No pensamento de Pascal, entretanto, essas articulações não
vigoram, na exata medida em que o que mais interessa é o cruzamento
das oposições que constituem a relação entre o homem e Deus, de tal
modo que não seria possível um conhecimento puramente antropológico
do homem, já que a condição humana somente se define pela sua relação
com Deus; e também não seria possível falar das possibilidades
teológicas abertas ao conhecimento humano sem considerar aquilo que,
no homem, o aproxima e o afasta de Deus.
Isso nos indica que Pascal, embora tenha vivido no contexto
histórico do século XVII, cuja característica mais forte é o racionalismo
cartesiano, distingue-se profundamente, nos princípios e nas
consequências, do estilo de pensamento que marcou de maneira decisiva
os rumos da filosofia moderna. Pois em Descartes também vemos a
presença dos grandes temas metafísicos, Deus, Homem e Mundo,
articulados segundo um método de conhecimento dedutivo que pretende
alcançar a certeza das representações objetivas que se referem a essas
realidades fundamentais. A confiança que Descartes deposita na razão
permite-lhe esperar que tais conhecimentos, se corretamente procurados,
serão encontrados como a plena positividade que caracteriza as verdades
claras e distintas. Em Pascal o que temos, em vez desse otimismo
metódico fundamentado no poder da razão, é a consciência intensa de
que tudo que o homem possa vir a saber acerca de si mesmo e de Deus
está irremediavelmente atravessado por oposições irredutíveis, que
fazem do nosso conhecimento uma mescla inextrincável de positivo e de
negativo, isto é, em tudo que conhecemos está também sempre presente
aquilo que não podemos conhecer, de tal forma que qualquer
conhecimento que não seja acompanhado da consciência dessa oposição
e dessa contrariedade será fatalmente uma ilusão. É impossível que
nossos esforços nos conduzam, portanto, à clareza, à exatidão e à
distinção absolutas; todos os resultados que alcançarmos estarão
inelutavelmente afetados pela ambiguidade e pela contradição.
E isso ocorre porque a contradição está antes de mais nada presente
na nossa própria natureza. Existe em nós uma grandeza que deriva de
nossa origem divina e do destino que a criatura deve cumprir, retornando
ao seu Criador. E existe em nós a miséria, proveniente do pecado
original, pelo qual a criatura preferiu a afirmação de sua soberba à
harmonia que deveria caracterizar a relação entre o homem e Deus.
Somos portanto um misto constituído pela natureza perfeita com que
fomos criados e pela condição de pecado que nos marca desde a opção
de nossos primeiros pais pelo afastamento de Deus. É a grandeza
inerente à nossa primeira natureza que nos permite conhecer a nós
mesmos como decaídos, de modo que só assumimos verdadeiramente o
que somos se temos consciência do que perdemos. Fora dessa oposição,
dessa contradição constitutiva de nós mesmos, não há conhecimento
possível. É nesse sentido que Pascal deplora as escolhas unilaterais que
os filósofos foram levados a fazer no esforço de produzir um
conhecimento não contraditório sobre o homem. Há aqueles que
consideram unicamente a miséria, construindo sobre ela uma concepção
do ser humano; há outros que privilegiam a grandeza, e assim definem o
homem de forma totalmente diversa. Em cada caso, o erro é motivado
pelo apego exclusivo a uma verdade que é parcial. A compreensão do
ser humano exige que se relacionem duas verdades que no entanto se
contradizem. Como a razão tem dificuldade para aceitar que a verdadeira
compreensão está em assumir a contradição, ela prefere buscar o grau de
clareza relativo que pode oferecer uma explicação parcial e incompleta a
enfrentar a complexidade de uma oposição inconciliável.
É por isso que o conhecimento filosófico (metafísico) do homem
será sempre insuficiente e, ao fim e ao cabo, “inútil e incerto”, como diz
Pascal referindo-se a Descartes. Somente a religião pode nos oferecer os
meios de penetrar, tanto quanto isso nos seja possível, no próprio cerne
da contradição que nos constitui. Pois a religião nos garante, como
conteúdos de fé, a revelação de nossa natureza perfeita criada por Deus,
a queda ocasionada pela escolha do pecado e a possibilidade de retorno a
Deus pela graça da redenção. Mais do que isso, o que caracteriza a
religião cristã e define a sua singularidade é a contradição que está posta
no seu próprio centro. Com efeito, o fundamento do cristianismo é a
presença do absoluto na relatividade da história humana, o fato de Deus
ter-se feito homem para operar a salvação do gênero humano, justamente
condenado desde que o homem afastou-se voluntariamente de Deus.
Jesus Cristo, Deus e homem, é ao mesmo tempo o fundamento e a
contradição. O que para nós é mais incompreensível é também o que há
de mais fundamental para compreender o homem e a sua relação com
Deus. Nesse sentido, é a fé, e não a ciência e a filosofia, que nos remete
ao plano do essencial.
Isso significaria que Pascal, ao propor como fundamento a oposição
incompreensível e não alguma definição analiticamente bem montada,
estaria optando pelo irracionalismo? Ora, talvez não se possa falar em
opção quando é a própria razão que depara com aquilo que a ultrapassa.
Se a contradição presente na condição humana nos conduz como que por
si mesma à constatação do caráter sempre parcial e possivelmente
ilusório de todas as construções racionais que procuram explicar o
homem, esse limite da explicação aponta, do próprio interior da
racionalidade, para uma dimensão que a razão, ainda que não podendo
abarcar, deve aceitar como real. Porque se o racional se revela fictício,
no próprio jogo de suas possibilidades, então é legítimo supor que a
compreensão do real se situaria numa dimensão além dessas
possibilidades racionais. De modo que, embora a razão não possa ir além
de si mesma, ela pode ao menos reconhecer esse limite, e de alguma
maneira compreender que é racional submeter-se àquilo que ela não
pode dominar pelos seus próprios meios. E a religião cristã desempenha
aí um papel fundamental na medida em que é ela que permite ao homem
entender que o “objeto” mais elevado de seu conhecimento e de seu
desejo, o Absoluto ou Deus, nos foi revelado na figura contraditória das
duas naturezas opostas de Cristo, homem e Deus. Se o princípio e o
fundamento nos aparecem como contradição, será tão surpreendente que
seja contraditório tudo aquilo que deles depende, notadamente o próprio
homem? Por isso Pascal insiste em que só podemos conhecer a Deus por
Jesus Cristo e também só podemos conhecer a nós mesmos por seu
intermédio. É na mediação contraditória do homem- -Deus que se funda
qualquer possibilidade de uma reaproximação entre o homem e Deus,
bem como do homem de si mesmo.
Daí a necessidade de entender o sentido histórico e transcendente da
religião cristã. Não se trata de uma aceitação inteiramente passiva dos
conteúdos da fé. A Apologia teria a ambição de nos fornecer “a razão
dessas espantosas contraditoriedades”. Está claro que Pascal não vai
submeter o cristianismo a uma análise com o objetivo de demonstrar a
sua racionalidade. No cristianismo encontramos, justamente, a origem de
todas as contradições que vivenciamos e somente dele podemos esperar
alguma luz que ilumine as oposições que dividem a nossa consciência.
Não se trata pois de reduzir a religião às dimensões da razão humana,
pois ela não é um produto da razão, mas manifestação de algo que a
ultrapassa infinitamente. Quando nos debruçamos sobre os mistérios e
procuramos olhar o abismo é a própria vertigem da razão que nos
adverte da realidade e da verdade daquilo que contemplamos. Não há
portanto que se esperar a clareza meridiana da razão analítica, mas
também não deparamos com a total obscuridade. A revelação situa-se
precisamente nesse claro-escuro, nesse espaço intermediário em que
tanto é possível ver quanto não ver, porque Deus concede clareza
suficiente aos que o procuram de coração aberto, mas também corrobora
a cegueira daqueles que não desejam realmente conhecê-lo.
É nesse sentido que Pascal fala das figuras pelas quais Deus deu-se a
conhecer, bem como aos seus desígnios. É nesse plano que se situa o
sentido histórico do cristianismo, que na verdade é um sentido histórico-
teológico. Todo o Antigo Testamento é a reiteração do desígnio salvífico
de Deus, expresso através das figuras antecipadoras do Cristo. Uma
hermenêutica adequada permite decifrar nessas figuras aquilo que elas
significam e acompanhar a marcha histórica da Humanidade rumo à
salvação prometida: o Messias. A história do povo judeu reveste-se
portanto da sacralidade de uma história da salvação, pois os judeus
foram os guardiães, malgrado eles mesmos, dos signos que mantiveram
viva a esperança de que a misericórdia de Deus resgataria os homens,
apesar da enormidade do pecado. Sobretudo as profecias, comentadas
em numerosos fragmentos, anunciam, por meio das mais diferentes
alegorias, o episódio da redenção. A linguagem figurativa do texto
sagrado manifesta e oculta, expõe e ao mesmo tempo esconde, de tal
modo que a preservação da letra seja também a preservação do espírito,
ainda que aqueles que preservam a letra desconheçam o espírito.
O fundamento dessa concepção figurativa do texto sagrado e da
história humana é eminentemente teológico e Pascal o encontra
liminarmente expressa na exclamação de Isaías: “Verdadeiramente tu és
o Deus escondido.” Isso significa que Deus se manifesta através do seu
próprio ocultamento, e se aproxima dos homens por meio da distância
que se abre entre o finito e o infinito. Portanto já na própria ação divina
e na maneira como Deus se dá a conhecer instaura-se a oposição entre a
separação e a aproximação. Essa oposição é a razão de todas as outras
“contraditoriedades” e é nesse espaço de clareza e obscuridade que se
exerce a fé como instrumento do encontro de Deus. Por isso a
autenticidade cristã é inseparável da consciência das contradições e o
conhecimento de si depende essencialmente da compreensão que o
homem venha a ter de que é um monstro incompreensível de grandeza e
de miséria, de tal modo que possa odiar em si mesmo a autossuficiência
ilusória de um Ego que o separa de Deus, e amar em si mesmo a
condição miserável que mereceu a complacência divina.
Mas como a razão e a vontade procuram antes fugir das oposições
irredutíveis, o homem evita contemplar o caráter trágico de sua
existência. Para isso elabora toda sorte de condutas desviantes, o
divertissement, noção exaustivamente tematizada por Pascal. As
convenções sociais, o apego aos bens materiais, as honrarias de toda
ordem, o lugar ocupado na hierarquia da sociedade, o juízo dos outros,
mesmo a ciência e a filosofia são artifícios que o ser humano inventa
para não estar verdadeiramente consigo mesmo. O que há de comum em
todas essas distrações é aquilo que hoje chamaríamos de alienação: o ato
de colocar o sentido da vida em algo alheio à própria vida, naquilo que
ela tem de essencial. A causa desse empenho tão grande em viver fora de
si é a condição de miserabilidade, de que tomamos consciência quando
nos voltamos para nós mesmos e percebemos que a integridade possível
do nosso ser depende menos de nós mesmos do que da identidade que
nossa alma pode encontrar em Deus, se entregar-se inteiramente a Ele.
Só o sentimento intenso da miséria advinda da corrupção da nossa
natureza, que experimentamos quando nos isolamos do mundo, pode nos
devolver a nós mesmos e nos colocar na posição de esperar, não da
justiça, mas da misericórdia divina, gratuita porque de forma alguma a
merecemos, a salvação da alma tornada possível pela graça redentora.
Para tanto seria preciso que o homem desse o devido valor à esfera
da existência temporal e à dimensão transcendente da eternidade. Seria
preciso que tomasse consciência da relatividade das coisas humanas, da
contingência presente em todas as realizações históricas. Por isso lemos
em vários fragmentos uma análise crítica contundente das normas
reguladoras da existência em todos os níveis. A ordem política e social é
constituída por regras gratuitas, a que obedecemos pelo costume, mas
que não resistiriam a uma avaliação mais profunda. A moral observada
no plano mundano funda-se muito mais nas conveniências do que em
valores absolutos. A lógica de nossa conduta obedece na maioria das
vezes a fatores extrínsecos e conjunturais, dos quais não poderíamos dar
razão. A sociabilidade depende de acordos tácitos que ensejam a
aparência de paz e concórdia entre os homens. Mesmo a ciência, que
opera por demonstrações dotadas de rigor interno, não pode levar muito
longe a busca de princípios fundantes, sob pena de ver-se enredada em
problemas insolúveis. Se o homem conseguisse encarar de frente a
futilidade e a fragilidade das coisas às quais atribui valor, veria quão
pouco se justifica o emprego de esforços enormes para obter resultados
que se desvanecem assim que são atingidos, pois tudo que é humano está
inevitavelmente afetado pela transitoriedade e destinado à dissolução.
Nada ganhamos se conquistamos o mundo. Pelo contrário, se dirigimos
nossa ansiedade para Deus, e se do fundo de nossa fraqueza almejamos a
eternidade, podemos vir a nos dar conta da incomensurabilidade entre o
relativo e o absoluto, e percebemos que a única realização possível do
destino da criatura está no acolhimento divino, na incerteza do qual
vivemos e morremos.
É essa consciência trágica que Pascal deseja despertar com a
Apologia, porque somente a esperança angustiante de que Deus volte
para nós a sua face pode dar sentido à existência da criatura decaída. A
verdade da religião cristã não pacifica a alma pelo orgulho dos eleitos,
mas intensifica a ânsia do infinito, tanto maior quanto mais distante
estamos do absoluto. Todos os assuntos abordados nos fragmentos, por
mais surpreendente que seja a diversidade que neles encontramos,
convergem para esse objetivo apologético. Não é fácil compreender essa
unidade da multiplicidade, porque não podemos supor a estrutura que
teria o livro planejado por Pascal. Mas podemos entender
suficientemente a articulação da sua intenção apologética. Pascal
pretende colocar o homem diante de Deus e mostrar que somente Ele
pode preencher a ausência constitutiva que se manifesta na nossa
insuficiência existencial. Para isso tenta nos fazer compreender que a
religião cristã é a única que, conduzindo-nos ao fundamento misterioso
de nossas próprias contradições, nos deixa também no limiar da
conciliação desejada entre a alma e o absoluto.
Ao ler esses pensamentos fragmentados, temos de entender que
estamos diante do grandioso e do provisório. Temos de ser capazes de
ver, nos textos incompletos, nas frases interrompidas, na miscelânea dos
assuntos, na brevidade das fórmulas, na desordem das citações, a mais
profunda meditação que já se fez sobre as tensões que definem as
relações entre o homem e a transcendência que o supera pelo terror, pelo
temor e pela piedade. Se é inegável que o centro das preocupações de
Pascal é a religião, afinal o objeto do livro que pretendia escrever,
também é certo que a amplitude de sua reflexão atinge a dimensão da
existência humana nos seus mais recônditos e difíceis aspectos, razão
pela qual esses fragmentos falam a todos os seres humanos, quer
partilhem ou não a crença que inspirou Pascal. De resto, ele não foi de
modo algum um homem conformado e submisso a todos os aspectos do
cristianismo institucionalizado. Profundamente vinculado ao movimento
jansenista, concebia a vida cristã a partir de um rigorismo moral que não
era inteiramente aceito pela ortodoxia católica, como prova a sua
polêmica com os jesuítas.
Uma tradução fiel, no caso dos Pensamentos, tem que respeitar a
incompletude constitutiva do texto pascaliano; tem que acompanhar as
suas hesitações e as suas lacunas; tem que aceitar os seus lapsos; tem
que reproduzir a ordem e a desordem de um pensamento em via de
constituição e ainda longe da formulação definitiva. Embora isso torne a
leitura mais difícil, esse procedimento é preferível a qualquer tentativa
de dar ao texto uma legibilidade que ele não tem e que portanto o
mutilaria. O esforço que devemos despender nos torna, enquanto
leitores, mais próximos e de alguma maneira partícipes da obra que a
morte impediu o autor de terminar. A tradução aqui apresentada exige
esse esforço e assegura essa recompensa.
FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
Cronologia

1623. 19 de junho: Nascimento, em Clermont (Auvergne), na


Rua des Gras.
1626. Morte da mãe, cujo nome de solteira era Antoinette
Bégon.
1632. 1o de janeiro: O pai, Étienne Pascal, presidente da Cour
des Aydes de Clermont, instala-se em Paris, na Rua de la
Tissanderie, com os filhos, Gilberte, Blaise e Jacqueline.
1634. Étienne Pascal cede o seu cargo ao irmão Blaise. Outubro:
Mudança de domicílio: Rua Neuve-Saint-Lambert (hoje
Rua de Condé).
1635. Outubro: Nova mudança: Rua Brisemiche, próximo ao
Hôtel de Roannez. Blaise escreve um Tratado sobre os
sons e descobre a geometria até a trigésima segunda
proposição de Euclides.
1636-37. Viagem à Auvergne com o pai e Gilberte. Jacqueline fica
sob os cuidados da senhora Sainctot, irmã do poeta
Dalibray.
1637. Frequenta a Academia Mersenne.
1638. Étienne Pascal, comprometido com o caso das rendas
sobre o Hôtel de Ville (Prefeitura), refugia-se sozinho na
Auvergne.
1639. Fevereiro: Como Richelieu tivesse manifestado o desejo
de ver representar, por crianças, uma comédia – o
Príncipe disfarçado de Scudéry –, Jacqueline, escolhida
por Boisrobert, foi a que melhor desempenhou o papel.
Depois da representação, ela solicitou e obteve de
Richelieu o perdão de seu pai. Alguns meses mais tarde,
a família Pascal é recebida em Rueil, e Richelieu concede
a Étienne Pascal o cargo de comissário de Impostos, na
Haute-Normandie.
1640. Janeiro: A família instala-se em Ruão, na Rua des Murs
Saint-Ouen. Blaise publica o Essai sur les coniques
[Ensaio sobre os cônicos].
1641. 13 de junho: Gilberte casa-se com Florin Périer.
1642-43. Invenção da máquina de aritmética.
1644. Maio: Blaise vai a Paris e apresenta a sua máquina a
Henrique II de Bourbon, pai de Grand Condé.
1645. Carta dedicatória a Sua Excelência o Senhor Chanceler a
respeito da nova máquina inventada pelo Senhor B. P.
1646. Abril: Em seguida à leitura de obras de Saint-Cyran, toda a
família “se converte”. Outubro: Blaise reproduz, com
Pierre Petit, a experiência de Torricelli e faz experiências
sobre o vácuo.
1647. Janeiro: Brigas com Jacques Forton, Senhor de Saint-
Ange. Junho: Doente, volta a Paris com Jacqueline.
Setembro: Recebe duas visitas de Descartes. 4 de
outubro: Publicação de Novas experiências sobre o
vácuo. 15 de novembro: Carta a Florin Périer para
pedir-lhe que faça a experiência do Puy de Dôme.
1648. Quatro Cartas (com Jacqueline) a Gilberte. Julho: Étienne
Pascal volta a Paris. Outubro: Mudança de domicílio:
Rua de Touraine. Novembro: Publicação do Relatório da
grande experiência sobre o equilíbrio dos líquidos
realizada por Fl. Périer a 19 de setembro.
1649. Maio: Em razão das perturbações sociais da Fronda,
Étienne Pascal leva os filhos para Clermont.
1650. Setembro: Volta a Paris.
1651. Julho-agosto: Duas cartas ao Sr. de Ribeyre. Tratado do
vácuo (ed. 1663) e prefácio (ed. 1779). 24 de setembro:
Morte de Étienne Pascal. 17 de outubro: Carta ao Sr. e à
Sra. Périer por ocasião da morte do pai. Deixa a Rua de
Touraine e subloca parte de uma casa na Rua Beaubourg.
Dezembro: Regulariza, junto com Gilberte, a sucessão do
pai.
1652. 4 de janeiro: Jacqueline ingressa em Port-Royal. Março:
Discussões a respeito do dote dela. Maio: Pascal
frequenta os salões da Corte. Junho: Carta à rainha
Cristina da Suécia. Outubro: Parte para Bienassis, na
casa dos Périer.
1653. Maio: Volta a Paris. 4 de junho: Profissão de Jacqueline
em Port-Royal. Acerto definitivo, a favor da irmã, da
questão do dote. Setembro: Viagem ao Poitou com o
duque de Roannez.
1654. Declaração à Academia Parisiense de Ciências [Adresse
à l’Académie Parisienne des Sciences]. Tratado do
Triângulo de Aritmética (ed. 1665). Três cartas a Fermat
sobre o cálculo das probabilidades. 1o de outubro:
Mudança de domicílio: Rua dos Francs-Bourgeois-Saint-
Michel (atual Rua Monsieur-le-Prince no 54). 23 de
novembro: Noite do Memorial (ed. 1740).
1655. Janeiro: Estada de três semanas em Port-Royal.
Entrevistas com o Sr. de Sacy [Entretiens avec M. de
Sacy] (ed. 1768). O mistério de Jesus [Le Mystère de
Jésus] (ed. 1844). A conversão do pecador [La
conversion du pécheur] (ed. 1779).
1656. De 23 de janeiro a 4 de dezembro: Dezesseis Cartas
provinciais [Lettres provinciales]. 24 de março: Milagre
do Sagrado Espinho. Setembro: Começa a fazer
anotações com vistas a uma Carta sobre os milagres
[Lettre sur les Miracles] e a Apologia [l’Apologie].
Setembro-dezembro: Correspondência com os Roannez.
(?) Comparação dos cristãos dos primeiros tempos com
os de hoje [Comparaison des Chrétiens des premiers
temps avec ceux d’aujourd’hui] (ed. 1779).
1657. Janeiro-março: Duas cartas provinciais (17a e 18a). Do
espírito geométrico [De l’esprit géométrique] (ed. 1776-
1779). Da arte de persuadir [De l’art de persuader] (ed.
1788). Escritos sobre a graça [Écrits sur la grâce] (ed.
1770-1908-1947). Compêndio da vida de Jesus Cristo
[Abrégé de la vie de Jésus-Christ] (ed. 1846).
1658. Janeiro-maio: Colabora e às vezes redige Escritos dos
vigários de Paris. Projeto de circular contra a Apologia
dos casuístas [Écrits des curés de Paris. Projet de
mandement contre l’Apologie des casuistes] (ed. 1779).
Junho-julho-outubro: Três cartas circulares relativas à
cicloide, por ocasião do desafio, lançado aos cientistas,
de resolver diversos problemas que dizem respeito a essa
linha. 25 de novembro: Relatório do exame das respostas
recebidas. Outubro-novembro: Expõe a seus amigos de
Port-Royal o objetivo e o plano da Apologia. Dezembro:
Cartas de A. Dettouville ao Sr. de Carcavi.
1659. Janeiro: AM. A. D. D. S. (A. Arnauld), ao Sr. de Sluze, ao
Sr. Huyghens a propósito da ciclóide. Fevereiro: Cai num
“estado de aniquilamento” que o impede de exercer
qualquer atividade intelectual no decorrer do ano.
Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças
[Prière pour demander à Dieu le bon usage des
maladies] (ed. 1670).
1660. Fim de maio: Partida para Bienassis. 10 de agosto: Carta a
Fermat. Outubro: Volta a Paris. Três discursos sobre a
condição dos Grandes [Trois discours sur la condition
des Grands] (ed. 1670 por Nicole).
1661. 8 de junho: Colabora na redação da Circular dos grandes
vigários de Paris [Mandement des Grands Vicaires de
Paris] a respeito da assinatura do formulário,
distinguindo o direito e o fato.
1661. 14 de julho: Circular cassada pelo Conselho do Rei e (1o
de agosto) condenada em Roma. 4 de outubro: Morte de
Jacqueline Pascal. 31 de outubro: Nova circular que não
distingue mais o direito e o fato. Novembro: Escrito
sobre a assinatura do Formulário. [Écrit sur la signature
du Formulaire]. Pascal entra em conflito com seus
amigos aconselhando que não o assinem. Toma a decisão
de não mais se imiscuir em disputas religiosas.
1662. 21 de março: As carruagens a cinco sóis1, de sua
invenção, começam a circular em Paris. 29 de junho:
Como seu estado de saúde piorasse, pede para ser
transportado para a casa dos Périer, que moram numa
casa na Rua Fossés Saint-Marcel. Julho-agosto:
Entrevista com Beurrier, vigário de Saint-Étienne-du-
Mont. 5 de agosto: Redige o seu testamento. 17 de
agosto: Recebe a extrema-unção. 19 de agosto: Morte de
Pascal, à uma hora da manhã. 21 de agosto: Inumação
na igreja de Saint-Étienne-du-Mont.

1. Sóis [sols], moeda francesa da época. (N. do T.)


Introdução

“Quando não se sabe a verdade de uma coisa, é bom que haja um


erro comum que fixe o espírito dos homens…” (MS. 744).
Essa observação de Pascal explica a aventura a que, durante cento e
setenta e cinco anos (desde 1776), se submeteram as edições dos
Pensamentos cuja apresentação mudava com cada novo editor.
O erro comum, que consistia em achar que Pascal havia deixado as
suas notas em desordem e que cada qual podia apresentá-las na ordem
que lhe aprouvesse, não se teria prolongado por tanto tempo se esses
editores tivessem se dado ao trabalho de ler atentamente o prefácio da
edição de 1670 e de tirar dele as conclusões que se impunham.
Nesse prefácio, redigido por Étienne Périer, o mais velho dos
sobrinhos de Pascal, podia-se ler:
“Como se sabia da intenção que tinha o Sr. Pascal de trabalhar
sobre a religião, teve-se um cuidado muito grande, depois de sua morte,
para recolher todos os seus escritos sobre essa matéria. Foram
encontrados todos juntos, amarrados em diversos maços… A primeira
coisa que se fez foi mandá-los copiar tais como estavam, e na mesma
confusão em que haviam sido encontrados.”
E, quando se tratou de providenciar a sua publicação, a primeira
solução “que veio à mente, e a que sem dúvida era a mais fácil, era
mandá-los imprimir de imediato no mesmo estado em que foram
encontrados”, quer dizer, no estado em que estavam na cópia
recentemente feita.
Mas, como no século XVII só se costumavam publicar compêndios
perfeitamente ordenados, ao passo que Pascal só havia deixado
anotações, foi necessário apresentálas em “alguma espécie de ordem”,
que, evidentemente, não era aquela que o autor teria previsto.
Além do mais, os editores informaram o leitor sobre isso, visto que
reconheciam não terem seguido, “no pouco que se publica… a sua
ordem e sequência na distribuição da matéria”.
Fizeram, pois, uma seleção das anotações “entre as mais claras e as
mais acabadas”, e as apresentaram de maneira que atingissem, tanto
quanto possível, o objetivo apologético almejado por Pascal.
Mas, se essa maneira de publicar os textos era, em 1670, a melhor,
não podia continuar sendo indefinidamente assim.
Em 1842, Victor Cousin chamou a atenção dos editores para o fato
de que a edição de 1670 só havia publicado uma seleção dos
Pensamentos de Pascal, algumas vezes “embelezados”, e de que seria
desejável que se fizessem doravante edições exatas e integrais dos
papéis, referindo-se aos manuscritos.
Mas que ordem seguir na sua apresentação? Talvez a da Coletânea
original (BN. ms 9202) que reúne, praticamente sem ordem, colados
sobre grandes folhas em branco, textos autógrafos de todas as dimensões
– ou a da Cópia dos Pensamentos (BN. ms. 9203) que nos dá a conhecer
uma classificação parcial?
Como durante mais de um século nenhuma resposta satisfatória foi
dada a esse respeito, os editores continuaram a seguir o curso de sua
imaginação.
As pesquisas levadas a efeito no decorrer dos últimos anos
conseguiram finalmente propor uma solução racional quanto à ordem a
seguir na apresentação dos textos.
Contrariamente ao que Étienne Périer afirmara, Pascal não tomava
notas em “pequenos pedaços de papel”. Utilizava folhas grandes, fazia
uma cruzinha no alto da página e separava as anotações com um
vigoroso traço a tinta. Pascal começou a recortar essas folhas durante o
segundo semestre de 1658 e a classificá-las amarrando-as “em diversos
maços”. Estava assim preparando, por certo, a Conferência que fez para
seus amigos, em outubro ou novembro, para lhes expor o projeto do
livro que tencionava realizar: uma Apologia da religião cristã.
Mas uma doença de langor, que nunca mais o deixou até o fim da
vida, impediu-o, desde o final de janeiro de 1659, de prosseguir nessa
classificação. Nunca mais a retomou.
Nessa época ele já havia redigido ou ditado setenta e cinco por cento
dos papéis que deixou e, no decorrer de seus quatro últimos anos, a sua
atividade foi muito reduzida.
Esse é o motivo por que a Cópia 9203 nos apresenta, numa primeira
parte, vinte e oito maços de papéis classificados. Esses maços têm títulos
e estão ordenados; só mantêm anotações destinadas ao seu livro. Na
segunda parte há trinta e quatro séries de textos não classificados,
estando cada série separada pelo copista por marcas terminais; esses
textos não classificados dizem respeito não apenas ao livro, mas também
a outros assuntos.
Essa Cópia 9203 é a Cópia de que fala Étienne Périer no seu
prefácio. Foi essa cópia que os primeiros editores decidiram publicar tal
como se encontrava. A classificação que ela nos apresenta não podia ter
sido feita pelos amigos de Pascal depois de sua morte, como alguns
críticos acreditaram, porque prever, titular, ordenar vinte e oito maços
quando ainda restam quinhentos e trinta fragmentos por classificar só
pode ser obra do próprio autor.
Seus amigos, aliás, consideravam essa Cópia como apresentando
uma leitura autêntica dos textos autógrafos, pois que foi o único
documento de que se serviram para fazer a edição.
Além disso, a Coletânea original, confeccionada em 1710-1711 (ou
seja, cinquenta anos depois da Cópia), confirma a existência dos maços
e das séries dessa Cópia, visto que quarenta e cinco por cento das
anotações, comuns aos dois manuscritos, permanecem agrupadas da
mesma maneira.
A Coletânea original não apresenta, pois, como outros críticos
disseram, o estado dos papéis de Pascal em 1662, mas o seu estado em
1710.
Nesse ínterim, de fato, um número relativamente considerável – mais
de oitenta – de fragmentos autógrafos tinha desaparecido. A Cópia os
havia registrado. Aqueles que ela não registrara e que a Coletânea
original conservou não tinham sido comunicados aos copistas por razões
diversas.
Finalmente, diversos documentos nos chegaram por outras fontes.
De tudo isso se pode deduzir que uma edição dos Pensamentos deve
respeitar o estado dos papéis deixados por Pascal, tal como nos foi
transmitido pela Cópia 9203, por outras vias. A presente edição segue
estritamente essas diretrizes.
Assim, não existe mais separação entre o autor e o leitor. Qualquer
leitor poderá se dar conta do estágio a que chegara Pascal na preparação
de sua Apologia.
LOUIS LAFUMA

Na apresentação desta edição, a passagem de um papel autógrafo a


outro está representada por um espaço em branco da altura de duas
linhas. (Ex. entre os nos 1 e 2.)
As separações que Pascal marcara (no interior de um mesmo papel)
por meio de espaços ou de traços a tinta estão representadas por um
espaço em branco da altura de uma linha. (Ex.: no interior do no 1.)
A numeração ocupa o início dessa linha em branco quando a
mudança de número corresponde a uma separação marcada por Pascal.
(Ex. entre os nos 83 e 84.)
Quando o número corresponde a uma subdivisão operada pelo editor
no interior de um fragmento contínuo de Pascal, o parágrafo começa na
mesma linha que o número. (Ex.: os nos 45 e 82.)
Os textos riscados no original estão aqui transcritos entre parênteses
e em itálico. Alguns estão riscados porque, aparecendo no verso, e
mesmo no anverso de um texto destinado a um dossiê de papéis
classificados, não eram destinados a esse dossiê. É o caso dos números
84, 102, 195, 196, 197.
Para facilitar as buscas, o número de cada fragmento vem seguido do
número correspondente da edição de Brunschvicg.
Prefácio da edição de
Port-Royal, 1670

Por uma carta de 1o de abril de 1670 de Gilberte Périer ao doutor


Vallant (ms. 17050), ficamos sabendo que o autor do prefácio é o seu
filho Étienne.
Ele resume o Discurso sobre os Pensamentos, de Filleau de la
Chaise, e utiliza a Vida de Pascal, de sua mãe. Dá informações
interessantes sobre a maneira como os papéis de seu tio foram
recolhidos, copiados e utilizados com vistas à sua edição.

O Sr. Pascal, tendo abandonado ainda muito jovem o estudo da


matemática, da física e das outras ciências profanas, nas quais fizera um
progresso tão grande que poucas pessoas há que tenham penetrado mais
fundo do que ele nas matérias particulares de que tratou, começou, por
volta dos trinta anos de idade, a se aplicar a coisas mais sérias e mais
elevadas, e a dedicar-se unicamente, tanto quanto a saúde lhe permitia,
ao estudo das Escrituras, dos Padres da Igreja e da moral cristã.
Mas, embora não se tenha distinguido menos nesses tipos de ciências
do que nos outros, como demonstrou por obras que passam por bastante
perfeitas em seu gênero, pode-se dizer entretanto que, se Deus lhe
tivesse permitido trabalhar algum tempo na obra que pretendia levar a
cabo sobre a religião, e a cuja elaboração pretendia dedicar o resto de
sua vida, esse trabalho teria ultrapassado em muito todos os outros que
se viram de sua lavra; porque, na verdade, a visão que ele tinha sobre
este assunto estava infinitamente acima da que tinha sobre todas as
outras coisas.
Acredito que não haja ninguém que não fique facilmente persuadido
disso só de ver o pouco que agora se dá a lume, por mais imperfeito que
pareça, e principalmente sabendo a maneira como trabalhou nesta obra, e
toda a história da coletânea que dela se fez. Eis como tudo isso se deu.
O Sr. Pascal concebeu o projeto desta obra vários anos antes de
morrer; mas não se deve ficar admirado por ele não ter posto nada por
escrito durante tanto tempo, pois tinha o costume de meditar muito sobre
as coisas e dispô-las em sua mente antes de produzi-las externamente,
para considerar e examinar bem as que devia colocar no início ou no
fim, e a ordem que lhes devia dar a todas, a fim de que pudessem
produzir o efeito que desejava. E, como tinha memória excelente, pode-
se dizer mesmo prodigiosa, tanto que garantiu muitas vezes que nunca
esquecera o que uma vez imprimira em sua mente, assim, quando se
dedicava por algum tempo a um assunto, não temia que os pensamentos
que lhe tinham vindo pudessem jamais lhe escapar; e é por isso que
diferia com bastante frequência escrevê-los, quer por não dispor de
tempo, quer por sua saúde, quase sempre combalida e imperfeita, não
lhe permitir trabalhar com afinco.
Foi essa a causa de se ter perdido, por ocasião de sua morte, a maior
parte do que ele já havia concebido com relação a seu projeto. Porque
ele não escreveu quase nada das principais razões de que queria se
servir, dos fundamentos em que pretendia apoiar a sua obra e da ordem
que queria observar; isso era certamente muito importante. Tudo estava
de tal maneira gravado em sua mente e em sua memória que, tendo
negligenciado escrevê-lo quando ainda talvez tivesse condição,
encontrou-se, no momento em que realmente quis fazê-lo, num estado
que absolutamente não lhe permitia mais trabalhar.
Houve entretanto uma ocasião, há cerca de dez ou doze anos, em que
o obrigaram, não a escrever o que tinha em mente a esse respeito, mas a
dizer alguma coisa de viva-voz. Ele o fez então, na presença e atendendo
aos pedidos de várias pessoas muito importantes dentre os seus amigos.
Desenvolveu diante deles, em poucas palavras, um plano de toda a sua
obra; apresentou-lhes o que deveria constituir o tema e a matéria;
narrou-lhes abreviadamente as razões e os princípios, e lhes explicou a
ordem e a sequência das coisas de que queria tratar em seu trabalho. E
essas pessoas, que são tão capazes quanto se possa ser de julgar sobre
esse tipo de coisas, confessam que nunca ouviram nada de mais belo, de
mais forte, de mais comovedor, nem de mais convincente; que ficaram
encantadas, e aquilo que viram desse projeto e dessa intenção numa fala
de duas ou três horas, feita assim de improviso, sem que nada tivesse
sido preparado ou trabalhado, fê-las julgar o que aquilo poderia ter vindo
a ser um dia, se jamais fosse executado e conduzido à perfeição por uma
pessoa de quem conheciam a força e a capacidade, que tinha o costume
de trabalhar tanto os seus livros, que quase nunca se contentava com os
primeiros pensamentos, por melhores que parecessem aos outros, e que
refez até oito ou dez vezes peças que qualquer outro que não ele achava
admiráveis desde a primeira.
Depois de tê-los feito ver quais são as provas que causam maior
impressão sobre o espírito dos homens, e que são as mais próprias para
persuadir, empreendeu a tarefa de mostrar que a religião cristã tinha
tantas marcas de certeza e de evidência quanto as coisas que são
recebidas no mundo como sendo as mais indubitáveis.
Para penetrar nesse desígnio, começou por pintar o homem, sem
nada esquecer de tudo que podia dá-lo a conhecer, por dentro e por fora,
até os movimentos mais secretos de seu coração. Supôs a seguir um
homem que, tendo sempre vivido numa ignorância geral e na indiferença
com relação a todas as coisas, e sobretudo com relação a si mesmo,
chegasse finalmente a se considerar nesse quadro e a examinar o que é.
Fica surpreso de descobrir em si uma infinidade de coisas em que nunca
havia pensado; e não poderia deixar de notar sem espanto e sem
admiração tudo aquilo que o Sr. Pascal o faz sentir de sua grandeza e de
sua baixeza, de suas vantagens e de suas fraquezas, das poucas luzes que
lhe restam e das trevas que o cercam quase por todo lado; e, finalmente,
de todas as contradições espantosas que se encontram em sua natureza.
Depois disso, não pode mais ficar indiferente se possuir um mínimo de
razão; e por mais insensível que tenha sido até então, deve almejar,
depois de ter assim conhecido o que é, conhecer também de onde vem e
o que há de se tornar.
O Sr. Pascal, uma vez que o colocou nessa disposição de se instruir a
respeito de uma dúvida tão importante, encaminha-o primeiramente aos
filósofos; e é então que, depois de lhe ter explanado tudo o que os mais
eminentes filósofos de todas as seitas disseram a respeito do homem, fá-
lo observar tantos defeitos, tanta fraqueza, tantas contradições e tantas
falsidades em tudo o que eles apresentaram, que já não é difícil para esse
homem julgar que não é a isso que ele deve se ater.
Em seguida fá-lo percorrer todo o universo e todas as idades, para
fazê-lo notar uma infinidade de religiões aí existentes; mas ao mesmo
tempo faz com que veja, mediante razões tão fortes e tão convincentes,
que todas essas religiões estão repletas só de vaidades, de loucuras, de
erros, de extravios e de extravagâncias, que ele nada encontra nelas que
o possa satisfazer.
Finalmente faz com que lance o olhar sobre o povo judeu, e fá-lo
observar nele circunstâncias tão extraordinárias que lhe atrai facilmente
a atenção. Depois de ter-lhe representado tudo aquilo que esse povo tem
de singular, detém-se particularmente em fazê-lo observar um livro
único pelo qual ele se governa, e que compreende ao mesmo tempo a
sua história, a sua lei e a sua religião. Mal abre esse livro, fica sabendo
que o mundo é obra de um Deus e que foi esse mesmo Deus quem criou
o homem à sua imagem, e quem o dotou de todos os dons do corpo e do
espírito que convinham à sua condição. Embora nada haja ainda que o
convença dessa verdade, esta não deixa de agradar-lhe, e só a razão lhe
basta para fazê-lo encontrar mais verossimilhança nessa suposição de
que um Deus é o autor dos homens e de tudo aquilo que há no universo
do que em tudo aquilo que esses mesmos homens imaginaram por suas
próprias luzes. O que o detém nesse ponto é ver, pela pintura que lhe é
feita do homem, que este está bem longe de possuir todos aqueles dons
que deve ter tido quando saiu das mãos do seu autor. Mas não
permanece muito tempo nessa dúvida, pois, logo que prossegue na
leitura desse mesmo livro, descobre que, depois de o homem ter sido
criado por Deus no estado de inocência e com toda espécie de
perfeições, a sua primeira ação foi revoltar-se contra o seu criador e
empregar todos os dons que dele havia recebido para ofendê-lo.
O Sr. Pascal o faz então compreender que tendo sido esse crime
maior do que todos os crimes em todas as circunstâncias, tinha sido
punido não apenas no primeiro homem, que, tendo decaído por isso de
seu estado, caiu de repente na miséria, na fraqueza, no erro e na
cegueira, mas ainda em todos os seus descendentes, a quem esse mesmo
homem comunicou e comunicará ainda a sua corrupção durante toda a
sucessão dos tempos.
Em seguida fá-lo percorrer diversas passagens desse livro onde
descobriu essa verdade. Fá-lo observar que, nele, não mais se fala do
homem, a não ser com relação a esse estado de fraqueza e de desordem;
que nele se diz com frequência que toda carne é corrompida, que os
homens estão abandonados aos seus sentidos e que têm um pendor para
o mal desde o nascimento. Fá-lo ainda ver que essa primeira queda é a
fonte não apenas de tudo aquilo que existe de mais incompreensível na
natureza do homem, mas também de uma infinidade de efeitos que estão
fora dele e cuja causa lhe é desconhecida. Finalmente representa-lhe o
homem tão bem descrito em todo o livro que não mais lhe parece
diferente da primeira imagem que dele traçara.
Não é suficiente ter feito esse homem conhecer o seu estado cheio de
miséria; o Sr. Pascal lhe ensina também que encontrará nesse mesmo
livro algo com que se consolar. E, com efeito, fá-lo observar que aí está
dito que o remédio está nas mãos de Deus; que é a ele que devemos
recorrer para obter as forças que nos faltam; que ele se deixará dobrar e
até enviará um libertador para os homens, que satisfará por eles e
reparará a sua impotência.
Depois de lhe ter explicado grande número de observações muito
particulares sobre o livro desse povo, fá-lo ainda considerar que foi o
único que falou dignamente do Ser soberano e deu uma ideia de uma
verdadeira religião. Fá-lo conceber as suas marcas mais palpáveis que
aplica às que esse livro ensinou; e fá-lo prestar uma atenção particular ao
fato de que essa religião faz consistir a essência de seu culto no amor do
Deus que ela adora, o que é uma característica bem particular e que a
distingue visivelmente das outras religiões, cuja falsidade aparece pela
ausência desta marca tão essencial.
Embora o Sr. Pascal, depois de ter conduzido tão longe esse homem
a quem se tinha proposto persuadir insensivelmente, não lhe tenha ainda
dito nada que possa convencê-lo das verdades que o fez descobrir,
colocou-o entretanto na disposição de as receber com prazer, desde que
se possa fazê-lo ver que deve render-se a elas e desejar mesmo de todo o
coração que elas sejam firmes e bem fundadas, visto que nelas encontra
tão grandes vantagens para o seu repouso e para o esclarecimento de
suas dúvidas. É também o estado em que deveria estar qualquer homem
razoável, se uma vez tivesse entrado na sequência das coisas que o Sr.
Pascal acabou de apresentar, e há motivo para acreditar que depois disso
se renderia facilmente a todas as provas que ele aduziu em seguida para
confirmar a certeza e a evidência de todas essas verdades importantes de
que tinha falado, e que constituem o fundamento da religião cristã, de
que tinha a intenção de persuadir.
Para dizer em poucas palavras alguma coisa dessas provas, depois
que tivesse mostrado em geral que as verdades de que se tratava estavam
contidas num livro de cuja veracidade nenhum homem de bom senso
podia duvidar, deteve-se principalmente no livro de Moisés, em que
essas verdades estão particularmente expostas, e fez ver, mediante um
número muito grande de circunstâncias indubitáveis, que era também
impossível que Moisés tivesse deixado por escrito coisas falsas, ou que o
povo para quem ele as deixara se tivesse deixado enganar, ainda quando
Moisés tivesse sido capaz de ser um embusteiro.
Falou também de todos os grandes milagres relatados nesse livro; e
como têm grande importância para a religião que nele é ensinada;
provou que era impossível eles não serem verdadeiros, não somente pela
autoridade do livro em que estão contidos, mas ainda por todas as
circunstâncias que os acompanham e que os tornam indubitáveis.
Fez ver ainda de que maneira toda a lei de Moisés era figurativa: que
tudo aquilo que acontecera aos judeus não era senão a figuração das
verdades cumpridas com a vinda do Messias, e que, levantado o véu que
encobria essas figuras, era fácil ver o cumprimento e a consumação
perfeita em favor daqueles que receberam Jesus Cristo.
O Sr. Pascal empreendeu a seguir a tarefa de provar a verdade da
religião pelas profecias; e foi sobre esse assunto que se estendeu muito
mais do que sobre os outros. Como tivesse trabalhado muito sobre elas e
tivesse pontos de vista muito particulares a respeito, explicou-as de
maneira muito inteligível; mostrou o seu sentido e sequência com
facilidade maravilhosa e colocou-as em toda a sua clareza e em toda a
sua força.
Finalmente, após ter percorrido os livros do Antigo Testamento e
feito ainda várias observações convincentes para servirem de
fundamentos e de provas à verdade da religião, pôs-se a falar sobre o
Novo Testamento e a tirar as suas provas da própria verdade do
Evangelho.
Começou por Jesus Cristo e, embora já tivesse provado
invencivelmente pelas profecias e por todas as figuras da lei cujo
perfeito cumprimento se via nele, aduziu ainda muitas provas tiradas da
própria pessoa dele, de seus milagres, de sua doutrina e das
circunstâncias da sua vida.
Deteve-se em seguida nos apóstolos e, para mostrar a verdade da fé
que eles publicaram bem alto por toda parte, depois de ter estabelecido
que não se podia acusá-los de falsidade a não ser supondo que eram
embusteiros ou que eles próprios tinham sido enganados, mostrou
claramente que uma e outra dessas suposições eram igualmente
impossíveis.
Afinal, nada esqueceu de tudo aquilo que podia servir à veracidade
da história evangélica, fazendo belíssimas observações sobre o próprio
Evangelho, sobre o estilo dos evangelistas e sobre as suas pessoas; sobre
os apóstolos particularmente e sobre os seus escritos; sobre o número
prodigioso de milagres; sobre os mártires; sobre os santos; numa
palavra, sobre todas as vias pelas quais a religião cristã se estabeleceu
inteiramente. E, embora não dispusesse de tempo, num simples discurso,
para tratar longamente de tão vasta matéria, como tinha a intenção de
fazer em seu livro, disse entretanto o suficiente a respeito dela para
convencer de que tudo aquilo não podia ser obra dos homens, e de que
não havia senão Deus que pudesse conduzir o curso de tantos efeitos
diferentes, concorrendo todos igualmente para provar de maneira
irrecusável a religião que ele próprio veio estabelecer entre os homens.
Eis aí, em substância, as principais coisas de que falou em todo
aquele discurso que propôs aos que o ouviram, apenas como a síntese da
grande obra que meditava, e foi por intermédio de um daqueles que
estavam presentes que se soube desde então o pouco que acabo de
relatar.
Ver-se-á pelos fragmentos que se dão ao público alguma coisa do
grande projeto do Sr. Pascal, mas se verá muito pouco; e mesmo as
coisas que se encontrarão aí são tão imperfeitas, tão pouco extensas e tão
pouco digeridas que não podem dar senão uma ideia grosseira da
maneira como ele pretendia tratá-las.
Além disso, não se deve ficar admirado se, no pouco que se dá, não
se observou a sua ordem e a sua sequência para a distribuição da
matéria. Como não se tinha quase nada que obedecesse a uma sequência,
seria inútil apegar-se a essa ordem, e tentou-se apenas dispô-la mais ou
menos da maneira que se julgou ser a mais própria e a mais conveniente
ao que se tinha em mãos. Espera-se mesmo que haja poucas pessoas que,
uma vez entendida a intenção do Sr. Pascal, não preencham elas próprias
as falhas existentes nessa ordem e que, considerando com atenção as
diversas matérias espalhadas nesses fragmentos, não julguem facilmente
onde elas devem ser recolocadas segundo a ideia de quem as escrevera.
Se pelo menos se tivesse aquele discurso por escrito, por extenso e
na maneira como foi pronunciado, ter-se-ia alguma razão para se
consolar da perda dessa obra, e poder-se-ia dizer que se tinha pelo
menos uma amostrazinha dela, ainda que muito imperfeita. Mas Deus
não permitiu que ele nos deixasse nem uma coisa nem outra, pois pouco
tempo depois ele caiu doente com uma doença de langor e de fraqueza
que durou os quatro últimos anos de sua vida e que, embora aparecesse
pouco exteriormente e não o obrigasse a ficar sempre acamado ou no
quarto, não deixava de incomodá-lo muito e de torná-lo quase incapaz
de se aplicar ao que quer que fosse: assim, o maior cuidado e a principal
preocupação daqueles que estavam à volta dele era demovê-lo de
escrever, e até de falar de tudo que demandasse algum esforço e alguma
contenção de espírito, e só entretê-lo com coisas indiferentes e incapazes
de fatigá-lo.
Foi entretanto durante esses quatro anos de langor e de doença que
ele fez e escreveu tudo aquilo que se tem dessa obra que planejava e
tudo que ora se dá ao público. Pois, embora ele esperasse que sua saúde
fosse totalmente restabelecida para trabalhar nela com afinco e para
escrever as coisas que já havia digerido e disposto em sua mente,
entretanto, quando lhe advinha algum pensamento novo, algum ponto de
vista, alguma ideia, ou mesmo algum torneio de frase e expressões que
previa poder serlhe útil um dia para o seu projeto, como não estivesse
então em condição de dedicar-se a ele tão intensamente quanto fazia em
tempos de boa saúde, nem de imprimir essas coisas na sua mente e na
sua memória, preferia colocar alguma coisa por escrito para não
esquecer, e para isso tomava do primeiro pedaço de papel que
encontrasse ao seu alcance, colocava nele o seu pensamento em poucas
palavras e muito frequentemente até apenas por meias palavras; porque
ele só escrevia para si mesmo e por isso se contentava em fazê-lo muito
ligeiramente, para não cansar a sua mente, e colocar ali estritamente as
coisas necessárias para fazê-lo relembrar as vistas e as ideias que tinha.
Foi assim que ele fez a maioria dos fragmentos que se encontrarão
nesta coletânea, de modo que ninguém deve estranhar se alguns há que
parecem bastante imperfeitos, demasiado curtos e muito pouco
explicitados, e nos quais se pode até achar termos e expressões menos
próprias e menos elegantes. Acontecia entretanto às vezes que, estando
com a caneta na mão, ele não podia deixar, seguindo a sua inclinação, de
desenvolver os seus pensamentos e de estendê-los um pouco mais,
embora nunca o fizesse com aquela força e aplicação de espírito que
teria se estivesse em saúde perfeita. E é por isso que se encontrarão
também alguns pensamentos mais desenvolvidos e mais bem escritos, e
capítulos mais coerentes e mais perfeitos do que outros.
Aí está de que maneira foram escritos estes pensamentos. E creio que
não haverá ninguém que não julgue facilmente por esses ligeiros
começos e por essas frágeis tentativas de uma pessoa doente, que só
tinha escrito para si mesmo e para recuperar depois em sua mente
pensamentos que temia perder, e que nunca reviu ou retocou, como teria
sido a obra inteira, se o Sr. Pascal tivesse podido recobrar a perfeita
saúde e dar ao seu trabalho os últimos retoques, ele que sabia dispor as
coisas num tão belo enfoque e numa tão bela ordem, que dava um
acabamento tão particular, tão nobre e tão elevado a tudo que queria
dizer, que tinha como escopo trabalhar este livro mais do que todos
aqueles que havia feito, que queria empregar nele toda a força do seu
espírito e todos os talentos que Deus lhe havia dado, e do qual havia
muitas vezes dito que precisava de dez anos de saúde para acabá-lo.
Como se sabia da intenção do Sr. Pascal de trabalhar sobre a religião,
teve-se grande cuidado, depois de sua morte, para recolher todos os
escritos que ele havia deixado sobre essa matéria. Foram encontrados
todos juntos, amarrados em diversos maços, mas sem nenhuma ordem
ou sequência, porque, como já observei, não eram mais do que as
primeiras expressões de seus pensamentos, que ele escrevia em
pedacinhos de papel à medida que lhe vinham à mente. E tudo isso
estava tão imperfeito e tão mal escrito que se teve toda a dificuldade do
mundo para decifrá-los.
A primeira coisa que se fez foi mandá-los copiar tais quais estavam e
na mesma confusão em que tinham sido encontrados. Mas, quando se
viram os textos neste último estado e se teve maior facilidade para lê-los
e examiná-los do que nos originais, pareceram de início tão disformes,
tão mal concatenados, e a maioria tão pouco explícitos, que durante
muito tempo não se pensou absolutamente em mandá-los imprimir,
embora várias pessoas de muito grande consideração o pedissem
frequentemente com instâncias e solicitações muito insistentes, porque
se sabia da impossibilidade de preencher a expectativa e corresponder à
ideia que todos tinham dessa obra, de que se tinha ouvido falar,
publicando esses escritos no estado em que se encontravam.
Mas finalmente teve-se de ceder à impaciência e ao grande desejo
que todos manifestavam de os ver impressos. E ficou-se mais inclinado a
levar a cabo esse empreendimento na medida em que se acreditou que
todos os que leriam esses escritos seriam suficientemente ponderados
para discernir um projeto esboçado de uma peça acabada, e para julgar
da obra pela amostragem, por mais imperfeita que fosse. E assim,
resolveu-se dá-los a público. Mas, como havia várias maneiras de
executar esse projeto, levou-se algum tempo para determinar qual se
deveria adotar.
A primeira que veio à mente, e que era sem dúvida a mais fácil, foi
imprimi-los imediatamente no mesmo estado em que foram encontrados.
Mas julgou-se logo que, fazendo dessa forma, seria perder quase todo o
fruto que deles se podia esperar, porque, como os pensamentos mais
perfeitos, mais coerentes, mais claros e mais extensos estavam
misturados e como absorvidos em meio a tantos outros imperfeitos,
obscuros, digeridos pela metade, e alguns até mesmo quase ininteligíveis
para qualquer pessoa que não fosse quem os escreveu, havia sério
motivo para se crer que uns fariam rejeitar os outros, e que só se
consideraria esse volume, engrossado inutilmente com tantos
pensamentos imperfeitos, como um amontoado confuso, sem ordem,
sem sequência, e que não podia servir para nada.
Havia outra maneira de dar ao público esses escritos, que consistia
em trabalhar neles previamente, esclarecer os pensamentos obscuros,
completar os que estavam imperfeitos e, tomando em todos esses
fragmentos a intenção do Sr. Pascal, complementar de algum modo o
livro que ele queria fazer. Esse caminho teria sido certamente o mais
perfeito; mas também era muito difícil executá-lo bem. Entretanto, por
bastante tempo se esteve detido nele, e já se tinha até começado a
trabalhar nesse sentido. Mas, finalmente, resolveu-se abandoná-lo tanto
quanto o primeiro, porque se considerou que era quase impossível
penetrar no pensamento e na intenção de um autor, principalmente de
um autor já falecido, e que isso não seria publicar um livro do Sr. Pascal,
mas um livro bem diferente.
Assim, para evitar os inconvenientes que se encontravam numa e
noutra dessas maneiras de publicar esses escritos, escolheu-se um meio-
termo, que foi o que se seguiu nesta coletânea. Tomaram-se apenas,
dentre o grande número de pensamentos, aqueles que pareceram mais
claros e mais acabados; e estes são propostos aqui tais como foram
encontrados, sem acrescentar nem mudar nada, a não ser em algumas
passagens em que eles estavam sem sequência, sem ligação e dispersos
confusamente por todos os lados; foram colocados em algum tipo de
ordem, e foram postos sob o mesmo título aqueles que se referiam ao
mesmo assunto; e suprimiram-se todos os outros que eram por demais
obscuros ou muito imperfeitos.
Não é que eles não contivessem também coisas belíssimas e que não
fossem capazes de dar a conhecer pontos de vista importantes àqueles
que os entendessem bem. Mas, como não se queria trabalhar no sentido
de esclarecê-los e acabá-los, teriam sido totalmente inúteis no estado em
que se encontram. E, a fim de que se tenha alguma ideia a respeito,
apresentarei aqui apenas um para servir de exemplo, e por este se poderá
julgar de todos os outros que foram cortados. Eis aqui este pensamento e
em que estado foi encontrado entre os fragmentos: Um artesão que fala
das riquezas, um procurador que fala da guerra, da realeza etc. Mas o
rico fala bem das riquezas, o rei fala friamente da grande doação que
acabou de fazer e Deus fala bem de Deus.
Há nesse fragmento um pensamento muito belo; mas há poucas
pessoas que o possam ver, porque está explicado muito imperfeitamente
e de uma maneira muito obscura, muito curta e muito abreviada; de
modo que, se alguém tivesse ouvido de sua boca muitas vezes o mesmo
pensamento, seria difícil reconhecê-lo numa expressão tão confusa e tão
atrapalhada. Eis em que ele consiste mais ou menos.
Ele tinha feito várias observações muito particulares sobre o estilo
das Escrituras e principalmente do Evangelho, e encontrava aí belezas
que talvez ninguém tenha percebido antes. Admirava, entre outras
coisas, a ingenuidade, a simplicidade e, por assim dizer, a frieza com a
qual parece que Jesus Cristo fala das maiores e mais elevadas coisas,
como são, por exemplo, o reino de Deus, a glória que possuirão os
santos no céu, as penas do inferno, sem se estender, como fazem os
Padres e todos aqueles que escreveram sobre essas matérias. E dizia que
a verdadeira causa disso era que essas coisas, que na verdade são
infinitamente grandes e elevadas com relação a nós, não o são com
relação a Jesus Cristo, e que assim não se deve achar estranho que ele
fale delas dessa maneira, sem admiração e sem espanto, como se vê, sem
comparação, que um general de exército fala com simplicidade e sem se
comover do cerco de uma praça importante e do ganho numa grande
batalha, e que um rei fala friamente de uma importância de quinze ou
vinte milhões, de que um particular e um artesão não falariam senão com
grandes exageros.
Eis aí qual o pensamento que está contido e encerrado sob as poucas
palavras que compõem esse fragmento; e essa consideração, acrescida à
grande quantidade de outras semelhantes, podia servir seguramente, na
mente das pessoas razoáveis e que agem de boa-fé, como alguma prova
da divindade de Cristo.
Creio que só esse exemplo já basta, não apenas para dar a perceber
quais são aproximadamente os outros fragmentos que foram cortados,
mas também para mostrar a pouca aplicação e a negligência, por assim
dizer, com que foram quase todos escritos, o que deve convencer daquilo
que eu disse, que o Sr. Pascal não os havia escrito realmente senão para
si só, e sem nenhuma ideia de que eles devessem um dia ser publicados
nesse estado. E é também o que permite esperar que as pessoas estarão
bastante inclinadas a desculpar os defeitos que aí poderão encontrar-se.
Se se encontram ainda nesta coletânea alguns pensamentos um pouco
obscuros, penso que, com um mínimo de aplicação, será possível,
entretanto, compreendê-los muito facilmente, e haverá concordância em
que não são os menos belos e em que foi melhor publicá-los tais quais
estão do que esclarecê-los com grande número de palavras que só teriam
servido para torná-los morosos e enfraquecidos, e que teriam tirado deles
uma de suas principais belezas, que consiste em dizer muitas coisas em
poucas palavras.
Exemplo disso é um dos fragmentos do capítulo das Provas de Jesus
Cristo pelas profecias, que está concebido nestes termos: Os profetas
misturaram profecias particulares com profecias sobre o Messias a fim
de que as do Messias não ficassem sem provas, e que as profecias
particulares não ficassem sem fruto. Ele apresenta neste fragmento a
razão pela qual os profetas, que só tinham em vista o Messias e que
pareciam não dever profetizar senão sobre ele e sobre o que lhe diz
respeito, predisseram, entretanto, muitas vezes, coisas particulares que
pareciam bastante indiferentes e inúteis ao seu intento. Ele diz que era a
fim de que os fatos particulares se cumprissem dia após dia diante dos
olhos de todos, da maneira como eles os haviam predito, fossem
incontestavelmente reconhecidos como profetas e que, assim, não se
pudesse duvidar da verdade e da certeza de todas as coisas que
profetizavam sobre o Messias. De maneira que, por esse meio, as
profecias do Messias tiravam de certo modo as suas provas e a sua
autoridade daquelas profecias particulares verificadas e cumpridas; e
essas profecias particulares, na medida em que serviam assim para
provar e autorizar as do Messias, não eram inúteis nem sem fruto. Aí
está o sentido desse fragmento uma vez estendido e desenvolvido. Mas
não há ninguém, sem dúvida, que não tenha maior prazer em descobrir
isso por si mesmo, naquelas palavras obscuras, do que em vê-lo assim
esclarecido e explicado.
Ainda cabe bastante bem, parece-me, para tirar do engano algumas
pessoas que poderiam talvez esperar encontrar aqui provas e
demonstrações geométricas da existência de Deus, da imortalidade da
alma e de vários outros artigos da fé cristã, avisá-las de que esse não era
o intuito do Sr. Pascal. Não pretendia provar todas essas verdades da
religião mediante tais demonstrações fundamentadas em princípios
evidentes, capazes de convencer a obstinação dos mais empedernidos,
nem por raciocínios metafísicos, que muitas vezes mais desviam o
espírito do que o persuadem, nem por lugares-comuns tirados de
diversos efeitos da natureza; mas por provas morais que vão mais ao
coração do que à mente. Quer dizer que ele pretendia trabalhar mais no
sentido de comover e dispor o coração do que no de convencer e
persuadir o espírito, porque sabia que as paixões e os apegos viciosos
que corrompem o coração e a vontade são os maiores obstáculos e os
principais empecilhos à fé com os quais deparamos, e que, desde que se
pudesse eliminar esses obstáculos, não seria difícil fazer com que o
espírito recebesse as luzes e as razões que poderiam convencê-lo.
Ficar-se-á facilmente persuadido de tudo isso ao ler estes escritos.
Mas o próprio Sr. Pascal se explicou também a esse respeito num dos
fragmentos que foi encontrado entre outros e que não foi incluído nesta
coletânea. Eis o que ele diz nesse fragmento: Não empreenderei aqui
provar por razões naturais, nem a existência de Deus, nem a Trindade,
ou a imortalidade da alma, nem nenhuma das coisas dessa natureza;
não somente porque não me sentiria bastante capaz para encontrar na
natureza elementos para convencer ateus empedernidos, mas também
porque esse conhecimento, sem Jesus Cristo, é inútil e estéril. Quando
um homem estivesse persuadido de que as proporções dos números são
verdades imateriais, eternas e dependentes de uma verdade primeira na
qual subsistem e a que se chama Deus, não o consideraria muito
avançado para a sua salvação.
E ficarão também admirados de encontrar nesta coletânea uma
diversidade tão grande de pensamentos, vários dos quais parecem
bastante afastados do assunto que o Sr. Pascal tencionara tratar. Mas é
preciso considerar que o seu intuito era muito mais amplo e mais
extenso do que se imagina, e que ele não se limitava apenas a refutar os
arrazoados dos ateus e daqueles que combatem algumas verdades da fé
cristã. O grande amor e a singular estima que tinha pela religião fazia
com que não apenas ele não pudesse tolerar que alguém a quisesse
destruir e aniquilar por completo, mas tampouco que a ferissem e que a
corrompessem nas mínimas coisas. De modo que queria declarar guerra
a todos aqueles que atacam a verdade ou a santidade dela: quer dizer,
não somente aos ateus, aos infiéis e aos hereges, que recusam submeter
as falsas luzes de sua razão à fé, e reconhecer as verdades que esta nos
ensina, mas mesmo aos cristãos e aos católicos que, estando no corpo da
verdadeira Igreja, não vivem entretanto segundo a pureza das máximas
do Evangelho, que nos são propostas como modelo sobre o qual
devemos pautar e conformar todas as nossas ações.
Eis aí qual era o seu projeto, e esse projeto era bastante vasto e
bastante grande para poder abranger a maioria das coisas que estão
espalhadas nesta coletânea. Será possível, entretanto, encontrar aí
algumas que não têm nenhuma relação com o projeto e que de fato não
se destinavam a ele, como, por exemplo, a maioria das que estão no
capítulo dos Pensamentos diversos, que foram também encontradas em
meio aos papéis do Sr. Pascal e que se julgou deverem ser juntadas às
outras; porque não se está publicando este livro simplesmente como uma
obra escrita contra os ateus ou sobre a religião, mas como uma coletânea
de Pensamentos do Sr. Pascal sobre a religião e sobre alguns outros
assuntos.
Penso que nada mais resta, para terminar este prefácio, além de dizer
algo sobre o autor, depois de ter falado sobre a sua obra. Acredito que
não somente isso será bastante oportuno, mas que o que pretendo
escrever a respeito poderá até ser muito útil para se ficar sabendo como
o Sr. Pascal se iniciou nessa estima e nesses sentimentos que tinha pela
religião, que o levaram a conceber o projeto de empreender esta obra.
Já se relatou resumidamente, no prefácio dos Tratados do equilíbrio
dos líquidos, e do peso do ar, de que maneira ele passou a juventude, e o
grande progresso que fez em pouco tempo em todas as ciências humanas
e profanas a que quis dedicar-se, e particularmente na geometria e na
matemática; a maneira estranha e surpreendente como as aprendeu, aos
onze ou doze anos de idade; as pequenas obras que escrevia às vezes e
que ultrapassavam sempre em muito a força e o alcance de uma pessoa
de sua idade; o esforço espantoso e prodigioso de sua imaginação e de
sua mente que apareceu em sua máquina de aritmética, que inventou
quando tinha apenas dezenove a vinte anos, e, finalmente, as belas
experiências sobre o vácuo que fez na presença das pessoas mais
consideráveis da cidade de Ruão, onde morou durante o tempo em que o
Sr. Presidente Pascal, seu pai, aí estava lotado a serviço do rei na função
de intendente da justiça. Assim, não repetirei aqui nada disso,
contentando-me apenas com apresentar, em poucas palavras, a maneira
como desprezou todas essas coisas e com que espírito passou os últimos
anos de sua vida, no que não demonstrou menos a grandeza e a solidez
de sua virtude e de sua piedade do que antes houvera mostrado a força, a
extensão e a penetração admirável de sua mente.
Ele fora preservado, durante toda a juventude, por uma proteção
particular de Deus, dos vícios em que cai a maioria dos jovens; e o que é
bastante extraordinário para um espírito tão curioso quanto o seu, nunca
teve inclinação para a libertinagem1 no que diz respeito à religião, tendo
sempre limitado a sua curiosidade ao domínio das coisas naturais. E
disse várias vezes que juntava essa obrigação a todas as outras que devia
ao pai que, tendo ele próprio grande respeito pela religião, lhe inspirara
desde a infância esse mesmo respeito, dando-lhe como máxima que tudo
aquilo que é objeto da fé não pode ser objeto da razão, e muito menos
ser submetido a ela.
Essas instruções, frequentemente repetidas por um pai a quem tinha a
maior estima, e em quem via uma grande ciência acompanhada de um
raciocínio forte e poderoso, causavam em seu espírito tamanha
impressão que, quaisquer que fossem os discursos que ouvisse da parte
dos libertinos, não ficava absolutamente comovido por eles; e, embora
fosse muito jovem, olhava-os como pessoas que estavam nesse falso
princípio que diz estar a razão humana acima de todas as coisas, e que
não conhecem a natureza da fé.
Mas, finalmente, depois de passar a juventude em ocupações e
divertimentos que pareciam bastante inocentes aos olhos do mundo,
Deus o tocou de tal maneira que o fez entender perfeitamente que a
religião cristã nos obriga a viver só para ele e a não ter outro objetivo
senão ele. E essa verdade lhe pareceu tão evidente, tão útil e tão
necessária que o levou a tomar a resolução de se retirar e de se
desvencilhar pouco a pouco de todas as amarras que tinha com o mundo,
para poder aplicar-se unicamente a ela.
Esse desejo de retirar-se e de levar uma vida mais cristã e mais
regrada lhe veio quando era ainda muito jovem, e o levou desde então a
abandonar inteiramente o estudo das ciências profanas para aplicar-se
somente àquelas que podiam contribuir para a sua salvação e para a dos
outros. Mas doenças contínuas que lhe advieram desviaram-no por
algum tempo do seu intento e impediram-no de executá-lo antes da idade
de trinta anos.
Foi então que começou a trabalhar com afinco em seu projeto e, para
conseguir isso com mais facilidade e romper de uma vez por todas com
os seus hábitos, mudou de bairro, e em seguida retirou-se para o campo,
onde permaneceu por algum tempo, de onde, tendo regressado,
testemunhou tão bem que queria deixar o mundo que finalmente o
mundo o deixou. Estabeleceu o regulamento da sua vida no retiro com
base em duas máximas principais, que são: renunciar a todo prazer e a
toda superfluidade. Tinha-as permanentemente diante dos olhos e
tentava nelas avançar e progredir sempre cada vez mais.
A aplicação contínua a essas duas grandes máximas é que o fazia
manifestar tão grande paciência nos seus males e doenças, que quase
nunca o deixaram sem alguma dor durante toda a vida; que o fazia
praticar mortificações rudíssimas e severíssimas contra si mesmo; que
fazia com que não só recusasse aos sentidos tudo que lhes pudesse ser
agradável, mas ainda tomasse sem dificuldade ou desgosto, e até com
alegria, quando era necessário, tudo aquilo que lhes pudesse desagradar,
seja na alimentação, seja nos remédios; que o levava a restringir cada dia
mais tudo aquilo que não julgasse absolutamente necessário, seja na
roupa, seja na alimentação, seja nos móveis e em todas as outras coisas;
que lhe dava um amor tão grande e ardente pela pobreza que esta lhe
estava sempre presente e, quando queria empreender alguma coisa, o
primeiro pensamento que lhe vinha à mente era se a pobreza podia ser aí
praticada; e que o fazia ter ao mesmo tempo tanta ternura e tanta afeição
pelos pobres que nunca pôde lhes recusar esmola, e às vezes mesmo fez
algumas bastante consideráveis, ainda que as retirasse do que lhe era
necessário; que fazia com que não suportasse que se buscassem com
cuidado todas as suas comodidades e com que ele reclamasse tanto dessa
curiosa busca e dessa fantasia de querer ser excelente em tudo, como
servir-se em tudo dos melhores artesãos, ter sempre o melhor e o mais
bem feito, e mil outras coisas semelhantes que se fazem sem escrúpulo,
porque não se acredita que haja mal nisso, mas que ele não julgava do
mesmo modo; e, finalmente, que o levou a praticar várias ações muito
notáveis e muito cristãs, que não relato aqui para não me alongar demais
e porque a minha intenção não é fazer uma biografia, mas apenas passar,
para aqueles que não o conheceram, uma ideia da piedade e da virtude
do Sr. Pascal; porque, para aqueles que o viram e que o frequentaram um
pouco durante os últimos anos de sua vida, não pretendo acrescentar
nenhuma informação e acredito que julgarão, ao contrário, que eu
poderia dizer ainda muitas outras coisas sobre as quais silencio.
1. O termo “libertinagem” é usado, no século XVII, no sentido de “livre
pensamento”, e não no sentido moderno de “depravação moral”. O “libertino” era
também o irreligioso, o ímpio. O termo podia ainda designar os partidários da
seita dirigida por Quintin, surgida em Flandres (1525), que pregava o livre uso
dos instintos e das paixões para aqueles que tivessem chegado a um alto grau de
união com Deus. (N. do T.)
PRIMEIRA SEÇÃO

Papéis classificados
I. ORDEM

1 (596)
Os salmos cantados pela terra toda.

Quem dá testemunho de Maomé? ele próprio.


Jesus Cristo quer que o seu testemunho não seja nada.

A qualidade de testemunhas torna necessário que sejam sempre, e


por toda parte, e miseráveis. Ele está só.

2 (227)
Ordem por diálogos.
Que devo fazer. Por toda parte só vejo obscuridades. Acreditarei que
nada sou? Acreditarei que sou deus?

3 (244)
Todas as coisas mudam e se sucedem.
Vós vos enganais, existem…
Mas quê, não dizeis vós mesmo que o céu e os passarinhos são
provas de Deus? não. E a sua religião não o diz? não. Pois, ainda que
isso seja verdadeiro em certo sentido para algumas almas a quem Deus
deu essa luz, é entretanto falso para a maioria.

4 (184)
Carta para incentivar a busca de Deus. E, a seguir, fazer procurá-lo
junto aos filósofos, pirrônicos e dogmáticos que vão preparar a quem o
busca.

5 (247)
Ordem.
Carta de exortação a um amigo para levá-lo a buscar. E ele
responderá: de que me adiantará buscar, nada aparece. E responder-lhe:
não desespereis. E ele responderia que ficaria feliz de encontrar alguma
luz. Mas que, segundo essa religião, mesmo quando assim acreditasse,
isso de nada lhe serviria. E que assim prefere não buscar. E, sobre isso,
responder-lhe: A Máquina.

6 (60)
1. Parte. Miséria do homem sem Deus.
2. Parte. Felicidade do homem com Deus.
de outro modo
1. Parte. Que a natureza é corrupta, pela própria natureza.
2. Parte. Que existe um Reparador, pelas Escrituras.

7 (248)
Carta a indicar a utilidade das provas. Pela Máquina.
A fé é diferente da prova. Uma é humana, outra é um dom de Deus.
Justus ex fide vivit1. É dessa fé que o próprio Deus coloca no coração, de
que a prova é muitas vezes o instrumento, fides ex auditu2, mas essa fé
está no coração e faz com que não se diga scio mas Credo3.

8 (602)
Ordem.
Ver o que existe de claro em todo o estado dos judeus e de
incontestável.

9 (291)
Na carta pode vir injustiça.
A zombaria dos primogênitos que têm tudo. Meu amigo, nascestes
deste lado da montanha, é justo pois que vosso irmão primogênito tenha
tudo.
Por que me matais?

10 (167)
As misérias da vida humana foram o fundamento disso tudo. Como
viram isso, assumiram o divertimento.
11 (246)
Ordem. Depois da carta de que se deve buscar a Deus, fazer a carta
de retirar os obstáculos, que é o discurso da Máquina, de preparar a
Máquina, de procurar pela razão.

12 (187)
Ordem.
Os homens têm desprezo pela religião. Têm ódio dela e medo de que
ela seja verdadeira. Para curar isso, é preciso começar por mostrar que a
religião não é contrária à razão. Venerável, dar-lhe o respeito.
Em seguida, torná-la amável, fazer com que os bons desejem que ela
seja verdadeira e depois mostrar que ela é verdadeira.
Venerável porque conheceu bem o homem.
Amável porque promete o verdadeiro bem.

II. VAIDADE

13 (133)
Dois rostos semelhantes, dos quais nenhum, isoladamente, provoca o
riso, provocam juntos o riso por sua semelhança.

14 (338)
Os verdadeiros cristãos obedecem às loucuras, entretanto; não que
eles respeitem as loucuras, mas a ordem de Deus que, para a punição dos
homens, escravizou-os a essas loucuras. Omnis creatura subjecta est
vanitati, liberabitur4. Assim, Santo Tomás explica a passagem de São
Tiago relativa à preferência dos ricos, dizendo que, se não o fazem na
perspectiva de Deus, saem da ordem da religião.

15 (410)
Perseu, rei da Macedônia. Paulo Emílio.
Recriminava-se a Perseu o fato de ele não se matar.

16 (161)
Vaidade.
Que uma coisa tão visível como é a vaidade do mundo seja tão pouco
conhecida, que seja algo estranho e surpreendente dizer-se que é tolice
buscar as grandezas. Isso é admirável.

17 (113)
Inconstância e Bizarria.
Viver apenas do próprio trabalho e reinar sobre o mais poderoso
estado do mundo são coisas bem opostas. Elas estão juntas na pessoa do
grande senhor dos turcos.

18 (955)
751. Uma ponta de capucho arma 25.000 monges5.

19 (318)
Ele tem quatro lacaios.

20 (292)
Ele fica do outro lado da água.

21 (381)
Quando se é muito jovem, não se julga bem; quando velho demais,
tampouco.
Se não se pensa nisso suficientemente, se se pensa demais, a gente se
obstina e se fixa.

Se se considera a obra imediatamente após tê-la feito, ainda se tem


muita prevenção; se muito tempo depois, (não) se consegue mais entrar
nela.

Assim acontece com os quadros vistos de muito longe ou de muito


perto. E só existe um ponto indivisível que é o verdadeiro lugar.
Os outros ficam perto demais ou longe demais, alto demais ou baixo
demais. A perspectiva indica esse ponto na arte da pintura, mas na
verdade e na moral quem o indicará?

22 (367)
O poder das moscas, elas ganham batalhas, impedem a nossa alma de
agir, comem o nosso corpo.
23 (67)
Vaidade das ciências.
A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da
moral no momento de aflição, mas a ciência dos costumes me consolará
sempre da ignorância das ciências exteriores.

24 (127)
Condição do homem. Inconstância, tédio, inquietação.

25 (308)
O costume de ver os reis acompanhados de guardas, de tambores, de
oficiais e de todas as coisas que inclinam a máquina na direção do
respeito e do terror faz com que o seu rosto, quando às vezes está só e
sem esses acompanhamentos, imprima nos súditos o respeito e o terror
porque, em pensamento, não se separam as suas pessoas dos seus
séquitos, que se costumam ver juntos. E o povo, que não sabe que aquele
efeito provém do costume, acredita que ele venha de uma força natural.
E daí vêm estas palavras: o caráter da divindade está impresso em seu
rosto etc….

26 (330)
O poder dos reis está fundamentado na razão e na loucura do povo, e
bem mais na loucura. A maior e mais importante coisa do mundo está
fundamentada na fraqueza. E esse fundamento é admiravelmente seguro,
pois nada há além disso, de que o povo será fraco. Aquilo que está
fundamentado na sã razão está bem mal fundamentado, como a estima
da sabedoria.

27 (354)
Não é da natureza do homem ir sempre; ela tem suas idas e vindas.
A febre tem os seus tremores e ardores. E o frio mostra tão bem a
grandeza do ardor da febre quanto o próprio calor.
As invenções dos homens, século após século, procedem da mesma
forma; o mesmo acontece com a bondade e a malícia do mundo em
geral.
Plerumque gratae principibus vices6.

28 (436)
Fraqueza.
Todas as ocupações dos homens buscam ter bens e não podem
apresentar nenhum título para mostrar que os possuem por justiça, pois
só têm a fantasia dos homens, não força para possuí-los com segurança.
O mesmo acontece com a ciência. Porque a doença a retira.
Somos incapazes tanto para a verdade quanto para o bem.

29 (156)
Ferox gens nullam esse vitam sine armis rati7.
Eles gostam mais da morte do que da paz, outros gostam mais da
morte do que da guerra.
Qualquer opinião8 pode ser preferível à vida, cujo amor parece tão
forte e tão natural.

30 (320)
Não se escolhe para pilotar um navio aquele dentre os passageiros
que pertence à casa mais nobre.

31 (149)
Nas cidades por onde se passa, não se tem a preocupação de ser
estimado. Mas quando nelas se deve ficar algum tempo, tem-se essa
preocupação. Quanto tempo é preciso? Um tempo proporcional à nossa
vida vã e frágil.

32 (317 bis) Vaidade.


Os respeitos significam: incomodai-vos.
33 (374)
O que mais me espanta é ver que nem toda gente fica espantada com
a sua própria fraqueza. Procede-se com seriedade e cada um segue a sua
condição, não porque realmente seja bom segui-la, pois que é essa a
moda, mas como se cada um soubesse com certeza onde está a razão e a
justiça. A gente se decepciona a cada momento e por uma humildade
engraçada acredita-se que é por culpa própria e não por culpa da arte que
sempre se alardeia ter. Mas é bom que haja tanta gente assim no mundo,
pessoas que não sejam pirrônicas pela glória do pirronismo, a fim de
mostrar que o homem é mesmo capaz das mais extravagantes opiniões,
pois que é capaz de acreditar que não está nessa fraqueza natural e
inevitável, e de acreditar que está, ao contrário, na sabedoria natural.
Nada fortalece mais o pirronismo do que o fato de haver quem não
seja pirrônico. Se todos o fossem, eles ficariam sem razão.

34 (376)
Essa seita fortifica-se mais por seus inimigos do que por seus
amigos, pois a fraqueza do homem aparece muito mais naqueles que não
a conhecem do que naqueles que a conhecem.

35 (117)
Salto de sapato.
Como é uma peça bem trabalhada! Aí está um operário habilidoso!
Como esse soldado é audaz! Eis aí a fonte de nossas tendências e da
escolha das condições. Que fulano bebe bem, que sicrano bebe pouco:
eis o que faz as pessoas serem sóbrias e beberronas, soldados, poltrões
etc….

36 (164)
Quem não vê a vaidade do mundo é ele próprio bem vão. Assim,
quem não a vê, exceto nos jovens que estão todos no meio do barulho,
na diversão e no pensamento do futuro.
Mas tirai-lhes a diversão, vós os vereis secar de tédio. Passam a
sentir então o seu nada sem o conhecer, porque é ter muita infelicidade
estar numa tristeza insuportável, logo que se fica reduzido a contemplar
a si mesmo sem disso se divertir.

37 (158)
Profissões.
Tão grande é a doçura da glória que, seja qual for o objeto em que a
coloquemos, mesmo na morte, nós o amamos.

38 (71)
Muito vinho e muito pouco.
Não lhe deis: ele não pode encontrar a verdade. Dailhe demais:
mesma coisa.

39 (141)
Os homens se entretêm em seguir uma bola e uma lebre: é o próprio
prazer dos reis.

40 (134)
Que vaidade a pintura que atrai a admiração pela semelhança das
coisas cujos originais não se admiram!

41 (69)
Quando se lê depressa demais ou devagar demais, não se entende
nada.

42 (207)
Quantos reinos nos ignoram!

43 (136)
Pouca coisa nos consola porque pouca coisa nos aflige.

44 (82)
Imaginação.
É essa parte dominante do homem, essa mestra do erro e da
falsidade, e ainda mais trapaceira porque nem sempre o é; pois ela seria
regra infalível de verdade se fosse regra infalível da mentira. Ainda mais

Mas, sendo o mais das vezes falsa, ela não mostra nenhum sinal
dessa sua qualidade, marcando com as mesmas características o
verdadeiro e o falso. Não estou falando dos loucos, e sim dos mais
cordatos, e é entre eles que a imaginação assume o grande direito de
persuadir os homens. Por mais que a razão grite, não consegue dar o
devido valor às coisas.
Essa soberba potência inimiga da razão, que se compraz em controlá-
la e em dominá-la, para mostrar quanto poder tem em todas as coisas,
estabeleceu no homem uma segunda natureza. Ela tem seus felizes, seus
infelizes, seus sadios, seus doentes, seus ricos, seus pobres. Ela faz
acreditar, duvidar, negar a razão. Suspende os sentidos, fá-los sentir.
Tem seus loucos e seus sábios. E nada nos deixa mais desarvorados do
que ver que ela cumula os seus hóspedes de uma satisfação muito mais
plena e inteira do que o faz a razão. Os versados por imaginação se
comprazem muito mais do que podem comprazer-se razoavelmente os
prudentes. Eles olham as pessoas com domínio, disputam com audácia e
confiança – os outros com temor e desconfiança – e aquela alegria
estampada no rosto lhes dá muitas vezes vantagem na opinião dos
ouvintes, de tal modo os sábios imaginários desfrutam de favor junto aos
juízes de mesma natureza. Ela não pode tornar sábios os loucos, mas os
torna felizes, rivalizando com a razão que só pode tornar miseráveis os
seus amigos, uma cobrindo-os de glória, a outra, de vergonha.
Quem confere a reputação, quem dá o respeito e a veneração às
pessoas, aos livros, às leis, aos grandes, senão essa faculdade imaginária.
Todas as riquezas da terra são insuficientes sem o seu consentimento.
Não direis que aquele magistrado cuja velhice venerável impõe o
respeito a todo um povo se pauta por uma razão pura e sublime, e que
julga as coisas por sua natureza sem se deter naquelas vãs circunstâncias
que só ferem a imaginação dos fracos. Vede-o entrar num sermão, em
que coloca um zelo devotíssimo reforçando a solidez de sua razão com o
ardor de sua caridade; lá está ele pronto para ouvi-lo com um respeito
exemplar. Apareça o pregador: se a natureza lhe deu uma voz rouquenha
e feições estranhas, se o barbeiro não o barbeou direito, se além disso o
acaso ainda o salpicou de manchas, por maiores que sejam as verdades
que ele esteja pregando, eu aposto na perda da gravidade do nosso
senador.
O maior filósofo do mundo em cima de uma tábua mais larga do que
o necessário, se houver abaixo dele um precipício, por mais que a razão
o convença de que está em segurança, a sua imaginação prevalecerá.
Alguns nem mesmo podem pensar nisso sem empalidecer e suar.
Não quero fazer um relatório de todos os efeitos da imaginação;
quem não sabe que a vista dos gatos, dos ratos, o esmagamento de uma
brasa etc. levam a razão para fora dos gonzos. O tom de voz se impõe
aos mais sábios e muda a força de um discurso e de um poema.
A afeição e o ódio mudam a face da justiça, e quanto um advogado
bem pago adiantadamente acha mais justa a causa que defende. Como o
seu gesto audaz a faz parecer melhor aos juízes enganados por essa
aparência. Razão engraçada essa que um vento pode manejar, e em todos
os sentidos. Eu relataria quase todas as ações dos homens que quase só
se abalam pelos solavancos dela. Porque a razão foi obrigada a ceder, e a
mais sábia toma como princípios seus aqueles que a imaginação dos
homens temerariamente introduziu em cada lugar. (Quem não quisesse
seguir senão a razão seria louco comprovado. É preciso, já que
agradou, trabalhar o dia todo por bens reconhecidamente imaginários e
quando o sono nos tiver repousado das fadigas de nossa razão, é
preciso levantarnos incontinenti em sobressalto para ir correr atrás das
fumaças e apagar as impressões dessa mestra e senhora do mundo.)
(– Aí está um dos princípios de erro, mas não é o único.)
(O homem tem mesmo razão em aliar essas duas potências, embora
nessa paz a imaginação leve ampla vantagem, pois na guerra ela leva
vantagem ainda mais completa. Jamais a razão (sobrepuja) totalmente a
imaginação, (mas o) contrário é o que costuma acontecer.)
Nossos magistrados conheceram bem esse mistério. As suas togas
vermelhas, os arminhos com que se acalentam, os palácios onde julgam,
as flores-de-lis, todo esse aparato augusto era bem necessário, e se os
médicos não tivessem batas e mulas, e se os doutores não tivessem
barretes quadrados e roupas muito amplas de quatro partes, jamais
teriam podido enganar o povo que não pode resistir a essa exibição tão
autêntica. Se tivessem a verdadeira justiça, e se os médicos tivessem a
verdadeira arte de curar, não teriam o que fazer com os seus barretes
quadrados. A majestade dessas ciências seria bastante venerável por si
mesma, mas só possuindo ciências imaginárias é necessário que lancem
mão desses vãos instrumentos que tocam a imaginação a que eles fazem
apelo e mediante isso, de fato, provocam respeito.
Só os homens de guerra não se fantasiaram dessa forma porque,
realmente, a parte que lhes toca é mais essencial. Eles se impõem pela
força; os outros, por suas caretas.
Foi por isso que os nossos reis não procuraram essas fantasias. Não
se disfarçaram com roupas extraordinárias para parecerem tais. Mas se
fazem acompanhar por guardas, por homens com cicatrizes (?). Essas
tropas armadas que só têm mãos e força para eles, os trombetas e os
tambores que marcham à frente e essas legiões que os cercam fazem
tremer os mais firmes. Eles não têm a roupa, mas têm a força. Seria
necessário ter uma razão muito depurada para encarar como outro
homem qualquer o grande senhor cercado de seu soberbo serralho de
quarenta mil janízaros.
Não podemos sequer ver um advogado togado e com o barrete na
cabeça sem uma opinião favorável de sua arrogância.
A imaginação dispõe de tudo; faz a beleza, a justiça e a felicidade
que é tudo no mundo.
Quisera de bom grado ver o livro italiano de que conheço apenas o
título, que vale sozinho muitos livros, dell’opinone regina del mondo.
Subscrevo o que está nele sem conhecer, exceto o mal, se houver.
Aí estão, aproximadamente, os efeitos dessa faculdade enganosa que
parece ser-nos dada de propósito para nos induzir num erro necessário.
Temos numerosos outros princípios de erro.
As impressões antigas não são as únicas capazes de nos enganar; os
encantos da novidade têm o mesmo poder. Daí vem toda a disputa dos
homens que se censuram quer por seguir as suas falsas impressões da
infância, quer por temerariamente correrem atrás das novas. Quem
mantém o meio-termo que apareça e prove. Não há princípio, por mais
natural que possa ser, mesmo desde a infância, (que não se) faça passar
por uma falsa impressão, seja de instrução, seja dos sentidos.
Porque acreditastes desde a infância, dizem alguns, que um cofre
estava vazio, quando nele nada víeis, acreditastes ser possível o vazio. É
uma ilusão dos vossos sentidos, fortalecida pelo costume, que precisa ser
corrigida pela ciência. E outros dizem que, porque vos foi dito na escola
que não existe o vácuo, corromperam o vosso senso comum que o
entendia tão claramente antes dessa má impressão, que é preciso corrigir
recorrendo à vossa primeira natureza. Quem então enganou? Os sentidos
ou a instrução?
Temos outro princípio de erro: as doenças. Elas estragam em nós o
juízo e o senso. E se as grandes o alteram sensivelmente, não duvido de
que as pequenas também deixem aí a sua impressão na devida
proporção.
Nosso interesse próprio é também um maravilhoso instrumento para
nos furar os olhos de maneira agradável. Não é permitido ao mais
equânime homem do mundo ser juiz em causa própria. Conheço alguns
que, para não caírem nesse amor-próprio, acabaram sendo os mais
injustos do mundo por reação contrária. O meio mais seguro de perder
uma causa totalmente justa era fazer com que algum seu parente
próximo a recomendasse junto a eles. A justiça e a verdade são duas
pontas tão sutis que os nossos instrumentos são demasiado cegos para
nelas tocar com exatidão. Se conseguirem, vão achatar-lhes a ponta e
apoiar à volta toda mais sobre o falso do que sobre o verdadeiro.
(O homem foi fabricado com tanto esmero que não tem nenhum
princípio exato da verdade, e tem vários excelentes da falsidade.
Vejamos agora quantos.
Mas a mais engraçada entre as causas dos seus erros é a guerra que
fica entre os sentidos e a razão.)
45 (83) O homem não é mais do que um sujeito cheio de erro natural,
e inapagável sem a graça. Nada lhe mostra a verdade. Tudo o engana.
Estes dois princípios de verdade, a razão e os sentidos, além de faltar a
cada um sinceridade, enganam-se reciprocamente; os sentidos enganam
a razão por falsas aparências. E esse mesmo logro que aplicam à alma,
dela o recebem de volta por sua vez; ela revida. As paixões da alma os
perturbam e lhes causam impressões falsas. Ambos mentem e se iludem
à porfia.
Mas além desse erro que advém por acidente e por falta de
inteligência entre essas faculdades heterogêneas…
(Deve começar aqui o capítulo das potências enganosas.)

46 (163)
Vaidade.
A causa e os efeitos do amor. Cleópatra.

47 (172)
Nunca ficamos no tempo presente. Lembramos o passado;
antecipamos o futuro como lento demais para chegar, como para
apressar o seu curso, ou nos lembramos do passado para fazê-lo parar
como demasiado rápido, tão imprudentes que erramos por tempos que
não são nossos e não pensamos no único que nos pertence, e tão levianos
que pensamos naqueles que nada são e escapamos, sem refletir, do único
que subsiste. É que, em geral, o presente nos fere. Escondemo-lo de
nossas vistas porque nos aflige e, se ele nos é agradável, lamentamos
que nos escape. Buscamos mantê-lo mediante o futuro e pensamos em
dispor as coisas que não estão em nosso poder por um tempo ao qual não
temos a menor certeza de chegarmos.
Examine cada um os seus pensamentos. Vai encontrá-los a todos
ocupados com o passado ou com o futuro. Quase não pensamos no
presente, e se nele pensamos é somente para nele buscar a luz para
dispormos do futuro. O presente nunca é o nosso fim.
O passado e o presente são os nossos meios; só o futuro é o nosso
fim. Assim não vivemos nunca, mas esperamos viver e, sempre nos
dispondo a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.

48 (366)
O espírito daquele soberano juiz do mundo não é tão independente
que não esteja sujeito a ser perturbado pela primeira barulheira que se
faça ao seu redor. Não é preciso o barulho de um canhão para impedir os
seus pensamentos. Basta o barulho de uma ventoinha ou de uma polia.
Não vos espanteis se ele não raciocina bem agora, uma mosca está
zumbindo aos seus ouvidos: basta isso para torná-lo incapaz de um bom
conselho. Se quiserdes que ele possa encontrar a verdade, rechaçai esse
animal que lhe mantém a razão em xeque e perturba essa possante
inteligência que governa as cidades e os reinos.
Que deus engraçado, esse. O ridicolosissime heroe!

49 (132)
César estava velho demais, ao que me parece, para ir brincar de
conquistar o mundo. Essa brincadeira era boa para Augusto e para
Alexandre. Eram jovens difíceis de fazer parar, mas César devia estar
mais maduro.

50 (305)
(Raptus est) (?)
Os suíços se ofendem em ser chamados de fidalgos e provam a sua
condição de raça plebeia para serem julgados dignos dos grandes cargos.

51 (293)
Por que me matais com vantagem para vós? Eu não estou armado. –
O quê, não estais do outro lado da água?
Meu amigo, se estivésseis do lado de cá, eu seria um assassino, e
seria injusto matar-vos assim. Mas, visto que estais do outro lado, sou
um bravo e isto é justo.

52 (388)
O bom senso.
Eles são obrigados a dizer: não estais agindo de boa- -fé, não
estamos dormindo etc. Como gosto de ver essa soberba razão humilhada
e suplicante. Pois não é a linguagem de um homem a quem disputam o
direito e que o defende com armas e força na mão. Ele não brinca
dizendo que não se está agindo de boa-fé, mas pune essa má-fé pela
força.
III. MISÉRIA

53 (429)
Baixeza do homem até submeter-se aos animais, até os adorar.

54 (112)
Inconstância.
As coisas têm diversas qualidades e a alma diversas inclinações, pois
nada é simples daquilo que se oferece à alma, e a alma nunca se oferece
simples a nenhum objeto. Daí vem que se chora e que se ri de uma
mesma coisa.

55 (111)
Inconstância.
Acredita-se tocar em órgão comum tocando no homem. É um órgão
na verdade, mas estranho, cambiante, variável. (Aqueles que só sabem
tocar no comum) não estariam de acordo a respeito desse. É preciso
saber onde estão as (teclas).

56 (181)
Somos tão infelizes que não podemos encontrar prazer numa coisa a
não ser com a condição de nos zangar se ela não dá certo, o que pode
acontecer e acontece com mil coisas a toda hora. (Quem) tivesse
encontrado o segredo de se alegrar com o bem sem se zangar com o mal
contrário teria encontrado o ponto. É o movimento perpétuo.

57 (379)
Não é bom ser livre demais.

Não é bom ter todas as necessidades.

58 (332)
A Tirania consiste no desejo de domínio universal e fora da sua
ordem.
Diversos compartimentos de fortes, de belos, de bons espíritos, de
piedosos, dos quais cada um reina na sua parte, não noutra parte. E às
vezes se encontram, e o forte se bate com o belo como tolos disputando
quem terá o domínio do outro, porque o seu domínio é de gênero
diverso. Não se entendem. E o erro deles está em querer reinar por toda
parte. Nada o pode, nem mesmo a força: ela nada faz no reino dos
sábios, ela só tem o domínio das ações exteriores. – Assim, esses
discursos são falsos…

58 (332)
Tirania.
A tirania está em querer ter por um caminho o que só se pode ter por
outro. Prestam-se diferentes deveres a diferentes méritos, dever de amor
ao encanto, dever de temor à força, dever de crédito à ciência.
Deve-se prestar esses deveres, é injusto quem os recusa, e injusto
quem exige outros. Assim, esses discursos são falsos e tirânicos: eu sou
belo, portanto devem temer- -me; eu sou forte, portanto devem amar-me;
eu sou… E é igualmente ser falso e tirânico dizer: ele não é forte,
portanto não o estimarei; ele não é hábil, portanto não o temerei.

59 (296)
Quando a questão é julgar se se deve fazer guerra e matar tantos
homens, condenar tantos espanhóis à morte, um só homem é juiz disso e,
além do mais, interessado: deveria ser um terceiro indiferente.

60 (294)
(Em verdade ele se livraria da vaidade das leis, portanto é útil
enganá-lo.)
Sobre que fundamentará ele a economia do mundo que quer
governar? Será sobre o capricho de cada indivíduo? Que confusão! Será
sobre a justiça? ele a ignora. Certamente se ele a conhecesse não teria
estabelecido essa máxima, a mais geral de todas as que existem entre os
homens, que cada um siga os costumes do seu país. O esplendor da
verdadeira equidade teria subjugado todos os povos. E os legisladores
não teriam tomado como modelo, em vez dessa justiça constante, as
fantasias e os caprichos dos persas e dos alemães. Vê-la-íamos
implantada em todos os estados do mundo e em todos os tempos, em
lugar de não se ver nada de justo ou de injusto que não mude de
qualidade ao mudar de clima, três graus de aproximação do polo
invertem toda a jurisprudência; um meridiano decide da verdade. Em
poucos anos de vigência, as leis fundamentais mudam, o direito tem as
suas épocas, a entrada de Saturno em Leão indica-nos a origem de tal
crime. Justiça engraçada essa que um rio limita. Verdade aquém dos
Pireneus, erro além.
Confessam que a justiça não está nesses costumes, mas que reside
nas leis naturais comuns a todos os países. Por certo sustentariam
pertinazmente isso, se a temeridade do acaso que semeou as leis
humanas tivesse encontrado pelo menos uma delas que fosse universal.
Mas a irrisão é tamanha que o capricho dos homens se diversificou a
ponto de não haver nenhuma.
O furto, o incesto, o assassínio das crianças e dos pais, tudo teve seu
lugar entre as ações virtuosas. Pode haver algo mais engraçado do que o
fato de um homem ter o direito de me matar porque mora do outro lado
da água e porque o seu príncipe tem alguma desavença com o meu,
embora eu não tenha nenhuma desavença com ele próprio?
Existem sem dúvida leis naturais, mas essa bela razão corrompida
tudo corrompeu. Nihil amplius nostrum est, quod nostrum dicimus artis
est9. Ex senatusconsultis et plebiscitis crimina exercentur10. Ut olim
vitiis sic nunc legibus laboramus11.
Dessa confusão advém que um diz que a essência da justiça é a
autoridade do legislador; outro, a comodidade do soberano; outro, o
costume presente, e é o mais seguro. Nada, segundo a razão apenas, é
justo por si, tudo balança com o tempo. O costume (é) toda a equidade,
pela simples e só razão de que é recebido. É esse o fundamento místico
de sua autoridade. Quem a reduzir ao seu princípio a aniquilará. Nada é
mais eivado de erros do que essas leis que consertam os erros. Quem
obedece a elas porque elas são justas, obedece à justiça que imagina,
mas não à essência da lei. Ela é toda concentrada em si mesma. É lei e
nada mais. Quem quiser examinar-lhe o motivo, vai achá-lo tão fraco e
tão leviano que, se não estiver acostumado a contemplar os prodígios da
imaginação humana, ficará admirado de que um século lhe tenha
atribuído tanta pompa e reverência. A arte de intrigar, subverter os
estados está em abalar os costumes estabelecidos, sondando até a sua
fonte para apontar-lhes a falta de autoridade e de justiça. É necessário,
dizem, recorrer às leis fundamentais e primitivas do estado, que foram
abolidas por um costume injusto. É um jogo certo para perder tudo; nada
será justo para essa balança. Entretanto, o povo facilmente presta
ouvidos a esses discursos, sacodem o jugo logo que o reconhecem, e os
grandes tiram proveito disso para a ruína dele e daqueles curiosos
examinadores dos costumes recebidos. Eis por que o mais sábio dos
legisladores dizia que, para o bem dos homens, é muitas vezes preciso
enganá-los; e outro bom político: Cum veritatem qua liberetur ignoret,
expedit quod fallatur12. Não é preciso que ele sinta a verdade da
usurpação, ela foi introduzida outrora sem razão, ela se tornou razoável.
É preciso fazer com que a olhem como autêntica, eterna, e ocultar a sua
origem, se não se quer que logo venha a terminar.

61 (309)
Justiça.
Como a moda faz o atrativo, faz também a justiça.

62 (177)
(Três hospedeiros)
Quem tivesse sido amigo do rei da Inglaterra, do rei da Polônia e da
rainha da Suécia iria acreditar que lhe pudesse faltar retiro ou asilo neste
mundo?

63 (151)
A glória.
A admiração estraga tudo desde a infância. Oh, como ele falou bem!
como fez bem feito! como é ajuizado! etc.
As crianças de P. R., às quais não se dá esse aguilhão de inveja e de
glória, caem na indolência.

64 (295)
Meu, teu.
Este cachorro é meu, diziam aquelas pobres crianças. Este é o meu
lugar ao sol. Aí está o começo e a imagem da usurpação de toda a terra.

65 (115)
Diversidade.
A teologia é uma ciência, mas ao mesmo tempo quantas ciências há?
Um homem é um suposto, mas, se a gente o anatomiza, o que passa a
ser? a cabeça, o coração, o estômago, as veias, cada veia, cada porção de
veia, o sangue, cada humor do sangue.
Uma cidade, um campo, de longe são uma cidade e um campo, mas à
medida que a gente se aproxima, são casas, árvores, telhas, folhas, mato,
formigas, pernas de formigas, ao infinito. Tudo isso fica abrangido sob o
nome de campo.

66 (326)
Injustiça.
É perigoso dizer ao povo que as leis não são justas, pois ele só
obedece a elas porque acredita que são justas. É por isso que é preciso
dizer-lhe ao mesmo tempo que é necessário obedecer a elas porque são
leis, como é preciso obedecer aos superiores não por serem justos, mas
por serem superiores. Assim qualquer sedição fica prevenida, se se
puder fazer entender isso e que (essa é) propriamente a definição da
justiça.

67 (879)
Injustiça.
A jurisdição não se dá para (o) jurisdicionante mas para o
jurisdicionado: é perigoso dizê-lo ao povo, mas o povo acredita muito
em vós; isso não irá prejudicá-lo e poderá vos servir. É preciso, pois,
torná-lo público. Pasce oves meas non tuas13. Vós me deveis o pasto.
68 (205)
Quando contemplo a pequena duração da minha vida absorvida na
eternidade precedente e seguinte – memoria hospitis unius diei
praetereuntis14 –, o pequeno espaço que preencho e mesmo que vejo
abismado na infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me
ignoram, apavoro-me e admiro-me por me ver aqui e não lá, pois não
existe razão por que aqui e não lá, por que agora e não então. Quem me
colocou aqui? Pela ordem e pela intervenção de quem este lugar e este
tempo foi destinado a mim?

69 (174 bis)
Miséria.
Jó e Salomão.

70 (165 bis)
Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não seria necessário
desviarmos dela nossos pensamentos.

71 (405)
Contradição.
Orgulho contrabalançando todas as misérias; ou ele esconde as suas
misérias, ou as desvenda; glorifica-se de conhecê-las.
72 (66)
É necessário conhecer-se a si mesmo. Ainda quando isso não
servisse para encontrar a verdade, pelo menos serve para regrar a própria
vida, e nada há de mais justo.

73 (110)
O sentimento da falsidade dos prazeres presentes e a ignorância da
vaidade dos prazeres ausentes causam a inconstância.

74 (454)
Injustiça.
Não encontraram outro meio de satisfazer sua concupiscência sem
causar mal aos outros. Jó e Salomão.
75 (389)
O Eclesiastes mostra que o homem sem Deus fica na ignorância de
tudo e numa infelicidade inevitável, pois é ser infeliz querer e não poder.
Ora, ele quer ser feliz e estar seguro de alguma verdade. E, no entanto,
não pode nem saber nem não desejar saber. Nem mesmo pode duvidar.

76 (73)
13. (Mas talvez este assunto ultrapasse o alcance da razão.
Examinemos então as suas invenções com relação às coisas que estão
sob a sua força. Se existe uma coisa em que o seu interesse próprio deve
tê-la feito aplicar a maior seriedade, é a busca de seu soberano bem.
Vejamos pois onde essas almas fortes e clarividentes o colocaram. E se
elas são concordantes.
Um diz que o soberano bem está na virtude, outro o coloca na
volúpia, outro em seguir a natureza, outro na verdade – felix qui potuit
rerum cognoscere causas15 –, outro na ignorância total, outro na
indolência, outros em resistir às aparências, outro em não admirar nada
– nihil mirari prope res una quae possit facere et servare beatum16 –, e
os bravos pirrônicos em sua ataraxia, dúvida e suspensão perpétua. E
outros, mais sábios, que não se pode achá-lo, nem mesmo por desejo.
Estamos bem arranjados.
(Será ainda a alma um assunto demasiado nobre para as suas fracas
luzes? rebaixemo-la então até a matéria. Vejamos se ela sabe de que é
feito o próprio corpo que ela anima e os outros que ela contempla e
move à vontade.
Que conheceram dessas coisas esses grandes dogmatistas que não
ignoram nada?

393
Harum sententiarum17.
Isso bastaria sem dúvida se a razão fosse razoável. Ela o é o
bastante para confessar que nada pôde ainda encontrar de sólido. Mas
ela não desespera ainda de chegar lá; ao contrário, está mais ardente
do que nunca nessa busca e garante que tem em si as forças necessárias
para essa conquista.
É preciso então completá-la e, depois de ter examinado suas
potências nos efeitos destas, reconheçamo-las em si mesmas. Vejamos se
ela tem alguma força e alguma ação capazes de captar a verdade.)

IV. TÉDIO

77 (152)
Orgulho.
Curiosidade não é mais que vaidade. No mais das vezes só se quer
saber de alguma coisa para falar dela, senão, não se viajaria pelo mar
para nunca dizer nada a respeito e apenas pelo prazer de ver, sem
esperança de jamais comunicar a ninguém.

78 (126)
Descrição do homem.
Dependência, desejo de independência, necessidades.

79 (128)
O incômodo que se tem em abandonar as ocupações a que se está
apegado. Um homem vive com prazer em seu lar; se ele vir uma mulher
que lhe agrade, se ficar jogando 5 ou 6 dias com prazer, ei-lo que volta
miserando à sua primeira ocupação. Nada é mais comum do que isso.

V. RAZÕES DOS EFEITOS

80 (317)
O respeito é: Incomodai-vos.
Isso é aparentemente vão, mas muito justo, pois é como dizer: eu me
incomodaria se estivésseis em necessidade, visto que o faço sem que isso
vos sirva, além de que o respeito é para distinguir os grandes. Ora, se o
respeito consistisse em estar numa poltrona, respeitar-se-ia a toda gente
e assim não se faria distinção. Mas estando incomodado, distingue-se
muito bem.

81 (299)
As únicas regras universais são as leis do país relativas às coisas
comuns e a pluralidade com relação às outras. De onde vem isso? da
força que aí existe.
E daí vem que os reis que têm a força de outra fonte não
acompanham a pluralidade de seus ministros.
Sem dúvida a igualdade dos bens é justa mas
Não podendo fazer com que fosse forçoso obedecer à justiça, fez-se
com que fosse justo obedecer à força. Não se podendo fortificar a
justiça, justificou-se a força, a fim de que o justo e o forte estivessem
juntos e que houvesse paz, que é o soberano bem.
82 (271) A sabedoria nos remete à infância. Nisi efficiamini sicut
parvuli18.

83 (327)
O mundo julga bem as coisas, pois está na ignorância natural que é a
verdadeira sede do homem. As ciências têm duas extremidades que se
tocam: a primeira é a pura ignorância natural em que se encontram todos
os homens ao nascer; a outra extremidade é aquela a que chegam as
grandes almas que, tendo percorrido tudo aquilo que os homens podem
saber, acham que nada sabem e se encontram naquela mesma ignorância
de que partiram, mas é uma ignorância sábia que se conhece. Aqueles
dentre os dois que saíram da ignorância natural e não conseguiram
chegar à outra, têm alguma tintura daquela ciência arrogante, e se fazem
de entendidos. Esses perturbam o mundo e julgam mal a respeito de
tudo.
O povo e os hábeis compõem o andamento do mundo; esses o
desprezam e são desprezados. Eles julgam mal todas as coisas, e o
mundo as julga bem.
84 (79)
(Descartes.
Deve-se dizer no geral: isso se faz por figura e movimento. Pois isso
é verdade, mas dizer quais e compor a máquina, isso é ridículo. Pois é
inútil, incerto e penoso. E, ainda que fosse verdade, não achamos que
toda a filosofia valha uma hora de trabalho penoso.)

85 (878)
Summum jus, summa injuria19.

A pluralidade é a melhor via porque ela é visível e tem a força de se


fazer obedecer. Entretanto, essa é a opinião dos menos hábeis.
Se tivesse sido possível, ter-se-ia posto a força na mão da justiça,
mas como a força não se deixa manipular como se quer por se tratar de
uma qualidade palpável, ao passo que a justiça é uma qualidade
espiritual de que se dispõe como se quer. Colocaram esta nas mãos da
força e assim se chama justo aquilo que é forçoso observar.
(Daí) Vem o direito da espada, pois a espada dá o verdadeiro direito.
Senão, se veria a violência de um lado e a justiça do outro. Fim da
a
12 provincial.

Daí vem a injustiça da Fronda, que levanta a sua pretensa justiça


contra a força.
Não acontece o mesmo com a Igreja, pois existe neste caso uma
justiça verdadeira sem nenhuma violência.

86 (297)
Veri juris20. Não o temos mais. Se tivéssemos, não tomaríamos como
regra de justiça seguir os costumes do país.
Foi aí que, não podendo encontrar o justo, encontrou- -se o forte etc.

87 (307)
O chanceler é sério e revestido de ornamentos. Pois o seu cargo é
falso e não o rei. Este tem a força, não precisa da imaginação. Os juízes,
médicos etc. só têm a imaginação.

88 (302)
É o efeito da força, não do costume, pois os que são capazes de
inventar são raros. Os mais fortes em número não querem senão
acompanhar e recusam a glória a esses inventores que a buscam por suas
invenções e, se eles se obstinam em querer consegui-la e em desprezar
os que não inventam, os outros lhes darão nomes ridículos, dariam
bordoadas neles. Não se faça questão dessa subtileza então, ou se
contente consigo mesmo.

89 (315)
Razão dos efeitos.
Isto é admirável: não se quer que eu preste honras a um homem
vestido de brocados e seguido de 7 ou 8 lacaios. O quê! ele mandará me
dar correiadas se eu não o saudar. Aquela roupa é uma força. É o mesmo
que um cavalo ricamente arreado com relação a outro. Montaigne é
engraçado por não ver a diferença que existe e se admirar de que a gente
a encontre, e perguntar a razão disso. De verdade, diz ele, de onde vem
etc.

90 (337)
Razão dos efeitos.
Gradação. O povo honra as pessoas de nascimento ilustre, os semi-
hábeis as desprezam dizendo que o nascimento não é um mérito da
pessoa, mas fruto do acaso. Os hábeis as honram não pelo mesmo
pensamento do povo, mas com segundas intenções. Os devotos que
possuem mais zelo do que ciência as desprezam apesar dessa
consideração que faz com que sejam honradas pelos hábeis, porque
julgam por outra luz que a piedade lhes dá, mas os cristãos perfeitos as
honram por um(a) outra luz superior.
Assim se vão sucedendo as opiniões a favor ou contra conforme a
luz que se tem.

91 (336)
Razão dos efeitos.
É preciso ter segundas intenções, e julgar tudo por esse prisma,
falando entretanto como o povo.

92 (335)
Razão dos efeitos.
É pois verdade quando se diz que todo o mundo está na ilusão, pois,
ainda que as opiniões do povo sejam sadias, elas não o são em sua
cabeça, pois ele pensa que a verdade está onde ela não está. A verdade
está realmente em suas opiniões, mas não no ponto onde imagina. É
verdade que se deve honrar os fidalgos, mas não porque o nascimento
seja um mérito efetivo etc.

93 (328)
Razão dos efeitos.
Inversão contínua do pró ao contra.
Mostramos então que o homem é vão pela estima que tem pelas
coisas que não são essenciais. E todas essas opiniões ficam destruídas.
Mostramos em seguida que todas essas opiniões são muito sadias, e
que assim, estando todas essas vaidades bem fundamentadas, o povo não
é tão vão quanto se diz. E assim destruímos a opinião que destruía a do
povo.
Mas agora é preciso destruir esta última proposição e mostrar que
permanece sendo verdade que o povo é vão, ainda que suas opiniões
sejam sadias, porque ele não sente a verdade delas onde ela está e
porque, colocando-a onde ela não está, as suas opiniões são sempre
muito falsas e malsãs.

94 (313)
Opiniões do povo sadias.
O maior dos males é as guerras civis.
Elas são seguras se se quer recompensar os méritos, pois todos dirão
que merecem. O mal a temer de um tolo que sucede por direito de
nascença não é tão grande, nem tão certo.
95 (316)
Opiniões do povo sadias.
Ser bravo não é demasiado vão, pois é mostrar que grande número de
pessoas trabalha para si. É mostrar, pelos cabelos, que se tem um
camareiro, um perfumista etc., pelo peitilho, pelo fio, pela passamanaria
etc. Ora, não é uma simples superfície, nem um simples arnês possuir
vários braços.
Quanto mais braços se têm, mais se é forte. Ser bravo é mostrar a
própria força.

96 (329)
Razão dos efeitos.
A fraqueza do homem é a causa de tantas belezas que se
estabelecem, como saber tocar bem o alaúde só é um mal por causa da
nossa fraqueza.

97 (334)
Razão dos efeitos.
A concupiscência e a força são as fontes de todas as nossas ações. A
concupiscência faz as voluntárias; a força, as involuntárias.

98 (80)
De onde vem que um coxo não nos irrita e um espírito coxo nos
irrita? A causa é que um coxo reconhece que nós andamos direito e que
um espírito coxo diz que nós é que coxeamos. Não fosse isso, teríamos
dó deles e não raiva.
Epicteto diz com muito mais força: por que não nos zangamos
quando nos dizem que estamos com dor de cabeça, e nos zangamos por
nos dizerem que raciocinamos mal ou que escolhemos mal?
99 (80 e 536)
A causa disso é que temos certeza de que não estamos com dor de
cabeça, e de que não somos coxos, mas não temos tanta garantia de que
escolhemos o que é verdadeiro. De modo que, não tendo certeza senão
pelo fato de o vermos com toda a nossa vista, quando outro vê com toda
a sua vista o contrário, isso nos faz hesitar e nos espanta.
E ainda mais quando mil outros zombam da nossa escolha, pois
temos de preferir as nossas luzes às de tantos outros. E isso é ousado e
difícil. Nunca há essa contradição nos sentidos quando se trata de um
coxo.
O homem é feito de tal modo que, à força de lhe dizerem que é um
tolo, acaba acreditando. E à força de dizê- -lo a si mesmo, acaba ele
próprio acreditando, pois o homem mantém sozinho uma conversa
interior que importa regular. Corrumpunt bonos mores colloquia
prava21. É preciso ficar em silêncio tanto quanto se pode e só se entreter
com Deus, que se sabe ser a verdade, e assim a gente persuade-se a si
mesmo.

100 (467)
Razão dos efeitos.
Epicteto. Aqueles que dizem: estais com dor de cabeça, não é a
mesma coisa. Tem-se certeza quanto à saúde e não quanto à justiça, e
realmente a sua era uma insignificância.
E no entanto ele acreditava demonstrá-la dizendo estar em nosso
poder ou não.
Mas não percebia que não está em nosso poder regular o coração, e
estava errado em concluí-lo do fato de haver cristãos.

101 (324)
O povo tem as opiniões muito sãs. Por exemplo:
1. De ter escolhido o divertimento, e a caça de preferência à presa.
Os meio-sábios zombam disso e triunfam mostrando a esse respeito a
loucura do mundo, mas por uma razão que eles não penetram. Tem-se
razão:
2. De ter distinguido os homens pelo exterior, como pela nobreza ou
pelos bens. O mundo triunfa ainda mostrando quanto isso é
desarrazoado. Mas isso é muito razoável. Canibais se riem de uma
criança rei.
3. De ofender-se por ter recebido uma bofetada ou de tanto desejar a
glória, mas isso é muito desejável por causa dos outros bens essenciais
que vêm junto com ela. E um homem que recebeu uma bofetada sem
ficar sentido é cumulado de injúrias e de necessidades.
4. Trabalhar pelo incerto, ir pelo mar, caminhar sobre uma prancha.

102 (759)
(É preciso que ou os judeus ou os cristãos sejam maus.)

103 (298)
+ Justiça, força.
É justo que o que é justo seja seguido; é necessário que o que é o
mais forte seja seguido.
A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica.
A justiça sem força é contradita, porque sempre existem pessoas
más. A força sem a justiça é acusada. É preciso, pois, colocar juntas a
justiça e a força e, para isso, fazer com que aquilo que é justo seja forte
ou que o que é forte seja justo.
A justiça está sujeita à discussão. A força é bem reconhecível e sem
discussão. Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força
contradisse a justiça e disse que ela era injusta, e disse que era ela, a
força, que era justa.
E assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se
com que o que é forte fosse justo.

104 (322)
Como a nobreza é uma grande vantagem que, já aos 18 anos, coloca
um homem em circulação, conhecido e respeitado como outro só poderia
ter merecido aos 50 anos. São 30 anos ganhos sem trabalho.

VI. GRANDEZA

105 (342)
Se um animal fizesse por espírito aquilo que faz por instinto, e se
falasse pelo espírito aquilo que fala por instinto pela caça e para avisar
os seus semelhantes que a presa foi encontrada ou perdida, por certo
falaria também das coisas por que tem maior afeição, como para dizer:
roei esta corda que me está machucando e que eu não posso alcançar.

106 (403)
Grandeza.
As razões dos efeitos marcam a grandeza do homem, por ter retirado
da concupiscência uma tão bela ordem.

107 (343)
O bico do papagaio que ele limpa, ainda que esteja limpo.

108 (339 bis)


O que é que sente prazer em nós? Será a mão, o braço, a carne, o
sangue? Ver-se-á que é necessário que seja algo de imaterial.

109 (392)
Contra o pirronismo.
(É pois uma coisa estranha que não possamos definir essas coisas
sem as obscurecer. Falamos delas a toda hora.) Supomos que todos as
concebem da mesma maneira. Mas o supomos bem gratuitamente, pois
não temos nenhuma prova. Vejo que se aplicam essas palavras nas
mesmas oportunidades e, todas as vezes que dois homens veem um
corpo mudar de lugar, exprimem ambos a visão desse mesmo objeto
pela mesma palavra, dizendo, um e outro, que ele se moveu, e dessa
conformidade de aplicação se tira uma poderosa conjectura de uma
conformidade de ideia, mas isso não é absolutamente convincente da
última convicção, embora haja motivo para se apostar na afirmativa,
visto saber-se que se tiram muitas vezes as mesmas consequências de
suposições diferentes.
Isso basta para emaranhar pelo menos a matéria, não que isso apague
absolutamente a clareza natural que nos dá garantia dessas coisas. Os
acadêmicos teriam apostado, mas isso a empana e perturba os
dogmatistas, para a glória da cabala pirrônica que consiste nessa
ambiguidade ambígua, e em certa obscuridade duvidosa de que as nossas
dúvidas não podem tirar toda a clareza, nem as nossas luzes naturais
espantar todas as trevas.
[Verso 109-213] (a men)or coisa é desta natureza, Deus é o começo
e o fim. Ecl.)
1. A razão.
110 (282)
Conhecemos a verdade não apenas pela razão mas também pelo
coração. É desta última maneira que conhecemos os primeiros
princípios, e é em vão que o raciocínio, que não toma parte nisso, tenta
combatê-los. Os pirrônicos, que só têm isso como objeto, trabalham
inutilmente nesse sentido. Nós sabemos que não estamos sonhando. Por
maior que seja a impotência em que nos encontramos de prová-lo pela
razão, essa impotência outra coisa não conclui senão a fraqueza de nossa
razão, mas não a incerteza de todos os nossos conhecimentos, como
pretendem eles. Pois os conhecimentos dos primeiros princípios: espaço,
tempo, movimento, números, são tão firmes quanto qualquer daqueles
que os nossos raciocínios nos dão e é sobre esses conhecimentos do
coração e do instinto que é necessário que a razão se apoie e fundamente
todo o seu discurso. O coração sente que existem três dimensões no
espaço e que os números são infinitos, e a razão demonstra depois que
não existem dois números quadrados dos quais um seja o dobro do
outro. Os princípios se sentem, as proposições se concluem, e tudo com
certeza, embora por diferentes caminhos – e é tão inútil e tão ridículo a
razão pedir ao coração provas dos seus primeiros princípios por querer
consentir neles, quanto seria ridículo o coração pedir à razão um
sentimento em todas as proposições que ela demonstra por querer
recebê-las.
Essa impotência não deve servir portanto senão para humilhar a
razão – que gostaria de julgar de todas as coisas – mas não para
combater a nossa certeza. Como se só a razão fosse capaz de nos
instruir, prouvesse a Deus que, pelo contrário, jamais dela tivéssemos
necessidade e conhecêssemos todas as coisas por instinto e por
sentimento, mas a natureza recusou-nos esse bem; deu-nos, ao contrário,
só alguns poucos conhecimentos dessa ordem; todos os outros só podem
ser adquiridos pelo raciocínio.
E é por isso que aqueles a quem Deus deu a religião por sentimento
de coração são bem-aventurados e muito legitimamente persuadidos,
mas àqueles que não a têm, só podemos dá-la pelo raciocínio, esperando
que Deus lhas dê por sentimento de coração, sem o que a fé não é senão
humana e inútil para a salvação.

111 (339)
Posso até conceber um homem sem mãos, sem pés, sem cabeça, pois
é só a experiência que nos ensina que a cabeça é mais necessária do que
os pés. Mas não posso conceber um homem sem pensamento. Seria uma
pedra ou um bicho.

112 (344)
Instinto e razão, marcas de duas naturezas.

113 (348)
Caniço pensante.
Não é do espaço que devo procurar a minha dignidade, mas da
ordenação do meu pensamento. Não terei vantagem em possuir terras.
Pelo espaço, o universo me compreende e me engole como a um ponto:
pelo pensamento, eu o compreendo.

114 (397)
A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável; uma
árvore não se conhece miserável.
É então ser miserável conhecer(-se) miserável, mas é ser grande
conhecer que se é miserável.

115 (349)
Imaterialidade da alma.
Os filósofos que domaram as suas paixões, que matéria pôde fazê-lo?

116 (398)
Até mesmo essas misérias todas provam a sua grandeza. São
misérias de grande senhor. Misérias de um rei despossuído.

117 (409)
A grandeza do homem.
A grandeza do homem é tão visível que ela se extrai até mesmo de
sua miséria, pois aquilo que é natureza nos animais, chamamos miséria
no homem, e por aí reconhecemos que, sendo a sua natureza hoje
semelhante à dos animais, ele está decaído de uma natureza melhor que
lhe era própria anteriormente.
Pois quem se acha infeliz por não ser rei a não ser um rei
despossuído? Acaso achavam que Paulo Emílio era infeliz por não ser
cônsul? Pelo contrário, toda gente o julgava feliz por tê-lo sido, pois a
sua condição não era de sê- -lo sempre. Mas achavam Perseu tão infeliz
por não mais ser rei; é porque a sua condição era de sê-lo sempre que
achavam estranho que ele suportasse a vida. Quem se acha infeliz por
não ter senão uma boca e quem não se acharia infeliz por só ter um
olho? Talvez a gente nunca tenha pensado em afligir-se por não ter três
olhos, mas fica-se inconsolável se não se tiver nenhum.

118 (402)
Grandeza do homem em sua concupiscência mesmo, por ter sabido
retirar dela um regulamento admirável e por ter feito em consequência
um quadro de caridade.

VII. CONTRARIEDADES

119 (423)
Contrariedades. Depois de ter mostrado a baixeza e a grandeza do
homem. Que o homem agora se estime no seu justo valor. Ame-se, pois
há nele uma natureza capaz de bem; mas não ame por isso as baixezas
que nele estão. Despreze- se, porque essa capacidade é vazia; mas não
despreze por isso essa capacidade natural. Odeie-se, ame-se: tem em si a
capacidade de conhecer a verdade e de ser feliz; mas não tem verdade,
nem constante, nem satisfatória.
Quisera pois levar o homem a desejar encontrá-la, a estar pronto e
desembaraçado das paixões, para segui-la onde a encontrar, sabendo
quanto o seu conhecimento ficou obscurecido pelas paixões; bem
quisera que ele odiasse em si a concupiscência que o determina por si
mesma, a fim de que ela não o cegasse ao fazer ele suas escolhas e não o
detivesse quando tivesse escolhido.

120 (148)
Somos tão presunçosos que gostaríamos de ser conhecidos por toda a
terra e até por pessoas que virão quando não existirmos mais. E somos
tão vãos que a estima de 5 ou 6 pessoas que nos cercam nos distrai e nos
contenta.

121 (418)
É perigoso mostrar demais ao homem quanto ele é igual aos animais
sem lhe mostrar a sua grandeza. E é também perigoso mostrar-lhe
demais a sua grandeza sem a sua baixeza. É mais perigoso ainda deixá-
lo ignorar uma e outra coisas, mas é vantajosíssimo representar-lhe uma
e outra.
O homem não deve acreditar que é igual aos animais nem aos anjos,
nem ignorar uma e outra coisas, mas deve conhecer uma e outra.

122 (416)
A. P. R. Grandeza e Miséria.
Concluindo-se a miséria da grandeza e a grandeza da miséria, alguns
concluíram tanto mais a miséria quanto mais tomaram como prova a
grandeza, e outros concluíram a grandeza com tanto mais força quanto
mais a concluíram da miséria mesma. Tudo quanto alguns puderam dizer
para mostrar a grandeza não serviu senão como argumento para os
outros concluírem a miséria, pois tanto mais miserável se é quanto de
mais alto se caiu, e os outros ao contrário. Atiraram-se uns sobre os
outros num círculo sem fim, ficando certo que, à medida que os homens
têm luzes, encontram tanto grandeza quanto miséria no homem. Numa
palavra, o homem sabe que é miserável. Ele é pois miserável porque o é,
mas é bem grande porque o sabe.

123 (157)
Contradição, desprezo de nosso ser, morrer por nada, ódio de nosso
ser.

124 (125)
Contrariedades.
O homem é naturalmente crédulo, incrédulo, tímido, temerário.

125 (92)
Que são os nossos princípios naturais senão os nossos princípios
costumeiros? E nas crianças, aqueles que receberam do costume de seus
pais como a caça entre os animais.
Um costume diferente nos dará outros princípios naturais, isso se vê
por experiência; e, se há princípios que não se apagam diante do
costume, existem também outros do costume contra a natureza, que não
se apagam diante da natureza e diante de um segundo costume. Isso
depende da disposição.

126 (93)
Os pais temem que o amor natural dos filhos se apague. Que
natureza é essa então, sujeita a ser apagada?
O costume é uma segunda natureza que destrói a primeira. Mas o que
é natureza? Por que o costume não é natural? Temo muito que essa
mesma natureza não venha a ser um primeiro costume, como o costume
é uma segunda natureza.
127 (415)
Considera-se a natureza do homem de duas maneiras: uma segundo o
fim, e então ele é grande e incomparável; a outra segundo a
multiplicidade, como se julga a natureza do cavalo e do cachorro pela
multiplicidade, vendo neles a corrida et animum arcendi22, e então o
homem é abjeto e vil. E aí estão as duas vias que fazem ter dele
julgamentos diversos e que causam tanta disputa entre os filósofos.
Porque um nega a suposição do outro. Um diz: ele não nasceu para
este fim, pois todas as suas ações se opõem a ele; outro diz: ele se afasta
do fim quando pratica essas baixas ações.

128 (396)
Duas coisas instruem o homem sobre toda a sua natureza: o instinto e
a experiência.

129 (116)
Ofício. Pensamentos.
Tudo é uno, tudo é diverso.
Quantas naturezas na do homem! Quantas errâncias! E por que acaso
cada um toma, geralmente, aquilo que ouviu ser estimado. Salto bem
torneado.

130 (420)
Se ele se gaba, eu o rebaixo.
Se ele se rebaixa, eu o gabo.
E o contradigo sempre.
Até que ele compreenda
Que é um monstro incompreensível.

131 (434)
As principais forças dos pirrônicos, deixo de lado as menores,
provêm de que não temos nenhuma certeza da verdade desses princípios,
afora a fé e a revelação, senão (o fato de) que os sentimos naturalmente
em nós. Ora, esse sentimento natural não é uma prova convincente de
sua verdade, visto que, não tendo certeza afora a fé, se o homem foi
criado por um deus bom, por um demônio mau ou ao acaso, ele fica em
dúvida se esses princípios nos são dados ou como verdadeiros, ou como
falsos, ou como incertos segundo a nossa origem.
Além de que ninguém tem segurança – fora da fé – se está acordado
ou dormindo, visto que durante o sono acredita-se estar acordado com
tanta firmeza como quando o fazemos. Como muitas vezes se sonha que
se está sonhando, sobrepondo um sonho a outro. Não pode acontecer que
esta metade da vida seja ela própria apenas um sonho, sobre o qual os
outros são enxertados, e de que acordamos no momento da morte,
durante a qual temos tão pouco os princípios da verdade e do bem
quanto durante o sono natural? Todo esse escoar-se do tempo, da vida, e
esses diversos corpos que sentimos, esses diferentes pensamentos que
nos agitam não são talvez mais do que ilusões semelhantes ao escoar-se
do tempo e aos vãos fantasmas de nossos sonhos. Acredita-se ver os
espaços, as figuras, os movimentos, sente-se e mede-se o escoar do
tempo, e finalmente age-se da mesma forma que quando se está
acordado. De modo que, como a metade da vida se passa em sono, por
nossa própria confissão ou o que quer que nos pareça não temos
nenhuma ideia da verdade, sendo então ilusões todos os nossos
sentimentos. Quem sabe se essa outra metade da vida em que pensamos
estar acordados não é outro sono um pouco diferente do primeiro. (E
quem duvida sobre qual os nossos sonhos estão enxertados como nosso
sono parece – do qual acordamos quando pensamos estar dormindo – e
quem duvida de que se se sonhasse em companhia e por acaso os sonhos
concordassem, o que é – bastante – comum, e se estivesse acordado em
solidão, não se acreditaria estarem as coisas invertidas?)
Aí estão as principais forças de parte a parte, deixo de considerar as
menos importantes, como os discursos feitos pelos pirrônicos contra as
impressões do hábito, da educação, dos costumes dos países e outras
coisas semelhantes que, embora arrastem a maioria dos homens comuns
que só dogmatizam sobre esses vãos fundamentos, são derrubadas pelo
menor sopro dos pirrônicos. Basta olhar os seus livros; se não se estiver
bastante persuadido, bem depressa se ficará, e talvez demais.
Detenho-me no único ponto forte dos dogmatistas, que consiste em
que falando de boa-fé e sinceramente, não se poder duvidar dos
princípios naturais.
Contra o que os pirrônicos opõem, numa palavra, a incerteza de
nossa origem que inclui a de nossa natureza. Ao que os dogmatistas
ainda estão a responder desde que o mundo existe.
(Quem quiser se esclarecer mais longamente sobre o pirronismo
veja os seus livros. Ficará logo persuadido, e talvez demais.)
Eis a guerra aberta entre os homens, na qual é necessário que cada
um tome partido e se coloque necessariamente ou nas fileiras do
dogmatismo, ou nas do pirronismo. Porque quem pensar em permanecer
neutro será pirrônico por excelência. Essa neutralidade é a essência da
cabala. Quem não é contra eles é excelentemente a seu favor: no que
aparece a sua vantagem. Eles não são a favor de si próprios, são neutros,
indiferentes, suspensos a tudo sem excetuar-se a si mesmos.
Que fará então o homem nesse estado? Duvidará de tudo, duvidará
de que está desperto, de que o beliscam, de que o queimam, duvidará de
que duvida, de que existe.
Não se pode chegar a esse ponto, e considero de fato que nunca
houve pirrônico efetivo perfeito. A natureza dá apoio à razão impotente
e a impede de extraviar-se até esse ponto.
Dirá então ao contrário que possui de modo seguro a verdade, ele
que, por menos que o instiguem, não consegue apontar nenhuma razão
válida para isso e é forçado a desistir da ideia.
Que espécie de quimera é então o homem? Que novidade, que
monstro, que caos, que fonte de contradições, que prodígio? Juiz de
todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade, cloaca de
incerteza e de erro, glória e rebotalho do universo.
Quem deslindará esse emaranhado? (Isso ultrapassa por certo o
dogmatismo e o pirronismo, e toda a filosofia humana. O homem
ultrapassa o homem. Conceda-se pois aos pirrônicos aquilo que tanto
bradaram, que a verdade não é de nossa alçada, nem é caça ao nosso
alcance, que ela não mora na terra, que sua casa é o céu, que se
hospeda no seio de Deus, e que não se pode conhecê-la senão à medida
que lhe apraz no-la revelar. Aprendamos pois com a verdade incriada e
encarnada a nossa verdadeira natureza.
Não se pode evitar, buscando a verdade pela razão, uma dessas três
seitas – Não se pode ser pirrônico nem acadêmico sem sufocar a
natureza; não se pode ser dogmatista sem renunciar à razão).
A natureza confunde os pirrônicos (e os acadêmicos) e a razão
confunde os dogmáticos. Que vos tornareis então, ó homem que buscais
qual é a vossa verdadeira condição por vossa razão natural? Não podeis
fugir de uma dessas (três) seitas nem subsistir em nenhuma delas.
Conhecei, pois, soberbo, que paradoxo sois para vós mesmo.
Humilhai-vos, razão impotente! Calai-vos, natureza imbecil; aprendei
que o homem ultrapassa infinitamente o homem e ouvi de vosso senhor
vossa condição verdadeira que ignorais.
Escutai a Deus.
(Não é claro como o dia, portanto, que a condição do homem é
dúplice?) Porque afinal, se o homem nunca tivesse sido corrompido,
gozaria, em sua inocência, tanto da verdade como da felicidade com
segurança. E, se o homem nunca tivesse sido senão corrompido, não
teria nenhuma ideia da verdade, nem da beatitude. Mas desgraçados que
somos, e mais do que se não houvesse grandeza em nossa condição,
temos uma ideia da felicidade e não podemos chegar a ela. Sentimos
uma imagem da verdade e não possuímos senão a mentira. Incapazes de
ignorar de modo absoluto e de saber de modo certo, tão manifesto está
que já estivemos num grau de perfeição do qual infelizmente decaímos.
(Concebamos pois que a natureza do homem é dúplice.)
(Concebamos pois que o homem ultrapassa infinitamente o homem e
que ele era inconcebível para si mesmo sem o auxílio da fé. Pois quem
não vê que sem o conhecimento dessa dupla condição da natureza
estava o homem numa ignorância invencível da verdade de sua própria
natureza?)
Coisa espantosa, entretanto, é que o mistério mais distante do nosso
conhecimento, que é o da transmissão do pecado, seja algo sem o que
não podemos ter nenhum conhecimento de nós mesmos.
Pois não há dúvida de que nada existe que choque mais a nossa razão
do que dizer que o pecado do primeiro homem tenha tornado culpados
aqueles que, estando tão afastados dessa origem, parecem incapazes de
dele participar. Tal decorrência não nos parece apenas impossível.
Parece-nos mesmo muito injusta, pois existe acaso algo mais contrário
às regras da nossa miserável justiça do que condenar eternamente uma
criança incapaz de vontade por causa de um pecado de que parece ter
participado tão pouco, cometido que foi seis mil anos antes que ela
viesse a ser. Nada por certo nos choca mais rudemente do que essa
doutrina. E no entanto, sem esse mistério, o mais incompreensível de
todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. O enredamento de nossa
condição assume as suas implicações e formas nesse abismo. De
maneira que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse
mistério é inconcebível para o homem.
(De onde parece que Deus, querendo tornar a dificuldade de nosso
ser ininteligível para nós, escondeu o seu enredamento tão alto, ou,
melhor dizendo, tão baixo que fôssemos totalmente incapazes de atingi-
lo. De maneira que não é pelas soberbas agitações de nossa razão, mas
pela simples submissão da razão que podemos verdadeiramente nos
conhecer.)
(Esses fundamentos solidamente estabelecidos sobre a autoridade
inviolável da religião dão-nos a conhecer que há duas verdades de fé
igualmente constantes.
Uma, que o homem no estado da criação, ou no da graça, é elevado
acima de toda a natureza, torna-se como que semelhante a Deus e
participante da divindade. Outra, que no estado da corrupção e do
pecado, decaiu desse estado e se tornou semelhante aos bichos. Essas
duas proposições são igualmente sólidas e certas.
As Escrituras no-las declaram manifestamente quando dizem em
algumas passagens – deliciae meae esse cum filiis hominum – effundam
spiritum meum super omnem carnem etc. – dii estis23. E quando dizem
em outras: omnis caro foenum, homo assimilatus est jumentis
insipientibus et similis factus est illis, dixi in corde meo de filiis
hominum24 – Eccle. 3 –
Por essas passagens fica claro que o homem pela graça torna-se
como semelhante a Deus e participante de sua divindade e que sem a
graça é considerado como semelhante aos animais irracionais.)

VIII. DIVERTIMENTO
132 (170)
Divertimento – Se o homem fosse feliz, tanto mais o seria quanto
menos se divertisse, como os santos e Deus. Sim; mas não é estar feliz
poder alegrar-se pelo divertimento?
– Não, porque ele vem de outra parte e de fora; e assim é dependente
e, por toda parte, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que fazem as
aflições inevitáveis.

133 (169)
Divertimento.
Não tendo os homens podido curar a morte, a miséria, a ignorância,
resolveram, para ficar felizes, não mais pensar nisso.

134 (168)
Não obstante essas misérias, ele quer ser feliz e nada mais quer do
que ser feliz, e não pode não querer sê-lo.
Mas que fará para isso? Seria preciso, para conseguir, que se tornasse
imortal, mas, não podendo, resolveu evitar pensar nisso.

135 (469)
Eu sinto que posso não ter sido, pois o eu consiste no meu
pensamento; portanto, eu que penso não teria sido se minha mãe tivesse
sido morta antes que eu tivesse sido animado, portanto, não sou um ser
necessário. Não sou tampouco eterno nem infinito, mas vejo bem que há
na natureza um ser necessário, eterno e infinito.

136 (139)
Divertimento.
Quando às vezes me pus a considerar as diversas agitações dos
homens, e os perigos, e as penas a que se expõem na Corte, na guerra de
onde nascem tantas desavenças, paixões, ações ousadas e muitas vezes
maldosas etc., repeti com frequência que toda a infelicidade dos homens
provém de uma só coisa: de não saber ficar quieto num quarto. Um
homem que possui bens suficientes para viver, se soubesse ficar em casa
com prazer, não sairia para ir pelo mar ou ao banco de uma praça; não se
pagaria tão caro por uma patente no exército a não ser que se achasse
insuportável não sair da cidade, e não se buscam as conversações e os
divertimentos dos jogos a não ser que não se tenha prazer em ficar em
casa. Etc.
Mas, quando considerei de mais perto e, depois de ter encontrado a
causa de todos os nossos infortúnios, quis descobrir-lhes as razões,
encontrei que existe uma realmente efetiva que consiste na infelicidade
natural de nossa condição fraca e mortal, e tão miserável que nada nos
pode consolar quando a consideramos de perto.
Seja qual for a condição que se imagine, se se juntarem todos os bens
que nos podem pertencer, a realeza é a mais bela posição do mundo e,
no entanto, imagine-se o rei, acompanhado de todas as satisfações que
podem caber-lhe, se estiver sem divertimento e se o deixarmos
considerar e refletir sobre aquilo que ele é – essa felicidade lânguida não
o sustentará –, cederá necessariamente às circunstâncias que o ameaçam,
revoltas que podem acontecer e finalmente a morte e doenças que são
inevitáveis, de modo que fica, sem aquilo a que se chama divertimento,
infeliz, e mais infeliz do que o menor de seus súditos que joga e se
diverte.
(O único bem dos homens consiste, pois, em divertir, o pensamento
de sua condição, ou por uma ocupação que dele os desvie, ou por
alguma paixão agradável e nova que os ocupe, ou pelo jogo, a caça,
algum espetáculo atraente e finalmente por aquilo a que se chama
divertimento.)
Daí vem que o jogo e o entretenimento com mulheres, a guerra, os
grandes empregos sejam tão procurados. Não é que neles haja realmente
felicidade, nem que imaginemos que a verdadeira beatitude consista em
se ter o dinheiro que se pode ganhar no jogo, ou na lebre que se
persegue; não se quereria nada disso se fosse dado de mão beijada. Não
é esse uso mole e sossegado que nos deixa pensar em nossa infeliz
condição que se busca, nem os perigos da guerra, nem o trabalho dos
empregos, mas sim a lufa-lufa que nos desvia de pensar nela e nos
diverte. Razão pela qual se gosta mais da caçada do que da presa.
Daí vem que os homens gostem tanto do barulho e do movimento.
Daí vem que a prisão seja um suplício tão horrível; daí vem que o prazer
da solidão seja uma coisa incompreensível. E é finalmente o maior
motivo de felicidade da condição dos reis, pelo fato de que sem cessar
procura-se diverti-los e proporcionar-lhes toda espécie de prazeres. O rei
está cercado de pessoas que só pensam em diverti-lo e impedi-lo de
pensar em si mesmo. Porque ele fica infeliz, embora seja rei, se pensar
em si.
Eis tudo que os homens puderam inventar para se tornar felizes, e
aqueles que, a respeito disso, bancam os filósofos e acreditam que o
mundo é bem pouco razoável se passa o dia a correr atrás de uma lebre
que não gostariam de ter comprado, não conhecem nada da nossa
natureza. Essa lebre não nos garantiria contra a visão da morte e das
misérias que nos desviam dela, mas a caça sim, nos garante. E assim, o
conselho que se dava a Pirro de assumir o descanso que ia buscar por
tantas fadigas encontrava muitas dificuldades.
(Dizer a um homem que fique em repouso, é dizer-lhe que viva feliz.
É aconselhar-lhe A.
A. ter uma condição totalmente feliz e que possa considerar com
calma, sem nela encontrar motivo de aflição. (– Não é pois ouvir a
natureza.)
Assim os homens que sentem naturalmente a sua condição não
evitam nada tanto quanto evitam o repouso; nada há que não façam
para buscar a agitação.
Assim tem-se dificuldade em recriminá-los; o seu erro não está em
buscarem o tumulto. Se não o buscassem senão como divertimento, mas
o mal está em que eles o buscam como se a posse das coisas que buscam
devesse fazê-los verdadeiramente felizes, e é aí que se tem razão de
acusar a sua busca de vaidade, de maneira que, em tudo isso, tanto
aqueles que recriminam como aqueles que são recriminados não ouvem
a verdadeira natureza do homem.) E assim, quando os censuram porque
aquilo que buscam com tanto ardor não seria capaz de satisfazê-los, se
respondessem, como deveriam fazer se refletissem um pouco, que não
buscam nisso senão uma ocupação violenta e impetuosa que os desvie de
pensar em si e que é por isso que se propõem um objeto atraente que os
encante e os atraia com ardor, deixariam os seus adversários sem
réplica… – A vaidade, o prazer de mostrá-la aos outros. – A dança, é
preciso evidentemente pensar onde se vai colocar os pés – mas eles não
respondem isso porque não conhecem a si mesmos. Não sabem que é só
a caçada e não a presa que eles buscam. – O fidalgo acredita
sinceramente que a caça é um prazer grande e um prazer real, mas o
criado que conduz os cães não é da mesma opinião. – Eles imaginam
que se tivessem obtido essa presa, descansariam depois com prazer e não
sentem a natureza insaciável da cupidez. Acreditam estar buscando
sinceramente o repouso e não buscam de fato senão a agitação.
Eles têm um instinto secreto que os faz buscar o divertimento e a
ocupação exterior, que vem do sentimento de suas misérias contínuas. E
têm um outro instinto secreto que restou da grandeza de nossa natureza
primeira, que os faz conhecer que a felicidade não está de fato senão no
repouso e não no tumulto. E desses dois instintos contrários forma-se
neles um projeto confuso que se esconde da sua vista no fundo da alma
que os leva a tender para o repouso pela agitação e a imaginar sempre
que a satisfação que não possuem lhes virá se, superando algumas
dificuldades com que se defrontam, puderem abrir para si a porta do
repouso.
Assim se escoa toda a vida; procura-se o repouso combatendo alguns
obstáculos e, se eles forem superados, o repouso se torna insuportável
pelo tédio que gera. Faz-se necessário sair e mendigar o tumulto.
Porque ou se pensa nas misérias que se têm ou naquelas que nos
ameaçam. E ainda quando se estivesse bastante protegido por todo lado,
o tédio, com sua autoridade própria, não deixaria de sair do fundo do
coração onde tem raízes naturais e de encher o espírito com o seu
veneno. B.
B. Assim o homem é tão infeliz que se entediaria mesmo sem
nenhum motivo de tédio, pelo estado próprio de sua compleição. E ele é
tão leviano que, estando cheio de mil causas essenciais de tédio, a
mínima coisa como um bilhar e uma bola que ele toca basta para diverti-
lo.
C. Mas diríeis: Que objetivo tem ele em tudo isso? O de se gabar
amanhã entre os amigos por ter jogado melhor que outro. Da mesma
forma outros suam em seu gabinete para mostrar aos sábios que
resolveram uma questão de álgebra cuja solução ainda não se tinha
podido encontrar; e tantos outros se expõem aos maiores perigos para se
vangloriar depois de uma praça que tomaram tão estupidamente, a meu
ver. E finalmente outros se matam para aprender todas essas coisas, não
para se tornarem mais sábios, mas tão somente para mostrar que as
sabem, e esses são os mais tolos do bando, pois que o são com
conhecimento, ao passo que se pode pensar dos demais que não o seriam
se tivessem esse conhecimento.
Tal homem passa a vida sem tédio jogando todos os dias coisa de
pouca monta. Dai-lhe todas as manhãs o dinheiro que ele pode ganhar a
cada dia, sob a condição de ele não jogar, ireis torná-lo infeliz. Dir-se-á
talvez que o que ele busca é a brincadeira do jogo e não o ganho. Fazei
então com que não jogue a dinheiro: ele não se animará e se aborrecerá.
Não é então só a diversão que ele busca. Uma diversão desanimada e
sem paixão o entediará. Ele precisa se animar e criar um engodo para si
mesmo imaginando que seria feliz ganhando aquilo que não quereria que
lhe fosse dado sob a condição de não jogar, a fim de que forme para si
um motivo de paixão e que excite com isso o seu desejo, a sua cólera, o
temor por esse objeto que formou para si como as crianças se apavoram
vendo a cara que lambuzaram de tinta.
De onde vem que esse homem que perdeu há poucos meses o filho
único e que, cheio de processos e de pendengas, estava tão perturbado
esta manhã, já não pensa mais em nada disso agora? Não vos espanteis,
ele está ocupadíssimo a olhar por onde passará esse javali que os cães
estão perseguindo com tanto ardor há seis horas. Não é preciso mais do
que isso. O homem, por mais cheio de tristeza que esteja, se se puder
convencê-lo a entrar em alguma diversão, ei-lo feliz durante esse tempo;
e o homem, por mais feliz que seja, se não for divertido e ocupado com
alguma paixão ou distração que impeça o tédio de se expandir, logo
estará acabrunhado e infeliz. Sem o divertimento não há alegria; com o
divertimento não há tristeza. E é também isso que compõe a felicidade
das pessoas. D.
D. de alta condição que têm um grande número de pessoas que os
divertem e que têm o poder de se manter nesse estado.
Prestai atenção, que outra coisa não é ser superintendente, chanceler,
primeiro presidente, senão estar numa condição em que se tem já pela
manhã um grande número de pessoas que chegam de todos os lados para
não lhes deixar nenhuma hora do dia em que possam pensar em si
mesmos, e quando caem em desgraça e os mandam para as suas casas de
campo onde não lhes faltam nem bens nem criados para assisti-los em
suas necessidades, não deixam de ser miseráveis e abandonados porque
ninguém os impede de pensar em si mesmos.

137 (142)
Divertimento.
Não é bastante grande a dignidade real em si mesma para aquele que
a possui para torná-lo feliz pela simples visão daquilo que ele é? Será
preciso diverti-lo desse pensamento como ao comum dos homens? Bem
vejo que é tornar um homem feliz diverti-lo da visão de suas misérias
domésticas para preencher todo o seu pensamento com o cuidado de
dançar bem; mas será a mesma coisa com relação a um rei e será ele
mais feliz prendendo-se a esses vãos divertimentos do que contemplando
a sua própria grandeza? E que objeto mais satisfatório se poderia dar ao
seu espírito? Não seria então prejudicar a sua alegria fazer com que ele
ocupe a sua alma pensando em ajustar os passos à cadência de uma ária
ou em alcançar habilmente uma barra, em vez de deixá-lo gozar em
repouso da contemplação da glória majestosa que o circunda? Submeta-
se isso à prova, deixe-se um rei a sós, sem nenhuma satisfação dos
sentidos, sem nenhuma preocupação no espírito, sem companhias e sem
divertimentos, pensar em si totalmente à vontade, e ver-se-á que um rei
sem divertimento é um homem cheio de misérias. Assim, evita-se isso
cuidadosamente e nunca falta ao redor da pessoa do rei muita gente que
cuida de fazer com que o divertimento suceda aos negócios e que fica a
observar todo o seu tempo de ócio para fornecer-lhe prazeres e jogos de
modo que não haja nenhum vazio. Quer dizer que eles são cercados de
pessoas que têm um maravilhoso cuidado para evitar que o rei fique
sozinho e em estado de pensar em si, sabendo perfeitamente que ele
ficará miserável, muito embora seja rei, se pensar em si.
Não falo em tudo isso dos reis cristãos como cristãos, mas somente
como reis.

138 (166)
Divertimento.
A morte é mais fácil de suportar sem pensar nela do que o
pensamento da morte sem perigo.

139 (143)
Divertimento.
Sobrecarregam os homens desde a infância com o cuidado de sua
honra, dos bens, dos amigos, e ainda dos bens e da honra dos amigos;
cumulam-nos de afazeres, do aprendizado das línguas e de exercícios e
se lhes dá a entender que não conseguiriam ser felizes sem que a sua
saúde, honra e fortuna, e as de seus amigos estivessem em bom estado, e
que a falta de uma única coisa dessas os tornará infelizes. Assim, são-
lhes dados encargos e afazeres que os fazem quebrar a cabeça desde o
raiar do dia. Aí está, direis, uma estranha maneira de torná-los felizes;
que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? Como, o que se
poderia fazer? Bastaria retirar-lhes todas essas preocupações, porque
então eles se veriam, pensariam naquilo que são, de onde vêm, para onde
vão, e assim nunca é demais ocupá-los e desviá-los disso. E eis por que,
depois de preparar-lhes tantos afazeres, se ainda tiverem algum tempo
livre, aconselha-se que o empreguem em se divertir, e jogar, e ocupar-se
sempre por inteiro.
Como o coração do homem é oco e cheio de lixo.

IX. FILÓSOFOS

140 (466)
Ainda que Epicteto tivesse visto perfeitamente bem o caminho, ele
diz aos homens: estais seguindo um falso. Mostra que existe outro, mas
não conduz a ele. É aquele de querer o que Deus quer. Só Jesus Cristo
leva a esse caminho. Via veritas25.
Os vícios do próprio Zenão.

141 (509)
Filósofos.
Bela coisa gritar para um homem que não se conhece a si mesmo que
vá por si próprio a Deus. E bela coisa dizê-lo a um homem que se
conhece.

142 (463)
(Contra os filósofos que têm Deus sem Jesus Cristo.) Filósofos.
Eles acreditam que só Deus é digno de ser amado e de ser admirado,
e desejaram ser amados e admirados pelos homens, e não conhecem a
sua corrupção. Se se sentem cheios de sentimentos para amá-lo e adorá-
lo, e se nisso encontram a sua principal alegria, se estimam que são
bons, tanto melhor! Mas se isso os repugna, se não (têm) outro
pensamento que não seja querer estabelecer-se na estima dos homens, e
se por toda perfeição, façam apenas com que, sem forçar os homens,
estes ponham a sua felicidade em amá-los, direi que essa perfeição é
horrível. Como, eles conheceram a Deus e não desejaram unicamente
que os homens o amassem, (mas sim) que os homens parassem neles.
Quiseram ser o objeto da felicidade voluntária dos homens.

143 (464)
Filósofos.
Estamos cheios de coisas que nos projetam para fora.
O nosso instinto faz-nos sentir que é preciso buscar a nossa
felicidade fora de nós. As nossas paixões nos empurram para fora,
mesmo quando os objetos não se oferecessem para excitá-las. Os objetos
exteriores nos tentam por si mesmos e exercem um apelo sobre nós,
ainda que não pensemos neles. E assim não adianta os filósofos dizerem:
entrai dentro de vós mesmos, aí encontrareis o vosso bem; não se
acredita neles, e aqueles que acreditam são os mais vazios e os mais
tolos.

144 (360)
Aquilo que os estóicos propõem é tão difícil e tão vão.

Os estóicos colocam: todos aqueles que não estão no mais alto grau
de sabedoria são igualmente loucos, e viciosos, como aqueles que estão
a dois dedos debaixo da água.

145 (461)
As 3 concupiscências fizeram três seitas e os filósofos não fizeram
mais do que seguir uma das três concupiscências.
146 (350)
Estóicos.
Eles concluem que sempre se pode o que se pode às vezes e que,
visto que o desejo da glória faz com que aqueles a quem domina façam
bem alguma coisa, os outros também poderão fazê-lo.
São movimentos febris que a saúde não pode imitar.
Epicteto conclui do fato de haver cristãos constantes que todos o
podem ser.

X. O SOBERANO BEM

147 (361)
O Soberano Bem. Disputa do Soberano Bem.
Ut sis contentus temetipso et ex te nascentibus bonis26.
Há uma contradição, pois eles aconselham finalmente que cada um
se mate.
Oh! que vida feliz essa de que a gente se livra como da peste!

148 (425)
Segunda parte.
Que o homem sem a fé não pode conhecer o verdadeiro bem, nem a
justiça.
Todos os homens procuram ser felizes. Isso não tem exceção, por
mais diferentes que sejam os meios empregados. Todos tendem para
esse fim. O que faz com que uns vão para a guerra e que outros não vão
é esse mesmo desejo que está em ambos acompanhado de diferentes
visões. A vontade nunca faz o menor movimento que não seja em
direção desse objetivo. É o motivo de todas as ações de todos os
homens, até daqueles que vão se enforcar.
E, no entanto, há tantos e tantos anos, ninguém, sem a fé, chegou a
esse ponto a que todos continuamente visam. Todos se queixam,
príncipes, súditos, nobres, plebeus, velhos, moços, fortes, fracos, sábios,
ignorantes, sãos, doentes de todos os países, de todos os tempos, de
todas as idades e de todas as condições.
Uma prova tão longa, tão contínua e tão uniforme deveria por certo
nos convencer de nossa impotência para chegar ao bem por nossos
próprios esforços. Mas o exemplo pouco nos instrui. Ele nunca é tão
perfeitamente semelhante que não haja alguma delicada diferença e é por
isso que nós esperamos que nossa expectativa não seja frustrada nesta
ocasião como na outra, e assim, como o presente nunca nos satisfaz, a
experiência nos engana e, de desgraça em desgraça, leva-nos até a morte,
que é seu arremate eterno.
Que nos brada pois essa avidez e essa impotência senão que houve
outrora no homem uma felicidade verdadeira, da qual só lhe resta agora
a marca e o vestígio totalmente vazio que ele inutilmente tenta preencher
com tudo aquilo que o cerca, procurando nas coisas ausentes o socorro
que não encontra nas presentes, mas que são todas incapazes de fazê-lo
porque esse abismo infinito não pode ser preenchido senão por um
objeto infinito e imutável, isto é, por Deus mesmo?
Só ele é o seu verdadeiro bem. E desde que o abandonou, é uma
coisa estranha que nada exista na natureza que seja capaz de ocupar o
seu lugar, astros, céu, terra, elementos, plantas, repolhos, alhos-porós,
animais, insetos, novilhos, cobras, febre, peste, guerra, fome, vícios,
adultério, incesto. E, desde que perdeu o verdadeiro bem, tudo pode
igualmente lhe parecer tal, até a sua própria destruição, embora tão
contrária a Deus, à razão e à natureza juntos.
Uns o buscam na autoridade, outros nas curiosidades e nas ciências,
outros nos atos de volúpia.
Outros que de fato dele se aproximaram mais consideraram que é
necessário que esse bem universal que todos os homens desejam não
esteja em nenhuma das coisas particulares que não podem ser possuídas
senão por um só e que, sendo repartidas, afligem mais os seus
possuidores pela falta da parte que não têm, do que os contentam pelo
desfrute da que lhes pertence. Eles compreenderam que o verdadeiro
bem devia ser tal que todos pudessem possuí-lo ao mesmo tempo sem
diminuição e sem inveja, e que ninguém o pudesse perder contra a sua
vontade, e a razão deles é que, sendo esse desejo natural ao homem, pois
que está necessariamente em todos e que não podem deixar de tê-lo, daí
concluem…

XI. A. P. R.

149 (430)
A. P. R.27 começo, depois de ter explicado a incompreensibilidade.
As grandezas e as misérias do homem são tão visíveis que é
absolutamente necessário que a verdadeira religião nos ensine tanto que
existe algum grande princípio de grandeza no homem como também que
há nele um grande princípio de miséria.
É também necessário que ela nos explique a razão dessas espantosas
contrariedades.
É necessário que, para tornar o homem feliz, ela lhe mostre que há
um Deus, a quem somos obrigados a amar, que a nossa verdadeira
felicidade está em estar nele, e o nosso único mal consiste em estar
separado dele, que ela reconheça que somos cheios de trevas que nos
impedem de conhecê-lo e de amá-lo, e que assim, obrigando-nos os
nossos deveres a amar a Deus e disso nos desviando as nossas
concupiscências, estamos cheios de injustiça. É necessário que ela nos
dê as razões dessas oposições que temos com relação a Deus e nosso
próprio bem. É necessário que nos ensine os remédios para essas
impotências e os meios de obter esses remédios. Examinem-se a esse
respeito todas as religiões do mundo e veja-se se existe alguma outra,
fora a cristã, que a isso satisfaça.
São acaso os filósofos que nos propõem como único bem os bens
que estão em nós? Encontraram eles o remédio para os nossos males?
Seria ter curado a presunção do homem tê-lo colocado em pé de
igualdade com Deus? Aqueles que nos igualaram aos animais e os
maometanos que nos deram os prazeres da terra como único bem,
mesmo na eternidade, acaso nos trouxeram o remédio para as nossas
concupiscências?
Que religião nos ensinará então a curar o orgulho e a
concupiscência? Que religião enfim nos ensinará o nosso bem, os nossos
deveres, as fraquezas que deles nos desencaminham, a causa dessas
fraquezas, os remédios que podem curá-las e o meio de obter esses
remédios? Todas as outras religiões não puderam fazê-lo. Vejamos o que
fará a sabedoria de Deus.
Não espereis, diz ela, ó homens, nem verdade, nem consolação dos
homens. Eu sou aquela que vos formou e a única que pode ensinar-vos
quem vós sois.
Mas já não estais mais agora no estado em que vos criei. Criei o
homem santo, inocente, perfeito, cumulei-o de luz e de inteligência,
comuniquei-lhe a minha glória e as minhas maravilhas. O olho do
homem via então a majestade de Deus. Não estava então nas trevas que
o cegam nem na mortalidade e nas misérias que o afligem.
Mas ele não pôde carregar tanta glória sem cair na presunção. Quis
tornar-se centro de si mesmo e independente de meu socorro. Subtraiu-
se à minha dominação e, igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a
felicidade em si mesmo, eu o abandonei a si, e fazendo revoltar-se as
criaturas que lhe estavam submissas, tornei-as inimigas dele, de maneira
que hoje o homem se tornou semelhante aos animais, e em tamanho
afastamento de mim que mal lhe resta uma luz confusa de seu autor, de
tanto que foram apagados ou perturbados todos os seus conhecimentos.
Os sentidos independentes da razão e muitas vezes senhores da razão
levaram-no à busca dos prazeres. Todas as criaturas ou o afligem ou o
tentam, e têm domínio sobre ele, quer submetendo-o pela força, quer
encantando-o com sua doçura, o que é um domínio ainda mais terrível e
mais injurioso.
Eis aí o estado em que os homens estão hoje. Restalhes um vago
instinto impotente da felicidade da sua primeira natureza, e estão
mergulhados nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, que
se tornou a sua segunda natureza.
A partir deste princípio que vos abro podeis reconhecer a causa de
tantas contrariedades que causaram espanto a todos os homens e que os
repartiram em tão diversos sentimentos. Observai agora todos os
movimentos de grandeza e de glória que a prova de tantas misérias não
pode abafar e vede se não é necessário que a causa disso esteja em outra
natureza.
A. P. R. Para amanhã. Prosopopeia.
É em vão, ó homens, que buscais em vós mesmos os remédios para
vossas misérias. Todas as vossas luzes não podem levar a outra coisa
que não seja conhecer que não é em vós mesmos que encontrareis a
verdade nem o bem.
Os filósofos vo-lo prometeram e não puderam fazê-lo.
Eles não sabem nem qual é o vosso verdadeiro bem, nem qual é (o
vosso verdadeiro estado).
Como teriam dado remédios para vossos males que nem sequer
conheceram. As vossas doenças principais são o orgulho que vos subtrai
de Deus, a concupiscência que vos prende à terra; e outra coisa não
fizeram senão fomentar pelo menos uma dessas duas doenças. Se eles
vos deram Deus por objeto, foi só para excitar a vossa soberba; fizeram-
vos acreditar que éreis semelhantes e conformes a ele por vossa
natureza. E aqueles que viram a vaidade dessa pretensão vos lançaram
noutro precipício, dando-vos a entender que a vossa natureza era igual à
dos bichos e vos levaram a buscar o vosso bem nas concupiscências que
são o quinhão dos animais.
Não é esse o meio de curar-vos de vossas injustiças que esses sábios
não conheceram. Só eu posso fazer-vos conhecer quem sois, aquilo…
(Não peço de vossa parte um crédito cego.)

Adão, Jesus Cristo.

Se vos unem a Deus, é por graça, não por natureza.

Se vos rebaixam, é por penitência, não por natureza.

Assim essa dupla capacidade.

Não estais no estado de vossa criação.

Estando esses dois estados patentes, é impossível que não os


reconheçais.
Segui os vossos movimentos. Observai a vós mesmos e vede se não
encontrareis aí os caracteres vivos dessas duas naturezas.

Encontrar-se-iam tantas contradições num sujeito simples?

Incompreensível.
Tudo que é incompreensível não deixa de ser. O número infinito, um
espaço infinito igual ao finito.
Inacreditável que Deus se una a nós.
Essa consideração só é tirada da vista de nossa baixeza, mas se a
tendes bem sincera, acompanhai-a tão longe quanto eu e reconhecei que
somos de fato tão baixos que por nós mesmos somos incapazes de saber
se a sua misericórdia não nos pode tornar capazes dele. Porque eu
quisera saber de onde esse animal que se reconhece tão fraco tira o
direito de medir a misericórdia de Deus e colocar-lhe os limites que a
sua fantasia lhe sugere. Ele sabe tão pouco o que Deus é, que nem sabe o
que ele próprio é. E completamente perturbado pela visão de seu próprio
estado, ousa dizer que Deus não pode torná-lo capaz de sua
comunicação. Mas eu quisera perguntar-lhe se Deus pede outra coisa
dele a não ser que o ame e conheça, e por que ele acha que Deus não
pode se tornar cognoscível e amável a ele, já que é naturalmente capaz
de amor e de conhecimento. Não há dúvida de que sabe pelo menos que
ele é e que ama alguma coisa. Portanto, se ele vê alguma coisa nas trevas
onde está e se encontra algum motivo de amor entre as coisas da terra,
por que, se Deus lhe desvenda algum raio de sua essência, não será ele
capaz de conhecê-lo e amá-lo da maneira que lhe aprouver comunicar-se
a nós? Há pois, aparentemente, uma presunção insuportável nesses tipos
de raciocínios, embora pareçam baseados numa humildade aparente, que
não é nem sincera nem razoável se não nos faz confessar que, não
sabendo por nós mesmos quem somos, não podemos sabê-lo senão por
Deus.
Não acho que devais submeter vosso crédito a mim sem razão, nem
pretendo submeter-vos de modo tirânico. Não pretendo tampouco
mostrar-vos as razões de todas as coisas. E para conciliar essas
contrariedades tenho a intenção de fazer-vos ver claramente, mediante
provas convincentes, marcas divinas em mim que vos convençam do que
eu sou e conseguir para mim autoridade mediante maravilhas e provas
que não possais recusar e que em seguida creiais nas coisas que vos
ensino quando nelas não encontrardes outro motivo de recusa senão que
não podeis por vós mesmos conhecer se elas são ou não.
Deus quis resgatar os homens e abrir a salvação para aqueles que a
buscassem, mas os homens tornam-se tão indignos dela, que é justo que
Deus recuse a alguns, por causa do endurecimento deles, aquilo que
concede aos outros por uma misericórdia que não lhes é devida.
Se ele quisesse vencer a obstinação dos mais empedernidos, teria
podido, desvendando-se tão manifestamente a eles que não pudessem
duvidar da verdade de sua essência como ele aparecerá no último dia
com tal esplendor de raios e tal subversão da natureza que os mortos
ressuscitarão e os mais cegos o verão. Não foi dessa maneira que ele
quis aparecer em sua vinda de suavidade, porque tornando-se tantos
homens indignos de sua clemência, quis deixá-los na privação do bem
que eles não querem. Não era pois justo que ele aparecesse de maneira
manifestamente divina e absolutamente capaz de convencer todos os
homens, mas não era tampouco justo que viesse de maneira tão
escondida que não pudesse ser reconhecido por aqueles que o buscavam
sinceramente. Quis tornar-se perfeitamente cognoscível para esses, e
assim, querendo mostrar-se abertamente aos que o buscam de todo o
coração, e velar-se aos que fogem dele de todo o coração, ele temperou.

A. P. R. para Amanhã. 2.
temperou o seu conhecimento de modo que deu marcas de si visíveis
para os que o buscam e não para os que não o buscam.
Há bastante luz para aqueles que não desejam senão ver e bastante
obscuridade para aqueles que têm uma disposição contrária.

XII. COMEÇO

150 (226)
Os ímpios, que fazem profissão de seguir a razão, devem ser
estranhamente fortes em razão. O que dizem eles então?
Não vemos, dizem, morrer e viver os bichos como os homens, e os
turcos como os cristãos? Eles têm as suas cerimônias, seus profetas, seus
doutores, seus santos, seus religiosos como nós etc.
É isso contrário às Escrituras? Não dizem elas tudo isso?
Se não estais muito preocupados com saber a verdade, já tendes aí o
bastante para ficar sossegado. Mas se desejais de todo o coração
conhecê-la, isso não está suficientemente examinado em seus
pormenores. Seria suficiente para uma questão de filosofia, mas aqui
onde entra de tudo… E no entanto, depois de uma leve reflexão desse
tipo, voltamos a nos entreter etc.…
Que se vá buscar informações sobre essa religião, mesmo que ela
não explique a razão dessa obscuridade, talvez no-la ensine.

151 (211)
Somos engraçados quando confiamos na sociedade de nossos
semelhantes, miseráveis como nós, impotentes como nós; eles não nos
ajudarão: morreremos sós.
É então necessário que façamos como se estivéssemos sós. Nesse
caso, construiríamos soberbas mansões etc.?, buscaríamos a verdade sem
hesitar. E se o recusamos, demonstramos estimar mais a estima dos
homens do que a busca da verdade.

152 (213)
Entre nós e o inferno ou o céu não há senão o entremeio da vida, que
é a coisa mais frágil do mundo.

153 (238)
Que me prometeis afinal (pois dez anos são o partido), senão dez
anos de amor-próprio, tentando agradar sem resultado, além das
inevitáveis agruras?

154 (237)
Partidos.
É preciso viver diferentemente no mundo, segundo estas diversas
suposições.
1. (se for certo que sempre se estará nele) se se pudesse estar
sempre nele.
(2. se é incerto se estaremos ou não sempre nele)
(3. se é certo que não se estará sempre nele – mas se se está seguro
de aí estar ainda por muito tempo.)
(4. se é certo que não se estará sempre nele e incerto – se nele se
estará – não – muito tempo – errado)
5. se é certo que não se estará nele por muito tempo e incerto que se
estará ainda nele por uma hora.
Esta última suposição é a nossa.

155 (281)
Coração
Instinto
Princípios

156 (190)
Lastimar os ateus que procuram, pois já não são bastante infelizes?
Invectivar contra aqueles que fazem disso vaidade.

157 (225)
Ateísmo marca de força de espírito, mas só até certo ponto.

158 (236)
Para os partidos, deveis entregar-vos ao trabalho de procurar a
verdade, pois, se morrerdes sem adorar o verdadeiro princípio, estareis
perdido. Mas – dizeis – se ele quisesse que eu o adorasse, teria deixado
sinais de sua vontade. Assim fez ele, mas vós os negligenciais. Buscai
pois; isso vale bem a pena.

159 (204)
Se se deve dar oito dias da vida, deve-se dar cem anos.

160 (257)
Só há três tipos de pessoas: umas que servem a Deus, tendo-o
encontrado; outras que, não o tendo encontrado, se empenham em
procurá-lo; outras que vivem sem procurá-lo nem tê-lo encontrado. Os
primeiros são razoáveis e felizes, os últimos são loucos e infelizes. Os do
meio são infelizes e razoáveis.

161 (221)
Os ateus devem dizer coisas perfeitamente claras. Ora, não é
perfeitamente claro que a alma seja material.

162 (189)
Começar por lamentar os incrédulos, eles são bastante infelizes por
sua condição.
Não se deveria injuriá-los senão no caso em que isso fosse útil, mas
isso os prejudica.

163 (200)
Um homem num calabouço, sem saber se a sua sentença foi
pronunciada, não tendo mais do que uma hora para procurar ficar
sabendo, sendo que essa hora bastaria, se ele soubesse da sentença, para
fazê-la revogar. É contra a natureza ele usar essa hora não para se
informar se a sentença foi pronunciada, mas para jogar baralho.
Assim é sobrenatural que o homem etc. É tornar mais pesada a mão
de Deus.
Assim, não apenas o zelo daqueles que o buscam prova Deus, mas a
cegueira dos que não o buscam também.

164 (218)
Começo. Calabouço.

Acho bom que não se aprofunde a opinião de Copérnico. Mas isto:

Importa a toda a vida saber se a alma é mortal ou imortal.

165 (210)
O último ato é sangrento, por mais bela que seja a comédia em todo
o resto. Lança-se finalmente terra sobre a cabeça e aí está para sempre.

166 (183)
Corremos despreocupados para o precipício depois de ter colocado
alguma coisa à nossa frente para impedirnos de vê-lo.

XIII. SUBMISSÃO E USO DA RAZÃO

167 (269)
Submissão e uso da razão: em que consiste o verdadeiro
cristianismo.

168 (224)
Como odeio essas tolices de não crer na eucaristia etc. Se o
evangelho é verdadeiro, se Jesus Cristo é Deus, que dificuldade há
nisso?
169 (812)
Eu não seria cristão sem os milagres, disse Santo Agostinho.

170 (268)
Submissão.
Deve-se saber duvidar onde é preciso, ter certeza onde é preciso,
submetendo-se onde é preciso. Quem não faz assim não ouve a força da
razão. Existem pessoas que falham nesses três princípios: ou tendo
certeza de tudo como demonstrativo, falta de conhecer-se em
demonstração; ou duvidando de tudo, falta de saber onde é preciso se
submeter; ou submetendo-se a tudo, falta de saber onde é preciso julgar.
Pirrônico, geômetra, cristão: dúvida, certeza, submissão.

171 (696)
Susceperunt verbum cum omni aviditate scrutantes scripturas si ita
se haberent28.

172 (185)
O procedimento de Deus, que dispõe de todas as coisas com
brandura, consiste em colocar a religião no espírito pelas razões e no
coração pela graça, mas querer colocá-la no espírito e no coração pela
força e pelas ameaças não é colocar a religião mas o terror. Terrorem
potius quam religionem29.

173 (273)
Se submetermos tudo à razão, a nossa religião não terá nada de
misterioso e de sobrenatural.
Se violentarmos os princípios da razão, a nossa religião será absurda
e ridícula.

174 (270)
Santo Agostinho. A razão não se submeteria nunca se ela não
julgasse que há ocasiões em que ela deve se submeter.
É pois justo que ela se submeta quando julga que deve submeter-se.
175 (563)
Uma das confusões dos réprobos será ver que serão condenados por
sua própria razão, pela qual pretenderam condenar a religião cristã.

176 (261)
Aqueles que não amam a verdade tomam o pretexto da contestação e
da multidão daqueles que a negam, e assim o seu erro só provém de eles
não amarem a verdade ou a caridade. E assim eles não têm desculpa.

177 (384)
Contradição é uma marca ruim da verdade.
Várias coisas certas são contraditas.
Várias falsas passam sem contradição.
Nem a contradição é marca de falsidade, nem a nãocontradição é
marca de verdade.

178 (747 bis)


Vede as duas espécies de homens no título: Perpetuidade.

179 (256)
Existem poucos verdadeiros cristãos. Digo o mesmo para a fé. Há
muitos que creem, mas por superstição. Há muitos que não creem, mas
por libertinagem; poucos estão entre os dois.
Não incluo entre estes aqueles que estão na verdadeira piedade de
costumes e todos aqueles que creem por um sentimento do coração.

180 (838)
Jesus Cristo fez milagres e, depois dele, os apóstolos. E os primeiros
santos, em grande número, porque, não estando ainda cumpridas as
profecias, e cumprindose por eles, nada dava testemunho a não ser os
milagres. Estava predito que o Messias converteria as nações. Como essa
profecia seria cumprida sem a conversão das nações, e como as nações
se converteriam ao Messias sem ver esse último efeito das profecias que
o provam? Antes pois que tivesse sido morto, que tivesse ressuscitado e
convertido as nações, ainda não estava tudo cumprido, e assim foram
necessários milagres durante todo esse tempo. Agora eles não são mais
necessários contra os judeus, pois as profecias cumpridas são um
milagre subsistente.

181 (255)
A piedade é diferente da superstição.

Sustentar a piedade até à superstição é destruí-la.

Os hereges criticam em nós essa submissão supersticiosa; é fazer


aquilo que eles criticam em nós.

Impiedade de não crer na Eucaristia baseados em que não a vemos.

Superstição de crer em proposições etc.

Fé etc.

182 (272)
Nada existe tão conforme à razão quanto desmentir a razão.

183 (253)
2. excesso
excluir a razão, não admitir senão a razão.

184 (811)
Não se teria pecado não acreditando em Jesus Cristo sem os
milagres.
Videte an mentiar30.

185 (265)
A fé diz certamente o que os sentidos não dizem, mas não o contrário
do que eles veem; ela está acima e não contra.

186 (947)
Abusais da crença que o povo tem na Igreja e o enganais.
187 (254)
Não é coisa rara ter-se de repreender as pessoas por excesso de
docilidade.
É um vício natural como a incredulidade e igualmente pernicioso.
Superstição.

188 (267)
O último passo da razão é reconhecer que há uma infinidade de
coisas que a ultrapassam. Ela é apenas fraca se não vai até reconhecer
isso.

Que se as coisas naturais a ultrapassam, que se dirá das


sobrenaturais?

XIV. EXCELÊNCIA

189 (547)
Deus por Jesus Cristo.
Não conhecemos a Deus senão por Jesus Cristo. Sem esse mediador
é retirada qualquer comunicação com Deus. Por Jesus Cristo nós
conhecemos a Deus. Todos aqueles que pretenderam conhecer a Deus e
prová-lo sem Jesus Cristo não tinham mais que provas impotentes. Mas
para provar Jesus Cristo temos as profecias que são provas sólidas e
palpáveis. E sendo cumpridas essas profecias e provadas como
verdadeiras pelo acontecimento, marcam a certeza dessas verdades e
portanto a prova da divindade de Jesus Cristo. Nele e por ele
conhecemos pois a Deus. Fora daí e sem as Escrituras, sem o pecado
original, sem o mediador necessário, prometido e vindo, não se pode
absolutamente provar Deus nem ensinar boa doutrina ou boa moral. Mas
por Jesus Cristo e em Jesus Cristo prova-se Deus e ensinam-se a moral e
a doutrina. Jesus Cristo é pois o verdadeiro Deus dos homens.
Mas conhecemos ao mesmo tempo a nossa miséria, pois esse Deus
outra coisa não é senão o reparador de nossa miséria. Assim, só
podemos conhecer bem a Deus conhecendo as nossas iniquidades.
Assim, aqueles que conheceram a Deus sem conhecer a sua própria
miséria não o glorificaram, mas glorificaram-se dele.
Quia non cognovit per sapientiam, placuit deo per stultitiam
predicationis salvos facere31.

190 (543)
Prefácio. As provas metafísicas de Deus estão tão distantes do
raciocínio dos homens e tão implicadas que elas impressionam pouco e,
mesmo que isso servisse para algumas, não serviria senão no instante em
que eles vêem essa demonstração, mas uma hora depois temem ter se
enganado.
Quod curiositate cognoverunt, superbia amiserunt32.
É isso que produz o conhecimento de Deus que se obtém sem Jesus
Cristo, que consiste em comunicar, sem mediador, com o Deus que se
conheceu sem mediador.
Ao passo que aqueles que conheceram a Deus por mediador
conhecem a própria miséria.

191 (549)
É não somente impossível mas também inútil conhecer a Deus sem
Jesus Cristo. Não se afastaram dele por isso, mas se aproximaram; não
se rebaixaram mas… Quo quisque optimus eo pessimus si hoc ipsum
quod sit optimus ascribat sibi33.
192 (527)
O conhecimento de Deus sem o da própria miséria faz o orgulho.
O conhecimento da própria miséria sem o de Deus faz o desespero.
O conhecimento de Jesus Cristo faz o meio-termo porque aí
encontramos tanto Deus como a nossa miséria.

XV. TRANSIÇÃO

193 (98)
A prevenção que induz em erro.
É coisa deplorável ver os homens todos só deliberarem dos meios e
não do fim. Cada um pensa como desempenhar-se de sua condição, mas
quanto à escolha da condição e da pátria, o acaso no-la dá.
É coisa lastimável ver tantos turcos, hereges, infiéis seguirem o
caminho de seus pais pela simples razão de que foram convencidos ser
ele o melhor e é isso que determina cada um à condição de serralheiro,
soldado etc.

É por isso que os selvagens não têm nada a fazer com a Provença.

194 (208)
Por que o meu conhecimento é limitado, o meu tamanho, a minha
duração a 100 anos em vez de 1.000? que razão teve a natureza para dá-
la assim para mim e para escolher esse meio de preferência a outro na
infinidade, dos quais não há maior razão de escolher um do que outro,
nada tentando mais do que o outro?
195 (37)
(Um pouco de tudo.) Já que não se pode ser universal sabendo tudo
que se pode saber sobre tudo, é preciso saber um pouco de tudo, porque
é bem mais belo saber-se alguma coisa de tudo do que saber tudo de
uma só coisa. Essa universalidade é a mais bela. Se se pudesse ter os
dois, melhor ainda, mas se é necessário escolher deve-se escolher
aquela. E o mundo o sabe e o faz, pois o mundo é bom juiz muitas vezes.
196 (86)
(A minha fantasia faz-me detestar alguém que coaxa e alguém que
sopra ao comer. A fantasia tem grande peso. O que é que
aproveitaremos disso? que seguiremos esse peso por ele ser natural,
não, mas resistiremos a ele.)
197 (163 bis)
(Nada mostra melhor a vaidade dos homens do que considerar que
causa e que efeitos tem o amor, pois todo o universo é por ele mudado.
O nariz de Cleópatra.)
198 (693)
H. 5.
Ao ver a cegueira e a miséria do homem, ao olhar todo o universo
mudo e o homem sem luz, abandonado a si mesmo, e como perdido
neste recanto do universo sem saber quem aqui o colocou, o que veio
fazer aqui, o que se tornará quando morrer, incapaz de qualquer
conhecimento, fico apavorado como um homem a quem se levasse
adormecido para uma ilha deserta e pavorosa, que acordasse sem a
reconhecer e sem meios de sair dela. E sobre isso admiro como não se
entra em desespero diante de tão miserável estado. Vejo outras pessoas
perto de mim de semelhante natureza. Pergunto-lhes se estão mais bem
informados do que eu. Dizem-me que não e, a partir daí, esses míseros
extraviados, tendo olhado em torno de si e tendo visto alguns objetos
agradáveis, entregam-se a eles e a eles se apegam. Quanto a mim, não
pude criar apegos e, considerando quanto existe mais de aparência, que
existe outra coisa além daquilo que vejo, procurei ver se esse Deus não
teria deixado alguma marca de si.
Vejo diversas religiões contrárias e por conseguinte todas falsas,
exceto uma. Cada uma quer ser acreditada por sua própria autoridade e
ameaça os incrédulos. A partir disso, já não acredito nelas. Qualquer um
pode dizer isso. Qualquer um pode dizer-se profeta; mas vejo a cristã e
encontro profecias, e é isso que qualquer um não pode fazer.

199 (72)
H. Desproporção do homem.
9 – (Eis aonde nos levam os conhecimentos naturais.
Se não são verdadeiros, não existe verdade no homem, e se são, ele
encontra aí um grande motivo para humilhação, forçado a se rebaixar
de uma maneira ou de outra.
E visto que ele não pode subsistir sem acreditar neles, desejo, antes
de entrar em maiores pesquisas sobre a natureza, que ele a considere
por uma vez seriamente e com tempo, que olhe também para si mesmo –
e que julgue se mantém alguma proporção com ela, pela comparação
que fará entre esses dois objetos.)
Contemple pois o homem a natureza inteira em sua alta e plena
majestade, afaste o seu olhar dos objetos baixos que o cercam. Olhe essa
ofuscante luz posta como um fanal eterno para iluminar o universo,
pareça-lhe a terra como um ponto em razão da vasta órbita que esse astro
descreve, e fique tomado de admiração de que essa mesma vasta órbita
não passa de uma ponta muito delicada com relação à que aqueles astros,
que giram no firmamento, abrangem. Mas se a nossa vista para aí, que a
imaginação passe além; ela ficará mais depressa cansada de conceber do
que a natureza de fornecer. O mundo visível todo não é senão um traço
imperceptível no amplo seio da natureza. Ideia alguma se aproxima dela,
por mais que expandamos as nossas concepções para além dos espaços
imagináveis, não geramos senão átomos em comparação com a realidade
das coisas. É uma esfera infinita cujo centro está por toda parte, a
circunferência em parte alguma. Enfim, é a maior característica sensível
da onipotência de Deus que a nossa imaginação se perca nesse
pensamento.
Tendo voltado a si, considere o homem aquilo que ele é em face do
que existe, veja-se como perdido, e que desse pequeno calabouço onde
se encontra alojado, quero dizer, o universo, aprenda a estimar a terra, os
reinos, as cidades, as casas e a si mesmo em seu justo valor.
Que é um homem dentro do infinito?
Mas para apresentar-lhe outro prodígio também espantoso, procure
ele naquilo que conhece as coisas mais delicadas, que um ácaro lhe
oferece na pequenez de seu corpo partes incomparavelmente menores,
pernas com juntas, veias nas pernas, sangue nas veias, humores nesse
sangue, gotas nesses humores, vapores nessas gotas, que dividindo ainda
essas últimas coisas ele esgote as suas forças nessas concepções e que o
último objeto a que ele pode chegar seja agora o de nosso discurso. Ele
pensará talvez que está aí a extrema pequenez da natureza.
Quero mostrar-lhe dentro disso um abismo novo. Quero pintar-lhe
não somente o universo visível, mas a imensidão que se pode conceber
da natureza no âmbito dessa contração de átomo, que ele veja uma
infinidade de universos, cada um dos quais tem o seu firmamento, os
seus planetas, a sua terra, na mesma proporção que o mundo visível,
nessa terra dos animais, e finalmente dos ácaros nos quais reencontrará
aquilo que os primeiros deram, e encontrando ainda nos outros a mesma
coisa sem fim e sem descanso, que ele se perderá nessas maravilhas tão
espantosas em sua pequenez quanto as outras em sua extensão, pois
quem não admirará que o nosso corpo, que há pouco nem era perceptível
no universo, ele próprio imperceptível no seio do todo, seja agora um
colosso, um mundo, ou melhor, um tudo comparado com um nada a que
não se pode chegar. Quem se considerar assim ficará espantado consigo
mesmo e se considerando sustentado na massa que a natureza lhe deu
entre esses dois abismos do infinito e do nada, estremecerá à vista dessas
maravilhas e creio que, transformando-se a sua curiosidade em
admiração, ele estará mais disposto a contemplá-las em silêncio do que a
buscá-las com presunção.
Pois afinal que é o homem na natureza? Um nada com relação ao
infinito, um tudo com relação ao nada, um meio entre o nada e o tudo,
infinitamente afastado de compreender os extremos; o fim das coisas e
seus princípios estão para ele invencivelmente escondidos num segredo
impenetrável.
Igualmente – incapaz de ver o nada de onde foi tirado e o infinito em
que é engolido.
Que fará ele então senão perceber alguma aparência do meio das
coisas num desespero eterno de conhecer quer o seu princípio, quer o
seu fim. Todas as coisas saíram do nada e foram levadas até o infinito.
Quem acompanhará esses espantosos movimentos? O autor dessas
maravilhas as compreende. Nenhum outro pode fazê-lo.
Por não terem contemplado esses infinitos, os homens se lançaram
temerariamente à procura da natureza como se com ela mantivessem
alguma proporção.
É coisa estranha terem querido compreender os princípios das coisas
e daí chegar ao conhecimento de tudo, por uma presunção tão infinita
quanto o seu objeto. Pois não há dúvida de que não se pode conceber
esse projeto sem uma presunção ou sem uma capacidade infinita, como a
natureza.
Quando se é instruído, compreende-se que, tendo a natureza gravado
a sua imagem e a de seu autor em todas as coisas, quase todas elas
mantêm relação com sua dúplice infinidade. Assim é que vemos que
todas as ciências são infinitas na extensão de suas pesquisas, pois quem
duvida de que a geometria, por exemplo, tem uma infinidade de
infinidades de proposições a expor. Elas são também infinitas na
multidão e na delicadeza de seus princípios, pois quem não vê que
aqueles que são propostos como os últimos não se mantêm por si
mesmos, mas estão apoiados em outros que, tendo outros como apoio,
nunca admitem um último.
Mas fazemos últimos os que assim se mostram à razão, como se faz
nas coisas materiais em que chamamos de ponto indivisível aquele além
do qual os nossos sentidos não percebem mais nada, embora seja
divisível infinitamente e por sua natureza.
Desses dois infinitos das ciências, o de grandeza é bem mais
perceptível, e é por isso que aconteceu a poucas pessoas pretenderem
conhecer todas as coisas. Vou falar de tudo, dizia Demócrito.
Mas a infinidade em pequenez é muito menos visível. Os filósofos
bem que pretenderam chegar a ela, e foi aí que todos tropeçaram. Foi o
que deu ocasião a esses títulos tão comuns: Dos princípios das coisas,
Dos princípios da filosofia, e aos semelhantes igualmente faustosos na
verdade, embora menos na aparência, como este que salta aos olhos: De
omni scibili.
A gente se julga naturalmente bem mais capaz de chegar ao centro
das coisas do que de abarcar a sua circunferência, e a extensão visível do
mundo nos ultrapassa visivelmente. Mas como somos nós que
ultrapassamos as pequenas coisas, julgamo-nos mais capazes de as
possuir, e no entanto não é necessária capacidade menor para ir até o
nada do que para ir até o todo. Ela tem de ser infinita para uma e outra
coisa, e a mim parece que quem chegasse a compreender os últimos
princípios das coisas poderia também chegar a conhecer o infinito. Um
depende do outro e um conduz ao outro. Esses extremos se tocam e se
encontram à força de estarem afastados e se reencontram em Deus, e em
Deus somente.
Conheçamos pois o nosso alcance. Somos alguma coisa e não somos
tudo. O que temos de ser nos escamoteia o conhecimento dos primeiros
princípios que nascem do nada, e o pouco que temos de ser nos esconde
a vista do infinito.
A nossa inteligência ocupa, na ordem das coisas inteligíveis, a
mesma posição que o nosso corpo na extensão da natureza.
Limitados em todo gênero, esse estado que ocupa o meio entre dois
extremos encontra-se em todas as nossas potências. Nossos sentidos não
percebem nada de extremo, barulho demais nos ensurdece, luz demais
nos ofusca, distância demais e proximidade demais nos impedem de
enxergar. Comprimento demais e brevidade demais no discurso o
tornam obscuro, verdade demais nos espanta. Conheço pessoas que não
podem compreender que quem de zero tira quatro resta zero. Os
primeiros princípios têm evidência demais para nós; prazer demais
incomoda, consonâncias demais desagradam na música, e benefícios
demais irritam. Queremos ter com que saldar a dívida. Beneficia eo
usque laeta sunt dum videntur exsolvi posse. Ubi multum antevenere pro
gratia odium redditur. Não sentimos nem o calor extremo nem o frio
extremo. As qualidades excessivas nos são inimigas e não sensíveis, não
as sentimos mais, sofremo-las. Juventude demais e velhice demais
impedem o espírito; instrução demasiada e pouca demais.
Finalmente, todas as coisas extremas são para nós como se não
existissem e nós não existimos com relação a elas; elas nos escapam e
nós a elas.
Aí está o nosso estado verdadeiro. É isso que nos torna incapazes de
saber com certeza e de ignorar de modo absoluto. Vogamos sobre um
meio vasto, sempre incertos e flutuantes, levados de uma ponta para a
outra; qualquer termo em que pensemos nos agarrar e nos firmar, abala-
se, e nos abandona, e, se o seguimos, ele escapa às nossas tentativas de
pegá-lo, escorrega e foge com fuga eterna; nada se detém para nós. É o
estado que nos é natural e entretanto o mais contrário à nossa inclinação.
Ardemos do desejo de encontrar uma posição firme e uma última base
constante para aí edificar uma torre que se eleve ao infinito, mas todo o
nosso alicerce cede e a terra se abre até os abismos.
Não procuremos, portanto, segurança e firmeza; nossa razão está
sempre decepcionada pela inconstância das aparências: nada pode fixar
o finito entre os dois infinitos que o encerram e fogem dele.
Bem compreendido isso, creio que se ficará em repouso, cada um no
estado em que a natureza o colocou.
Sendo esse meio que nos coube em partilha sempre distante dos
extremos, que importa que alguém outro tenha um pouco mais de
inteligência das coisas? Se a tem e se as toma de um pouco mais alto,
não está ele sempre infinitamente afastado da extremidade e a duração
de nossa vida não é igualmente ínfima em face da eternidade se durar
dez anos mais?
Em vista desses infinitos, todos os finitos são iguais e não vejo por
que assentar a imaginação antes sobre um do que sobre outro. E só de
fazermos uma comparação entre nós e o finito já nos dá pena.
Se o homem se estudasse, veria quanto é incapaz de passar além.
Como seria possível que uma parte conhecesse o todo? Mas aspirará
talvez a conhecer pelo menos as partes com as quais ele tem alguma
proporção. Mas as partes do mundo têm todas tal relação e tal
encadeamento uma com outra que creio ser impossível conhecer uma
sem a outra e sem o todo.
O homem, por exemplo, tem relação com tudo que conhece. Precisa
de lugar para contê-lo, de tempo para durar, de movimento para viver, de
elementos para o compor, de calor e de alimentos para se alimentar, de
ar para respirar. Ele vê a luz, sente os corpos, enfim tudo cai sob a sua
aliança. É preciso então, para conhecer o homem, saber de onde vem que
ele tem necessidade de ar para subsistir e para conhecer o ar, saber por
que vias se estabelece essa sua relação com a vida do homem etc.…
A chama não subsiste sem o ar; portanto, para conhecer um, é
preciso conhecer o outro.
Portanto, sendo todas as coisas causadas e causantes, ajudadas e
ajudantes, mediatas e imediatas, e todas se mantendo por um laço natural
e insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes, tenho como
impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como
conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes.
(A eternidade das coisas nelas mesmas ou em Deus deve também
fazer a nossa pequena duração admirar-se.
A imobilidade fixa e constante da natureza, comparação ou
mudança contínua que se passa em nós, deve causar o mesmo efeito.)
E o que completa a nossa impotência – de conhecer as coisas é que
elas são simples em si mesmas e que somos compostos de duas
naturezas opostas e de gêneros diversos, de alma e de corpo. Pois é
impossível que a parte que raciocina em nós seja outra que não espiritual
e, quando se pretendesse que fôssemos simplesmente corporais, isso nos
excluiria ainda mais do conhecimento das coisas, nada havendo de mais
inconcebível do que dizer que a matéria conhece a si mesma. Não nos é
possível conhecer como ela se conheceria.
E assim, se nós (somos) simples materiais, não podemos conhecer
absolutamente nada, e se somos compostos de espírito e de matéria, não
podemos conhecer perfeitamente as coisas simples espirituais ou
corporais.
Daí vem que quase todos os filósofos confundem as ideias das coisas
e falam das coisas corporais espiritualmente e das espirituais
corporalmente, pois eles dizem ousadamente que os corpos tende(m)
para baixo, que aspiram ao seu centro, que fogem da destruição, que
temem o vácuo, que (têm) tendências, simpatias, antipatias, todas as
coisas que pertencem apenas aos espíritos. E em falando de espíritos,
eles os consideram como em um lugar, e lhes atribuem o movimento de
um local a outro, que são coisas que só pertencem aos corpos.
Em vez de receber as ideias dessas coisas puras, nós as tingimos com
nossas qualidades e impregnamos o nosso ser composto (de) todas as
coisas simples que contemplamos.
Quem não acreditaria, ao ver-nos compor todas as coisas com
espírito e corpo, que essa mistura nos seria bem compreensível? É
entretanto a coisa que menos se entende; o homem é para si mesmo o
mais prodigioso objeto da natureza, pois não pode conceber o que é
corpo e ainda menos o que é espírito e, menos ainda do que qualquer
outra coisa, como um corpo pode estar unido com um espírito. Aí está o
cúmulo de suas dificuldades e no entanto é o seu próprio ser: modus quo
corporibus adherent spiritus comprehendi ab homine non potest, et hoc
tamen homo est34.
Finalmente, para consumar a prova de nossa fraqueza, terminarei por
duas considerações…

200 (347)
H. 3. – O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza,
mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme
para esmagá-lo; um vapor, uma gota de água basta para matá-lo. Mas,
ainda que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do
que aquilo que o mata, pois ele sabe que morre e a vantagem que o
universo tem sobre ele. O universo de nada sabe.
Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento. É daí que
temos de nos elevar, e não do espaço e da duração que não
conseguiríamos preencher. Trabalhemos, pois, para pensar bem: eis aí o
princípio da moral.

201 (206)
O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.

202 (517)
Consolai-vos; não é de vós que o deveis esperar; mas, ao contrário,
nada esperando de vós é que deveis esperá-lo.

XV bis. A NATUREZA É CORROMPIDA

[Trata-se de um fichário de que Pascal havia previsto o título mas


no qual não pôs nenhum pensamento.]

XVI. FALSIDADE DAS OUTRAS RELIGIÕES

203 (595)
Falsidade das outras religiões.
Maomé sem autoridade.
Seria preciso, portanto, que suas razões fossem bem poderosas, não
tendo senão a sua própria força.
Que diz ele então? Que se deve acreditar nele.

204 (592)
Falsidade das outras religiões.
Eles não têm testemunhas. Estes as têm.
Deus desafia as outras religiões a produzir tais marcas. Is. 43.9-44.8.

205 (489)
Se há um só princípio de tudo, um só fim de tudo – tudo por ele, tudo
para ele –, é preciso, pois, que a verdadeira religião nos ensine a não
adorar senão a ele e a não amar senão a ele. Mas como nos encontramos
na impotência de adorar o que não conhecemos e de amar outra coisa
que não nós mesmos, é preciso que a religião que instrui sobre esses
deveres nos instrua também sobre essas impotências e nos ensine
também os remédios. Ela nos ensina que por um homem tudo foi
perdido e rompida a ligação entre Deus e nós, e que por um homem a
ligação é restabelecida.
Nascemos tão contrários a esse amor de Deus e ele é tão necessário
que tínhamos de nascer culpados, ou Deus seria injusto.

206 (235)
Rem viderunt, causam non viderunt35.

207 (597)
Contra Maomé.
O Alcorão não é mais de Maomé do que o Evangelho de São
Mateus. Porque ele é citado por vários autores de século em século. Os
próprios inimigos, Celso e Porfírio, nunca o desmentiram.
O Alcorão diz que São Mateus era homem de bem, portanto ele era
falso profeta ou, ao chamar gente de bem aos maus, ou não estando de
acordo com o que eles disseram de Jesus Cristo.
208 (435)
Sem esses divinos conhecimentos, que puderam fazer os homens
senão elevar-se no sentimento interior que lhes resta de sua grandeza
passada ou se abater à vista de sua fraqueza presente. Porque, não vendo
a verdade por inteiro, não puderam chegar a uma virtude perfeita,
considerando uns a natureza como incorrupta, outros como irreparável,
não puderam escapar quer do orgulho quer da preguiça que são as duas
fontes de todos os vícios, visto que só podem ou abandonar-se a eles por
covardia ou deles sair pelo orgulho. Porque se conhecem a excelência do
homem, ignoram a sua corrupção, de maneira que evitavam a preguiça,
mas se perdiam na soberba, e se reconhecem a debilidade da natureza,
ignoram a sua dignidade, de maneira que podiam evitar a vaidade, mas o
faziam precipitando-se no desespero.
Daí provêm as diversas seitas dos estoicos e dos epicuristas, dos
dogmatistas e dos acadêmicos etc.
Só a religião cristã pôde curar esses dois vícios, não expulsando um
pelo outro pela sabedoria da terra, mas expulsando um e outro pela
simplicidade do Evangelho. Porque ela ensina aos justos que os eleva até
a participação da própria divindade ainda que nesse sublime estado ainda
carreguem dentro de si a fonte de toda corrupção que os torna, durante
toda a vida, sujeitos ao erro, à miséria, à morte, ao pecado, e ela brada
aos mais ímpios que eles são capazes da graça de seu redentor. Assim,
fazendo tremer aos que justifica e consolando aos que condena, ela
tempera com tanta justeza o temor com a esperança mediante essa dupla
capacidade que é comum a todos, a da graça e a do pecado, que ela
rebaixa infinitamente mais do que pode fazer a só razão, mas sem
desesperar, e eleva infinitamente mais do que o orgulho da natureza, mas
sem inflar, e mostrando por esse meio que, sendo a única isenta de erro e
de vício, só a ela pertence instruir e corrigir os homens.
Quem pode recusar, pois, acreditar nessas celestes luzes e adorá-las?
Pois não é mais claro do que o dia que sentimos em nós mesmos marcas
indeléveis de excelência e também não é verdade que experimentamos a
toda hora os efeitos da nossa deplorável condição?
O que é então que nos bradam esse caos e essa confusão monstruosa
senão a verdade desses dois estados com uma voz tão possante que é
impossível resistir a ela?

209 (599)
Diferença entre Jesus Cristo e Maomé.
Maomé não predito, Jesus Cristo predito.
Maomé matando, Jesus Cristo fazendo com que matem os seus.
Maomé proibindo que se leia, os apóstolos ordenando que se leia.
Afinal isso é tão contrário que se Maomé tomou o caminho do
sucesso humano, Jesus Cristo tomou o de perecer humanamente e, em
vez de concluir que, visto que Maomé teve sucesso, Jesus Cristo pôde
ter sucesso, deve-se dizer que já que Maomé teve sucesso, Jesus Cristo
devia perecer.

210 (451)
Todos os homens se odeiam naturalmente uns aos outros. Usou-se
como se pôde da concupiscência para fazê- -la servir ao bem público.
Mas isso não passa de fingimento e de uma falsa imagem da caridade,
pois no fundo não é mais do que ódio.

211 (453)
Foram fundamentadas e tiradas da concupiscência regras admiráveis
de polícia, de moral e de justiça.
Mas, no fundo, esse feio fundo do homem, esse figmentum malum
está apenas encoberto. Não está suprimido.

212 (528)
Jesus Cristo é um Deus de quem as pessoas se aproximam sem
orgulho e sob o qual se abaixam sem desespero.

213 (551)
Dignior plagis quam osculis
non timeo quia amo36.

214 (491)
A verdadeira religião deve ter como marca obrigar a amar o seu
Deus. Isso é muito justo e no entanto nenhuma o ordenou, a nossa o fez.
Deve ainda ter conhecido a concupiscência e a impotência, a nossa o
fez.
Deve ter trazido remédios para isso, um deles é a oração. Nenhuma
religião pediu a Deus para amá-lo e segui-lo.

215 (433)
Depois de ter entendido toda a natureza do homem, é preciso, para
fazer com que uma religião seja verdadeira, que ela tenha conhecido a
nossa natureza. Ela deve ter conhecido a grandeza e a pequenez, e a
razão de uma e outra. Quem a conheceu senão a religião cristã?

216 (493)
A verdadeira religião ensina os nossos deveres, as nossas
impotências, orgulho e concupiscência, e os remédios, humildade,
mortificação.

217 (650)
Há figuras claras e demonstrativas, mas há outras que parecem um
pouco forçadas e que só provam para aqueles que já estão persuadidos
por outras razões. Aquelas são semelhantes às apocalípticas.
Mas a diferença que existe é que eles não possuem nenhuma
indubitável, de tal modo que nada é tão injusto como quando eles
mostram que as suas são tão bem fundamentadas quanto algumas das
nossas. Porque eles não têm nenhuma demonstrativa como algumas das
nossas.
O confronto não é então igual. Não se deve igualar e confundir essas
coisas porque parecem ser semelhantes por um lado, sendo tão diferentes
por outro. São as clarezas que justificam, quando são divinas, que se
reverenciem as obscuridades.
(É como aqueles entre os quais há certa linguagem obscura; aqueles
que não ouvissem isso só compreenderiam um sentido tolo.)

218 (598)
Não é por aquilo que existe de obscuro em Maomé e que se pode
fazer passar por um sentido misterioso que quero que se julgue, mas por
aquilo que nele existe de claro, por seu paraíso e pelo resto. É nisso que
ele é ridículo. E é por isso que não é justo tomar as suas obscuridades
por mistérios, visto que as suas clarezas são ridículas. Não acontece o
mesmo com as Escrituras. Admito que há obscuridades nelas que sejam
tão estranhas quanto as de Maomé, mas também existem clarezas
admiráveis e profecias manifestas e cumpridas. O confronto não é, pois,
igual. Não se devem confundir e igualar as coisas que não se
assemelham senão pela obscuridade e não pela clareza que justifica que
se reverenciem as obscuridades.

219 (251)
As outras religiões, como as pagãs, são mais populares, porque estão
no exterior, mas não são para as pessoas hábeis. Uma religião puramente
intelectual seria mais proporcionada às pessoas hábeis, mas não serviria
para o povo. Só a religião cristã é proporcionada a todos, sendo
mesclada de exterior e de interior. Ela eleva o povo ao interior e abaixa
os soberbos ao exterior, e não é perfeita sem as duas coisas, pois é
preciso que o povo entenda o espírito da letra e que os hábeis submetam
o seu espírito à letra.

220 (468)
Nenhuma outra religião propôs que se odiasse a si mesmo, nenhuma
outra religião pode, pois, agradar àqueles que odeiam a si mesmos e que
procuram um ser verdadeiramente amável. E aqueles, se nunca tivessem
ouvido falar da religião de um Deus humilhado, a abraçariam
incontinenti.

XVII. TORNAR A RELIGIÃO AMÁVEL

221 (774)
Jesus Cristo para todos. Moisés para um povo.
Os judeus abençoados em Abraão. Abençoarei aqueles que te
abençoarão, mas todas as nações (serão) abençoadas em sua semente.
Parum est ut, etc.37 Isaías./ Lumen ad revelationem gentium38.
Non fecit taliter omni nationi39, dizia Davi, falando da lei. Mas
falando de Jesus Cristo é preciso dizer: fecit taliter omni nationi, parum
est ut, etc.40 Isaías.
Assim, cabe a Jesus Cristo ser universal; a própria Igreja só oferece o
sacrifício para os fiéis. Jesus Cristo ofereceu o da cruz para todos.

222 (747)
Os judeus carnais e os pagãos têm misérias e os cristãos também.
Não há redentor para os pagãos, pois eles nem o esperam. Não há
redentor para os judeus: eles o esperam em vão. Só há redentor para os
cristãos.
Vede perpetuidade.

XVIII. FUNDAMENTOS

223 (570)
É preciso colocar no cap. dos fundamentos aquilo que está no dos
figurativos concernente à causa das figuras. Por que Jesus Cristo
profetizado em sua primeira vinda? por que profetizado obscuramente
desse modo?

224 (816)
Incrédulos os mais crédulos, acreditam nos milagres de Vespasiano
para não acreditar nos de Moisés.

225 (789)
Como Jesus Cristo permaneceu desconhecido entre os homens;
assim a verdade permanece entre as opiniões comuns sem diferença no
exterior. Assim a Eucaristia entre o pão comum.
226 (523)
Toda a fé consiste em Jesus Cristo e em Adão, e toda a moral na
concupiscência e na graça.

227 (223)
Que têm eles a dizer contra a ressurreição, e contra o parto de uma
Virgem? O que é mais difícil, produzir um homem ou um animal, ou
reproduzi-lo? E se nunca tivessem visto uma espécie de animais
poderiam adivinhar se eles se produzem sem a companhia uns dos
outros?

228 (751)
Que dizem os profetas de Jesus Cristo? que ele será evidentemente
Deus? Não, mas que ele é um Deus verdadeiramente escondido, que não
será reconhecido, que não pensarão que seja ele, que ele será uma pedra
de tropeço contra a qual vários se chocarão etc.
Que não nos recriminem mais pela falta de clareza, pois que fazemos
dela profissão. Mas, dizem, existem obscuridades e sem isso as pessoas
não se teriam contraposto a Jesus Cristo. E é um dos propósitos formais
dos profetas: excaeca.

229 (444)
Aquilo que os homens, por suas maiores luzes, tinham conhecido,
esta religião ensinava às suas crianças.

230 (430 bis)


Tudo o que é incompreensível não deixa de ser.

231 (511)
(Se se quiser dizer que o homem é muito pouco para merecer a
comunicação com Deus, é preciso ser bem grande para julgar a esse
respeito.)

232 (566)
Não se entende nada das obras de Deus se não se toma como
princípio que ele quis cegar uns e esclarecer outros.
233 (796)
Jesus Cristo não diz que não é de Nazaré para deixar os maus na
cegueira, nem que não é filho de José.

234 (581)
Deus quer mais dispor a vontade do que o espírito, a clareza perfeita
serviria ao espírito e prejudicaria a vontade. Abaixar a soberba.

235 (771)
Jesus Cristo veio cegar aqueles que vêem claramente e dar a vista
aos cegos, curar os doentes e deixar morrer os sãos, chamar à penitência
e justificar os pecadores, e deixar os justos em seus pecados, cumular os
indigentes e deixar os ricos vazios.

236 (578)
Cegar. Esclarecer. Santo Agost. Montag. Sebonde.
Há bastante clareza para iluminar os eleitos e bastante obscuridade
para os humilhar. Há bastante obscuridade para cegar os réprobos e
bastante clareza para os condenar e torná-los indesculpáveis.

A genealogia de Jesus Cristo no Antigo Testamento está misturada a


tantas outras inúteis que não pode ser discernida. Se Moisés só tivesse
mantido registro dos ascendentes de Jesus Cristo, isso teria sido por
demais visível; se ele não tivesse marcado a de Jesus Cristo, isso não
teria sido bastante visível, mas afinal de contas quem olha de perto vê a
de Jesus Cristo bem discernida por Tamar, Ruth etc.

Aqueles que ordenavam esses sacrifícios sabiam de sua inutilidade e


aqueles que declararam a sua inutilidade não deixaram de praticá-los.

Se Deus tivesse permitido uma só religião, ela teria sido por demais
reconhecível. Mas olhe-se de perto e se discernirá bem a verdadeira
nessa confusão.
Princípio: Moisés era homem hábil. Se pois ele se governava por seu
espírito, não devia colocar nada que fosse diretamente contra o espírito.
Assim todas as fraquezas muito patentes são forças. Exemplo: as
duas genealogias de São Mateus e de São Lucas. Que existe de mais
claro do que o fato de que isso não foi feito de comum acordo?

237 (795)
Se Jesus Cristo só tivesse vindo para santificar, as Escrituras todas e
todas as coisas tenderiam para isso, e seria bem fácil convencer os
infiéis. Se Jesus Cristo só tivesse vindo para cegar, toda a sua conduta
seria confusa e nós não teríamos nenhum meio de convencer os infiéis,
mas como veio In sanctificationem et in scandalum41, como diz Isaías,
não podemos convencer os infiéis. E eles não podem nos convencer, mas
por isso mesmo os convencemos, pois que dizemos que não há
convicção em toda a sua conduta nem por um lado, nem por outro.

238 (645)
Figuras.
Querendo Deus privar os seus dos bens perecíveis para mostrar que
não era por impotência, ele fez o povo judeu.

239 (510)
O homem não é digno de Deus, mas não é incapaz de ser tornado
digno dele.
É indigno de Deus juntar-se ao homem miserável, mas não é indigno
de Deus tirá-lo de sua miséria.

240 (705)
Prova.
Profecia com o seu cumprimento.
O que precedeu e o que seguiu Jesus Cristo.

241 (765)
Fonte de contrariedades. Um Deus humilhado, e até a morte na cruz.
2 naturezas em Jesus Cristo. Dois adventos. 2 estados da natureza do
homem. Um Messias triunfante da morte por sua morte.
242 (585)
Que Deus quis esconder-se.
Se só houvesse uma religião, Deus nela estaria bem manifesto.
Se só houvesse mártires em nossa religião, seria o mesmo.
Sendo Deus assim escondido, toda religião que não diz que Deus é
escondido não é verdadeira, e toda religião que não indica a razão disso
não é instrutiva. A nossa faz tudo isso. Vere tu es deus absconditus42.
243 (601)
(Fundamento de nossa fé.)
A religião pagã é sem fundamento (hoje se diz que outrora ela (o)
teve pelos oráculos que falaram. Mas quais são os livros que nos
asseguram disso? São eles tão dignos de fé pela virtude de seus
autores? Estão conservados com tanto cuidado que se possa garantir
que não estão adulterados?)
A religião maometana tem por fundamento o Alcorão e Maomé. Mas
esse profeta que devia ser a última expectativa do mundo foi acaso
predito? E que marca tem ele que não tenha qualquer homem que queira
se dizer profeta? Que milagres ele próprio diz ter feito? Que mistério
ensinou segundo a sua tradição mesmo? Que moral e que felicidade!
A religião judaica deve ser olhada diferentemente. Na tradição dos
livros santos e na tradição do povo. A moral e a felicidade dela é ridícula
na tradição do povo, mas é admirável na dos seus santos. Seu
fundamento é admirável. É o mais antigo livro do mundo e o mais
autêntico, e ao passo que Maomé, para fazer subsistir o seu, proibiu que
o lessem, Moisés, para fazer subsistir o seu, ordenou a todos que o
lessem. E toda religião faz o mesmo.
Pois a cristã é bem diferente nos livros santos e nos casuístas.
Nossa religião é tão divina que uma outra religião divina só tem dela
o fundamento.

244 (228)
Objeção dos ateus.
Mas não temos nenhuma luz.
XIX. LEI FIGURATIVA

245 (647)
Que a lei era figurativa.

246 (657)
Figuras.
Os povos judeu e egípcio visivelmente preditos por estes dois
particulares, que Moisés encontrou: o egípcio batendo no judeu, Moisés
vingando-o e matando o egípcio, e o judeu sendo ingrato.

247 (674)
Figurativos.
Faze todas as coisas segundo o padrão que te foi mostrado na
montanha, a respeito do que São Paulo diz que os judeus pintaram as
coisas celestes.

248 (653)
Figuras.
Os profetas profetizavam por figuras, de cinta, de barba e cabelos
queimados etc.

249 (681)
Figurativas. Chave da cifra.
Veri adoratores43. Ecce agnus dei qui tollit peccata mundi44.

250 (667)
Figurat.
Estes termos: espada, escudo, potentissime45.
251 (900)
Quem quer dar o sentido das Escrituras e não o toma nas Escrituras é
inimigo das Escrituras. Agost. d.d. Ch.

252 (648)
Dois erros. 1. Tomar tudo literalmente. 2. Tomar tudo
espiritualmente.

253 (679)
Figuras.
Jesus Cristo abriu-lhes o espírito para entender as Escrituras.
Duas grandes aberturas são as seguintes: 1. Todas as coisas lhes
chegam em figuras – Vere Israelitae46, Vere liberi47, Verdadeiro pão do
céu.
2. – Um Deus humilhado até à cruz. Foi necessário que o Cristo
tivesse sofrido para entrar em sua glória, que vencesse a morte por sua
morte – dois adventos.

254 (649)
Falar contra os figurativos demasiado grandes.

255 (758)
Deus, para tornar o Messias reconhecível aos bons e irreconhecível
aos maus, fê-lo predizer dessa maneira. Se a maneira do Messias tivesse
sido predita claramente, não teria havido obscuridade mesmo para os
maus.
Se o tempo tivesse sido predito obscuramente, teria havido
obscuridade mesmo para os bons (pois a bondade de seu coração) não
os teria feito entender que, por exemplo, (o mem) significa 600 anos.
Mas o tempo foi predito claramente e a maneira em figuras.
Por esse meio, como os maus tomam os bens prometidos como
materiais, extraviam-se apesar do tempo predito claramente e os bons
não se extraviam.
Pois a inteligência dos bens prometidos depende do coração que
chama de bem aquilo a que ama, mas a inteligência do tempo prometido
não depende do coração. E assim a predição clara do tempo e obscura
dos bens não decepciona senão os maus e apenas eles.
256 (662)
Os judeus carnais não entendiam a grandeza nem o rebaixamento do
Messias predito em suas profecias. Não o reconheceram em sua
grandeza predita, como quando diz que o Messias será senhor de Davi,
embora seu filho, que está adiante de Abraão e que o viu. Eles não o
acreditavam tão grande que fosse eterno, e não o reconheceram
igualmente no seu rebaixamento e na sua morte. O Messias, diziam,
permanece eternamente e este disse que morrerá. Não o acreditavam
pois nem mortal nem eterno; só procuravam nele uma grandeza carnal.

257 (684)
Contradição.
Só se pode fazer uma boa fisionomia compatibilizando todas as
nossas contrariedades, e não basta seguir uma sequência de qualidades
concordantes sem fazer concordar os contrários; para entender o sentido
de um autor, é preciso fazer concordar todas as passagens contrárias.
Assim, para entender as Escrituras é preciso ter um sentido em que
todas as passagens contrárias concordem; não basta ter um que convenha
a várias passagens concordantes, mas um que faça concordar mesmo as
passagens contrárias.
Todo autor tem um sentido em que todas as passagens contrárias
concordam, ou ele não tem absolutamente sentido nenhum. Não se pode
dizer isso das Escrituras e dos profetas: eles tinham certamente um
excesso de bom sentido. É preciso, pois, procurar um que faça concordar
todas as contrariedades.
O verdadeiro sentido não é pois aquele dos judeus, mas em Jesus
Cristo todas as contradições ficam concordes.
Os judeus não conseguem fazer concordar a cessação da realeza e do
principado predito por Oseias com a profecia de Jacó.
Se se tomam a lei, os sacrifícios e o reino como realidades, não se
pode tornar concordes todas as passagens; é preciso, pois, por
necessidade, que sejam só figuras. Não se poderia nem mesmo fazer
concordar as passagens de um mesmo autor, nem de um mesmo livro,
nem às vezes de um mesmo capítulo, o que marca fortemente qual era o
sentido do autor; como quando Ezequiel, cap. 20, diz que se viverá nos
mandamentos de Deus e que não se viverá neles.
258 (728)
Não era permitido sacrificar fora de Jerusalém, que era o lugar
escolhido pelo Senhor, nem mesmo comer em outro lugar os dízimos.
Deut. 12.5 etc. Deut. 14.23 etc. 15. 20. 16. 2. 7. 11. 15.

Oseias predisse que ele estaria sem rei, sem príncipe, sem sacrifícios
etc., sem ídolos, o que hoje está cumprido, não podendo fazer sacrifício
legítimo fora de Jerusalém.
259 (685) Figura.
Se a lei e os sacrifícios são a verdade, é preciso que ela agrade a
Deus e que não lhe desagrade. Se são figuras, é preciso que agradem e
desagradem.
Ora, nas Escrituras todos eles agradam e desagradam. Está dito que a
lei será mudada, que o sacrifício será mudado, que ficarão sem rei, sem
príncipes e sem sacrifícios, que será feita uma nova aliança, que a lei
será renovada, que os preceitos que receberam não são bons, que os seus
sacrifícios são abomináveis, que Deus não os pediu.
É dito também, ao contrário, que a lei durará eternamente, que esta
aliança será eterna, que o sacrifício será eterno, que o cetro nunca sairá
do meio deles, que não deve sair do meio deles até que chegue o rei
eterno.
Todas essas passagens indicam que isso seja realidade? Não; indicam
que isso seja figura? Não; mas que se trata de realidade ou de figura;
mas como as primeiras excluem a realidade, indicam que se trata apenas
de figura.
Todas essas passagens juntas não podem ser ditas da realidade; todas
podem ser ditas da figura. Elas não são ditas da realidade mas da figura.
Agnus occisus est ab origine mundi, juge sacrificium48.

260 (678)
Um retrato traz em si presença e ausência, prazer e desprazer. A
realidade exclui ausência e desprazer.
Figuras.
Para saber se a lei e os sacrifícios são realidade ou figura é preciso
ver se os profetas, falando dessas coisas, nelas fixavam a vista e o
pensamento, de sorte que não vissem nelas senão a antiga aliança, ou se
viam alguma outra coisa de que ela fosse a imagem. Porque num retrato
se vê a coisa figurada. Basta para isso examinar o que eles dizem.
Quando dizem que ela será eterna, entendem estar falando da aliança
da qual dizem que será mudada e o mesmo se dá com relação aos
sacrifícios etc.…
A cifra tem dois sentidos. Quando se encontra uma letra importante
em que se encontra um sentido claro, e em que se diz entretanto que o
sentido está velado e obscurecido, que ele está escondido de modo que
se verá essa letra sem a ver e que se a entenderá sem entender, que se
deve pensar senão que é uma cifra com duplo sentido?
E tanto mais quando aí se encontram contrariedades manifestas no
sentido literal.
Os profetas disseram claramente que Israel seria sempre amado por
Deus e que a lei seria eterna e disseram que não se entenderia o sentido
do que diziam e que este estava velado.
Quanto se deve pois estimar aqueles que nos desvendaram a cifra e
nos ensinaram a conhecer o sentido oculto, e principalmente quando os
princípios que eles assumem são totalmente naturais e claros? Foi o que
fez Jesus Cristo. E os apóstolos. Eles quebraram o selo. Ele rompeu o
véu e descobriu o espírito. Eles nos ensinaram para isso que os inimigos
do homem são as suas paixões, que o redentor seria espiritual e seu reino
espiritual, que haveria dois adventos, um de miséria para rebaixar o
homem soberbo, outro de glória para elevar o homem humilhado, que
Jesus Cristo seria Deus e homem.

261 (757)
O tempo do primeiro advento expressamente predito, o tempo do
segundo não o é, porque o primeiro devia ser velado, o segundo devia
ser brilhante, e tão manifesto que mesmo os seus inimigos deviam
reconhecê-lo, mas ele devia vir apenas obscuramente e apenas para ser
conhecido por aqueles que sondassem as Escrituras.
262 (762)
Que podiam fazer os judeus, seus inimigos?
Se o recebem, provam-no por sua recepção, pois os depositários da
expectativa do Messias o recebiam, e se renunciam a recebê-lo, provam-
no por sua renúncia.

263 (686)
Contrariedades.
O cetro até o Messias sem rei – nem príncipe.
Lei eterna, mudada.
Aliança eterna, nova aliança.
Lei boa, preceitos maus. Eze. 20.

264 (746)
Os judeus estavam acostumados aos grandes e retumbantes milagres
e assim, tendo tido os grandes prodígios do Mar Vermelho e a terra de
Canaã como um resumo das grandes coisas de seu Messias, esperavam
dele coisas ainda mais prodigiosas, das quais as de Moisés eram apenas
uma amostragem.

265 (677)
Figura traz em si ausência e presença, prazer e desprazer.
Cifra com duplo sentido. Um claro e onde é dito que o sentido está
oculto.

266 (719)
Poder-se-ia talvez pensar que quando os profetas predisseram que o
cetro não sairia de Judá até o rei eterno, tivessem falado para adular o
povo e que a sua profecia teria parecido falsa a Herodes. Mas para
mostrar que não é este o sentido e que sabiam, bem ao contrário, que
aquele reino temporal devia cessar, eles dizem que estarão sem rei e sem
príncipe. E durante longo tempo. Oseias.

267 (680)
Figuras.
Desde que se desvendou esse segredo, é impossível não o ver. Leia-
se o Velho Testamento sob esta perspectiva e veja-se se os sacrifícios
eram verdadeiros, se o parentesco de Abraão era a verdadeira causa da
amizade de Deus, se a terra prometida era o verdadeiro lugar de repouso.
Não, portanto eram figuras.
Vejam-se igualmente todas as cerimônias ordenadas e todos os
mandamentos que não são pela caridade, ver-se-á que são figuras.

Todos aqueles sacrifícios e cerimônias eram, pois, figuras ou tolices;


ora, há coisas claras por demais elevadas para serem consideradas como
tolices.
Saber se os profetas limitavam as suas vistas ao Antigo Testamento
ou se viam nele outras coisas.

268 (683)
Figuras.
A letra mata – Tudo acontecia em figuras – Era necessário que o
Cristo sofresse – Um Deus humilhado – Eis aí a cifra que São Paulo nos
dá.

Circuncisão do coração, verdadeiro jejum, verdadeiro sacrifício,


verdadeiro templo: os profetas indicaram que era preciso que tudo isso
fosse espiritual.
Não a carne que perece, mas aquela que não perece.

Sereis verdadeiramente livre; portanto, a outra liberdade não passa


de figura de liberdade.

Sou o verdadeiro pão do céu.

269 (692)
Há quem veja claramente que não existe outro inimigo do homem a
não ser a concupiscência que o desvia de Deus, e não (inimigos), nem
outro bem senão Deus, e não a terra rica. Aqueles que acreditam estar na
carne o bem do homem e o mal naquilo que os desvia dos prazeres dos
sentidos, que se embriaguem deles e que morram. Mas aqueles que
buscam a Deus de todo o coração, que só têm desprazer em estarem
privados de sua vista, que só têm desejo de possuí-lo, e [que só têm] só
como inimigos os que os desviam dele, que se afligem por estar
rodeados e dominados por esses inimigos, que se consolem, eu lhes
anuncio uma feliz notícia; há um Libertador para eles; eu os farei vê-lo;
eu lhes mostrarei que há um Deus para eles; não o mostrarei aos outros.
Mostrarei que um Messias foi prometido para livrar dos inimigos e que
veio um para livrar das iniquidades, mas não dos inimigos.

Quando Davi prediz que o Messias libertará o seu povo dos


inimigos, pode-se acreditar carnalmente que se trata dos egípcios. E
então eu não poderia mostrar que a profecia foi cumprida, mas também
se pode crer que se trata das iniquidades. Porque na verdade os egípcios
não são inimigos, mas as iniquidades sim.
A palavra inimigo é pois equívoca, mas se ele diz noutra parte, como
de fato faz, que libertará seu povo dos pecados, como Isaías e os outros,
o equívoco fica eliminado, e o sentido duplo de inimigos se reduz ao
sentido simples de iniquidades. Porque, se tinha na mente os pecados,
podia denotá-los por inimigos, mas, se estava pensando nos inimigos,
não podia designá-los por iniquidades.
Ora, Moisés e Davi e Isaías usaram os mesmos termos. Quem dirá,
pois, que não tinham o mesmo sentido e que o sentido de Davi, que era
manifestamente de iniquidades quando falava de inimigos, não seja o
mesmo que o de Moisés quando fala de inimigos?

Daniel, IX, ora pela libertação do povo do cativeiro de seus inimigos.


Mas ele pensava nos pecados, e para mostrá-lo, diz que Gabriel veio
dizer-lhe que tinha sido atendido e que só havia mais 70 semanas a
esperar, depois do que o povo seria libertado das iniquidades. O pecado
chegaria ao fim, e o Libertador, o santo dos santos, traria a justiça eterna,
não a legal, mas a eterna.

270 (670)
A. figuras.
Os judeus tinham envelhecido com estes pensamentos terrestres: que
Deus amava o seu pai Abraão, sua carne e o que dela saísse, que para
isso ele os havia multiplicado e distinguido de todos os outros povos
sem admitir que se misturassem com eles; que, quando enlanguesciam
no Egito, retirou-os de lá com todos os seus grandes sinais em favor
deles, alimentou-os com o maná no deserto, levou-os para uma terra bem
rica, deu-lhes reis e um templo bem construído para nele oferecerem
sacrifícios de animais e que, mediante o derramamento do sangue desses
animais, seriam purificados, e que finalmente devia enviar-lhes um
Messias para os tornar senhores do mundo todo, e predisse o tempo da
sua vinda.
Tendo o mundo envelhecido nesses erros carnais, Jesus Cristo veio
no tempo predito, mas não no esplendor esperado, e assim não pensaram
que fosse ele. Depois de sua morte, veio São Paulo ensinar aos homens
que todas essas coisas tinham acontecido em figuras, que o reino de
Deus não consistia na carne, mas no espírito, que os inimigos dos
homens não eram os babilônios, mas as paixões, que Deus não se
comprazia com templos feitos à mão, mas com um coração puro e
humilhado, que a circuncisão do corpo era inútil, mas era necessária a do
coração, que Moisés não lhes havia dado o pão do céu etc.

Mas não tendo Deus querido desvendar tais coisas a esse povo que
era indigno delas e tendo no entanto querido produzi-las a fim de que
fossem acreditadas, predisse-lhes claramente o tempo e as exprimiu às
vezes claramente, mas abundantemente em figuras a fim de que os que
amassem as coisas figurantes parassem aí, e que os que amassem as
figuradas aí as vissem.

Tudo aquilo que não aponta para a caridade é figura.

O único objeto das Escrituras é a caridade.

Tudo que não aponta para o único bem é dele a figura. Pois visto que
há um único fim, tudo que não aponta para ele com palavras apropriadas
é figura.

Deus diversifica assim este único preceito de caridade para satisfazer


a nossa curiosidade que busca a diversidade por essa diversidade que nos
leva sempre ao nosso único necessário. Pois uma só coisa é necessária e
gostamos da diversidade, e Deus satisfaz a um e a outro por essas
diversidades que levam ao único necessário.

Os judeus gostaram tanto das coisas figurantes e as esperaram tanto


que não reconheceram a realidade quando esta veio no tempo e no modo
predito.

Os rabinos tomam como figura os seios da esposa e tudo aquilo que


não exprime apenas a única finalidade que eles veem nos bens
temporais.

E os cristãos tomam mesmo a Eucaristia como figura da glória para a


qual eles tendem.

271 (545)
Jesus Cristo outra coisa não fez senão ensinar aos homens que eles
amavam a si mesmos, que eram escravos, cegos, doentes, infelizes e
pecadores; que era preciso que ele os libertasse, esclarecesse,
beatificasse e curasse, que isso se faria pelo ódio de si mesmo e
seguindo-o pela miséria e a morte na cruz.

272 (687)
Figuras.
Quando a palavra de Deus, que é verdadeira, é falsa literalmente, ela
é verdadeira espiritualmente. Sede a dextris meis49: isso é falso
literalmente, portanto é verdadeiro espiritualmente.
Nessas expressões fala-se de Deus à maneira dos homens. E isso
outra coisa não significa senão que a intenção que os homens têm ao
mandar sentar-se alguém à sua direita, Deus também a terá. É, pois, uma
marca da intenção de Deus, não de sua maneira de a executar.
Assim, quando ele diz: Deus acolheu o odor de vossos perfumes e
vos dará em recompensa uma terra rica, quer dizer a mesma intenção
que teria um homem que, se agradando dos vossos perfumes, vos
oferecesse como recompensa uma terra rica, Deus terá a mesma intenção
para convosco porque tivestes por ele a mesma intenção que um homem
tem por aquele a quem dá perfumes.
Assim iratus est50, Deus cioso etc. Pois as coisas de Deus sendo
inexprimíveis, não podem ser ditas de outra forma, e a Igreja de hoje
ainda usa do mesmo processo, quia confortavit seras51 etc.

Não é permitido atribuir às Escrituras sentidos que ela não nos tenha
revelado ter. Assim, dizer que o (mem) de Isaías significa 600, isso não
está revelado. Não está dito que os (tsade) e os (he) deficientes
significariam mistérios. Não é, pois, permitido dizê-lo. E ainda menos
dizer que é a maneira da pedra filosofal. Mas dizemos que o sentido
literal não é o verdadeiro porque os próprios profetas o disseram.

273 (745)
Aqueles que têm dificuldade para acreditar buscam motivo no fato
de os judeus não acreditarem. Se essas coisas fossem tão claras, dizem,
por que eles não haveriam de acreditar? e quereriam até que eles
acreditassem para não serem barrados pelo exemplo de sua recusa. Mas
é a própria recusa deles que é o fundamento da nossa crença. Estaríamos
muito menos dispostos a isso se eles fossem dos nossos: teríamos então
um pretexto bem mais amplo.
É admirável ter tornado os judeus grandes amantes das coisas
preditas e grandes inimigos de seu cumprimento.

274 (642)
Provas dos dois testamentos a uma só vez. Para provar a ambos de
uma só vez, basta ver se as profecias de um estão cumpridas no outro.
Para examinar as profecias é preciso entendê-las.
Porque se se acredita que elas só têm um sentido, fica certo que o
Messias não terá vindo; mas se elas têm dois sentidos, fica certo que ele
terá vindo em Jesus Cristo.
Toda a questão está, pois, em saber se elas têm dois sentidos.
Que as Escrituras têm dois sentidos. Que Jesus Cristo e os apóstolos
deram (dois sentidos) cujas provas estão a seguir:
1. Prova pelas próprias Escrituras.
2. Provas pelos rabinos. Moisés Mamon diz que elas têm duas faces
provadas e que os profetas não profetizaram senão Jesus Cristo.
3. Provas pela Cabala.
4. Provas pela interpretação mística que os próprios rabinos dão das
Escrituras.
5. Provas pelos princípios dos rabinos de que há dois sentidos.
de que há dois adventos do Messias, glorioso ou abjeto segundo o seu
mérito – de que os profetas não profetizaram senão o Messias – a lei não
é eterna, mas deve mudar de acordo com o Messias – que então não se
terá mais recordação do Mar Vermelho – que os judeus e os gentios
serão misturados.
(6. Provas pela chave que Jesus Cristo e os apóstolos nos dão.)

275 (643)
A. Figuras.
Isaías – 51. o Mar Vermelho imagem da redenção.
Ut sciatis quod filius hominis habet potestatem remittendi peccata
tibi dico surge52.
Querendo Deus mostrar que podia formar um povo santo de uma
santidade invisível e cumulá-lo com uma glória eterna, fez coisas
visíveis. Como a natureza é uma imagem da graça, ele fez nos bens da
natureza o que devia fazer nos da graça, a fim de que se julgasse que ele
podia fazer o invisível já que fazia o visível.
Salvou então o povo do dilúvio; fê-lo nascer de Abraão, resgatou-o
de entre os seus inimigos e o colocou no repouso.
O objetivo de Deus não era salvar do dilúvio e fazer todo um povo
nascer de Abraão apenas para nos introduzir numa terra rica.
E mesmo a graça não é mais que a figura da glória. Porque ela não é
o fim último. Foi figurada pela lei e ela própria figura a graça, mas ela é
a sua figura e o princípio ou a causa.

A vida comum dos homens é semelhante à dos santos. Procuram


todos a sua satisfação e não diferem senão no objeto em que a colocam.
Chamam de inimigos seus aqueles que os impedem etc. … Deus
mostrou, pois, o poder que tem de dar os bens invisíveis pelo poder que
mostrou ter sobre os visíveis.

276 (691)
De duas pessoas que contam coisas tolas, uma que vê o duplo sentido
entendido na cabala, outra que só tem esse sentido, se alguém que não
está a par do segredo ouve discorrer os dois desse modo fará deles o
mesmo julgamento. Mas se em seguida no resto do discurso um diz
coisas angelicais e outro sempre coisas corriqueiras e comuns, ele
julgará que um falava com mistério e não o outro, tendo um mostrado
bastante que é incapaz de tais tolices e capaz de ser misterioso, o outro
que é incapaz de mistério e capaz de tolice.

O Velho Testamento é uma cifra.

XX. RABINAGEM

277 (635)
Cronologia do Rabinismo.
As citações das páginas são do livro Pugio.
p. 27. R. Hakadosch.
autor do Mischna ou lei vocal, ou segunda lei – ano 200.
Bereschit Rabah, por R. Osaia Rabah, comentário do Mischna.
Bereschit Rabah, Bar Nachoni, são discursos sutis, agradáveis,
históricos e teológicos.
Esse mesmo autor fez livros chamados Rabot.

Cem anos depois do Talmud hieros foi feito o Talmud Babilônico


por R. Ase, mediante consentimento universal de todos os judeus que
são necessariamente obrigados a observar tudo que nele está contido.
A adição de R. Ase chama-se Gemara, isto é, o comentário do
Mischna.
E o Talmud compreende o conjunto do Mischna e do Gemara.

278 (446)
Tradição ampla do pecado original segundo os judeus.
Com base na palavra de Gênesis 8, a composição do coração humano
é má desde a infância.
R. Moisés Haddarschan. Esse mau fermento é colocado no homem já
no momento em que ele é formado.
Massachet Succa. Esse mau fermento tem sete nomes: nas Escrituras,
ele é chamado mal, prepúcio, imundo, inimigo, escândalo, coração de
pedra, aquilão, tudo isso significa a malignidade que está escondida e
impressa no coração do homem. Misdrach Tillim diz a mesma coisa e
que Deus libertará da má a boa natureza do homem.
Essa malignidade se renova todos os dias contra o homem como está
escrito no Salmo 137. O ímpio observa o justo e procura fazê-lo morrer,
mas Deus não o abandonará.
Essa malignidade tenta o coração do homem nesta vida e o acusará
na outra.
Tudo isso se encontra no Talmud.
Midrasch Tillim sobre o Salmo 4. Fremi e não pecareis. Fremi e
espantai a vossa concupiscência e ela não vos induzirá ao pecado. E
sobre o Salmo 36. O ímpio disse em seu coração que o temor de Deus
não esteja diante de mim, isto é, que a malignidade natural do homem
disse isso ao ímpio.
Midrasch e Kohelet. Melhor é a criança pobre e ajuizada do que o rei
velho e louco que não sabe prever o futuro. A criança é a virtude e o rei
é a malignidade do homem. Ela é chamada rei porque todos os membros
lhe obedecem, e velho porque está no coração do homem desde a
infância até à velhice, e louco porque conduz o homem no caminho de
(per)dição que ele não prevê.
A mesma coisa está em Midrasch Tillim.
Bereschist Rabba sobre o Salmo 35. Senhor todos os meus ossos te
bendirão porque libertas o pobre do tirano e acaso há maior tirano do
que o mau fermento.
E sobre os Provérbios 25. Se teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer,
quer dizer, se o mau fermento tem fome, dá-lhe do pão da sabedoria de
que se fala em Provérbios 9. E se ele tem sede dá-lhe da água de que se
fala em Isaías 55.
Midrasch Tillim diz a mesma coisa; e, ainda, que as Escrituras, nessa
passagem, ao falar de nosso inimigo, entende o mau fermento; e que [ao
lhe dar] esse pão e essa água, ser-lhe-ão juntadas brasas sobre a
cabeça53.
Midrasch Kohelet sobre o Ecl. 9. Um grande rei assediou uma
pequena cidade. Esse grande rei é o mau fermento. As grandes máquinas
com que ele a cerca são as tentações, e foi encontrado um homem sábio
e pobre que a libertou, isto é, a virtude.
E sobre o Salmo 41. Bem-aventurado quem dá atenção aos pobres.
E sobre o Salmo 78. O espírito se vai e não volta mais, de onde
alguns encontraram motivo para errar contra a imortalidade da alma;
mas o sentido é que esse espírito é o mau fermento, que se vai com o
homem até a morte e não voltará quando da ressurreição.
E sobre o Salmo 103. a mesma coisa.
E sobre o Salmo 16.
Princípios dos Rabinos: dois Messias.

XXI. PERPETUIDADE
279 (690)
Uma palavra de Davi ou de Moisés, sobre como Deus circuncidará
os seus corações, faz julgar a respeito do espírito deles.
Que todos os outros discursos deles sejam equívocos e duvidosos
entre serem filósofos ou cristãos, enfim uma palavra dessa natureza
determina todas as outras, como uma palavra de Epiteto determina todo
o resto ao contrário. Até aí a ambiguidade perdura e não depois.

280 (614)
Os estados pereceriam se muitas vezes não se fizessem as leis
cederem à necessidade, mas jamais a religião
sofreu nem usou desse recurso. Assim, são necessárias essas
acomodações ou milagres.
Não é estranho que se conserve fazendo ceder, e não é propriamente
se manter, e ainda finalmente perecem de todo. Não houve nenhum que
tivesse durado 1.000 anos. Mas que essa religião se tenha mantido, e se
tenha mantido inflexível… Isso é divino.

281 (613)
Perpetuidade.
Essa religião que consiste em acreditar que o homem decaiu de um
estado de glória e de comunicação com Deus para um estado de tristeza,
de penitência e de afastamento de Deus, mas que, após esta vida,
seremos reabilitados por um Messias que devia vir, sempre esteve sobre
a terra.
Todas as coisas passaram, mas permaneceu essa, pela qual todas as
coisas são.
Os homens, na primeira idade do mundo, foram arrastados em toda
espécie de desordens, e havia, entretanto, santos como Enoc, Lamec e
outros que esperavam com paciência o Cristo prometido desde o início
do mundo. Noé viu a malícia dos homens no mais alto grau e mereceu
salvar o mundo em sua pessoa pela esperança do Messias, de quem foi a
figura. Abraão estava cercado de idólatras quando Deus lhe deu a
conhecer o mistério do Messias, a quem saudou à distância; no tempo de
Isaac e de Jacó, a abominação estava espalhada por toda a terra, mas
esses santos viviam em sua fé, e Jacó moribundo, ao abençoar os filhos,
exclama num transporte que lhe interrompe o discurso: “Espero, ó meu
Deus, o salvador que prometeste, salutare tuum expectabo domine.”
Os egípcios estavam infectados tanto de idolatria como de magia, o
próprio povo de Deus estava sendo arrastado por seu exemplo.
Entretanto Moisés e outros viam aquele que eles não viam e o adoravam
de olhos voltados para os dons eternos que ele lhes preparava.
Os gregos e os latinos, a seguir, fizeram reinar as falsas divindades,
os poetas fizeram cem diversas teologias. Os filósofos repartiram-se em
mil seitas diferentes. E entretanto continuava havendo, no coração da
Judeia, homens escolhidos que prediziam a vinda daquele Messias que
só era conhecido por eles. Finalmente ele veio na consumação dos
tempos e desde então viu-se nascer tantos cismas e heresias, desabarem
tantos estados, tantas mudanças em todas as coisas, e essa igreja que
adora aquele que sempre foi subsistiu sem interrupção e – o que é
admirável, incomparável e absolutamente divino –essa religião que
sempre durou também sempre foi combatida. Mil vezes ela esteve às
vésperas de uma destruição universal e, todas as vezes que esteve nesse
estado, Deus a reergueu pelos feitos extraordinários do seu poder. Pois o
que é admirável é que ela se tenha mantido sem ceder nem se dobrar sob
a vontade dos tiranos, porque não é estranho que um estado subsista
quando às vezes fazem com que suas leis cedam à necessidade; mas que
– Vejase o círculo em Montaigne.

282 (616)
Perpetuidade.
Sempre se acreditou no Messias. A tradição de Adão ainda era viva
em Noé e Moisés. Os profetas predisseram-no desde então, predizendo
sempre outras coisas cujos acontecimentos, que aconteciam de tempos
em tempos à vista dos homens, marcavam a verdade de sua missão e,
consequentemente, a de suas promessas concernentes ao Messias. Jesus
Cristo fez milagres, e os apóstolos também, que converteram todos os
pagãos e, mediante isso, sendo realizadas todas as profecias, o Messias
fica provado para sempre.

283 (655)
As seis idades, os seis pais das seis idades, as seis maravilhas na
entrada das seis idades, os seis orientes na entrada das seis idades.

284 (605)
A única religião contra a natureza, contra o senso comum, contra os
nossos prazeres é a única que sempre permaneceu.

285 (867)
Se a antiga Igreja estava no erro, a Igreja caiu. Se ela hoje estivesse
no erro, não é a mesma coisa, porque ela continua tendo a máxima
superior da tradição da crença da antiga Igreja. E assim essa submissão e
essa conformidade à antiga Igreja prevalece e corrige tudo. Mas a antiga
Igreja não supunha a Igreja futura e não tinha a ver com ela, como
supomos e temos a ver com a antiga.

286 (609)
2 espécies de homens em cada religião.
Entre os pagãos uns eram adoradores de animais e outros, adoradores
de um só Deus na religião natural.
Entre os judeus, os carnais e os espirituais que eram os cristãos da lei
antiga.
Entre os cristãos, os grosseiros que são os judeus da lei nova.
Os judeus carnais esperavam um Messias carnal e os cristãos
grosseiros creem que o Messias os dispensou de amar a Deus. Os
verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos adoram um Messias que os
faz amar a Deus.

287 (607)
Quem julgar a religião dos judeus pelos grosseiros a conhecerá mal.
Ela está visível nos livros sagrados e na tradição dos profetas que
fizeram ouvir bastante que não tomavam as escrituras pela letra. Assim a
nossa religião é divina no Evangelho, nos apóstolos e na tradição, mas é
ridícula naqueles que a tratam mal.
O Messias, segundo os judeus carnais, deve ser um grande príncipe
temporal. Jesus Cristo, segundo os cristãos carnais, veio dispensar-nos
de amar a Deus e dar-nos sacramentos que operam tudo sem nós; nem
um nem outro é a religião cristã, nem a judaica.
Os verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos sempre esperaram
um Messias que os fizesse amar a Deus e por esse amor triunfar de seus
inimigos.

288 (689)
Moisés, Dt 30. promete que Deus circuncidará os seus corações para
os tornar capazes de amá-lo.

289 (608)
Os judeus carnais ficam a meio caminho entre os cristãos e os
pagãos. Os pagãos não conhecem a Deus e não amam senão a terra; os
judeus conhecem o verdadeiro Deus e não amam senão a terra; os
cristãos conhecem o verdadeiro Deus e não amam a terra. Os judeus e os
pagãos amam os mesmos bens. Os judeus e os cristãos conhecem o
mesmo Deus.
Os judeus eram de dois tipos. Uns só tinham as afeições pagãs,
outros tinham as afeições cristãs.

XXII. PROVAS DE MOISÉS

290 (626)
Outro círculo.
A longevidade dos patriarcas, em vez de fazer com que as histórias
das coisas passadas se perdessem, servia, ao contrário, para as conservar.
Pois o que faz com que às vezes não se esteja bastante bem informado da
história dos ancestrais é que nunca se viveu com eles, que não raro eles
já tinham morrido antes que atingíssemos a idade da razão. Ora, no
tempo em que os homens viviam tão longamente, os filhos viviam muito
tempo com os pais. Conversavam muito com eles. Ora, a respeito de que
conversavam senão da história de seus antepassados, pois que toda a
história estava reduzida a essa, já que não tinham estudos, nem ciências,
nem artes, que ocupam uma grande parte dos discursos da vida? Assim,
vê-se que naquele tempo os povos tinham um cuidado particular em
conservar as suas genealogias.

291 (587)
Esta religião tão grande em milagres, santos, puros, irrepreensíveis,
sábios e grandes testemunhas, mártires; reis – Davi – estabelecidos;
Isaías, príncipe de sangue; tão grande em ciência depois de ter exibido
todos os seus milagres e toda a sua sabedoria. Ela reprova tudo isso e diz
que não tem nem sabedoria, nem sinal, mas a cruz e a loucura.
Porque aqueles que por esses sinais e essa sabedoria mereceram o
vosso crédito, e que vos provaram o seu caráter, declaram-vos que nada
disso tudo nos pode mudar e nos tornar capazes de conhecer e de amar a
Deus, a não ser a virtude da loucura da cruz, sem sabedoria nem sinal, e
nunca os sinais sem essa virtude.
Assim a nossa religião é louca ao se olhar a causa eficaz, e sábia ao
se olhar a sabedoria que a ela prepara.

292 (624)
Provas de Moisés.
Por que Moisés vai fazer a vida dos homens tão longa e tão poucas
gerações?
Porque não é o comprimento dos anos, mas o grande número de
gerações, que torna as coisas obscuras.
Porque a verdade só se altera pela mudança dos homens.
E entretanto ele coloca as duas coisas mais memoráveis que jamais
se possam imaginar, a saber, a criação e o dilúvio, tão próximas que se
pode tocar nelas.

293 (204 bis)


Se se deve dar oito dias, deve-se dar toda a vida.
294 (703)
Enquanto os profetas foram pela manutenção da lei, o povo foi
negligente. Mas desde quando não houve mais profetas o zelo sucedeu.

295 (629)
Josefo esconde a vergonha de sua nação.
Moisés não esconde a própria vergonha nem…
Quis mihi det ut omnes prophetent54.
Ele estava cansado do povo.

296 (625)
Sem, que viu Lamech, que viu Adão, viu também Jacó, que viu
aqueles que viram Moisés: portanto, o dilúvio e a criação são
verdadeiros. Isso é conclusivo entre certas pessoas que entendem bem.

297 (702)
Zelo do povo judeu pela lei e principalmente desde que não houve
mais profetas.

XXIII. PROVAS DE JESUS CRISTO

298 (283)
A ordem. Contra a objeção de que as Escrituras não têm ordem.
O coração tem sua ordem, o espírito tem a sua que procede por
princípio e demonstração. O coração tem outra. Não se prova que se
deve ser amado expondo por ordem as causas do amor; isso seria
ridículo.

Jesus Cristo, São Paulo têm a ordem da caridade, não do espírito,


pois queriam rebaixar, não instruir.
Com Santo Agostinho dá-se o mesmo. Essa ordem consiste
principalmente na digressão sobre cada ponto que tem relação com o
fim, para mostrá-lo sempre.
299 (742)
O Evangelho só fala da virgindade da Virgem Maria até o
nascimento de Jesus Cristo. Tudo com relação a Jesus Cristo.

300 (786)
Jesus Cristo numa obscuridade (segundo o que o mundo chama de
obscuridade) tal que os historiadores, só escrevendo sobre as coisas
importantes dos estados, mal o perceberam.

301 (772)
Santidade.
Effundam spiritum meum55. Todos os povos estavam na infidelidade
e na concupiscência, toda a terra ficou ardente de caridade: os príncipes
abandonam a sua grandeza, as moças sofrem o martírio. De onde vem
essa força? é que o Messias chegou. Eis aí o efeito e as marcas de sua
vinda.

302 (809)
As combinações dos milagres.

303 (799)
Um artesão que fala das riquezas, um procurador que fala da guerra,
da realeza etc., mas o rico fala bem das riquezas, o rei fala friamente de
um grande donativo que acaba de fazer, e Deus fala bem de Deus.

304 (743)
Provas de Jesus Cristo.
Por que o livro de Ruth, conservado.
Por que a história de Thamar.

305 (638)
Provas de Jesus Cristo.
Não é ter estado cativo tê-lo estado com a garantia de ser libertado,
dentro de 70 anos, mas agora eles o estão sem esperança nenhuma.
Deus lhes prometeu que, ainda que os dispersasse pelos cantos do
mundo, se no entanto fossem fiéis à sua lei, ele voltaria a reuni-los. São
muito fiéis a ela e permanecem oprimidos.

306 (763)
Os judeus, testando se ele era Deus, mostraram que ele era homem.

307 (764)
A Igreja teve tanta dificuldade para mostrar que Jesus Cristo era
homem, contra aqueles que negavam isso, quanto para mostrar que ele
era Deus, e as aparências eram igualmente grandes.

308 (793)
A distância infinita entre os corpos e os espíritos figura a distância
infinitamente mais infinita entre os espíritos e a caridade, porque esta é
sobrenatural.

Todo o brilho das grandezas não tem lustre para as pessoas que estão
nas buscas do espírito.

A grandeza das pessoas de espírito é invisível para os reis, os ricos,


os capitães, para todos esses grandes da carne.

A grandeza da sabedoria, que não é nenhuma senão de Deus, é


invisível para os carnais e para as pessoas de espírito. São três ordens
diferentes, de gênero.

Os grandes gênios têm o seu império, o seu brilho, a sua grandeza, a


sua vitória e o seu lustre, e não têm nenhuma necessidade das grandezas
carnais com as quais não têm relação. Eles são vistos, não com os olhos,
mas com os espíritos. Isso basta.

Os santos têm o seu império, o seu brilho, a sua vitória, o seu lustre,
e não têm nenhuma necessidade das grandezas carnais ou espirituais,
com as quais não têm nenhuma relação porque elas nada lhes
acrescentam nem tiram. Eles são vistos por Deus e pelos anjos, não com
os corpos nem com os espíritos curiosos. Deus lhes basta.
Arquimedes sem brilho seria objeto da mesma veneração. Ele não
travou batalhas para os olhos, mas forneceu a todos os espíritos as suas
invenções. Como ele brilhou para os espíritos!

Jesus Cristo sem bens, e sem nenhuma produção exterior de ciência,


está em sua ordem de santidade. Não produziu invenções. Não reinou,
mas foi humilde, paciente, santo, santo, santo para Deus, terrível para os
demônios, sem nenhum pecado. Como ele veio em grande pompa e
numa prodigiosa magnificência aos olhos do coração que veem a
sabedoria!

Teria sido inútil a Arquimedes mostrar-se como príncipe nos seus


livros de geometria, embora ele o fosse.

Teria sido inútil a N. S. Jesus Cristo, para brilhar no seu reino de


santidade, vir como rei, mas veio realmente com o brilho de sua ordem.

É bem ridículo escandalizar-se com a baixeza de Jesus Cristo, como


se essa baixeza fosse da mesma ordem da grandeza que ele vinha
mostrar.
Considere-se essa grandeza na sua vida, na sua paixão, na sua
obscuridade, na sua morte, na eleição dos seus, no seu abandono, na sua
secreta ressurreição e no resto. Será vista tão grande que não se terá
motivo para escandalizar-se com uma baixeza que não está nela.

Mas há quem não consiga admirar senão as grandezas carnais como


se não houvesse grandezas espirituais. E outros que só admiram as
espirituais, como se não houvesse outras infinitamente mais elevadas na
sabedoria.

Todos os corpos, o firmamento, as estrelas, a terra e os seus reinos


não valem o menor dos espíritos. Porque ele conhece tudo isso e a si
mesmo; e os corpos, nada.

Todos os corpos juntos e todos os espíritos juntos e todas as suas


produções não valem o menor movimento de caridade. Isto é de uma
ordem infinitamente mais elevada.

De todos os corpos juntos não se poderia conseguir um


pensamentozinho. Isto é impossível e de outra ordem. De todos os
corpos e espíritos não se poderia tirar um movimento de verdadeira
caridade, isto é impossível, e de uma outra ordem sobrenatural.

309 (797)
Provas de Jesus Cristo.
Jesus Cristo disse as grandes coisas com tamanha simplicidade que
parece que ele não as pensou, e com tama nha nitidez entretanto que se
vê bem o que ele pensava delas. Essa clareza acrescida e essa
ingenuidade é admirável.

310 (801)
Provas de Jesus Cristo.
A hipótese de serem os apóstolos enganadores é absurda.
Acompanhe-se essa hipótese em toda a sua extensão, imaginem-se esses
doze homens reunidos depois da morte de Jesus Cristo, armando a
intriga de que ele havia ressuscitado. Agindo assim, atacam todas as
potências. O coração dos homens é estranhamente inclinado para a
leviandade, a mudança, as promessas, os bens, por menos que um deles
se desmentisse em razão de todos esses atrativos e, mais ainda, pelas
prisões, pelas torturas e pela morte, estavam todos perdidos. Siga-se
isso.

311 (640)
Coisa estranha e digna de particular atenção é ver esse povo judeu
subsistir há tantos anos e vê-lo sempre miserável, sendo necessário para
a prova de Jesus Cristo que ele subsista para prová-lo, e que seja
miserável, pois que o crucificaram. E embora ser miserável e subsistir
sejam contrários, ele continua subsistindo apesar da sua miséria.

312 (697)
Prodita lege.
Impleta cerne.
Implenda collige56.

313 (569) Canônicos.


Os heréticos no início da Igreja servem para provar os canônicos.

314 (639)
Quando Nabucodonosor levou o povo de medo que se acreditasse
que o cetro fosse retirado de Judá, disse aos judeus que lá ficariam
pouco, e que lá ficariam, e que seriam restabelecidos.

Eles sempre foram consolados pelos profetas; os seus reis


continuaram.
Mas a segunda destruição é sem promessa de restabelecimento, sem
profetas, sem rei, sem consolação, sem esperança, porque o cetro é
retirado para sempre.
315 (752)
Moisés primeiro ensina a Trindade, o pecado original, o Messias.
Davi grande testemunha.
Rei, bom, pronto a perdoar, alma boa, bom espírito, poderoso. Ele
profetiza e o seu milagre acontece. Isso é infinito.

Bastava-lhe dizer que era ele o Messias, se tivesse tido vaidade, pois
as profecias são mais claras com relação a ele do que com relação a
Jesus Cristo.

E com São João dá-se o mesmo.

316 (800)
Quem ensinou aos evangelistas as qualidades de uma alma
perfeitamente heroica, para pintarem-na tão perfeitamente em Jesus
Cristo? Por que eles o fazem fraco em sua agonia? Não sabem pintar
uma morte constante? Sim, pois o próprio São Lucas pinta a de Santo
Estêvão mais forte do que a de Jesus Cristo.
Fazem-no capaz de temor, antes que a necessidade de morrer tenha
chegado; e depois, todo forte.
Mas, quando o fazem tão perturbado, é quando ele se perturba a si
mesmo, e quando os homens o perturbam, ele é forte.

317 (701)
O zelo dos judeus por sua lei e por seu templo. Josefo e Fílon judeu,
ad Caium.

Que outro povo tem semelhante zelo? Era preciso que eles o
tivessem.

Jesus Cristo predito quanto ao tempo e ao estado do mundo. O duque


tirado da coxa57, e a 4a monarquia58.

Como se é feliz por possuir essa luz nesta escuridão.


Como é belo ver pelos olhos da fé, Dario e Ciro, Alexandre, os
romanos, Pompeu e Herodes, agirem sem o saber para a glória do
Evangelho.
318 (755)
A discordância aparente dos evangelhos.

319 (699)
A sinagoga precedeu a Igreja; os judeus, os cristãos. Os profetas
predisseram os cristãos. São João. Jesus Cristo.

320 (178)
Macróbio59. Dos inocentes mortos por Herodes.

321 (600)
Todo homem pode fazer o que fez Maomé, pois ele não fez milagres,
nem foi prenunciado. Nenhum homem pode fazer o que fez Jesus Cristo.

322 (802)
Os apóstolos foram enganados ou enganadores. É difícil admitir uma
coisa e outra coisa; pois não é possível tomar um homem como tendo
ressuscitado.

Enquanto Jesus Cristo estava com eles, podia dar-lhes sustentação;


mas depois, se não apareceu para eles, quem os fez agir?

XXIV. PROFECIAS

323 (773)
Ruína dos judeus e dos pagãos por Jesus Cristo: omnes gentes
venient et adorabunt eum60. Parum est ut61 etc. Postula a me62.
Adorabunt eum omnes reges.
Testes iniqui63.
Dabit maxillam percutienti. Dederunt fel in escam64.

324 (730)
Que então a idolatria seria derrubada, que esse Messias abateria
todos os ídolos e faria entrar os homens no culto do verdadeiro Deus.
Que os templos dos ídolos seriam abatidos e que entre todas as
nações e em todos os lugares do mundo lhe seria oferecida a hóstia pura,
não animais.

324 (730)
Que ele seria rei dos judeus e dos gentios, e eis esse rei dos judeus e
dos gentios oprimido por estes e aqueles que conspiram para a sua
morte, dominando uns e outros e destruindo tanto o culto de Moisés em
Jerusalém, que era o seu centro, de que faz a primeira igreja, e o culto
dos ídolos em Roma, que era o seu centro, e de que faz a sua principal
igreja.

325 (733)
Que ensinaria aos homens a via perfeita.
E nunca veio, nem antes nem depois dele, homem algum que tenha
ensinado nada de divino que se aproximasse disso.

326 (694)
E o que coroa tudo isso é a predição para que não se diga que foi
obra do acaso.
Alguém com oito dias apenas para viver não deixará de tomar
partido por acreditar que tudo isso não é obra do acaso.
Ora, se as paixões não nos dominassem, oito dias e cem anos seriam
a mesma coisa.

327 (770)
Depois que muita gente veio antes, veio enfim Jesus Cristo que
disse: Eis-me aqui e eis o tempo. Aquilo que os profetas disseram que
deveria advir na sequência dos tempos, digo-vos que os meus apóstolos
vão fazê-lo. Os judeus vão ser rejeitados. Jerusalém será logo destruída e
os pagãos vão entrar no conhecimento de Deus. Os meus apóstolos o
farão depois que tiverdes matado o herdeiro da vinha.
E depois os apóstolos disseram aos judeus: Vós sereis amaldiçoados.
Celso zombava disso. E aos pagãos: Ireis entrar no conhecimento de
Deus, e isso aconteceu então.

328 (732)
Que então não se ensinará mais ao próximo dizendo: “Eis o Senhor.
Pois Deus se fará sentir a todos.” “Vossos filhos profetizarão.”
“Colocarei meu espírito e meu temor em vosso coração.”
Tudo isso é a mesma coisa.

Profetizar é falar de Deus, não mediante provas exteriores, mas por


sentimento interior e imediato.

329 (734)
Que Jesus Cristo seria pequenino no início e cresceria em seguida. A
pedrinha de Daniel65.
Se eu absolutamente não tivesse ouvido falar do Messias, mesmo
assim, depois das predições tão admiráveis da ordem do mundo que vejo
cumpridas, vejo que é algo divino, e se eu soubesse que esses mesmos
livros prediziam um Messias, ficaria seguro de que ele viria; e vendo que
eles situam o tempo dele antes da destruição do segundo templo, eu diria
que ele já teria vindo.

330 (725)
Profecias.
A conversão dos egípcios.
Is. 19. 19.
Um altar no Egito ao verdadeiro Deus.

331 (748)
No tempo do Messias esse povo66 se divide.
Os espirituais abraçaram o Messias, os grosseiros ficaram para lhe
servir de testemunhas.

332 (710)
Profecias.
Quando um só homem tivesse feito um livro das predições de Jesus
Cristo quanto ao tempo e quanto ao modo e Jesus Cristo tivesse vindo
conformemente a essas profecias, isso seria de uma força infinita.
Mas há muito mais do que isso. É uma série de homens que, durante
quatro mil anos, constantemente e sem variações vêm predizendo, um
após o outro, esse mesmo advento. É um povo inteiro que o anuncia e
que subsiste há 4.000 anos para dar corporalmente testemunho das
garantias que tem, e que não se desvia, sejam quais forem as ameaças e
perseguições que se lhes façam. Isso é muito mais considerável.

333 (708)
Profecias.
O tempo predito pelo estado do povo judeu, pelo estado do povo
pagão, pelo estado do templo, pelo número de anos.

334 (716)
Oséias – 3 (4 )
Isaías 4 (2) 48. Eu o predisse há muito tempo a fim de que se
soubesse que sou eu. 54. 60 (61) e último.

Jado a Alexandre.

335 (706)
A maior das provas de Jesus Cristo são as profecias. Foi a elas que
Deus dedicou maior cuidado, pois o acontecimento que as cumpriu é um
milagre subsistente desde o nascimento da Igreja até o fim. Assim Deus
suscitou profetas no decorrer de 1.600 anos e depois, durante 400 anos,
ele dispersou todas essas profecias com todos os judeus que as levavam
para todos os lugares do mundo.
Eis aí qual foi a preparação do nascimento de Jesus Cristo, pois
devendo o seu Evangelho ser acreditado por todo o mundo, foi
necessário não apenas que houvesse profecias para fazer acreditar nele,
mas que essas profecias estivessem pelo mundo todo para fazer com que
fosse abraçado por todo o mundo.

336 (709)
É preciso ser audacioso para prever uma mesma coisa de tantas
maneiras.
Era necessário que as 4 monarquias, idólatras ou pagãs, o fim do
reino de Judá e as 70 semanas acontecessem ao mesmo tempo, e o
conjunto dessas coisas, antes que o segundo templo fosse destruído.

337 (753)
Herodes acreditou no Messias. Ele tinha arrebatado o cetro de Judá,
mas não era de Judá. Isso constituiu uma seita considerável.
E Barcosba e um outro recebido pelos judeus. E o ruído que corria
por toda parte naquele tempo.
Suet. – Tácito. Josefo.

Como devia ele ser o Messias, visto que por ele o cetro devia ficar
eternamente em Judá e que à sua chegada o cetro devia ser retirado de
Judá.
Para fazer com que vendo eles não vissem e ouvindo não ouvissem,
nada podia ser feito melhor.

Maldição dos gregos67 contra aqueles que contam os períodos de


tempo.

338 (724)
Predição.
Que na 4a monarquia, antes da destruição do segundo templo, antes
que a dominação dos judeus fosse retirada na septuagésima semana de
Daniel, enquanto ainda durava o segundo templo, os pagãos seriam
instruídos e levados ao conhecimento do Deus adorado pelos judeus, que
aqueles que o amam seriam libertados de seus inimigos, repletos de seu
temor e de seu amor.
E aconteceu que na 4a monarquia, antes da destruição do segundo
templo etc., os pagãos em massa adoram a Deus e levam vida angélica.
As moças consagram a Deus a sua virgindade e a sua vida, os
homens renunciam a todos os prazeres. Aquilo de que Platão não pôde
persuadir a uns poucos homens escolhidos e tão cultos, uma força
secreta persuade a cem mil homens ignorantes, pela virtude de umas
poucas palavras.
Os ricos deixam os seus bens, os filhos deixam as delicadezas da
casa paterna para abraçar a austeridade de um deserto etc. Vide Fílon
judeu.
Que é tudo isso? É o que foi predito tanto tempo antes; há 2.000 anos
nenhum pagão havia adorado o Deus dos judeus, e no tempo predito
uma multidão de pagãos adora esse Deus único. Os templos são
destruídos, os próprios reis se submetem à cruz. Que é tudo isso? É o
espírito de Deus que está espalhado por sobre a terra.
Nenhum pagão desde Moisés até Jesus Cristo, segundo os próprios
rabinos; a multidão de pagãos depois de Jesus Cristo crê nos livros de
Moisés e observa a sua essência e espírito, só rejeitando deles o que é
inútil.
339 (738)
Tendo os profetas apresentado diversas marcas que deviam todas
apontar para o advento do Messias, era preciso que todas essas marcas se
cumprissem ao mesmo tempo. Assim, era preciso que a quarta
monarquia já tivesse acontecido quando as setenta semanas de Daniel se
cumprissem e que o cetro fosse então retirado de Judá.
E tudo isso aconteceu sem nenhuma dificuldade, e que então
chegasse o Messias, e Jesus Cristo chegou então, que se disse o Messias,
e tudo isso é ainda sem dificuldade e marca bem a verdade das profecias.

340 (720)
Non habemus regem nisi Caesarem68. Portanto Jesus Cristo era o
Messias, visto que não tinham outro rei senão um estrangeiro e não
queriam outro.

341 (723)
Profecias.
As 70 semanas de Daniel são equívocas quanto ao termo inicial por
causa dos termos da profecia. E quanto ao termo final por causa das
divergências dos cronologistas. Mas toda essa diferença não vai até 200
anos.

342 (637)
Profecias.
O cetro não foi interrompido pelo cativeiro de Babilônia porque o
seu retorno era pronto e predito.

343 (695)
Profecias. Morreu o grande Pan69.

344 (756)
Que se pode ter senão veneração por um homem que prediz
claramente coisas que vêm a acontecer e que declara o seu intento tanto
de cegar como de esclarecer, e que mescla obscuridades entre coisas
claras que acontecem?
345 (727 bis)
Parum est ut… Vocação dos gentios (Is. LII, 15).

346 (729)
Predições.
Está predito que no tempo do Messias ele viria estabelecer uma nova
aliança que faria esquecer a saída do Egito – Jer. 23. 5. – Is. 43. 16 – que
colocaria a sua lei não no exterior, mas no coração, que colocaria o seu
temor, que só tinha estado no exterior, no âmago do coração…
Quem não vê a lei cristã em tudo isso?

347 (735)
Profecias.
Que os judeus reprovariam Jesus Cristo e que seriam reprovados por
Deus por essa razão; que a vinha eleita não daria senão agraço; que o
povo escolhido seria infiel, ingrato e incrédulo Populum non credentem
et contradicentem70.
Que Deus os ferirá de cegueira e que eles tatearão em pleno meio-dia
como cegos.
Que um precursor viria antes dele.

348 (718)
O reino eterno da raça de Davi, 2. Cron. por todas as profecias e com
juramento. E não se cumpriu temporalmente. Jr 33. 20.

XXV. FIGURAS PARTICULARES

349 (652)
Figuras particulares.

(T ). Dupla lei, duplas tábuas da lei, duplo templo, duplo cativeiro.

350 (623)
(Jafé inicia a genealogia.)
José cruza os braços e prefere o jovem71.

XXVI. MORAL CRISTÃ

351 (537)
O cristianismo é estranho; ordena ao homem que se reconheça como
vil e até abominável, e lhe ordena que queira ser semelhante a Deus.
Sem esse contrapeso, essa elevação o faria horrivelmente vaidoso, ou
esse rebaixamento o faria horrivelmente abjeto.

352 (526)
A miséria persuade o desespero.
O orgulho persuade a presunção.
A encarnação mostra ao homem a grandeza de sua miséria pela
grandeza do remédio que se fez necessário.

353 (529)
Não um rebaixamento que nos torne incapazes do bem nem uma
santidade isenta de mal.
354 (524)
Não há doutrina mais própria para o homem do que essa que o instrui
sobre a sua dupla capacidade de receber e de perder a graça por causa do
duplo perigo a que está sempre exposto de desespero ou de orgulho.

355 (767)
De tudo que há sobre a terra, ele só toma parte nos desprazeres, não
nos prazeres. Ama aos seus próximos, mas a sua caridade não se
restringe a esses limites e se espalha sobre os seus inimigos e depois
sobre os de Deus.

356 (539)
Que diferença existe entre um soldado e um monge cartuxo quanto à
obediência? Pois ambos são igualmente obedientes e dependentes, e
submetidos a exercícios igualmente penosos, mas o soldado espera
sempre tornar-se senhor e não se torna nunca, porque os capitães e os
próprios príncipes são sempre escravos e dependentes; mas o soldado
continua esperando e trabalhando para consegui-lo, ao passo que o
cartuxo faz voto de nunca ser outra coisa senão dependente. Assim, eles
não diferem na servidão perpétua, que ambos sempre têm, mas na
esperança que um tem sempre e o outro nunca tem.

357 (541)
Ninguém é tão feliz como um verdadeiro cristão, nem tão razoável,
nem tão virtuoso, nem tão amável.

358 (538)
Com quão pouco orgulho um cristão acredita estar unido a Deus!
Com quão pouca abjeção ele se iguala aos vermes da terra! Que bela
maneira de receber a vida e a morte, os bens e os males!

359 (481)
Os exemplos das mortes generosas dos lacedemônios e outros pouco
nos tocam, pois o que é que isso nos traz?
Mas o exemplo da morte dos mártires nos toca porque são nossos
membros. Temos um laço comum com eles. A resolução deles pode
formar a nossa, não somente pelo exemplo, mas porque talvez tenha
merecido a nossa.
Nada disso se dá com os exemplos dos pagãos. Não temos ligação
com eles. Como não se fica rico por ver um
estranho que o é, mas por ver o próprio pai ou o marido que o sejam.

360 (482)
Início dos membros pensantes. Moral.
Tendo Deus feito o céu e a terra que não sentem a felicidade de seu
ser, quis fazer seres que a conhecessem e que compusessem um corpo de
membros pensantes. Pois os nossos membros não sentem a felicidade de
sua união, de sua admirável inteligência, do cuidado que a natureza tem
de neles infundir os espíritos e de fazê-los crescer e durar. Como
ficariam felizes se o sentissem, se o vissem! Mas seria preciso para isso
que tivessem inteligência para conhecê-lo, e boa vontade para consentir
na inteligência da alma universal. Pois se, tendo recebido a inteligência,
dela se servissem para reter em si mesmos o alimento, sem deixá-lo
passar para os outros membros, seriam não apenas injustos, mas também
miseráveis, e se odiariam ao invés de se amarem, visto que sua beatitude
tanto quanto o seu dever consistem em consentir com a conduta da alma
inteira à qual pertencem, que os ama mais do que eles próprios se amam.

361 (209)
És menos escravo por seres amado e lisonjeado por teu senhor? Tens
o teu quinhão de felicidade, escravo, teu senhor te lisonjeia. Logo irá
espancar-te.

362 (472)
A vontade própria nunca satisfará, ainda quando tivesse o poder de
realizar tudo que quer; mas fica-se satisfeito logo que se renuncia a ela.
Sem ela, não se pode estar descontente; por ela, não se pode estar
contente.
363 (914)
Eles deixam agir a concupiscência e retêm o escrúpulo, quando seria
preciso fazer o contrário.

364 (249)
É ser supersticioso colocar a esperança nas formalidades, mas é ser
soberbo não querer submeter-se a elas.

365 (496)
A experiência mostra-nos uma diferença enorme entre a devoção e a
bondade.

366 (747 ter)


Duas espécies de homens em cada religião (ver Perpetuidade).
Superstição, concupiscência.
367 (672)
Não formalistas.
Quando São Pedro e os apóstolos deliberam abolir a circuncisão
quando se tratava de agir contra a lei de Deus, não consultam os
profetas, mas simplesmente a recepção do Espírito Santo na pessoa dos
incircuncisos.
Eles julgam mais certo que Deus aprove aqueles a quem cumula com
seu espírito do que o princípio que manda observar a lei.
Sabiam que o fim da lei só era o Espírito Santo e que assim, visto
que se podia tê-lo sem circuncisão, esta não era necessária.

368 (474)
Membros. Começar por aí.
Para se regular o amor que se deve a si mesmo é preciso imaginar
que se tem um corpo cheio de membros pensantes, pois somos membros
do todo, e ver como cada membro deveria amar-se etc.
369 (611)
República.
A República cristã e mesmo a judaica só teve a Deus por senhor,
como nota Fílon Judeu, De la monarchie.
Quando eles combatiam, era só por Deus e principalmente só de
Deus esperavam. Só consideravam as suas cidades como pertencentes a
Deus e as conservavam para ele. I Paralip. 19. 13.

370 (480)
Para fazer com que os membros sejam felizes é necessário que
tenham uma vontade e que a conformem ao corpo.

371 (473)
Imagine-se um corpo cheio de membros pensantes.

372 (483)
Ser membro é não ter nem vida, nem ser e nem movimento senão
pelo espírito do corpo e para o corpo. O membro separado, não vendo
mais o corpo a que pertence, já não tem mais que um ser que está a
perecer e a morrer. Entretanto ele acredita ser um todo e, não vendo
nenhum corpo de que dependa, acredita não depender senão de si e quer
ele próprio fazer-se centro e corpo. Mas, como não possui em si
princípio de vida, não faz senão extraviar-se e vacila na incerteza do seu
ser, sentindo claramente que não é corpo e não vendo, no entanto, que
seja membro de um corpo. Finalmente, quando vem a conhecer-se, está
como se regressasse a si mesmo e não mais se ama a não ser pelo corpo.
Lamenta os seus extravios passados.
Ele não poderia, por natureza, amar outra coisa senão por si mesmo e
para submetê-la a si porque cada coisa se ama mais do que a tudo.
Mas ao amar o corpo, ama a si mesmo, porque só tem existência
nele, por ele e para ele. Qui adhaeret deo unus spiritus est72.

O corpo ama a mão, e a mão, se tivesse uma vontade, deveria amar-


se da mesma maneira que a alma a ama; todo amor que vai além é
injusto.

Adhaerens deo unus spiritus est73; nós nos amamos porque somos
membros de Jesus Cristo; amamos a Jesus Cristo porque ele é o corpo de
que nós somos membros. Tudo é um. Um está no outro como as três
pessoas.

373 (476)
É preciso amar só a Deus e odiar só a si mesmo.

Se o pé sempre tivesse ignorado que pertence ao corpo e que há um


corpo de que depende, se só tivesse tido o conhecimento e o amor de si,
e depois viesse a saber que pertence a um corpo do qual depende, como
ficaria arrependido, como ficaria confuso de sua vida passada, por ter
sido inútil ao corpo que lhe infundiu a vida, que o teria aniquilado se o
tivesse rejeitado e separado de si como se separava dele! Quantos rogos
para ser mantido ali! e com que submissão haveria de deixar-se governar
pela vontade que rege o corpo, indo até ao consentimento de ser
amputado, caso necessário! ou perderia a sua qualidade de membro;
porque é preciso que todo membro aceite perecer pelo corpo que é o
único pelo qual tudo é74.

374 (475)
Se os pés e as mãos tivessem vontade particular, jamais estariam em
sua ordem a não ser submetendo essa vontade particular à vontade
primeira que governa o corpo inteiro. Fora daí, ficam na desordem e na
infelicidade; mas, ao querer apenas o bem do corpo, promovem o seu
próprio bem.

375 (503)
Os filósofos consagraram os vícios colocando-os no próprio Deus; os
cristãos consagraram as virtudes.

376 (484)
Duas leis bastam para reger toda a República cristã, melhor do que
todas as leis políticas.

XXVII. CONCLUSÃO

377 (280)
Que há longa distância entre conhecer a Deus e amá-lo.

378 (470)
Se eu tivesse visto um milagre, dizem eles, eu me converteria. Como
garantem que fariam o que ignoram? Imaginam que essa conversão
consiste numa adoração que se faz de Deus como um comércio e uma
conversação tal como a representam para si. A conversão verdadeira
consiste em aniquilar-se diante desse ser universal a quem se irritou
tantas vezes e que pode legitimamente pôr-vos a perder a qualquer
momento, em reconhecer que nada se pode sem ele e que nada se
mereceu dele, afora estar em desgraça. Ela consiste em conhecer que
existe uma oposição invencível entre Deus e nós, e que, sem um
mediador, não pode haver comércio.

379 (825)
Os milagres não servem para converter, mas para condenar. 1. p. q.
113. a. 10. ad. 275.

380 (284)
Não vos admireis de ver pessoas simples crerem sem raciocinar.
Deus lhes dá o seu amor e o ódio de si mesmos. Inclina-lhes o coração a
acreditar. Nunca se crerá, com uma crença útil e de fé, se Deus não
inclinar o coração, e se crerá logo que ele o inclinar.
É isso que Davi conhecia bem. Inclina cor meum Deus in76 etc.

381 (286)
Aqueles que creem sem ter lido os Testamentos é porque têm uma
disposição interior toda santa, e o que ouvem dizer de nossa religião está
em conformidade com essa disposição. Sentem que um Deus os fez. Só
querem amar a Deus, só querem odiar a si mesmos. Sentem que por si
mesmos não têm força para tanto, que são incapazes de ir até Deus e
que, se Deus não vem a eles, são incapazes de qualquer comunicação
com ele, e ouvem dizer em nossa religião que é necessário amar só a
Deus e odiar só a si mesmo, mas que sendo todos corrompidos e
incapazes de Deus, Deus se fez homem para se unir a nós. Não é preciso
mais do que isso para persuadir homens que têm essa disposição no
coração e que têm esse conhecimento de seu dever e de sua
incapacidade.

382 (287)
Conhecimento de Deus.
Aqueles que vemos ser cristãos sem o conhecimento das profecias e
das provas não deixam de julgar a respeito delas tanto quanto aqueles
que têm esse conhecimento. Eles julgam pelo coração como os outros
julgam pelo espírito. É o próprio Deus que os inclina a crer e assim eles
ficam muito eficazmente persuadidos.
(Dir-se-á que essa maneira de julgar dessas coisas não é segura e
que é seguindo-a que os hereges e os infiéis se extraviam.)
(Responder-se-á que os hereges e os infiéis dirão a mesma coisa;
mas eu respondo a isso que temos provas de que Deus-imprime-inclina
verdadeiramente aqueles a quem ama a crer na religião cristã e que os
infiéis não têmnenhuma prova do que dizem, e assimas nossas
proposições, ainda que semelhantes nos termos, diferem em que uma é
inteiramente sem provas e a outra muito solidamente provada.)
(eorum qui amant – Deus inclina o coração daqueles a quem ama –
Deus inclina corda eorum – aquele que o ama – aquele a quem ama.)
Confesso que um desses cristãos que creem sem provas não terá
talvez com que convencer um infiel, que dirá o mesmo de si, mas
aqueles que conhecem as provas da religião provarão sem dificuldade
que esse fiel é verdadeiramente inspirado por Deus, embora ele próprio
não possa prová-lo.
Porque como Deus diz em seus profetas (que são indubitavelmente
profetas), que no reino de Jesus Cristo ele espalharia o seu espírito sobre
as nações e que os filhos, as filhas e as crianças da Igreja profetizariam,
está fora de dúvida que o espírito de Deus está sobre uns e não está sobre
outros.

1. Rom. 1, 17: “A justiça de Deus, de fato é aí revelada pela fé e para a fé,


como está escrito: o justo vive da fé.”
2. Rom. X, 17: “A fé vem portanto pela audição, e a audição pela palavra do
Cristo.”
3. Não “eu sei ” mas “eu creio”.
4. Rom. VIII, 20-21: “Pois ela está sujeita à vaidade, não por vontade
própria, mas por consideração para com aquele que a submeteu, mantendo
todavia uma esperança: a criatura também será libertada da escravidão da
corrupção para participar da liberdade da glória dos filhos de Deus.”
5. Alusão à discussão sobre a forma de seu capucho, que agitou a Ordem dos
Frades Menores (franciscanos), no decorrer dos séculos XIII e XIV. Cf. J.-P.
Camus: Santo Agostinho, De l’ouvrage des moines [Da obra dos monges], cap.
XXXII, Paris, 1633.
6. Horácio, Odes, III, 29: “No mais das vezes as mudanças agradam aos
príncipes.” (Citado por Montaigne, Ensaios, I, 42.)
7. Tito Lívio XXXIV, 17: “Catão, enquanto cônsul, para garantir seu domínio
sobre algumas cidades da Espanha, proibiu somente que seus habitantes usassem
armas e, por isso, grande número deles se mataram. Nação feroz, que não
compreende a vida sem o porte das armas.” (Montaigne, Ensaios, I, 14.)
8. Opinion, em francês, é mais forte do que nosso termo “opinião”.
Corresponderia ao que modernamente se chama de “ideologia”. (N. do T.)
9. Cícero, De finibus, V, 21: “Os inícios da virtude são obra da natureza e só;
nossa parte (aquilo a que chamo nossa é o que é pura convenção) está em tirar as
consequências dos princípios que recebemos.”
10. Sêneca, Ep. 95: “É em razão dos senatusconsultos e dos plebiscitos que se
cometem crimes.” (Montaigne, Ensaios, III, 1.)
11. Tácito, Anais, III, 25: “Outrora sofríamos com nossos vícios, hoje
sofremos com nossas leis.” (Montaigne, Ensaios, III, 13.)
12. Santo Agostinho, Cidade de Deus, IV, 27: “Bela religião, em que me
refugiei como um doente que busca sua libertação, e quando indaga sobre essa
verdade que deve libertá-lo, estima-se que é bom para ele que seja enganado.”
(Montaigne, Ensaios, II, 12.)
13. Jo. XXI, 17: “Apascenta as minhas ovelhas”, não “as tuas ovelhas”.
14. Sb. V, 15: “Porque a esperança do mau é como a lã sutil, que é levantada
pelo vento; como a ligeira espuma, que é dispersa pela tempestade; e como a
fumaça que é dispersa pelo vento, e como a memória de um hóspede que é
recebido por um dia, que passa adiante.”
15. Virgílio, Geórgicas, II, 489: “Feliz quem pôde conhecer as causas das
coisas.” (Montaigne, Ensaios, III, 10.)
16. Horácio, Epístola, I, VI, 1: “não se espantar com nada é talvez a única
coisa que pode dar e conservar a felicidade”.
17. Cícero, Tusc., I, 11: “Dessas opiniões, qual é a verdadeira? um deus o
verá.” (Montaigne, Ensaios, II, 12.)
18. Mt. XVIII, 3, 4.: “Tendo chamado a si uma criancinha, Jesus colocou- a
no meio deles (dos discípulos) e disse: Em verdade vos digo, se não vos
converterdes e não fordes como criancinhas, não entrareis no reino dos céus.”
19. Cf. Terêncio, Heautont., IV, 5, 47 – Cícero, de Offic., I, 10 – Charron, De
la Sagesse [Da sabedoria], I, XXXVII, 5: “O direito extremo é uma extrema
injustiça.”
20. Cf. Montaigne, Ensaios, III, 1: “A justiça, em si natural e universal, é
regra de outro modo, muito mais nobremente do que essa outra justiça, especial,
nacional, restrita à necessidade de nossas sociedades.” – Ibid. Cícero, de Offic.,
III, 17: “do verdadeiro direito e da pura justiça não possuímos nenhum modelo
exato e sólido; para nosso uso, só temos uma imagem e uma sombra vã”.
21. I Cor. XV, 33: “As más conversas estragam os bons costumes.” – Cf.
Menandro, Thais, frag. 211, da ed. Meinecke.
22. Animum arcendi parece designar o instinto do cão de guarda. (N. do T.,
cf. edição Brunschvicg.)
23. Pr. VIII, 31: “Meus prazeres estão com os filhos dos homens.” – Joel II,
28: “Derramarei meu espírito sobre toda carne.” – Sl. LXXXI, 6: “Vós sois
deuses.”
24. Sl. XL, 6: “Eu disse em meu coração, filhos dos homens, feno de toda
carne.” – Sl. XLIX, 13: “O homem assemelhou-se às bestas ignorantes.” – Ecles.
III, 18: “E fez-se semelhante a elas.”
25. Jo. XIV, 6: “Ego sum via, veritas et vita. Eu sou o caminho da verdade e
a vida.”
26. Sêneca, Epístola XX: “A fim de que estejas satisfeito de ti mesmo e dos
bens que nascem de ti.”
27. À Port-Royal. Este fragmento foi escrito tendo em vista uma conferência
que Pascal proferiu em Port-Royal, certamente aquela em que expõe o plano do
livro e de que Filleau de la Chaise e Étienne Périer conservaram para nós a
lembrança. (N. do T.)
28. At. XVII, 11: “Eles (os judeus de Bereia) receberam a palavra com a
maior avidez, buscando todos os dias nas Escrituras se assim acontecia.”
29. “Antes o terror que a religião.”
30. Jó VI, 28: “Vede se eu minto.”
31. I Cor. I, 21: “Pois que na sabedoria de Deus o mundo, pela sabedoria,
não reconheceu a Deus, aprouve a Deus salvar aqueles que acreditam, pela
loucura da pregação.”
32. Santo Agostinho, Sermão CXLI: “Aquilo que a curiosidade deles os fizera
descobrir, a sua soberba os fez perder.”
33. São Bernardo, In cantica sermones, LXXXIV: “Quanto melhor se é, pior
se torna, se a si mesmo se atribui aquilo pelo que se é bom.” (Ed. Migne, t. II, p.
1184, referência dada pela edição das Pensées [Pensamentos] de La Bonne
Compagnie, Paris, 1947.)
34. Santo Agostinho, Cidade de Deus, XXI, 10: “A maneira como o espírito
está unido ao corpo não pode ser compreendida pelo homem e, no entanto, isso é
o próprio homem.”
35. Santo Agostinho, Contra Pelágio, IV, 60: “O efeito eles viram; a causa,
não.” Esta reflexão é feita a propósito do 3o livro da República de Cícero, em que
ele descreve a miséria do homem, sem indicar sua causa.
36. São Bernardo, In cantica sermones, LXXXIV: “Embora mereça antes
bofetadas do que beijos, não tenho medo porque amo.” (Ed. Migne, t. II, p. 1186,
referência dada pela edição das Pensées [Pensamentos] de La Bonne Compagnie,
Paris, 1947.)
37. Is. XLIX, 6: “Ele (o Senhor) disse então: “É pouco que me sirvas para
reerguer as tribos de Jacó, e para converter os restos de Israel. Eis que te coloquei
como luz das nações, a fim de que sejas a minha salvação até os confins da terra.”
38. Lc. II, 32: “Luz para o esclarecimento de todos os gentios.”
39. Sl. CXLVII, 20: “Não fez o mesmo para todas as nações.”
40. “Fez o mesmo para todas as nações, é pouco que etc.”
41. Is. VIII, 14: “Em santificação e em escândalo.”
42. Is. XLV. 15: “Em verdade és um Deus escondido.”
43. Jo. IV, 23: “Mas chega uma hora, e ela já chegou, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade…”
44. Jo. I, 29: “No dia seguinte João vê vir a ele Jesus e diz: ‘Eis o cordeiro de
Deus, eis aquele que tira os pecados do mundo.’”
45. Sl. XLIV, 4: “Cinge a tua espada sobre a coxa, poderosíssimo rei…”
46. Jo. I, 47: “Jesus viu vir a ele Natanael, e disse dele: eis verdadeiramente
um israelita em quem não há artifício.”
47. Jo. VIII, 36: “… se pois o Filho vos coloca em liberdade, sereis
verdadeiramente livres.”
48. Ap. XIII, 8: “O cordeiro sacrificado desde as origens do mundo”,
sacrifício perpétuo.”
49. Sl. CIX, 1: “O Senhor disse ao meu Senhor: Senta-te àminha direita…”
50. Cf. Is. V. 25: “Por isso é que foi irritado o furor do Senhor contra o seu
povo…” – Ex. XX, 5: “… porque sou eu o Senhor teu Deus forte, cioso…”
51. Sl. CXLVII, 13: “porque ele reforçou as fechaduras de tuas portas…”
52. Mc. II, 10-11: “Para que saibas que o Filho do homem tem na terra o
poder de remir os pecados (disse ao paralítico): Eu te ordeno, levanta-te, pega o
teu catre e vai para a tua casa.”
53. Tradução feita com base na edição de Francis Kaplan, Les Pensées de
Pascal, Les Éditions du Cerf, Paris, 1982, p. 305. (N. do T.)
54. Cf. Nm. XI, 29: “… Prouvesse a Deus que todo o povo profetizasse, e que
o Senhor lhe desse o seu espírito.” Pascal cita Vatable: “Qui me donnera que tous
prophétisent! ” [Quem me dera que todos profetizassem! ]
55. Je. II, 28: “Derramarei meu espírito sobre toda carne; e os vossos filhos
profetizarão; e também as vossas filhas.”
56. “Lê as profecias. Vê o que foi cumprido. Recolhe o que está por se
cumprir.”
57. Em francês “le duc” (do latim: ducem [cognato do v. duco, conduzir]:
condutor, líder, príncipe, duque…). “Tirado da coxa”, cf. Gênesis, XLIX, 10: “O
cetro não será tirado de Judá, nem o príncipe [duque, líder] de sua descendência,
até que venha aquele que deve ser enviado.” (Bíblia das Ed. Paulinas, trad. Pe.
Matos Soares.) (N. do T.)
58. Daniel, II. Essa passagem se refere ao sonho de Nabucodonosor, em que
desmorona a grande estátua de pés de barro. Dan. II, 40: “E o quarto império será
como ferro; assim como o ferro quebra e doma todas as coisas, assim ele
quebrará e fará todos os outros em migalhas.” Alguns veem nesse quarto império
o Império Romano. (N. do T.)
59. Macróbio, escritor latino do século V, escreveu uma compilação intitulada
Saturnates que é uma fonte preciosa de informações sobre a Antiguidade. (N. do
T.)
60. Cf. Sl. XXI, 28: “Eles se lembrarão do Senhor e se converterão a ele.
Todos os confins da terra e todas as famílias das nações adorarão em sua
presença.”
61. Ver nota 37.
62. Sl. II, 8: “Pedi-me e vos darei as nações como herança…”
63. Sl. XXXIV, 11: “Tendo-se levantado testemunhas iníquas…”
64. Lm. III, 30: “Ele oferecerá a face a quem o espancar. Dar-lhe-ão fel
como alimento.”
65. Dn. II, 31-34. “Tu, ó rei, estavas olhando, e parecia-te que vias uma
grande estátua; […] Estavas a olhá-la quando uma pedra se desprendeu de um
monte sem intervirem mãos (de nenhum homem), a qual feriu a estátua nos seus
pés de ferro e de barro […]. Então se quebraram a um tempo o ferro, o barro, o
cobre, a prata e o ouro, e ficaram reduzidos como palha miúda que o vento leva
…” (Bíblia das Ed. Paulinas.) (N. do T.)
66. O povo judeu. (N. do T.)
67. Na edição de Brunschvicg consta: “Maldição dos judeus contra…” (N. do
T.)
68. Jo. XIX, 15: “Não temos rei, a não ser César.”
69. Plutarco, De defectu oraculorum, XVII. (N. do T.)
70. Is. V, 2, citado por São Paulo, Rom. X, 21: “O dia todo estendi as minhas
mãos para o povo incréu e contraditor.” (N. complementada pelo T.)
71. Cf. Gn. XLVIII, 14-15. (N. do T.)
72. I Cor. IV, 17: “Quem adere a Deus é um só espírito com ele.”
73. Mesmo sentido.
74. Cf. São Paulo, 1 Cor. XII, 5, e Epicteto, Dissertações II, 4. (N. do T.)
75. Leia-se: 1ª parte, questão 113, artigo 10, resposta à 2ª objeção, Summa
Theologica de Santo Tomás de Aquino. (N. do T.)
76. Sl. CXVIII, 36: “Inclina o meu coração, ó Deus, em direção dos teus
testemunhos.”
SEGUNDA SEÇÃO

Papéis não classificados


SÉRIE I

383 (197)
Ser insensível até desprezar as coisas interessantes, e tornar-se
insensível ao ponto que mais nos interessa.
384 (630) Macabeus, desde que não teve mais profetas. Massor,
desde Jesus Cristo.

385 (707)
Mas não bastava que houvesse essas profecias. Era preciso que elas
fossem distribuídas por todos os lugares e conservadas em todos os
tempos.
E a fim de que não se tomasse o advento (do Messias) como um
efeito do acaso, era preciso que fosse predito.
É muito mais glorioso para o Messias que eles1 sejam os
espectadores e mesmo os instrumentos de sua glória, além de Deus os ter
reservado.

386 (203)
Fascinatio nugacitatis2.
A fim de que a paixão não prejudique, façamos como se houvesse
apenas oito dias de vida.

387 (241)
Ordem.
Eu teria muito mais receio de me enganar e achar que a religião
cristã seja verdadeira do que de não me enganar achando-a verdadeira.
388 (740)
Jesus Cristo que os dois Testamentos contemplam; o antigo, como
sua esperança; o novo, como seu modelo; ambos como seu centro.

389 (794)
Por que Jesus Cristo não veio de maneira visível em vez de retirar a
sua prova das profecias precedentes.

Por que se fez predizer por figuras!

390 (617)
Perpetuidade.
Considere-se que, desde o início do mundo, a espera ou a adoração
do Messias subsiste sem interrupção, que houve homens que disseram
que Deus lhes havia revelado que devia nascer um redentor que salvaria
o seu povo. Que Abraão veio em seguida dizer que tivera revelação de
que dele nasceria esse redentor, através de um filho que teria; que Jacó
declarou que, de seus doze filhos, ele nasceria de Judá; que Moisés e
seus profetas vieram depois declarar o tempo e o modo de sua vinda.
Que disseram que a lei que tinham só era para esperar aquela do
Messias; que até lá ela seria perpétua, mas que a outra duraria
eternamente; que assim a sua lei ou a do Messias, de que a primeira era a
promessa, estaria sempre sobre a terra, que de fato ela sempre durou, que
finalmente veio Jesus Cristo em todas as circunstâncias preditas. Isso é
admirável.

391 (749)
Se isso está tão claramente predito aos judeus, como é que eles não
acreditaram ou como não foram exterminados por resistir a uma coisa
tão clara?
Respondo. Primeiro tudo isso foi predito, tanto que eles não
acreditariam numa coisa tão clara, como que não seriam exterminados. E
nada é mais glorioso para o Messias, pois não bastava que houvesse
profetas, era preciso que eles fossem conservados sem suspeita, ora…
etc.
392 (644)
Figuras.
Deus, querendo formar para si um povo santo, que ele separaria de
todas as outras nações, que livraria dos inimigos, que colocaria num
lugar de repouso, prometeu fazê-lo e predisse por seus profetas o tempo
e o modo de sua vinda. E entrementes, para fortalecer a esperança de
seus eleitos, em todos os tempos fê-los ver a imagem dele3, sem jamais
deixá-los sem garantias de seu poder e de sua vontade para a sua
salvação, pois, na criação do homem, Adão era sua testemunha e o
depositário da promessa do salvador que devia nascer da mulher.
Quando os homens estavam ainda tão próximos da criação que não
podiam ter esquecido a sua criação e a sua queda, quando aqueles que
tinham visto Adão já não estavam mais no mundo, Deus enviou Noé e o
salvou, e afogou toda a terra por um milagre que marcava bastante o
poder que tinha de salvar o mundo e a vontade que tinha de o fazer e de
fazer nascer da semente da mulher aquele que ele havia prometido.
Esse milagre bastava para fortalecer a esperança dos (eleitos).
Estando ainda a memória do dilúvio tão recente entre os homens
quando Noé ainda era vivo, Deus fez as suas promessas a Abraão e,
quando Sem ainda era vivo, Deus enviou Moisés etc.

393 (442)
A verdadeira natureza do homem, seu verdadeiro bem e a verdadeira
virtude, e a verdadeira religião são coisas cujo conhecimento é
inseparável.

394 (288)
Em lugar de vos lamentar pelo fato de Deus ter se escondido, dareis
graças a ele por ter se mostrado tanto, e dar-lhe-eis também graças por
ele não se ter mostrado aos sábios soberbos indignos de conhecer um
Deus tão santo.
Duas espécies de pessoas conhecem, aqueles que têm o coração
humilhado e que amam a sua baixeza, qualquer que seja o grau de
espírito que tenham, alto ou baixo, ou aqueles que têm bastante espírito
para ver a verdade, quaisquer que sejam as oposições que tenham a isso.
395 (478)
Quando queremos pensar em Deus, não haverá nada que nos desvie
disso, nos tente de pensar em outra coisa; tudo isso é mau e nasceu
conosco.

396 (471)
É injusto que se tenha apego a mim, embora isso se faça com prazer
e voluntariamente. Eu estaria enganando aqueles em quem fizesse nascer
esse desejo, pois não sou a finalidade de ninguém e não tenho com que
satisfazer as pessoas. Não estou eu prestes a morrer e assim morrerá o
objeto de seu apego. Portanto, como seria culpado por fazer acreditarem
numa falsidade, ainda que eu persuadisse dela com suavidade, e que
acreditassem nela com prazer, e que com isso me dessem prazer; assim
também sou culpado por me fazer amar. E se atraio as pessoas para que
se apeguem a mim, devo advertir aqueles que estariam prestes a aceitar a
mentira de que não devem acreditar, qualquer que fosse a vantagem que
disso me adviria; e, da mesma maneira, de que não devem apegar-se a
mim, pois é preciso que passem a vida e dediquem os seus cuidados a
agradar a Deus ou a buscá-lo.

A senhorita Périer tem o original deste bilhete.

397 (426)
Perdida a verdadeira natureza, tudo passa a ser sua natureza; como
tendo perdido o verdadeiro bem, tudo passa a ser seu verdadeiro bem.

398 (525)
Os filósofos não prescreviam sentimentos proporcionados aos dois
estados.
Inspiravam movimentos de grandeza pura e não é esse o estado do
homem.
Inspiravam movimentos de baixeza pura e não é esse o estado do
homem.
São necessários movimentos de baixeza, não de natureza, mas de
penitência, não para aí permanecer, mas para ir rumo à grandeza. São
necessários movimentos de grandeza, não de mérito, mas de graça, e
depois de ter passado pela baixeza.

399 (438)
Se o homem não é feito para Deus, por que ele não é feliz senão em
Deus?
Se o homem é feito para Deus, por que ele é tão contrário a Deus?

400 (427)
O homem não sabe em que posição se colocar, está visivelmente
extraviado e decaído de seu verdadeiro lugar sem poder reencontrá-lo.
Busca-o por toda parte com inquietação e sem sucesso em meio a trevas
impenetráveis.

401 (437)
Anelamos pela verdade e só encontramos em nós incerteza.
Buscamos a felicidade e só encontramos miséria e morte.
Somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade e somos
incapazes de certeza e de felicidade.
Esse desejo nos é deixado tanto para nos punir como para fazer-nos
sentir de onde caímos.

402 (290)
Provas da religião.
Moral. / Doutrina. / Milagres. / Profecias. / Figuras.

403 (174)
Miséria.
Salomão e Jó conheceram melhor do que ninguém a miséria do
homem e melhor falaram dela, um o mais feliz e o outro o mais infeliz.
Um conhecendo a vaidade dos prazeres por experiência, o outro a
realidade dos males.

404 (424)
Todas as contrariedades que pareciam mais me afastar do
conhecimento de uma religião foram o que mais depressa me
conduziram à verdadeira.

405 (421)
Recrimino igualmente tanto os que tomam o partido de elogiar o
homem quanto os que tomam o de recriminá-lo, quanto os que tomam o
de se divertir, e não posso aprovar senão aqueles que procuram a gemer.

406 (395)
Instinto, razão.
Temos uma impotência de provar, invencível para todo o
dogmatismo.
Temos uma ideia da verdade invencível para todo o pirronismo.

407 (465)
Os estoicos dizem: entrai dentro de vós mesmos, é aí que
encontrareis o repouso. E isso não é verdade.
Os outros dizem: saí fora e procurai a felicidade numa diversão. E
isso não é verdade, chegam as doenças.
A felicidade não está nem fora de nós nem dentro de nós; está em
Deus e dentro e fora de nós.

408 (74)
Um testemunho da loucura da ciência humana e da filosofia.
Esse testemunho antes da diversão.
Felix qui potuit4.
Felix nihil admirari5.
280 variedades de soberano bem em Montaigne6.

409 (220)
Falsidade dos filósofos que não discutiam a imortalidade da alma.
Falsidade de seu dilema em Montaigne.
410 (413)
Essa guerra interior da razão contra as paixões fez com que aqueles
que queriam ter a paz se dividissem em duas seitas. Uns quiseram
renunciar às paixões e tornar-se deuses, os outros quiseram renunciar à
razão e tornar-se animais brutos. Des Barreaux7. Mas não o puderam,
nem uns nem outros, e a razão sempre permanece a acusar a baixeza e a
injustiça das paixões e a perturbar o repouso daqueles que a elas se
abandonam. E as paixões estão sempre vivas naqueles que a elas querem
renunciar.

411 (400)
Grandeza do homem.
Temos uma ideia tão elevada da alma do homem que não podemos
tolerar ser desprezados por ela e não gozar da estima de uma alma. E
toda a felicidade dos homens consiste nessa estima.

412 (414)
Os homens são tão necessariamente loucos que seria ser louco, de
um outro jeito de loucura, não ser louco.

413 (162)
Quem quiser conhecer plenamente a vaidade do homem só tem que
considerar as causas e os efeitos do amor. A causa é um não sei o quê.
Corneille. E os efeitos são espantosos. Esse não sei o quê, tão pouca
coisa que nem se pode reconhecer, movimenta a terra toda, os príncipes,
os exércitos, o mundo inteiro.
O nariz de Cleópatra, se tivesse sido mais curto, toda a face da terra
teria mudado.

414 (171)
Miséria.
A única coisa que nos consola de nossas misérias é a diversão. E no
entanto é a maior de nossas misérias. Porque é ela que nos impede
principalmente de pensar em nós e que nos põe a perder
insensivelmente. Sem ela ficaríamos entediados, e esse tédio nos levaria
a buscar um meio mais sólido de sair dele, mas a diversão nos entretém e
nos faz chegar insensivelmente à morte.
415 (130)
Agitação.
Quando um soldado se queixa do trabalho que tem, ou um lavrador
etc., deixem-nos ficar sem fazer nada.

416 (546)
A natureza é corrupta.
Sem Jesus Cristo, o homem tem de ficar no vício e na miséria. Com
Jesus Cristo, o homem fica isento de vício e de miséria.
Nele está toda a nossa virtude e toda a nossa felicidade.
Fora dele só há vício, miséria, erro, trevas, morte, desespero.

417 (548)
Não somente nós não conhecemos a Deus senão por Jesus Cristo,
mas não nos conhecemos a nós mesmos senão por Jesus Cristo; não
conhecemos a vida, a morte senão por Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo
não sabemos o que é nem nossa vida, nem nossa morte, nem Deus, nem
nós mesmos.
Assim, sem as Escrituras, que só têm a Jesus Cristo como objeto, não
conhecemos nada e não vemos senão obscuridade e confusão na
natureza de Deus e na própria natureza.

SÉRIE II

418 (233)
Infinito nada.

Nossa alma é lançada no corpo onde encontra número, tempo,


dimensões; ela raciocina a respeito e chama a isso natureza, necessidade,
e não pode acreditar em outra coisa.

A unidade acrescentada ao infinito não o aumenta em nada, não mais


do que um pé a uma medida infinita; o finito se aniquila na presença do
infinito e se torna um puro nada. Assim o nosso espírito diante de Deus,
assim a nossa justiça diante da justiça divina. Não há tão grande
desproporção entre a nossa justiça e a de Deus quanto entre a unidade e
o infinito.
É preciso que a justiça de Deus seja enorme como a sua misericórdia.
Ora, a justiça contra os réprobos é menos enorme e deve chocar menos
do que a misericórdia para com os eleitos.

Sabemos que existe um infinito e ignoramos a sua natureza como


sabemos que é falso dizer que os números sejam finitos. É verdade então
que existe um infinito em número, mas não sabemos o que ele é. É falso
que seja par, é falso que seja ímpar, pois acrescentando a unidade ele
não muda de natureza. Entretanto é um número, e todo número é par ou
ímpar. É verdade que isso se entende de todo número finito.
Assim, pode-se perfeitamente conhecer que há um Deus sem saber o
que ele é.
Não há uma verdade substancial, vendo-se tantas coisas verdadeiras
que não são a verdade mesma?

Conhecemos, pois, a existência e a natureza do finito porque somos


finitos e extensos como ele.
Conhecemos a existência do infinito e ignoramos a sua natureza
porque ele tem extensão como nós, mas não tem limites como nós.
Mas não conhecemos nem a existência nem a natureza de Deus
porque ele não tem nem extensão nem limites.
Mas, pela fé, conhecemos a sua existência, pela glória, conhecemos a
sua natureza.
Ora, já mostrei que se pode perfeitamente conhecer a existência de
uma coisa sem conhecer-lhe a natureza. O. Virar.
O. Falemos agora segundo as luzes naturais.
Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, visto que, não
tendo nem partes nem limites, não tem nenhum ponto de relação
conosco. Somos, pois, incapazes de conhecer quer aquilo que ele é, quer
se ele é. Assim sendo, quem ousará empreender a tarefa de resolver essa
questão? não somos nós, que não temos nenhum ponto de relação com
ele.
Quem então recriminará os cristãos por não poderem explicar
racionalmente a sua crença, eles que professam uma religião que não
podem reduzir à razão; eles declaram ao expô-la ao mundo que é uma
estultice, stultitiam, e depois vos queixais de que eles não a provam. Se a
provassem, não manteriam a palavra. É tendo falta de prova que eles não
têm falta de sentido. Sim, mas ainda que isso escuse aqueles que a
oferecem assim, e que isso lhes evite a recriminação por a mostrarem
sem razão, isso não escusa aqueles que a recebem. Examinemos, pois,
esse ponto. E digamos: Deus existe ou não existe; mas para que lado
penderemos? a razão nada pode determinar a esse respeito. Existe um
caos infinito que nos separa. Joga-se um jogo na extremidade dessa
distância infinita, em que dará cara ou coroa. Que aposta fareis? pela
razão não podeis fazer nem uma coisa nem outra; pela razão não podeis
desfazer nenhuma das duas.
Não recrimineis, então, por falsidade, aqueles que fizeram uma
escolha, pois nada sabeis a respeito. Não, mas eu os recriminarei por
terem feito não tal escolha, mas uma escolha, pois ainda que aquele que
escolhe coroa e o outro estejam em igual erro, eles estão ambos em erro;
o certo é não apostar.
Sim, mas é preciso apostar. É inevitável, estais embarcados nessa.
Qual dos dois escolhereis então? Vejamos; já que é preciso escolher,
vejamos o que vos interessa menos. Tendes duas coisas para perder: a
verdade e o bem, e duas coisas a engajar: vossa razão e vossa vontade,
vosso conhecimento e vossa ventura, e vossa natureza duas coisas de
que fugir: o erro e a miséria. Vossa razão não fica mais ofendida, pois
que é preciso necessariamente escolher, escolhendo um ou outro. Aí está
um ponto liquidado. E a vossa ventura? Pesemos o ganho e a perda
escolhendo coroa que Deus existe. Avaliemos esses dois casos: se
ganhardes, ganhareis tudo, e se perderdes, não perdeis nada: apostai,
pois, que ele existe sem hesitar. Isso é admirável. Sim, é preciso apostar,
mas talvez eu esteja apostando demais. Vejamos, pois que há igual
possibilidade de ganho e de perda, se só tivésseis a ganhar duas vidas
por uma, poderíeis ainda apostar, mas se houvesse três a ganhar?
Seria preciso jogar (pois que estais na necessidade de jogar) e seríeis
imprudente, quando sois obrigado a jogar, de não arriscar vossa vida
para ganhar três em um jogo em que há igual possibilidade de perda e de
ganho. Mas há uma eternidade de vida e de felicidade. E, sendo assim,
quando houvesse uma infinidade de possibilidades das quais uma só
seria a vosso favor, teríeis ainda razão de apostar um para ter dois; e
agireis contra o bom senso, sendo obrigado a jogar, recusando a jogar
uma vida contra três num jogo em que dentre uma infinidade de
possibilidades há uma a vosso favor, se houvesse uma infinidade de vida
infinitamente feliz para ganhar: mas há, aqui, uma infinidade de vida
infinitamente feliz para ganhar, uma possibilidade de ganho contra um
número finito de possibilidades de perda e aquilo que estais jogando é
finito. Isso elimina qualquer outra escolha em toda situação em que está
o infinito e em que não há uma infinidade de possibilidades de perda
contra a de ganho. Não há por que balançar, há que se dar tudo. E assim,
quando se é forçado a jogar, é preferível renunciar à razão para
conservar a vida a arriscá-la pelo ganho infinito tão prestes a acontecer
quanto a perda do nada.
Porque de nada adianta dizer que é incerto que se vai ganhar e que é
certo que se arrisca, e que a infinita distância que medeia entre a certeza
daquilo que expomos e a incerteza daquilo que se ganhará iguala o bem
finito que expomos certamente ao infinito que é incerto. Isso não é
assim. Todo jogador arrisca com certeza para ganhar com incerteza e, no
entanto, arrisca certamente o finito para ganhar incertamente o finito,
sem pecar contra a razão. Não há infinidade de distância entre essa
certeza daquilo que se expõe e a incerteza do ganho; isso é falso. Há, na
verdade, infinidade entre a certeza de ganhar e a certeza de perder, mas a
incerteza de ganhar é proporcional à certeza do que se arrisca segundo a
proporção das possibilidades de ganho e de perda. E daí vem que se
existem tantas possibilidades de um lado quanto de outro, a partida está
para ser jogada de igual para igual. E então a certeza do que se expõe é
igual à incerteza do ganho, faltando muito para que esteja infinitamente
distante dela. E assim a nossa proposição está numa força infinita,
quando há o finito para arriscar, em um jogo em que existem iguais
possibilidades de ganho e de perda, e o infinito a ganhar.
Isso é demonstrativo e se os homens são capazes de alguma verdade,
essa o é.
Confesso, declaro, mas além disso não há meio de ver o que está por
baixo do jogo? sim, as Escrituras e o resto etc. Sim, mas estou com as
mãos atadas e a boca emudecida, forçam-me a apostar, e não tenho
liberdade, não me soltam e sou feito de tal maneira que não posso
acreditar. Que quereis então que eu faça? – É verdade, mas ficai sabendo
ao menos que a vossa impotência para acreditar vem de vossas paixões.
Visto que a razão vos conduz a isso e que mesmo assim não o podeis,
trabalhai então não para vos convencer pelo aumento das provas de
Deus, mas pela diminuição de vossas paixões. Quereis chegar à fé mas
não sabeis o caminho. Quereis sarar da infidelidade e pedis os remédios
para isso, aprendei daqueles etc. que estiveram atados como vós e que
apostam agora todo o seu bem. São pessoas que conhecem aquele
caminho que gostaríeis de seguir e que foram curadas de um mal de que
quereis sarar; segui a maneira pela qual eles começaram. Foi fazendo
tudo como se acreditassem, tomando água benta, mandando dizer missas
etc. Naturalmente mesmo isso vos fará acreditar e vos deixará
abestalhado. E é o que eu temo. – Mas por quê? que tendes a perder?
mas para mostrar-vos que isso conduz nessa direção, é porque diminui
as paixões que são os vossos grandes obstáculos etc.
Fim deste discurso.

Ora, que mal vos ocorrerá se tomar esse partido? Sereis fiel, honesto,
humilde, reconhecido, benfazejo, amigo, sincero, verdadeiro… Na
verdade não estareis nos prazeres empestados, na glória, nas delícias,
mas não tereis acaso outros?
Digo-vos que já nesta vida ganhareis e que, a cada passo que derdes
nesse caminho, vereis tanta certeza de ganho e tanta nulidade daquilo
que arriscais, que reconhecereis no fim que apostastes por uma coisa
certa, infinita, pela qual nada destes.
Ó, este discurso me transporta, me arrebata etc. Se este discurso vos
agrada e vos parece forte, ficai sabendo que ele é feito por um homem
que se pôs de joelhos antes e depois, para rogar a esse ser infinito e sem
partes, ao qual submete todo o seu, que submeta a si também o vosso
para vosso próprio bem e para a sua glória; e que assim a força se
coadune com a baixeza.
419 (89)
O costume é nossa natureza. Quem se acostuma com a fé crê nela, e
não pode mais deixar de temer o inferno, e não acredita em outra coisa.
Quem se acostuma a acreditar que o rei é terrível etc.
Quem duvida então de que a nossa alma, estando acostumada a ver
número, espaço, movimento, acredita nisso e em nada além disso.
420 (231)
Acreditais ser impossível que Deus seja infinito, sem partes? Sim.
Quero então mostrar-vos uma coisa infinita e indivisível: é um ponto a
se mover por toda parte a uma velocidade infinita.
Porque ele é um em todos os lugares e está inteiro em cada lugar.
Que esse efeito natural que vos parecia impossível antes vos faça
saber que podem existir outros que ainda não conheceis. Não tireis de
vosso aprendizado a consequência de que nada vos resta a saber, mas de
que vos resta infinitamente a saber.
421 (477)
É falso que sejamos dignos de que os outros nos amem. É injusto que
o queiramos. Se nascêssemos racionais e indiferentes, e conhecendo a
nós e aos outros, não daríamos essa inclinação à nossa vontade.
Nascemos entretanto com ela, nascemos pois injustos.
Porque tudo tende para si; isso é contra toda ordem.
É preciso tender para o geral, e a inclinação para si é o começo de
toda desordem, em guerra, em sociedade, em economia, no corpo
particular do homem.
A vontade é portanto depravada. Se os membros das comunidades
naturais e civis tendem para o bem do corpo, as comunidades mesmas
devem tender para outro corpo mais geral de que elas são membros.
Deve-se, pois, tender para o geral. Nascemos portanto injustos e
depravados.
421 (606)
Nenhuma religião além da nossa ensina que o homem nasce em
pecado; nenhuma seita de filósofos o disse; nenhuma portanto disse a
verdade.
Nenhuma seita ou religião esteve sempre sobre a terra, a não ser a
religião cristã.

422 (535)
Deve-se muita obrigação aos que advertem dos defeitos, pois eles
mortificam, informam que se foi desprezado, não impedem que
voltemos a sê-lo no futuro, porque temos muitos outros defeitos para sê-
lo. Eles preparam o exercício da correção e a exempção de um defeito.

423 (277)
O coração tem razões que a razão desconhece; sabese disso em mil
coisas.
Digo que o coração ama o ser universal naturalmente e a si mesmo
naturalmente, conforme ao que se dedica, e ele se endurece contra um ou
outro à sua escolha. Rejeitastes a um e ficastes com o outro; será pela
razão que vos amais?

424 (278)
É o coração que sente a Deus e não a razão. Eis o que é a fé. Deus
sensível ao coração, não à razão.

425 (604)
A única ciência que é contra o senso comum e a natureza dos
homens é a única que vem sempre permanecendo entre os homens.
426 (542)
A religião cristã é a única a tornar o homem amável e feliz ao mesmo
tempo; na fidalguia não se pode ser amável e feliz ao mesmo tempo.

SÉRIE III
427 (194)
… Informem-se pelo menos sobre o que é a religião que combatem
antes de combatê-la. Se essa religião alardeasse ter uma vista clara sobre
Deus, e possuí-lo a descoberto e sem véu, seria combatê-la dizer que não
se vê nada no mundo que o mostre com essa evidência. Mas visto que
ela diz, ao contrário, que os homens estão nas trevas e no afastamento de
Deus, que este está escondido ao seu conhecimento, que é até esse o
nome que ele dá para si nas Escrituras, Deus absconditus; e, finalmente,
se ela trabalha igualmente para estabelecer estas duas coisas: que Deus
colocou marcas sensíveis na Igreja para se fazer reconhecer por aqueles
que o buscam com sinceridade; e que ele as encobriu entretanto de tal
modo que só será entrevisto por aqueles que o buscam de todo o
coração, que vantagem podem eles tirar, quando na negligência em que
fazem profissão de buscar a verdade, gritam que nada a mostra a eles,
pois que essa obscuridade em que estão, e que objetam à Igreja, não faz
mais do que estabelecer uma das coisas que ela sustenta, sem tocar na
outra, e estabelece a sua doutrina, longe de a arruinar?
Seria preciso, para combatê-la, que bradassem que fizeram todos os
esforços para buscá-la por toda parte, e mesmo naquilo que a Igreja
propõe para se instruir, mas sem nenhum resultado. Se falassem assim,
combateriam na verdade uma de suas pretensões. Mas espero mostrar
aqui que não há ninguém razoável que possa falar desse modo; e ouso
até dizer que nunca ninguém o fez. Sabe-se bastante de que maneira
agem aqueles que estão nesse espírito. Acreditam ter feito grandes
esforços para instruirse, quando empregaram algumas horas na leitura de
algum livro das Escrituras e interrogaram algum eclesiástico sobre as
verdades da fé. Depois disso, alardeiam ter pesquisado sem sucesso nos
livros e entre os homens. Mas, na verdade, eu lhes diria o que disse
muitas vezes, que essa negligência não é suportável. Não se trata aqui do
interesse ligeiro de alguma pessoa estranha, para agir desse modo; trata-
se de nós mesmos e do nosso todo.
A imortalidade da alma é uma coisa que nos importa tanto, que nos
toca tão profundamente, que é preciso ter perdido todo sentimento para
ficar na indiferença de saber algo a respeito. Todas as nossas ações e
pensamentos devem tomar caminhos tão diferentes segundo haja bens
eternos a esperar ou não, que não é possível tomar nenhuma atitude com
senso e juízo sem pautá–la por esse ponto de vista, que deve ser o nosso
último objetivo.
Assim, o nosso primeiro interesse e nosso primeiro dever é de nos
esclarecer sobre esse assunto, de que depende todo o nosso
procedimento. E eis por que, entre aqueles que não estão persuadidos
disso, faço uma extrema diferença entre os que trabalham com todas as
forças para instruir-se e os que vivem sem se dar esse trabalho e sem
pensar nisso.
Não posso ter senão compaixão por aqueles que sinceramente
gemem nessa dúvida, que a encaram como a última das desgraças e que,
nada poupando para sair dela, fazem dessa busca as suas principais e
mais sérias ocupações.
Mas quanto àqueles que passam a vida sem pensar nesse último fim
da vida e que, pela só razão de que não encontram em si mesmos as
luzes que os persuadam, negligenciam buscá-las em outra parte e
examinar a fundo se essa opinião é daquelas que o povo recebe por uma
simplicidade crédula, ou daquelas que, embora obscuras em si mesmas,
têm no entanto fundamento sólido e inabalável, eu os considero de
maneira totalmente diferente.
Essa negligência num assunto em que se trata deles mesmos, de sua
eternidade, de seu todo, me irrita mais do que me comove; causa-me
admiração e espanto; é para mim um monstro. Não digo isso movido por
um zelo piedoso de uma devoção espiritual. Entendo, pelo contrário, que
se deve ter esse sentimento por um princípio de interesse humano e por
um interesse de amor-próprio: basta para isso ver o que veem as pessoas
menos esclarecidas.
Não é preciso ter a alma muito elevada para compreender que não há
aqui satisfação verdadeira e sólida, que todos os nossos prazeres não
passam de vaidade, que os nossos males são infinitos e que finalmente a
morte, que nos ameaça a cada instante, deve infalivelmente colocar-nos,
dentro de poucos anos, na horrível necessidade de ser eternamente ou
aniquilados ou infelizes.
Nada há de mais real do que isso, nem de mais terrível. Finjamo-nos
bravos quanto quisermos: aí está o fim que espera a mais bela das vidas
deste mundo. Reflita-se a esse respeito, e diga-se em seguida se não é
indubitável que não existe bem nesta vida a não ser na esperança de
outra vida, que não se é feliz a não ser na medida em que nos
aproximamos dela e que, como não haverá mais infelicidades para
aqueles que tinham uma inteira confiança na eternidade, não há
tampouco felicidade para aqueles que não têm sobre isso nenhuma luz.
É, pois, seguramente um grande mal estar nessa dúvida; mas é pelo
menos um dever indispensável buscar, quando se está nessa dúvida; e
assim quem duvida e não procura é ao mesmo tempo muito infeliz e
muito injusto. Pois se ele estiver com isso muito tranquilo e satisfeito, se
fizer disso profissão, e afinal se fizer disso o motivo de sua alegria e
vaidade, não tenho termos para qualificar tão extravagante criatura.
Onde se pode ser tomado por esses sentimentos? Que motivo de
alegria se pode encontrar em não esperar mais do que misérias sem
recursos? Que motivo de vaidade em ver-se em trevas impenetráveis, e
como pode acontecer que esse raciocínio se passe num homem razoável?
“Não sei quem me colocou no mundo, nem o que é o mundo, nem o
que sou eu mesmo; estou numa ignorância terrível de todas as coisas;
não sei o que é o meu corpo, nem meus sentidos, nem minha alma e
mesmo essa parte de mim que pensa o que digo, que faz reflexão sobre
tudo e sobre si mesma, e não se conhece mais do que o resto.
“Vejo esses espantosos espaços do universo que me encerram, e me
encontro atado a um canto dessa vasta extensão sem que saiba por que
estou colocado neste lugar de preferência a outro, nem por que esse
pouco de tempo que me é dado para viver me é atribuído neste ponto de
preferência a outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda
aquela que vem após mim. Só vejo infinidades por todas as partes, que
me encerram como a um átomo e como a uma sombra que não dura
senão um instante sem retorno. Tudo que conheço é que devo em breve
morrer; mas o que ignoro mais é essa morte mesma que não posso
evitar.
“Como não sei de onde venho, também não sei para onde vou; só sei
que, ao sair deste mundo, caio para sempre no nada, ou nas mãos de um
Deus irritado, sem saber qual dessas duas condições deve ser
eternamente o meu quinhão. Eis aí o meu estado, cheio de fraqueza e de
incerteza. E, de tudo isso, concluo que devo então passar todos os dias
de minha vida sem pensar em procurar saber o que me deve acontecer.
Talvez eu pudesse encontrar algum esclarecimento em minhas dúvidas;
mas não quero dar-me a esse trabalho, nem dar um passo para buscá-lo;
e depois, tratando com desprezo aqueles que se entregarem a esse
cuidado – (qualquer certeza que venham a ter é um motivo de desespero
mais do que de vaidade) –, quero ir, sem previdência e sem temor, tentar
tão grande acontecimento e deixar-me conduzir molemente à morte, na
incerteza da eternidade de minha condição futura.”
Quem gostaria de ter como amigo um homem que discorresse desse
modo? quem o escolheria entre os outros para lhe comunicar os seus
negócios? quem recorreria a ele em suas aflições? e finalmente a que uso
da vida se poderia destiná-lo?
Na verdade, é glorioso para a religião ter por inimigos homens tão
pouco razoáveis; e a oposição deles lhe é tão pouco perigosa que serve,
ao contrário, ao estabelecimento de suas verdades. Porque a fé cristã
quase não vai além de estabelecer estas duas coisas: a corrupção da
natureza e a redenção de Jesus Cristo. Ora, sustento que, se eles não
servem para mostrar a verdade da redenção pela santidade de seus
costumes, servem pelo menos admiravelmente para mostrar a corrupção
da natureza, por sentimentos tão desnaturados.
Nada é tão importante para o homem quanto o seu estado; nada lhe é
mais temível do que a eternidade. E assim, que haja homens indiferentes
à perda do seu ser e ao perigo de uma eternidade de misérias, isso não é
natural. Eles são totalmente diferentes com relação a todas as outras
coisas: temem até as mais leves, preveem-nas, sentem-nas; e esse mesmo
homem que passa tantos dias e noites na raiva e no desespero pela perda
de um cargo ou por qualquer ofensa imaginária à sua honra, é o mesmo
que sabe que irá perder tudo pela morte, sem preocupação e sem
emoção. É coisa monstruosa ver-se no mesmo coração e ao mesmo
tempo essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha
insensibilidade pelas maiores. É um encantamento incompreensível e um
entorpecimento sobrenatural que marca uma força onipotente que o
causa.
É preciso que haja uma estranha reviravolta na natureza do homem
para se fazer glória de estar nesse estado, no qual parece incrível que
uma só pessoa possa estar. No entanto a experiência faz-me ver um tão
grande número delas que seria surpreendente se não soubéssemos que a
maior parte dos que se mostram assim está fingindo e não são de fato
assim. São pessoas que ouviram dizer que as maneiras elegantes do
mundo consistem em fazerse passar assim por irritadiço. É o que
chamam de “ter sacudido o jugo”, e que tentam imitar. Mas não seria
difícil fazê-las entender quanto estão enganadas procurando por essa via
a estima. Não é esse o meio de adquiri-la, mesmo entre as pessoas
mundanas, digo eu, que julgam das coisas de maneira sã e que sabem
que o único caminho para ser bem-sucedido nesse ponto é parecer
honesto, fiel, judicioso e capaz de servir utilmente o amigo, porque os
homens não gostam naturalmente senão do que lhes pode ser útil. Ora,
que vantagem existe para nós em ouvir um homem dizer que ele sacudiu
o jugo, que não acredita que haja um Deus que vele sobre as suas ações,
que se considera o único dono do seu comportamento e que acha que só
deve prestar contas a si mesmo? Acaso ele pensa que assim nos levou a
ter doravante muita confiança nele, e esperar por isso consolo,
conselhos, e conseguir socorro em todas as necessidades da vida? Têm a
pretensão de nos ter alegrado ao dizer-nos que consideram que a nossa
alma não é mais do que um pouco de vento e de fumaça, e ainda dizer-
nos isso num tom de voz orgulhoso e contente? Seria isso algo a se dizer
alegremente? e não seria algo a se dizer tristemente, pelo contrário,
como a coisa mais triste do mundo?
Se pensassem nisso seriamente, veriam que é tão mal aceito, tão
contrário ao bom senso, tão oposto à fidalguia e tão afastado de todas as
maneiras dessa elegância que buscam, que seriam antes capazes de
dissuadir do que de corromper aqueles que tivessem alguma inclinação
para segui-los. E, de fato, fazei-os prestar contas de seus sentimentos e
das razões que têm para duvidar da religião; eles vos dirão coisas tão
fracas e tão baixas que vos persuadirão do contrário. É o que lhes dizia
com muito cabimento uma pessoa um dia: “Se continuardes a discorrer
desse modo, dizia-lhes ela, na verdade me convertereis.” E tinha razão,
pois quem não teria horror de se ver em sentimentos em que se tem por
companheiros pessoas tão desprezíveis?
Assim aqueles que não fazem senão fingir esses sentimentos ficariam
bem infelizes de contrariar a sua natureza para se tornar os mais
impertinentes dos homens. Se estão constrangidos no fundo de seu
coração por não terem mais luzes, não o dissimulem: essa declaração
não será vergonhosa. Só há vergonha em não tê-la. Nada acusa mais
uma extrema fraqueza de espírito do que não conhecer qual é a
infelicidade de um homem sem Deus; nada marca mais uma má
disposição do coração do que não desejar a verdade das promessas
eternas; nada é mais covarde do que fazer-se de bravo contra Deus.
Deixem então essas impiedades para aqueles que são bastante mal
nascidos para ser verdadeiramente capazes disso; tenham pelo menos
fidalguia se não podem ser cristãos, e reconheçam enfim que não há
senão duas espécies de pessoas a quem se possa chamar razoáveis: ou os
que servem a Deus de todo o coração porque o conhecem ou os que o
buscam de todo o coração porque não o conhecem.
Mas quanto àqueles que vivem sem o conhecer e sem o procurar,
eles mesmos se julgam tão pouco dignos de sua própria atenção que não
são dignos da atenção dos outros, e é preciso ter toda a caridade da
religião que eles desprezam para não os desprezar até abandoná-los em
sua loucura. Mas, porque essa religião nos obriga a olhá-los sempre,
enquanto estiverem em vida, como capazes da graça que pode iluminá-
los, e a acreditar que podem estar em pouco tempo mais repletos de fé
do que nós estamos, e porque podemos, ao contrário, cair na cegueira em
que se encontram, devemos fazer por eles aquilo que quiséramos que
fizessem por nós se estivéssemos no lugar deles e levá-los a ter piedade
de si mesmos, e a dar pelo menos alguns passos para tentar ver se não
encontram as luzes. Que dêem a essa leitura algumas dessas horas que
empregam com tanta inutilidade em outras coisas: por mais aversão que
tenham, talvez reconheçam alguma coisa, e pelo menos não perderão
nisso muito. Mas quanto àqueles que empenharão uma sinceridade
perfeita e um verdadeiro desejo de encontrar a verdade, espero que
tenham êxito e que fiquem convencidos com as provas de uma religião
tão divina que aqui eu reuni e nas quais segui mais ou menos esta
ordem…

428 (195)
Antes de entrar nas provas da religião cristã, acho necessário
representar a injustiça dos homens que vivem na indiferença de buscar a
verdade de uma coisa que lhes é tão importante e que lhes diz respeito de
tão perto.
De todos os seus extravios, esse é sem dúvida o que mais os
convence de loucura e de cegueira, e no qual é mais fácil confundi-los
pelas primeiras vistas do senso comum e pelos sentimentos da natureza.
Porque é indubitável que o tempo desta vida não é mais que um instante,
que o estado da morte é eterno, seja qual for a sua natureza, e que assim
todas as nossas ações e pensamentos devem tomar caminhos tão
diferentes segundo o estado dessa eternidade que é impossível tomar
uma atitude com senso e juízo sem pautá-la por esse ponto de vista que
deve ser nosso último objetivo.
Nada há de mais visível do que isso, e assim, segundo os princípios
da razão, o comportamento dos homens é completamente irracional se
não tomam outro caminho. Que se julgue então a partir daí sobre aqueles
que vivem sem pensar nesse último fim da vida, que, deixando-se
conduzir por suas inclinações e prazeres sem reflexão e sem cuidado, e,
como se pudessem anular a eternidade desviando dela o pensamento, só
pensam em se tornar felizes no momento presente.
Entretanto, essa eternidade permanece, e a morte, que deve abri-la e
que os ameaça a toda hora, deve colocá-los infalivelmente dentro de
pouco tempo na horrível necessidade de serem eternamente aniquilados
ou infelizes, sem que saibam qual dessas eternidades lhes está para
sempre preparada.
Aí está uma dúvida de consequência terrível. Eles estão no perigo da
eternidade de misérias; e sobre isso, como se a coisa não valesse a pena,
negligenciam examinar se essa opinião é daquelas que o povo recebe por
uma simplicidade demasiado crédula, ou daquelas que, embora obscuras
em si mesmas, têm fundamento muito sólido, embora oculto. Assim, não
sabem se há verdade ou falsidade na coisa, nem se há força ou fraqueza
nas provas. Eles as têm diante dos olhos; recusam olhar para elas e,
nessa ignorância, tomam o partido de fazer tudo que é preciso para cair
nessa desgraça se ela existir, de esperar para tirar a prova na hora da
morte, de ficar enquanto isso muito contentes com seu estado, de fazer
dele profissão e mesmo vaidade. Pode-se pensar seriamente na
importância de tudo isso sem ter horror de um procedimento tão
extravagante?
Essa tranquilidade em tal ignorância é uma coisa monstruosa cuja
extravagância e estupidez é necessário mostrar àqueles que nela passam
a vida, representando-a a eles próprios para confundi-los pela visão de
sua loucura. Pois eis como raciocinam os homens quando escolhem
viver nessa ignorância daquilo que são e sem procurar esclarecimento.
“Eu não sei”, dizem eles.

429 (229)
Aí está o que vejo e o que me perturba. Olho para todos os lados e
por toda parte só vejo escuridão. A natureza não me oferece nada que
não seja matéria de dúvida e de inquietação. Se aí não visse nada que
fosse marca da Divindade, eu me determinaria pela negativa; se visse
por toda parte as marcas de um Criador, descansaria em paz na minha fé.
Mas vendo demais para negar e muito pouco para me certificar, fico
num estado lastimável em que mil vezes desejei que, se um Deus a
sustenta, ela marcasse isso sem equívoco; e, se as marcas que ela
apresenta são enganosas, que ela as suprimisse completamente; que dis
sesse tudo ou nada, a fim de que eu visse que partido devo tomar. Ao
passo que no estado em que estou, ignorando o que sou e o que devo
fazer, não conheço nem a minha condição, nem o meu dever. Meu
coração tende inteiro a conhecer onde está o verdadeiro bem, para segui-
lo; nada me seria demasiado caro pela eternidade.
Tenho inveja daqueles que vejo na fé viver com tanta negligência, e
que usam tão mal um dom de que me parece que eu faria um uso tão
diferente.

430 (431)
Nenhum outro soube que o homem é a mais excelente das criaturas.
Uns, que conheceram bem a realidade de sua excelência, tomaram por
covardia e por ingratidão os sentimentos baixos que os homens
naturalmente têm por si mesmos; e outros, que conheceram bem quanto
essa baixeza é efetiva, trataram de soberba ridícula esses sentimentos de
grandeza que são também naturais ao homem.
Levantai os olhos para Deus, dizem uns; vede aquele a quem vos
assemelhais e que vos fez para adorá-lo. Podeis tornar-vos semelhante a
ele; a sabedoria vos igualará a ele se quiserdes segui-lo. “Levantai a
cabeça, homens livres”, diz Epiteto. E os outros lhe dizem: “Baixai os
olhos para o chão, frágil verme que sois, e olhai para os bichos de que
sois companheiro.”
Que se tornará então o homem? Será igual a Deus ou aos bichos?
Que espantosa distância! Que seremos nós então? Quem não vê em tudo
isso que o homem está extraviado, que caiu do seu lugar, que o busca
com inquietação, que não consegue mais encontrá-lo? E quem o dirigirá
para esse lugar? Os maiores homens não puderam fazê-lo.

431 (560)
Não concebemos nem o estado glorioso de Adão, nem a natureza do
seu pecado, nem a transmissão que dele se fez em nós. São coisas que
aconteceram no estado de uma natureza totalmente diferente da nossa e
que ultrapassam o estado de nossa capacidade presente.
É inútil sabermos dessas coisas para sair de tudo isso; e tudo que nos
importa conhecer é que somos miseráveis, corruptos, separados de Deus,
mas resgatados por Jesus Cristo; e é disso que temos provas admiráveis
na terra.
Assim, as duas provas da corrupção e da redenção se tiram dos
ímpios, que vivem na indiferença da religião, e dos judeus, que são dela
inimigos irreconciliáveis.
SÉRIE IV

432 (194 bis e ter)


(23) amor-próprio, e porque é uma coisa que nos interessa bastante
para nos comover, estar certos de que, depois de todos os males da vida,
uma morte inevitável que nos ameaça a cada instante deve
infalivelmente, dentro de poucos anos (colocar-nos) na horrível
necessidade (de ser eternamente aniquilados ou infelizes).
(24) As três condições.
(25) Não se deve dizer disso que se trata de uma marca de razão.
(26) É tudo que poderia fazer um homem que estivesse seguro da
falsidade dessa notícia, mesmo assim não deveria ficar na alegria, mas
no abatimento.
(27) Nada é importante senão isso, e negligencia-se isso.
(28) A nossa imaginação avoluma tanto para nós o tempo presente à
força de fazer contínuas reflexões a respeito, e diminui tanto a
eternidade, por falta de fazer reflexão a respeito, que fazemos da
eternidade um nada e do nada uma eternidade; e tudo isso tem raízes tão
vivas em nós que a nossa razão não nos pode defender e que…
(29) Eu lhes perguntaria se não é verdade que verificam por si
mesmos esse fundamento da fé que combatem, a saber, que a natureza
dos homens está na corrupção.
433 (783)
… Então Jesus Cristo vem dizer aos homens que não têm outro
inimigo senão eles próprios, que são as suas paixões que os separam de
Deus, que ele vem para destruí-las e para dar-lhes a sua graça, a fim de
fazer deles todos uma Igreja santa, que vem para reunir nessa Igreja
pagãos e judeus, que vem destruir os ídolos de uns e as superstições dos
outros. A isso se opõem todos os homens, não apenas pela oposição
natural da concupiscência; mas, acima de tudo, os reis da terra se unem
para abolir essa religião nascente, como havia sido predito (Prof.: Quare
fremuerunt gentes… reges terrae… adversus Christum)8.
Tudo que há de grande sobre a terra se une, os eruditos, os sábios, os
reis. Uns escrevem, outros condenam, outros matam. E não obstante
todas essas oposições, aquelas pessoas simples e sem força resistem a
todas essas potências e até submetem esses reis, esses eruditos, esses
sábios, e suprimem a idolatria de toda a terra. E tudo isso se faz pela
força que o havia predito.

434 (199)
Imagine-se certo número de homens em grilhões, todos condenados
à morte, sendo que alguns são degolados a cada dia na presença dos
outros; aqueles que ficam vêem a sua própria condição na de seus
semelhantes e, olhando-se uns e outros na dor e sem esperança, esperam
a sua vez. Essa é a imagem da condição dos homens.

435 (621)
Passados a criação e o dilúvio, e não devendo mais Deus destruir o
mundo, nem voltar a criá-lo tampouco, nem manifestar essas suas
grandes marcas, ele começou a estabelecer um povo na terra, formado
intencionalmente, que devia durar até que viesse o povo que o Messias
formaria por seu espírito.

SÉRIE V

436 (628)
Antiguidade dos judeus. – Quanta diferença existe de um livro para
outro! Não me admira que os gregos tenham feito a Ilíada, nem os
egípcios e os chineses as suas histórias. Basta ver como nasceu tudo
isso. Esses historiadores fabulosos não são contemporâneos das coisas
que escrevem. Homero faz um romance, que apresenta como tal e que
como tal é recebido; pois ninguém duvidava de que Tróia e Agamênon
não tinham existido tanto quanto o pomo de ouro. Ele não pensava
tampouco em fazer uma história, mas apenas um divertimento; é o único
que escreve em seu tempo, a beleza da obra faz durar a coisa: todo o
mundo a aprende e fala dela; é necessário sabê-la, todos a sabem de cor.
Quatrocentos anos depois, as testemunhas dos fatos já não estão mais
vivas; ninguém mais sabe por seu conhecimento se é uma fábula ou uma
história; apenas se aprendeu aquilo dos ancestrais, e pode passar por
verdadeiro.
Toda história que não é contemporânea é suspeita; assim os livros
das sibilas e de Trismegisto, e tantos outros que gozaram de crédito no
mundo são falsos e se encontram falsos na sequência dos tempos. Isso
não acontece com os autores contemporâneos.
Existe uma grande diferença entre um livro feito por um particular e
que este lança para um povo, e um livro feito por um povo mesmo. Não
se pode duvidar de que o livro seja tão antigo quanto o povo.

437 (399)
Não se é miserável sem sentimento: uma casa arruinada não é uma
casa. Só há o homem de miserável. Ego vir videns9.

438 (848)
Que se a misericórdia de Deus é tão grande que ele nos instrui
salutarmente, mesmo quando se oculta, que luz não devemos esperar
quando ele se descobre?

439 (565)
Reconhecei então a verdade da religião na obscuridade mesma da
religião, no pouco de luz que dela temos, na indiferença que temos em
conhecê-la.
440 (559 bis) O ser eterno sempre é se é uma vez.

441 (201)
Todas as objeções de uns e de outros vão apenas contra eles próprios
e não contra a religião. Tudo o que dizem os ímpios…

442 (560 bis)


… Assim todo o universo ensina ao homem, ou que ele é corrupto,
ou que ele é resgatado. Tudo lhe ensina ou a sua grandeza ou a sua
miséria. O abandono de Deus mostra-se nos pagãos; a proteção de Deus
mostra-se nos judeus.

443 (863)
Todos erram tanto mais perigosamente quanto seguem cada um uma
verdade; o seu erro não está em seguirem uma falsidade, mas em não
seguirem outra verdade.

444 (557)
É verdade pois que tudo instrui o homem de sua condição, mas é
preciso entendê-lo bem: pois não é verdade que tudo revela Deus, e não
é verdade que tudo esconde Deus. Mas é verdade ao mesmo tempo que
ele se esconde dos que o tentam e se mostra aos que o procuram, porque
os homens são ao mesmo tempo indignos de Deus e capazes de Deus:
indignos por sua corrupção, capazes por sua primeira natureza.

445 (558)
Que concluiremos de todas as nossas obscuridades senão a nossa
indignidade?

446 (586)
Se não houvesse obscuridade, o homem não sentiria a sua corrupção;
se não houvesse luz, o homem não esperaria remédio. Assim, não apenas
é justo, mas também útil para nós, que Deus esteja parcialmente
escondido, e parcialmente manifesto, pois que é igualmente perigoso
para o homem conhecer a Deus sem conhecer a própria miséria, e
conhecer a própria miséria sem conhecer a Deus.

447 (769)
A conversão dos pagãos estava reservada somente à graça do
Messias. Os judeus estiveram longo tempo a combatê-los sem sucesso:
tudo que sobre eles disseram Salomão e os profetas foi inútil. Os sábios,
como Platão e Sócrates, não puderam persuadi-los.

448 (559)
Se nunca nada tivesse se mostrado de Deus, essa privação eterna
seria equívoca e poderia tanto referir-se à ausência de toda divindade
como à indignidade em que estariam os homens para conhecê-la; mas, o
fato de ele se mostrar algumas vezes, e não sempre, elimina qualquer
equívoco. Se ele se mostra uma vez, ele existe sempre; e assim só se
pode concluir que existe um Deus e que os homens são indignos dele.

449 (556)
… Eles blasfemam sobre o que ignoram. A religião cristã consiste
em dois pontos; importa igualmente aos homens conhecê-los e é
igualmente perigoso ignorá-los; e pertence igualmente à misericórdia de
Deus ter manifestado as marcas de ambos.
E entretanto eles tomam motivo para concluir que um desses pontos
não existe, daquilo que deveria fazê-los concluir o outro ponto. Os
sábios que disseram que havia um único Deus foram perseguidos, os
judeus odiados, os cristãos ainda mais. Eles viram pela luz natural que se
existe uma religião verdadeira na terra, a conduta de todas as coisas deve
tender para ela como para seu centro. Toda a conduta das coisas deve ter
por objetivo o estabelecimento da grandeza da religião; os homens
devem ter em si próprios sentimentos conformes àquilo que ela nos
ensina; e finalmente ela deve ser de tal modo o objeto e o centro a que
todas as coisas tendem, que quem possuir os seus princípios possa dar
conta de toda a natureza do homem em particular e de toda a conduta do
mundo em geral.
E sobre essa base eles tomam ocasião de blasfemar sobre a religião
cristã, porque a conhecem mal. Imaginam que ela consiste simplesmente
na adoração de um Deus considerado como grande, e poderoso e eterno;
o que é propriamente o deísmo, quase tão afastado da religião cristã
quanto o ateísmo, que é exatamente o contrário. E daí concluem que essa
religião não é verdadeira, porque não vêem que todas as coisas
concorrem para o estabelecimento deste ponto, que Deus não se
manifesta aos homens com toda a evidência com que poderia fazê-lo.
Mas daí que concluam o que quiserem contra o deísmo, nada
concluirão contra a religião cristã, que consiste propriamente no mistério
do Redentor, que unindo nele as duas naturezas, humana e divina,
retirou os homens da corrupção do pecado para reconciliá-los com Deus
em sua pessoa divina.
Ela ensina pois conjuntamente aos homens estas duas verdades: tanto
que há um Deus de que os homens são capazes, quanto que há uma
corrupção na natureza que os torna indignos dele. Importa igualmente
aos homens conhecer um e outro desses pontos; e é igualmente perigoso
para o homem conhecer a Deus sem conhecer a própria miséria, e
conhecer a própria miséria sem conhecer o Redentor que pode curá-lo
dela. Um só desses conhecimentos faz, ou a soberba dos filósofos, que
conheceram a Deus e não a sua miséria, ou o desespero dos ateus, que
conhecem a sua miséria sem o Redentor.
E assim como faz parte da necessidade do homem conhecer esses
dois pontos, faz igualmente parte da misericórdia de Deus ter-nos feito
conhecê-los. A religião cristã o fez, é nisso que ela consiste.
Examine-se a ordem do mundo a esse respeito, e veja-se se todas as
coisas não tendem a estabelecer esses dois pontos capitais dessa religião:
Jesus Cristo é o objeto de tudo e o centro para o qual tudo tende. Quem o
conhece conhece a razão de todas as coisas.
Aqueles que se extraviam só se extraviam por falta de ver uma
dessas duas coisas. Não se pode então conhecer bem a Deus sem a
própria miséria, nem a própria miséria sem Deus; mas não se pode
conhecer Jesus Cristo sem conhecer juntamente a Deus e a própria
miséria.
E eis por que não empreenderei aqui provar por razões naturais, nem
a existência de Deus, nem a Trindade, nem a imortalidade da alma, nem
nenhuma das coisas dessa natureza; não somente porque eu não me
sentiria bastante forte para encontrar na natureza elementos capazes de
convencer ateus empedernidos, mas também porque esse conhecimento,
sem Jesus Cristo, é inútil e estéril. Ainda quando um homem estivesse
persuadido de que as proporções dos números são verdades imateriais,
eternas e dependentes de uma primeira verdade na qual subsistem, e a
que chamamos Deus, eu não acharia que ele estivesse muito adiantado
para a sua salvação.
O Deus dos cristãos não consiste em um Deus simplesmente autor
das verdades geométricas e da ordem dos elementos; essa é a parte dos
pagãos e dos epicuristas. Tampouco consiste apenas num Deus que
exerce a sua providência sobre a vida e sobre os bens dos homens, para
dar uma feliz sequência de anos àqueles que o adoram; esse é o quinhão
dos judeus. Mas o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o
Deus dos Cristãos é um Deus de amor e de consolação; é um Deus que
enche a alma e o coração daqueles que possui; é um Deus que os faz
sentir interiormente a própria miséria e a sua misericórdia infinita; que
se une ao fundo da alma deles; que a enche de humildade, de alegria, de
confiança, de amor; que os torna incapazes de outro fim que não seja ele
próprio.
Todos aqueles que buscam a Deus fora de Jesus Cristo e que param
na natureza, ou não encontram luz alguma que os satisfaça, ou
conseguem formar para si um meio de conhecer a Deus e de servi-lo sem
mediador, e por essa via caem ou no ateísmo, ou no deísmo, que são,
ambos, coisas que a religião cristã abomina quase igualmente.
Sem Jesus Cristo, o mundo não subsistiria, pois seria preciso que
fosse destruído ou que fosse um inferno.
Se o mundo subsistisse para instruir o homem sobre Deus, sua
divindade reluziria nele por toda parte de maneira incontestável; mas
como ele só subsiste por Jesus Cristo e para Jesus Cristo, e para instruir
os homens tanto de sua corrupção como de sua redenção, tudo nele
manifesta uma explosão de provas dessas duas verdades.
O que aparece não marca nem uma exclusão total, nem uma presença
manifesta de divindade, mas a presença de um Deus que se oculta. Tudo
carrega essa característica.
O único que conhece a natureza a conhecerá apenas para ser
miserável? o único que a conhece será o único infeliz?
Ele não pode não ver absolutamente nada; não pode tampouco ver o
suficiente para acreditar que o possui, mas que veja bastante para
conhecer que o perdeu, porque, para conhecer que se perdeu, é preciso
ver e não ver; e é precisamente o estado em que está a natureza.
Seja qual for o partido que tome, eu nunca o deixarei descansar…
450 (494)
Seria preciso que a verdadeira religião ensinasse a grandeza, a
miséria, levasse à estima e ao desprezo de si, ao amor e ao ódio.

SÉRIE VI

451 (620)
Vantagens do povo judeu.
Nesta pesquisa o povo judeu chama-me de início a atenção pela
quantidade de coisas admiráveis e singulares que com ele acontecem.
Vejo primeiro que é um povo todo composto de irmãos, e enquanto
todos os outros são formados pela reunião de uma infinidade de famílias,
este, embora tão estranhamente abundante, saiu todo de um só homem e,
sendo assim todos uma mesma carne e membros uns dos outros,
compõem um poderoso estado de uma só família; isso é único.
Essa família ou esse povo é o mais antigo que existe no
conhecimento dos homens, o que me parece atrair-lhe uma veneração
particular. E principalmente na pesquisa que estamos fazendo, pois que
se Deus se comunicou desde todos os tempos com os homens, é a estes
que se deve recorrer para conhecer a sua tradição.
Esse povo não é considerável apenas por sua antiguidade, mas é
ainda singular em sua duração, que perdurou sempre desde a sua origem
até agora, pois, enquanto os povos da Grécia e da Itália, da
Lacedemônia, de Atenas, de Roma e os demais que vieram tanto tempo
depois já pereceram há tanto tempo, aquele subsiste sempre e apesar das
investidas de tantos reis poderosos que mil vezes tentaram pô-los a
perder, como testemunham os seus historiadores e como é fácil julgar
pela ordem natural das coisas durante tão longo espaço de anos. Sempre
foram conservados entretanto, e essa conservação foi predita. E,
estendendo-se desde os primeiros tempos até os derradeiros, a sua
história compreende em sua duração a de todas as nossas histórias.
A lei pela qual esse povo é governado é ao mesmo tempo a mais
antiga lei do mundo, a mais perfeita e a única que tenha sido sempre
guardada sem interrupção num Estado. É o que Josefo mostra
admiravelmente contra Apião e Fílon judeu, em diversas passagens em
que fazem ver que ela é tão antiga que o próprio nome de lei só foi
conhecido pelos mais antigos mais de mil anos depois, de modo que
Homero, que escreveu a história de tantos estados nunca usou essa
palavra. E é fácil julgar da sua perfeição pela simples leitura, na qual se
vê que se proveu a todas as coisas, com tanta sabedoria, tanta equidade e
tanto critério que os mais antigos legisladores gregos e romanos, tendo
tido dela algum conhecimento, foram buscar aí as suas principais leis, o
que aparece por aquela a que chamam as 12 tábuas, e por outras provas
que Josefo apresenta.
Mas essa lei é ao mesmo tempo a mais severa e a mais rigorosa de
todas no tocante ao culto de sua religião, obrigando o povo, para mantê-
lo no dever, a mil observâncias particulares e penosas sob pena de
morte, de modo que é algo muito admirável que ela se tenha sempre
conservado constantemente durante tantos séculos, por um povo rebelde
e impaciente como aquele, enquanto todos os outros Estados mudaram
de tempos em tempos as suas leis, embora fossem estas muito mais
brandas.
O próprio livro que contém essa lei, a primeira de todas, é o mais
antigo livro do mundo, sendo que os de Homero, de Hesíodo e outros só
vieram seiscentos ou setecentos anos depois.

SÉRIE VII

452 (631)
Sinceridade dos judeus.
Carregam com amor e fidelidade esse livro em que Moisés declara
que eles foram ingratos para com Deus durante toda a vida, que sabe que
serão ainda mais após a morte dele, mas que chama como testemunhas
contra eles o céu e a terra, que lhes (ensinou) o bastante.
Declara que, finalmente, Deus, irritando-se contra eles, os dispersará
entre os povos da terra; que, como eles o irritaram adorando os deuses
que não eram os seus deuses, assim também os provocará chamando um
povo que não é o seu povo, e quer que todas as suas palavras sejam
conservadas eternamente e que o seu livro seja posto dentro da arca da
aliança para servir para sempre de testemunha contra eles. – Isaías.
Isaías diz a mesma coisa. 30. 8.

SÉRIE VIII

453 (610)
Para mostrar que os verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos não
têm senão uma mesma religião.
A religião dos judeus – parecia – consistia essencialmente na
paternidade de Abraão, na circuncisão, nos sacrifícios, nas cerimônias,
na arca, no templo, em Jerusalém, e finalmente na lei e na aliança de
Moisés.
Digo que ela não consistia em nenhuma dessas coisas, mas somente
no amor de Deus, e que Deus reprovava todas as outras coisas.
Que Deus não aceitará a descendência de Abraão. Que os judeus
serão punidos por Deus como os estrangeiros se o ofenderem.
Deut. IX. 19. Se esquecerdes a Deus e seguirdes deuses estranhos,
predigo-vos que perecereis da mesma forma que as nações que Deus
exterminou diante de vós.
Que os estrangeiros serão recebidos por Deus como os judeus se o
amarem.
Is. 56. 3. Que o estrangeiro não diga: o Senhor não me receberá; os
estrangeiros que se apegam a Deus serão para servi-lo e amá-lo, eu os
levarei à minha santa montanha, deles recebendo sacrifícios, pois minha
casa é a casa de oração.
Que os verdadeiros judeus só consideravam o seu mérito de Deus e
não de Abraão.
Is. 63. 16. Sois verdadeiramente nosso pai, e Abraão não nos
conheceu, e Israel não teve conhecimento de nós, mas sois vós o nosso
pai e o nosso redentor.
O próprio Moisés disse que Deus não aceitará as pessoas.
Deut. 10. 17. Deus disse: eu não aceito as pessoas nem os sacrifícios.
O sabá era apenas um sinal. Ex. 31. 13. e em memória da saída do
Egito. Deut. 15. 19., portanto ele não é mais necessário, já que é preciso
esquecer o Egito.
A circuncisão era apenas um sinal. Gen. 17. 11.
E daí vem que enquanto estiveram no deserto não foram
circuncidados porque não podiam confundir-se com os outros povos. E
que depois que veio Jesus Cristo ela não é mais necessária.
Que a circuncisão do coração é uma ordenança.
Deut. 10. 17. Jer. 4. 3. – Sede circuncisos de coração, cortai as
superfluidades de vosso coração, e não vos endureçais mais, pois vosso
Deus é um Deus grande, poderoso e terrível, que não aceita as pessoas.
Que Deus diz que o faria um dia.
Deut. 30. 6. Deus te circuncidará o coração e aos teus filhos a fim de
que o ames de todo o teu coração.
Que os incircuncisos de coração serão julgados.
Jer. 9. 26. Pois Deus julgará os povos incircuncisos e todo o povo de
Israel porque ele é incircunciso de coração.
Que o exterior de nada vale sem o interior.
Joel. 2. 13. Scindite corda vestra etc.10
Is. 58. 3. 4. etc.
O amor de Deus é recomendado em todo o Deuteronômio.
Deut. 30. 19. Tomo como testemunhas o céu e a terra de que
coloquei diante de vós a morte e a vida a fim de que escolhais a vida e
de que ameis a Deus e de que lhe obedeçais. Pois Deus é que é a vossa
vida.
Que os judeus, por falta desse amor, seriam reprovados por seus
crimes e os pagãos eleitos em seu lugar.
Oséias 1. 10.
Deut. 32. 20. Eu me ocultarei deles em vista de seus últimos crimes.
Pois é uma nação má e infiel.
Eles me provocaram à ira por coisas que não são dos deuses e eu os
provocarei ao ciúme por um povo que não é o meu povo, e por uma
nação sem ciência e sem inteligência.
Isaías 65.
Que os bens temporais são falsos e que o verdadeiro bem está em ser
unido a Deus.
Salmo 143. 15.
Que as festas desagradam a Deus. Amós 5. 21.
Que os sacrifícios dos judeus desagradam a Deus.
Is. 66.
I. 11.
Jer. 6. 20.
Davi, miserere.
mesmo da parte dos bons.
Expectavi. salmo 49. 8. 9. 10. 11. 12. 13 e 14.
Que eles só os estabeleceram por sua dureza. Miquéias
admiravelmente. 6.
I. R. 15. 22.
Oséias, 6. 6.
Que os sacrifícios dos pagãos serão recebidos por Deus. E que Deus
retirará a sua vontade dos sacrifícios dos judeus.
Malaquias, I. 11.
Que Deus fará uma nova aliança pelo Messias e que a antiga será
rejeitada.
Jer. 31. 31.

Mandata non bona. Ezequiel11.

Que as coisas antigas serão esquecidas.


Is. 43. 18. 19.
65. 17. 18.
Que ninguém se lembrará mais da arca.
Jer. 3. 15. 16.
Que o templo seria rejeitado.
Jer. 7. 12. 13. 14.
Que os sacrifícios seriam rejeitados e outros sacrifícios puros
estabelecidos.
Mal. 1. 11.
Que a ordem sacrifical de Aarão seria reprovada e a de Melquisedec
introduzida pelo Messias.
Dixit dominus.
Que essa ordem sacrifical seria eterna.
Ibid.
Que Jerusalém seria reprovada e Roma admitida.
Dixit dominus.
Que o nome dos judeus seria reprovado e um novo nome dado.
Is. 65. 15.
Que este último nome seria melhor do que o de judeus e eterno.
Is. 56. 5.
Que os judeus deviam ficar sem profetas. Amós.
Sem reis, sem príncipes, sem sacrifícios, sem ídolos.
Que os judeus subsistiriam entretanto sempre enquanto povo. Jer. 31.
36.

SÉRIE IX

454 (619)
Vejo a religião cristã fundada sobre uma religião precedente, onde
eis o que encontro de efetivo.
Não falo aqui dos milagres de Moisés, de Jesus Cristo e dos
apóstolos, porque não parecem de início convincentes e porque não
quero colocar aqui em evidência todos os fundamentos dessa religião
cristã que são indubitáveis, e que não podem ser postos em dúvida por
quem quer que seja.
É verdade que vemos em alguns lugares do mundo um povo
particular, separado de todos os outros povos do mundo, que se chama
povo judeu.

Vejo então fazedores de religiões em vários lugares do mundo e em


todos os tempos, mas eles não têm nem a moral que pode me agradar,
nem as provas que podem me deter, e assim eu teria recusado
igualmente a religião de Maomé e a da China, a dos antigos romanos e a
dos egípcios, por esta única razão: nenhuma tem mais marcas de verdade
do que a outra, nem nada que me determine necessariamente. A razão
não pode pender para uma de preferência à outra.
Mas ao considerar assim essa inconstante e estranha variedade de
costumes e de crenças nos diversos tempos, encontro num canto do
mundo um povo particular, separado de todos os outros povos da terra, o
mais antigo de todos e cujas histórias precedem de vários séculos as
mais antigas que temos.
Encontro pois esse povo grande e numeroso, saído de um só homem,
que adora a um só Deus e que se pauta por uma lei que dizem ter
recebido das mãos dele (e) sustentam ser os únicos do mundo a quem
Deus tenha revelado os seus mistérios; que todos os homens estão
corrompidos e na desgraça de Deus, que estão todos abandonados a seus
sentidos e a seu próprio espírito. E que daí vêm os estranhos extravios e
as mudanças contínuas que acontecem entre eles tanto de religiões como
de costumes. Ao passo que aqueles permanecem inabaláveis em sua
conduta, mas que Deus não deixará eternamente os outros povos nas
trevas, que virá um Libertador para todos, que eles estão no mundo para
anunciá-lo aos homens, que foram formados especialmente para serem
os precursores e os arautos desse grande advento, e para chamar a todos
os povos a se unirem a eles na espera desse Libertador.
Ter encontrado esse povo causa-me admiração e parece-me digno de
atenção.
Considero essa lei que se orgulham de ter recebido de Deus e acho-a
admirável. É a primeira lei de todas e de tal sorte que, antes mesmo que
a palavra lei estivesse em uso entre os gregos, já fazia mais de mil anos
que eles a haviam recebido e observado sem interrupção. Assim, acho
estranho que a primeira lei do mundo se verifique ser também a mais
perfeita, de modo que os maiores legisladores dela tomaram
empréstimos para as suas como aparece pela lei das 12 tábuas de Atenas
que foi em seguida adotada pelos romanos e, como seria fácil
demonstrar se Josefo e outros já não tivessem tratado o bastante dessa
matéria.

455 (717)
Profecias.
juramento de que Davi terá sempre sucessores.
Jer.

SÉRIE X

456 (618)
Isto é efetivo: enquanto todos os filósofos se dividem em diferentes
seitas, encontra-se num canto do mundo gente que é a mais antiga do
mundo, declara que todo o mundo está no erro, que Deus lhe revelou a
verdade, que ela estará sempre sobre a terra. Com efeito, todas as outras
seitas acabam; aquela continua durando sempre, e há mais de 4.000 anos
eles declaram que aprenderam de seus ancestrais que o homem decaiu da
comunicação com Deus num inteiro afastamento de Deus, mas que este
prometeu resgatá-los, que essa doutrina estaria sempre sobre a terra, que
a sua lei tem duplo sentido.
Que durante 1.600 anos eles tiveram pessoas que eles acreditaram ser
profetas que predisseram o tempo e o modo.
Que 400 anos depois eles foram espalhados por toda parte porque
Jesus Cristo devia ser anunciado por toda parte.
Que Jesus Cristo veio da maneira e no tempo preditos.
Que desde então os judeus encontram-se espalhados por toda parte
em maldição, e no entanto subsistem.
457 (572)
Hipótese dos apóstolos enganadores.
O tempo claramente, a maneira obscuramente.

5 provas de figurativos.
2.000 1.600 profetas
400 espalhados.

SÉRIE XI

458 (588 bis)


Contrariedades. Sabedoria infinita e loucura da religião.

459 (713 bis)


Sofonias, III, 9. “Darei as minhas palavras aos gentios a fim de que
todos me sirvam com um só ombro.”
Ezeq. XXVII, 25; “Davi, meu servo, será eternamente príncipe sobre
eles.”
Êxodo, IV, 22: “Israel é meu filho primogênito.”

460 (544)
O Deus dos cristãos é um Deus que faz sentir à alma que ele é o seu
único bem; que todo o seu repouso está nele, que ela só terá alegria em
amá-lo; e que a faz ao mesmo tempo abominar os obstáculos que a retêm
e a impedem de amar a Deus com todas as suas forças. O amor-próprio e
a concupiscência, que a retêm, são-lhe insuportáveis. Esse Deus fá-la
sentir que ela tem esse fundo de amor-próprio que a perde, e que só ele a
pode curar.

461 (584)
O mundo subsiste para exercer misericórdia e julgamento, não como
se os homens nele estivessem saindo das mãos de Deus, mas como
inimigos de Deus aos quais ele dá, por graça, luz suficiente para voltar,
se o quiserem buscar e seguir, mas para puni-los, se recusarem buscá-lo
ou segui-lo.

462 (739)
Os profetas predisseram e não foram preditos. Os santos em seguida
preditos, não predizentes. Jesus Cristo predito e predizente.
463 (243)
É coisa admirável que jamais autor canônico se tenha servido da
natureza para provar (a existência de) Deus. Todos tendem a fazer
acreditar nele. Davi, Salomão etc. nunca disseram: “Não existe vácuo,
portanto Deus existe.” Era preciso que eles fossem mais hábeis do que as
pessoas mais hábeis que vieram desde então, que se serviram todas desse
argumento. Isso é muito considerável.

464 (419)
Não tolerarei que ele repouse em um nem em outro a fim de que,
estando sem base e sem repouso…
465 (321)
Essas crianças espantadas veem os seus camaradas respeitados.
466 (428)
Se é uma marca de fraqueza provar Deus pela natureza, não
desprezeis por isso as Escrituras; se é uma marca de força ter conhecido
essas contrariedades, estimai por isso as Escrituras.

467 (449)
Ordem.
Depois da corrupção dizer: é justo que todos aqueles que estão nesse
estado o conheçam, tanto aqueles que nisso se comprazem como aqueles
que nisso se desgostam, mas não é justo que todos vejam a redenção.

468 (562)
Não há nada sobre a terra que não mostre ou a miséria do homem ou
a misericórdia de Deus, ou a impotência do homem sem Deus, ou o
poder do homem com Deus.

469 (577)
(Baixeza)
Deus fez a cegueira desse povo servir ao bem dos eleitos.

470 (404)
A maior baixeza do homem está na busca da glória, mas é nisso
mesmo que está a maior marca de sua excelência; pois, qualquer que
seja a posse que ele tenha sobre a terra, qualquer que seja a saúde e
comodidade essencial que tenha, não fica satisfeito se não tiver a estima
dos homens. Considera tão grande a razão do homem que, qualquer que
seja a vantagem que tenha na terra, se não estiver também
vantajosamente colocado na razão do homem, não fica contente. É o
mais belo lugar do mundo, nada pode desviá-lo desse desejo, e é a
qualidade mais indelével do coração do homem.
E aqueles que mais desprezam os homens e os igualam aos animais,
mesmo assim ainda querem ser por eles admirados e acreditados, e
contradizem-se a si mesmos por seu próprio sentimento; pois sua
natureza, que é mais forte do que tudo, os convence da grandeza do
homem mais fortemente do que a razão os convence de sua baixeza.

471 (441)
Por mim, confesso que logo que a religião cristã desvenda esse
princípio de que a natureza humana é corrompida e decaída de Deus,
abre os olhos para ver por toda parte o caráter dessa verdade; pois a
natureza é tal que aponta por toda parte um Deus perdido, quer no
homem, quer fora do homem, e uma natureza corrompida.

472 (574)
Grandeza. – A religião é uma coisa tão grande que é justo que
aqueles que não quisessem dar-se o trabalho de procurá-la, se ela é
obscura, fiquem privados dela. De que se queixam então, se ela é tal que
pode ser encontrada quando se procura?

473 (500)
A inteligência das palavras bem e mal.

474 (622)
Como a criação do mundo começasse a ficar distante, Deus proveu
de um historiador único contemporâneo e encarregou todo um povo da
guarda desse livro, a fim de que essa história fosse a mais autêntica do
mundo e todos os homens pudessem aprender através dela uma coisa tão
necessária de saber, e que não se pudesse sabê-la senão através dela.

475 (676)
O véu que está sobre esses livros para os judeus está também para os
maus cristãos, e para todos aqueles que não odeiam a si mesmos. Mas
como se está bem disposto para entendê-los e para conhecer Jesus Cristo
quando se odeia verdadeiramente a si mesmo!

476 (688)
Não digo que o mem é misterioso.

477 (406)
O orgulho contrapesa e carrega todas as misérias. Eis aí um estranho
monstro, e um extravio bastante visível. Eilo caído do seu lugar, ele o
busca com inquietação. É o que fazem todos os homens. Vejamos quem
o terá encontrado.

478 (137)
Sem examinar todas as ocupações particulares, basta compreendê-las
sob o divertimento.

479 (74 bis)


Para os filósofos, duzentos e oitenta soberanos bens.

480 (590)
Para as religiões, é preciso ser sincero: pagãos verdadeiros, judeus
verdadeiros, cristãos verdadeiros.

481 (594)
Contra a história da China. Os historiadores do México, dos cinco
sóis, dos quais o último data de há apenas oitocentos anos.
Diferença de um livro recebido por um povo, ou que forma um povo.

482 (289)
PROVAS – 1o a religião cristã, por seu estabelecimento, por si
mesma estabelecida tão fortemente, tão suavemente, sendo tão contrária
à natureza. – 2o A santidade, a elevação e a humildade de uma alma
cristã. – 3o As maravilhas das Sagradas Escrituras. – 4o Jesus Cristo em
particular. – 5o Os apóstolos em particular. – 6o Moisés e os profetas em
particular. – 7o O povo judeu. – 8o As profecias. – 9o A perpetuidade:
nenhuma religião tem a perpetuidade. – 10o A doutrina, que dá conta de
tudo. – 11o A santidade dessa lei. – 12o Pela conduta do mundo.
É indubitável que depois disso não se deve recusar, considerando o
que é a vida e essa religião, seguir o pendor de segui-la, se ele nos vier
ao coração; e é certo que não há motivo algum para zombar dos que a
seguem.

SÉRIE XII

483 (726)
Profecias. (No Egito, Pugio Fidei), p. 659, Talmud: “É uma tradição
entre nós que, quando o Messias chegar, a casa de Deus, destinada à
dispensação de sua palavra, ficará cheia de lixo e de impureza, e que a
sabedoria dos escribas ficará corrompida e podre. Aqueles que temerem
pecar serão reprovados pelo povo e tratados de loucos e de insensatos.”
Is. XLIX: “Escutai, povos distantes, e vós, habitantes das ilhas do
mar: o Senhor me chamou por meu nome desde o ventre de minha mãe,
ele me protege debaixo da sombra de sua mão, colocou as minhas
palavras como um gládio agudo e disse-me: És o meu servo; é por
intermédio de ti que farei aparecer a minha glória. E eu disse: Senhor,
acaso trabalhei em vão? será inutilmente que consumi toda a minha
força? fazei o julgamento, Senhor, o meu trabalho está diante de vós.
Então o Senhor, que me formou desde o ventre da minha mãe para ser
todo dele, a fim de reconduzir Jacó e Israel, disse-me: Serás glorioso em
minha presença, e eu próprio serei a tua força; é pouca coisa que
convertas as tribos de Jacó; eu te suscitei para seres a luz dos gentios e
para seres minha salvação até os confins da terra. São essas as coisas que
o Senhor disse àquele que humilhou a sua alma, que esteve em desprezo
e em abominação pelos gentios e que se submeteu aos poderosos da
terra. Os príncipes e os reis te adorarão porque o Senhor que te elegeu é
fiel.
“O Senhor disse-me ainda: Eu atendi às tuas súplicas nos dias de
salvação e de misericórdia e te estabeleci para seres a aliança do povo, e
te colocar na posse das nações mais abandonadas; a fim de que digas
àqueles que estão em cadeias: Saí em liberdade; e àqueles que estão nas
trevas: Vinde à luz e possuí terras abundantes e férteis. Não mais serão
trabalhados nem pela fome, nem pela sede, nem pelo ardor do sol,
porque aquele que teve compaixão deles será o seu condutor: ele os
levará às fontes vivas das águas e aplainará as montanhas diante deles.
Vede, os povos chegarão de todas as partes, do Oriente, do Ocidente, do
aquilão e da terra do meio-dia. Que o céu renda glória a Deus; que a
terra se regozije, porque aprouve ao Senhor consolar o seu povo e
porque finalmente terá piedade dos pobres que nele esperam.
“E entretanto Sião ousou dizer: O Senhor me abandonou e não tem
mais memória de mim. Uma Mãe pode acaso colocar o filho em
esquecimento e pode perder a ternura por aquele que carregou em seu
seio? mas, ainda que ela fosse capaz disso, eu não te esqueceria jamais,
Sião: carrego-te sempre nas minhas mãos e as tuas muralhas estão
sempre diante dos meus olhos. Aqueles que devem te restabelecer
acorrem, e os teus destrutores serão afastados. Levanta os olhos de todas
as partes e contempla toda a multidão que se reuniu para vir a ti. Juro
que todos esses povos te serão dados como o ornato de que ficarás para
sempre revestida; os teus desertos e as tuas solidões e todas as tuas terras
que estão agora desoladas serão estreitas demais para o grande número
dos teus habitantes, e os filhos que te nascerão nos anos da esterilidade
te dirão: O lugar é muito exíguo, alarga as fronteiras e dá-nos lugar para
habitar. Dirás então em ti mesmo: Quem foi que me deu esta abundância
de filhos, a mim que já não procriava mais, que era estéril, transportada e
cativa? e quem foi que os nutriu para mim, para mim que estava
abandonada e sem socorro? De onde vieram então todos estes? E o
Senhor te dirá: Vede, eu fiz aparecer o meu poder sobre os gentios e
elevei o meu estandarte sobre os povos, e eles te trarão filhos em seus
braços e em seus seios; os reis e as rainhas os nutrirão por ti, eles te
adorarão com o rosto por terra e beijarão o pó dos teus pés; e saberás que
eu sou o Senhor e que aqueles que esperam em mim jamais serão
confundidos; pois quem pode arrebatar a presa daquele que é forte e
poderoso? Mas ainda mesmo que lha pudessem arrebatar, nada poderá
impedir que eu salve os teus filhos e que ponha a perder os teus
inimigos, e todo o mundo reconhecerá que eu sou o Senhor teu salvador
e o poderoso redentor de Jacó.”
Is. L: “O Senhor diz estas coisas: Que libelo de divórcio é esse pelo
qual repudiei a sinagoga? e por que a entreguei entre as mãos de vossos
inimigos? Não foi por causa de suas impiedades e de seus crimes que a
repudiei?
“Porque cheguei e ninguém me recebeu; chamei e ninguém me
ouviu. Será que o meu braço se encurtou e que não tenho mais a força de
salvar?
“É por isso que farei aparecer as marcas de minha cólera; cobrirei de
trevas os céus e os esconderei sob véus.
“O Senhor me deu uma língua bem instruída, a fim de que eu saiba
consolar por minha palavra aquele que está na tristeza. Tornou-me
atento aos seus discursos, e eu o escutei como a um mestre.
“O Senhor revelou-me as suas vontades e eu não me rebelei contra
elas.
“Entreguei o meu corpo aos golpes e as minhas faces aos ultrajes;
abandonei o meu rosto às ignomínias e aos escarros; mas o Senhor me
amparou, e é por isso que não fui confundido.
“Aquele que me justifica está comigo: quem ousará acusar-me de
pecado, sendo Deus mesmo o meu protetor?
“Todos os homens passarão e serão consumidos pelo tempo; que
aqueles que temem a Deus escutem, pois, as palavras de seu servo; que
aquele que enlanguesce nas trevas ponha a sua confiança no Senhor.
Mas quanto a vós, não fazeis mais do que atrair sobre vós a cólera de
Deus, caminhais sobre os braseiros e entre as chamas que vós mesmos
acendestes. Foi a minha mão que fez virem sobre vós esses males:
perecereis em meio às dores.”
Is. LI: “Escutai-me, vós que seguis a justiça e que procurais o
Senhor. Olhai para a pedra de que fostes talhados, e para a cisterna de
que fostes tirados. Olhai para Abraão vosso pai, e para Sara que vos deu
à luz. Vede que ele estava só e sem filhos quando o chamei e lhe dei
uma posteridade tão abundante: vede quantas bênçãos derramei sobre
Sião, e com quantas graças e consolações a cumulei.
“Considerai todas essas coisas, meu povo, e ficai atento às minhas
palavras, pois de mim sairá uma lei e um julgamento que será a luz dos
gentios.”
Amós, VIII: “Tendo o profeta feito a contagem dos pecados de
Israel, disse que Deus jurou deles tirar vingança.
“Disse assim: Naquele dia, diz o Senhor, farei pôr-se o sol ao meio-
dia e cobrirei a terra de trevas no dia de luz, mudarei em choro as vossas
festas solenes, e todos os vossos cânticos em lamentos.
“Estareis todos na tristeza e nos sofrimentos, e porei esta nação numa
desolação semelhante à da morte de um filho único; e aqueles últimos
tempos serão tempos de amargura. Pois eis que chegam os dias, diz o
Senhor, em que enviarei sobre a terra a penúria, a fome, não a fome e a
sede do pão e da água, mas a fome e a sede de ouvir as palavras da parte
do Senhor. Eles irão errantes de um mar até outro, e se arrastarão do
aquilão até o Oriente; ficarão rodando por todas as partes procurando
quem lhes anuncie a palavra do Senhor, e não encontrarão ninguém.
“E as suas virgens, e os seus jovens perecerão nessa sede, eles que
seguiram os ídolos de Samaria, que juraram pelo Deus adorado em Dan,
e seguiram o culto de Bersabé; eles cairão e nunca mais se erguerão de
sua queda.”
Amós, III, 2: “De todas as nações da terra, só reconheci a vós como
meu povo.”
Dan. XII, 7, depois de ter escrito toda a extensão do reinado do
Messias, disse: “Todas essas coisas se cumprirão quando a dispersão do
povo de Israel se tiver cumprido.”
Ageu, II, 4: “Vós que, comparando a glória desta segunda casa à
glória da primeira, a desprezais, cobrai forças, diz o Senhor, vós,
Zorobabel, e vós, Jesus, sumo sacerdote, e vós, todo o povo da terra e
não cesseis de trabalhar nela12. Porque eu estou convosco, diz o Senhor
dos exércitos; a promessa permanece, que fiz quando vos tirei do Egito;
meu espírito está entre vós. Não percais esperança, porque o Senhor dos
exércitos assim diz: um pouco de tempo ainda e eu abalarei o céu e a
terra, e o mar, e a terra firme (modo de falar para indicar uma mudança
grande e extraordinária); e abalarei todas as nações. Então virá aquele
que é desejado por todos os gentios, e encherei esta casa de glória, diz o
Senhor.
“A prata e o ouro me pertencem, diz o Senhor (quer dizer que não é
com isso que eu quero ser honrado, como está dito noutra passagem:
Todos os animais do campo me pertencem; de que serve oferecê-los a
mim em sacrifício?); a glória deste novo templo será muito maior do que
a glória do primeiro, diz o Senhor dos exércitos; e estabelecerei a minha
casa neste lugar, diz o Senhor.”
Deut. XVIII, 16: “Em Horeb, no dia em que lá estáveis reunidos, e
em que dissestes: Que não mais nos fale o próprio Senhor e que não
mais vejamos esse fogo, de medo que morramos. E o Senhor me disse:
A prece deles é justa; suscitarei um profeta como vós no meio de seus
irmãos, em cuja boca colocarei as minhas palavras; e ele lhes dirá todas
as coisas que lhe terei ordenado; e acontecerá que quem quer que não
obedeça às palavras que ele lhe levar em meu nome, eu mesmo farei o
seu julgamento.”
Gen. XLIX: “Vós, Judá, sereis louvado por vossos irmãos, e
vencedor de vossos inimigos; os filhos de vosso pai vos adorarão. Judá,
filhote de leão, lançastes-vos sobre a presa, ó meu filho! E vos deitastes
como um leão, e como uma leoa que despertará.
“O cetro não será retirado de Judá, nem o legislador de entre os seus
pés, até que venha Silo; e as nações se reunirão a ele, para obedecer-
lhe.”

SÉRIE XIII
484 (711)
Predições das coisas particulares.
Eles eram estrangeiros no Egito, sem possuir nada de próprio nem
nesse país nem noutra parte. – (Não havia a menor aparência do reino
que houve tanto tempo depois, nem do conselho soberano de 70 juízes, a
que chamavam sinédrio, que, tendo sido instituído por Moisés, durou até
o tempo de Jesus Cristo. Todas essas coisas estavam tão distantes
quanto podiam ser do seu estado atual ) quando Jacó moribundo, ao
abençoar os seus doze filhos, declaralhes que possuirão uma grande terra
e predisse particularmente à família de Judá que os reis que os
governariam um dia seriam de sua raça, e que todos os seus irmãos
seriam os seus súditos. (E que o Messias que devia ser o esperado das
nações nasceria dele, e que a realeza não seria retirada de Judá, nem o
governador e o legislador de seus descendentes, até que esse Messias
esperado chegasse em sua família.)
Esse mesmo Jacó, dispondo dessa terra futura como se dela fosse o
dono, dá uma porção a mais a José do que aos outros. “Dou-vos, disse
ele, uma parte a mais do que a vossos irmãos”, e, abençoando seus dois
filhos Efraim e Manassés, que José lhe havia apresentado, o mais velho,
Manassés, à sua direita e o mais jovem, Efraim, à sua esquerda, coloca
os braços em cruz e, pondo a mão direita sobre a cabeça de Efraim e a
esquerda sobre Manassés, abençoa-os assim e, como José observa que
ele está dando preferência para o mais jovem, responde com admirável
firmeza: “Bem o sei, meu filho, bem o sei, mas Efraim crescerá muito
mais do que Manassés”, o que foi de fato tão verdadeiro a seguir que,
sendo a sua linhagem sozinha quase tão abundante quanto duas
linhagens inteiras que compunham todo um reino, elas foram geralmente
chamadas apenas pelo nome de Efraim. Esse mesmo José, ao morrer,
recomenda aos filhos levarem consigo os seus ossos quando forem para
aquela terra, aonde só foram duzentos anos mais tarde.
Moisés, que escreveu todas essas coisas tanto tempo antes que elas
acontecessem, deu pessoalmente a cada família a sua parte nessa terra
antes de entrar nela, como se fosse o seu dono. (E declara finalmente
que Deus deve suscitar da nação e raça deles um profeta de quem ele
próprio foi a figura – que lhes anuncia da parte de Deus e lhes prediz
exatamente tudo aquilo que lhes devia acontecer na terra onde iam
entrar depois de sua morte, as vitórias que Deus lhes dará, a ingratidão
deles para com Deus, as punições que receberão e o resto de suas
aventuras.)
Ele lhes dá os árbitros para fazer a partilha. Prescreve-lhes toda a
forma do governo político que observarão, as cidades de refúgio que lá
construirão etc….

SÉRIE XIV

485 (722)
Daniel 2.
Todos os vossos adivinhos e sábios não podem desvendar o mistério
que solicitais.
[Era preciso que estivesse muito empenhado naquele sonho13.]
Mas há um Deus no céu que pode fazê-lo e que vos revelou em
vosso sonho as coisas que devem acontecer nos últimos tempos.
E não foi por minha própria ciência que tomei conhecimento desse
segredo, mas pela revelação desse mesmo Deus que o desvendou a mim
para torná-lo manifesto em vossa presença.
Vosso sonho era, pois, assim: Vistes uma grande estátua, alta e
terrível, que estava de pé diante de vós. A cabeça era de ouro, o peito e
os braços eram de prata, a barriga e as coxas eram de bronze e as pernas
eram de ferro, mas os pés eram uma mistura de ferro e de terra [argila].
Ficastes a contemplá-la desse modo até que a pedra talhada sem
mãos bateu na estátua pelos pés mesclados de ferro e de terra e os
esmagou.
E então se foram, feitos poeira, e o ferro, e a terra, e o bronze, e a
prata, e o ouro, e se dissiparam no ar, mas aquela pedra que bateu na
estátua cresceu transformando-se numa grande montanha e encheu toda
a terra. Eis aí qual foi o vosso sonho, e agora eu vos darei a
interpretação.
Vós que sois o maior dos reis e a quem Deus deu um poder tão
extenso que sois temido de todos os povos, estais representado pela
cabeça de ouro da estátua que vistes.
Mas outro império sucederá ao vosso, que não será tão poderoso, e
em seguida virá outro de bronze que se estenderá por todo o mundo.
Mas o quarto será forte como o ferro, e assim como o ferro quebra e
fura todas as coisas, assim esse império quebrará e esmagará tudo.
E aquilo que vistes, que os pés e as extremidades dos pés eram
compostos de parte de terra e parte de ferro, indica que esse império
estará dividido e que terá em parte a dureza do ferro e em parte a
fragilidade da terra.
Mas como o ferro não pode aliar-se solidamente à terra, assim
aqueles que são representados pelo ferro e pela terra não poderão fazer
aliança durável, ainda que se unam por casamentos.
Ora, será no tempo desses monarcas que Deus suscitará um reino que
nunca será destruído nem nunca será transportado para outro povo. Ele
dissipará e terminará todos aqueles outros impérios, mas ele sim
permanecerá eternamente, segundo aquilo que vos foi revelado dessa
pedra que, não sendo talhada por mão nenhuma, caiu da montanha e
quebrou o ferro, a terra, a prata e o ouro.
Eis aí o que Deus vos desvendou das coisas que devem acontecer na
sequência dos tempos. Esse sonho é verdadeiro e a sua interpretação é
fiel.
Então Nabucodonosor caiu com a face contra o chão etc….
Dan. 8.
Tendo Daniel visto o combate entre o carneiro e o bode, que o
venceu e que dominou sobre a terra, do qual tendo caído o chifre
principal quatro outros nasceram dele em direção aos quatro ventos do
céu, tendo saído de um desses chifres um chifrezinho que foi crescendo
rumo ao meio-dia, ao oriente e à terra de Israel e se levantou contra o
exército do céu, derribou as suas estrelas e as calcou aos pés, e
finalmente abateu o príncipe e fez cessar o sacrifício perpétuo, e pôs em
desolação o santuário.
Eis o que viu Daniel. Pediu explicação do que viu e uma voz assim
bradou: Gabriel, fazei-o entender a visão que teve. E Gabriel disse-lhe:
O carneiro que vistes é o rei dos medas e dos persas, e o bode é o rei
dos gregos, e o grande chifre que ele tinha entre os olhos é o primeiro rei
dessa monarquia.
E o fato de, tendo-se quebrado esse chifre, quatro outros surgirem em
seu lugar, é que quatro reis dessa nação lhe sucederão, mas não com o
mesmo poder.
Ora, ao declinarem esses reinos, avultando as iniquidades, levantar-
se-á um rei insolente e forte, mas de um poder de empréstimo, ao qual
todas as coisas sucederão ao seu talante, e ele colocará em desolação o
povo santo e (usando, agindo com) tendo êxito em seus
empreendimentos com um espírito dúplice e enganador, matará vários
deles e se levantará enfim contra o príncipe dos príncipes, mas perecerá
desgraçadamente. E não entretanto por mão violenta.

Daniel, 9. 20.
Como eu estivesse rezando a Deus de todo o meu coração e
confessando meu pecado e o de todo o meu povo, prosternado diante de
meu Deus, eis que Gabriel, a quem tinha visto em visão desde o começo,
vem a mim e, tocando-me no tempo do sacrifício vespertino e dandome
a inteligência, diz-me: Daniel, vim a vós para abrir-vos o conhecimento
das coisas desde o início de vossas orações. Vim para vos descobrir o
que desejais porque sois o homem de desejos; ouvi pois a palavra e
acedei à inteligência da visão, 70 semanas são prescritas e determinadas
sobre vosso povo e sobre vossa cidade santa, para expiar os crimes, para
pôr fim aos pecados e abolir a iniquidade e para introduzir a justiça
eterna, para cumprir as visões e as profecias e para ungir o santo dos
santos [Após o que o povo já não será vosso povo, nem esta cidade a
Cidade santa. – O tempo da cólera terá passado, os anos de graça
chegarão para sempre.]
Sabei então e entendei desde que a palavra sair para restabelecer e
reedificar Jerusalém, até que venha o príncipe Messias haverá 7 semanas
e 62 semanas [Os hebreus costumavam dividir os números e colocar o
menor primeiro; essas 7 e 62 semanas perfazem 69 daquelas 70. Restará
pois a 70a, quer dizer, os 7 últimos anos de que ele falará em seguida.]
Depois que a praça e as muralhas forem reconstruídas num tempo de
turbulência e de aflição, e depois dessas 62 semanas [que terão seguido
as 7 primeiras] o Cristo será morto [o Cristo será morto, pois, após as 69
semanas, isto é, na última semana] e um povo virá com o seu príncipe
que destruirá a cidade e o santuário e inundará tudo e o fim dessa guerra
consumará a desolação.
Ora, uma semana [que é a 70a que resta] estabelecerá a aliança com
vários e mesmo a metade da semana [isto é, os últimos 3 anos e meio]
abolirá o sacrifício e a hóstia, e tornará espantosa a extensão da
abominação, que se espalhará e durará sobre aqueles mesmos que
ficarão espantados com ela e até a consumação.

Daniel, 11.
O anjo disse a Daniel: Haverá [depois de Ciro, no reinado do qual
isto foi escrito] ainda três reis da Pérsia [Cambises, Esmérdis, Dario] e o
quarto [Xerxes] que virá depois será o mais poderoso em riquezas e em
forças e levantará todos os seus povos contra os gregos.
Mas um poderoso rei se levantará [Alexandre] cujo império terá uma
extensão extrema e que terá êxito em todos os seus empreendimentos
conforme o seu desejo, mas quando sua monarquia estiver estabelecida
perecerá e será dividida em quatro partes rumo aos quatro ventos do céu
– (Como havia dito anteriormente VII. 6. VIII. 8) – mas não para
pessoas de sua raça, e seus sucessores não igualarão o seu poder, pois
mesmo o seu reino será disperso entre outros, além destes [os quatro
principais sucessores].
E aquele desses sucessores [Ptolomeu, filho de Lágus] que irá reinar
sobre as terras do meio-dia [Egito] tornar-se-á poderoso, mas um outro
[Seleuco, rei da Síria] o superará e o seu estado será um grande estado.
[Apiano diz que é o mais poderoso dos sucessores de Alexandre].
E na sequência dos anos aliar-se-ão e a filha do rei do meio-dia
[Berenice, filha de Ptolomeu Filadelfo, filho do outro Ptolomeu] irá
procurar o rei do aquilão [Antíoco Teos, rei da Síria e da Ásia, sobrinho
de Seleuco Lágidas] para estabelecer a paz entre esses príncipes.
Mas nem ela nem os seus descendentes terão autoridade longa, pois
ela e aqueles que a haviam enviado, e os seus filhos e amigos serão
entregues à morte. [Berenice e seu filho foram mortos por Seleuco
Calínico.]
Mas levantar-se-á um rebento de suas raízes [Ptolomeu Evergetes
nascerá do mesmo pai que Berenice], que invadirá com uma poderosa
armada as terras do rei do aquilão onde colocará tudo sob submissão e
levará para o Egito os seus deuses e seus príncipes, seu ouro e sua prata,
e todos os seus mais preciosos despojos, e ficará alguns anos sem que o
rei do aquilão nada possa contra ele. [Se não tivesse sido chamado de
volta ao Egito por razões domésticas, ele teria despojado Seleuco muito
mais, diz Justino.]
E assim ele voltará para o seu reino, mas os filhos do outro [Seleuco
Cerauno, Antíoco Magno], irritados, reunirão grandes forças.
E o exército deles virá e assolará tudo. Ficando o rei do meio-dia
[Ptolomeu Filopátor] irritado com isso, formará também um grande
corpo de exército e travará batalha com ele [Antíoco Magno] e vencerá
[em Rafã]. E com isso as suas tropas ficarão insolentes e o seu coração
se inflará [esse Ptolomeu profanou o templo. Josefo] e vencerá dez
milhares de homens, mas a sua vitória não será firme.
Porque o rei do aquilão [Antíoco Magno] virá com forças maiores
ainda do que na primeira vez. [O jovem Ptolomeu Epifânio reinante] E
então um grande número de inimigos se levantará contra o rei do meio-
dia e mesmo homens apóstatas. [Aqueles que tinham abandonado a sua
religião para agradar a Evergetes quando este mandou suas tropas a
Escopas], violentos, do teu povo se levantarão, a fim de que as visões
sejam cumpridas e eles perecerão. [Pois Antíoco retomará Escopas e os
vencerá.]
E o rei do aquilão destruirá as muralhas e as cidades mais bem
fortificadas, e toda a força do meio-dia não poderá resistir-lhe.
E tudo cederá à sua vontade; irá parar na terra de Israel e esta cederá
a ele.
Assim ele pensará em se tornar senhor de todo o império do Egito
[desprezando a juventude de Epifânio, diz Justino].
E para isso fará aliança com ele e lhe dará a sua filha. [Cleópatra, a
fim de que ela traia o marido. A respeito disso Apiniano diz que, não
confiando em que pudesse tornar-se senhor do Egito pela força por causa
da proteção dos romanos, quis intentá-lo pela ardileza.] Tentará
corrompê-la, mas ela não seguirá o seu intento.
Assim, ele se lançará em outros desígnios e pensará em tornar-se
senhor de algumas ilhas [quer dizer, lugares marítimos] e se apossará de
várias [como diz Apiano].
Mas um grande chefe se oporá às suas conquistas e porá fim à
vergonha que daí lhe advinha [Cipião, o Africano, que pôs fim aos
progressos de Antíoco Magno porque este ofendia os romanos na pessoa
de seus aliados].
Ele voltará então para o seu reino e ali perecerá e não mais será. [Foi
morto pelos seus.]
E aquele que lhe há de suceder [Seleuco Filopátor ou Sóter, filho de
Antíoco Magno] será um tirano que afligirá com impostos a glória do
reino, que é o povo, mas em pouco tempo morrerá não por sedição nem
por guerra.
E em seu lugar sucederá um homem desprezível e indigno das honras
da realeza, que nela se insinuará ardilosamente e por carícias.
Todas as armas se dobrarão diante dele. Ele as vencerá e mesmo o
príncipe com quem tinha feito aliança pois, tendo renovado a aliança
com ele, irá enganá-lo e, chegando com poucas tropas em suas
províncias calmas e sem temor, tomará as melhores praças e fará mais
do que os seus pais jamais tinham feito e, levando a devastação por toda
parte, formará grandes desígnios durante o seu tempo.
25.

SÉRIE XV

486 (682)
Is. 1. 21. Mudança de bem em mal e vingança de Deus14.

Is. 10. 1. Vae qui condunt leges iniquas15.


Is. 26. 20. Vade populus meus intra in cubicula tua, claude ostia tua
super te, abscondere modicum ad momentum donec pertranseat
indignatio16.

Is. 28. 1. Vae coronae superbiae17.

Milagres. Luxit et elanguit terra.


Confusus est libanus et obsorduit18 etc. Is. 23. 9.
Nunc consurgam dicit dominus nunc exaltabor, nunc sublevabor. I19.

Omnes gentes quasi non sint20. Is. 40. 17.

Quis annuntiavit ab exordio ut sciamus et a principio ut dicamus


justus es 21. Is. 41. 26.

Operabor et quis avertet illud22. Is. 43. 13.

Neque dicet forte mendacium est in dextera mea23. Is. 44. 20.

Memento horum Jacob et Israel quoniam servus meus es tu. Formavi


te, servus meus es tu Israel ne obliviscaris mei.
Delevi ut nubem iniquitates tuas et quasi nebulam peccata tua
revertere ad me quoniam redemi te. 44. 21. etc.

Laudate caeli quoniam misericordiam fecit dominus… quoniam


redemit dominus Jacob et Israel gloriabitur.

Haec dicit dominus redemptor tuus, et formator tuus ex utero, ego


sum dominus, faciens omnia extendens caelos solus, stabiliens terram, et
nullus mecum24. 44. 23. 24.

In momento indignationis abscondi faciem meam parum per a te et


in misericordia sempiterna misertus sum tui dixit redemptor tuus
dominus25. Is. 54. 8.

Qui eduxit ad dexteram Moysen brachio majestatis suae, qui scidit


aquas ante eos ut faceret sibi nomen sempiternum26. Is. 63. 12.

Sic adduxisti populum tuum ut faceres tibi nomen gloriae27. 14.


Tu enim pater noster et Abraham nescivit nos, et Israel ignoravit
28
nos . Is. 63. 16.

Quare indurasti cor nostrum ne timeremus te29. Is. 63. 17.

Qui sanctificabantur et mundos se putabant… simul consumentur


dicit dominus30. Is. 66. 17.

Et dixisti absque peccato et innocens ego sum. Et propterea


avertatur furor tuus a me.
Ecce ego judicio contendam tecum eo quod dixeris, non peccavi31.
Jer. 2. 35.

Sapientes sunt ut faciant mala, bene autem facere nescierunt32. Jer.


4. 22.

Aspexi terram et ecce vacua erat, et nihili, et caelos et non erat lux
in eis.
Vidi montes et ecce movebantur et omnes colles conturbati sunt
intuitus sum et non erat homo et omne volatile caeli recessit. Aspexi et
ecce Carmelus desertus et omnes urbes ejus destructae sunt a facie
domini et a facie viae furoris ejus. Jer. 4. 23. etc.

Haec enim dicit dominus, deserta erit omnis terra sed tamen
consummationem non faciam33. – Jer. 5. 4.
Ego autem dixi forsitan pauperes sunt et stulti ignorantes viam
domini judicium dei sui.
Ibo ad optimates et loquar eis. Ipsi enim cognoverunt viam domini.
Et ecce magis hi simul confugerunt jugum ruperunt vincula.
Idcirco percussit eos leo de silva pardus vigilans super civitates
eorum34.

Numquid super his non visitabo dicit dominus, aut super gentem
hujuscemodi non ulciscetur anima mea. Jer. 5. 29.

Stupor et mirabilia facta sunt in terra.


Prophetae prophetabant mendacium et sacerdotes applaudebant
manibus et populus meus dilexit talia, quid igitur fiet in novissimo
ejus35. – Jer. 5. 30.
Haec dicit dominus, state super vias et videte et interrogate de
semitis antiquis, quae sit via bona et ambulate in ea et invenietis
refrigerium animabus vestris, et dixerunt non ambulabimus.
Et constitui super vos speculatores audite vocem tubae, et dixerunt
non audiemus.
Audite gentes quanta ego faciam eis audi terra ecce ego adducam
mala etc.36 Jer. 6. 16.
Fé nos sacramentos exteriores. Jer. 7. 14.
Faciam domui huic in qua invocatum est nomen meum et in qua vos
habetis fiduciam et loco quem dedi vobis et patribus vestris sicut feci
silo37.
Tu ergo noli orare pro populo hoc38.
O essencial não é o sacrifício exterior.
Quia non sum locutus cum patribus vestris et non praecepi eis in die
qua eduxi eos de terra Egypti de verbo holocautomatum et victimarum.
Sed hoc verbum praecepi eis dicens, audite vocem meam et ero vobis
deus et vos eritis mihi populus et ambulate in omni via quam mandavi
vobis, ut bene sit vobis, et non audierunt39. Jer. 7. 22.
Multiplicidade de doutrinas.
Secundum numerum enim civitatum tuarum erant dei tui Juda et
secundum numerum viarum Jerusalem posuisti aras confusionis tu ergo
noli orare pro populo hoc40. Jer. 11. 13.
Non prophetabis in nomine domini et non morieris in manibus
nostris. Propterea haec dicit dominus41. Jer. 11. 21.
Quod si dixerint ad te, quo egrediemur? dices ad eos, haec dicit
dominus, qui ad mortem ad mortem, et qui ad gladium ad gladium, et
qui ad famem ad famem, et qui ad captivitatem ad captivitatem42. Jer.
15. 2.
Pravum est cor omnium et incrustabile quis cognoscet illud?
(Quer dizer quem conhecerá toda a sua malícia, pois já se sabe que é
mau.)
Ego dominus scrutans cor et probans renes43. Jer. 17. 9.
Et dixerunt venite et cogitemus contra Jeremiam cogitationes non
enim peribit lex a sacerdote neque sermo a propheta44.
Non sis tu mihi formidini, tu spes mea in die afflictionum45. Jer. 17.
17.
A prophetis enim Jerusalem egressa est pollutio super omnem
terram46. Jer. 23. 15.
Dicunt his qui blasphemant me locutus est dominus pax erit vobis et
omni qui ambulat in pravitate cordis sui dixerunt non veniet super vos
malum47. – Jer. 23. 17.

SÉRIE XVI

487 (727)
Durante o tempo do Messias.
Aenigmatis. Ezeq. 17.
Seu precursor. Malaquias 2.
Nascerá um menino. Is. 9.
Ele nascerá da cidade de Belém. Miq. 5. Ele aparecerá
principalmente em Jerusalém e nascerá da família de Judá e de Davi.
Ele deve cegar os sábios e os doutos. Is. 6. – Is. 8. 29. – Is. 29. – Is.
61. e anunciar o evangelho aos pobres e aos pequenos, abrir os olhos dos
cegos e devolver a saúde aos enfermos – e levar à luz aqueles que estão
perecendo nas trevas. Is. 61.
Ele deve ensinar a via perfeita e ser o preceptor dos gentios. Is. 55-
42. 1. 7.
As profecias devem ser ininteligíveis aos ímpios. Da. 12. – Oseias.
últ. 10. mas inteligíveis aos que são bem instruídos.
As profecias que o representam pobre o representam senhor das
nações. Is. 52. 16 etc. 53 – Zac. 9. 9.
As profecias que predizem o tempo não o predizem senão como
senhor dos gentios e sofredor, e não nas nuvens, nem juiz. E aquelas que
o representam assim julgador e glorioso não indicam o tempo.
Que ele deve ser a vítima pelos pecados do mundo. Is. 39. 53. etc.
Ele deve ser a pedra fundamental e preciosa. Is. 28. 16.
Ele deve ser a pedra de tropeço, de escândalo. Is. 8.
Jerusalém deve chocar contra essa pedra.
Os edificadores devem reprovar essa pedra. Salmos 117. 22.
Deus deve fazer dessa pedra a principal pedra angular. E essa pedra
deve crescer transformando-se numa montanha imensa e deve encher
toda a terra. Dan. 2. Que assim ele deve ser rejeitado, não reconhecido,
traído. 108. 8.
Vendido. Zac. 11. 12, escarrado, esbofeteado, zombado, afligido de
infinitas maneiras, abeberado de fel, salmos 60 (72), trespassado. Zac.
12. ter perfurados os pés e as mãos, ser morto e as suas roupas lançadas
à sorte. Salmos (22).

488 (761)
Os judeus, ao matá-lo por não o receber como Messias, conferiram-
lhe a última marca do Messias.
E continuando a não reconhecê-lo tornaram-se testemunhas
irrecusáveis.
E ao matá-lo e ao continuarem a renegá-lo eles cumpriram as
profecias.

487 (727)
Que ele ressuscitaria. Salmos. 15. no terceiro dia. Oseias, 6. 3.
Que subiria ao céu para sentar-se à direita. Salmos. 110.
Que os reis se armariam contra ele. Salmos. 2. Que estando à direita
do Pai seria vitorioso de seus inimigos.
Que os reis da terra e todos os povos o adorarão. Is. 60. Que os
judeus subsistirão como nação. Jer. Que ficarão errantes sem reis etc.
Os. 3. Sem profetas. Amós.
Esperando a salvação e não a encontrando. Is. Chamada dos gentios
por Jesus Cristo. Is. 52. 15.
Is. 55.
Is. 60.
Salmos. 71.
Os. 1. 9. Não sereis mais o meu povo e eu não serei mais vosso
Deus, depois que fordes multiplicados pela dispersão. Os lugares onde
não se chama meu povo eu o chamarei meu povo.

SÉRIE XVII

489 (713)
CATIVEIRO DOS JUDEUS SEM VOLTA.
Jer. 11. 11. Farei cair sobre Judá males dos quais não poderão se
livrar.
Figuras.
O Senhor teve uma vinha da qual esperou uvas e ela só produziu
agraço. Eu a dispersarei, pois, e a destruirei. A terra só produzirá
espinhos e eu impedirei o céu de…
Is. 5. 8. A vinha do Senhor é a casa de Israel. E os homens de Judá
dela serão o germe deleitável. Esperei que fizessem ações de justiça, e
eles produziram só iniquidade.
Is. 8.
Santificai o Senhor com temor e tremor. Não temais senão a ele, e
ele será para vós santificação. Mas estará como pedra de escândalo e
como pedra de tropeço para as duas casas de Israel.
Estará como armadilha e como ruína para os povos de Jerusalém, e
um grande número dentre eles se chocarão contra essa pedra, cairão,
ficarão feridos, e cairão nessa armadilha e nela perecerão.
Vedai as minhas palavras e encobri a minha lei para os meus
discípulos.
Esperarei então com paciência o Senhor que se vela e se esconde na
casa de Jacó.
Is. 29. Ficai confuso e surpreso, povo de Israel, cambaleai, tropeçai,
mas não de embriaguez, pois Deus vos preparou o espírito de
adormecimento. Ele vos vedará os olhos. Obscurecerá os vossos
príncipes e profetas que têm visões.

Daniel. 12. Os maus não o entenderão, mas aqueles que forem bem
instruídos o entenderão.

Oseias. último capítulo. último versículo, depois de muitas bênçãos


temporais diz: onde está o sábio e ele entenderá estas coisas etc….
E as visões de todos os profetas serão para vós como um livro
selado, o qual, se for entregue a um homem sábio e capaz de o ler
responderá: não posso lê-lo porque está selado, e quando o derem
àqueles que não sabem ler, dirão: não conheço as letras.
E o Senhor me disse: porque este povo me honra com os lábios, mas
o seu coração está bem longe de mim, e não me serve senão por vias
humanas; eis a razão e a causa disso, pois, se eles adorassem a Deus de
coração, entenderiam as profecias.
É por essa razão que acrescentarei a todo o resto trazer sobre este
povo uma maravilha espantosa e um prodígio grande e terrível. É que a
sabedoria dos seus sábios perecerá e sua inteligência será (obscurecida).
PROFECIAS PROVA DE DIVINDADE.
Is. 41.
Se vós sois deuses, aproximai-vos, anunciai-nos as coisas futuras;
inclinaremos os nossos corações diante de vossas palavras. Ensinai-nos
as coisas que estiveram no começo e profetizai-nos aquelas que hão de
acontecer.
Mediante isso saberemos que sois deuses; fazei o bem ou o mal se
puderdes. Vejamos então e raciocinemos juntos.
Mas não sois nada, não sois senão abominação etc.
Quem dentre vós nos instrui, por meio de autores contemporâneos,
sobre coisas feitas desde o começo e a origem, a fim de que lhe digamos:
vós sois o justo. Não há nenhum deles que nos ensine, nem que prediga
o futuro.

Is. 42. Eu que sou o Senhor não comunico a minha glória a outros.
Eu é que fiz predizer as coisas que aconteceram e que predigo ainda
aquelas que hão de vir. Cantai num cântico novo a Deus por toda a terra.
Traz aqui esse povo que tem olhos e que não vê, que tem ouvidos e
que está surdo.
Que as nações se juntem todas; quem dentre elas e os seus deuses
nos instruirá das coisas passadas e futuras? Que produzam elas as suas
testemunhas para a sua justificação ou me escutem e confessem que a
verdade está aqui.
Vós sois as minhas testemunhas, diz o Senhor, vós e o meu servo a
quem elegi, a fim de que me conheçais, que acrediteis que eu é que sou.
Eu predisse, salvei, fiz sozinho essas maravilhas a vossos olhos; vós
sois as testemunhas da minha divindade, diz o Senhor.
Fui eu que por amor a vós quebrei as forças dos babilônios. Fui eu
que vos santifiquei e vos criei.
Fui eu que vos fiz passar pelo meio das águas, e do mar, e das
torrentes e que submergi e destruí para sempre os poderosos inimigos
que vos resistiram.
Mas perdei a memória desses antigos benefícios e não volteis mais
os olhos para as coisas passadas.
Eis que preparo novas coisas que vão logo aparecer. Vós as
conhecereis. Tornarei os desertos habitáveis e deliciosos.
Formei para mim este povo, eu o estabeleci para anunciar os meus
louvores etc….
Mas eu mesmo apagarei os vossos pecados e esquecerei os vossos
crimes, pois – quanto a vós, repassai em vossa memória as vossas
ingratidões para ver se tereis com que vos justificar. Vosso primeiro pai
pecou e vossos doutores foram todos prevaricadores.
Is. 44. Sou o primeiro e o último, diz o Senhor; quem se igualará a
mim? Anuncie ele a ordem das coisas, desde que formei os primeiros
povos e anuncie as coisas que devem acontecer.
Nada temais. Não vos fiz eu entender todas essas coisas? Vós sois as
minhas testemunhas.
PREDIÇÃO DE CIRO.
Por causa de Jacó a quem elegi, chamei-te pelo nome. Is. 45. 21.
Vinde e disputemos juntos. Quem fez entender as coisas desde o início?
quem predisse as coisas desde então? Não fui eu, que sou o Senhor?
Is. 46. Rememorai os primeiros séculos e sabei que não há nada
semelhante a mim, que anuncio desde o começo as coisas que devem
acontecer no fim, e já desde a origem do mundo. Meus decretos
subsistirão e todas as minhas vontades serão cumpridas.
Is. 42. 9. As primeiras coisas aconteceram como tinham sido preditas
e eis que agora predigo outras e volas anuncio antes que elas tenham
acontecido.
Is. 48. 3. Fiz predizer as primeiras e as cumpri depois. E elas
aconteceram da maneira como eu havia dito, porque sei que sois duros,
que vosso espírito é rebelde e vossa fronte impudente. E é por isso que
as quis anunciar antes do acontecimento a fim de que não possais dizer
que foi obra de vossos deuses e o efeito da ordem deles.
Vedes acontecer aquilo que fora predito. Não o contareis. Agora vos
anuncio coisas novas que conservo em meu poder, e que ainda não
soubestes. É só agora que as preparo e não há muito tempo, são
desconhecidas para vós. Mantive-as escondidas de vós, temendo que vos
gabásseis de tê-las previsto vós mesmos.
Porque não tendes nenhum conhecimento delas, e ninguém vos falou
delas, e vossos ouvidos nada ouviram a respeito. Porque vos conheço e
sei que sois cheio de prevaricação e dei-vos o nome de prevaricador
desde os primeiros tempos de vossa origem.
Is. 65.
REPROVAÇÃO DOS JUDEUS E CONVERSÃO DOS GENTIOS.
Procuraram-me aqueles que não me consultavam. Encontraram-me
aqueles que não me procuravam. Eu disse: eis-me aqui, eis-me aqui, ao
povo que não invocava o meu nome.
Estendi as mãos o dia todo ao povo incrédulo que segue os seus
desejos e que caminha numa via má, a esse povo que me provoca sem
cessar pelos crimes que comete em minha presença, que se deixou levar
a fazer sacrifícios aos ídolos etc.
Esses serão dispersos em fumaça no dia do meu furor etc…
Juntarei as iniquidades vossas e de vossos pais e vos retribuirei a
todos de acordo com vossas obras.
O Senhor assim disse: Pelo amor de meus servos não porei a perder
todo Israel. Mas reservarei alguns deles da mesma forma que se reserva
um grão que ficou num cacho do qual se diz não o arranqueis, porque é
bênção.
Assim tomarei de Jacó e de Judá para possuir minhas montanhas,
que meus eleitos e servos terão como herança, e meus campos férteis e
admiravelmente abundantes.
Mas exterminarei todos os outros, porque esquecestes o vosso Deus
para servir aos deuses estrangeiros. Chamei-vos e não me respondestes;
falei e não me ouvistes, e escolhestes as coisas que eu havia proibido.
É por isso que o Senhor diz estas coisas. Aqui está. Meus servos
serão saciados e vós estareis perecendo de fome. Meus servos estarão na
alegria e vós, na confusão. Meus servos cantarão os cânticos da
abundância da alegria de seu coração e vós lançareis gritos e urros da
aflição de vosso espírito.
E deixareis vosso nome em abominação para os meus eleitos. O
Senhor vos exterminará e nomeará os seus servos com outro nome, no
qual aquele que for abençoado na terra será abençoado em Deus etc.
Porque as primeiras dores são postas em esquecimento.
Porque eis que crio novos céus e nova terra, e as coisas passadas não
estarão mais na memória e não virão mais ao pensamento.
Mas vos alegrareis para sempre nas coisas novas que eu crio, pois
crio Jerusalém para não ser senão alegria, e júbilo o seu povo, e vou
comprazer-me em Jerusalém e no meu povo e aí não mais se ouvirão
gritos e prantos.
Eu o atenderei antes que peça. Eu os ouvirei quando mal começarem
a falar. O lobo e o cordeiro pastarão juntos; o leão e o boi comerão a
mesma palha. A serpente só comerá o pó e não se cometerá mais
homicídio nem violência em toda a minha santa montanha.
Is. 56.
(O Senhor disse estas coisas: sede justos e retos pois a minha
salvação está próxima e a minha justiça vai ser revelada.)
(Bem-aventurado é aquele que faz estas coisas (e) observa o meu
sábado e impede as suas mãos de cometer algum mal.)
E não digam os estrangeiros que a mim se apegam: Deus me apartará
de seu povo.
Porque o Senhor diz estas coisas: a qualquer um que guardar o meu
sábado e escolher fazer as minhas vontades e guardar a minha aliança,
eu lhe darei lugar em minha casa e lhe darei um nome melhor do que o
que dei aos meus filhos, será um nome eterno que jamais perecerá.
Foi por nossos crimes que a justiça se afastou de nós. Esperamos a
luz e só encontramos as trevas. Esperamos a claridade e caminhamos na
escuridão.
Tateamos na muralha como cegos, chocamo-nos em pleno meio-dia
como no meio da noite, e como mortos em lugares tenebrosos.
Rugiremos todos como ursos; gemeremos como pombas. Esperamos
a justiça e ela não chega. Esperamos a salvação e ela se afasta de nós.
Is. 66. 18.
Mas visitarei as obras e pensamentos deles quando vier para reuni-
los com todas as nações e povos, e eles verão a minha glória.
E eu lhes imporei um sinal, e daqueles que serão salvos, enviarei
alguns às nações, à África, à Lídia, à Itália, à Grécia e aos povos que não
ouviram falar de mim e que não viram a minha glória. E eles conduzirão
os vossos irmãos.
REPROVAÇÃO DO TEMPLO.
Jer. 7.
Ide a Silo onde eu havia estabelecido o meu nome no começo e vede
o que fiz lá por causa dos pecados do meu povo. Porque eu o rejeitei e
fiz para mim um templo noutro lugar.
E agora, diz o Senhor, porque cometestes os mesmos crimes, farei
deste templo, onde é invocado o meu nome em que confiais e que eu
mesmo dei a vossos ancestrais, a mesma coisa que fiz de Silo.
E eu vos rejeitarei para longe de mim da mesma maneira como
rejeitei os vossos irmãos, os filhos de Efraim, rejeitados sem retorno.
Não rezeis pois por este povo.

Jer. 7. 22. De que vos serve acrescentar sacrifício sobre sacrifício?


Quando retirei os vossos pais do Egito, não lhes falei de sacrifícios e de
holocaustos. Não lhes dei nenhuma ordem sobre isso e o preceito que
lhes dei foi o seguinte: sede obedientes e fiéis ao meu mandamento e
serei vosso Deus e sereis o meu povo.
Foi só depois que sacrificaram aos bezerros de ouro que ordenei
sacrifícios, para reverter em bem um mau costume.

Jer. 7. Não confieis nas palavras mentirosas daqueles que vos dizem:
o templo do senhor, o templo do senhor, o templo do senhor, são …

SÉRIE XVIII

490 (721)
Só a César temos como rei.
491 (439)
Natureza corrompida.
O homem não age pela razão que faz o seu ser.
492 (630)
A sinceridade dos judeus.
Desde que eles não têm mais profetas. Macab.
Desde Jesus Cristo. Massorett.
Este livro vos ficará como testemunha.
As letras defeituosas e finais.

Sinceros contra a sua honra e morrendo por isso. Isso não tem
exemplo no mundo nem tem raiz na natureza.
493 (714)
Profecias cumpridas.
3 R. 13. 2.
4 R. 23. 16.

Jos. 6. 26. – 3. R. 16. 34. – Deut. 33.

Malaq. 1. 11. O sacrifício dos judeus reprovado e o sacrifício dos


pagãos (mesmo fora de Jerusalém) e em todos os lugares.

Moisés prediz a vocação dos gentios antes de morrer. 32. 21. E a


reprovação dos judeus.
Moisés prediz o que deve acontecer a cada tribo.
494 (714)
Judeus testemunhas de Deus. Is. 43. 9. 44. 8.
495 (641) É visivelmente um povo feito de propósito para servir de
testemunha ao messias. Is. 43. 9. 44. 8. Ele carrega livros, ama-os e não
os entende. E tudo isso é predito; que os julgamentos de Deus lhes são
confiados, mas como um livro selado.
496 (714)
Endurecidos os seus corações. E como? agradando a concupiscência
e fazendo com que esperassem cumpri-la.
497 (714)
Profecia.
Vosso nome estará em execração para meus eleitos e lhes darei outro
nome.
498 (715)
Profecia.
Amós e Zacarias. Eles venderam o justo e por isso nunca voltarão a
ser chamados.
Jesus Cristo traído.
Não se terá mais memória do Egito.
Vede Is. 43. 16. 17. 18. 19. Jerem. 23. 6. 7.
Profecia.
Os judeus serão espalhados por toda parte. Is. 27. 6.
Lei nova. Jer. 31. 32.
Os 2 templos gloriosos. Jesus Cristo a ele virá. Ag. 2. 7. 8. 9. 10.
Malaq. Grócio.
Vocação dos gentios. Joel 2. 28. Oseias 2. 24. Deut. 32. 21. Mal. 1.
11.
499 (792)
Que homem jamais teve tanto brilho?
O povo judeu inteiro o prediz antes de sua vinda. O povo gentio o
adora após a sua vinda.
Esses dois povos, gentio e judeu, o veem como o seu centro.
E no entanto que homem jamais gozou menos desse brilho?
De 33 anos ele vive 30 sem aparecer. Em 3 anos ele passa por
impostor. Os sacerdotes e os maiorais o rejeitam. Seus amigos e
próximos o desprezam, finalmente morre traído por um dos seus,
renegado por outro e abandonado por todos.
Que participação teve ele nesse brilho? Jamais homem teve tamanho
brilho, jamais homem teve tamanha ignomínia. Todo esse brilho só
serviu para nós, para no-lo tornar reconhecível, e ele nada teve para si.

SÉRIE XIX

500 (700)
Bonito ver com os olhos da fé a história de Herodes, de César.
501 (659)
Figuras.
Para mostrar que o Antigo Testamento é – não é senão – figurativo e
que os profetas entendiam pelos bens temporais outros bens. É 1o que
isso seria indigno de Deus; 2o que os discursos deles exprimem muito
claramente a promessa dos bens temporais e que dizem entretanto que os
discursos deles são obscuros e que seu sentido não será entendido. Daí
parece que o sentido secreto não era o que exprimiam às claras e que,
por conseguinte, eles pretendiam falar de outros sacrifícios, de outro
Libertador etc. Eles dizem que só serão entendidos no final dos tempos.
Jer. 33. ult.
A 2a prova é que os seus discursos são contrários e se destroem. De
maneira que se se aceita que não tenham entendido pelas palavras lei e
sacrifício outra coisa senão a lei de Moisés, há contradição manifesta e
grosseira; portanto entendiam outra coisa ao se contradizerem às vezes
em um mesmo capítulo.
Ora, para entender o sentido de um autor…

502 (571)
Razões por que figuras.
(R. Eles tinham de falar com um povo carnal e tornálo depositário
do testamento espiritual.)
Era preciso que, para dar crédito ao Messias, tivesse havido profecias
precedentes e que elas fossem levadas por pessoas não suspeitas e de
uma diligência, de uma fidelidade e um zelo extraordinário e que fossem
conhecidas de toda a terra.
Para fazer com que tudo isso tivesse êxito, Deus escolheu esse povo
carnal o qual fez depositário das profecias que predizem o Messias como
libertador e dispensador dos bens carnais de que esse mesmo povo
gostava.
E assim ele mostrou um ardor extraordinário por seus profetas e
levou diante dos olhos de todo o mundo esses livros que predizem o seu
Messias, garantindo a todas as nações que ele devia vir e na maneira
predita nos livros que mantinham abertos para todo o mundo. E assim
esse povo decepcionado com o advento ignominioso e pobre do Messias
foi o seu mais cruel inimigo, de modo que aí está o povo do mundo
menos suspeito de nos favorecer e o mais exato e zeloso que se possa
dizer para sua lei e para seus profetas, que os leva incorruptos.
De maneira que aqueles que rejeitaram e crucificaram Jesus Cristo,
que fora escândalo para eles, são os portadores dos livros que dão
testemunho dele e dizem que ele será rejeitado e motivo de escândalo, de
maneira que eles marcaram que era ele ao recusá-lo e que ele foi
igualmente provado tanto pelos justos judeus que o receberam como
pelos injustos que o rejeitaram, um e outro tendo sido predito.
É por isso que as profecias têm um sentido oculto, o espiritual, de
que aquele povo era inimigo, por baixo do carnal, de que era amigo. Se o
sentido espiritual tivesse sido descoberto, eles não seriam capazes de
gostar dele e, não podendo ser seu portador, não teriam tido zelo pela
conservação de seus livros e de suas cerimônias, e, se tivessem amado
essas promessas espirituais e as tivessem conservado incorruptas até a
chegada do Messias, seu testemunho não teria tido força, pois que teriam
sido amigos delas.
Eis por que era bom que o sentido espiritual fosse encoberto, mas,
por outro lado, se esse sentido tivesse sido tão oculto que não tivesse
absolutamente aparecido, não poderia ter servido de prova para o
Messias. Que foi feito então?
Foi encoberto sob o temporal em grande número de passagens e foi
descoberto tão claramente em algumas outras, além de que o tempo e o
estado do mundo foi predito com tanta clareza que é mais claro do que o
sol, e esse sentido espiritual é tão claramente explicado em alguns
trechos que era necessária uma cegueira igual àquela que a carne lança
no espírito quando este lhe está submetido para não o reconhecer.
Aí está, pois, qual foi a conduta de Deus. Esse sentido está coberto
por outro numa infinidade de trechos e descoberto em alguns raramente,
mas de tal sorte entretanto que os lugares em que ele está oculto são
equívocos e podem convir aos dois, ao passo que os lugares em que está
descoberto são unívocos e não podem convir senão ao sentido espiritual.
De maneira que isso não podia induzir em erro e não havia senão um
povo tão carnal a ponto de poder equivocar-se.
Porque quando os bens são prometidos em abundância, o que é que
os impedia de entender os verdadeiros bens, senão a sua cupidez que
determinava tal sentido aos bens da terra. Mas aqueles que não tinham
por bem senão a Deus, estes os relacionavam unicamente a Deus.
Pois existem dois princípios que dividem as vontades dos homens: a
cupidez e a caridade. Não é que a cupidez não possa existir junto com a
fé em Deus e que a caridade não exista com os bens da terra, mas a
cupidez se serve de Deus e goza do mundo, e a caridade faz o contrário.
Ora, o fim último é o que dá o nome às coisas; tudo aquilo que nos
impede de chegar a ele é chamado de inimigo. Assim, as criaturas, ainda
que boas, serão inimigas dos justos quando elas os desviam de Deus, e
Deus mesmo é o inimigo daqueles cuja cobiça ele perturba.
Assim, como a palavra inimigo depende do fim último, os justos
viam nela as suas paixões, e os carnais, os babilônios; e assim esses
termos só eram obscuros para os injustos.
E é isso que diz Isaías: signa legem in electis meis48.
E que Jesus Cristo será pedra de escândalo, mas bemaventurados os
que não serão escandalizados por ele.

Oseias ult. diz isso perfeitamente: onde está o sábio e ele entenderá o
que eu digo. Os justos o entenderão, pois as vias de Deus são retas, mas
os maus nelas tropeçarão.

503 (675)
… tropeçarão. E no entanto esse testamento feito para cegar a uns e
esclarecer a outros apontava naqueles mesmos a quem cegava a verdade
que devia ser conhecida dos outros. Porque os bens visíveis que
recebiam de Deus eram tão grandes e tão divinos que ficava patente ser
ele poderoso para lhes dar os invisíveis e um Messias.
Porque a natureza é uma imagem da graça e os milagres visíveis são
imagens dos invisíveis, ut sciatis, tibi dico surge49.
Is. 51 diz que a redenção será como a passagem do Mar Vermelho.
Deus mostrou na saída do Egito, do mar, na derrota dos reis, no
maná, em toda a genealogia de Abraão que era capaz de salvar, de fazer
descer o pão do céu, de maneira que aquele povo inimigo é a figura e a
representação do próprio Messias que eles ignoram… etc.
Ele nos ensinou afinal que todas essas coisas não eram mais que
figuras e o que é ser verdadeiramente livre, verdadeiro israelita, a
verdadeira circuncisão, o verdadeiro pão do céu etc….
Kirkerus – Usserius.

Naquelas promessas cada um encontra o que tem no fundo do seu


coração, os bens temporais ou os bens espirituais, Deus ou as criaturas,
mas com a seguinte diferença: aqueles que nelas buscam as criaturas as
encontram, mas com várias contradições, com a proibição de as amar,
com a ordem de não adorar senão a Deus e de amar somente a ele, o que
não é senão uma mesma coisa, e que finalmente não veio Messias para
eles, ao passo que aqueles que nelas buscam a Deus o encontram, e sem
nenhuma contradição com o mandamento de amar somente a ele, e veio
um Messias no tempo predito para lhes dar os bens que pediam.

Assim os judeus tinham milagres, profecias que viam cumprir-se e a


doutrina de sua lei era que não se adorasse e não se amasse senão a um
único Deus. Ela era também perpétua. Assim tinha todas as marcas da
verdadeira religião. Assim ela o era, mas é preciso distinguir entre a
doutrina dos judeus e a doutrina da lei dos judeus. Ora, a doutrina dos
judeus não era verdadeira, embora tivesse os milagres, as profecias e a
perpetuidade, porque ela não tinha este outro ponto que é não adorar e
não amar senão a Deus.

SÉRIE XX

504 (260)
Eles se escondem na multidão e invocam a ajuda do número.
Tumulto.
505 (260)
A autoridade. Tanto não basta ouvir uma coisa para que seja a regra
de vossa crença, como não deveis acreditar em nada sem vos colocar no
estado como se jamais a tivésseis ouvido.
É o vosso consentimento a vós mesmo e a voz constante da vossa
razão e não dos outros que vos deve levar a acreditar.
O acreditar é tão importante.
Cem contradições seriam verdadeiras.
Se a antiguidade fosse a regra da crença, os antigos ficariam então
sem regra.
Se o consentimento geral, se os homens tivessem perecido.
Falsa humildade, orgulho.
Punição dos que pecam, erro.
Abri a cortina.
Por mais que façais, tereis de crer, ou negar, ou duvidar.
Não teremos então nenhuma regra?
Julgamos que os animais fazem bem o que fazem; não haverá uma
regra para julgar os homens?
Negar, acreditar e duvidar são para o homem o que correr é para o
cavalo.

506 (90)
Quod crebro videt non miratur etiam si cur fiat nescit; quod ante
non viderit id si evenerit ostentum esse censet50. Cic.
583 – Nae iste magno conatu magnas nugas dixerit51. Terêncio.

506 (87)
Quasi quicquam infelicius sit homine cui sua figmenta dominantur.
Plin.52.

507 (363)
Ex senatusconsultis et plebiscitis scelera exercentur53. Sen. 588.
Nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo
philosophorum54. Divin.
Quibusdam destinatis sententiis consecrati quae non probant
coguntur defendere55. Cíc.
Ut omnium rerum sic litterarum quoque intemperantia laboramus56.
Sênec.
Id maxime quemque decet quod est cujusque suum maxime57. 588.
Hos natura modos primum dedit58. Geórg.
Paucis opus est litteris ad bonam mentem59.
Si quando turpe non sit tamen non est non turpe quum id a
multitudine laudetur 60.
Mihi sic usus est tibi ut opus est facto fac61. Ter.

508 (364)
Rarum est enim ut satis se quisque vereatur62.
Tot circa unum caput tumultuantes deos63.
Nihil turpius quam cognitioni assertionem praecurrere64. Cíc.
Nec me pudet ut istos fateri nescire quod nesciam65.
Melius non incipient66.

SÉRIE XXI

509 (49)
Disfarçar a natureza e fantasiá-la. Sem rei, sem papa, sem bispo, mas
o augusto monarca etc…. Sem Paris, capital do reino.

Há lugares em que é preciso chamar Paris de Paris, e outros em que é


preciso chamá-la de capital do reino.
510 (7)
Na medida em que se tem mais espírito, acha-se que há mais homens
originais. As pessoas comuns não encontram diferença entre os homens.
511 (2)
Diversas espécies de sentido reto, uns em certa ordem de coisas e
não em outras ordens em que extrapolam.
Uns tiram bem as consequências de poucos princípios e é uma
retidão de sentido.
Outros tiram bem as consequências das coisas em que há muitos
princípios.
Por exemplo, uns compreendem bem os efeitos da água, em que há
poucos princípios, mas essas consequências são tão finas que só uma
extrema retidão de espírito pode chegar a elas, e estes não seriam talvez
por isso grandes geômetras porque a geometria compreende um grande
número de princípios, e determinada natureza de espírito pode ser tal que
só possa penetrar bem e a fundo uns poucos princípios, e não possa
penetrar de modo algum as coisas em que há muitos princípios.
Existem, pois, duas espécies de espírito, um que penetra forte e
profundamente as consequências dos princípios, e é o espírito de justeza.
O outro que compreende um grande número de princípios sem os
confundir e é o espírito de geometria. Um é força e retidão de espírito.
Outro é amplidão de espírito. Ora, um pode muito bem existir sem o
outro, podendo o espírito ser forte e estreito, e podendo ser também
amplo e fraco.

SÉRIE XXII

512 (1)
Diferença entre o espírito de geometria e o espírito de finura.
Num os princípios são palpáveis mas afastados do uso comum, de
sorte que se tem dificuldade para virar a cabeça para esse lado, por falta
de hábito: mas, por pouco que se vire, veem-se os princípios
plenamente; e seria preciso ter o espírito totalmente falso para raciocinar
mal sobre princípios tão patentes que é quase impossível que eles
escapem.
Mas, no espírito de finura, os princípios estão no uso comum e diante
dos olhos de toda gente. Não adianta virar a cabeça, nem fazer violência;
a questão resume-se em se ter boa vista, mas é necessário tê-la boa: pois
os princípios estão tão desconexos e em tão grande número que é quase
impossível não escaparem. Ora, a omissão de um princípio conduz ao
erro; assim é preciso ter a vista bem clara para ver todos os princípios e
em seguida o espírito justo para não raciocinar de modo falso sobre
princípios conhecidos.
Todos os geômetras seriam então finos se tivessem vista boa, pois
não raciocinam erradamente sobre os princípios que conhecem. E os
espíritos finos seriam geômetras se pudessem voltar sua vista para os
princípios inabituais da geometria.
Isso faz, então, que certos espíritos finos não sejam geômetras
Virar.
é que eles são totalmente incapazes de se virar para os princípios de
geometria, mas o que faz com que geômetras não sejam finos é que eles
não veem o que está diante deles e que, estando acostumados aos
princípios claros e grosseiros de geometria e a não raciocinar senão
depois de ter visto e manuseado bem os seus princípios, perdem-se nas
coisas de finura, em que os princípios não se deixam manusear assim.
Mal se consegue vê-los, podese senti-los mais facilmente do que vê-los,
têm-se infinitas dificuldades para fazer com que aqueles que não os
sentem por si mesmos passem a senti-los. São coisas tão delicadas e tão
numerosas que é necessário ter um senso bem delicado e bem claro para
as sentir e julgar de modo justo e correto, segundo esse sentimento, sem
poder, no mais das vezes, demonstrá-lo por ordem como em geometria,
porque não se possuem assim os seus princípios, e seria uma tarefa
infinita tentar possuí-los. É preciso ver a coisa num único relance, num
único olhar e não por progresso de raciocínio, pelo menos até certo grau.
E assim é raro que os geômetras sejam finos e que os finos sejam
geômetras, por quererem os geômetras tratar geometricamente essas
coisas finas, e se tornam ridículos, querendo começar pelas definições e
em seguida pelos princípios, o que não é a maneira de agir nesta espécie
de arrazoado. Não é que o espírito não o faça, mas ele o faz tacitamente,
naturalmente e sem arte67. Pois a sua expressão ultrapassa todos os
homens e o seu sentimento pertence apenas a poucos homens. E os
espíritos finos, ao contrário, tendo assim o costume de julgar num único
relance de olhos, ficam tão admirados quando se lhes apresentam
proposições de que não entendem nada e em que, para entrar, é preciso
passar por definições e princípios tão estéreis que não estão habituados a
ver assim em pormenores, que isso lhes repugna e os desgosta.
Mas os espíritos falsos nunca são finos nem geômetras.
Os geômetras que só são geômetras têm, pois, o espírito reto, mas
desde que lhes expliquem bem todas as coisas por definições e
princípios; fora disso, são falsos e insuportáveis, pois apenas são retos
sobre os princípios bem esclarecidos.
E os finos que só são finos não conseguem ter a paciência de descer
até aos primeiros princípios das coisas especulativas e de imaginação
que jamais viram no mundo, e totalmente sem uso.

513 (4)
Geometria. Finura.
A verdadeira eloquência zomba da eloquência, a verdadeira moral
zomba da moral. Quer dizer que a moral do juízo zomba da moral da
mente, que não tem regras.
Pois é ao juízo que pertence o sentimento, como as ciências
pertencem à mente. A finura é a parte do juízo, a geometria é a parte da
mente.
Zombar da filosofia é verdadeiramente filosofar.
514 (356)
A alimentação do corpo é pouco a pouco. Plenitude de alimento e
pouca substância.

SÉRIE XXIII

515 (48)
Miscel.
Quando num discurso se encontram palavras repetidas e, tentando
corrigi-las, acha-se que são tão apropriadas que mudá-las estragaria o
discurso, é preciso deixá-las, elas são a sua marca. E aí está a parte do
desejo68 que é cego e que não sabe que essa repetição não é erro nesse
lugar, pois não existe regra geral.
516 (880)
(Papa) Gosta-se da segurança, gosta-se de que o papa seja infalível
na fé, e que os doutores sérios o sejam nos costumes, a fim de se ter sua
própria garantia.
517 (869)
Se Santo Agostinho viesse hoje e fosse tão pouco autorizado quanto
os seus defensores, não faria nada. Deus conduz bem a sua Igreja e o
enviou antes com autoridade.
518 (378)
Pirr.
O espírito extremo é acusado de loucura como a extrema falta dele;
nada além da mediocridade é bom: é a pluralidade que estabeleceu isso e
que morde quem quer que escape por qualquer extremo. Não me
obstinarei nisso; consinto até que me coloquem nela e recuso ficar na
extremidade de baixo, não porque ela é baixa, mas porque é
extremidade, pois recusaria também que me colocassem na de cima. Sair
do meio é sair da humanidade.
A grandeza da alma humana consiste em saber manter-se no meio;
longe de estar em sair dele, a grandeza está em dele não sair.
519 (70)
(Natureza não p
A natureza nos colocou tão bem no meio que se mudarmos um lado
da balança mudamos também o outro. Je faisons, zoa trekei69.
Isso me leva a crer que existe algo como molas em nossa cabeça, de
tal maneira dispostas que quem toca numa toca também na contrária.)
520 (375)
(Passei muito tempo da minha vida pensando que havia uma justiça
e nisso não estava enganado, pois de fato existe conforme Deus nos quis
revelar, mas eu não via sob esse aspecto, e é aí que estava enganado,
pois acreditava que a nossa justiça era essencialmente justa e que eu
tinha meios de reconhecê-la e julgar a respeito dela, mas me vi tantas
vezes com falta de julgamento correto que finalmente comecei a
desconfiar de mim e depois dos outros. Vi todos os países e homens
mudando. E assim, depois de muitas mudanças de julgamento no que diz
respeito à verdadeira justiça, reconheci que a nossa natureza não era
mais que uma contínua mudança e daí em diante não mudei mais. E se
eu mudasse, confirmaria a minha opinião. O pirrônico Arcesilau que
volta a ser dogmático.)
521 (387)
(Pode ser que haja demonstrações verdadeiras, mas isso não é certo.
Assim isso mostra apenas que não é certo que tudo seja incerto. À glória
do pirronismo.)
522 (140)
(Aquele homem tão aflito com a morte da mulher e do filho único,
que tem essa grande disputa que o atormenta, de onde vem que neste
momento ele não está triste e que seja visto tão isento de todos os
pensamentos penosos e inquietantes? Isso não é de admirar. Acabam de
passar-lhe uma bola e é preciso que ele a lance a seu companheiro. Ele
está ocupado em apanhá-la ao cair do telhado para ganhar um lance.
Como quereis que ele pense em seus problemas tendo este outro
problema para cuidar? Eis aí um cuidado digno de ocupar essa grande
alma e de lhe tirar qualquer outro pensamento do espírito. Esse homem
nascido para conhecer o universo, para julgar de todas as coisas, para
reger um Estado, ei-lo ocupado e todo tomado pela tarefa de apanhar
uma lebre. E se ele não se rebaixar a isso e quiser estar sempre tenso
será ainda mais tolo, porque pretenderá elevar-se acima da humanidade
e ele não passa de um homem afinal de contas, isto é, capaz de pouco e
de muito, de tudo e de nada. Ele não é nem anjo nem bicho, é homem.)

523 (145)
(Um só pensamento nos ocupa; não podemos pensar em duas coisas
ao mesmo tempo, para nossa felicidade, segundo o mundo, não segundo
Deus.)
524 (853)
(É preciso julgar sobriamente a respeito das ordenações divinas,
meu Pai. São Paulo na Ilha de Malta.)

525 (325)
Montaigne está errado. O costume somente deve ser seguido porque
é costume e não porque é razoável ou justo, mas o povo o segue por esta
única razão: acredita que ele é justo. Senão ele não o seguiria mais,
embora fosse costume, pois só nos queremos submeter à razão ou à
justiça. O costume sem isso passaria por tirania, mas o império da razão
e da justiça não é mais tirânico do que o da deleitação. São princípios
naturais para o homem.
Seria bom, então, que se obedecesse às leis e aos costumes porque
são leis (assim as pessoas nunca se revoltariam, mas não quereriam,
talvez, submeter-se a elas, procurariam sempre a verdadeira); que se
soubesse que não há nenhuma verdadeira e justa a ser introduzida, que
nada conhecemos a respeito e que assim é necessário apenas seguir as
que se recebem. Por esse meio nunca elas seriam abandonadas. Mas o
povo não é suscetível dessa doutrina, e assim como acredita que a
verdade se pode encontrar e que ela está nas leis e costumes, acredita
nelas e toma a sua antiguidade como uma prova de sua verdade (e não
apenas de sua autoridade (temerária) sem (razão) verdade). Assim
obedece a elas, mas está sujeito a se revoltar logo que lhe mostrem que
elas não valem nada, o que se pode mostrar a respeito de todas olhando-
-as por determinado lado.
526 (408)
O mal é fácil de praticar. Existe uma infinidade deles. O bem é quase
único. Mas determinado gênero de mal é tão difícil de encontrar quanto
aquilo a que se chama bem, e muitas vezes, devido a essa característica,
faz-se passar por bem esse mal particular. É preciso mesmo ter uma
extraordinária grandeza de alma para chegar a ele, tanto quanto ao bem.
527 (40)
Os exemplos que se tomam para provar outras coisas, se se quisesse
provar os exemplos, tomar-se-iam as outras coisas para serem os
exemplos. Pois como se acredita sempre que a dificuldade está naquilo
que se quer provar, acha-se que os exemplos são mais claros e que
ajudam na demonstração.
Assim, quando se quer demonstrar algo geral, é preciso dar a regra
particular de um caso; mas, se se quer demonstrar um caso particular,
será preciso começar pela regra (geral). Pois sempre se acha obscura a
coisa que se quer provar e clara a que se utiliza na prova, pois, quando se
propõe alguma coisa a ser provada, primeiro a gente se convence dessa
imaginação de que ela é realmente obscura e de que, ao contrário, aquela
que deve servir-lhe de prova é clara, e assim esta se entende facilmente.
528 (57)
Não me achei bem com estas manifestações de cortesia: dei-vos
muito trabalho, tenho medo de aborrecer-vos, temo que isso seja muito
longo. Ou entusiasmamos, ou irritamos.
529 (105)
Como é difícil propor algo ao julgamento de outrem sem corromper
o seu julgamento pela maneira como se propõe. Quando se diz : eu acho
isso bonito, eu acho isso obscuro ou outra coisa semelhante, conduzimos
a imaginação para esse julgamento ou, ao contrário, a irritamos. É
melhor não dizer nada e então ele julga segundo o que é, quer dizer,
segundo o que ele é então, e segundo as outras circunstâncias de que não
se é o autor o tiverem influenciado. Mas pelo menos não se terá
colocado a própria influência, a menos que esse silêncio exerça também
o seu efeito, conforme o jeito e a interpretação que ele estará disposto a
lhe dar, ou conforme irá conjecturar a partir dos movimentos e da
expressão do rosto, ou do tom de voz segundo ele seja fisionomista, de
tal modo é difícil não separar um julgamento de sua base natural, ou
antes, quão pouco ele tem de firme ou estável.

530 (274)
Todo o nosso raciocínio se reduz a ceder ao sentimento.

Mas a fantasia é semelhante e contrária ao sentimento; de modo que


não se pode distinguir entre esses dois contrários. Um diz que o meu
sentimento é fantasia, o outro que a sua fantasia é sentimento. Seria
preciso ter uma regra. A razão se oferece, mas é flexível a todos os
sentidos.
E assim não existe nenhuma.

531 (85)
Aquelas coisas que mais nos prendem, como esconder que se tem
poucas posses, não são às vezes quase nada. É um nada que a nossa
imaginação aumenta transformando em montanha; um outro jogo de
imaginação faz-nos descobrir isso sem dificuldade.
532 (373)
Pirr.
Escreverei aqui os meus pensamentos sem ordem e não talvez numa
confusão sem objetivo. É a verdadeira ordem que caracterizará sempre o
meu objeto pela desordem mesma.
Eu faria muita honra ao meu assunto se o tratasse com ordem, pois
que quero mostrar que ele é incapaz disso.
533 (331)
Não se imagina Platão e Aristóteles a não ser trajando grandes vestes
de pedantes. Eram pessoas honestas e, como os outros, rindo com os
amigos. E quando se divertiram fazendo as suas leis e políticas, fizeram-
no brincando. Era a parte menos filosófica e menos séria de sua vida; a
mais filosófica era viver simples e tranquilamente.
Se escreveram sobre política, foi como para regulamentar um
hospital de loucos.
E se eles fizeram de conta que falavam disso como de uma grande
coisa, foi porque sabiam que os loucos para quem falavam pensavam ser
reis e imperadores. Entram nos princípios destes para limitar a sua
loucura ao menor mal possível.
534 (5)
Aqueles que julgam uma obra sem regra são em relação aos outros
como aqueles que têm um relógio com relação aos outros. Um diz: há
duas horas; outro diz: há três quartos de hora. Olho para o meu relógio e
digo a um: estais vos entediando e ao outro: o tempo pouco dura para
vós, pois há uma hora e meia e eu zombo dos que dizem que o tempo
dura para mim e que disso julgo por
fantasia.
Eles não sabem que estou julgando pelo meu relógio.
535 (102)
Há vícios que só estão presos a nós por outros, e que, retirando-se o
tronco, são levados embora como galhos.

536 (579)
Deus e (os apóstolos), prevendo que as sementes de orgulho fariam
nascer heresias e não querendo dar-lhes oportunidade de nascer por
termos próprios, colocou nas Escrituras e nas orações da igreja palavras
e sementes contrárias para produzir seus frutos no devido tempo.
Da mesma forma que ele dá, na moral, a caridade que produz frutos
contra a concupiscência.
537 (407)
Quando a malignidade tem a razão de seu lado, torna-se orgulhosa e
exibe a razão com todo o brilho.
Quando a austeridade ou a escolha severa não conseguiu chegar ao
verdadeiro bem e é preciso voltar a seguir a natureza, ela se torna
orgulhosa por esse retorno.
538 (531)
Aquele que conhece a vontade de seu senhor apanhará mais
pancadas por causa do poder que tem pelo conhecimento;
Qui justus est justificetur adhuc70, por causa do poder que tem pela
justiça.
Àquele que mais recebeu maior conta será pedida por causa do poder
que ele tem pela ajuda.

539 (99)
Há uma diferença universal e essencial entre as ações da vontade e
todas as outras.

A vontade é um dos principais órgãos da crença, não que ela forme a


crença, mas porque as coisas são verdadeiras ou falsas segundo a face
pela qual as olhamos. A vontade que se apraz numa mais do que na outra
desvia o espírito de considerar as qualidades daquela que não gosta de
ver, e assim o espírito, caminhando junto com a vontade, detém-se a
olhar a face de que ela gosta e assim julga a respeito dela por aquilo que
vê.

540 (380)
Todas as boas máximas estão no mundo; só falta aplicá-las.
Por exemplo, não se duvida de que se deva expor a própria vida para
defender o bem público, e vários o fazem; mas pela religião não.

É necessário que haja desigualdade entre os homens, isso é verdade;


mas uma vez aceito isso, eis que a porta fica aberta não apenas para a
mais alta dominação, mas para a mais alta tirania.
É necessário relaxar um pouco o espírito, mas isso abre a porta para
as maiores extravagâncias.
Que se marquem os limites. Não há marcos divisórios nas coisas. As
leis querem colocá-los, e o espírito não consegue suportá-los.

541 (120)

(Natureza diversifica Artifício imita


e imita. e diversifica.
542 (370) O acaso dá os pensamentos e o acaso os tira. Não existe
arte para conservar nem para adquirir.
Pensamento escapado eu queria escrevê-lo; escrevo no lugar em que
ele me escapou.

543 (938)
Digressão.

Formulações miúdas, isso fica bem.


Acaso me censurais por eu conservar bem os Padres, e os…
Eu os escolhi depois, pois eu não os soubera…)

544 (778)
Omnis judaeae regio, et Jerosolimitae universi et baptisabantur71,
por causa de todas as condições de homens que ali chegavam.
Pedras podem ser filhos de Abraão.

545 (458)
Tudo que está no mundo é concupiscência da carne ou
concupiscência dos olhos ou orgulho da vida. Libido sentiendi, libido
sciendi, libido dominandi72. Infeliz a terra de maldição a que esses três
rios de fogo abrasam mais do que regam. Felizes aqueles que, estando
sobre esses rios, não mergulhados, não arrastados, mas imovelmente
firmes sobre esses rios, não de pé, mas sentados, numa base baixa e
segura, de onde não se levantam antes da luz, mas depois de se terem
repousado em paz, estendem a mão para aquele que deve erguê-los para
fazê-los ficar de pé e firmes nos pórticos da santa Jerusalém onde o
orgulho não mais poderá combatê-los nem abatê-los, e que no entanto
choram, não de ver escoarem-se todas as coisas perecíveis que essas
torrentes arrastam, mas na recordação de sua querida pátria da Jerusalém
celeste, de que se lembram sem cessar na longa duração de seu exílio.
546 (515)
Os eleitos ignorarão as suas virtudes e os réprobos a grandeza de
seus crimes. Senhor, quando te vimos ter fome, sede etc.
547 (784)
Jesus Cristo não quis o testemunho dos demônios nem daqueles que
não tinham vocação, mas de Deus e de João Batista.
548 (779)
Se as pessoas se convertessem, Deus curaria e perdoaria.

Ne convertantur et sanem eos73. Isaías. Et dimittantur eis peccata74.


Marcos, 3.
549 (780)
Jesus Cristo jamais condenou sem ouvir.
A Judas: amice, ad quid venisti75. Igualmente àquele que não estava
usando a roupa nupcial.

550 (744)
Rezai para que não entreis em tentação. É perigoso ser tentado. E
aqueles que o são, é porque não rezam.

Et tu conversus confirma fratres tuos76, mas antes conversus Jesus


respexit Petrum77.
São Pedro pede permissão para ferir Malco. E o fere antes de ouvir a
resposta. E Jesus responde depois.
A palavra Galileu que a multidão pronunciou como por acaso ao
acusar Jesus Cristo diante de Pilatos dá motivo a Pilatos para enviar
Jesus Cristo a Herodes. No que se cumpriu o mistério de que ele devia
ser julgado pelos judeus e pelos gentios. O acaso aparente foi a causa do
cumprimento do mistério.
551 (84)
A imaginação aumenta os pequenos objetos até que com eles encha a
nossa alma por uma estimativa fantástica, e por uma insolência temerária
ela diminui as grandes até à sua medida, como ao falar de Deus.
552 (107)
Lustravit lampade terras78. O tempo e o meu humor têm pouca
ligação. Tenho as minhas névoas e o meu bom tempo dentro de mim; o
bem e o mal de minhas ocupações interferem pouco nisso. Às vezes
esforço-me por mim mesmo contra a fortuna. A glória de a domar me
faz domá-la alegremente, ao passo que às vezes me faço de desgostoso
na boa fortuna.

553 (76)
Escrever contra aqueles que aprofundam demais as ciências.
Descartes.

554 (303)
A força é a rainha do mundo e não a opinião, mas a opinião é aquela
que usa da força.
É a força que faz a opinião. A moleza é bela segundo a nossa
opinião. Por quê? porque quem quiser dançar sobre a corda ficará
sozinho, e farei uma cabala mais forte de pessoas que dirão que isso não
é bonito.

555 (47)
Há quem fale bem e quem não escreva bem. É que o lugar, a
assistência os acalenta e tira de seu espírito mais do que eles aí
encontrariam sem esse calor.
556 (371)
(Quando era pequeno eu fechava o meu livro, e porque me acontecia
às vezes… acreditando tê-lo fechado eu me desafiava.)

557 (45)
As línguas são cifras em que, não as letras são transformadas em
letras, mas as palavras em palavras. De modo que uma língua
desconhecida é decifrável.

558 (114)
A diversidade é tão ampla quanto todos os tons de voz, todos os
andares, tossires, assoares, espirros. Distinguem-se das frutas as uvas e,
entre estas, a moscatel, e depois a Condrieu, e a de Desargues, e a
enxertada. E é só isso? Algum dia se produziriam dois cachos iguais? e
um cacho tem dois grãos iguais? etc.
Nunca julguei uma coisa exatamente da mesma maneira, não posso
julgar uma obra fazendo isso. Preciso fazer como os pintores e afastar-
me dela, mas não demais. Quanto então? Adivinhai…

559 (27)
Miscel. Linguagem.
Aqueles que fazem antíteses forçando as palavras são como aqueles
que fazem janelas falsas pela simetria.
A regra deles não é falar corretamente, mas fazer figuras corretas.

560 (552)
Sepulcro de Jesus Cristo.
Jesus Cristo estava morto mas visto na cruz. Ele está morto e oculto
no sepulcro.
Jesus Cristo só foi sepultado por santos.
Jesus Cristo não fez nenhuns milagres no sepulcro. Apenas santos
nele entram.
É lá que Jesus Cristo toma uma nova vida, não na cruz.
É o último mistério da paixão e da redenção.
(Jesus Cristo ensina vivo, morto, sepultado, ressuscitado.)
Jesus Cristo não teve onde repousar sobre a terra a não ser no
sepulcro.
Seus inimigos só pararam de maltratá-lo no sepulcro.

561 (173)
Eles dizem que os eclipses pressagiam a desgraça porque as
desgraças são comuns, de modo que acontece tão amiúde o mal que
muitas vezes eles adivinham, ao passo que, se eles dissessem que
pressagiam a felicidade, mentiriam com frequência. Eles só atribuem a
felicidade a encontros celestes raros. Assim falham poucas vezes ao
adivinhar.

562 (534)
Só existem duas espécies de homens, uns justos que se julgam
pecadores, outros pecadores que se julgam justos.

563 (886)
Hereges.
Ezeq. Todos os pagãos falavam mal de Israel e o profeta também. E
longe de terem os israelitas o direito de lhe dizer: “tu falas como os
pagãos”, que ele tira a sua maior força de que os pagãos falam como ele.

564 (485)
A verdadeira e única virtude está, pois, em odiar a si mesmo, pois se
é odiável pela concupiscência, e em buscar um ser verdadeiramente
amável para amar. Mas como não podemos amar o que está fora de nós,
é preciso amar um ser que esteja em nós, e que não seja nós. E isso é
verdade de cada um dos homens. Ora, só há o ser universal que seja tal.
O reino de Deus está em nós. O bem universal está em nós, é nós
mesmos e não é nós.

565 (591)
566 (575)
Tudo se transforma em bem para os eleitos.
Até as obscuridades das Escrituras, pois eles as honram por causa
das clarezas divinas, e tudo se transforma em mal para os outros, até as
clarezas, pois eles as blasfemam por causa das obscuridades que não
entendem.

567 (874)
Não se deve julgar o que é o papa por algumas palavras dos Padres
(como diziam os gregos no Concílio. Regras importantes), mas pelas
ações da Igreja, e dos Padres e pelos cânones.
A unidade e a multiplicidade, duo aut tres in unum79, erro em excluir
um dos dois, como fazem os papistas que excluem a multiplicidade, ou
os huguenotes que excluem a unidade.
568 (815)
Não é possível crer razoavelmente contra os milagres.
569 (872)
O papa é primeiro. Que outro é conhecido por todos, que outro é
reconhecido por todos, tendo poder de se insinuar em todo o corpo
porque detém o ramo mestre que se insinua por toda parte.
Como seria fácil fazer isso degenerar em tirania! Eis por que Jesus
Cristo lhes colocou este preceito: Vos autem non sic80.

570 (768)
Jesus Cristo figurado por José.
Inocente, bem amado de seu pai, enviado do pai para ver os irmãos, é
vendido por seus irmãos por 20 denários. E através disso se tornou o
senhor deles, seu salvador e salvador dos estrangeiros, e salvador do
mundo. O que não teria acontecido sem a intenção de pô-lo a perder (e)
a venda e a reprovação que dele fizeram.

Na prisão, José, inocente, entre dois criminosos. Jesus Cristo na cruz


entre dois ladrões. Ele predisse a salvação de um e a morte do outro a
partir das mesmas aparências. Jesus Cristo salva os eleitos e dana os
réprobos a partir dos mesmos crimes. José não faz mais que predizer,
Jesus Cristo faz. José pede àquele que será salvo que se lembre dele
quando tiver chegado em sua glória. E aquele a quem Jesus Cristo salva
lhe pede que se lembre dele quando estiver em seu reino.
571 (775)
Há heresia em explicar sempre, omnes, de todos. E heresia em não
explicar às vezes de todos, bibite ex hoc omnes 81. Os huguenotes
hereges explicando de todos. In quo omnes peccaverunt82. Os
huguenotes hereges excetuando as crianças dos fiéis. É preciso então
seguir os Padres e a tradição para saber quando, pois que há heresia a
temer de parte a parte.

572 (54)
Miscel. Modo de falar.
Eu (…) tinha querido aplicar-me a isso.

573 (646)
A sinagoga não perecia porque era a figura. Mas porque não era mais
que a figura, caiu na servidão.
A figura subsistiu até a verdade a fim de que a Igreja fosse sempre
visível ou na pintura que a prometia ou na realidade.

574 (263)
Um milagre, dizem, daria firmeza à minha crença, dizem quando não
o veem.
As razões que, vistas de longe, parecem limitar a nossa vista, mas
quando já se chegou lá começa-se a ver ainda além. Nada para a
volubilidade de nosso espírito. Não há, dizem, regra que não tenha
alguma exceção, nem verdade tão geral que não tenha alguma face por
onde ela falhe. Basta que ela não seja absolutamente universal para nos
dar motivo para aplicar a exceção ao assunto presente, e dizer, isso não é
sempre verdade, portanto há casos em que não é. Só resta mostrar que
este caso faz parte deles, e é nisso que se é bastante inábil ou muito
infeliz se não se encontra algum ponto de contato.

575 (651)
Extravagâncias dos Apocalípticos e preadamitas, milenaristas etc.
Quem quiser fundamentar opiniões extravagantes sobre as Escrituras
poderá fundamentá-las, por exemplo, sobre isso.
Está dito que esta geração não passará até que tudo se faça. A partir
disso direi que depois desta geração virá outra geração e sempre
sucessivamente.

Fala-se no 2o paralipôm. de Salomão e de rei como se fossem duas


pessoas diversas. Eu direi que eram duas.
576 (567)
As duas razões contrárias. É preciso começar por aí sem o que não se
entende nada e tudo é heresia. E mesmo ao fim de cada verdade é
preciso acrescentar que se está lembrado da verdade oposta.

577 (234)
Se não se devesse fazer nada a não ser pelo certo, não se devia fazer
nada pela religião, pois ela não é certa. Mas quanta coisa se faz pelo
incerto, as viagens por mar, as batalhas. Digo pois que não se deveria
fazer absolutamente nada, pois nada é certo. E que existe mais certeza na
religião do que na possibilidade de vermos o dia de amanhã.
Porque não é certo que vejamos o amanhã, mas é certamente
possível que não o vejamos. Não se pode dizer o mesmo da religião. Não
é certo que ela seja, mas quem ousará dizer que é certamente possível
que ela não seja?
Ora, quando se trabalha pelo amanhã e pelo incerto, age-se com
razão, pois deve-se trabalhar pelo incerto pela regra dos partidos que está
demonstrada.

Santo Agostinho viu que se trabalha pelo incerto no mar, na batalha


etc. – mas não viu a regra dos partidos que demonstra que se deve fazê-
lo. Montaigne viu que as pessoas se ofendem com um espírito coxo e
que o costume tudo pode, mas não viu a razão desse efeito.
Todas essas pessoas viram os efeitos mas não viram as causas. Eles
estão com relação àqueles que descobriram as causas como aqueles que
só têm os olhos em relação àqueles que têm o espírito. Pois os efeitos
são como sensíveis e as causas são visíveis somente ao espírito. E
embora esses efeitos se vejam pelo espírito, esse espírito está com
relação ao espírito que vê as causas como os sentidos corporais estão em
relação ao espírito.

578 (26)
A eloquência é uma pintura do pensamento, e assim aqueles que,
depois de terem pintado acrescentam ainda algo, fazem um quadro e não
um retrato.

579 (53)
Carruagem tombada ou capotada conforme a intenção.

Derramar ou verter conforme a intenção.

Discurso de defesa de M. le M. a respeito do rapaz feito franciscano


à força.
580 (28)
Simetria
naquilo que se vê com uma vista.

fundamentada em que não há razão para se fazer de outro modo.


E fundamentada também na figura do homem.
De onde decorre que só se quer a simetria no sentido da largura, não
no da altura, nem no da profundidade.

581 (12)
Scaramouche que só pensa numa coisa.

O doutor que fala um quarto de hora depois de ter dito tudo, de tanto
que está cheio de vontade de dizer.

582 (669)
Mudar a figura, por causa de nossa fraqueza.

583 (56)
Adivinhar a parte que me toca no vosso desprazer, o Sr. Cardeal não
queria ser adivinhado.
Tenho o espírito cheio de inquietação; eu estou cheio de inquietação
é melhor.
584 (15)
Eloquência que persuade pela doçura, não pelo império; como tirano,
não como rei.

585 (32)
Há um certo modo de agrado e de beleza que consiste em certa
relação entre nossa natureza fraca ou forte tal qual é e a coisa que nos
agrada.
Tudo que é formado a partir desse modelo nos agrada, seja uma casa,
canção, discurso, verso, prosa, mulher, passarinho, rios, árvores, quartos,
roupas etc.

Tudo que não é feito a partir desse modelo desagrada àqueles que
têm bom gosto.
E como há uma relação perfeita entre uma canção e uma casa que
são feitas a partir desse bom modelo, porque se parecem com esse
modelo único, embora cada uma segundo o seu gênero, há igualmente
uma relação perfeita entre as coisas feitas a partir dos maus modelos.
Não que o mau modelo seja único, pois existe uma infinidade deles, mas
cada mau soneto, por exemplo, seja ele feito a partir de qualquer mau
modelo, se parece perfeitamente com uma mulher vestida a partir desse
modelo.

Nada faz entender melhor quando um falso soneto é ridículo quanto


considerar-lhe a natureza e o modelo, e imaginar em seguida uma
mulher ou uma casa feita a partir desse modelo.
586 (33)
Beleza poética.
Como se diz beleza poética, dever-se-ia também dizer beleza
geométrica e beleza medicinal, mas não se diz, e a razão é que se sabe
bem qual é o objeto da geometria, que consiste em prova, e qual é o
objeto da medicina, que consiste na cura; mas não se sabe qual é o
agrado que é o objeto da poesia. Não se sabe o que é esse modelo natural
que é preciso imitar e, à falta desse conhecimento, inventaram-se alguns
termos bizarros: século de ouro, maravilha de nossos dias, fatais etc. E a
esse jargão se chama beleza poética.
Mas quem imaginar uma mulher a partir desse modelo, que consiste
em dizer pequenas coisas com grandes palavras, verá uma bonita
senhorita toda cheia de espelhos e de correntes, da qual ele rirá, porque
se sabe melhor em que consiste o atrativo de uma mulher do que o
atrativo dos versos, mas os que não fossem versados a esse respeito a
admirariam nesses atavios, e existem muitas aldeias onde ela seria
tomada por uma rainha e é por isso que chamamos os sonetos feitos a
partir desse modelo de rainhas de aldeia.
587 (34)
Não se passa, em sociedade, por versado em versos se não se
colocou uma tabuleta de poeta, de matemático etc., mas as pessoas
universais não querem tabuleta e não fazem nenhuma diferença entre o
ofício de poeta e o de bordador.
As pessoas universais não são chamadas nem de poetas, nem de
geômetras etc. Mas são tudo isso e juízes de todos aqueles. Não se
adivinha o que elas são e vão falar do que se falava quando chegaram.
Não se percebe nelas uma qualidade mais do que outra, fora da
necessidade de pô-las em uso, mas então elas serão lembradas. E
pertence também a esse caráter que não se diga delas que falam bem
quando não se está tratando de linguagem e que se diga delas que falam
bem quando o assunto é esse.
É, pois, um falso elogio que se faz a um homem quando se diz dele,
quando entra, que é muito hábil em poesia e é um mau indício quando
não se recorre a um homem quando se trata de julgar alguns versos.

588 (279)
A fé é um dom de Deus. Não creia que digamos que é um dom de
raciocínio. As outras religiões não dizem isso de sua fé. Elas só davam o
raciocínio como meio de acesso, que entretanto não conduz a elas.

589 (704)
O diabo perturbou o zelo dos judeus antes de Jesus Cristo porque
lhes teria sido salutar, mas não depois.

O povo judeu zombado pelos gentios, o povo cristão perseguido.

590 (656)
Adam forma futuri83. Os seis dias para formar um, as seis idades para
formar o outro. Os seis dias que Moisés representa para a formação de
Adão não são mais que a pintura das seis idades para formar Jesus Cristo
e a Igreja. Se Adão não tivesse pecado e Jesus Cristo não tivesse vindo,
não haveria senão uma só aliança, uma só idade dos homens e a criação
teria sido representada como feita em um só tempo.

591 (186)
Ne si terrerentur et non docerentur improba quasi dominatio
videretur84. Ag. ep. 48 ou 49.
4. To. Contra mendacium, ad Consentium.
SÉRIE XXIV

592 (750)
Se os judeus tivessem sido todos convertidos por Jesus Cristo, nós só
teríamos testemunhas suspeitas. E se eles tivessem sido exterminados,
não teríamos testemunha alguma.

593 (760)
Os judeus o recusam, mas não todos; os santos o recebem, e não os
carnais, e isso está longe de ser contra a sua glória, pois é o último traço
que a completa. Como a razão que para isso eles têm, e a única que se
encontra em todos os seus escritos, no Talmud e nos rabinos, não é
senão o fato de Jesus Cristo não ter domado as nações com mão armada.
Gladium tuum potentissime85. Eles só têm isso para dizer? Jesus Cristo
foi morto, dizem eles, sucumbiu e não domou os pagãos pela força. Não
nos entregou os seus despojos. Não dá riquezas, só têm isso para dizer?
É nisso que ele é para mim digno de amor. Eu não quereria ter aquele
que eles figuram para si. É visível que foi apenas o vício que os impediu
de recebê-lo e por essa recusa eles são testemunhas incontestáveis, e
mais ainda, é por isso que cumprem as profecias.
(Pelo fato de esse povo não o ter recebido, deu-se esta maravilha:
As profecias são os únicos milagres subsistentes que se pode fazer,
mas elas estão sujeitas a ser contraditas.)

594 (576)
(Ordem) Conduta geral do mundo para com a Igreja. Deus querendo
cegar e aclarar.
Tendo o acontecimento provado a divindade dessas profecias, deve-
se acreditar no resto, e através disso vemos a ordem do mundo desse
modo.

Uma vez esquecidos os milagres da criação e do dilúvio, Deus


enviou a lei e os milagres de Moisés, os profetas que profetizam coisas
particulares. E para preparar um milagre subsistente ele prepara
profecias e a realização delas. Mas, podendo as profecias ser suspeitas,
ele as quer tornar não suspeitas etc.
595 (450)
Se alguém não se conhece como cheio de soberba, de ambição, de
concupiscência, de fraqueza, de miséria e de injustiça, é muito cego. E
se, conhecendo-o, não deseja ficar livre, que se pode dizer de um
homem?
Que se pode ter então, senão estima por uma religião que conhece
tão bem os defeitos do homem e senão desejo pela verdade de uma
religião que promete remédios tão desejáveis?

596 (202)
(Por aqueles que estão no desprazer por se verem sem fé, vê-se que
Deus não os ilumina; mas os outros, vê-se que há um Deus que os cega.)

597 (455)
O eu é odiável. Vós, Miton86, o encobris, mas nem por isso o
eliminais. Continuais a ser, pois, odiável.
Não, pois agindo como fazemos de modo prestativo para com todos,
não temos mais motivo para nos odiar. Isso seria verdade se só se
odiasse no eu o desprazer que daí nos vem.
Mas se o odeio porque é injusto que ele se faça o centro de tudo, eu o
odiarei sempre.
Numa palavra, o eu tem duas qualidades: é injusto em si por se fazer
o centro de tudo; é incômodo para os outros por querer submetê-los, pois
cada eu é inimigo e quisera ser o tirano de todos os outros. Retirais dele
a incomodidade, mas não a injustiça.
E assim não o tornais amável para aqueles que odeiam a sua
injustiça. Não o tornais amável senão para os injustos que nele não
encontram mais o seu inimigo. E assim continuais a ser injusto e só
podeis agradar aos injustos.

598 (868)
O que nos atrapalha quando comparamos o que aconteceu
antigamente na igreja ao que acontece hoje é que geralmente se olha
Santo Atanásio, Santa Teresa e os outros como coroados de glória e de
anos, considerados antes de nós como deuses. Agora que o tempo
esclareceu as coisas, isso parece assim, mas no tempo em que era
perseguido, esse grande santo era um homem que se chamava Atanásio e
Santa Teresa uma moça. Elias era um homem como nós e sujeito às
mesmas paixões que nós, diz São Pedro87, para livrar os cristãos dessa
falsa ideia, que nos faz rejeitar os exemplos dos santos como
desproporcionais em relação ao nosso estado. Eram santos, dizemos nós,
não eram como nós. Que se passava então? Santo Atanásio era um
homem chamado Atanásio, acusado de vários crimes, condenado em tal
e tal concílio por tal e tal crime. Todos os bispos nisso consentiram, e o
papa finalmente. Que se diz aos que resistem? que perturbam a paz, que
fazem cisma etc.
Quatro espécies de pessoas, zelo sem ciência, ciência sem zelo, nem
ciência nem zelo, e zelo e ciência.
Os três primeiros o condenam, os últimos o absolvem e são
excomungados pela Igreja, e no entanto salvam a Igreja.
Zelo, luz.

599 (908)
Mas seria provável que a probabilidade dá segurança?
Diferença entre repouso e segurança de consciência. Nada dá a
segurança a não ser a verdade; nada dá o repouso a não ser a busca
sincera da verdade.

600 (440)
A corrupção da razão aparece em tantos diferentes e extravagantes
costumes. Foi preciso que a verdade viesse para que o homem não
vivesse mais em si mesmo.

601 (907)
Os casuístas submetem a decisão à razão corrompida e a escolha das
decisões à vontade corrompida, a fim de que tudo que há de corrompido
na natureza do homem participe de sua conduta.

602 (885)
É feito sacerdote quem quiser sê-lo, como sob Jeroboão.
É uma coisa horrível que se nos proponha a disciplina da igreja de
hoje como algo tão bom que se cometa um crime ao querer mudá-la.
Outrora ela era boa infalivelmente e acha-se que se pôde mudá-la sem
pecado. E agora, tal como ela está, não se poderá desejar que seja
mudada.
Foi permitido mudar o costume de não se fazerem sacerdotes senão
com tanta circunspecção que quase não havia quem fosse digno de sê-lo,
e não será permitido queixar-se do costume que faz tantos indignos.
603 (502)
Abraão não pegou nada para si, mas somente para os seus servos.
Assim o justo não toma do mundo nada para si, nem aplausos do mundo,
mas apenas para suas paixões, de que se serve como senhor, dizendo a
uma: Vai e vem, sub te erit appetitus tuus88. Suas paixões assim
dominadas são virtudes; a avareza, o ciúme, a cólera, o próprio Deus as
atribui a si. E são tão virtudes quanto a clemência, a piedade, a
constância que são também paixões. É preciso servir-se delas como de
escravos e, deixando-lhes o seu alimento, impedir que a alma tome dele.
Porque quando as paixões são as donas, são vícios, e então elas dão à
alma o seu alimento, e a alma se nutre dele e se envenena.

604 (871)
Igreja, papa.
Unidade – Multiplicidade. Considerando a igreja como unidade, o
papa, que dela é a cabeça, é como tudo; considerando-a como
multiplicidade o papa não é mais do que uma parte dela. Os Padres
consideraram-na ora de um modo, ora de outro. E assim falaram
diferentemente do papa.
São Cipriano, sacerdos dei89.
Mas ao estabelecer uma dessas duas verdades eles não excluíram a
outra.
A multiplicidade que não se reduz à unidade é confusão. A unidade
que não depende da multiplicidade é tirania.

Quase não há mais nenhum lugar senão a França onde seja permitido
dizer que o concílio está acima do papa.

605 (36)
O homem é cheio de necessidades. Ele só gosta daqueles que podem
preenchê-las todas. É um bom matemático, dir-se-á, mas não tenho nada
a ver com a matemática; ele me tomaria por uma proposição. É um bom
guerreiro: ele me tomaria por uma praça assediada. É preciso, pois, um
homem de bem que possa se moldar a todas as minhas necessidades
genericamente.
606 (155) Um verdadeiro amigo é algo muito vantajoso, mesmo
para os maiores senhores, para que fale bem deles e os defenda em sua
ausência. Ainda que devam fazer tudo para ter um, devem escolher bem,
pois se fizerem todos os esforços por tolos, isso lhes será inútil, por
maior bem que estes digam deles. E nem mesmo falarão bem deles se se
acharem os mais fracos, pois não têm autoridade, e assim falarão mal
deles por influência dos outros.

607 (766)
Fig.
Salvador, pai, sacrificador, hóstia, alimento, rei, sábio, legislador,
aflito, pobre, devendo produzir um povo, que ele devia conduzir e
alimentar, e introduzir em sua terra.
608 (766) Jesus Cristo ofícios.
Ele devia, sozinho, produzir um grande povo, eleito, santo e
escolhido, conduzi-lo, alimentá-lo, introduzi-lo no lugar de repouso e de
santidade, torná-lo santo para Deus, formar dele o templo de Deus,
reconciliá-lo com Deus, salvá-lo da cólera de Deus, libertá-lo da
servidão do pecado que reina visivelmente no homem, dar leis a esse
povo, gravar essas leis em seus corações, oferecer-se a Deus por eles,
sacrificar-se por eles, ser uma hóstia sem mácula, e ele próprio
sacrificador, devendo ele próprio oferecer o seu corpo e o seu sangue. E
no entanto oferecer pão e vinho a Deus.

Ingrediens mundum90.

Pedra sobre pedra.


O que precedeu, o que seguiu, todos os judeus subsistentes e
erradios.
609 (736)
Profecias. Transfixerunt91. Zac. 12. 10.
Que devia chegar um Libertador que esmagasse a cabeça do
demônio, que devia libertar o seu povo dos pecados, ex omnibus
iniquitatibus92. Que devia haver um novo Testamento que seria eterno,
que devia haver outro sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec, que
esta seria eterna, que o Cristo devia ser glorioso, poderoso, forte e no
entanto tão miserável, que ele não seria reconhecido, que não seria
tomado pelo que é, que seria enjeitado, que o matariam, que o seu povo,
que o teria renegado, não seria mais o seu povo, que os idólatras o
receberiam e recorreriam a ele, que ele abandonaria Sião para reinar no
centro da idolatria, que entretanto os judeus subsistirão sempre, que ele
devia ser de Judá e que não haveria mais rei.

610 (30)
(Vejam-se os discursos 2, 4 e 5 do jansenista. Isso é elevado e sério)

(Odeio o bufão e o convencido.) Não se faria um amigo nem de um


nem de outro.

Só se consulta o ouvido porque falta coração.


611 (30)
Sua regra é a honestidade.

Poeta e não homem de bem.


610 (30)
(Depois de minha 8 achava que já tivesse respondido o bastante.)
611 (30)
Belezas de omissão, de juízo.

612 (219)
É indubitável que a alma seja mortal ou imortal; isso deve
estabelecer toda uma diferença na moral, e no entanto os filósofos
conduziram a sua moral independentemente disso.
Eles deliberam passar uma hora.
Platão para dispor ao cristianismo.

613 (443)
Grandeza, miséria.
À medida que se tem luz, descobre-se mais grandeza e mais baixeza
no homem.
O comum dos homens.
Os que são mais elevados.
Os filósofos.
Eles causam admiração no comum dos homens.
Os cristãos fazem admirar-se os filósofos.
Quem se admirará então de ver que a religião não faz mais do que
conhecer a fundo aquilo que se conhece tanto mais quanto mais luzes se
tiver?

614 (664)
Figurativo.
Deus se serviu da concupiscência dos judeus para fazê-los servir a
Jesus Cristo (que trazia o remédio para a concupiscência).

615 (663)
Figurativo.
Nada é tão semelhante à caridade quanto a cupidez e nada lhe é tão
contrário. Assim, os judeus cheios de bens que lisonjeiam a sua cupidez
eram muito conformes aos cristãos e muito contrários. E por esse meio
tinham as duas qualidades que deviam ter para serem muito conformes
ao Messias, para figurá-lo, e muito contrários para não serem
testemunhas suspeitas.

616 (660)
A concupiscência tornou-se natural para nós e formou a nossa
segunda natureza. Assim há duas naturezas em nós, uma boa e uma má.
Onde está Deus? onde vós não estais e o reino de Deus está em vós.
Rabinos.

617 (492)
Quem não odeia em si o seu amor-próprio e esse instinto que o leva a
fazer-se Deus está bem cego. Quem não vê que nada é tão oposto à
justiça e à verdade. Pois é falso que mereçamos isso, e é injusto e
impossível aí chegar, visto que todos pedem a mesma coisa. É então
uma injustiça manifesta em que nascemos, de que não podemos nos
desfazer e de que é preciso nos desfazer.
Entretanto, nenhuma religião observou que fosse um pecado, nem
que tivéssemos nascido nele, nem que fôssemos obrigados a resistir a
ele, nem pensou em dar-nos os remédios para isso.

618 (479)
Se existe um Deus, não se deve amar senão a ele e não as criaturas
passageiras. O raciocínio dos ímpios na Sabedoria só está fundamentado
em que não existe Deus. Isso posto, diz ele, gozemos das criaturas. É o
pior que pode acontecer. Mas se houvesse um Deus para amar, ele não
teria concluído assim, mas bem ao contrário. E é a conclusão dos sábios:
existe um Deus, portanto não gozemos das criaturas.

Portanto, tudo que nos incita a nos apegar às criaturas é mau, pois
isso nos impede, ou de servir a Deus, se o conhecemos, ou de buscá-lo,
se o ignoramos. Ora, somos cheios de concupiscência, portanto somos
cheios de mal, portanto devemos odiar a nós mesmos e a tudo aquilo que
nos excita a outro apego que não seja a Deus só.

619 (394)
Todos os seus princípios são verdadeiros, dos pirrônicos, dos
estoicos, dos ateus etc…. mas as suas conclusões são falsas, porque os
princípios opostos são também verdadeiros.

620 (146)
O homem é visivelmente feito para pensar. É toda a sua dignidade e
todo o seu mérito; e todo o seu dever está em pensar direito. Ora, a
ordem do pensamento é começar por si, e por seu autor e fim.
Ora, em que pensa o mundo? nunca nisso, mas em dançar, tocar
alaúde, cantar, fazer versos, passar anel etc… e em combater, fazer-se
rei, sem pensar no que é ser rei e ser homem.

621 (412)
Guerra intestina do homem entre a razão e as paixões.
Se só houvesse a razão, sem paixões.
Se só houvesse as paixões sem razão.
Mas como tem uma coisa e outra, ele não pode ficar sem guerra, não
podendo ter paz com uma sem ter guerra com a outra.
Assim ele está sempre dividido e contrário a si mesmo.

622 (131)
Tédio.
Nada é mais insuportável para o homem do que estar em pleno
repouso, sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem aplicação.
Ele sente então todo o seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua
dependência, sua impotência, seu vazio.
Imediatamente nascerão do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a
tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero.

623 (495)
Se é uma cegueira sobrenatural viver sem buscar o que se é, é uma
cegueira terrível viver mal acreditando em Deus.

624 (731)
Profecias.
Que Jesus Cristo estará à direita enquanto Deus subjugar os seus
inimigos.
Portanto, não será ele próprio que irá subjugá-los.

625 (214)
Injustiça.
Que a presunção esteja junto com a necessidade é uma extrema
injustiça.

626 (462)
Busca do verdadeiro bem.
O comum dos homens coloca o bem na fortuna e nos bens do
exterior ou pelo menos no divertimento.
Os filósofos mostraram a vaidade de tudo isso e o colocaram onde
puderam.

627 (150)
A vaidade está tão ancorada no coração dos homens que um soldado,
um criado, um cozinheiro, um carregador se gaba e quer ter admiradores
e mesmo os filósofos querem tê-los, e aqueles que escrevem contra
querem ter a glória de ter escrito bem, e aqueles que os leem querem ter
a glória de os ter lido, e eu que estou escrevendo isto tenho talvez esta
vontade, e talvez os que o lerem…

628 (153)
Do desejo de ser estimado por aqueles com quem se está.
O orgulho nos detém com uma posse tão natural no meio de nossas
misérias, erro etc. Perdemos até a vida com alegria desde que as pessoas
falem disso.

Vaidade, jogo, caça, visitas, comédias, falsa perpetuidade do nome.

629 (417)
Essa duplicidade do homem é tão visível que alguns chegaram a
pensar que tínhamos duas almas.
Um sujeito simples lhes parece, com efeito, incapaz de tais e tão
súbitas variedades, de uma presunção desmedida a um horrível
abatimento de coração.

630 (94)
A natureza do homem é totalmente natureza, omne animal.
Não há nada que a gente não torne natural. Não há natural que não se
possa perder.

631 (422)
É bom ficar lasso e cansado pela inútil busca do verdadeiro bem, a
fim de estender os braços ao Libertador.

632 (198)
A sensibilidade do homem às pequenas coisas e a insensibilidade
(às) grandes coisas, marca de uma estranha inversão.

633 (411)
Apesar da visão de todas as nossas misérias que nos tocam, que nos
apertam a garganta, temos um instinto que não podemos reprimir e que
nos eleva.

634 (97)
A coisa mais importante para toda a vida é a escolha de uma
profissão, o acaso decide sobre isso.
O costume faz os pedreiros, os soldados, os telhadores. É um
excelente telhador, dizem; e falando dos soldados: eles são bem loucos,
dizem alguns; e outros, ao contrário: nada há mais importante do que a
guerra, o restante dos homens são uns patifes. À força de ouvir, na
infância, louvarem essas profissões e desprezarem todas as outras, a
gente escolhe. Porque naturalmente estima-se a virtude e odeia-se a
loucura; essas palavras mesmas decidirão; só se peca na aplicação.
É tão grande a força do costume que, daqueles que a natureza fez
apenas homens, fazem-se todas as condições dos homens.
Porque algumas regiões são feitas só de pedreiros, outras só de
soldados etc. Sem dúvida a natureza não é tão uniforme; é o costume
que fez então isso, pois ele força a natureza, e às vezes a natureza o
sobrepuja e mantém o homem em seu instinto apesar de qualquer
costume bom ou mau.

SÉRIE XXV

635 (13)
Gosta-se de ver o erro, a paixão de Cleobulina93 porque ela não o
conhece: desagradaria se não estivesse enganada.
636 (42)
Príncipe agrada a um rei porque diminui a sua qualidade.

637 (59)
Apagar a tocha da sedição: demasiado luxuriante.
A inquietação de seu gênio: duas palavras ousadas são demais.
638 (109)
Quando a gente se sente bem, admira como se poderia fazer se
estivesse doente. Quando se está doente, toma-se remédio alegremente, a
doença conduz a isso; não se têm mais as paixões e os desejos de
divertimento e de passeios que a saúde proporcionava e que são
incompatíveis com as necessidades da doença. A natureza dá então
paixões e desejos conformes ao estado presente. Não há senão os
temores que nos damos a nós mesmos, e não a natureza, que nos
perturbam porque acrescentam ao estado em que estamos as paixões do
estado em que não estamos.
639 (109 bis)
Como a natureza nos torna sempre infelizes em todos os estados, os
nossos desejos nos figuram um estado feliz porque juntam ao estado em
que estamos os prazeres do estado em que não estamos e, ainda quando
chegássemos a esses prazeres, nem por isso seríamos felizes, porque
teríamos outros desejos conformes a esse novo estado.
É preciso particularizar essa proposição geral.
640 (182)
Aqueles que nos maus negócios têm sempre boa esperança e se
alegram com as aventuras bem-sucedidas, se não se afligem igualmente
com as más, ficam suspeitos de estar satisfeitos com a perda do negócio
e ficam radiantes de encontrar esses pretextos de esperança para mostrar
que estão interessados e encobrir, pela alegria que fingem conceber,
aquela que têm ao ver o negócio perdido.
641 (129)
A nossa natureza está no movimento, o repouso total é a morte.
642 (448)
(Miton) vê bem que a natureza é corrompida e que os homens são
contrários à honestidade, mas não sabe por que eles não podem voar
mais alto.

643 (159)
As belas ações escondidas são as mais estimáveis. Quando vejo
algumas delas na história, como na página 18494, agradam-me muito;
mas afinal elas não foram totalmente ocultas, já que foram sabidas e,
embora se tenha feito o que se pôde para escondê-las, esse pouco por
onde elas transpareceram estraga tudo, pois o mais belo está em se ter
querido escondê-las.
644 (910)
Pode ser outra coisa senão a complacência do mundo que vos faz
achar prováveis as coisas? Não quereis nos fazer acreditar que seja a
verdade e que, se não houvesse a moda do duelo, acharíeis provável que
as pessoas pudessem bater-se encarando a coisa em si mesma.

645 (312)
A justiça é o que está estabelecido; e assim todas as nossas leis
estabelecidas serão necessariamente tidas como justas sem ser
examinadas, visto que estão estabelecidas.

646 (95)
Sentimento. A memória, a alegria são sentimentos e mesmo as
proposições da geometria se tornam sentimentos, pois a razão torna
naturais os sentimentos e os sentimentos naturais se apagam pela razão.

647 (35)
Homem de bem. É preciso que não se possa (dizer) dele nem que é
matemático, nem pregador, nem eloquente, mas que é homem de bem.
Esta qualidade universal é a única que me agrada. Quando, ao ver um
homem, a gente se lembra de seu livro, é mau sinal. Eu gostaria que não
se desse conta de nenhuma qualidade senão pelo encontro e pela
oportunidade de usar dela, ne quid nimis, para não acontecer que uma
qualidade predomine e faça batizar; não se repare que ele fala bem senão
quando se trata de falar bem, mas que então se repare nisso.

648 (833)
Milagres.
O povo conclui por si mesmo, mas é preciso que aponteis a razão.

É lastimável estar na exceção da regra; é preciso mesmo ser severo e


contrário à exceção, mas apesar de tudo, como é certo que há exceções
da regra, é preciso julgar esses casos severamente, mas com justiça.

649 (65)
Montaigne. O que Montaigne tem de bom só pode ser entendido com
dificuldade. O que ele tem de mau, entendo o que está fora dos
costumes, poderia ter sido corrigido num instante se lhe tivessem
avisado de que ele criava histórias demais e que falava excessivamente
de si.

650 (333)
Nunca vistes pessoas que, para se queixar do pouco caso que fazeis
delas, expõem o exemplo de gente de alta condição que as estima? Eu
lhes responderei a esse respeito: mostrai-me o mérito pelo qual
encantastes essas pessoas e eu vos estimarei da mesma maneira.

651 (369)
A memória é necessária para todas as operações da razão.
652 (14) Quando um discurso natural pinta uma paixão ou um
efeito, encontra-se em si mesmo a verdade do que se ouve, a qual não se
sabia estar ali, de modo que se é levado a gostar de quem no-la fez
sentir, pois ele não nos fez ver o seu bem, mas o nosso. E assim esse
bem feito no-lo torna digno de estima, além de que essa comunidade de
inteligência que com ele temos inclina necessariamente o coração a
gostar dele.

653 (913)
Probabilidade.
Qualquer um pode colocar, ninguém pode tirar.
654 (939)
Nunca me acusais de falsidade sobre Escobar95 porque ele é
conhecido.

655 (377)
Os discursos de humildade são matéria de orgulho para as pessoas
gloriosas e de humildade para os humildes. Assim como os do
pirronismo são matéria de afirmação para os afirmativos. Poucos falam
de humildade humildemente, poucos de castidade castamente, poucos do
pirronismo duvidando. Nós não somos senão mentira, duplicidade,
contradição e escondemo-nos, e disfarçamo-nos a nós mesmos.

656 (372)
Ao escrever o meu pensamento, ele me escapa às vezes, mas isso me
faz lembrar da minha fraqueza de que me esqueço a toda hora, o que me
instrui tanto quanto o meu pensamento esquecido, pois só busco
conhecer o meu nada.

657 (452)
Lastimar os infelizes não é contra a concupiscência, ao contrário, a
gente se sente bem em prestar esse testemunho de amizade e em atrair
para si a reputação de afetuoso sem nada ter que dar.
658 (391)
Conversação:
Grandes palavras para a religião: eu a nego. Conversação:
O pirronismo serve à religião.

659 (911)
Acaso é preciso matar para impedir que haja pessoas más?
Isso é fazer dois em vez de um, Vince in bono malum. Santo Ag.

660 (91)
Spongia Solis96.
Quando vemos acontecer sempre a mesma coisa, concluímos que
existe uma necessidade natural, como que amanhã fará dia etc., mas
muitas vezes a natureza nos desmente e não se sujeita às suas próprias
regras.
661 (81) O espírito acredita naturalmente e a vontade ama
naturalmente, de modo que, na falta de objetos verdadeiros, é preciso
que eles se apeguem aos falsos.

662 (521) A graça estará sempre no mundo e também na natureza,


de maneira que ela é de algum modo natural. E assim haverá sempre
pelagianos e sempre católicos, e sempre combate.
Porque o primeiro nascimento faz uns e a graça do segundo
nascimento faz os outros.
663 (121) A natureza recomeça sempre as mesmas coisas, os anos,
os dias, as horas, os espaços igualmente. E os números estão ponta a
ponta, na sequência um do outro; assim se faz uma espécie de infinito e
de eterno. Não que haja nada de tudo isso que seja infinito ou eterno,
mas esses seres terminados se multiplicam infinitamente. Assim não há,
parece-me, senão o número, que os multiplica, que seja infinito.

664 (94 bis)


O homem é propriamente omne animal97.

665 (311)
O império fundado na opinião e na imaginação reina algum tempo e
esse império é suave e voluntário. O da força reina sempre. Assim, a
opinião é como a rainha do mundo, mas a força é o seu tirano.

666 (932)
Será bem condenado quem o for por Escobar.
667 (25) Eloquência.
É preciso que haja o agradável e o real, mas é preciso que esse
agradável seja (também real ) ele próprio tomado do verdadeiro.
668 (457) Cada um é um tudo para si mesmo, pois uma vez ele
morto, tudo está morto para ele. E daí decorre que cada um acredita ser
tudo para todos. Não se deve julgar da natureza segundo nós, mas
segundo ela.

669 (188)
É necessário que em todo diálogo e discurso se possa dizer àqueles
que se ofendem com eles: de que vos queixais?

670 (46)
Contador de pilhérias, mau caráter.

671 (44)
Quereis que se pense bem de vós, não o digais.

672 (124)
Não apenas olhamos as coisas por outros lados, mas com outros
olhos; não temos nenhuma intenção de as achar iguais.

673 (123)
Ele não ama mais aquela pessoa que amava há dez anos. É de crer:
ela não é mais a mesma nem ele tampouco. Ele era jovem e ela também;
ela está toda outra. Ele talvez ainda a amasse se ela fosse tal como era
então.

674 (359)
Não nos mantemos na virtude por nossa própria força, mas pelo
contrapeso de dois vícios opostos, como ficamos em pé entre dois ventos
contrários. Retirai um desses vícios, caímos no outro.

675 (29)
Estilo. Quando se vê o estilo natural, fica-se todo espantado e
arrebatado, pois se esperava ver um autor e se encontra um homem. Ao
passo que aqueles que têm bom gosto e que, ao ver um livro, acreditam
encontrar um homem, ficam surpresos de encontrar um autor. Plus
poetice quam humane locutus es98.
Muito honram a natureza aqueles que lhe ensinam que ela pode falar
de tudo, e até de teologia.

676 (937)
O mundo deve ser bem cego se acredita em vós.

677 (873)
O papa odeia e teme os sábios que não lhe estão submissos por voto.

678 (358)
O homem não é nem anjo nem animal, e a infelicidade quer que
quem quer se mostrar anjo se mostre animal.

679 (894)
Prov. Aqueles que amam a Igreja se queixam de ver corromperem-se
os costumes, mas ao menos as leis subsistem. Mas estes corrompem as
leis: o modelo está arruinado.

680 (63)
Montaigne.
Os defeitos de Montaigne são grandes. Palavras lascivas. Isso não
vale nada apesar da Senhorita de Gournay99. Crédulo: gente sem olhos.
Ignorante: quadratura do círculo, mundo maior. Seus sentimentos sobre
o homicídio voluntário, sobre a morte. Ele inspira uma despreocupação
com a salvação, sem temor e sem arrependimento. Não tendo o seu livro
sido feito para conduzir à piedade, ele não estava obrigado a isso, mas
sempre se está obrigado a não desviar dela. Pode-se desculpar os seus
sentimentos algo livres e voluptuosos em alguns encontros da vida –
730. 331 – mas não se pode desculpar os seus sentimentos totalmente
pagãos a respeito da morte. Porque é preciso renunciar a qualquer
piedade se não se quer pelo menos morrer cristãmente. Ora, ele não
pensa senão em morrer covarde e molemente por toda parte em seu
livro.

681 (353)
Não admiro o excesso de uma virtude como a coragem se não vejo
ao mesmo tempo o excesso da virtude oposta: como em Epaminondas
que tinha a extrema coragem e a extrema benignidade, pois de outro
modo não seria elevar-se, seria decair. Não se mostra a própria grandeza
por estar num extremo, mas tocando os dois a uma só vez e preenchendo
todo o espaço entre os dois.
Mas talvez não passe de um movimento súbito da alma de um a
outro desses extremos e ela na verdade talvez nunca esteja senão num
ponto, como o tição ardente. Seja; mas ao menos isso mostra a agilidade
da alma, se não marcar sua extensão.

682 (232)
Movimento infinito.
O movimento infinito, o ponto que preenche tudo, o momento de
repouso. Infinito sem quantidade, indivisível e infinito.

683 (20)
Ordem.
Por que empreenderei eu dividir a minha moral em 4 de preferência a
6? Por que estabelecerei de preferência a virtude em 4, em 2, em 1? Por
que em abstine et sustine100 de preferência a seguir a natureza, ou cuidar
dos negócios particulares sem injustiça como Platão, ou outra coisa?
Mas aí está, direis, tudo encerrado numa palavra: sim, mas isso é
inútil se não se explica. E quando se chega a explicá-lo, logo que se abre
esse preceito que contém todos os outros eles saem fora na primeira
confusão que
quereis evitar. Assim, quando estão todos contidos em um,
estão ali escondidos e inúteis, como num cofre, e não aparecem
nunca senão em sua confusão natural. A natureza
estabeleceu-os todos, sem encerrar um no outro.

684 (21)
Ordem. A natureza colocou todas as suas verdades em si mesma.
Nossa arte as encerra umas nas outras, mas isso não é natural. Cada uma
mantém seu lugar.

685 (401)
Glória.
Os bichos não se admiram. Um cavalo não admira o seu
companheiro. Não que não haja entre eles emulação na corrida, mas é
sem consequência, pois estando no estábulo, o mais pesado e o mais mal
talhado não cede sua aveia ao outro, como os homens querem que se
lhes faça. A virtude deles se satisfaz em si mesma.

686 (368)
Quando se diz que o calor não é mais do que o movimento de alguns
glóbulos e a luz, o conatus recedendi101, que sentimos, isso nos espanta.
O quê! que o prazer não seja mais do que o bailado dos espíritos!
Concebemos a respeito uma ideia tão diferente, e esses sentimentos nos
parecem tão afastados daqueles outros que dizemos serem os mesmos
que aqueles que comparamos a eles. A sensação do fogo, esse calor que
nos afeta de um modo totalmente diferente daquele do tato, a recepção
do som e da luz, tudo isso nos parece misterioso. E no entanto tudo isso
é grosseiro como uma pedrada. É verdade que a pequenez dos espíritos
que entram pelos poros tocam outros nervos, mas são sempre nervos
(tocados).

687 (144)
Eu havia passado muito tempo no estudo das ciências abstratas e a
pouca comunicação que se consegue ter me havia desgostado delas.
Quando comecei o estudo do homem, vi que aquelas ciências abstratas
não são próprias ao homem, e que eu me apartava mais da minha
condição penetrando nelas do que outros ignorando-as. Perdoei aos
outros por saberem tão pouco a respeito, mas acreditei que iria encontrar
pelo menos muitos companheiros no estudo do homem, que é o
verdadeiro estudo que nos é próprio. Estava enganado. Há ainda menos
gente que o estuda do que a geometria. Não é senão por falta de saber
estudar isso que se procura o resto. Mas não é verdade que ainda não é a
ciência que o homem deve ter, e que é melhor para ele ignorar-se para
ser feliz?

688 (323)
O que é o eu?
Um homem que se põe na janela para ver as pessoas que passam; se
passo por ali, posso dizer que ele se pôs na janela para me ver? Não;
porque ele não está pensando em mim particularmente; mas quem ama
alguém por causa de sua beleza, ama mesmo? Não, porque as bexigas,
que matará a beleza sem matar a pessoa, fará com que ele não a ame
mais.
E se me amam pelo meu juízo, por minha memória, amam-me
mesmo? a mim? Não, pois posso perder essas qualidades sem perder-me
a mim mesmo. Onde está então esse eu, se não está no corpo, nem na
alma? e como amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades que
não são o que fazem o eu, pois que são perecíveis? porque alguém
amaria a substância da alma de uma pessoa, abstratamente, e algumas
qualidades nela existentes? Isso não é possível, e seria injusto. Portanto
nunca se ama ninguém, mas somente qualidades.
Não se zombe mais então daqueles que se fazem honrar por cargos e
ofícios, pois não se ama ninguém a não ser por qualidades postiças.

689 (64)
Não é em Montaigne mas em mim que encontro tudo aquilo que nele
vejo.
690 (506)
Que Deus não nos impute nossos pecados, isto é, todas as
consequências e sequelas de nossos pecados, que são espantosas, os
menores erros, se se quiser segui-las sem misericórdia.

691 (432)
O pirronismo é a verdade. Porque depois de tudo, os homens antes
de Jesus Cristo não sabiam onde estavam, nem se eram grandes ou
pequenos. E aqueles que disseram uma ou outra coisa não sabiam nada a
respeito e adivinhavam sem razão e por acaso. E mesmo erravam sempre
excluindo uma ou outra.
Quod ergo ignorantes quaeritis religio annuntiat vobis102.

692 (915)
Montalte.
As opiniões relaxadas agradam tanto aos homens que é estranho que
as deles desagradem. É que ultrapassaram qualquer limite. E, além disso,
há muitas pessoas que veem a verdade e não podem atingi-la, mas há
poucas que não saibam que a pureza da religião é contrária às nossas
corrupções. Ridículo dizer que uma recompensa eterna é oferecida a
costumes escobartinos.

693 (906)
As condições mais fáceis de viver segundo o mundo são as mais
difíceis de viver segundo Deus; e inversamente: nada é tão difícil
segundo o mundo como a vida religiosa; nada mais fácil do que passá-la
segundo Deus. Nada é mais fácil do que estar num cargo importante e
possuir grandes bens segundo o mundo; nada é mais difícil do que, em
tal condição, viver segundo Deus, e sem tomar parte e gosto nela.

694 (61)
Ordem. – Eu bem que teria tomado este discurso da ordem como
segue: para mostrar a vaidade de toda espécie de condições, mostrar a
vaidade das vidas comuns e depois a vaidade das vidas filosóficas,
pirrônicas, estoicas; mas a ordem aí não ficaria preservada. Sei um
pouco o que é e quão pouca gente a entende. Nenhuma ciência humana
pode preservá-la. Santo Tomás não a preservou. A matemática a
preserva, mas ela é inútil em sua profundeza.
695 (445)
O pecado original é loucura diante dos homens, mas ele é dado como
tal. Não deveis recriminar-me pela falta de razão nessa doutrina, pois
que a proponho como sendo sem razão. Mas esta loucura é mais sábia do
que toda a sabedoria dos homens, sapientius est hominibus103. Porque,
sem isso, que se dirá que o homem é? Todo o seu estado depende desse
ponto imperceptível. E como o teria ele percebido pela razão, visto que é
uma coisa contra a razão, e sua razão, longe de descobri-lo por suas vias,
afasta-se dele quando o apresentam a ela?

696 (22)
Não me digam que eu nada disse de novo, a disposição da matéria é
nova. Quando se joga a pela, é com uma mesma bola que um e outro
jogam, mas um deles a coloca melhor.
Sentiria a mesma coisa se me dissessem que utilizei palavras antigas.
E como se os mesmos pensamentos não formassem outro corpo de
discurso mediante uma disposição diferente, tanto quanto as mesmas
palavras formam outros pensamentos mediante a sua diferente
disposição.

697 (383)
Aqueles que estão no desregramento dizem aos que estão na ordem
que são eles que se afastam da natureza e eles acreditam que a estão
seguindo, como aqueles que estão num barco acreditam que aqueles que
estão na margem vão fugindo. A linguagem é igual de todos os lados. É
preciso ter um ponto fixo para julgar a respeito dela. O porto julga os
que estão no barco, mas onde tomaríamos um porto na moral?

698 (119)
Natureza se imita. A natureza se imita. Um grão lançado em boa
terra produz. Um princípio lançado em bom espírito produz.
Os números, que são de natureza tão diferente, imitam o espaço.
Tudo é feito e conduzido por um mesmo mestre.
A raiz, os galhos, os frutos, os princípios, as consequências.
699 (382) Quando tudo se move igualmente, nada aparentemente se
move; como num barco, quando todos vão em direção de determinado
ponto, ninguém parece ir nesse sentido. Aquele que para faz notar que os
outros estão sendo levados, como um ponto fixo.

700 (934)
Generais.
Não lhes basta introduzir em nossos templos tais costumes, templis
inducere mores. Não apenas eles querem ser tolerados na igreja mas,
como se se tivessem tornado os mais fortes, querem expulsar dela os que
não são dos seus…
Mohatra. Admirar-se não é ser teólogo.
Quem teria dito a vossos generais que estava tão próximo um tempo
em que eles dariam esses costumes à igreja universal e chamariam de
guerra a recusa dessas desordens? Et tanta mala pacem104.

701 (9)
Quando se quer corrigir com utilidade e mostrar a outrem que está
enganado, é preciso observar por que lado está encarando a coisa, pois
ela geralmente é verdadeira por aquele lado, e mostrar-lhe que
concordamos com essa verdade, mas desvendar-lhe o lado pelo qual ela
é falsa. Ele se contenta com isso porque vê que não estava enganado e
que apenas faltava ver todos os lados. Ora, ninguém se zanga pelo fato
de não ver tudo, mas não se quer estar enganado, e talvez isso venha de
que o homem naturalmente não pode ver tudo, e de que naturalmente
não pode enganar-se pelo lado por que encara, pois que as percepções
dos sentidos são sempre verdadeiras.

702 (507)
Graça. Os movimentos da graça, a dureza do coração, as
circunstâncias externas.
703 (516)
Glória. Rom. 3. 27. glória excluída. Por que lei? das obras? não, mas
pela fé. Portanto a fé não está em nosso poder como as obras da lei e ela
nos é dada de outra maneira.

704 (954)
Veneza.
Que vantagem tirareis dela, assim como da necessidade que dela têm
os príncipes e do horror que dela têm os povos? Se eles vos tivessem
convocado e para obtê-lo tivessem implorado a assistência dos príncipes
cristãos, poderíeis fazer valer essa (busca). Mas que durante cinquenta
anos os príncipes se tenham empenhado nisso inutilmente e que tenha
sido necessário uma tão insistente necessidade para obtê-la…

705 (180)
Os grandes e os pequenos têm os mesmos acidentes, o mesmo
aborrecimento e a mesma paixão, mas um está no alto da roda e o outro
perto do centro, e assim menos agitado pelos mesmos movimentos.

706 (870)
Atar e desatar. Deus não quis absolver sem a Igreja. Como ela tem
parte na ofensa, ele quer que ela tenha parte no perdão. Ele a associa a
esse poder como os reis (e) os parlamentos; mas se ela absolve ou se ela
ata sem Deus, já não é mais a Igreja: como no parlamento; porque ainda
que o rei tenha dado graça a um homem, ainda é preciso que ela seja
ratificada; mas se o parlamento ratifica sem o rei ou se ele recusa
ratificar uma ordem do rei, já não é mais o parlamento do rei, mas um
corpo revoltado.

707 (898)
Eles não podem ter a perpetuidade e buscam a universalidade, e por
isso fazem com que toda a Igreja fique corrompida a fim de que eles
sejam santos.

708 (877)
Papas. Os reis dispõem de seu império, mas os papas não podem
dispor do seu.

709 (175)
Nós conhecemos tão pouco a nós mesmos que muitos pensam que
vão morrer quando estão bem de saúde e muitos pensam que estão bem
de saúde quando estão próximos de morrer, não sentindo a febre
próxima ou o abscesso prestes a se formar.

710 (24)
Linguagem.
Não se deve desviar o espírito para outras coisas senão para
descansá-lo, mas no tempo apropriado; descansá-lo quando é preciso e
não fazer diferentemente. Porque quem descansa fora de propósito
cansa, e quem cansa fora de propósito descansa, pois abandona-se tudo
isso; tanto a malícia da concupiscência se compraz em fazer tudo ao
contrário daquilo que se quer obter de nós, sem nos dar o prazer, que é a
moeda pela qual damos tudo que se quer.

711 (301)
Força. Por que se segue a pluralidade? Será porque eles têm mais
razão? Não, mais força.
Por que se seguem as antigas leis e as antigas opiniões? será que elas
são mais sadias? Não, mas são únicas e nos retiram a raiz da diversidade.

712 (530)
Uma pessoa me dizia um dia que tinha uma grande alegria e
confiança ao sair da confissão. Outra me dizia que continuava com
temor. Eu achava sobre isso que dos dois se faria um bom, e que cada
um falhava em não ter o sentimento do outro. Isso muitas vezes acontece
igualmente com relação a outras coisas.

713 (923)
Não é a absolvição apenas que redime os pecados no sacramento da
penitência, mas a contrição, que não é verdadeira se não buscar o
sacramento.
Assim, não é a bênção nupcial que impede o pecado na procriação,
mas o desejo de gerar filhos para Deus, que não é verdadeiro senão no
matrimônio.
E como um contrito sem sacramento está mais disposto à absolvição
do que um impenitente com o sacramento, assim as filhas de Lot, por
exemplo, que não tinham senão o desejo dos filhos, estavam mais puras
sem casamento do que os casados sem desejo de filho.

714 (944)
Papa. Há contradição, pois de um lado eles dizem que é preciso
seguir a tradição e não ousariam negar isso, e de outro dirão o que lhes
agradar. Acreditar-se-á sempre no primeiro, pois que igualmente seria
ser-lhes contrário não acreditar assim.

715 (118)
Talento principal que rege todos os outros.

716 (215)
Temer a morte fora do perigo e não no perigo, pois é preciso ser
homem.

717 (17)
Os rios são caminhos que andam e que levam aonde se quer ir.

718 (830)
As profecias eram equívocas: elas não o são mais.

719 (788)
Reservei para mim 7.000. Gosto desses adoradores desconhecidos do
mundo e dos próprios profetas.

720 (912)
Universal.
Moral e linguagem são ciências particulares mas universais.
721 (917)
Probabilidade.
O ardor dos santos em buscar a verdade seria inútil se o provável
fosse seguro.
O temor dos santos que tinham seguido sempre o mais seguro.
Santa Teresa tendo seguido sempre o seu confessor.

722 (922)
Provável.
Que se veja se a busca de Deus é sincera pela comparação das coisas
a que se tem afeição.
É provável que esta carne não vá envenenar-me.
É provável que eu não perca o meu processo por não solicitar.
Provável.
Ainda que fosse verdade que os autores sérios e as razões bastariam,
digo que eles não são nem sérios nem razoáveis.
Quê! um marido pode aproveitar da mulher segundo Molina! A
razão que ele dá é razoável e a contrária de Léssio o é também?

Ousareis assim, vós, ludibriar os editos do rei? assim, dizer que não é
bater-se em duelo ir a um campo e ficar esperando um homem.
Que a Igreja realmente proibiu o duelo, mas não o passeio.
e também a usura, mas não…
E a simonia, mas não…
E a vingança, mas não…
E os sodomitas, mas não…
E o quam primum105, mas não…

723 (69)
2 Infinitos. Meio.
Quando se lê depressa demais ou devagar demais não se entende
nada.

724 (352)
O que pode a virtude de um homem não se deve medir pelos seus
esforços, mas por seu dia-a-dia.

725 (884 bis)


Pecadores sem penitência, justos sem caridade, um Deus sem poder
sobre as vontades dos homens, uma predestinação sem mistério.

726 (876)
Papa. Deus não faz milagres na conduta ordinária de sua Igreja. Seria
um estranho milagre se a infalibilidade estivesse em uma pessoa, mas
estar na multidão parece tão natural, pois a conduta de Deus fica
escondida na natureza, como em todas as suas outras obras.

727 (904)
Eles fazem da exceção a regra. Os antigos deram a absolvição antes
da penitência? Fazei-o como espírito de exceção. Mas da exceção fazeis
uma regra sem exceção, de sorte que não quereis mais nem mesmo que a
regra esteja em exceção.

728 (31)
Todas as falsas belezas que reprovamos em Cícero têm admiradores
e em grande número.
728 (31) Milagres, Santo Tomás, t. III, 1. VIII, cap. 20.

729 (931)
Casuístas.
Uma esmola considerável, uma penitência razoável.
Embora não se possa apontar o justo, vê-se bem o que não o é. Os
casuístas são engraçados achando que podem interpretar isso como
fazem.

Pessoas que se acostumam a falar mal e a pensar mal.

O grande número delas em vez de indicar a sua perfeição indica o


contrário.

A humildade de um só faz o orgulho de vários.


SÉRIE XXVI

730 (754)
CC. homo existens (te deum facis).
Scriptum est dii estis et non (potest solvi scriptura)106.

CC. haec infirmitas non est ad (mortem) sed ad vitam107.

Lazarus dormit, et deinde dixit Lazarusmortuus (est)108.

731 (196)
Essas pessoas não têm coragem.

Não se faria delas amigos.


732 (38)
Poeta e não homem de bem.

733 (862)
A Igreja sempre foi combatida pelos erros contrários. Mas talvez
nunca ao mesmo tempo como agora, e se ela sofre mais por causa da
multiplicidade dos erros, recebe disso a vantagem de eles se destruírem.
Ela se queixa de ambos, mas muito mais dos calvinistas por causa do
cisma.
É certo que vários dos dois contrários estão enganados. É preciso
tirá-los desse engano.
A fé abraça várias verdades que parecem contradizer-se, tempo de rir
e de chorar etc. responde ne respondeas etc.
A fonte disso está na união das duas naturezas em Jesus Cristo.

E também os dois mundos. A criação de um novo céu e de uma nova


terra. Nova vida, nova morte.

Coisas todas dúplices e conservando o mesmo nome.


E afinal os dois homens que estão nos justos. Pois eles são os dois
mundos, e um membro e imagem de Jesus Cristo. E assim todos os
nomes lhes convêm, justos e pecadores, morto vivo, vivo morto, eleito
réprobo etc.

Há, pois, um grande número de verdades, tanto de fé como de moral,


que parecem repugnar umas às outras e que subsistem todas numa ordem
admirável.

A fonte de todas as heresias é a exclusão de algumas dessas


verdades.

E a fonte de todas as objeções que nos fazem os hereges é a


ignorância de algumas de nossas verdades.

E ordinariamente acontece que, não podendo conceber a relação de


duas verdades opostas e acreditando que a aceitação de uma contém a
exclusão da outra, eles se apegam a uma, excluem a outra e pensam que
nós fazemos o contrário. Ora, a exclusão é a causa de sua heresia; e a
ignorância de que mantemos a outra, causa suas objeções.

2. Exemplo. Sobre o tema do Santíssimo Sacramento, acreditamos


que tendo a substância do pão se mudado e transubstanciado na do corpo
de Nosso Senhor, Jesus Cristo aí está realmente presente: eis uma das
verdades. Outra é que esse sacramento é também uma figura do da cruz,
e da glória, e uma comemoração dos dois. Eis aí a fé católica que
compreende essas duas verdades que parecem opostas.
A heresia de hoje, não concebendo que esse sacramento contém
juntamente tanto a presença de Jesus Cristo como a sua figura, e que seja
sacrifício e comemoração do sacrifício, acredita que não se pode admitir
uma dessas verdades sem excluir a outra, por essa razão.
Eles se apegam a esse único ponto de que o sacramento é figurativo,
e nisso não são heréticos. Pensam que excluímos essa verdade. E daí
vem que nos fazem tantas objeções sobre as passagens dos Padres da
Igreja que o dizem. Finalmente eles negam a presença, e nisso são
heréticos.
1. – Exemplo. Jesus Cristo é Deus e homem. Os arianos, não
podendo aliar essas duas coisas que acreditam incompatíveis, dizem que
ele é homem: nisso eles são católicos; mas negam que seja Deus: nisso
eles são hereges. Eles acham que nós negamos a sua humanidade: nisso
eles são ignorantes.

3. Exemplo. As indulgências.

Eis por que o mais curto meio para impedir as heresias está em
instruir de todas as verdades, e o mais seguro meio de refutá-las está em
esclarecê-las todas.
Pois que dirão os hereges?

Para saber se uma opinião é de um Padre da Igreja…

734 (817)
Título.
De onde vem que se acredita em tantos mentirosos que dizem ter
visto milagres e que não se acredita em nenhum daqueles que dizem ter
segredos para tornar o homem imortal e para rejuvenescer?
Tendo considerado que se dá tanta fé a tantos impostores que dizem
ter tantos remédios, a ponto de muitas vezes colocar a vida entre suas
mãos, pareceu-me que a verdadeira causa está em que há alguns
verdadeiros, pois não seria possível que houvesse tantos falsos e que se
desse tanta fé se não houvesse alguns verdadeiros. Se nunca tivesse
havido remédio para nenhum mal e todos os males tivessem sido
incuráveis, é impossível que os homens tivessem imaginado que eles
pudessem dar esses remédios, e ainda mais que tantos outros pudessem
dar fé àqueles que se tivessem gabado de os ter. Da mesma forma, se um
homem se gabasse de impedir que se morresse, ninguém acreditaria nele
porque não há nenhum exemplo disso. Mas como houve uma infinidade
de remédios que se verificaram verdadeiros pelo conhecimento mesmo
dos maiores homens, o crédito dos homens se inclinou para isso e, uma
vez verificado que era possível, concluiu-se que era, pois o povo
raciocina geralmente assim: uma coisa é possível, portanto ela é. Porque
a coisa não podendo ser negada em geral, visto haver efeitos particulares
que são verdadeiros, o povo, que não pode discernir quais dentre esses
efeitos particulares são verdadeiros, acredita em todos. Da mesma forma,
o que faz que se acredite em tantos efeitos falsos da lua é que alguns são
verdadeiros, como o fluxo do mar. O mesmo acontece com as profecias,
com os milagres, com as adivinhações pelos sonhos, com os sortilégios
etc., pois se tudo isso nunca tivesse tido nada de verdadeiro, nunca se
teria acreditado em nada, e assim, em vez de concluir que não há
verdadeiros milagres porque há tantos falsos, deve-se dizer ao contrário
que há com certeza milagres verdadeiros porque há tantos falsos, e que
só há falsos em razão de haver verdadeiros. Deve-se raciocinar da
mesma forma com respeito à religião, pois não seria possível que os
homens tivessem imaginado tantas falsas religiões se não houvesse uma
verdadeira. A objeção a isso é que os selvagens têm uma religião, mas
responde-se a isso que é porque ouviram falar como aparece pelo
dilúvio, pela circuncisão, pela cruz de Santo André etc.

735 (818)
Tendo considerado de onde vem que há tantos falsos milagres, falsas
revelações, sortilégios etc., pareceu-me que a verdadeira causa está em
que há verdadeiros, pois não seria possível que houvesse tantos falsos
milagres se não houvesse verdadeiros, nem tantas falsas religiões se não
houvesse uma verdadeira, pois se nunca tivesse havido nada assim, é
algo impossível que os homens o tivessem imaginado e ainda é mais
impossível que tantos outros tivessem acreditado. Mas como houve
grandíssimas coisas verdadeiras, que assim mereceram crédito por parte
de grandes homens, essa impressão foi causa de que quase toda gente se
tornou capaz de acreditar também nas falsas, e assim, em lugar de
concluir que não há verdadeiros milagres pelo fato de haver tantos
falsos, deve-se dizer, ao contrário, que há verdadeiros milagres visto que
há tantos falsos, e que só há falsos em razão de haver verdadeiros, e que
só há igualmente falsas religiões porque há uma verdadeira. A objeção a
isso é que os selvagens têm uma religião, mas é que ouviram falar da
verdadeira, como aparece pela cruz de Santo André, pelo Dilúvio, pela
circuncisão etc… Isso vem de que, estando o espírito do homem
inclinado para esse lado pela verdade, torna-se suscetível de todas as
falsidades dessa…

736 (96)
Quando se está acostumado a usar más razões para provar efeitos da
natureza, não se quer mais receber as boas quando são descobertas. O
exemplo que disso se deu foi sobre a circulação do sangue para dar conta
do porquê de a veia inchar-se acima da ligadura.
737 (10) Persuadimo-nos melhor em geral pelas razões que nós
mesmos encontramos do que pelas que vieram da mente alheia.
738 (341) A história do lúcio e da rã de Liancourt. Eles o fazem
sempre e nunca diferentemente, nem outra coisa de espírito109.
739 (864) A verdade está tão obscurecida nos tempos atuais e a
mentira tão estabelecida que, a menos que se ame a verdade, não se
consegue conhecê-la.
740 (583) Os (sabidos) são pessoas que conhecem a verdade mas
que não a sustentam senão na medida em que ali se encontra o seu
interesse, mas fora disso eles a abandonam.
741 (340) A máquina de aritmética produz efeitos que se
aproximam mais da inteligência do que tudo aquilo que fazem os
animais; mas ela não faz nada que possa levar a dizer que tenha vontade
como os animais.
742 (108) Embora as pessoas não tenham interesse no que dizem,
não se deve absolutamente concluir daí que não mintam, pois há pessoas
que mentem simplesmente por mentir.
743 (859) Há prazer em estar num barco batido pela tempestade
quando se está seguro de que ele não soçobrará; as perseguições que
perturbam a Igreja são dessa natureza.

744 (18)
Quando não se sabe a verdade de uma coisa, é bom que haja um erro
comum que fixe o espírito dos homens, como por exemplo a lua a que se
atribui a mudança das estações, o progresso das doenças etc., pois a
doença principal do homem é a curiosidade inquieta das coisas que não
pode saber, e não é tão ruim para ele estar no erro quanto nessa
curiosidade inútil.
745 (18 bis) A maneira de escrever de Epicteto, de Montaigne e de
Salomão de Tultie é a mais usual, a que se insinua melhor, a que
permanece mais na memória e a que se faz citar mais, porque é toda
composta de ideias nascidas em conversas comuns da vida, como
quando se fala do erro comum que está no mundo, de que a lua é a causa
de tudo, nunca se deixará de dizer que Salomão de Tultie disse que
quando não se sabe a verdade de uma coisa é bom que haja um erro
comum etc. (que é o pensamento do outro lado).

746 (787)
Sobre o fato de que nem Josefo, nem Tácito, nem os outros
historiadores falaram de Jesus Cristo.
Longe de isso ter peso contra, ao contrário, pesa a favor. Porque é
certo que Jesus Cristo existiu, que a sua religião fez grande celeuma e
que aquelas pessoas não o ignoravam e que assim é visível que só
silenciaram sobre ele de propósito, ou então que falaram dele e que isso
foi suprimido ou mudado.

747 (589)
Sobre o fato de a religião cristã não ser a única.
Longe de ser uma razão que leve a acreditar que ela não é a
verdadeira, ao contrário, é isso que mostra que ela o é.

748 (239)
Obj. Aqueles que esperam a sua salvação estão felizes com isso, mas
têm como contrapeso o temor do inferno. Resp. Quem tem mais motivo
de temer o inferno, aquele que está na ignorância de que existe inferno, e
na certeza da condenação se houver; ou aquele que está em certa
persuasão de que há inferno e na esperança de ser salvo se ele existe?

749 (456)
Que desregramento de juízo pelo qual não há ninguém que não se
ponha acima do resto do mundo e que não estime mais o seu próprio
bem e a duração de sua felicidade e de sua vida do que a do resto do
mundo.
750 (176)
Cromwell ia devastar toda a cristandade; a família real estava
perdida, e a dele para sempre poderosa, se não fosse um grãozinho de
areia que se colocou em sua uretra. Até Roma iria tremer sob ele. Mas
aquela pedrinha se meteu ali, ele morreu, sua família foi rebaixada, tudo
em paz, e o rei foi restabelecido.
751 (3)
Aqueles que estão acostumados a julgar pelo sentimento não
compreendem nada das coisas de raciocínio. Porque querem primeiro
penetrar de um relance e não estão acostumados a buscar os princípios, e
outros, ao contrário, que estão acostumados a raciocinar por princípios,
não compreendem nada das coisas de sentimento, buscando princípios e
não podendo ver de um relance.
752 (866)
Dois tipos de pessoas igualam as coisas, como as festas aos dias
úteis, os cristãos aos padres; todos os pecados entre eles etc. E daí alguns
concluem que aquilo que é mau para os padres o é também para os
cristãos, e outros que aquilo que não é mau para os cristãos é permitido
aos padres.

753 (179)
Quando Augusto soube que entre as crianças que Herodes mandara
matar, abaixo da idade de dois anos, estava o seu próprio filho, disse que
era melhor ser o porco de Herodes do que seu filho. Macróbio, livro II,
Sat., cap. IV.

754 (501)
1o Grau, ser censurado ao fazer o mal ou louvado ao fazer o bem.
2o Grau, não ser nem louvado nem censurado.

755 (258)
Unusquisque sibi deum fingit110.

A repulsa.

756 (365)
Pensamento.
Toda a dignidade do homem está no pensamento, mas que é o
pensamento? como é tolo?
O pensamento é, pois, uma coisa admirável e incomparável por
natureza. Seria preciso que tivesse estranhos defeitos para ser
desprezível, mas os tem tais que nada é mais ridículo. Porque é grande
por sua natureza e é baixo por seus defeitos.
757 (212) O escoar-se.
É uma coisa horrível ver escoar-se tudo que se possui.

758 (857)
Clareza. Obscuridade.
Haveria demasiada obscuridade se a verdade não tivesse marcas
visíveis. É uma marca admirável estar sempre numa Igreja e assembleia
visível. Haveria demasiada claridade se não houvesse senão um
sentimento nessa Igreja. Aquele que sempre houve é o verdadeiro, pois o
verdadeiro sempre esteve nela, e nenhum falso nunca nela esteve
sempre.

759 (346)
Pensamento faz a grandeza do homem.

760 (568)
Ob. Visivelmente as Escrituras (estão) cheias de coisas não ditadas
pelo Espírito Santo.
R. Elas então não prejudicam a fé.
Ob. Mas a Igreja decidiu que tudo é do Espírito Santo.
R. Respondo duas coisas: 1. que a Igreja nunca decidiu isso; a outra,
que caso ela o tivesse decidido, isso se poderia sustentar.
761 (568 bis)
Há muitos espíritos falsos.
762 (568 bis)
Dionísio111 tem a caridade, ele estava no lugar.
763 (633)
As profecias citadas no Evangelho, acreditais que elas são relatadas
para vos fazer acreditar? não, é para vos afastar de acreditar.

764 (11)
Todas as grandes diversões são perigosas para a vida cristã; mas
entre todas aquelas que o mundo inventou, não há nenhuma que deva ser
mais temida do que a comédia. É uma representação tão natural e tão
delicada das paixões, que as comove e as faz nascer em nosso coração, e
sobretudo a do amor; principalmente quando o representa muito casto e
muito honesto. Porque quanto mais inocente ele se mostra às almas
inocentes, mais elas são passíveis de ser seduzidas; a sua violência
agrada ao nosso amor-próprio, que forma logo o desejo de provocar os
mesmos efeitos, que se veem tão bem representados; e ao mesmo tempo
cria-se uma consciência fundamentada na honestidade dos sentimentos
que ali estão sendo vistos, que retira o temor das almas puras, que
imaginam que não é ferir a pureza amar com um amor que lhes parece
tão cordato.
Assim, volta-se da comédia com o coração tão cheio de todas as
belezas e de todas as doçuras do amor e tanto a alma como o espírito
ficam tão persuadidos de sua inocência, que se está preparado para
receber as suas primeiras impressões, ou melhor, para procurar a
oportunidade de fazê-las nascer no coração de alguém, para receber os
mesmos prazeres e os mesmos sacrifícios que foram vistos tão bem
pintados na comédia.

765 (39)
Se o raio caísse sobre os lugares baixos etc., os poetas e aqueles que
não sabem raciocinar senão sobre as coisas dessa natureza ficariam
faltos de provas.
766 (8)
Há muitas pessoas que ouvem o sermão como ouvem as vésperas.

767 (306)
Como os ducados, os reinados e as magistraturas são reais e
necessários (pelo fato de que a força tudo rege), eles existem sempre e
por toda parte, mas porque é apenas a fantasia que faz com que fulano
ou sicrano o seja, isso não é constante, está sujeito a variar etc.
768 (345)
A razão manda em nós muito mais imperativamente do que um
senhor, pois, desobedecendo a um fica-se infeliz, e desobedecendo à
outra mostra-se que é tolo.

769 (903)
(State super vias et interrogate de semitis antiquis et ambulate in eis
et dixerunt non ambulabimus, sed post cogitationes nostras ibimus112.
Eles disseram aos povos: vinde conosco, sigamos as opiniões dos novos
autores; a razão natural será nosso guia; seremos como os outros povos
que seguem cada um a sua luz natural. Os filósofos têm…)113

Todas as religiões e seitas do mundo tiveram a razão natural por


guia; só os cristãos foram constrangidos a tomar as suas regras fora de si
mesmos e a se informar sobre aquelas que Jesus Cristo deixou aos
antigos para nós e retransmitidas aos fiéis. Essa injunção cansa esses
bons padres. Eles querem ter, como os outros povos, a liberdade de
seguir as suas imaginações. Em vão lhes bradamos como os profetas
diziam outrora aos judeus: ide ao meio da igreja, informai-vos das vias
que os antigos lhe deixaram e segui esses sendeiros. Eles responderam
como os judeus: não caminharemos por eles, mas seguiremos os
pensamentos de nosso coração. E disseram: seremos como os outros
povos.

SÉRIE XXVII
770 (103)
O exemplo da castidade de Alexandre não fez tantas pessoas
continentes como o de sua embriaguez fez intemperantes. Não é
vergonhoso não ser tão virtuoso quanto ele, e parece desculpável não ser
mais vicioso do que ele. Quando alguém se mira nos vícios desses
grandes homens, acredita não estar inteiramente nos vícios do comum
dos homens. E no entanto não se nota que nisso eles pertencem ao
comum dos homens. As pessoas ligam-se a eles pela extremidade pela
qual eles se ligam ao povo. Pois por mais elevados que estejam, estão
unidos aos menores dos homens por algum ponto. Não estão suspensos
no ar completamente abstraídos da nossa sociedade. Não, se são maiores
do que nós, é porque têm a cabeça mais elevada, mas têm os pés tão
baixos quanto os nossos. Estão todos no mesmo nível e se apóiam na
mesma terra, e por essa extremidade são tão rebaixados quanto nós,
quanto os menores, quanto as crianças, quanto os animais.

771 (355)
A eloquência contínua aborrece.
Os príncipes e os reis jogam algumas vezes. Não ficam o tempo todo
no trono. Aborrecem-se nele. A grandeza tem necessidade de ser deixada
para ser sentida. A continuidade desgosta em tudo. O frio é agradável
para as pessoas se aquecerem.
A natureza age por progresso. Itus et reditus, ela passa e volta,
depois vai mais longe, depois duas vezes menos, depois mais que nunca
etc. AAA.
O fluxo do mar se dá assim AAAAAAA114, o sol parece andar assim.
772 (58)
Procedestes de modo inconveniente – “Peço-vos desculpas, por
favor”; sem essas desculpas eu não teria percebido que houvera injúria.
“Reverência falar…” Nada há de pior que as desculpas.

773 (135)
Nada nos agrada mais que o combate, mas não a vitória.
Gosta-se de ver o combate dos animais, não o vencedor tripudiando
sobre o vencido. Que não se queria ver senão o fim da vitória e logo que
chega fica-se embriagado. Assim também no jogo, assim na busca da
verdade. Gosta-se de ver, na disputa, o combate das opiniões, mas de
contemplar a verdade encontrada, não. Para fazê-la contemplar com
prazer é preciso mostrá-la nascendo da disputa. Assim também nas
paixões, existe prazer em ver duas contrárias se chocar, mas quando uma
domina a outra é só brutalidade.
Não buscamos nunca as coisas, mas a busca das coisas. Assim, nas
comédias, as cenas alegres, sem temor, não valem nada, nem as
extremas misérias sem esperança, nem os amores brutais, nem as
severidades ásperas.

774 (497)
Contra aqueles que, baseados na confiança da misericórdia de Deus,
permanecem na indolência, sem praticar boas obras.
Como as duas fontes de nossos pecados são o orgulho e a preguiça,
Deus nos desvendou duas qualidades nele para nos curar: sua
misericórdia e sua justiça. É próprio da justiça abater o orgulho, por
mais santas que sejam as obras, e non intres in judicium115 etc., e é
próprio da misericórdia combater a preguiça convidando para as boas
obras, conforme esta passagem: “A misericórdia de Deus convida à
penitência”, e esta outra dos Ninivitas: “Façamos penitência para ver se
porventura ele terá piedade de nós.” E assim a misericórdia de maneira
alguma autoriza o relaxamento, pois é, ao contrário, a qualidade que o
combate formalmente. De maneira que, em lugar de dizer: se não
houvesse em Deus misericórdia, seria preciso fazer toda espécie de
esforços para a virtude, deve-se dizer, ao contrário, que é porque há em
Deus misericórdia que é preciso fazer toda sorte de esforços.

775 (899)
Contra aqueles que abusam das passagens das Escrituras e que se
prevalecem de encontrarem alguma que parece favorecer o seu erro. –
O capítulo das Vésperas, o domingo da Paixão, a oração pelo rei.
Explicação destas palavras: “Quem não está comigo está contra
mim.” E destas outras: “Quem não está contra vós está convosco.” A
uma pessoa que diz: “Não sou nem a favor nem contra”, deve-se
responder…

776 (858)
A história da Igreja deve ser propriamente chamada de história da
verdade.

777 (847)
Uma das antífonas das vésperas de Natal: Exortum est in tenebris
lumen rectis corde116.

778 (68)
Não se ensina os homens a ser pessoas de bem, e pode-se ensinar-
lhes todo o resto. E eles nunca se põem tanto em brios por saberem do
resto como por serem homens de bem. Eles só se põem em brios por
saber a única coisa que não aprendem.
779 (88)
As crianças que se espantam com a cara que pintaram. São crianças;
mas quem diz que o que é tão fraco em criança seja muito forte quando
se tem mais idade? Só se faz mudar de fantasia. Tudo que se aperfeiçoa
progressivamente definha também progressivamente. Tudo que foi fraco
jamais poderá ser totalmente forte. Por mais que se diga: ele cresceu, ele
mudou, ele é também o mesmo.
780 (62)
Prefácio da primeira parte.
Falar daqueles que trataram do conhecimento de si mesmos, das
divisões de Charron117, que entristecem e aborrecem. Da confusão de
Montaigne em que se sente bem a falta de um método correto. Que ele o
evitava saltando de assunto em assunto, que buscava o bom-tom.
O tolo projeto que tem de se descrever, e isso não indo além de suas
máximas e contra elas, como acontece a toda gente de falhar, mas por
suas próprias máximas e por uma intenção primeira e principal. Porque
dizer tolices por acaso e por fraqueza é um mal comum, mas dizê-las
intencionalmente é que não é suportável, e dizer tão grandes como
essas…
781 (242)
Prefácio da segunda parte.
Falar daqueles que trataram dessa matéria.
Admiro com que ousadia essas pessoas tomam a iniciativa de falar
de Deus.
Ao dirigir os seus discursos aos ímpios, o seu primeiro capítulo trata
de provar a divindade pelas obras da natureza. Eu não me espantaria de
sua iniciativa se dirigissem os seus discursos aos fiéis, pois é certo que
aqueles que têm a fé viva dentro do coração veem incontinenti que tudo
aquilo que é não é outra coisa senão obra do Deus que adoram, mas para
aqueles em quem essa luz está apagada e para os quais se tem a intenção
de fazê-la reviver, esses indivíduos destituídos de fé e de graça que,
buscando com toda a sua luz tudo aquilo que veem na natureza que os
pode levar a esse conhecimento, só encontram obscuridade e trevas;
dizer a eles que lhes basta ver a mínima das coisas que os cercam para
nelas verem a Deus de modo patente e dar-lhes como única prova desse
grande e importante assunto o curso da Lua e dos planetas, e pretender
ter terminado a prova com tal discurso, isso é dar-lhes a ocasião de
pensar que as provas da nossa religião são bem fracas, e vejo por razão e
por experiência que nada é mais apropriado para fazer nascer neles o
desprezo por ela. Não é desse modo que falam as Escrituras, que
conhecem melhor as coisas que são de Deus. Dizem, ao contrário, que
Deus é um Deus escondido e que desde a corrupção da natureza ele
deixou os homens numa cegueira da qual não podem sair senão por
Jesus Cristo, fora de quem toda comunicação com Deus é retirada. Nemo
novit patrem nisi filius et cui filius voluit revelare118.
É o que as Escrituras indicam quando dizem em tantas passagens que
aqueles que procuram a Deus o encontram. Não é dessa luz que se fala
como a luz em pleno meio-dia. Não se diz que quem procura a luz em
pleno meiodia ou água no mar encontrarão, e então é necessário por
certo que a evidência de Deus não seja assim na natureza. Também elas
nos dizem noutra parte: vere tu es deus absconditus119.

782 (266)
Quantos seres as lunetas não nos descobriram, seres que não existiam
para os filósofos de antigamente! Atacavam-se francamente as Sagradas
Escrituras a respeito do grande número de estrelas dizendo: só existem
1.022, nós o sabemos120.
Existem plantas sobre a terra, nós as vemos; da Lua, elas não
poderiam ser vistas. E nessas plantas, pelos; e nesses pelos,
animaizinhos; mas além disso, mais nada. Que presunçosos!
Os mistos são compostos de elementos; mas os elementos, não. Ó
presunçosos, eis aí um ponto delicado.
Não se deve dizer que existe aquilo que não se vê. É preciso dizer
como os outros, mas não pensar como eles.

783 (357)
Quando se quer perseguir as virtudes até os pontos extremos de parte
a parte, apresentam-se vícios que entre elas se insinuam insensivelmente
em seus caminhos insensíveis do lado do pequeno infinito e apresentam-
se vícios em multidão do lado do grande infinito, de maneira que se fica
perdido nesses vícios e não se veem mais as virtudes. – Cai-se na
armadilha da própria perfeição.

784 (23)
As palavras ordenadas de maneira diversa fazem um sentido diverso.
E os sentidos diversamente ordenados fazem diferentes efeitos.

785 (776)
Ne timeas pusillus grex; Timore et tremore121.
Quid ergo, ne timeas, modo timeas.
Não temais, desde que temeis; mas se não temeis, temei.

Qui me recipit, non me recipit sed eum qui me misit.


Nemo scit neque filius122.
786 (865)
Se jamais houve um tempo em que se deva fazer profissão dos dois
contrários é quando se recrimina de estar omitindo um; portanto os
jesuítas e os jansenistas estão ambos errados ao silenciá-los; mas os
jansenistas mais, pois os jesuítas fizeram melhor profissão dos dois.
787 (943)
Sr. de Condren. Não há, diz ele, comparação entre a união dos santos
e a da Santíssima Trindade. Jesus Cristo diz o contrário.
788 (486)
A dignidade do homem consistia em sua inocência para usar e
dominar sobre as criaturas, mas hoje consiste em se apartar delas e a elas
submeter-se.
789 (50)
Os sentidos.
Um mesmo sentido muda segundo as palavras que o exprimem. Os
sentidos recebem das palavras a sua dignidade em lugar de a darem a
elas. É preciso procurar exemplos disso.
790 (627)
Creio que Josué foi o primeiro do povo de Deus a ter esse nome.
Como Jesus Cristo foi o último do povo de Deus.
785 (776)
Nubes lucida obumbravit123.

São João devia converter os corações dos pais aos filhos124, e Jesus
Cristo colocar a divisão125; sem contradição.
791 (777)
Os efeitos in communi e in particulari.
Os semipelagianos erram ao dizer in communi o que só é verdade in
particulari, e os calvinistas, ao dizer in particulari126 o que só é verdade
in communi, parece-me.

SÉRIE XXVIII
792 (101)
Afirmo que se todos os homens soubessem o que dizem uns dos
outros não haveria quatro amigos no mundo. Isso aparece pelas brigas
que são provocadas por relatos indiscretos que se fazem às vezes.
793 (737)
Daí eu recuso todas as outras religiões.

Por isso encontro resposta para todas as objeções.

É justo que um Deus tão puro não se revele senão àqueles que têm o
coração purificado.

Por isso essa religião me é digna de ser amada e acho-a já bastante


autorizada por uma moral tão divina, mas nela encontro ainda mais.
Encontro como algo efetivo, que desde que dura a memória dos
homens, eis um povo que subsiste, mais antigo do que qualquer outro
povo.
Continuamente é anunciado aos homens que eles estão numa
corrupção universal, mas que virá um Redentor.
Que quem o diz não é um homem, mas uma infinidade de homens, e
um povo inteiro, profetizando o fato expresso durante 4.000 anos; os
livros dispersados durante 400 anos.
Quanto mais os examino, mais verdade aí encontro. Um povo inteiro
o predisse antes da sua vinda, um povo inteiro o adora após a sua vinda;
e o que precedeu como o que seguiu. E aquela sinagoga que o precedeu
(e aqueles numerosos judeus) miseráveis e sem profetas, que o seguem e
que, sendo todos inimigos, são admiráveis testemunhas para nós da
verdade dessas profecias em que a sua miséria e a sua cegueira são
preditas. Enfim, eles sem ídolos e sem rei.
As trevas dos judeus horrendas e preditas. Eris palpans in
meridie127. Dabitur liber scienti litteras et dicet non possum legere128.
O cetro estando ainda nas mãos do primeiro usurpador estrangeiro.
A celeuma da vinda de Jesus Cristo.
Admiro a primeira e augusta religião, toda divina em sua autoridade,
na sua duração, na sua perpetuidade, na sua moral, na sua conduta, na
sua doutrina, nos seus efeitos e
Assim, estendo os braços para o meu Libertador que, tendo sido
predito durante 4.000 anos, veio sofrer e morrer por mim na terra, nos
tempos e em todas as circunstâncias que tinham sido preditas, e por sua
graça espero a morte em paz na esperança de ficar a ele eternamente
unido e vivo sempre na alegria, seja na posse dos bens que lhe apraz
conceder-me, seja nos males que ele me envia para o meu bem e que por
seu exemplo me ensinou a suportar.

794 (393)
É uma coisa engraçada de se considerar que haja pessoas no mundo
que, tendo renunciado a todas as leis de Deus e da natureza, fizeram para
si mesmos outras às quais obedecem estritamente, como, por exemplo,
os soldados de Maomé etc., os ladrões, os hereges etc., e também os
lógicos.
Parece-me que a licença que tomam deva ser sem nenhum limite
nem barreira, vendo que já ultrapassaram tantas tão justas e tão santas.

795 (160)
O espirro absorve todas as funções da alma tanto quanto o trabalho,
mas não se tiram dele as mesmas consequências contra a grandeza do
homem, porque é contra a vontade, e embora a gente o dê, é entretanto
contra a vontade que a gente o dá. Não é em vista da coisa mesma, é
para outro fim. E assim, não é um sinal da fraqueza do homem e de sua
servidão sob essa ação.

Não é vergonhoso para o homem sucumbir sob a dor, mas é


vergonhoso para ele sucumbir sob o prazer. O que não decorre de a dor
nos vir de outra parte e de que procuramos o prazer. Porque pode-se
buscar a dor e sucumbir a ela propositalmente sem esse tipo de baixeza.
De onde vem então ser glorioso para a razão sucumbir sob o esforço da
dor e vergonhoso sucumbir sob o esforço do prazer? É que não é a dor
que nos tenta e nos atrai; somos nós mesmos que voluntariamente a
escolhemos e queremos fazê-la dominar sobre nós, de modo que somos
senhores dela, e nisso é o homem que sucumbe a si mesmo. Mas no
prazer é o homem que sucumbe ao prazer. Ora, só o domínio e o mando
é que fazem a glória, e só a servidão faz a vergonha.

796 (314)
Deus
criou tudo para si.
deu poder de penas e de bens para si.
Podeis aplicá-lo a Deus ou a vós.
Se a Deus, o Evangelho é a regra.
Se a vós, tomareis o lugar de Deus.

Como Deus está cercado de gente cheia de caridade que lhe pede os
bens da caridade que estão em seu poder, assim

Conhecei-vos, pois, e sabei que não sois senão um rei de


concupiscência e tomai os caminhos da concupiscência.

797 (310)
Rei e tirano.

Terei também meus pensamentos de prevenção.


Tomarei cuidado em cada viagem.

Grandeza de estabelecimento, respeito de estabelecimento.

O prazer dos Grandes está em poder fazer pessoas felizes.

O próprio da riqueza é ser dada com liberalidade.

O próprio de cada coisa deve ser buscado. O próprio do poder é


proteger.
Quando a força ataca a posição, quando um simples soldado toma o
barrete quadrado de um primeiro presidente e o faz voar pela janela,
798 (41)
Epigramas de Marcial.
O homem gosta da malignidade, mas não é contra os zarolhos ou os
infelizes, e sim contra os felizes soberbos. Senão as pessoas se enganam,
pois a concupiscência é a fonte de todos os nossos movimentos, e a
humanidade,
Deve-se agradar àqueles que têm os sentimentos humanos e
delicados.
Aquele129 dos dois zarolhos não vale nada, pois não os consola e não
faz mais que acrescentar uma pitada de glória ao autor.
Tudo que é só para o autor não vale nada.
Ambitiosa recidet ornamenta130.

SÉRIE XXIX

799 (612)
Gen. 17. Statuam pactum meum inter me et te foedere sempiterno ut
sim deus tuus.
Et tu ergo custodies pactum meum131.

800 (532)
As Escrituras providenciaram passagens para consolar todas as
condições e para intimidar todas as condições.
A natureza parece ter feito a mesma coisa por esses dois infinitos
naturais e morais. Por que teremos sempre altos e baixos, mais hábeis e
menos hábeis, mais elevados e mais miseráveis, para abaixar o nosso
orgulho e ressaltar a nossa abjeção.

801 (666)
Fascinatio – Somnum suum – figura hujus mundi132.
Eucaristia.
Comedes panem tuum – panem nostrum133.

Inimici dei terram lingent134. Os pecadores lambem a terra, quer


dizer, amam os prazeres terrestres.
O Antigo Testamento continha as figuras da alegria futura e o Novo
contém as maneiras de se chegar a ela.
As figuras eram de alegria; os meios, de penitência, e no entanto o
cordeiro pascal era comido com alfaces selvagens, cum
amaritudinibus135.

Singularis sum ego donec transeam136. Jesus Cristo antes da morte


estava quase sozinho como mártir.
802 (122)
O tempo cura as dores e as disputas porque as pessoas mudam. Não
se é mais a mesma pessoa; nem o ofensor, nem o ofendido já não são os
mesmos. É como um povo a quem se tivesse irritado e que se revisse
depois de duas gerações. São ainda os franceses, mas não os mesmos.
803 (386)
Se todas as noites sonhássemos com a mesma coisa, ela nos afetaria
tanto quanto os objetos que vemos todos os dias. E se um artesão
estivesse seguro de que sonharia todas as noites durante doze horas que
era rei, creio que seria quase tão feliz quanto um rei que sonhasse todas
as noites durante doze horas que era artesão.
Se sonhássemos todas as noites que estamos sendo perseguidos por
inimigos, e agitados por esses penosos fantasmas, e se se passasse todos
os dias por diversas ocupações como quando se faz uma viagem, sofrer-
se-ia quase tanto quanto se isso fosse de verdade e se ficaria tão
apreensivo com o dormir como se fica apreensivo com o despertar,
quando se teme entrar de fato em tais infelicidades. E na verdade faria
mais ou menos os mesmos males que a realidade.
Mas, como os sonhos são todos diferentes e um mesmo sonho se
diversifica, o que neles se vê afeta bem menos do que aquilo que se vê
estando acordado, por causa da continuidade que não é entretanto tão
contínua e igual que também não mude, mas menos bruscamente, se não
for raramente, como quando se viaja, e então se diz: parece que estou
sonhando; pois a vida é um sonho um pouco menos inconstante.
804 (447)
Dir-se-á que, por ter dito que a justiça se foi da terra, os homens
conheceram o pecado original? Nemo ante obitum beatus137. Quer isso
dizer que eles tenham conhecido que na morte a beatitude eterna e
essencial começava?
805 (106)
Sabendo qual é a paixão dominante de cada um estáse seguro de lhe
agradar e, no entanto, cada um tem as suas fantasias contrárias ao seu
próprio bem conforme a própria ideia que tem do bem, e é uma
esquisitice que coloca fora dos trilhos.
806 (147)
Não nos contentamos com a vida que temos em nós e em nosso
próprio ser. Queremos viver na ideia dos outros uma vida imaginária e
para isso fazemos esforço para aparecer. Trabalhamos constantemente
para embelezar e conservar nosso ser imaginário e negligenciamos o
verdadeiro.
E, se possuímos quer a tranquilidade, quer a generosidade, quer a
fidelidade, fazemos questão de mostrá-lo a fim de ligar essas virtudes ao
nosso outro ser e as desligaríamos até de nós para as juntar ao outro.
Concordaríamos em ser poltrões para adquirir a reputação de ser
valentes. Grande marca do nada de nosso próprio ser não ficar contente
com um sem o outro e trocar muitas vezes um pelo outro. Pois infame
seria quem não morresse para conservar a honra.

807 (519)
Jo. 8.
Multi crediderunt in eum.
Dicebat ergo Jesus, si manseritis vere mei discipuli eritis et veritas
liberabit vos.
Responderunt semen abrahae sumus et nemini servimus unquam138.

Existe muita diferença entre os discípulos e os verdadeiros


discípulos. Reconhecemo-los dizendo-lhes que a verdade os tornará
livres. Porque respondem que são livres e que está neles sair da
escravidão do diabo. Eles são discípulos, mas não verdadeiros
discípulos.

808 (245)
Há três modos de se crer: a razão, o costume, (a) inspiração. A
religião cristã, única a ter a razão, não admite como seus verdadeiros
filhos aqueles que creem sem inspiração. Não que ela exclua a razão e o
costume, ao contrário; mas é preciso abrir a mente para as provas,
confirmar-se pelo costume, mas oferecer-se pelas humilhações às
inspirações, únicas que podem produzir o verdadeiro e

809 (230)
Incompreensível que Deus exista e incompreensível que ele não
exista, que a alma exista com o corpo, que nós não tenhamos alma, que o
mundo seja criado, que ele não seja etc., que o pecado original exista e
que ele não exista.

810 (193)
Quid fiet hominibus qui minima contemnunt majora non credunt140.

811 (741)
Os dois livros mais antigos do mundo são Moisés e Jó. Um judeu e o
outro pagão, que olham ambos Jesus Cristo como seu centro comum e
seu objetivo; Moisés relatando as promessas de Deus a Abraão, Jacó etc.
e suas profecias; e Jó. Quis mihi det ut etc. Scio enim quod redemptor
meus vivit141 etc.
812 (798)
O estilo do Evangelho é admirável de tantas maneiras e entre outras
ao nunca colocar nenhuma invectiva contra os carrascos e os inimigos de
Jesus Cristo. Pois não há nenhuma da parte dos historiadores contra
Judas, Pilatos, nem nenhum dos judeus.

Se essa modéstia dos historiadores evangélicos tivesse sido afetada


tão bem quanto outros traços de um caráter tão belo, e se eles só o
tivessem afetado para fazê-lo notar, eles – se eles próprios não tivessem
ousado notá-lo – não teriam deixado de arranjar amigos que fizessem
essas observações para seu benefício, mas, como agiram desse modo
sem afetação e por um movimento totalmente desinteressado, não o
fizeram notar a ninguém e creio que muitas dessas coisas nem sequer
foram notadas até agora; e isso é que dá testemunho da frieza com que a
coisa foi feita.
813 (895)
Nunca se pratica o mal tão plenamente e tão alegremente como
quando ele é praticado com consciência.
814 (6)
Como se corrompe a mente, corrompe-se também o sentimento.
Formam-se a mente e o sentimento pelas conversações; corrompem-
se a mente e o sentimento pelas conversações. Assim as boas ou as más
os formam ou os corrompem. Importa então saber escolher bem tudo
para formá-los e não os corromper. E não se pode fazer esta escolha se
não os tiver já formado e não corrompido. Assim, isso faz um círculo de
que felizes são os que saem.

815 (259)
O mundo ordinário tem o poder de não pensar naquilo que não quer
pensar. Não penseis nas passagens do Messias, dizia o judeu ao filho.
Assim fazem muitas vezes os nossos; assim se conservam as falsas
religiões e mesmo a verdadeira com relação a muita gente.
Mas há alguns que não têm o poder de impedir-se de pensar e que
pensam tanto mais quanto mais lhes proíbem. Estes se desfazem das
falsas religiões e até da verdadeira se não encontram discursos sólidos.
816 (240)
Logo eu abandonaria os prazeres, dizem eles, se tivesse a fé. E eu,
digo-vos: teríeis logo a fé se tivésseis abandonado os prazeres. Ora, a
vós cabe começar. Se eu
pudesse, vos daria a fé. Não o posso fazer nem, por isso mesmo, pôr
à prova o que dizeis, mas vós bem podeis abandonar os prazeres e pôr à
prova a verdade do que vos digo.

817 (615)
Por mais que se diga: há que se admitir que a religião cristã tem algo
de admirável. É porque nascestes nela, dirão. Pelo contrário, endureço
contra ela por essa razão mesma, de medo de que essa prevenção me
suborne, mas embora tenha nascido nela, não deixo de achar que é
assim.

818 (782)
A vitória sobre a morte. De que serve ao homem ganhar o mundo
inteiro se vier a perder a sua alma? Quem quiser guardar a sua alma a
perderá.
Não vim destruir a lei mas cumpri-la.
Os cordeiros não tiravam os pecados do mundo, mas eu sou o
cordeiro que tira os pecados.
Moisés não vos deu o pão do céu.
Moisés não vos tirou do cativeiro e não vos tornou verdadeiramente
livres.
819 (712)
As profecias misturando coisas particulares e coisas do Messias a
fim de que as profecias do Messias não ficassem sem prova e que as
profecias particulares não ficassem sem fruto.
820 (561)
Há duas maneiras de persuadir das verdades da nossa religião: uma
pela força da razão, outra pela autoridade de quem fala.
Não se usa esta, mas aquela. Não se diz: deve-se acreditar nisso
porque as Escrituras que o dizem são divinas; mas se diz que se deve
acreditar por tal ou tal razão, que são argumentos fracos, sendo a razão
flexível a tudo.

SÉRIE XXX

821 (252)
Pois não devemos nos enganar, somos autômato tanto quanto
espírito. E daí decorre que o instrumento pelo qual se faz a persuasão
não é a demonstração apenas. Quão poucas coisas há demonstradas? As
provas só convencem a mente; o costume faz as nossas provas mais
fortes e acreditadas. Ele inclina o autômato que carrega a mente sem que
ela pense nisso. Quem demonstrou que amanhã será dia e que
morreremos? E há algo em que se creia mais? É portanto o costume que
nos persuade dessas coisas. É ele que faz tantos cristãos, que faz os
turcos, os pagãos, os ofícios, os soldados etc. Para os cristãos há, a mais
do que para os pagãos, a fé recebida no batismo. Finalmente é preciso
recorrer sempre a ela uma vez que o espírito viu onde está a verdade a
fim de nos desalterar e de nos tingir com essa crença que nos escapa a
toda hora, pois é muito difícil ter sempre presentes as suas provas. É
preciso adquirir uma crença mais fácil que é aquela do costume que, sem
violência, sem artifício, sem argumento nos faz crer nas coisas e inclina
todas as nossas potências a essa crença, de modo que a nossa alma se
submete naturalmente a ela. Quando só se acredita pela força da
convicção e o autômato está inclinado a crer no contrário, isso não basta.
É preciso fazer com que as duas partes creiam, a mente pelas razões que
basta ter visto uma vez na vida, e o autômato pelo costume, e sem lhe
permitir que se incline para o contrário. Inclina cor meum deus142.

A razão age com lentidão e com tantas vistas sobre tantos princípios,
que precisam estar sempre presentes, que a toda hora ela adormece ou se
extravia por não ter presentes todos os seus princípios. O sentimento não
age assim; age num instante e está sempre pronto para agir. É necessário,
pois, colocar a nossa fé no sentimento, caso contrário ela será sempre
vacilante.

432 (194 bis e ter)


(1.) (Deve-se ter pena de uns e de outros, mas deve-se ter por uns
uma pena que nasce da ternura, e pelos outros uma pena que nasce do
desprezo.

(2.) É mesmo necessário estar na religião que eles desprezam para


não os desprezar.
(3.) Isso não é de bom-tom.

(4.) Isso mostra que nada há para lhes dizer, não por desprezo, mas
porque eles não têm o senso comum. É preciso que Deus os toque.

(5.) As pessoas desse tipo são academicistas, escolares, e é o pior


caráter de homens que conheço.

(6.) Vós me convertereis.

(7-22). Não vejo isso como carolice, mas pela maneira como o
coração do homem é feito, não como um zelo de devoção e de
desprendimento, mas por um princípio puramente humano e por um
movimento de interesse e de amorpróprio.

(8.) Não há dúvida de que não existe bem sem o conhecimento de


Deus; de que à medida que alguém dele se aproxima fica mais feliz, e de
que a extrema felicidade está em conhecê-lo com certeza; de que à
medida que alguém dele se afasta fica infeliz e de que a extrema
infelicidade seria a certeza do contrário.

(9.) Duvidar é sem dúvida uma infelicidade, mas é um dever


indispensável procurar na dúvida, e assim aquele que duvida e não
procura é a uma só vez infeliz e injusto; pois se com isso ele está alegre
e presunçoso, não tenho palavra para qualificar tão extravagante
criatura.
(10.) Não é suficiente que se deem milagres num lugar e que a
providência se manifeste sobre um povo.

(11.) Entretanto é certo que o homem é tão desnaturado que há em


seu coração uma semente de alegria nisso.

(12.) Seria isso algo para se dizer com alegria? É então algo que se
deva dizer com tristeza.

(13.) Belo motivo para regozijar e se gabar de cabeça erguida


desse jeito: Portanto, alegremo-nos, vivamos sem temor e sem
inquietação e esperemos a morte, já que isso é incerto e veremos então
o que acontecerá conosco. Não vejo a consequência disso.

(15.) Será coragem da parte de um homem moribundo ir na


fraqueza e na agonia enfrentar um Deus poderoso e eterno?

(14.) O bom-tom vai até não ter complacência, e a boa pena até ter
complacência com os outros.

(16.) Como eu ficaria feliz se estivesse nesse estado em que se


tivesse pena da minha estultice e em que se tivesse a bondade de me tirar
dela mesmo contra a minha vontade!

(17.) (Não ficar zangado e não gostar, isso acusa tanta fraqueza de
espírito e tanta malícia na vontade.)

(18.) Que motivo de alegria não esperar mais do que misérias sem
apelo! Que consolo na desesperança de qualquer consolador!

(Mas se não podemos comovê-los, eles não serão inúteis.)

(19.) Mas aqueles mesmos que parecem mais opostos à glória da


religião não serão com isso inúteis para os outros.

(20.) Faremos disso o primeiro argumento de que há algo de


sobrenatural, pois uma cegueira dessa espécie não é uma coisa natural. E
se a sua loucura os torna tão contrários ao seu próprio bem, ela servirá
como garantia para os outros pelo horror de um exemplo tão deplorável
e de uma loucura tão digna de compaixão.

(21.) Será que eles são tão firmes que fiquem insensíveis a tudo que
lhes diz respeito? Coloquemo-los à prova com a perda dos bens ou da
honra. O quê? é um encantamento.

822 (593)
História da China.
Só acredito em histórias cujas testemunhas se deixariam degolar.
(Qual dos dois é mais digno de fé, Moisés ou a China?)
Não se trata de ver isso no geral; digo-vos que há com que cegar e
com que esclarecer.
Com esta única palavra ponho a perder todos os vossos arrazoados;
mas a China obscurece, dizeis. E respondo: a China obscurece, mas há
clareza a se encontrar. Buscai-a.
Assim tudo aquilo que dizeis, faz por um dos desígnios e nada contra
o outro. Assim isso serve e não prejudica.
É preciso então ver isso nos pormenores. É preciso colocar os papéis
sobre a mesa.

823 (217)
É um herdeiro que encontra os títulos de sua casa. Dirá ele que talvez
sejam falsos e recusará examiná-los?

824 (522)
A lei obrigava àquilo que não dava143; a graça dá aquilo a que
obriga144.
825 (901)
Parece refutar. (?)
Humilibus dat gratiam; an ideo non dedit humilitatem145?
Sui eum non receperunt, quotquot autem non receperunt, an non
erant sui146?

SÉRIE XXXI

826 (673)
Fac secundum exemplar quod tibi ostensum est in monte147.
A religião dos judeus foi formada, portanto, segundo a semelhança
da verdade do Messias, e a verdade do Messias foi reconhecida pela
religião dos judeus que dela era a figura.
Nos judeus a verdade era apenas figurada; no céu ela é descoberta.
Na Igreja ela está encoberta e reconhecida por sua relação com a
figura.
A figura foi feita com base na verdade.
E a verdade foi reconhecida com base na figura.
827 (673)
São Paulo mesmo diz que as pessoas defenderam os casamentos, e
ele próprio fala a esse respeito aos coríntios de uma maneira que é uma
ratoeira. Porque se um profeta tivesse dito uma coisa e depois São Paulo
tivesse dito outra, tê-lo-iam acusado.

828 (304)
As cordas que amarram o respeito de uns para com os outros em
geral são cordas de necessidade; pois é preciso que haja diferentes graus,
por quererem todos os homens dominar e nem todos o poderem, mas
apenas alguns poderem.
Imaginemos então que os vemos começar a se formarem. Acontece
sem dúvida que eles irão se bater até que a parte mais forte oprima a
mais fraca, e que finalmente haja um partido dominante. Mas uma vez
que isso fica determinado, os senhores que não querem que a guerra
continue ordenam que a força que está em suas mãos sucederá como lhes
apraz: uns remeterão à eleição dos povos, outros à sucessão por
nascimento etc.
É aí que a imaginação começa a desempenhar o seu papel. Até aí a
pura força o faz. Aqui é a força que se mantém pela imaginação em
determinado partido – na França, no dos fidalgos; na Suíça, no dos
plebeus etc…
Ora, essas cordas que amarram, pois, o respeito a tal ou a tal em
particular são cordas de imaginação.

829 (351)
Esses grandes esforços de espírito em que a alma toca algumas vezes
são coisas em que não se mantém; ela apenas salta para elas, não como
para o trono, para sempre, mas por um instante somente.
1. Os judeus. (N. do T.)
2. Cf. Lancelot, Mémoires sur Saint-Cyran: “Ele sabia que há na alma do
homem uma ingenuidade que o enfeitiça, fascinatio nugacitatis, como dizem as
Escrituras, que faz com que, por mais isolado que esteja, ele cuide de si mesmo,
multiplique-se e divida-se, e muitas vezes fica menos só do que se estivesse no
meio de uma multidão.”
3. Isto é, do Salvador. (N. do T.)
4. Virgílio, Geórgicas, II, 490: “Feliz de quem pode penetrar as causas das
coisas.” (Montaigne, Ensaios, III, 10.)
5. Horácio, Ep. II, II, 61: “Não se admirar com nada, Numâncio, é quase o só
e único meio que dá e conserva a felicidade.” (Montaigne, Ensaios, II, 12.)
6. Cf. Montaigne, Ensaios, II, 12: “Não há combate tão violento entre os
filósofos, e tão áspero, quanto aquele que se trava sobre a questão do supremo
bem do homem, do qual, pelos cálculos de Varrão, nasceram 288 seitas.” (A
edição de 1652 dos Ensaios dá, na página 424, o número de 280.)
7. Des Barreaux (1602-1673), conselheiro no Parlamento, foi um exemplo de
devassidão e de ateísmo. Seu epicurismo era entremeado com períodos de doença
em que se mostrava arrependido e devoto. (N. do T.)
8. Sl. II, 1-2: “Por que as nações estremeceram, e os povos meditaram coisas
vãs? Os reis da terra se levantaram, e os príncipes se coligaram, contra o Senhor
e contra o seu Cristo.”
9. Lam. III, 1-2: “Sou um homem que vê a minha miséria sob a verga da sua
indignação. Conduziu-me e levou-me para dentro das trevas e não para a luz.”
10. Joel II, 13: “E rasgai os vossos corações, e não as vossas roupas; e
convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque ele é bom e misericordioso, paciente
e de uma grande misericórdia, e podendo voltar atrás sobre o mal com que vos
ameaçou.”
11. Ez. XX, 25: “Eu lhes dei preceitos que não eram bons, e ordenações em
que não encontrarão a vida.”
12. O profeta se refere à construção do segundo templo de Jerusalém. (N. do
T.)
13. As palavras entre colchetes que aparecem nesta e nas próximas páginas
indicam anotações feitas à margem por Pascal.
14. Is. I, 21: “Como se tornou uma prostituta a cidade fiel e cheia de juízo? A
justiça habitou nela, mas agora são assassinos.”
15. Is. X, 1: “Ai daqueles que implantam leis iníquas…”
16. Is. XXVI, 20: “Vai, meu povo, entra em teus aposentos; fecha a porta
atrás de ti, esconde-te um pouco por um instante até que tenha passado a
indignação.”
17. Is. XXVIII, 1: “Ai da coroa de orgulho…”
18. Is. XXXIII, 9: “A terra chorou, e enlanguesceu; o Líbano ficou coberto
de confusão e aviltado…”
19. Is. XXXIII, 10: “Agora me erguerei, diz o Senhor, agora serei
exaltado…”
20. Is. XL, 17: “Todas as nações, como se não fossem…”
21. Is. XLI, 26: “Quem anunciou essas coisas desde o início, a fim de que as
soubéssemos. E desde o princípio a fim de que disséssemos: Sois justo? ”
22. Is. XLIII, 13: “Agirei, e quem me desviará? ”
23. Is. XLIV, 20: “E ele não dirá: talvez haja uma mentira na minha mão
direita? ”
24. Is. XLIV, 21: “Lembra-te destas coisas, Jacó, e tu, Israel, porque meu
servidor és tu; eu te formei, meu servo, és tu, Israel, não me esqueças.” – 22:
“Apaguei como uma nuvem as tuas iniquidades, e como um vapor os teus
pecados. Volta para mim, porque te resgatei.” – 23: “Louvai, céus, porque o
Senhor fez misericórdia; jubilai, extremos da terra; fazei ressoar o louvor,
montanhas, floresta, e todas as suas árvores, porque o Senhor resgatou Jacó e
porque Israel se glorificará.” – 24: “Eis o que diz o Senhor, teu redentor, e que
te formou desde o seio de tua mãe: Eu sou o Senhor, que faz todas as coisas, que
sozinho estende os céus, dá firmeza à terra e ninguém está comigo.”
25. Is. LIV, 8: “Num momento de indignação escondi de ti a minha face por
algum tempo. Mas em minha misericórdia eterna, tive piedade de ti, disse o
criador, o Senhor.”
26. Is. LXIII, 12: “Quem conduziu Moisés pela mão direita, e o sustentou
pelo braço de sua majestade, quem dividiu as águas diante deles a fim de fazer
para si um nome eterno? ”
27. Is. LXIII, 14: “… Assim conduziste teu povo, a fim de fazer para ti um
nome glorioso.”
28. Is. LXIII, 16: “Tu na verdade és nosso pai, e Abraão não nos conheceu, e
Israel nos ignorou.”
29. Is. LXIII, 17: “Por que endureceste o nosso coração de modo que não te
temêssemos? ”
30. Is. LXVI, 17: “Aqueles que se santificavam e se julgavam puros em seus
jardins… serão consumidos todos juntos, diz o Senhor.”
31. Jer. II, 35: “E disseste: sou sem pecado e inocente. E por isso seja
afastado de mim o teu furor. Eis que brigarei em juízo contigo pelo que tiveres
dito: não pequei.”
32. Jer. IV, 22: “… São inteligentes para fazer o mal, mas o bem não sabem
fazer.”
33. Jer. IV, 23: “Olhei para a terra, e eis que ela estava vazia, e sem nada, e
olhei para os céus e não havia luz neles.” – 24: “Vi os montes, e eis que se
moviam, e todas as colinas ficaram conturbadas.” – 25: “Olhei com atenção e
não havia homem ali, e todo pássaro do céu se tinha retirado.” – 26: “Olhei e eis
que o Carmelo estava deserto; e todas as suas cidades foram destruídas diante
da face do Senhor, diante da face da cólera de seu furor.” – 27: “Isto na verdade
disse o Senhor: Deserta está toda terra, mas entretanto não concluirei a sua
ruína.”
34. Jer. V, 4: “Mas eu disse: talvez sejam pobres e insensatos os que ignoram
as vias do Senhor e o julgamento de seu Deus.” – 5: “Irei ter com os grandes e
falarei a eles, pois conheceram a via do Senhor e o julgamento de seu Deus; e eis
que também estes juntos sacudiram o jugo e quebraram os vínculos.” – 6: “É por
isso que o leão da floresta os pegou … e o leopardo espreita as suas cidades…”
35. Jer. V, 29: “Acaso não visitarei a estes crimes?, disse o Senhor. Ou
aminha alma não se vingará de semelhante nação? ” – 30: “O estupor
emaravilhas se fizeram sobre a terra.” – 31: “Profetas profetizavam a mentira e
os sacerdotes batiam palmas; e o meu povo gostou dessas coisas, que acontecerá
então em seu momento derradeiro? ”
36. Jer. VI, 16: “Eis o que diz o Senhor: Colocai-vos nas estradas e olhai:
perguntai a respeito dos caminhos antigos, qual é a boa via e caminhai por ela; e
encontrareis refrigério para as vossas almas. Eles disseram: não
caminharemos.” – 17: “E constituí sobre vós sentinelas. Escutai a voz da
trombeta. E eles disseram: não escutaremos.” – 18: “Ouvi, nações, e ficai
sabendo, assembléia dos povos, que grandes coisas farei contra eles.” – 19:
“Escuta, terra: eis que lhes trarei grandes males… etc.”
37. Jer. VII, 14: “Farei para esta casa em que tendes invocado o meu nome, e
em que tendes confiança e para este lugar que dei para vós e para vossos pais,
como fiz para Silo.”
38. Jer. VII, 16: “Tu, pois, não ores por este povo…”
39. Jer. VII, 22: “Porque não falei a vossos pais, nada lhes ordenei, no dia
em que os tirei da terra do Egito, a respeito dos holocaustos e das vítimas.” – 23:
“Mas eis a coisa que lhes ordenei: Escutai a minha voz, e serei o vosso Deus, e
sereis o meu povo; e caminhai em toda a via que vos prescrevi, a fim de que bem
vos seja.” – 24: “E eles não escutaram…”
40. Jer. XI, 13: “Pois segundo o número de tuas cidades eram os teus deuses,
ó Judá, e segundo o número de tuas ruas, ó Jerusalém, ergueste altares de
confusão…” – 14: “Tu, pois, não ores por este povo…”
41. Jer. XI, 21: “Não profetizarás em nome do Senhor, e não morrerás por
nossas mãos.” – 22: “Por causa dessas coisas disse o Senhor…”
42. Jer. XV, 2: “Pois se te disserem, aonde iremos? Tu lhes dirás: Eis o que
diz o Senhor: à morte os que são destinados à morte; ao gládio os que ao gládio;
à fome os que à fome; ao cativeiro os que ao cativeiro.”
43. Jer. XVII, 9: “O coração de todos é depravado e inescrutável; quem o
conhecerá? ” – 10: “Sou eu o Senhor que escruta o coração e prova os rins…”
44. Jer. XVIII, 18: “E eles disseram: vinde, e tramemos contra Jeremias, pois
a lei não faltará ao sacerdote, nem o conselho ao sábio; nem a palavra ao
profeta…”
45. Jer. XVII, 17: “Não me sejas de terror, tu minha esperança no dia das
aflições.”
46. Jer. XXIII, 15: “… Pois foi a partir dos profetas de Jerusalém que a
corrupção se espalhou por toda a terra.”
47. Jer. XXIII, 17: “Eles dizem aos que blasfemam contra mim: o Senhor
falou, a paz estará convosco; e a quem quer que ande com a depravação no
coração, eles disseram: não virá mal algum sobre vós.”
48. Is. VIII, 16: “Mantém fechado o testemunho, sela a lei entre os meus
discípulos.”
49. Mc. II, 10-11: “Para que saibas que o filho do Homem tem na terra o
poder de remir os pecados (disse ao paralítico): Eu te ordeno, levanta-te, pega o
teu catre e vai para a tua casa.”
50. Cícero, De divinatione, II, XXVII: “O que ele vê com frequência não o
espanta, ainda que ignore a causa. Mas se acontece alguma coisa que nunca viu,
então olha isso como um prodígio.” (Montaigne, Ensaios, II, 30.)
51. Terêncio, Heauton., III, v. 8: “Por certo esse homem vai fazer grande
esforço e só me dirá bobagens.” (Montaigne, Ensaios, III, 1.)
52. Plínio, II, 7: “Que há mais infeliz do que um homem escravo de suas
quimeras? ” (Montaigne, Ensaios, II, 12.)
53. Sêneca, Ep. XCV: “Há crimes cometidos sob a instigação dos
senatusconsultos e dos plebiscitos.” (Montaigne, Ensaios, III, 1.)
54. Cícero, De divin. II, LVIII: “Nada se pode dizer de tão absurdo que não
tenha sido dito por algum filósofo.” (Montaigne, Ensaios, II, 12.)
55. Cícero, Tuscul., II, 11: “Que estão acorrentados e entregues a certas
opiniões fixas e determinadas, a ponto de ficarem reduzidos a defender as coisas
mesmas que desaprovam.” (Montaigne, Ensaios, II, 12.)
56. Sêneca, Ep. CVI: “Não sofremos menos de imoderação no estudo das
letras do que em qualquer outra coisa.” (Montaigne, Ensaios, III, 12.)
57. Cícero, De offic., I, XXXI: “O que melhor nos convém é o que é mais
natural.” (Montaigne, Ensaios, III, 1.)
58. Virgílio, Geórg., II, 20: “Essas são as leis que a natureza nos deu
primeiro.” (Montaigne, Ensaios, I, 31.)
59. Sêneca, Ep. CVI: “Bastam poucas letras para fazer uma mente sã.”
(Montaigne, Ensaios, III, 12.)
60. Cícero, De fin., XV: “Estimo que uma coisa, mesmo quando não seja
vergonhosa, parece sê-lo se tem a aprovação da multidão.” (Montaigne,
Ensaios, II, 16.)
61. Terêncio, Heaut., I, 1. 28: “Para mim, é assim que uso; tu, faze como bem
entenderes.” (Montaigne, Ensaios, I, 28.)
62. Quintiliano, X, 7: “É raro, de fato, que se respeite bastante a si mesmo.”
(Montaigne, Ensaios, I, 39.)
63. Sêneca, Suasoriae, I, IV: “Tantos deuses a se agitar em torno de um só
homem.” (Montaigne, Ensaios, II, 13.)
64. Cícero, Acad., I, 12: “Nada mais vergonhoso do que fazer vir a asserção
e a decisão antes da percepção e do conhecimento.” (Montaigne, Ensaios, III,
13.)
65. Cícero, Tusc., I, XXV: “Não me envergonho, como essas pessoas, de
confessar que ignoro aquilo que ignoro.” (Montaigne, Ensaios, III, 11.)
66. Sêneca, Ep. LXXII: “É melhor que não comecem.” (Montaigne, Ensaios,
III, 10.)
67. “… sans art ” (sem arte) significa aqui, de acordo com a linguagem da
época, “sem regras técnicas”. (N. do T.)
68. Em francês: … de l’envie, qui est aveugle… admite também a seguinte
leitura: … da inveja, que é cega… (N. do T.)
69. Segundo nota de Brunschvicg (Libr. Hachette Ed., p. 546), o papel
original estaria rasgado, o que explica a palavra truncada. Quanto aos exemplos
citados, o primeiro (Je faisons) corresponde a um uso dialetal francês muito
frequente que coloca o sujeito (je) no singular e o verbo (faisons) no plural, e o
segundo é tirado do grego, em que acontece o contrário: o sujeito (zoa [animais])
é neutro, plural, e o verbo (trekei [corre]) fica no singular. (N. do T.)
70. Apoc. XXII, 11: “Quem já é justo, seja ainda justificado.”
71. Mc. I, 5: “E todo o país da Judeia, e todos os de Jerusalém iam a ele, e
eram batizados….”
72. I Jo. II, 16: “… pois tudo que há no mundo, a saber, a cobiça da carne e a
cobiça dos olhos e a ostentação da fortuna, não é do Pai, mas do mundo.”
73. Cf. Is. VI, X: “Cega o coração deste povo, e torna surdos os seus ouvidos,
e fecha-lhes os olhos; para que não veja com os olhos e não ouça com os ouvidos,
e que o seu coração não compreenda, e que não se converta e eu não o cure.” –
Mc. IV, 12: “A fim de que não se convertam e que os pecados não lhes sejam
remidos.” [Em Marcos, VI, 12, consta: “Partindo, eles pregavam que todos se
arrependessem.” cf. Bíblia de Jerusalém. (N. do T.)]
74. Mc. III, 28: “E os pecados lhes serão perdoados.”
75. Mt. XXVI, 50: “Jesus disse: Amigo, por que vieste? ”
76. Lc. XXII, 32: “Rezei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça; e tu, uma
vez que estiveres convertido, confirma os teus irmãos.”
77. Lc. XXII, 61: “E o Senhor, virando-se, olhou para Pedro, e Pedro se
lembrou da palavra do Senhor, como ele havia dito: Antes que o galo cante hoje,
tu me negarás três vezes. E, indo para fora, chorou amargamente.”
78. Cf. Montaigne, Ensaios, II, 12: “O próprio ar e a serenidade do céu nos
trazem alguma mutação, como diz o verso grego, em Cícero…”
79. Cf. Cor. XIV, 27: “Seja que alguém fale a língua, que isso se faça a dois,
ou no máximo a três.” – 29: “E que dois ou três profetas falem, e que os outros
julguem.” – v. 23: “Se então toda a Igreja reúne em um…” (Cf. J. Lhermet,
Pascal et la Bible, p. 202.)
80. Lc. XXII, 25-26: “Disse-lhes Jesus: Os reis das nações as dominam, e os
seus príncipes recebem o nome de benfeitores. Para vós, entretanto, não deve ser
assim, mas que o maior dentre vós seja como o menor, e o chefe, como o que
serve.”
81. Mt. XXVI, 27: “E tomando do cálice deu graças e deu-o a eles dizendo:
Bebei todos deste…”
82. Rom. V, 12: “Portanto, como por um homem o pecado entrou no mundo,
e pelo pecado a morte; e assim a morte chegou sobre todos os homens, em que
todos pecaram.”
83. Rom. V, 14: “A morte reinou desde Adão até Moisés, mesmo sobre
aqueles que não haviam pecado à maneira da transgressão de Adão, que é figura
daquele que devia vir (forma futuri).”
84. “Se fosse usado (contra os hereges) o terror e não a instrução, isso
pareceria uma tirania.”
85. Sl. XLIV, 4: “Cinge a tua espada sobre a coxa, poderosíssimo rei…”
86. Alusão ao preceito da honestidade (honnêteté) de Méré e Miton de não
dizer je (eu), mas on (a gente, sujeito indeterminado). E ainda: “Não digais nunca
meu mas nosso.” (N. do T., conf. ed. Brunschvicg.)
87. No manuscrito de Pascal havia São Pedro, que foi riscado e substituído
por São Tiago. A passagem é de São Tiago, V, 17. (N. do T.)
88. Gn. IV, 7: “Iahvé disse a Caim: o desejo te solicita mas submeterás a ti
teu desejo.”
89. São Cipriano, carta 63 a Cecílio: “Pois se somos os bispos de Deus e do
Cristo, não vejo para nós guia que devamos seguir senão a Deus e ao Cristo…”
([a partir da] tradução Bayard, Belles Lettres, Paris).
90. Hebr. X, 5: “É por isso que ao entrar no mundo ele disse: Não quiseste
nem sacrifício nem oblação, mas formaste um corpo para mim.”
91. Zac. XII, 10: “… E olham para mim a quem transfixaram…”
92. Sl. CXXIX, 8: “E ele próprio resgatará Israel de todas as iniquidades.”
93. Princesa, depois rainha de Corinto, apaixona-se por Mirinto sem saber que
ele não era originário de Corinto… (N. do T.)
94. Brunschvicg dá a referência dessa página como sendo da edição dos
Ensaios de Montaigne, sem maiores detalhes. (N. do R. T.)
95. Antonio Escobar y Mendoza, jesuíta espanhol (1589-1669), autor de obras
de casuística. (N. do T.)
96. “A Esponja do Sol.” M. Jasinski acha que se trata de uma pedra
fosforescente, ou pedra de Bolonha, descoberta em 1604, que não emite calor, o
que transtorna “o costume”. Cf. “Sur une Pensée de Pascal” [Sobre um
Pensamento de Pascal], in Rev. Hist. Civilis., jan. de 1942.
97. Eclo. XIII, 19: “Todo animal gosta de seu semelhante; assim também
todo homem gosta do que lhe é próximo.”
98. Cf. Petrônio, XC: “Falaste como poeta mais do que como homem.” No
Satiricon, Encolpo, que acaba de aguentar uma longa declamação de Eumolpo,
diz-lhe: “… Não faz ainda duas horas que me frequentas, e já empregaste mais a
língua dos deuses do que a dos homens.” ([A partir da] trad. A. Ernout, ed. Les
Belles Lettres, Paris, p. 94.)
99. Segundo Brunschvicg, Marie le Jare de Gournay desde jovem foi grande
admiradora do autor dos Ensaios e publicou, em 1595, a edição definitiva dos
mesmos a partir das notas que Madame de Montaigne lhe entregara após a morte
do marido. Escreveu posteriormente um prefácio à mesma obra em que defende o
autor por “anatomizar“ o amor. (N. do T.)
100. Cf. Charron, De la Sagesse [Da Sabedoria], II, VII, 4: “O que o grande
filósofo Epiteto indicou muito bem, compreendendo em duas palavras toda a
filosofia moral, sustine e abstine, aguenta os males, é a adversidade: abstém-te
dos bens, quer dizer das volúpias e da prosperidade.”
101. Cf. Descartes, Os princípios da filosofia, 3a parte, cap. 54: “força que
anima… todos os corpos que se movem dando voltas para se afastarem dos
corpos em torno dos quais se movem” (1644, definição do conatus recedendi).
102. “A religião vos anuncia aquilo que buscais sem conhecer.” Cf. Atos
XVII, 23. São Paulo dirige-se aos atenienses: “Pois, ao passar e ver os vossos
ídolos, encontrei até um altar em que estava escrito: Ao Deus desconhecido. Ora,
o que adorais sem conhecer, vo-lo anuncio eu.”
103. I Cor. I, 25: “Pois o que é loucura em Deus é mais sábio do que os
homens, e o que é fraqueza em Deus é mais forte do que os homens.”
104. Sb. XIV, 22: “E não lhes bastou somente errar acerca do conhecimento
de Deus, mas vivendo uma grande guerra provocada pela ignorância, a tantos e
tão grandes males chamam paz.”
105. Cf. Mascarenhas: “Um padre que, sem nenhuma necessidade, mas por
pura malícia, diz a Missa em estado de pecado mortal, sem se confessar antes,
não é obrigado àquilo que o Concílio de Trento ordena: confessar-se o quanto
antes (quam primum) porque o Concílio só fala daqueles que omitiram a
confissão por necessidade, e não dos que a omitiram por malícia.”
106. Jo. X, 33-35: “Os judeus responderam: Não é por uma boa obra que te
lapidamos, mas por uma blasfêmia, e porque, sendo homem, tu te fazes Deus. –
Jesus respondeu-lhes: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Vós sois deuses? –
Pois que ela chamou deuses aqueles a quem a palavra de Deus foi dirigida (e as
Escrituras não podem ser desmentidas)…” – Cf. Coletânea original, 916, p. 99.
107. Jo. XI, 4: “Ao ouvir isso, Jesus disse: Essa doença não é para a morte,
mas para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja com ela
glorificado.”
108. Jo. XI, 11-14: “… ele disse-lhes: Lázaro, nosso amigo, está dormindo;…
Jesus lhes disse abertamente: Lázaro está morto; …”
109. Tem-se a impressão de que Pascal fez referência a essa história do
Duque de Liancourt, convertido por sua mulher e defensor das doutrinas de Port-
Royal, para defender a doutrina do espírito dos animais contra os partidários do
automatismo.
110. Sab. XV, 8 e 16: “Cada um forja um deus para si.”
111. Alusão provável a Dionísio, o Areopagita, cf. Atos dos Apóstolos XVII,
31 ss. (N. do T.)
112. Cf. Jer. VI, 16: “Assim disse o Senhor: Colocai-vos nas estradas e olhai:
perguntai a respeito dos caminhos antigos, qual é a boa via e caminhai por ela; e
encontrareis refrigério para as vossas almas. Eles disseram: não
caminharemos…” – XVIII, 12: “E eles disseram: Não temos mais esperança,
seguiremos os nossos pensamentos, cada um de nós realizará a depravação de seu
coração mau.”
113. O texto em itálico, que constava numa primeira redação de Pascal e
transcreve passagens da Bíblia (Jeremias IV, 16 e XVIII, 12), foi posteriormente
riscado nos manuscritos. (N. do T.)
114. No manuscrito consta uma linha quebrada cujos zigue-zagues indicam a
progressão. (N. do T.)
115. Sl. CXLII, 2: “Não entres em juízo com teu servo, pois nenhum homem
vivo é justo diante de ti.”
116. Sl. CXI, 4: “Ergueu-se nas trevas uma luz para os homens retos de
coração.”
117. O Traité de la Sagesse [Tratado da sabedoria], livro que, apesar de ser
pequeno, tem 117 capítulos, cada um deles comportando ainda subdivisões,
contrariamente aos Essais [Ensaios] de Montaigne que se seguem sem nenhuma
ordenação e, em cada ensaio, o pensamento do autor flui livremente. (N. do T.)
118. Mt. XI, 27: “… Ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem
o Filho o quiser revelar.”
119. Is. XLV, 15: “Em verdade és um Deus escondido, Deus de Israel…”
120. 1.022 é o número que consta no catálogo de Ptolomeu, que resume os
conhecimentos de astronomia da Antiguidade. (N. do T.)
121. Lc. XII, 32: “Não temais, pequeno rebanho.” – Filip. II, 12: “Empenhai-
vos em vossa salvação com temor e tremor.”
122. Mc. IX, 36 (texto de Vatable): “Quem quer que me receba, não é a mim
que recebe, mas àquele que me enviou.” – XIII, 32: “Ninguém sabe… nem o
Filho.”
123. Mt. XVII, 5: “Eis que os cobriu uma nuvem brilhante.”
124. Lucas I, 17: “… e irá adiante dele com o espírito e a virtude de Elias, a
fim de reconduzir os corações dos pais para os filhos…” (N. do T.)
125. Lucas XII, 51: “Julgais que vim trazer a paz à terra? Não, vos digo eu,
mas a separação…” (N. do T.)
126. Cf. Écrits sur la grâce [Escritos sobre a graça]: “Pode-se considerar a
justificação quer em seus efeitos particulares, e então se lhes pode alegar causas
(pois a oração os obtém), e foi isso que os calvinistas desconheceram, quer
tomando-os todos em comum, e então não têm outra causa senão a vontade
divina, foi o que os pelagianos desconheceram.”
127. Deut. XXVIII, 29: “E estarás tateando em pleno meio-dia.”
128. Cf. Is. XXIX, 11: “E a visão deles todos será para vós como um livro
lacrado; quando o derem a um homem que saiba ler se dirá: Lê o livro; e ele
responderá: Não posso, pois ele está lacrado.”
129. Epigrama. (N. do T.)
130. A frase de Horácio (Epístola aos Pisões, V, 447-448) encontra-se citada
no no CX: “Ele cortará os ornatos ambiciosos.”
131. Gn. XVII, 7: “Assim estabelecerei a minha aliança entre mim e ti, e
entre a tua posteridade depois de ti nas suas gerações, por um ato eterno, a fim de
que seja eu o teu Deus e o Deus da posteridade depois de ti.” – 9: “Deus disse
ainda a Abraão: “Guardarás a minha aliança, tu e tua posteridade depois de ti
em suas gerações.”
132. Sb. IV, 12: “Pois a fascinação da frivolidade obscurece o bem, e a
inconstância da concupiscência inverte o sentido que é sem malícia.” Cf. 386. –
Sl. LXXV, 6: “… Eles dormiram o seu sono…” – I Cor. VII, 31: “… pois passa a
figura deste mundo.”
133. Deut. VIII, 9: “… terra de azeite e de mel onde comes teu pão sem que
nunca falte.” – Lc., XI, 3: “O nosso pão de cada dia nos dai hoje…”
134. Sl. LXXI, 9: “Diante dele prosternaram-se os etíopes, e seus inimigos
lamberão o pó.”
135. Ex. XII, 8: “E comerão naquela noite as carnes assadas ao fogo com pães
ázimos e ervas amargas.”
136. Sl. CL, 10: “Os pecadores cairão em sua rede: quanto a mim, estou só,
até que eu passe.”
137. Ovídio, Metam., III, 135: “É preciso esperar o último dia do homem, e
ninguém pode ser declarado feliz antes da morte e dos funerais.” (Montaigne,
Ensaios, I, 19.)
138. Jo. VIII, 31-3: “Dizia pois Jesus àqueles dentre os judeus que
acreditavam nele: Quanto a vós, se permanecerdes na minha palavra, sereis
verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade e a verdade vos fará
livres. Responderam-lhe: Somos da raça de Abraão, e nunca fomos escravos de
ninguém; como então dizes: ficareis livres?” salutar efeito, ne evacuetur crux
Christi139.
139. I Cor. I, 17: “A fim de que não seja inútil a cruz de Cristo.”
140. Este texto é provavelmente de Pascal: “Que acontecerá com os homens
que desprezam as pequenas coisas, não acreditam nas grandes? ”
141. Jó XIX, 23-25: “Quem me dará que as minhas palavras sejam escritas?
Quem permitirá que elas sejam gravadas em um livro, com um estilete de ferro,
ou uma lâmina de chumbo, ou que sejam gravadas com um formão ou com uma
pedra? Pois bem sei que o meu Redentor vive, e que devo levantar-me do chão no
último dia.”
142. Sl. CXVII, 36: “Inclina meu coração, ó Deus, para os teus
testemunhos.”
143. “A lei não foi dada com o poder de vivificar, mas para mostrar aos
pecadores os seus pecados; a lei faz o pecado.” (Augustinus, de Grat., cap. I.)
[Nota cf. ed. Brunschvicg.]
144. A graça faz com que não somente queiramos, mas também que possamos
fazer o bem. [Nota cf. ed. Brunschvicg.]
145. Tiago IV, 6 e I Pet. V. 5: “Deus resiste aos orgulhosos e dá sua graça
aos humildes.” Pascal acrescenta: “Quer isso dizer que ele não deu a humildade?

146. Jo. I, 11: “Ele veio para sua casa e os seus não o receberam.” – Pascal
acrescenta: “Mas todos aqueles que não o receberam não eram acaso seus? ”
147. Ex. XXV, 40: “Olha e faz segundo o modelo que te foi mostrado no alto
da montanha.”
TERCEIRA SEÇÃO

Milagres
SÉRIE XXXII

830 (ap. XIII)


Os pontos que quero perguntar ao abade de Saint- -Cyran são
principalmente estes que estão adiante. Mas como não tenho cópia deles,
seria preciso que ele se desse ao trabalho de devolver este papel com a
resposta que tiver a bondade de me dar.

1. Se é necessário, para que um efeito seja milagroso, que este esteja


acima da força dos homens, dos demônios, dos anjos e de toda a
natureza criada.

Os teólogos dizem que os milagres são sobrenaturais ou em sua


substância, quoad substantiam, como a penetração de dois corpos, ou a
situação de um mesmo corpo em dois lugares e ao mesmo tempo; ou que
são sobrenaturais namaneira de os produzir, quoad modum: como
quando são produzidos por meios que não possuem nenhuma virtude
natural para produzi-los: como quando Jesus Cristo cura os olhos do
cego com a lama, e a sogra de Pedro debruçando-se sobre ela, e a
mulher doente do fluxo de sangue tocando a orla de seu vestido… E a
maioria dos milagres que ele nos fez no Evangelho são deste segundo
gênero. Assim é também a cura de uma febre, ou de outra doença feita
num momento, ou mais perfeitamente do que a natureza é capaz, pelo
toque de uma relíquia ou pela invocação do nome de Deus, de maneira
que o pensamento daquele que propõe essas dificuldades é verdadeiro e
conforme a todos os teólogos, mesmo do tempo atual.

2. Não basta que esteja acima da força natural dos meios que se
empregam; minha ideia é que todo efeito é milagroso (quando)
ultrapassa a força natural dos meios que se empregam. Assim, chamo
milagrosa a cura de uma doença feita pelo toque de uma santa Relíquia,
a cura de um demoníaco feita pela invocação do nome de Jesus etc.,
porque esses efeitos ultrapassam a força natural das palavras pelas quais
se invoca a Deus e a força natural de uma relíquia (que) não podem curar
doentes nem expulsar demônios. Mas não chamo milagre expulsar
demônios pela arte do diabo; porque, quando se usa a arte do diabo para
expulsar o diabo, o efeito não ultrapassa a força natural dos meios que se
usam; e assim pareceu-me que a verdadeira definição dos milagres é
aquela que acabo de dar.

Aquilo que o diabo pode fazer não é milagre, não mais do que aquilo
que pode fazer um animal, embora o homem não o possa fazer.

3. Se Santo Tomás não é contrário a essa definição, e se ele não


comunga da opinião de que um efeito, para ser milagroso, deva
ultrapassar a força de toda a natureza criada.

Santo Tomás tem a mesma opinião que os outros, embora divida em


duas a segunda espécie de milagres: milagres quoad subjectum, e
milagres quoad ordinem naturae. Ele diz que os primeiros são aqueles
que a natureza pode produzir absolutamente, mas não em tal sujeito,
como pode produzir a vida, mas não em um corpo morto; e que os
segundos são aqueles que ela pode produzir num sujeito, mas não por
determinado meio com tanta prontidão, como curar em um instante e
apenas pelo toque uma febre ou uma doença, embora não incurável.

4. Se os hereges declarados e reconhecidos podem fazer verdadeiros


milagres para confirmar um erro.

Nunca se pode fazer verdadeiros milagres por quem quer que seja,
católico ou herege, santo ou mau, para confirmar um erro, porque Deus
afirmaria e aprovaria mediante o seu selo o erro como falso
testemunho, ou melhor, como falso juiz; isso é seguro e constante.
5. Se os hereges conhecidos e declarados podem fazer milagres como
a cura das doenças que não são incuráveis; por exemplo, se podem curar
uma febre para confirmar uma proposição errônea: o padre Lingendes
prega que sim.

(Não se respondeu a essa questão.)

6. Se os hereges declarados e conhecidos podem fazer milagres que


estejam acima de toda a natureza criada pela invocação do nome de
Deus e por uma santa relíquia.

Eles podem fazê-lo para confirmar uma verdade e há exemplos disso


na história.

7. Se os hereges não declarados e que, não se separando da Igreja,


não deixam de estar no erro, e que não se declaram contra a Igreja a fim
de mais facilmente poder seduzir os fiéis e fortificar o seu partido, pela
invocação do nome de Jesus, ou por uma santa relíquia (podem realizar1)
milagres que estejam acima da natureza toda, ou mesmo se podem fazer
milagres que só estejam acima do homem, como curar de imediato males
que não são incuráveis.

Os hereges não declarados não têm mais poder sobre os milagres


mais do que os hereges declarados; para Deus nada estando encoberto,
para ele que é o único autor e operador dos milagres, sejam quais
forem, desde que sejam verdadeiros milagres.

8. Se os milagres feitos pelo nome de Deus ou pela interposição das


coisas divinas não são a marca da verdadeira Igreja, e se todos os
católicos não mantiveram a afirmativa contra os hereges.

Todos os católicos permanecem de acordo a esse respeito, e


sobretudo os autores jesuítas. Basta ler Belarmino. Mesmo quando os
hereges fizeram milagres, o que aconteceu às vezes, ainda que
raramente, esses milagres eram marcas da Igreja, porque só eram feitos
para confirmar a verdade que a Igreja ensina, e não o erro dos hereges.

9. Se nunca aconteceu que os hereges tenham feito milagres, e de


que natureza eles eram.

Há poucos deles que sejam garantidos; mas aqueles de que se fala


são miraculosos somente quoad modum, isto é, efeitos naturais
produzidos miraculosamente num modo que ultrapassa a ordem da
natureza.

10. Se aquele homem do Evangelho que expulsava os demônios em


nome de Jesus Cristo e a respeito do qual Jesus Cristo disse: “Quem não
está contra nós está conosco”, era amigo ou inimigo de Jesus Cristo e o
que dizem a esse respeito os intérpretes do Evangelho. Pergunto isso
porque o padre Lingendes pregou que aquele homem era contrário a
Jesus Cristo.

O Evangelho atesta bastante que ele não era contrário a Jesus


Cristo e os Padres sustentam a mesma coisa, e quase todos os autores
jesuítas.

11. Se o Anticristo fará sinais em nome de Jesus Cristo ou em seu


próprio nome.

Como ele não virá em nome de Jesus Cristo, mas no seu próprio,
segundo o Evangelho, assim ele não fará milagres em nome de Jesus
Cristo, mas no seu e contra Jesus Cristo, para destruir a fé e sua Igreja;
por causa disso não serão verdadeiros milagres.

12. Se os oráculos foram milagrosos.

Os milagres dos pagãos e dos ídolos não foram tampouco


miraculosos, como as outras operações dos demônios e dos mágicos.

831 (810)
O segundo milagre pode supor o primeiro; o primeiro não pode
supor o segundo.

SÉRIE XXXIII

832 (803)
5. Milagres. Início.
Os milagres discernem a doutrina e a doutrina discerne os milagres.
Há falsos e verdadeiros. É preciso uma marca para reconhecê-los,
senão eles seriam inúteis.
Ora, eles não são inúteis e são, ao contrário, fundamentos.
Ora, é necessário que a regra que ele nos dá seja tal que não destrua a
prova que os verdadeiros milagres dão da verdade, que é a finalidade
principal dos milagres.

Moisés deu duas delas: que a predição não aconteça, Deut. 18, e que
não conduzam à idolatria, Deut. 13., e Jesus Cristo uma.

Se a doutrina regula os milagres, os milagres são inúteis para a


doutrina.
Se os milagres regulam…

Objeção à regra.

O discernimento dos tempos: uma regra no tempo de Moisés, outra


regra no tempo presente.

833 (487)
É falsa toda religião que na sua fé não adora um Deus como
princípio de todas as coisas e que em sua moral não ama a um só Deus
como objeto de todas as coisas.

834 (826)
Razões por que não se crê.
Jo. 12. 37.
Cum autem tanta signa fecisset non credebant in eum. Ut sermo
Isaiae impleretur. Excaecavit2 etc.
Haec dixit Isaias quando vidit gloriam ejus et locutus est de eo3.
Judaei signa petunt et graeci sapientiam quaerunt.
nos autem Jesum Crucifixum4.
Sed plenum signis, sed plenum sapientia.
Vos autem Christum, non crucifixum, et religionem sine miraculis et
sine sapientia5.

O que faz com que não se creia nos verdadeiros milagres é a falta de
caridade. Jo. sed vos non creditis quia non estis ex ovibus6.
O que faz crer nos falsos milagres é a falta de caridade. 2. Tess. 2.
Fundamento da religião.

São os milagres, então o quê? Acaso Deus fala contra os milagres,


contra os fundamentos da fé que se tem nele?
Se há um Deus, era preciso que a fé de Deus estivesse sobre a terra;
ora, os milagres de Jesus Cristo não são preditos pelo Anticristo, mas os
milagres do Anticristo são preditos por Jesus Cristo. E assim, se Jesus
Cristo não fosse o Messias, teria certamente induzido em erro, mas o
Anticristo não pode certamente induzir em erro.
Quando Jesus Cristo predisse os milagres do Anticristo, pensou
acaso em destruir a fé em seus próprios milagres?

Não há razão alguma de se acreditar no Anticristo que não seja


acreditar em Jesus Cristo, mas as há em Jesus Cristo que não estão no
outro.

Moisés predisse Jesus Cristo e ordenou que o seguissem. Jesus Cristo


predisse o Anticristo e proibiu que o seguissem.
Era impossível que no tempo de Moisés se reservasse a crença para o
Anticristo, que lhes era desconhecido, mas é bem fácil no tempo do
Anticristo acreditar em Jesus Cristo já conhecido.
835 (564)
As profecias, os milagres mesmos e as provas de nossa religião não
são de natureza tal que se possa dizer que sejam absolutamente
convincentes, mas são também de tal espécie que não se pode dizer que
seja fora de razão acreditar neles. Assim, há evidência e obscuridade
para aclarar a uns e obscurecer a outros, mas a evidência é tal que
ultrapassa ou iguala pelo menos a evidência do contrário, de maneira que
não é a razão que poderá determinar a não segui-la, e assim só pode ser a
concupiscência e a malícia do coração. E por esse meio há bastante
evidência para condenar e não bastante para convencer, a fim de
aparecer que nos que a seguem é a graça e não a razão que a faz seguir, e
que nos que fogem dela é a concupiscência e não a razão que faz fugir.

Vere discipuli, Vere Israelita, Vere liberi, Vere cibus7.

Suponho que se acredite nos milagres.


836 (855)
Corrompeis a religião ou a favor de vossos amigos ou contra vossos
inimigos; dispondes dela a vosso bel-prazer.

837 (823)
Se não houvesse falsos milagres, haveria certeza. Se não houvesse
regra para discernir, os milagres seriam inúteis e não haveria razão para
acreditar.
Ora, não há humanamente certeza humana, mas razão.
838 (671)
Os judeus que foram chamados para domar as nações e os reis foram
escravos do pecado e os cristãos cuja vocação foi servir e ser submissos
são os filhos livres.
839 (827)
Juízes 13. 23. Se o Senhor tivesse querido nos fazer morrer, não nos
teria mostrado todas essas coisas.

Ezequias, Senaquerib.
Jeremias, Ananias falso profeta morto no 7o mês. 3 Mac. 3. o templo
quase saqueado, socorrido milagrosamente.

2 Mac. 15.

3. Reis. 17. A viúva a Elias que havia ressuscitado a criança. Por isso
reconheço que tuas palavras são verdadeiras.

3. Reis. 18. Elias com os profetas de Baal.


Nunca na contenção do verdadeiro Deus, da verdade da religião
aconteceu milagre do lado do erro e não da verdade.

840 (843)
Não é aqui a terra da verdade; ela vagueia desconhecida por entre os
homens. Deus a encobriu com um véu que a deixa desconhecida
daqueles que não ouvem a sua voz; o lugar está aberto à blasfêmia e
mesmo sobre verdades ao menos bem aparentes. Se se publicam as
verdades do Evangelho, publicam-se contrárias, e obscurecem-se as
questões, de maneira que o povo não pode discernir. E pergunta-se: o
que tendes que faça acreditar em vós em vez de acreditar nos outros?
que sinal fazeis? Não tendes mais do que palavras e nós também. Se
tivésseis milagres, aí sim. É uma verdade que a doutrina deve ser
sustentada por milagres de que se abusa para blasfemar contra a
doutrina. E se os milagres acontecem, diz-se que milagres não bastam
sem a doutrina e é uma outra verdade para blasfemar contra os milagres.

Jesus Cristo curou o cego de nascença e fez grande número de


milagres no dia do sábado, cegando com isso os fariseus que diziam que
era preciso julgar dos milagres pela doutrina.
Nós temos Moisés, mas esse aí, não sabemos de onde é.
É isso que é admirável, vós não sabeis de onde ele é e no entanto ele
faz milagres.

Jesus Cristo não falava nem contra Deus, nem contra Moisés.
O Anticristo e os falsos profetas preditos por ambos os testamentos
falarão abertamente contra Deus e contra Jesus Cristo.
A quem não é contra, a quem seria inimigo encoberto, Deus não
permitiria que fizesse milagres abertamente.
Numa disputa pública em que os dois lados se dizem de Deus, de
Jesus Cristo, da Igreja, os milagres jamais estão do lado dos falsos
cristãos, e o outro lado sem milagre.

Ele está com o diabo. Jo. 10. 21. E os outros diziam: o diabo pode
abrir os olhos dos cegos?
As provas que Jesus Cristo e os apóstolos tiram das Escrituras não
são demonstrativas, pois eles dizem apenas que Moisés disse que um
profeta viria, mas não provam com isso que seja aquele, e aí está a
questão toda. Essas passagens não servem portanto senão para provar
que não se é contrário às Escrituras e que nela não aparece repugnância,
mas não que haja concordância. Ora, isso basta: exclusão de repugnância
antes dos milagres.
Existe um dever recíproco entre Deus e os homens. É preciso
perdoar esta palavra, quod debui8; “acusai-me”, diz Deus em Isaías.
1. Deus deve cumprir as suas promessas etc.
Os homens são devedores a Deus de receberem a religião que ele
lhes envia.
Deus é devedor aos homens de não os induzir em erro.
Ora, eles seriam induzidos em erro se os operadores (de) milagres
anunciassem uma doutrina que não se mostrasse visivelmente falsa à luz
do senso comum, e se um operador maior de milagres não tivesse
avisado que não acreditassem neles.
Assim, se houvesse divisão na Igreja e se os arianos, por exemplo,
que se dizem fundamentados nas Escrituras como os católicos, tivessem
feito milagres, e não os católicos, as pessoas estariam sendo induzidas
em erro.
Pois como um homem que nos anuncia os segredos de Deus não é
digno de que se acredite nele com base em sua autoridade privada, e é
por isso que os ímpios duvidam dele, assim um homem que, como sinal
da comunicação que tem com Deus, ressuscita os mortos, prediz o
futuro, transporta os mares, cura os doentes, não há ímpio que não se
renda a ele; e a incredulidade do faraó e dos fariseus é o efeito de um
endurecimento sobrenatural.

Quando se veem, pois, os milagres e a doutrina não suspeita juntos


do mesmo lado, não há dificuldade, mas quando se veem os milagres e a
doutrina suspeita do mesmo lado, então é preciso ver qual é o mais claro.
Jesus Cristo era suspeito.

Barjesus cegado. A força de Deus sobrepuja a de seus inimigos.

Os exorcistas judeus batidos pelos diabos dizendo: “Eu conheço


Jesus e Paulo, mas vós, quem sois?”

Os milagres são para a doutrina e não a doutrina para os milagres.

Se os milagres forem verdadeiros, poder-se-á persuadir de qualquer


doutrina? Não, pois isso não acontecerá.
Si angelus9.
Regra.
Deve-se julgar a doutrina pelos milagres, e julgar os milagres pela
doutrina.
Tudo isso é verdadeiro, mas não se contradiz.

Porque é preciso distinguir os tempos.

Como folgais em conhecer as regras gerais, pensando lançar com


isso a confusão e tornar tudo inútil! Sereis impedido de fazer isso, padre,
a verdade é una e firme.
É impossível, pelo dever de Deus, que um homem, escondendo a sua
má doutrina e só mostrando uma boa, e se dizendo conforme a Deus e à
Igreja, faça milagres para insinuar insensivelmente uma doutrina falsa e
sutil. Isso não pode acontecer.

E ainda menos que Deus, que conhece os corações, faça milagres a


favor desse indivíduo.
841 (829)
Jesus Cristo diz que as Escrituras dão testemunho dele, mas não
mostra em quê.

Mesmo as profecias não podiam provar Jesus Cristo durante a sua


vida; e assim não se teria sido culpado de não acreditar nele antes de sua
morte, se os milagres não tivessem bastado sem a doutrina; ora, aqueles
que não acreditavam nele ainda vivo eram pecadores, como ele próprio o
diz, e sem escusa. Portanto, era preciso que tivessem uma demonstração
à qual resistissem; ora, eles não tinham as Escrituras, mas somente os
milagres; portanto, estes bastam quando a doutrina não é contrária. E
deve-se acreditar.

Jo. 7. 40. Contestação entre os judeus como entre os cristãos hoje.


Uns acreditam em Jesus Cristo e outros não acreditam por causa das
profecias que diziam que ele devia nascer em Belém.
Deviam tomar mais cuidado e verificar se ele não era de lá; porque
os seus milagres eram convincentes; deviam assegurar-se melhor
daquelas pretensas contradições de sua doutrina com relação às
Escrituras; e essa obscuridade não os desculpava, mas os cegava.
Assim, aqueles que recusam acreditar nos milagres de hoje por uma
pretensa contradição quimérica não têm desculpa.
O povo que acreditava nele por causa dos milagres, os fariseus lhes
dizem: maldito é este povo que não conhece a lei. Mas acaso há um
príncipe ou um fariseu que acredite nele? pois sabemos que nenhum
profeta sai da Galiléia. Nicodemos respondeu: Nossa lei julga um
homem antes de o ter ouvido?

842 (588)
A nossa religião é sábia e louca; sábia porque é a mais culta e a mais
bem fundamentada em milagres, profecias etc.; louca porque não é tudo
isso que faz com que se esteja nela. Isso faz certamente condenar quem
não está nela, mas não faz acreditar quem está. O que faz acreditar é a
cruz – ne evacuata sit crux10.
E assim São Paulo, que veio em sabedoria e sinais, diz que não veio
nem em sabedoria nem em sinais, pois vinha para converter, mas aqueles
que vêm apenas para convencer podem dizer que vêm em sabedoria e
sinais.
843 (836)
Há uma grande diferença entre não estar com Jesus Cristo e dizê-lo;
e não estar com Jesus Cristo e fingir estar. Uns podem fazer milagres, os
outros não, pois está claro de uns que são contra a verdade, não dos
outros. E assim os milagres ficam mais claros.
844 (837)
É uma coisa tão clara que se deve amar a um só Deus que não são
necessários milagres para prová-lo.
845 (861)
Belo estado da Igreja quando ela já não é sustentada senão por Deus!

846 (808)
Jesus Cristo verificou que era o Messias, nunca verificando sua
doutrina sobre as Escrituras ou as profecias, e sempre por seus milagres.

Ele prova que redime os pecados por um milagre.

Não vos regozijeis por vossos milagres, disse Jesus Cristo, mas por
estarem os vossos nomes escritos nos céus.

Se não acreditam em Moisés, não acreditarão tampouco num


ressuscitado.

Nicodemos reconhece pelos milagres que a sua doutrina é de Deus.


Scimus quia venisti a deo magister, nemo enim potest facere quae tu
facis nisi deus fuerit cum illo11. Ele não julga os milagres pela doutrina,
mas a doutrina pelos milagres.

Os judeus tinham uma doutrina de Deus como temos uma de Jesus


Cristo. E confirmada por milagres, mas com proibição de acreditar em
todos os fazedores de milagres; e além disso, ordem de recorrer aos
sumos sacerdotes e de se ater a eles. E assim, todas as razões que temos
para recusar acreditar nos fazedores de milagres, eles as tinham com
relação aos seus profetas. E no entanto eram muito culpados de recusar
os profetas por causa de seus milagres e Jesus Cristo. E eles não seriam
culpados se não tivessem visto os milagres. Nisi fecissem peccatum non
haberent12.
Portanto, toda a crença está apoiada nos milagres.

A profecia não é chamada de milagre. Como São João fala do


primeiro milagre em Caná e depois daquilo que Jesus Cristo diz à
samaritana, desvendando toda a sua vida oculta, e depois cura o filho de
um senhor. E São João chama a isto o segundo sinal.
847 (893)
Ao se mostrar a verdade, faz-se com que acreditem nela, mas ao se
mostrar a injustiça dos mestres não se faz com que ela seja corrigida;
garante-se a consciência mostrando a falsidade, não se garante a bolsa
mostrando a injustiça.
848 (806)
Os milagres e a verdade são ambos necessários porque é preciso
convencer o homem inteiro em corpo e em alma.
849 (665)
A caridade não é um preceito figurativo. É horrível dizer que Jesus
Cristo, que veio retirar as figuras para colocar em seu lugar a verdade,
tenha vindo só para colocar a figura da caridade para retirar a realidade
que estava antes.
Se a luz é trevas, que serão as trevas?

850 (821)
Existe uma grande diferença entre tentar e induzir em erro. Deus
tenta mas não induz em erro. Tentar é provocar ocasiões que, não
impondo necessidade, se não se ama a Deus, se fará determinada coisa.
Induzir em erro é colocar o homem na necessidade de concluir e seguir
uma falsidade.
851 (842)
Si tu es Christus dic nobis.13
Opera quae ego facio in nomine patris mei.
Haec testimonium perhibent de me.
Sed vos non creditis, quia non estis ex ovibus meis.
Oves meae, vocem meam, audiunt.14
J. 6. 30, quod ergo tu facis signum, ut videamus et credamus tibi;
non dicunt quam doctrinam predicas15.

nemo potest facere signa, quae tu facis nisi deus fuerit cum illo.
2 Mac. 14. 15.
Deus qui signis evidentibus suam portionem protegit16. Volumus
signum videre de caelo tentantes eum17 – Luc. 11. 16.
Generatio prava signum quaerit, et non dabitur18.
Et ingemiscens ait, quid generatio ipsa signum quaerit19. 8. 12. ela
pedia sinal com má intenção. Et non poterat facere20. E no entanto ele
lhes promete o sinal de Jonas21, de sua ressurreição, o grande e o
incomparável.

Nisi videritis signa non creditis22. Não os recrimina por não crerem
sem que haja milagres, mas sem que sejam eles próprios os
espectadores.
O Anticristo. In signis mendacibus, diz São Paulo, 2 Tess. 2.
Secundum operationem satanae. In seductione iis qui pereunt eo
quod charitatem veritatis non receperunt ut salvi fierent. Ideo mittet illis
deus operationes erroris ut credant mendacio23. Como nesta passagem
de Moisés: tentat enim vos deus utrum diligatis eum24.

Ecce praedixi vobis vos ergo videte25.

852 (835)
No Antigo Testamento, quando vos desviarem de Deus; no Novo,
quando vos desviarem de Jesus Cristo.
Aí estão as ocasiões de exclusão conforme a fé dos milagres
indicadas; não se deve conceder-lhe outras exclusões.
Acaso daí decorre que tivessem o direito de excluir todos os profetas
que vieram a eles? Não. Teriam cometido pecado não excluindo aqueles
que negavam a Deus, e teriam cometido pecado excluindo aqueles que
não negavam a Deus.
Logo então que se vê um milagre, deve-se submeter-se a ele ou ter
estranhas marcas para fazer o contrário. É preciso ver se eles negam a
Deus, a Jesus Cristo ou à Igreja.
853 (192)
Recriminar a Miton por não se mexer quando Deus o recriminar.

854 (839)
Se não acreditais em mim, acreditai ao menos nos milagres. Ele os
remete como que ao mais forte.
Já fora dito aos judeus, assim como aos cristãos, que não
acreditassem sempre nos profetas; mas no entanto os fariseus e os
escribas fazem grande alarde de milagres dele, tentando mostrar que são
falsos ou feitos pelo diabo, pois seriam obrigados a ficar convencidos se
reconhecessem que eram de Deus.

Não precisamos hoje fazer esse tipo de discernimento; no entanto é


muito fácil de fazer. Aqueles que não negam nem a Deus nem a Jesus
Cristo não fazem milagres que não sejam seguros.

Nemo facit virtutem in nomine meo et cito possit de me male loqui26.


Mas não precisamos fazer esse discernimento. Eis uma religião
sagrada, eis um espinho da coroa do salvador do mundo sobre quem o
príncipe deste mundo não tem poder, que faz milagres pelo próprio
poder desse sangue derramado por nós. Eis que o próprio Deus escolhe
essa casa para nela fazer brilhar a sua potência.
Não são homens que fazem esses milagres por uma virtude
desconhecida e duvidosa que nos obrigue a um difícil discernimento. É
Deus mesmo, é o instrumento da paixão de seu filho único que, estando
em vários lugares, escolheu este e faz vir de todos os lados os homens
para aqui receber esses reconfortos miraculosos em seus langores.

855 (834)
Jo. 6. 26. non quia vidistis signum sed quia saturati estis27. Aqueles
que seguem Jesus Cristo por causa dos seus milagres honram o seu
poder em todos os milagres que este produz; mas os que, fazendo
profissão de segui-lo por seus milagres não o seguem, na verdade, senão
porque ele os consola e os cumula de bens deste mundo, estes desonram
os seus milagres quando são contrários às suas comodidades.

Jo. 9. non est hic homo a deo quia sabbatum non custodit. Alii:
quomodo potest homo peccator haec signa facere28. Qual é o mais
claro?
Esta casa é de Deus, porque ele faz nela estranhos milagres.
Os outros: esta casa não é de Deus, porque nela não se acredita que
as 5 proposições estejam em Jansênio. Qual é o mais claro? Tu quid
dicis, dico, quia propheta est, nisi esset hic a deo non poterat facere
quidquam29.

856 (828)
Contestações.
Abel, Caim / Moisés, mágicos / Elias, falsos profetas / Jeremias
Ananias. / Miqueias, falsos profetas / Jesus Cristo fariseus / São Paulo,
Barjesus. / apóstolos, exorcistas / Os cristãos e os infiéis / os católicos,
os hereges / Elias, Enoc, Anticristo /
O verdadeiro sempre prevalece em milagres. As duas cruzes.

857 (819)
Jer. 23. 32. os milagres dos falsos profetas, em hebreu e Vatable. Há
as leviandades.
Milagre nem sempre significa milagres. I. Reis. 14. 15. milagre
significa temor e assim é em hebreu. Igualmente em Jó, manifestamente,
33. 7. e também em Isaías, 21. 4. Jeremias, 44. 22.
Portentum significa simulachrum30. Jer. 50. 38. e assim é em hebreu
e Vatable.
Is. 8. 18. Jesus Cristo diz que ele e os seus estarão em milagres.
858 (840)
A Igreja tem três espécies de inimigos: os judeus, que nunca
pertenceram ao seu corpo; os hereges, que dele se retiraram; e os maus
cristãos, que a rasgam por dentro. Essas três espécies diferentes de
adversários a combatem geralmente de maneira diversa, mas neste caso
eles a combatem de um mesmo modo.
Como são todos sem milagres e como a Igreja sempre teve contra
eles os milagres, tiveram todos o mesmo interesse em eludi-los. E todos
se serviram da desculpa de que não se deve julgar da doutrina pelos
milagres, mas dos milagres pela doutrina. Havia dois partidos entre
aqueles que escutavam Jesus Cristo: uns que seguiam a sua doutrina
pelos milagres, outros que diziam… Havia dois partidos no tempo de
Calvino. Agora há os jesuítas etc.

SÉRIE XXXIV

859 (852)
Injustos perseguidores daqueles a quem Deus protege visivelmente.

Se eles vos recriminam pelos vossos excessos, falam como os


hereges.

Se dizem que a graça de Jesus Cristo nos discerne, são heréticos.

Se se fazem milagres, é a marca de sua heresia.

Ezequiel.
Diz-se: Eis o povo de Deus que fala assim.
Ezequias.
Reverendos Padres, tudo isso acontecia em figura. As outras
religiões perecem, esta não perece.
Os milagres são mais importantes do que pensais. Serviram para a
fundação e servirão para a continuação da Igreja até a vinda do
Anticristo, até o fim. As duas testemunhas.
A sinagoga era a figura e assim não perecia; e era apenas a figura, e
assim pereceu. Era uma figura que continha a verdade e assim subsistiu
até o momento em que já não teve mais a verdade.
Está dito: Crede na Igreja; mas não está dito: Crede nos milagres,
porque o último é natural e não o primeiro. Um tinha necessidade de
preceito, o outro não.

No Antigo Testamento e no Novo, os milagres são feitos pela ligação


das figuras31, salvação ou coisa inútil, senão para mostrar que é preciso
submeter-se às criaturas./ figura dos sacramentos.

860 (807)
Sempre ou os homens falaram do verdadeiro Deus, ou o verdadeiro
Deus falou aos homens.
861 (805)
Os dois fundamentos: um interior, outro exterior, a graça, os
milagres, ambos sobrenaturais.
862 (883)
Os infelizes que me obrigaram a falar sobre o fundamento da
religião.
863 (814)
Montaigne contra os milagres.

Montaigne a favor dos milagres.

864 (884)
Pecadores purificados sem penitência, justos santificados sem
caridade, todos os cristãos sem a graça de Jesus Cristo, Deus sem poder
sobre a vontade dos homens, uma predestinação sem mistério, uma
redenção sem certeza.
865 (832)
Os milagres não são mais necessários porque já os temos, mas
quando não se ouve mais a tradição, quando não se propõe nada além do
papa, quando ele foi surpreendido, e tendo assim excluído a verdadeira
fonte da verdade que é a tradição, e tendo prevenido o papa que dela é o
depositário, a verdade não tem mais liberdade de aparecer, então os
homens não falam mais da verdade. A própria verdade deve falar aos
homens. Foi o que aconteceu no tempo de Ário.
Milagres sob Diocleciano
e sob Ário.

866
Perpetuidade.
Vosso caráter está fundamentado em Escobar?

Talvez tenhais razões para não os condenar. Basta que aprendais o


que vos comunico a esse respeito.
867 (875)
Seria para o papa uma desonra receber as suas luzes de Deus e da
tradição? E não é desonra para ele separá-lo dessa santa união etc.?
868 (890)
Tertuliano: nunquam ecclesia reformabitur32.
869 (508)
Para fazer de um homem um santo é preciso por certo que seja a
graça e quem duvida disso não sabe nem o que é santo nem o que é
homem.
870 (845)
Os hereges sempre combateram essas três marcas que eles não têm.
871 (844 bis)
Perpetuidade – Molina – Novidade.
872 (813)
Milagres.
Como odeio aqueles que fingem duvidar dos milagres!
Montaigne fala a esse respeito como se deve nas duas passagens.
Numa se vê quanto ele é prudente e no entanto na outra ele acredita e
zomba dos incrédulos.

Seja como for, a Igreja fica sem prova se eles tiverem razão.
873 (824)
Ou Deus confundiu os falsos milagres ou ele os predisse. E por uma
e outra coisa ele se elevou acima do que é sobrenatural com relação a
nós, e elevou-nos também a nós.
874 (881)
A Igreja ensina e Deus inspira a um e a outro infalivelmente. A
operação da Igreja serve apenas para preparar para a graça, ou para a
condenação. O que ela faz basta para condenar, não para inspirar.
875 (820)
Omne regnum divisum, pois Jesus Cristo agia contra o diabo e
destruía seu império sobre os corações cujo exorcismo é a figuração para
estabelecer o reino de Deus, e assim acrescenta: in digito dei… regnum
dei ad vos33.
Se o diabo favorecesse a doutrina que o destrói, ele estaria dividido,
como diz Jesus Cristo.
Se Deus favorecesse a doutrina que destrói a Igreja, ele estaria
dividido.
876 (300)
Quando o forte armado possui o seu bem, o que ele possui está em
paz.

877 (849)
Est et non est34: será tão bem recebido na própria fé como na moral,
se é tão inseparável nos atos?

Quando São Xavier faz milagres.

Juízes injustos, não façais dessas leis na hora; julgai por aquelas que
já estão estabelecidas, e estabelecidas por vós mesmos.

Vae qui conditis leges iniquas35.


Para enfraquecer os vossos adversários, desarmais toda a Igreja.
Vae qui conditis.
Santo Hilário, miseráveis que nos obrigais a falar de milagres.
Milagres contínuos falsos.
Se dizem que estão submetidos ao papa é uma hipocrisia.
Se estão prontos para subscrever todas as constituições, isso não
basta.
Se dizem que nossa salvação depende de Deus, são hereges.
Se dizem que não se deve matar por uma maçã, combatem a moral
dos católicos.
Se se fazem milagres entre eles, não é um sinal de santidade, mas é,
ao contrário, uma suspeita de heresia.
A maneira como a Igreja subsistiu foi porque a verdade não foi
contestada; ou, se foi contestada, houve o papa, ou senão houve a Igreja.
878 (846)
1a Objeção. Anjo do céu.
Não se deve julgar da verdade pelos milagres, mas do milagre pela
verdade.
Portanto, os milagres são inúteis.
Ora, eles servem, e não se deve estar contra a verdade.
Portanto, o que disse o padre Lingendes, que Deus não permitirá que
um milagre possa induzir em erro…
Quando houver contestações na própria Igreja o milagre decide.

2a Objeção.
Mas o Anticristo fará sinais.
Os mágicos do faraó não induziam em erro.
Assim não se poderá dizer a Jesus Cristo sobre o Anticristo: Vós me
induzistes em erro, pois o Anticristo os fará ainda contra Jesus Cristo, e
assim eles não podem induzir em erro.
Ou Deus não permitirá falsos milagres, ou ele oferecerá maiores.

(Desde o início do mundo Jesus Cristo subsiste, isso é mais forte do


que todos os milagres do Anticristo.)
Se na própria Igreja acontecessem milagres do lado dos que estão
extraviados, estar-se-ia sendo induzido em erro.
O cisma é visível, o milagre é visível, mas o cisma é mais marca de
erro do que o milagre é marca de verdade; portanto o milagre não pode
induzir em erro.

Mas fora do cisma o erro não é tão visível, quanto o milagre é


visível, portanto o milagre induziria em erro.

Ubi est deus tuus36. Os milagres o mostram e são um clarão.


879 (138)
Homens naturalmente telhadores e de todas as vocações, a não ser
em casa.

880 (831)
As 5 proposições eram equívocas, não são mais.

881 (850)
As 5 proposições condenadas, sem milagre. Porque a verdade não
estava sendo atacada, mas a Sorbonne, mas a bula.

É impossível que aqueles que amam a Deus de todo o coração não


reconheçam a Igreja, de tão evidente que ela é.
É impossível que aqueles que não amam a Deus sejam convencidos
pela Igreja.

Os milagres têm tamanha força que foi preciso que Deus avisasse
para não se pensar contra ele, por mais claro que seja que existe um
Deus.
Sem o que eles seriam capazes de perturbar.
E também longe de essas passagens, Deut. 13, deporem contra a
autoridade dos milagres, nada indica mais a sua força.
E o mesmo se dá com relação ao Anticristo, a ponto de seduzir os
eleitos se isso fosse possível.
882 (222)
Ateus.
Que razão têm eles para dizer que não se pode ressuscitar? Que é
mais difícil, nascer ou ressuscitar? que aquilo que nunca foi seja, ou que
aquilo que já foi seja de novo? Será mais difícil vir a ser do que voltar a
ser? O costume nos torna uma dessas coisas fácil, a falta de costume
torna a outra impossível.
Popular jeito de julgar.

Por que uma virgem não pode dar à luz? Uma galinha não põe ovos
sem galo? O que é que, no exterior, distingue uns dos outros? E quem
nos diz que a galinha não pode nele formar o germe tanto quanto o galo?
883 (946)
Existe tanta desproporção entre o mérito que ele acredita ter e a
tolice que não se pode crer que erre tanto na avaliação.
884 (860)
Depois de tantos sinais de piedade eles têm ainda a perseguição que
é a melhor das marcas da piedade.
885 (936)
É bom que eles pratiquem injustiças, para que não pareça que os
molinistas agiram com justiça, e assim não se deve poupá-los. Eles são
dignos de cometê-las.
886 (51)
Pirrônico por obstinado.
887 (78)
Descartes inútil e incerto.
888 (52)
Ninguém diz cortesão a não ser aqueles que não o são, pedante senão
um pedante, provincial senão um provincial, e apostaria que foi o
tipógrafo que o colocou no título das cartas ao provincial.
889 (165)
Pensamentos.
In omnibus requiem quaesivi37.
Se nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não precisaríamos
desviar dela o pensamento para ficarmos felizes.
890 (436 bis)
Todas as ocupações dos homens são para ter algum bem e eles não
têm nem título para o possuir justamente, nem força para o possuir
seguramente. Assim também a ciência, os prazeres: não temos nem a
verdade nem o bem.
891 (804)
Milagre.
É um efeito que excede a força natural dos meios que se empregam.
E não-milagre é um efeito que não excede a força natural dos meios que
se empregam. Assim, aqueles que curam pela invocação do diabo não
fazem um milagre. Pois isso não excede a força natural do diabo; mas…

892 (822)
Abraão, Gedeão: sinal acima da revelação. Os judeus se cegavam ao
julgar os milagres pelas Escrituras.
Deus nunca abandonou os seus verdadeiros adoradores.
Prefiro seguir Jesus Cristo a qualquer outro porque ele tem o
milagre, a profecia, a doutrina, a perpetuidade etc.
Donatistas, nenhum milagre que obrigue a dizer que é o diabo.
Quanto mais se particulariza Deus, Jesus Cristo, a Igreja.

893 (573)
Cegueira das Escrituras.
As Escrituras, diziam os judeus, dizem que não se sabe de onde virá
o Cristo. João 7. 27 e 21. 34. As Escrituras dizem que o Cristo
permanece eternamente e este diz que morrerá. Assim, diz São João, eles
não acreditavam, embora ele tivesse feito tantos milagres, a fim de que a
palavra de Isaías fosse cumprida: Ele os cegou etc.

894 (844)
As três marcas da religião: a perpetuidade, a vida no bem, os
milagres.
Eles destroem a perpetuidade pela probabilidade, a vida no bem por
sua moral, os milagres destruindo a sua verdade ou sua consequência.
A dar-lhes crédito, a Igreja nada terá a fazer com perpetuidade,
santidade nem milagres.
Os hereges os negam, ou negam a sua consequência, eles também,
mas seria preciso não ter sinceridade para negá-los, ou ainda perder o
senso para negar a consequência.
895 (285)
A religião está proporcionada a toda espécie de espíritos. Os
primeiros param no estabelecimento38 apenas, e essa religião é tal que
apenas o seu estabelecimento já basta para provar a sua verdade. Outros
vão até os apóstolos; os mais instruídos vão até o começo do mundo. Os
anjos a veem ainda melhor e de mais longe.
896 (390)
Meu Deus, como são tolos esses discursos! Teria Deus feito o mundo
para condená-lo? Pediria tanto de pessoas tão fracas etc. O pirronismo é
o remédio para esse mal e abaterá essa vaidade.
897 (533)
Comminuentes cor39. São Paulo. Eis aí o caráter cristão. Alba vos
nomeou, eu não mais vos conheço. Corneille. Eis aí o caráter inumano.
O caráter humano é o contrário.
898 (933)
Aqueles que escreveram isso em latim falam em francês.
Tendo sido feito o mal de colocá-los em francês, era preciso fazer o
bem de os condenar.

Há uma só heresia que se explica diferentemente na Escola e no


mundo.

899 (844)
Nunca ninguém se deixou martirizar pelos milagres que diz ter visto,
pois aqueles em que os turcos acreditam por tradição, a loucura dos
homens vai talvez até o martírio, mas não por aqueles que se viram.
900 (887)
Os jansenistas se parecem com os hereges pela reforma dos
costumes, mas vós vos pareceis com eles no mal.
901 (841)
Os milagres fazem a distinção entre as coisas duvidosas: entre os
povos judeu e pagão, judeu e cristão, católico (e) herético, caluniados e
caluniadores, entre as duas cruzes.
Mas aos hereges os milagres seriam inúteis, pois a Igreja, autorizada
pelos milagres que preocuparam a crença, diz-nos que eles não têm a
verdadeira fé. Não há dúvida de que não a têm, visto que os primeiros
milagres da Igreja excluem a fé dos deles. Há assim milagre contra
milagre, e primeiros e maiores do lado da Igreja.
902 (841)
Essas meninas espantadas com o fato de se lhes dizer que estão na
via da perdição40, que os seus confessores as conduzem para Genebra41,
que eles lhes insinuam que Jesus Cristo não está na Eucaristia, nem à
direita do Pai. Elas sabem que tudo isso é falso; oferecem-se pois a Deus
nesse estado: Vide si via iniquitatis in me est42. Que acontece então?
Esse lugar que me dizem ser o templo do diabo, Deus faz dele o seu
templo. Dizem que é preciso tirar dali as crianças, Deus ali as cura.
Dizem que é o arsenal do inferno, Deus faz dele o santuário de suas
graças. Finalmente ameaçam-no com todos os furores e com todas as
vinganças do céu e Deus o cumula com seus favores. Seria necessário ter
perdido o senso para concluir daí que elas estão na via da perdição.
Têm-se sem dúvida as mesmas marcas que Santo Atanásio.

903 (851)
A história do cego de nascença.
Que diz São Paulo? fala das profecias a toda hora? não, mas o seu
milagre.

Que diz Jesus Cristo? fala das profecias? não, a sua morte não as
tinha cumprido, mas ele diz: si non fecissem, acreditai nas obras.
Dois fundamentos sobrenaturais de nossa religião toda sobrenatural,
um visível, outro invisível.
Milagres com a graça, milagres sem a graça.
A sinagoga, que foi tratada com amor como figura da Igreja e com
ódio porque era apenas a sua figura, foi reerguida quando estava prestes
a sucumbir, quando estava bem com Deus, e assim figura.

Os milagres provam o poder que Deus tem sobre os corações pelo


poder que exerce sobre os corpos.

Jamais a Igreja aprovou um milagre entre os hereges.

Os milagres, apoio da religião. Eles distinguiram os judeus.


Distinguiram os cristãos, os santos, os inocentes, os verdadeiros crentes.

Um milagre entre os cismáticos não é tanto para temer, porque o


cisma, que é mais visível do que o milagre, marca visivelmente seu erro,
mas, quando não há cisma e o erro está em causa, o milagre discerne.

Si non fecissem quae alius non fecit43.

Aqueles infelizes que nos obrigaram a falar dos milagres.

Abraão, Gedeão.
Confirmar a fé por milagres.

Judite, enfim Deus fala nas últimas opressões.

Se o resfriamento da caridade deixa a Igreja quase sem verdadeiros


adoradores, os milagres os excitarão.

São os últimos efeitos da graça.

Se se fizesse um milagre entre os jesuítas.

Quando o milagre frustra a expectativa daqueles em cuja presença


acontece e existe desproporção entre o estado de sua fé e o instrumento
do milagre, então ele deve levá-los a mudar, mas… etc. Se assim não
fosse, haveria igual razão para se dizer que, se a Eucaristia ressuscitasse
um morto, seria preciso tornar-se antes calvinista do que permanecer
católico; mas quando ele vem coroar a expectativa e aqueles que
esperaram que Deus abençoasse os remédios se veem curados sem
remédios…

Ímpios.
Nunca um sinal aconteceu da parte do diabo sem que acontecesse um
sinal mais forte da parte de Deus, ou ao menos sem que tivesse sido
predito que isso aconteceria.

904 (927)
A louca ideia de que tendes a respeito da importância de vossa
companhia vos fez estabelecer essas vias horríveis. É muito visível que
foi o que vos vez seguir a via da calúnia, pois que censurais em mim
como horríveis as menores imposturas que desculpais em vós, porque
me olhais como a um particular e a vós como Imago.

Parece bem que vossos louvores são loucuras para as fábulas, como
o privilégio de não danado.

Será dar coragem aos vossos filhos condená-los quando servem à


Igreja?

É um artifício do diabo desviar para outra parte as armas com que


aquela gente combatia as heresias.

Sois maus políticos.

905 (385)
Pirronismo.
Cada coisa aqui é verdadeira em parte, falsa em parte. A verdade
essencial não é assim, é toda pura e toda verdadeira. Essa mistura a
destrói e aniquila. Nada é puramente verdadeiro e assim nada é
verdadeiro entendendo-o como pura verdade. Dirão que é verdade que o
homicídio é mau: sim, pois conhecemos bem o mal e a falsidade. Mas o
que se dirá que seja bom? A castidade? Eu digo que não, pois o mundo
acabaria. O casamento? Não, a continência é melhor. Não matar? Não,
pois as desordens seriam horríveis e
os maus matariam todos os bons. Matar? Não, pois isso destrói a
natureza. Não temos verdade nem bem senão em parte e mesclada de
mal e de falsidade.
906 (916)
Probabilidade.
Eles têm alguns princípios verdadeiros, mas abusam deles; ora, o
abuso das verdades deve ser punido tanto quanto a introdução da
mentira.
Como se houvesse dois infernos, um para os pecados contra a
caridade, outro contra a justiça.
907 (55)
Virtude aperitiva com uma chave, atrativa com um gancho44.
908 (262)
Superstição e concupiscência.
Escrúpulos, desejos maus.
Temor mau.
Temor, não aquele que vem de se crer em Deus, mas aquele de se
duvidar se ele existe ou não. O bom temor vem da fé, o falso temor vem
da dúvida; o bom temor vem junto com a esperança, porque nasce da fé
e se espera no Deus em quem se crê; o mau temor vem junto com o
desespero porque se teme o Deus em quem não se teve fé. Uns temem
perdê-lo; outros, encontrá-lo.
909 (924)
Pessoas sem palavras, sem fé, sem honra, sem verdade, dúplices de
coração, dúplices de língua e semelhantes, como antes vos foi
recriminado, àquele animal anfíbio da fábula que se mantinha num
estado ambíguo entre os peixes e os pássaros.
Port-Royal não vale menos que Voltigerod.
Tanto vosso procedimento é justo segundo esse viés, quanto é injusto
se se considera a piedade cristã.
Importa aos reis e príncipes estarem em estima de piedade e para isso
é preciso que se confessem a vós.
910 (781)
As figuras da totalidade da redenção, como a de que o sol clareia a
todos, indicam apenas uma totalidade, mas as figuras das exclusões,
como dos judeus eleitos com exclusão dos gentios, indicam a exclusão.
911 (781)
Jesus Cristo redentor de todos. Sim, porque ofereceu como um
homem que resgatou todos aqueles que quiserem vir a ele. Quanto
àqueles que morrerão a caminho, desgraça deles; mas quanto a ele,
ofereceu-lhes redenção.
Isso é válido num exemplo em que quem resgata e quem impede de
morrer são dois, mas não em Jesus Cristo que faz um e outro. Não, pois
Jesus Cristo, na qualidade de redentor, não é talvez senhor de todos, e
assim, enquanto está nele, é redentor de todos.
912 (781)
Quando se diz que Jesus Cristo não morreu para todos, abusais de
um vício dos homens que aplicam a si incontinenti essa exceção, o que é
favorecer o desespero em lugar de afastá-los dele para favorecer a
esperança.
Porque as pessoas se acostumam assim com as virtudes interiores por
esses hábitos exteriores.

1. Inserção do tradutor.
2. Jo. XII, 37-40: “Ainda que tivesse feito tantos milagres em sua presença,
não acreditavam nele, a fim de que se cumprisse a palavra do profeta (Isaías),
aquela que ele disse: Senhor, quem acreditou (no mensageiro) que fazemos
ouvir? e a quem o braço do Senhor foi revelado? – Eis por que eles não podiam
acreditar, pois Isaías disse também: Ele cegou os seus olhos e endureceu os seus
corações; temendo que vissem com os olhos e compreendessem com o coração, e
que se convertessem e que eu os curasse.”
3. Jo. XII, 41: “Isaías disse isso quando viu a sua glória e falou dele.”
4. I Cor. I, 22-23: “Pois os judeus pedem milagres e os gregos buscam a
sabedoria; e quanto a nós, pregamos o Cristo crucificado…”
5. Cf. Pascal que acrescenta: “Mas cheio de sinais, mas cheio de sabedoria. E
vós, um Cristo não crucificado e uma religião sem milagres e sem sabedoria.”
6. Jo. X, 26: “Mas vós não acreditais: pois não sois das minhas ovelhas.”
7. Jo. I, 47: “Jesus viu vir a ele Natanael, e disse dele: eis verdadeiramente um
israelita em quem não há artifício.” – VIII, 36: “… se pois o Filho vos põe em
liberdade, estareis verdadeiramente livres.” – VI, 32: “… mas meu Pai é quem
vos dá o verdadeiro pão do céu.”
8. Is. V. 4: “Que mais deveria eu ter feito para a minha vinha que não fiz…?”
9. Gal. I, 8: “Quando um anjo descido do céu vos anunciasse um outro
Evangelho que não aquele que anunciamos, que seja anátema.”
10. “Para que a cruz não seja vã.”
11. Jo. III, 2: “Nicodemos veio ter com Jesus à noite e lhe disse: Mestre,
sabemos que vieste de Deus para ensinar: pois ninguém poderia fazer os
prodígios que fazes se Deus não estivesse com ele.”
12. Jo. XV, 24: “Se eu não tivesse feito entre eles as obras que nenhum outro
fez, não teriam nenhum pecado; mas agora, não só eles as viram, mas odiaram
tanto a mim quanto ao meu Pai.”
13. Jo. X, 24: “Os judeus então o cercaram e lhe disseram: Até quando
manterás nosso espírito em expectativa? Se és o Cristo, dize-nos abertamente.”
14. Jo. X, 25-27: “Respondeu-lhes Jesus: Falo-vos e não me credes: as obras
que faço em nome de meu Pai dão testemunho de mim, mas não me credes,
porque não sois das minhas ovelhas. Minhas ovelhas escutam a minha voz: eu as
conheço e elas me seguem.”
15. Jo. VI, 30: “Eles replicaram-lhe: Que milagre fazes então para que
vejamos e creiamos em ti? que fazes?” – Pascal acrescenta: “Eles não dizem:
Que doutrina pregas? ”
16. II Mac. XIV, 15: “… Eles (os judeus) rogavam àquele que constituiu o
seu povo, a fim de conservá-lo eternamente, e que protege a sua herança
mediante milagres extraordinários.”
17. Lc. II, 16: “(Os judeus disseram) para tentá-lo: Queremos ver um sinal do
céu.”
18. Mat. XII, 39: “Respondendo disse-lhes Jesus: uma geração má e adúltera
pede um milagre, e outro milagre não lhe será dado senão o do profeta Jonas.”
19. Mc. VIII, 12: “Mas gemendo no fundo do coração disse: Por que esta
geração pede um prodígio? Em verdade, digo-vos, não será concedido prodígio a
esta geração.”
20. Mc. VI, 5: “E ele não pôde fazer ali (em sua terra) nenhum milagre, a não
ser curar alguns doentes impondo-lhes as mãos.”
21. Cf. Mat. XII, 40: “Pois como Jonas ficou três dias e três noites no ventre
do peixe, assim o Filho do homem ficará no seio da terra três dias e três noites.”
22. Jo. IV, 48: “Jesus disse então: Se não vedes milagres e prodígios não
acreditais.”
23. II Tess. 9-10: “Ele virá por obra de Satanás, no meio de toda espécie de
milagres, de sinais e de prodígios mentirosos, e com toda sedução de iniquidade
para aqueles que perecem, porque não receberam o amor da verdade a fim de
serem salvos. Eis por que Deus lhes enviará uma operação de erro, de modo que
acreditarão na mentira…”
24. Deut. XIII, 3, cf. 854.
25. Mat. XXIV, 25: “Eis que eu vo-lo predisse…” – 33: “… quando virdes
todas estas coisas…”
26. Mc. IX, 38: “E Jesus disse: Não o impeçais; pois não há ninguém que
faça virtude por meu nome, que de repente possa falar mal de mim.”
27. Jo. VI, 26: “Respondeu-lhes Jesus e disse: Em verdade, em verdade, vos
digo, vós me procurais, não porque vistes milagres, mas porque comestes dos
pães e vos fartastes.”
28. Jo. IX, 16: “Alguns dentre os fariseus diziam então: Esse homem não é de
Deus pois que não guarda o sábado. Mas outros diziam: Como pode um pecador
fazer tais milagres? – E havia divisão entre eles.”
29. Jo. IX, 17: “Então disseram ainda ao cego: E tu, que dizes desse que te
abriu os olhos? Digo que é um profeta.” – 33: “Se ele não fosse de Deus, não
poderia fazer coisa alguma.”
30. Cf. Is. VIII, 18: “Eis-me aqui, eu e os filhos que o Senhor me deu para ser
um sinal (miraculum) e um presságio (portentum) em Israel.”
31. Os milagres figuram a graça (Cf. Ed. Brunschvicg).
32. “Nunca a Igreja será reformada.”
33. Cf. Lc. XI, 14-20: “Ora ele expulsava um demônio e esse demônio era
mudo; uma vez expulso o demônio, o mudo falou e o povo ficou admirado. –
Mas alguns dentre eles disseram: É por Beelzebu, príncipe dos demônios, que ele
expulsa os demônios. – E outros, para tentá-lo, pediam um prodígio no céu. –
Mas tendo Jesus visto os seus pensamentos, disse-lhes: Todo reino dividido
contra si mesmo ficará desolado, e a casa cairá sobre a casa. Pois se Satã está
dividido contra si mesmo, como subsistirá o seu reino? porque dizeis que é por
Beelzebu que eu expulso os demônios. – E eu, se expulso os demônios por
Beelzebu, por quem os expulsam os vossos filhos? Eis por que eles mesmos serão
os vossos juízes. – Mas se é pelo dedo de Deus que expulso os demônios, é que o
reino de Deus chegou até vós.”
34. Cf. Sommaire de la Harangue de MM. les Curés de Paris contra os
casuístas que decretavam: isso é e não é; é permitido e não é etc., “como se a
escola de Jesus Cristo de repente se tivesse tornado uma escola de pirrônicos“.
35. Is. X, 1: “Ai daqueles que instituem leis iníquas…”
36. Sl. XLI, 4: “As minhas lágrimas serviram-me de pães no dia e na noite:
enquanto me dizem todos os dias: onde está o teu Deus? ”
37. Cf. Eclesiástico XXIV, 11: “E em todas as coisas busquei repouso.”
38. Estabelecimento, isto é, a origem, a fundação, a constituição da Igreja
cristã. (N. do T.)
39. Sl. LI, 19: “… Não desdenhareis, ó Deus, um coração contrito e
humilhado.”
40. Referência às objeções dos jesuítas a Port-Royal, especificamente à escola
para moças mantida pelos jansenistas (N. do T.)
41. Referência ao calvinismo originário de Genebra, que se manteve durante
muito tempo como o centro irradiador da doutrina de Calvino. (N. do T.)
42. Sl. CXXXVIII, 24: “E vede se um caminho de iniquidade está em mim…”
43. Jo. XV, 24: “Se eu não tivesse feito entre eles as obras que nenhum outro
fez…”
44. “Vertu apéritive d’une clef, attractive d’un croc.” Pascal usou aqui os
adjetivos “apéritive” e “attractive” no seu valor etimológico (“que abre” e “que
atrai”, respectivamente), o que causa estranheza por estarem qualificando
“vertu”. Na tradução foram usadas as formas etimologicamente paralelas a fim de
manter a estranheza. (N. do T.)
QUARTA SEÇÃO

Fragmentos não registrados pela cópia


I. A COLETÂNEA ORIGINAL

O memorial
No terceiro manuscrito Guerrier, B. N. f. fr. 13913 (pp. 213/214), a
seguinte anotação acompanha a cópia do Memorial: foi redigida pelo
padre Guerrier em 1732:
“Poucos dias após a morte do Sr. Pascal, um serviçal da casa notou,
por mero acaso, que no forro do gibão do ilustre defunto havia algo que
parecia mais espesso do que o resto e, tendo descosido essa parte para
ver o que era, encontrou um pequeno pergaminho dobrado e escrito do
próprio punho do Sr. Pascal e, nesse pergaminho, um papel escrito do
mesmo punho: um era a cópia fiel do outro. Essas duas peças foram
logo levadas às mãos da Sra. Périer, que as mostrou a vários de seus
amigos particulares. Todos convieram que não se podia duvidar de que
esse pergaminho, escrito com tanto cuidado e com caracteres tão
notáveis, fosse uma espécie de Memorial que ele guardava muito
cuidadosamente para conservar a lembrança de uma coisa que queria
ter sempre presente diante dos olhos e na mente, pois que há oito anos
vinha tomando o cuidado de cosê-lo e descosê-lo à medida que trocava
de roupas.”
O Memorial foi publicado na Coletânea de Utrecht (1740).

913
No ano da graça de 1654.
Segunda-feira, 23 de novembro, dia de São Clemente, papa e mártir,
e outros no Martirológio.
Véspera de São Crisógono, mártir, e outros.
Desde cerca de dez e meia da noite até por volta de meia-noite e
meia.
Fogo.
Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e
dos sábios.
Certeza, certeza, sentimento, alegria, paz.
(Deus de Jesus Cristo)
Deus de Jesus Cristo.
Deum meum et deum vestrum1.
Teu Deus será meu Deus.
Esquecimento do mundo e de tudo, menos de Deus.
Ele só se encontra pelas vias ensinadas no Evangelho.
Grandeza da alma humana.
Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci.
Alegria, alegria, alegria, prantos de alegria.
Apartei-me dele.
Dereliquerunt me fontem aquae vivae2.
Meu Deus, me abandonareis vós.
Não fique eu separado dele eternamente.
Esta é a vida eterna, que te conheçam como só e verdadeiro Deus e
aquele que enviaste, Jesus Cristo.
Jesus Cristo.
Jesus Cristo.
Separei-me dele, fugi dele, renunciei, crucifiquei.
Nunca seja eu separado dele.
Ele só se conserva pelas vias ensinadas no Evangelho. Renúncia total
e suave.
Etc.
Submissão total a Jesus Cristo e a meu diretor.
Eternamente em alegria para um dia de exercício na terra.
Non obliviscar sermones tuos3. Amen.
A coletânea original
Foi feita em Clermont, por iniciativa do cônego Louis Périer, em
1710/1711. Foi colocada, em brochura, na abadia de Saint-Germain-
des-Prés no dia 25 de setembro de 1711, e encadernada depois de 1731.
Está na Biblioteca Nacional desde 1795.
Graças a ela, conhecemos tanto os papéis que Gilberte Périer não
havia julgado oportuno entregar aos copistas (cf. Pensamentos
anexados), como os rascunhos das Provinciais, e alguns esquecidos pelo
copista4.

914 (882)
Todas as vezes que os jesuítas surpreenderem o papa, a cristandade
toda será feita perjura.

É muito fácil surpreender o papa devido aos seus afazeres e à


confiança que ele tem nos jesuítas, e os jesuítas são muito capazes de
surpreender por causa da calúnia.

915 (902 bis)


Quanto ao rumor dos Feuillants5, eu fui vê-lo, diz meu antigo amigo;
falando da devoção, achou que eu tinha algo desse sentimento.
E que eu até poderia ser Feuillant.
E que eu poderia fazer proveito escrevendo, principalmente nestes
tempos, contra os inovadores.
Desde então fizemos pouco contra o nosso capítulo geral, que é pela
assinatura da bula.
Que fazia votos por que Deus me inspirasse.

Padre, seria preciso assinar?

916 (920)
3. Se não renunciam à probabilidade, suas boas máximas são tão
pouco santas quanto as más, pois elas estão fundamentadas na
autoridade humana. E assim, se forem mais justas, serão mais razoáveis,
mas não mais santas – elas dependem da haste selvagem à qual estão
enxertadas.
Se o que digo não serve para vos esclarecer, servirá para o povo6.

Se aqueles se calarem, as pedras falarão.


O silêncio é a maior perseguição. Jamais os santos se calaram. É
verdade que é necessária a vocação, mas não é através das decisões do
Conselho7 que se deve ficar sabendo se se foi chamado, e sim através da
necessidade de falar. Ora, depois que Roma falou e que se pensa que ele
condenou a verdade8, e que eles escreveram, e os livros que disseram o
contrário estão censurados, é preciso clamar tanto mais alto quanto mais
injustamente se é censurado e quanto mais violentamente se quer sufocar
a palavra, até que venha um papa que ouça as duas partes e que consulte
a antiguidade para fazer justiça.

Assim os bons papas encontrarão ainda a Igreja em clamores.

A Inquisição e a Sociedade9, dois flagelos da verdade.

Por que não os acusais de arianismo, pois disseram que Jesus Cristo
é Deus; talvez eles o entendam não por natureza como está dito: dii
estis10.

Se minhas cartas são condenadas em Roma, aquilo que eu nelas


condeno é condenado no céu.

Ad tuum domine Jesu tribunal appello11.

Vós próprios sois corruptíveis.

Temi que tivesse escrito mal ao ver-me condenado, mas o exemplo


de tantos piedosos escritos faz-me acreditar no contrário. Não é mais
permitido escrever bem.

Tão corrupta ou ignorante é a Inquisição.

É melhor obedecer a Deus do que aos homens.


Não temo nada, não espero nada. Os bispos não são assim. Port-
Royal teme, e é uma má política separá-los. Porque não temerão mais e
se farão temer mais.

Não temo nem mesmo as vossas censuras; palavras, se elas não estão
fundamentadas nas da tradição.

Censurais tudo? Como, até o meu respeito? Não, dizei então o quê,
ou não fareis nada se não designais o mal, e por que ele é mal. E é isso
que eles terão muita dificuldade para fazer.
Probab.
Eles explicaram de maneira engraçada a segurança, pois, depois de
ter estabelecido que todas as suas vias são seguras, não mais chamaram
de seguro aquilo que conduz ao céu, sem perigo de não chegar a ele por
esse meio, mas aquilo que conduz a ele sem perigo de sair dessa via.
917 (540)
A esperança que os cristãos têm de possuir um bem infinito é
mesclada de gozo efetivo tanto quanto de temor, porque não é como
aqueles que esperassem um reino do qual nada tivessem sendo súditos,
mas esperam a santidade, a isenção da injustiça, e disso eles têm alguma
coisa.

918 (459)
Os rios de Babilônia correm e caem, e arrastam.

Ó Santa Sião, onde tudo é estável e nada cai!


É preciso sentar-se sobre esses rios, não sob ou dentro, mas em cima,
e não de pé, mas sentado, para ser humilde estando sentado, e em
segurança estando em cima, mas ficaremos de pé nos pórticos de
Jerusalém.
Veja-se se esse prazer é estável ou corrediço; se ele passa, é um rio
de Babilônia.
O mistério de Jesus
Esta meditação, redigida provavelmente por Pascal no início de
1655, talvez quando de sua estada em Port-Royal des Champs, não fora
comunicada aos copistas.
Foi publicada por Faugère em 1844.

919 (553)
Jesus sofre na paixão os tormentos que lhe infligem os homens, mas
na agonia sofre os tormentos que se inflige a si mesmo. Turbare
semetipsum12. É um suplício vindo de mão não humana mas todo-
poderosa, e é necessário ser todo-poderoso para suportá-lo.

Jesus procura algum consolo pelo menos em seus três amigos mais
caros e eles estão dormindo; pede-lhes que velem um pouco com ele, e
eles o deixam com uma total negligência, tendo tão pouca compaixão
que esta nem podia impedi-los por um momento de dormir. E assim
Jesus estava sozinho e abandonado à cólera de Deus.

Jesus é o único na terra que não somente sente e partilha a sua dor,
mas que a sabe. O céu e ele estão sós nesse conhecimento.

Jesus está num horto, não de delícias como o primeiro Adão, onde
este se perdeu e a todo o gênero humano, mas de suplícios, onde ele se
salvou e a todo o gênero humano.

Ele sofre essa dor e esse abandono no horror da noite.

Creio que Jesus nunca se queixou, a não ser essa única vez. Mas
então ele se queixa como se não mais pudesse suportar sua dor
excessiva. Minha alma está triste até à morte.

Jesus procura companhia e alívio da parte dos homens.

Isso é único em toda a sua vida, parece-me, mas nada recebe, pois os
discípulos estão dormindo.

Jesus ficará em agonia até o fim do mundo. Não se deve dormir


durante esse tempo.
Jesus em meio a esse abandono universal e dos amigos escolhidos
para velar com ele, ao encontrá-los dormindo, zanga-se por causa do
perigo a que expõem não a ele, mas a si mesmos e os adverte sobre sua
salvação e seu bem com uma ternura cordial por eles enquanto
manifestam ingratidão. E adverte-os de que o espírito é pronto e a carne
fraca.

Jesus os encontra ainda dormindo sem que nem a sua consideração


nem a deles os tivesse impedido; tem a bondade de não os acordar e os
deixa em seu repouso.

Jesus ora na incerteza da vontade do Pai e teme a morte. Mas, tendo-


a conhecido, vai à frente oferecer-se a ela. Eamus processit13.

Jesus pediu aos homens e não foi atendido.

Jesus, enquanto os discípulos dormiam, operou a sua salvação. Fez


deles justos enquanto dormiam, quer no nada de antes de seu
nascimento, quer nos pecados desde o seu nascimento.

Só pede uma vez que o cálice seja afastado, e mesmo assim com
submissão, e duas vezes que ele venha se for necessário.

Jesus no tédio.

Jesus vendo todos os seus amigos dormindo e todos os seus inimigos


vigilantes se entrega inteiramente ao Pai.

Jesus não olha em Judas a sua inimizade, mas a ordem de Deus que
ele ama, e a vê tão pouco que o chama amigo.

Jesus se retira de entre os discípulos para entrar em agonia; é preciso


retirar-se dos mais próximos e dos mais íntimos para imitá-lo.

Estando Jesus na agonia e nas maiores aflições, rezemos mais


longamente.
Imploramos a misericórdia de Deus, não a fim de que ele nos deixe
em paz em nossos vícios, mas a fim de que Deus nos livre deles.

Se Deus, com sua própria mão, nos desse senhores, como


deveríamos obedecer a eles de bom coração! A necessidade e os
acontecimentos são-no infalivelmente.

Consola-te. Não me buscarias se não me tivesses encontrado.

Eu pensava em ti na minha agonia; derramei por ti tais gotas de


sangue.

É tentar-me mais do que provar-te pensar se farias bem tal ou tal


coisa ausente. – Eu a farei em ti se ela chegar.

Deixa-te conduzir por minhas regras. Vê como conduzi bem a


Virgem e os santos que me deixaram agir neles.
O Pai ama tudo que faço.
Queres que me custe sempre sangue de minha humanidade sem que
dês nenhuma lágrima?

Cabe a mim cuidar da tua conversão; não temas e ora com confiança
como por mim.

Estou presente para ti por minha palavra nas Escrituras, por meu
espírito na Igreja e pelas inspirações, por meu poder nos padres, por
minha oração nos fiéis.

Os médicos não te curarão, pois morrerás por fim, mas sou eu que
curo e torno o corpo imortal.

Suporta as cadeias e a servidão corporal. Eu só te livro da espiritual


no momento.

Sou mais amigo teu do que tal e tal, pois fiz por ti mais do que eles e
eles não sofreriam o que sofri de ti e não morreriam por ti no tempo de
tuas infidelidades e crueldades como eu fiz e como estou pronto para
fazer, e faço nos meus eleitos – e no Santíssimo Sacramento.

Se conhecesses os teus pecados desfalecerias. – Desfalecerei então,


Senhor, pois acredito na malícia deles com o vosso apoio. – Não, pois
eu, por quem tomas conhecimento deles, posso curar-te, e o fato de o
estar dizendo é um sinal de que quero curar-te. À medida que os
expiares, tu os conhecerás e te será dito: Vê os pecados que te são
redimidos.

Faze, pois, penitência por teus pecados ocultos e pela malícia oculta
daqueles que conheces.

Senhor, dou-vos tudo.

Amo-te mais ardentemente do que amaste as tuas máculas. Ut


immundus pro luto14.

Que a mim caiba a glória e não a ti, verme e terra.

Revela a teu Diretor que as minhas próprias palavras te dão ocasião


de mal e de vaidade ou de curiosidade.

(Verso). A falsa justiça de Pilatos não serve senão para fazer Jesus
Cristo sofrer. Pois ele o faz açoitar por sua falsa justiça e depois o mata.
Seria preferível que o matasse primeiro. Assim fazem os falsos justos.
Fazem boas obras e más para agradar ao mundo e mostrar que não
pertencem absolutamente a Jesus Cristo, pois têm vergonha, e
finalmente, nas grandes tentações e ocasiões, eles o matam.

Vejo o meu abismo de orgulho, de curiosidade, de concupiscência.


Não há nenhum ponto de relação entre mim e Deus, nem entre mim e
Jesus Cristo justo. Mas ele foi feito pecado por mim. Todos os vossos
flagelos caíram sobre ele. Ele é mais abominável do que eu e, longe de
me detestar, sente-se honrado de que eu vá a ele e o socorra. Mas ele
curou-se a si mesmo e me curará com mais forte razão.
É preciso acrescentar as minhas chagas às suas e juntar-me a ele, e
ele, salvando-se, me salvará.
Mas não há que se acrescentar outras no futuro.

Eritis sicut dii scientes bonum et malum15; toda gente se faz de Deus
ao julgar: isto é bom ou mau, e afligindose ou alegrando-se demais com
os acontecimentos.

Fazer as pequenas coisas como grandes por causa da majestade de


Jesus Cristo que as faz em nós e que vive nossa vida, e as grandes como
pequenas e fáceis por causa de sua onipotência.

920 (957)
Nós mesmos não recebemos máximas gerais. Se virdes as nossas
constituições, mal nos conhecereis: elas nos fazem mendigos e nos
excluem das cortes e, entretanto etc., mas isso não é infringi-las, pois a
glória de Deus está por toda parte.

Existem diversas vias para chegar a isso. Santo Inácio tomou umas e
agora outras. Era melhor depois tomar o resto. Pois começar pelo alto
teria espantado. É contra a natureza.
Não é que a regra geral não seja limitar-se às Instituições, pois se
abusaria delas; encontrar-se-iam poucos como nós que soubessem
elevar-se sem vaidade.
Unam sanctam16.
Os jansenistas carregarão a sua pena.
O padre Saint-Jure – Escobar.
Tanto viro.
Acquaviva 14 de dezembro de 1621. Tanner. q. 2 dub. 5. n. 86.
Clemente e Paulo V. Deus nos protege visivelmente.
Contra os julgamentos temerários e os escrúpulos.
Santa Teresa 474.
Roman Rose.
Falso crimine.
Subtileza para ser.
Toda a verdade de um lado, nós a estendemos aos dois.
Dois obstáculos: o Evangelho, as leis do Estado; a majori ad minus.
Junior17.
Não falar dos vícios pessoais.

Bela carta de Aquaviva, 18 de junho de 1611.


Contra as opiniões prováveis.
Santo Agostinho, 282.
E quanto a Santo Tomás, nas passagens em que tratou
intencionalmente as matérias. Clemens placet18. 277.
E novidades.
E, para os superiores, não é uma desculpa não estarem sabendo, pois
deviam saber, 279 – 194. 192.
Quanto à moral 283. 288.
A Sociedade importa à Igreja 236.
Pelo bem e pelo mal 156.
Acquoquiez confessou as mulheres. 360.

921 (518)
Qualquer condição e mesmo os mártires têm a temer pelas
Escrituras.
A maior pena do purgatório é a incerteza do julgamento.
Deus absconditus19.

922 (856)
Sobre o milagre.
Como Deus não tornou família mais feliz, que faça também que não
se encontre mais agradecida.
923 (905)
Sobre as confissões e absolvições sem sinais de arrependimento.
Deus só olha o interior, a Igreja só julga pelo exterior. Deus absolve
logo que vê a penitência no coração; a Igreja, quando a vê nas obras.
Deus fará uma Igreja pura por dentro, que confunda, por sua santidade
interior e toda espiritual, a impiedade interior dos soberbos e dos
fariseus. E a Igreja será uma assembléia de homens cujos costumes
exteriores sejam tão puros que confundam os costumes dos pagãos; se
alguns são hipócritas não tão bem disfarçados que ela não reconheça o
seu veneno, ela os tolera. Pois embora não sejam recebidos por Deus, a
quem não podem enganar, são recebidos pelos homens a quem enganam.
E assim ela não fica desonrada pela conduta deles, que parece santa. Mas
vós… vós quereis que a Igreja não jul gue (nem pelo interior que só
pertence a Deus, nem pelo exterior, porque Deus só se detém no interior.
E assim, tirando-lhe toda escolha dos homens, retendes na Igreja os mais
exagerados e aqueles que a desonram tanto que as sinagogas dos judeus
e as seitas dos filósofos os teriam excluído como indignos e os teriam
detestado como ímpios).
924 (498) É verdade que há certo sofrimento quando se entra na
piedade, mas esse sofrimento não vem da piedade que começa a estar em
nós, mas da impiedade que ainda está aí. Se os nossos sentidos não se
opusessem à penitência e se nossa corrupção não se opusesse à pureza de
Deus, não haveria nisso nada de penoso. Quanto a nós, só sofremos na
proporção em que o vício que nos é natural resiste à graça sobrenatural;
nosso coração se sente cindido entre esses dois esforços contrários, mas
seria uma injustiça imputar essa violência a Deus que nos atrai em lugar
de atribuí-la ao mundo que nos retém. É como um filho que deve amar,
na dor que sofre, a violência amorosa e legítima da mãe que o arranca
dos braços de ladrões e lhe devolve a liberdade, e só detestar a violência
injuriosa e tirânica daqueles que o prendem injustamente. A mais cruel
guerra que Deus poderia travar com os homens nesta vida é deixá-los
sem essa guerra que ele veio trazer. Eu vim trazer a guerra, diz ele, e
como instrumento dessa guerra vim trazer o ferro e o fogo. Antes dele o
mundo vivia naquela falsa paz.

925 (520)
A lei não destruiu a natureza, mas a instruiu. A graça não destruiu a
lei, mas fê-la praticar.
A fé recebida no batismo é a fonte de toda a vida do cristão, e dos
convertidos.

926 (582)
Faz-se da própria verdade um ídolo para si, pois a verdade fora da
caridade não é Deus, e é sua imagem e um ídolo que não se deve amar
nem adorar, e ainda menos se deve amar ou adorar o seu contrário, que é
a mentira.
Posso até amar a obscuridade total, mas se Deus me conduz a um
estado meio obscuro, essa pouca obscuridade que aí está me desagrada, e
porque não vejo nisso o mérito de uma inteira obscuridade, não me
agrada. É uma falha e um indício de que eu faço para mim um ídolo da
obscuridade separada da ordem de Deus. Ora, não se deve adorar senão
em sua ordem.

927 (505)
De que me adiantaria.
Abomináveis.
Singlin.

Tudo nos pode ser mortal, mesmo as coisas feitas para nos servir,
como na natureza as muralhas podem nos matar e os degraus nos matar
se não andarmos com precisão.

O menor movimento importa a toda a natureza, o mar inteiro muda


por causa de uma pedra. Assim na graça a menor ação importa por suas
consequências em tudo; portanto, tudo é importante.

Em cada ação é preciso olhar, além da ação, em nosso estado


presente, passado, futuro e dos outros em que ela importa. E ver as
ligações de todas essas coisas, e então se estará bem resguardado.
928 (499)
Obras exteriores.
Não há nada mais perigoso do que aquilo que agrada a Deus e aos
homens, pois os estados que agradam a Deus e aos homens têm uma
coisa que agrada a Deus e outra que agrada aos homens, como a
grandeza de Santa Teresa; o que agrada a Deus é a sua profunda
humildade nas suas revelações; o que agrada aos homens são as suas
luzes. E assim as pessoas se matam de imitar seus discursos pensando
imitar o seu estado e, portanto, amar o que Deus ama, e colocar-se no
estado que Deus ama.
É melhor não jejuar e sentir-se humilhado do que jejuar e comprazer-
se nisso.
Fariseu, publicano.

De que me adiantaria lembrar isso se pode tanto me prejudicar


quanto ajudar, e se tudo depende da bênção de Deus, que ele só dá para
as coisas feitas por ele e segundo as suas regras e suas vias?

Sendo assim a maneira tão importante quanto a coisa, e talvez mais,


pois que Deus pode tirar do mal o bem, e sem Deus se tira o mal do bem.
929 (555)
Não te compares aos outros, mas a mim. Se não me encontras
naqueles com quem te comparas, estás te comparando a um abominável.
Se nele me encontras, compara-te com ele; mas o que estarás
comparando? A ti mesmo ou a mim em ti? Se é a ti, é um abominável; se
é a mim, comparas-me comigo. Ora, eu sou Deus em tudo.

Falo contigo e muitas vezes te aconselho porque o teu Condutor não


pode falar contigo, pois não quero que te falte Condutor.

E talvez eu o faça atendendo aos pedidos dele. E assim te conduzo


sem que o vejas.

Não me procurarias se não me possuísses.


Não te preocupes pois.

(Recebi da Senhorita Pascal, presidente, a importância de


quatrocentas libras.)
930 (513)
Por que Deus estabeleceu a oração?
1. Para comunicar às suas criaturas a dignidade da causalidade.
2. Para nos ensinar de quem nos vem a virtude.
3. Para nos fazer merecer as outras virtudes pelo trabalho.
Mas para conservar para si a primazia, dá a oração a quem lhe apraz.
Objeção: mas acreditar-se-á que se tem de si mesmo a oração.
Isso é absurdo, pois que, tendo a fé, não se pode ter as virtudes,
como se terá a fé? Haveria mais distância entre a infidelidade e a fé do
que entre a fé e a virtude?
Merecido, essa palavra é ambígua.
Meruit habere redemptorem20.
Meruit tam sacra membra tangere21.
Digna22 tam sacra membra tangere.
Non sum dignus, qui manducat indignus23.
Dignus est accipere24.
Dignare me25.

Deus só dá segundo as suas promessas.


Prometeu conceder a justiça às orações.
Jamais prometeu as orações, a não ser aos filhos da promessa.

Santo Agostinho diz formalmente que as forças serão retiradas do


justo.
Mas foi por acaso que o disse, pois poderia acontecer que a
oportunidade de dizê-lo não se oferecesse. Mas os seus princípios
mostram que, apresentando-se a oportunidade, era impossível ele não o
dizer ou dizer algo contrário. Portanto, ser forçado a dizê-lo quando a
oportunidade se oferece é mais do que tê-lo dito quando a ocasião se
ofereceu. Um é necessidade; o outro, acaso. Mas ambos são tudo o que
se pode pedir.

931 (550)
(Amo a todos os homens como meus irmãos porque são todos
resgatados.)
Amo a pobreza porque ele a amou. Amo os bens porque me dão o
meio de assistir os desvalidos. Guardo fidelidade a todos. Não devolvo o
mal a quem me faz, mas lhes desejo uma situação semelhante à minha
em que não se recebe nem mal nem bem da parte dos homens. Tento ser
justo, verdadeiro, sincero e fiel com todos os homens e tenho ternura de
coração por aqueles a quem Deus me uniu mais estreitamente.
E quer eu esteja só, quer sob as vistas dos homens, tenho em todas as
minhas ações a vista de Deus, que deve julgá-las e a quem as consagrei
todas.
Eis aí quais são os meus sentimentos.
E bendigo todos os dias de minha vida o meu Redentor que os pôs
em mim e que de um homem cheio de fraqueza, de miséria, de
concupiscência, de orgulho e de ambição fez um homem livre de todos
esses males pela força da graça, à qual toda a glória é devida, de mim
não tendo mais que a miséria e o erro.
932 (191)
E aquele zombará do outro?
Quem deve zombar? E entretanto este não zomba do outro, mas tem
dó.

933 (460)
Concupiscência da carne, concupiscência dos olhos, orgulho etc.
Existem três ordens de coisas: a carne, o espírito, a vontade.
Os carnais são os ricos, os reis. Eles têm por meta o corpo.
Os curiosos e os cientistas, estes têm por meta o espírito.
Os sábios têm por meta a justiça.
Deus deve reinar sobre tudo e tudo deve relacionar-se a ele.
Nas coisas da carne reina propriamente a sua concupiscência.
Nas espirituais, a curiosidade propriamente.
Na sabedoria, o orgulho propriamente.
Não é que não se possa ser glorioso pelo bem ou pelos
conhecimentos, mas isso não deve dar azo ao orgulho, pois admitindo
que um homem seja sábio não se deixará de convencê-lo de que não tem
razão de ser soberbo.
O lugar próprio da soberba é a sabedoria, pois não se pode fazer
admitir a um homem que se tenha tornado sábio, que ele não tem razão
de ser glorioso. Porque isso é de justiça.
Assim, só Deus dá a sabedoria e é por isso que qui gloriatur in
domine glorietur26.

934 (580)
A natureza tem perfeições para mostrar que é a imagem de Deus e
tem defeitos para mostrar que é apenas a imagem.
935 (490)
Como os homens não costumam formar o mérito, mas apenas
recompensá-lo onde o encontram formado, julgam a Deus por si
mesmos.
936 (698)
Só se entendem as profecias quando se vê as coisas acontecerem,
assim as provas do retiro e da direção, do silêncio etc. não se provam
senão para aqueles que as conhecem e acreditam nelas.

São José tão interior numa lei tão exterior.

As penitências exteriores dispõem à interior, como as humilhações à


humildade, assim as…

937 (104)
Quando a paixão nos leva a fazer alguma coisa, esquecemos o dever;
como quando se gosta de um livro, fica-se lendo quando se deveria estar
fazendo outra coisa. Mas para se lembrar é preciso se propor algo que se
odeia e então usa-se como desculpa que se tem outra coisa para fazer e
por esse meio se lembra do dever.
938 (658) 20 V. As figuras do Evangelho para o estado da alma
doente são corpos doentes. Mas como um corpo não pode estar doente
bastante para exprimi-lo bem, foram necessários vários. Assim, há o
surdo, o mudo, o cego, o paralítico, o Lázaro morto, o possesso: tudo
isso junto está na alma doente.

939 (897)
O criado só faz o que o patrão faz, pois o patrão lhe diz somente a
ação e não o fim. É por isso que ele se sujeita servilmente e peca muitas
vezes contra o fim. Mas Jesus Cristo nos disse qual é o fim.
E vós destruís esse fim.

940 (790)
Jesus Cristo não quis ser morto sem as formalidades da justiça, pois é
muito mais ignominioso morrer pela justiça do que por uma sedição
injusta.

941 (264)
Ninguém se aborrece de comer e de dormir todos os dias, pois a
fome renasce, e o sono, sem isso as pessoas se aborreceriam com eles.
Assim, sem a fome das coisas espirituais, as pessoas se aborrecem
com elas; fome da justiça, 8a bem-aventurança.
942 (941)
Fim. Tem-se segurança? Este princípio é seguro? Examinemos.
Testemunho de si mesmo, nulo. Santo Tomás.

943 (554)
24 Aa. Parece-me que Jesus Cristo deixou tocar só em suas chagas
depois da ressurreição. Noli me tangere27. Só temos de nos unir aos seus
sofrimentos.

Ele se deu a comungar como mortal durante a Ceia, como


ressuscitado aos discípulos de Emaús, como tendo subido ao Céu para
toda a Igreja.
944 (250)
É preciso que o exterior esteja unido ao interior para obter de Deus;
isto é, é preciso pôr-se de joelhos, rezar com os lábios etc. a fim de que o
homem orgulhoso que não quis se submeter a Deus esteja agora
submetido à criatura. Esperar desse exterior o socorro é ser
supersticioso; não querer juntá-lo ao interior é ser soberbo.
945 (661)
Só a penitência, dentre todos os mistérios, foi declarada
manifestamente aos judeus e por São João, o precursor; e depois os
outros mistérios, para indicar que em cada homem como no mundo
inteiro essa ordem deve ser observada.

946 (785)
2. Considerar Jesus Cristo em todas as pessoas, e em nós mesmos.
Jesus Cristo como pai no pai. Jesus Cristo como irmão nos irmãos. Jesus
Cristo como pobre nos pobres. Jesus Cristo como rico nos ricos. Jesus
Cristo como doutor e sacerdote nos sacerdotes. Jesus Cristo como
soberano nos príncipes etc., pois ele é por sua glória tudo que há de
grande, sendo Deus, e é por sua vida mortal tudo que há de fraco e de
abjeto. Para isto ele tomou essa triste condição: para poder estar em
todas as pessoas e ser o modelo de todas as condições.
947 (504) 25 Bb. outro motivo: que a caridade considera isso como
sendo uma privação do espírito de Deus e uma ação má, por causa do
parêntese ou interrupção do espírito de Deus nele, e se arrepende
afligindo-se.

O justo age pela fé nas menores coisas. Quando repreende os seus


servos, deseja a sua conversão pelo espírito de Deus e roga a Deus que
os corrija, e espera tanto de Deus quando de suas repreensões, e roga a
Deus que abençõe as suas correções e assim nas outras ações.

948 (668)
O homem só se afasta afastando-se da caridade.

Nossas orações e virtudes são abomináveis diante de Deus se não


forem as orações e virtudes de Jesus Cristo. E os nossos pecados nunca
serão objeto da (misericórdia) mas da justiça de Deus se não forem (os
pecados) de Jesus Cristo.

Ele adotou os nossos pecados e nos (admitiu em sua) aliança, pois as


virtudes lhe são próprias (e os) pecados estranhos; e as virtudes nos (são)
estranhas e os pecados nos são próprios.
Mudemos a regra que até aqui tomamos para julgar do que é bom.
Tínhamos como regra a nossa vontade; tomemos agora a vontade de
Deus: tudo que ele quer é bom e justo para nós; tudo que ele não quer,
(mau e injusto).
Tudo aquilo que Deus não quer é proibido. Os pecados são proibidos
pela declaração geral que Deus fez de que não os queria. As outras
coisas que ele deixou sem proibição geral, e que por essa razão
chamamos de permitidas, nem sempre são entretanto permitidas, pois
quando Deus afasta uma delas de nós e, pelo acontecimento que é uma
manifestação da vontade de Deus, fica claro que Deus não quer que
tenhamos uma coisa, isso nos fica então proibido tal como o pecado,
pois que a vontade de Deus é que não tenhamos mais um do que o outro.
Há apenas esta diferença entre as duas coisas: é que é certo que Deus
nunca irá querer o pecado, ao passo que não é certo que ele nunca irá
querer a outra coisa. Mas enquanto Deus não a quiser, devemos encará-
la como pecado, enquanto a ausência da vontade de Deus, que é por si só
toda a bondade e toda a justiça, a tornar injusta e má.

949 (930)
Que os tratamos tão humanamente quanto era possível para nos
manter no justo meio entre o amor da verdade e o dever da caridade.
Que a piedade não consiste em nunca se levantar contra os irmãos.
Seria bem fácil etc.
É uma falsa piedade conservar a paz em detrimento da verdade.
É também falso zelo conservar a verdade ferindo a caridade.

Assim não se queixaram disso.

As suas máximas têm seu tempo e lugar.

A vaidade vai até se levantar com os erros deles.


Conforme aos Padres por seus erros.
E aos mártires por seu suplício.

Além do mais não se retratam de nenhuma.


Só tinham de pegar o excerto e o renegar.

Sanctificant praelium28.

M. Bourseys. Pelo menos não podem desdizer o fato de se terem


oposto à condenação.

950 (951)
Na bula Cum ex apostolatus officio de Paulo IV, publicada em 1558.
Ordenamos, estatuímos, decretamos, definimos que todos e cada um
daqueles que se encontrarem tendo – se extraviado ou tendo – caído em
heresia ou cisma, sejam quais forem a sua qualidade e condição, sejam
eles leigos, eclesiásticos, padres, bispos, arcebispos, patriarcas,
primazes, cardeais, condes, marqueses, duques, reis e imperadores, além
das sentenças e penas supraditas, fiquem por isso mesmo sem nenhum
ministério de direito ou de fato privados em tudo e por tudo,
perpetuamente, de suas ordens, bispados, benefícios, ofícios, reino,
império, e incapacitados de os retomarem jamais. Delegamos ao braço
secular para serem punidos, não concedendo outra graça àqueles que por
uma verdadeira penitência voltassem atrás em seu transviamento, senão
que, pela benignidade e clemência da Santa Sé, sejam reclusos num
mosteiro para aí fazer penitência perpétua a pão e água, mas que
permaneçam para sempre privados de qualquer dignidade, ordem,
prelatura, condado, ducado, reino. E que aqueles que os acolherem e
defenderem sejam por isso mesmo julgados excomungados e infames,
privados de todo reino, ducado, bem e posse, que passarão a pertencer de
direito e de propriedade àqueles que deles primeiro se apossarem.
Si hominem excommunicatum interfecerunt, non eos homicidas
reputamus, quod adversus excommunicatos zelo catholicae matris
ardentes aliquem eorum trucidasse contigerit29. 23 q. 5. de Urbano II.

951 (950)
(Depois de os terem atormentado bastante, mandar-vos-ão de volta
para casa.)
(É um consolo também fraco esse dos apelos por abuso, pois um
grande meio de abuso retirado
além de que a maioria não terá meios de vir dos confins do Périgord
ou de Anjou defender a sua causa no parlamento de Paris;
além de que eles terão a toda hora decretos do conselho para
proibir esses apelos como abusos.)
(Pois ainda que não possam obter o que pediram, esse pedido não
deixa de mostrar o seu poder, poder tão grande que os levou a pedir
uma coisa a tal ponto injusta que era visível não poderem obtê-la.
Portanto, isso não faz mais do que revelar melhor a sua intenção e a
necessidade de não autorizar por um registro da bula que querem fazer
servir de base a esse novo estabelecimento.)
(Não se trata aqui de uma simples bula, mas de uma base.
Ao sair do palácio.)
121. O papa proíbe o rei de casar os filhos sem sua permissão. 1294.
Scire te volumus30 124. 1302. A pueril.

952 (956)
Clemens placentium31.
Nossos superiores gerais temiam o descenso por causa das ocupações
exteriores. 208. 152. 150. por causa da Corte 209. 203. 216. 218. porque
não se seguiam as opiniões mais seguras e mais autorizadas. Santo
Tomás etc. 215. 218.
Stipendium contra Consti32. 218.
Mulheres. 225. 228.
Príncipes e política. 227. 168. 177.
Probabilidade. Novidade 279. 156. – novidade, verdade.
Para passar o tempo e se divertir mais do que para ajudar as almas.
158.
Opiniões frouxas. 160. pecado mortal em venial. Contrição. 102.
política. 162. Antecipantes ou 162.
As comodidades da vida crescem para os jesuítas. 166.
Bens aparentes e falsos que os enganam. 192. ad.
(E não é uma desculpa para os superiores não terem sabido os… )
O padre Lemoine, 10.000 escudos, fora de sua província.
Vede quanto a previdência dos homens é fraca. Todas as coisas a
partir das quais os nossos primeiros superiores gerais temiam a perda da
nossa sociedade, foi por aí que ela cresceu, pelos grandes, por atos
contrários a nossas constituições, pela multidão dos religiosos, a
diversidade e a novidade de opiniões etc. 182. 157.
Política 181.
Extinto o primeiro espírito da sociedade. 170. 171 ad 174. 183 ad
187. non e piu quella. “Ele não é mais o mesmo.” Vittelescus. 183.
(altri tempi altre cure33).
Queixas dos superiores gerais. Nenhuma de Santo Inácio. Nenhuma
de Laynez. Algumas de Borgia e de Aquaviva. Infinitas de Mutius etc.

Tendes a ideia correta a respeito de nossa Sociedade?

A Igreja subsistiu tanto tempo sem essas questões.

Os outros as levantam, mas não é a mesma coisa.

Que comparação acreditais haver entre 20.000 separados e


200.000.000 juntos, que perecerão um pelo outro? Um corpo imortal.

Nós nos sustentamos até perecer, Lamy.

Nós empurramos os nossos inimigos, P. Puys.

Tudo depende da probabilidade.

O mundo quer naturalmente uma religião, mas suave.

Dá-me vontade de mostrar-vos isso por uma estranha suposição. Dir-


vos-ei então: quando Deus não nos sustentasse por uma providência
particular para o bem da Igreja, quero mostrar-vos que, falando, mesmo
humanamente, não podemos perecer.

Concedei-me este princípio e eu vos provarei tudo. É que a


Sociedade e a Igreja seguem a mesma fortuna.
Sem esses princípios não se prova nada.

Não se vive muito tempo na impiedade patente, nem naturalmente


nas grandes austeridades.

Uma religião acomodada é própria para durar.


As pessoas as buscam por libertinagem.

Particulares que não querem dominar pelas armas, não sei se podiam
fazer melhor.

Reis, papa.
3 Reg. 246.

6 direito e de boa-fé na devoção.

(231. Jesuítas consultados a respeito de tudo)


(165. 166. 164. 165. transplantados)

6. 452. Reis nutrícios.


4. odiados por causa de seu mérito.
(Universidade.)
(3. Reg.)
Apol. Univers. 159. decreto da Sorbonne.
Os reis 241. 228.
Jesuítas enforcados 112.

A religião. E a ciência. (?)

Jesuita omnis homo34.

(Colégios – crianças a escolher.)

Colégios, pais, amigos, crianças a escolher.


Constituições.
253. pobreza. ambição.
257. principalmente os príncipes, os grandes senhores que podem
prejudicar e servir.
12. Inúteis, rejeitados / cara boa. / Riqueza, nobreza etc.
E quê, tínheis medo de que se deixasse de recebê-los antes?
27.
47. dar os próprios bens à Sociedade para a glória de Deus. Lecl.
51. 52. União de sentimentos, decl. submeter à Sociedade e assim
preservar a uniformidade. Ora, hoje essa uniformidade está na
diversidade. Pois a Sociedade o quer.
117. const. o Evangelho e Santo Tomás. decl. alguma teologia de
acomodação.
65. raros sábios piedosos; nossos antigos mudaram de opinião.
23. 74. mendigar.
19. não dar aos parentes; sobre isso, confiar nos conselheiros dados
pelo superior.
1. não praticar o exame. decl.
2. pobreza total, nada de missas nem pelo sermão nem pela esmola
compensadora.
4. decl. com mesma autoridade que as const.
fin. ler as const. a cada mês.
149. as declarações estragam tudo.
154. Não incitar a dar esmolas perpétuas, nem pedi-las em justiça,
nem urna. Decl. non tanquam Eleemozina35.
200. 4. Avisar-nos de tudo.
190. Const não quer tropa. decl. tropa interpretada. Um corpo
universal e imortal.

Afeição pela comunidade grande e sem escrúpulo – perigosa.

Pela religião seríamos todos ricos; sem as nossas constituições,


também somos pobres.
E pela verdadeira religião e sem ela somos fortes.
953 (958)36
Ep. 16. Aquavivae. De
formandis concionatoribus.
(esta citação não se encontra) ler
os Padres para conformá-los à
p. 373. Longe falluntur quiad – própria imaginação em vez de
irrigaturae. formar o próprio pensamento a
partir do pensamento dos
Padres.
Ep. I. Mutii Vitelesci.
(esta tampouco – elas eram
p. 389. Quamvis enim probe norim
373/389. ambas estão escritas.
– et absolutum.
)
p. 390. Dolet ac queritur – esse
modéstia.
modestiam.
p. 392. Lex ne dimidiata –
a missa. Não sei o que ele diz.
reprehendit.
p. 408. Ita feram illam – etiam
Política.
irrumpat.
Por uma infelicidade, ou melhor,
p. 409. Ad extremum pervelim – uma felicidade singular da
circumferatur. Sociedade, o que um faz é
atribuído a todos.
Obedecer aos bispos exatamente.
p. 410. Quaerimoniae – Que, a exemplo de São Xavier,
deprehendetis p. 412. não pareçamos querer disputar
com eles.
p. 412. Ad haec si a litibus –
testamentos, processos.
aviditatis.
p. 413. Patris Borgiae – videbitur Eles aumentam, inventam até
illam futuram. histórias falsas.
p. 415. Ita res domesticas -nunc
dimittis etc.

Ep. 2. Mutii Vitelesci.


Probabilidade, tueri pius potest,
p. 432. Quarto nonullorum – quam
probabilis est auctore non
ardentissime possum urgere.
caret.
p. 433. Quoniam vero de loquendi
falta de punir os maledicentes.
licentia – aut rare plectatur.

Ep. 3. Mutii Vitelesci.


p. 437. Nec sane dubium – nihil
que a Sociedade não se deteriore.
jam detrimenti acceperit.
p. 440. Ardentissime Deum
exoremus – operari non est (falta de obediência para
gravatus et tu fili hois etc. Ezeq. procurar sua reputação.)
37.
p. 441. Secundum caput – tanti falta de obediência para procurar a
facimus. sua reputação.
p. 442. Haec profecto una si falta de obediência, procurar o
deficiet – qui haec molitur. apoio dos grandes.
Fazem coisas indecentes e fora do
estado da Sociedade e dizem
que os grandes senhores os
importunam por isso, mas são
p. 443. Ex hoc namque vitio –
eles que os importunam, de
importunum praebeas.
modo que é preciso tê-los como
inimigos se os recusam, ou
perder a sociedade concedendo-
o.
p. 443. Spectabit tertium caput –
Castidade.
mutatus est color optimus.
p. 445. De paupertate – non Pobreza, frouxidão de opiniões
adversentur veritati. contrárias à Verdade.
p. 446. Faxit Deus – atque si
Vinhas etc.
praetermitterentur.

954 (925)
Examinar o motivo da censura pelos fenômenos; elaborar uma
hipótese que convenha a todos.

O hábito faz a doutrina.

(Confessais tantas pessoas que só se confessam uma vez por ano.)

(Eu acreditava que houvesse uma opinião contra uma opinião.)

(Quando se é tão mau que não se tem mais nenhum remorso não se
peca mais.)

(Portanto perseguis M. Arnaud sem remorso.)

Desconfio dessa doutrina porque ela me é demasiado suave, tendo


em vista a malignidade que dizem haver em mim.

(Que não escolheis alguma grande heresia.)

Desconfio da união deles tendo em vista as suas contradições


particulares.

Esperarei que se ponham de acordo antes de tomar partido. Para um


amigo eu teria inimigos demais. Não sou bastante sábio para lhes
responder.

(Eu acreditava mesmo que se fosse condenado por não ter tido bons
pensamentos, mas por acreditar que ninguém os tem, isso é novo para
mim.)
(De que adianta isso para consolar os justos e salvar o desespero?
não, pois ninguém pode estar em situação de se julgar justo.)

(M. Chamillard seria herege, o que é uma falsidade manifesta, pois


ele escreveu para M. Arnaud.)

No ano de 1647, a graça para todos; em 1650 ela foi mais rara etc.

(Graça de M. Cornet, de M.)

Lutero tudo, fora a verdade.

Se não tivesse havido na Igreja ocasiões semelhantes, mas dou


crédito ao meu vigário.

Por menos que ela incomode eles fazem outras (graças), porque
dispõem delas como de obra sua.

Um só diz a verdade.

(Para cada ocasião uma graça; para cada pessoa graça para os
grandes, graça para os velhacos.)

Afinal M. Chamillard está tão próximo disso que, se houver degraus


para descer ao nada (essa graça suficiente), é agora para o mais próximo.

(Interessante ser herege por isso.)

Não há ninguém que não fique surpreso, pois nunca se viu isso nas
Escrituras nem nos Padres etc.

Desde quando, Padre, isso é artigo de fé? No máximo desde as


palavras de poder próximo. Acredito que ao nascer ele fez essa heresia e
que só nasceu para esse único fim.

(A censura proíbe somente falar assim de São Pedro, nada mais. –


Devo-lhes muita obrigação.)
(São pessoas ladinas. Temeram que as cartas que se escrevem aos
provinciais…)

(Não valia a pena por uma palavra.)

(ingenuidade pueril.)

(louvado sem ser conhecido.)

(maus credores.)

(acho que são feiticeiros.)

Lutero (tudo fora o verdadeiro.)

Membro herético. Unam sanctam.

As iluminuras nos prejudicaram.

Uma proposição é boa num autor e má em outro. Sim, mas há então


outras más proposições.

Há pessoas que cedem à censura, outras às razões, e todas às razões.


Admira-me que não tenhais tomado a via geral em vez da particular ou,
pelo menos, que não tenhais juntado aquela a esta.
Pluralidade das graças.
Tradutores jansenistas.

Santo Agostinho tem a maior parte por causa das divisões de seus
inimigos. Além de uma coisa que se pode considerar que é uma tradição
sem interrupção de 12.000 papas, concílios etc.

É preciso, pois, que M. Arnaud tenha muitos maus sentimentos para


infectar aqueles a quem abraça.

A censura lhes faz este bem de, quando os censurarem, eles a


combaterem dizendo que imitam os jansenistas.
Como estou aliviado! nenhum francês bom católico…

As ladainhas. Clemente VIII, Paulo V. Censura. Deus nos protege


visivelmente.

O homem é bem insensato. Não pode fazer um ínfimo ácaro.

Em lugar de Deus a graça para prosseguir.

955 (929)
(E está-se disposto a expulsar da Igreja aqueles que recusamessa
confissão.) Todo o mundo declara que elas o são. M. Arnaud, e seus
amigos, protesta que as condena em si mesmas, e onde quer que estejam,
que se elas estão em Jansênio, condena-as também aí.
Que ainda mesmo que elas não estejam em seus escritos, se o sentido
herético dessas proposições condenadas pelo papa se encontram em
Jansênio, ele condena Jansênio.
Mas não ficais satisfeitos com esses protestos, quereis que ele
garanta que essas proposições estão palavra por palavra em Jansênio. Ele
respondeu que não pode garantir isso, não sabendo se é assim, que as
procurou ali, e uma infinidade de outros, sem nunca ter encontrado.
Rogaram-vos a vós e a todos os outros que citassem em que páginas elas
estão (e) nunca ninguém o fez. E quereis apesar de tudo cortá-lo da
Igreja com base nessa recusa, embora ele condene tudo aquilo que ela
condena, pela simples razão de que ele não garante que palavras ou um
sentido estão num livro onde ele nunca o encontrou, e onde ninguém lho
quis mostrar. Na verdade, Padre, esse pretexto é tão vão que talvez
nunca tenha havido na Igreja procedimento tão estranho, tão injusto e
tão tirânico.
(A Igreja bem que pode obrigar.)
(Clemente VIII.)
(Si quis dixerit37.)
Não é preciso ser teólogo para ver que a heresia deles não consiste
senão na oposição que vos fazem; eu o experimento em mim mesmo, e
vê-se a prova geral disso em todos aqueles que vos atacaram.
Os vigários de Ruão jansenistas.
Voto de Caen.
Acreditais tanto na honestidade de vossos propósitos que fazeis deles
matéria de voto.
Há dois anos que a heresia deles era a bula, o ano passado era
interior. Há seis meses que era totidem38; agora é o sentido.

Não vejo bem eu que só o que quereis é torná-los hereges?


Santíssimo Sacramento.

Disputei convosco falando pelos outros.

Sois bem ridículo de fazer tanto barulho por causa das proposições.
Não é nada, é preciso entender isso.

Sem nomes de autor, mas como se conhecia o vosso propósito, 70 se


opuseram. Datar o decreto.

A fim de que aquele que não pudestes tornar herege com base em
suas próprias palavras etc.

(Quem se coloca contra mim por mostrar que tudo isso é de vossos
autores até os mais horríveis.)

Pois tudo se sabe.

(Só tendes isso para responder, e só essa maneira de o provar?)

Ou ele sabe que sim ou que não, ou duvida, ou pecador ou herege.


Prefácio Villeloin.

Jansênio, Aurélio, Arnaud, Provinciais.

(Um corpo de réprobos.)

(Abrir-se-iam todos os troncos de Saint-Merry sem que com isso


ficásseis menos inocentes.)
(Depois de Pelágio.)
(Também isso não é estranho. Falso direito. Barônio.)

(Quanto a mim, preferiria ser impostor a etc.)

Que razão tendes para isso? Dizeis que sou jansenista, que o P. R.
defende as 5 p(roposições) e que assim eu as defendo. 3 mentiras.

Considerando apenas os pagãos.

Essa mesma luz que descobre as verdades sobrenaturais as descobre


sem erro, ao passo que a luz que etc.

Como o sentido de Jansênio estaria em proposições que não são


dele?

E rogo-vos que não me venhais dizer que não sois vós (mas os
Bispos) que fazeis agir tudo isso. (Eu vos responderia coisas que não
agradariam nem a vós nem a outros.) Poupai-me da resposta.

Ou isso está em Jansênio ou não. Se está lá, ei-lo condenado nisso; se


não, por que quereis fazê-lo condenar?
Condene-se somente uma das vossas proposições do padre Escobar.
Irei trazer numa mão Escobar, na outra a censura e farei disso um
argumento em forma.

O papa não condenou duas coisas, condenou apenas o sentido das


proposições.
Direis que ele não o condenou? Mas o sentido de Jansênio está
encerrado aí, diz o papa. Bem vejo que o papa pensou assim por causa
de vossos totidem, mas ele não o disse sob pena de excomunhão.

Como não o teria ele acreditado e os bispos de França também? Vós


os dizíeis totidem e eles não sabiam que tendes poder para dizê-lo ainda
que isso não exista.
Impostores não se havia visto a minha 15a carta.
956 (928)
Diana.
É para isso que serve Diana.
11. É permitido não dar os benefícios que não têm encargo de almas
aos mais dignos; o Concílio de Trento parece dizer o contrário. Mas eis
como o prova, pois se fosse assim todos os prelados estariam em estado
de danação; pois todos os usam desse modo.
11. O rei e o papa não são obrigados a escolher os mais dignos. Se
assim fosse, o papa e os reis teriam um terrível encargo.
21. E aliás, se essa opinião não fosse verdadeira, os penitentes e os
confessores teriam muitos problemas, e eis por que estimo que se deve
segui-la na prática.
(21. Se essa opinião fosse verdadeira no tocante à restituição, oh,
quantas restituições se teria de fazer! )
E em outra passagem em que ele coloca as condições necessárias
para fazer com que um pecado seja mortal, coloca tantas circunstâncias
que dificilmente se peca mortalmente e, depois de tê-lo estabelecido,
exclama: Oh! como o jugo do Senhor é suave e leve.
11. E noutra parte não se é obrigado a dar esmola com o próprio
supérfluo nas comunas necessitadas dos pobres. Se o contrário fosse
verdade, seria preciso condenar a maioria dos ricos e de seus
confessores.
Essas razões impacientavam-me quando eu disse ao Padre: mas o
que impede de dizer que eles o são?
É o que previu também nessa passagem, respondeume, ou depois de
ter dito – 22 – se isso fosse verdade, os mais ricos seriam condenados. E
acrescenta: a isso Arragônio também responde que eles o são, e Bauny,
jesuíta, acrescenta, a mais, que os seus confessores o são igualmente;
mas respondo com Valentia, outro jesuíta, e outros autores, que há várias
razões para desculpar os ricos e seus confessores.
Eu estava encantado com esse arrazoado quando ele me termina pelo
seguinte:
Se essa opinião fosse verdadeira para a restituição, oh, quantas
restituições se teria de fazer!
Ó Padre, disse-lhe eu, que boa razão! – Oh, disse-me o Padre, eis aí
um homem como… – Oh, Padre, respondi, sem os vossos casuístas,
quanta gente condenada haveria! (Oh, replicou ele, como se está errado
ao não nos deixar falar disso! ) – Oh, Padre, como tornais ampla a via
que conduz ao céu! Como há tanta gente que a encontra! Eis um…

957 (512)
Toda ela é o corpo de Jesus Cristo em seu dialeto, mas não se pode
dizer que ela seja todo o corpo de Jesus Cristo.

A união de duas coisas sem mudança não faz com que se possa dizer
que uma se torna a outra.

Assim estando a alma unida ao corpo,


O fogo à lenha sem mudança.
Mas é preciso mudança que faça com que a forma de uma se torne a
forma da outra.
Assim a união do Verbo com a humanidade.

Porque o meu corpo sem a minha alma não seria o corpo de um


homem. Portanto a minha alma unida a qualquer matéria que seja fará o
meu corpo.
Ele não distingue a condição necessária da condição suficiente, a
união é necessária mas não suficiente.

O braço esquerdo não é o direito.

A impenetrabilidade é uma propriedade do corpo.

A identidade de numero, em relação ao mesmo tempo, exige a


identidade da matéria.

Assim, se Deus unisse minha alma a um corpo na China, o mesmo


corpo idem numero estaria na China.

O mesmo rio que corre aqui é idem numero que o que corre ao
mesmo tempo na China.

958 (75)
Parte 1. 1. 2. C. I. S.
(Conjectura, não será difícil baixar ainda um grau e fazê-la parecer
ridícula.)

Que há de mais absurdo do que dizer que corpos inanimados têm


paixões, temores, horrores; que corpos insensíveis, sem vida e até
incapazes de vida tenham paixões que pressupõem uma alma pelo
menos sensitiva para as receber? Além disso, que o objeto desse horror
fosse o vácuo? Que existe no vácuo que lhes possa causar medo? Que
existe de mais baixo e de mais ridículo?
Terem em si mesmos um princípio de movimento para evitar o vácuo
não é tudo. Possuem eles braços, pernas, músculos, nervos?
959 (636)
Si não indica a indiferença.
Malaq.
Isaías.
Isa. si volueris39 etc.
In quacumque die40.

960 (362 e 921)


(Que ganhastes acusando-me de zombar das coisas santas? Não
ganhareis mais acusando-me de impostura.)

(Eu não disse tudo, haveis de ver.)

Não sou herege. Não sustentei as 5 proposições. Vós o dizeis mas


não provais. Digo que dissestes isso e o provo.

Eu vos disse que sois impostores e o provo. E que não o escondeis


insolentemente. Brisacier, Meynier, d’Alby. E que o autorizais.
Elidere41.
Quando acháveis que M. Puys era inimigo da Sociedade, ele era
indigno pastor de sua igreja, ignorante, herético, de má-fé e maus
costumes; depois ele passou a ser digno pastor de boa-fé e bons
costumes.

Caluniar, haec est magna caecitas cordis42.


Não ver o mal disso, haec est major caecitas cordis43.
Defendê-lo em vez de confessar-se como de um pecado, tunc
hominem concludit profunditas iniquitatis44 etc. – 230, prosper.
Os grandes senhores se dividem em guerras civis.
E assim vós também na guerra civil dos homens.

(Quero dizê-lo a vós mesmos para que isso tenha mais força.)

(Aqueles que examinam os livros, estou certo de sua aprovação, mas


aqueles que só leem os títulos – e estes são o maior número – estes
poderiam acreditar baseados na vossa palavra. (É preciso) não… – que
religiosos fossem impostores – já afastamos do erro os nossos pela força
das citações. É preciso afastar os outros por elidere.)
Ex senatus consultis et plebiscitis45.
Procurar passagens semelhantes.

Fico satisfeito por publicardes a mesma coisa que eu. ex


contentione46, São Paulo.

Me causam fecit47.

(Não é que eu não veja quanto estais embaraçados, pois se


quisésseis desdizer-vos, isso seria feito, mas etc.)

Os santos sutilizam para se julgarem criminosos e acusarem suas


melhores ações, e aqueles sutilizam para desculpar as piores.

Não pretendais que isso se dê com disputas. Mandariam imprimir


vossas obras inteiras, e em francês; farão de todas as pessoas juízes.
Um edifício igualmente belo por fora, mas fundado em maus
alicerces, os pagãos sábios o construíam e o diabo engana os homens por
essa semelhança aparente fundada no mais diferente alicerce.

Jamais homem algum teve tão boa causa como eu, e jamais outros
abriram tanto o flanco como vós.

As pessoas mundanas não acreditam estar no bom caminho.

Quanto mais indicam fraqueza na minha pessoa, mais autorizam a


minha causa.

Dizeis que sou herege. Isso é permitido? E se não temeis que os


homens me façam justiça, não temeis que Deus a faça?

Sentireis a força da verdade e cedereis a ela.

Rogo que me seja feita a justiça de não mais lhes dar crédito com
base na palavra deles.

Seria necessário obrigar o mundo a acreditar em vós sob pena de


pecado mortal. Elidere48.

É pecado acreditar temerariamente nas maledicências.

Non credebant temere calumniatori49. Santo Agost.

Fecitque cadendo undique me cadere50 pela máxima da


maledicência.

Existe algo de sobrenatural em semelhante cegueira. Digna


necessitas51.

Estou sozinho contra trinta mil – ponto. Conservais a Corte? Vós a


impostura, eu a verdade. – É toda a minha força. Se a perco, estou
perdido; não me faltarão acusadores e punidores. Mas possuo a verdade
e veremos quem vencerá.
Não mereço defender a religião, mas não mereceis defender o erro.
E… espero que Deus, por sua misericórdia, não levando em conta o mal
que em mim existe, e levando em conta o bem que em vós existe, nos
dará a todos a graça de que a verdade não sucumba entre as minhas mãos
e a mentira não…

mentiris impudentissime52.

230. supremo pecado é defendê-lo. Elidere.

340. 23. a sorte dos maus.

doctrina sua noscetur vir53.

66. labor mendacii54.

80. esmola.

falsa piedade, duplo pecado.

Elidere55 Caramuel.

Vós me ameaçais.

Pois que só tocastes nesse particular, isso é aprovar o resto.

961 (888)
B. Ignorais as profecias se não sabeis que tudo isso deve acontecer,
príncipes, profetas, papa – e mesmo os padres – e no entanto a igreja
deve subsistir.
Pela graça de Deus não estamos nesse ponto, ai de vós, padres. Mas
esperamos que Deus nos fará a misericórdia de não estarmos entre eles.
1. São Pedro C. 2 falsos profetas – passados – imagens dos futuros.

962 (902)
É mesmo necessário, diz o Feuillant, que isso não seja tão certo, pois
a contestação indica a incerteza.
Santo Atanásio, São Crisóstomo.
A moral. Os infiéis.
Os jesuítas não tornaram a verdade incerta, mas tornaram certa a
impiedade deles.
A contradição sempre foi deixada para cegar os maus, pois tudo que
choca a verdade ou a caridade é mau. Eis o verdadeiro princípio.
963 (940)
É indiferente para o coração do homem acreditar em 3 ou 4 pessoas
na Santíssima Trindade, mas não etc. E daí vem que eles se entusiasmam
para defender uma coisa e não a outra.
Convém fazer uma coisa mas sem abandonar a outra, o próprio Deus
no-lo disse etc.
E assim quem só acredita numa coisa e não na outra, não acredita
porque Deus o disse, mas porque a sua cobiça não o recusa e que é
muito fácil consentir e ter assim, sem dificuldade, um testemunho da
própria consciência que lhe…
Mas é um testemunho falso.

964 (953)
Carta dos estabelecimentos violentos dos jesuítas por toda parte.

A cegueira sobrenatural.

Essa moral que é encabeçada por um Deus crucificado.

Eis aqueles que fizeram voto de obedecer tanquam Christo.

A decadência dos jesuítas.

Nossa religião que é toda divina.

Um casuísta, Miroüer.
Se o achais bom, é bom sinal.
É algo estranho que não haja meio de lhes passar a ideia da religião.

Um Deus crucificado.

Destacando esse caso passível de punição do cisma, eles serão


punidos.

Mas que inversão: as crianças, abraçando-o, amam os corruptores.


Os inimigos os detestam.

Somos as testemunhas.

Para a multidão dos casuístas, falta muito para que seja um motivo
de acusação contra a Igreja, pois que é, ao contrário, um motivo de
gemidos para a Igreja.
E a fim de que não sejamos suspeitos.
Como os judeus que levam os livros, que não são suspeitos para os
gentios, eles nos trazem as suas Constituições.

965 (889)
De maneira que, se é verdade que, por um lado, alguns religiosos
relaxados e alguns casuístas corruptos, que não são membros da
hierarquia, mergulharam nessas corrupções, por outro lado, é constante
que os verdadeiros pastores da Igreja, que são os verdadeiros
depositários da palavra divina, conservaram-na imutável contra os
esforços daqueles que empreenderam arruiná-la.
E assim os fiéis não têm nenhum pretexto para seguir esses
afrouxamentos que só lhes são oferecidos pelas mãos estranhas desses
casuístas, em lugar da sã doutrina que lhes é apresentada pelas mãos
paternais de seus próprios pastores. E os ímpios e os hereges não têm
nenhum motivo para apresentar esses abusos como marcas da ausência
da providência de Deus sobre a sua Igreja, pois que, estando a Igreja
propriamente no corpo da hierarquia, muito falta para se concluir, a
partir do estado presente das coisas, que Deus a tenha abandonado à
corrupção, pois que nunca apareceu melhor do que hoje, que Deus a
defende visivelmente da corrupção.
Porque se alguns desses homens, que por uma vocação
extraordinária fizeram profissão de sair do mundo e de envergar o hábito
de religioso para seguir um estado mais perfeito do que o comum dos
cristãos, caíram em
extravios que causam horror ao comum dos cristãos e se tornaram
entre nós aquilo que os falsos profetas eram entre os judeus, é uma
desgraça particular e pessoal que na verdade se deve deplorar, do que
nada se pode concluir contra o cuidado que Deus toma de sua igreja,
pois que todas essas coisas estão preditas tão claramente e foi anunciado
há tanto tempo que essas tentações se elevariam da parte desse tipo de
pessoas, que, quando se está bem instruído, vê-se nisso antes marcas da
conduta de Deus do que de seu esquecimento com respeito a nós.

966 (926)
É preciso ouvir as duas partes; esse cuidado eu tive.
Quando só se ouviu uma parte, sempre se está desse lado, mas o
adverso faz mudar; ao passo que aqui o jesuíta confirma.

Não o que fazem, mas o que dizem.

Não é senão contra mim que se grita. Aceito. Sei a quem prestar
contas.

Jesus Cristo foi pedra de escândalo.

Condenável, condenado.

Política.
Encontramos dois obstáculos na tentativa de aliviar os homens: um
da parte das leis interiores do Evangelho, outro das leis exteriores do
Estado e da religião.
Umas nós dominamos; quanto às outras, eis como agimos.
Amplianda, restringenda, amajori adminus. Junior56.
Provável.
Eles raciocinam como aqueles que mostram que é noite ao meio-dia.
Se razões tão más como essas são prováveis, tudo o será.
1. razão. Dominus actuum conjugalium. Molina.
2. razão. Non potest compensari57. Less.
Opor não máximas santas, mas abomináveis. Bauny queimador de
granjas.
Mascarenhas, Concílio de Trento para os padres em pecado mortal.
Quam primum58.
967 (896)
Em vão a Igreja estabeleceu as palavras anátemas, heresias etc….
São utilizadas contra ela.

968 (654)
Diferença entre o jantar e a ceia.

Em Deus a palavra não difere da intenção, pois ele é verdadeiro; nem


a palavra do efeito, pois ele é poderoso; nem os meios do efeito, pois ele
é sábio. Bern. Ult. serm. In missus59.

Agost. 5. de Civit. 10. Esta regra é geral. Deus pode tudo, menos
aquelas coisas que, se ele pudesse, não seria onipotente, como morrer,
ser enganado etc., mentir etc.

Vários evangelistas para a confirmação da verdade.


A dissemelhança deles útil.

Eucaristia após a Ceia. Verdade após a figura.

Ruína de Jerusalém, figura da ruína do mundo.


40 anos depois da morte de Jesus.

Jesus não sabe como homem ou como legado. Mateus 24. 36.

Jesus condenado pelos judeus e pelos gentios.

Os judeus e os gentios, figurados pelos dois filhos. Agost. 20 de


Civit. 29.

969 (514)
Operai a vossa salvação com temor.

Pobres da graça.
petenti dabitur60. Portanto está em nosso poder pedir; o contrário,
pois, não está; porque a obtenção está, o pedir não está. Pois porque a
salvação não está, e a obtenção estando, o pedido não está.
O justo não mais deveria, portanto, esperar em Deus, pois não deve
esperar, mas esforçar-se por obter o que está pedindo.
Concluamos portanto que, já que o homem é incapaz agora de usar
desse poder próximo e que Deus não quer que seja por isso que deixe de
se afastar dele, não é senão mediante um poder eficiente que ele não se
afasta.
Portanto aqueles que se afastam não têm esse poder sem o qual
ninguém se afasta de Deus e quem não se afasta tem esse poder
eficiente.
Portanto aqueles que, tendo perseverado algum tempo na oração por
esse poder eficiente cessam de rezar, não têm esse poder eficiente.
E portanto Deus abandona o primeiro nesse sentido.

II. A SEGUNDA CÓPIA

É uma cópia do Manuscrito 9203. Gilberte Périer a havia mandado


fazer para seu uso pessoal. Essa cópia lhe permitiu supervisionar a
preparação da edição dos Pensamentos que se fazia em Paris. A partir
de 1667, cadernos de diversos capítulos eram-lhe enviados para
aprovação. (ms. B. N.f.fr. 12449.)

970 (632)
Sobre Esdras.
fábula: os livros foram queimados com o templo, falso para os
Macab: Jeremias deu-lhes a lei.
fábula: que ele recitou tudo de cor; Josefo e Esdras indicam que ele
leu o livro:
Baron. anno. 180. nullus penitus haebraeorum antiquorum reperitur
qui tradiderit libros periisse et per Esdram esse restitutos nisi in 4
Esdr.61.
fábula que ele mudou as letras.
Philo, in vita Moysi. Illa lingua ac caractere quo antiquitus scripta
est lex sic permansit usque62 ad 70.
Josefo diz que a lei estava em hebreu quando foi traduzida pelos 70.
Sob Antíoco e Vespasiano, quando se quis abolir os livros e quando
não havia profetas, não foi possível fazê-lo, e sob os babilônios, quando
nenhuma perseguição foi feita e havia tantos profetas, tê-la-iam deixado
queimar-se?

Josefo zomba dos gregos que não tolerariam…

Tertul. Perinde potuit abolefactam eam violentia cataclysmi, in


spiritu rursus reformare: quemadmodum et hierosolymis babylonia
expugnatione deleta, est omne instrumentum judaicae litteraturae per
Esdram constat restauratum63. Tert. I, 1. de cultu femin. c. 3.
Ele diz que Noé pôde restabelecer em espírito o livro de Enoch
perdido pelo dilúvio, da mesma forma que Esdras pôde restabelecer as
escrituras perdidas durante o cativeiro.

Alega isso para provar que não é inacreditável que os 70, tendo
explicado as Sagradas Escrituras com aquela uniformidade que se
admira neles. Euséb. I. 5. hist. c. 8 e ele retirou isso de Santo Irineu,
livro 3, cap. 25.
Santo Hilário, no prefácio sobre os salmos, diz que Esdras colocou
os salmos em ordem.
A origem dessa tradição vem do cap. 14 do livro 4 de Esdras.

Deus glorificatus est, et scripturae verae divinae creditae sunt,


omnibus eamdem, et eisdem verbis et eisdem nominibus recitantibus ab
initio usque ad finem uti et praesentes gentes cognoscerint quoniam per
aspirationem dei interpretatae sunt scripturae. Et non esset mirabile
deum hoc in eis operatum quando in ea captivitate populi quae facta est
a Nabuchodonosor corruptis scripturis et post 70 annos judaeis
descendentibus in regionem suam, et post deinde temporibus Artaxerxis
persarum regis inspiravit Esdrae sacerdoti tribus levi praeteritorum
propheta-rum omnes remorare sermones et restituere populo eam legem
quae data est per Moysen64.
971 (633)
Contra a fábula de Esdras.
2. Macab. 2

Josefo ant. 11. 1. Ciro tomou como razão a profecia de Isaías para
devolver a liberdade ao povo. – Os judeus tinham posses tranquilas sob
o reinado de Ciro em Babilônia. Portanto eles bem podiam ter a lei.

Josefo, em toda a história de Esdras, não diz uma palavra sobre esse
restabelecimento.
4 Reis. – 17. 27.

972 (634)
Se a fábula de Esdras é digna de fé, então deve-se acreditar que as
Escrituras são as Sagradas Escrituras; pois essa fábula não está
fundamentada senão na autoridade daqueles que dizem aquela dos 70,
que mostra que as Escrituras são sagradas.
Portanto, se este conto é verdadeiro, temos a nossa conta a partir daí;
senão temo-la noutra parte. E assim aqueles que gostariam de arruinar a
verdade de nossa religião, fundamentada em Moisés, a estabelecem pela
mesma autoridade pela qual a atacam. Assim, por essa providência, ela
subsiste sempre.

973 (919)
São os efeitos dos pecados dos povos e dos jesuítas: os grandes
desejaram ser adulados; os jesuítas desejaram ser estimados pelos
grandes. Todos foram dignos de ser abandonados ao espírito da mentira,
uns para enganar, outros para serem enganados. Foram avaros,
ambiciosos, voluptuosos: Coacervabunt sibi magistros65. Dignos
discípulos de tais mestres, digni sunt, procuraram aduladores e
encontraram.

974 (949)
Como a paz nos Estados só tem por objetivo manter os bens dos
povos em segurança, assim também a paz da Igreja só tem por objetivo
manter em segurança a verdade que é o seu bem, e o tesouro em que está
o seu coração. E como seria ir contra a finalidade da paz deixar entrar os
estrangeiros num Estado para pilhá-lo, sem se opor a isso, temendo
perturbar o repouso (porque a paz, só sendo justa e útil pela segurança
do bem, torna-se injusta e perniciosa quando o deixa perder-se, e a
guerra que pode defendê-lo se torna justa e necessária); da mesma
forma, na Igreja, quando a verdade é ofendida pelos inimigos da fé,
quando se quer arrancá-la do coração dos fiéis para nele fazer reinar o
erro, ficar em paz então seria servir a Igreja, ou traí-la? Seria defendê-la
ou arruiná-la? E não é visível que, como é um crime perturbar a paz
onde reina a verdade, também é um crime ficar em paz quando se destrói
a verdade? Há, pois, um tempo em que a paz é justa e outro em que é
injusta. E está escrito que “há tempo de paz e tempo de guerra”, e é o
interesse da verdade que os distingue. Mas não há tempo de verdade e
tempo de erro, e está escrito, ao contrário, que “a verdade de Deus
permanece eternamente“; e é por isso que Jesus Cristo, que disse que
veio trazer a paz, disse também que veio trazer a guerra; mas não disse
que veio trazer tanto a verdade quanto a mentira. A verdade é, portanto,
a primeira regra e o fim último das coisas.
III. A EDIÇÃO DE PORT-ROYAL (1678)

975 (275)
Os homens muitas vezes tomam a imaginação pelo coração; e
acreditam que estão convertidos a partir do momento que pensam em se
converter.

976 (19)
A última coisa que se encontra ao fazer um livro é saber aquela que é
preciso colocar primeiro.

IV. AS PASTAS DE VALLANT

Trata-se dos manuscritos B. N. f. fr. 17040 a 17058.


O Doutor Vallant era o médico da marquesa de Sablé e dos Périer.
Seus manuscritos foram confeccionados em 1684. Reúnem papéis
deixados pela marquesa (falecida em 1678) e documentos pessoais
O texto que reproduzimos foi publicado por Faugère em 1844, como
inédito de Pascal.
Na verdade, trata-se de um texto redigido por Nicole para a edição
dos Pensamentos, que ele não utilizou. Serviu-se apenas dos fragmentos
30 e 94.
Nicole desenvolveu-os de novo em seus Ensaios de Moral, T. II. Da
grandeza, 1a parte, cap. V.

977 (320)
As menos razoáveis coisas do mundo se tornam as mais razoáveis
por causa do desregramento dos homens. Que existe de menos razoável
do que escolher, para dirigir um Estado, o primeiro filho de uma rainha?
Não se escolhe para dirigir um navio aquele dentre os passageiros que
pertence à melhor família. Essa lei seria ridícula e injusta; mas porque
eles o são e sempre serão, ela se torna razoável e justa, pois a quem se
escolherá? O mais virtuoso e o mais capacitado? Eis-nos imediatamente
em brigas: cada um pretende ser esse mais virtuoso e mais capacitado.
Liguemos pois essa qualidade a algo incontestável. É o filho
primogênito do rei; isso é claro, não há disputa. A razão não pode fazer
melhor, pois a guerra civil é o maior dos males.

V. O MANUSCRITO PÉRIER (1710)

Era o manuscrito do cônego Louis Périer (1651-1713), último


sobrinho de Pascal. O original foi parcialmente reproduzido pelo padre
Desmolets (1728) e Dom Clémencet (por volta de 1750). Esse
manuscrito desapareceu, mas uma cópia, a única sem dúvida, foi feita
no decorrer do século XVIII. Essa cópia permitiu a Condorcet, Bossut,
Faugère, Sainte-Beuve, publicarem inéditos.
Reencontrada em 1944, depois de ter desaparecido em 1869, contém
textos conhecidos unicamente graças a ela, particularmente o Espírito
geométrico.

978 (100)
A natureza do amor-próprio e desse eu humano está em não amar
senão a si e em não considerar senão a si. Mas que fará ele? Não poderá
impedir que esse objeto de seu amor seja cheio de defeitos e de miséria;
quer ser grande, vê-se pequeno; quer ser feliz, vê-se miserável; quer ser
perfeito, vê-se cheio de imperfeições; quer ser objeto do amor e da
estima dos homens, e vê que seus defeitos só merecem a aversão e o
desprezo deles. Esse embaraço em que se encontra produz a mais injusta
e a mais criminosa paixão que se possa imaginar; pois ele concebe um
ódio mortal contra essa verdade que o repreende e que o convence de
seus defeitos. Desejaria aniquilá-la e, não podendo destruí-la em si
mesma, ele a destrói, tanto quanto pode, no seu conhecimento e no dos
outros; quer dizer que coloca todo o cuidado em encobrir os próprios
defeitos tanto aos outros como a si mesmo, e que não pode tolerar que os
façam ver ou que os vejam.
Não há dúvida de que é um mal estar cheio de defeitos; mas é um
mal ainda maior estar cheio deles e não querer reconhecê-los, pois que é
acrescentar-lhes ainda o de uma ilusão voluntária. Não queremos que os
outros nos enganem; não achamos justo que queiram ser estimados por
nós mais do que merecem: portanto não é justo tampouco que os
enganemos e queiramos que nos estimem mais do que merecemos.
Assim, quando descobrem apenas imperfeições e vícios, que nós
realmente temos, é visível que não nos fazem injustiça, visto que não são
eles que são sua causa, e até nos fazem bem, pois nos ajudam a nos
livrar de um mal, que é a ignorância de nossas imperfeições. Não
devemos ficar zangados por eles os conhecerem e nos desprezarem,
sendo justo tanto que nos conheçam por aquilo que somos, quanto que
nos desprezem, se somos desprezíveis.
Eis os sentimentos que nasceriam de um coração que estivesse cheio
de equidade e justiça. Que devemos então dizer do nosso ao ver nele
uma disposição totalmente contrária? Não é certo que odiamos a verdade
e aqueles que no-la dizem, e que gostamos que se enganem em benefício
nosso, e que queremos ser estimados como se fôssemos outros e não
aquilo que realmente somos?
Eis uma prova que me causa horror. A religião católica não obriga a
revelar os pecados indiferentemente a toda gente; tolera que se fique
escondido a todos os outros homens; mas faz exceção de um só, a quem
ela ordena descobrirmos o fundo do coração e nos mostrarmos tais quais
somos. Há somente esse único homem no mundo que ela nos ordena que
não enganemos, e ela o obriga a um segredo inviolável, que faz com que
esse conhecimento esteja nele como se não estivesse. Pode-se imaginar
algo de mais caridoso e mais suave? E no entanto a corrupção do homem
é tal que encontra ainda dureza nessa lei; e é essa uma das principais
razões que levam uma grande parte da Europa à revolta contra a Igreja.
Como o coração do homem é injusto e nada razoável para achar mau
que se obrigue a fazer em relação a um homem o que seria justo, de
algum modo, que fizesse em relação a todos os homens! Acaso é justo
que os enganemos?
Há diferentes graus nessa aversão pela verdade; mas pode-se dizer
que está em todos em algum grau, porque ela é inseparável do amor-
próprio. É essa má delicadeza que obriga aqueles que estão na
necessidade de repreender os outros a escolher tantos subterfúgios e
moderações para evitar chocá-los. Eles têm de diminuir os nossos
defeitos, de fingir que os desculpam, de misturá-los com elogios e
testemunhos de afeição e de estima. Com tudo isso, esse remédio não
deixa de ser amargo para o amorpróprio. Toma o menos possível dele, e
sempre com repulsa, e muitas vezes até com uma mágoa secreta contra
aqueles que lho apresentam.
Daí acontece que, se as pessoas têm algum interesse em ser amadas
por nós, evitam fazer-nos algo que saibam nos ser desagradável; tratam-
nos como queremos ser tratados: odiamos a verdade, escondem-na de
nós; queremos ser bajulados, bajulam-nos; gostamos de ser enganados,
enganam-nos.
É isso que faz com que cada degrau de boa fortuna que nos eleva
num mundo mais nos afasta da verdade, porque mais se fica apreensivo
em ferir aqueles cuja afeição é mais útil e cuja aversão, mais perigosa.
Um príncipe será a fábula de toda a Europa e ele próprio não ficará
sabendo de nada. Isso não me espanta: dizer a verdade é útil para aquele
a quem ela é dita, mas desvantajoso para aqueles que a dizem, porque se
fazem odiar. Ora, aqueles que vivem com os príncipes preferem os seus
interesses ao do príncipe a quem servem; e assim, não procuram obter
para ele uma vantagem prejudicando-se a si mesmos.
Essa desgraça é sem dúvida maior e mais comum entre as grandes
fortunas; mas as menores não estão livres dela, porque há sempre algum
interesse em se fazer estimar pelos homens. Assim a vida humana não
passa de uma ilusão perpétua; não se faz mais do que se entreenganar e
se entreadular. Ninguém fala de nós em nossa presença como fala em
nossa ausência. A união que existe entre os homens não é baseada senão
nessa mútua enganação; e poucas amizades subsistiriam se cada um
soubesse o que o amigo diz dele quando não está presente, embora fale
então sinceramente e sem paixão.
O homem não é portanto senão disfarce, mentira e hipocrisia, tanto
em si mesmo como para com os outros. Não quer que lhe digam a
verdade. Evita dizê-la aos outros; e todas essas disposições, tão afastadas
da justiça e da razão, têm uma raiz natural em seu coração.

979 (945)
O dia do juízo.
É a isso então, Padre, que chamais o sentido de Jansênio; é isso então
que passais ao papa e aos bispos!
Se os jesuítas fossem corrompidos e fosse verdade que estamos sós,
com mais forte razão deveríamos permanecer.
quod bellum firmavit, pax ficta non auferat.66
Neque benedictione, neque maledictione movetur, sicut angelus
Domini67.
Ataca-se a maior das virtudes cristãs, que é o amor da verdade.
Se a assinatura significa isso, tolere-se que eu o explique, a fim de
que não haja equívocos: pois é necessário concordar com que várias
pessoas acreditam que assinar indica o consentimento.
Se o relator não assinasse, o decreto seria invalidado; se a bula não
fosse assinada, seria válida; não é pois…
“Mas podeis ter-vos enganado?” Juro que acredito que posso ter me
enganado; mas não juro que creio que me enganei.
Não se é culpado por não acreditar e se será culpado de jurar sem
acreditar… belas questões; ele…
Estou contrariado por estar vos dizendo aqui: estou fazendo apenas
uma narrativa.
Isso, com Escobar, os coloca no ponto alto; mas eles não entendem
assim: e demonstrando desprazer de se ver entre Deus e o papa…

980 (918 bis)


Eles dizem que a Igreja diz o que não diz, e que ela não diz o que
diz.

981 (918)
Que seria dos jesuítas sem a probabilidade e da probabilidade sem os
jesuítas?
Retirai a probabilidade, não se pode mais agradar ao mundo; colocai
a probabilidade, não se pode mais ser-lhe desagradável. Outrora era
difícil evitar os pecados, e difícil expiá-los; agora, é fácil evitá-los
mediante mil jeitos e fácil expiá-los.
982 (918 ter)
Fizemos a uniformidade da diversidade, pois somos uniformes, no
que nos tornamos todos uniformes.

VI. OS MANUSCRITOS GUERRIER

Há três manuscritos do punho do Pe. Pierre Guerrier.


Os dois primeiros, denominados “gros in 4°” e “grand in 4°” estão
nos arquivos da família de Bellaigue de Bughas. A B. N. possui cópias
deles: f. fr. 12988 e 15281.
O terceiro é o ms. B. N. f. fr. 13913.
Os textos aqui reproduzidos foram tomados do “grand in 4°” e
B.N.f.fr. 12988.

983 (276)
O senhor de Roannez dizia: “As razões me vêm depois, mas antes a
coisa me agrada ou me choca sem que haja razão, e entretanto isso me
choca por essa razão que só descubro depois.” Mas eu creio, não que
isso chocasse por essas razões que se encontram depois, mas que só se
encontram essas razões porque isso choca.

984 (216)
Morte súbita, única coisa a temer, e é por isso que os confessores
moram nas casas dos grandes.

985 (942)
… Ora, a probabilidade é necessária para as outras máximas, como
para aquela de Lamy e (do) caluniador.
A fructibus eorum68… – Julgai a sua fé por sua moral.
A probabilidade é pouco sem os meios corrompidos e os meios não
são nada sem a probabilidade.
Há prazer em ter certeza de poder fazer bem e de saber fazer bem:
“Scire et posse.” A graça e a probabilidade o dão, pois se podem prestar
contas a Deus, com certeza sobre os seus autores.

986 (891)
É preciso fazer os hereges que se prevalecem da doutrina dos jesuítas
saberem que não é a da Igreja… a doutrina da Igreja, e que as nossas
divisões não nos separam da unidade.

987 (892)
Se diferindo condenássemos, teríeis razão. A uniformidade sem
diversidade inútil aos outros, a diversidade sem uniformidade ruinosa
para nós. – Uma nociva por fora, a outra por dentro.

988 (488)
… Mas é impossível que Deus jamais seja o fim, se ele não é o
princípio. Dirige-se o olhar para o alto, mas estáse apoiado na areia: e o
chão cederá, e se cairá olhando para o céu.
989 (935)
Os jesuítas. – Os jesuítas quiseram juntar Deus ao mundo, e só
ganharam o desprezo de Deus e do mundo. Porque, do lado da
consciência, isso é evidente; e, do lado do mundo, eles não são bons
cabalistas. Têm poder, como muitas vezes eu disse, mas isso é apenas
com relação aos outros religiosos. Terão o crédito de mandar construir
uma capela e de ter uma estação de jubileu, não de poder fazer obter
bispados, governos de praça. É uma posição tola no mundo a dos
monges, que mantêm, conforme a sua própria confissão (Pe. Brisacier,
Beneditinos). Entretanto… vergais sob o peso de outros mais poderosos
do que vós, e oprimis com vosso pequeno crédito aqueles que têm
menos intriga do que vós no mundo.

990 (948)
Ao corromper os bispos e a Sorbonne, se não tiveram a vantagem de
tornar seu julgamento justo, tiveram a de tornar seus juízes injustos. E
assim, quando forem por eles condenados no futuro, dirão ad hominem
que são injustos, e assim refutarão o seu julgamento. Mas isso não serve
para nada. Pois, como não podem concluir que os jansenistas estão bem
condenados, pela simples razão de que são condenados, assim também
não poderão concluir então que eles próprios estarão mal condenados
porque o serão por juízes corruptíveis. Pois a sua condenação será justa,
não porque será lavrada por juízes sempre justos, mas por juízes justos
nisso; o que será demonstrado mediante outras provas.

991 (952)
Como os dois principais interesses da Igreja são a conservação da
piedade dos fiéis e a conversão dos hereges, estamos cheios de dor por
ver as facções que se constituem hoje para introduzir os erros mais
capazes de fechar para sempre para os hereges a entrada de nossa
comunhão e de corromper mortalmente aquilo que nos resta de pessoas
piedosas e católicas. Esse empreendimento que se faz hoje tão
abertamente contra as verdades da religião e as mais importantes para a
salvação, não nos enchem apenas de desprazer, mas também de pavor e
de temor, porque, além do sentimento que todo cristão deve ter dessas
desordens, temos a mais a obrigação de encontrar remédio para elas e
empregar a autoridade que Deus nos deu para fazer com que os povos
que ele nos confiou etc.

992 (946 bis)


Anat. Ele faz o discípulo sem ignorância, e o mestre sem presunção.

993 (909)
A sociedade toda de seus casuístas não pode assegurar a consciência
no erro, e é por isso que é importante escolher bons guias.
Assim, eles serão duplamente culpados: já por terem seguido vias
que não deviam seguir, já por terem ouvido doutores que não deviam
ouvir.
ADDENDA
Julgamos interessante frisar que se encontram na Coletânea original
(Recueil Original ), em diversos lugares, pedacinhos de papel com
títulos. Seriam todos do punho de Pascal? não podemos afirmar.
página 15: Figuras particulares.
– 21: Miséria do homem.
– 29: Figuras.
– 39: Provas de Jesus Cristo pelas Escrituras.
– 43: Fundamentos da Religião e resposta às objeções.
– 47: Títulos particulares.
Conhecimento do homem – e no verso: 8-9
– 47:
continuação de conhecimento do homem.
– 49: Provas de Jesus Cristo. – 19-20-21-32.
– 79: Vaidade do homem.
Encontram-se também, na página 20, sinais estenográficos que estão
por decifrar.

1. Ruth I, 16: “… vosso povo é meu povo e vosso Deus é meu Deus.”
2. Jer. II, 13: “… Eles me abandonaram, a mim, fonte de água viva.”
3. Sl. CXVIII, 16: “Meditarei sobre as tuas justificações, não esquecerei as
tuas palavras.”
4. Achamos interessante observar que se encontram na Coletânea original,
em vários lugares, pedacinhos de papel com títulos. Seriam todos do punho de
Pascal? Não poderíamos afirmar.
Figures particulières [Figuras particulares] (p. 15). Misère de l’homme
[Miséria do homem] (p. 21). Figures [Figuras] (p. 29). Preuves de Jésus-Christ
par l’Écriture [Provas de Jesus Cristo pelas Escrituras] (p. 39). Fondements de
la Religion et réponses aux objections [Fundamentos da religião e respostas às
objeções] (p. 43). Titres particuliers [Títulos particulares] (p. 47). Connaissance
de l’homme [Conhecimento do homem] – e no verso: 8-9 – suite de connaissance
de l’homme [sequência do conhecimento do homem] (p. 47). Preuves de Jésus-
Christ [Provas de Jesus Cristo] – 19-20-21-32 (p. 49). Vanité de l’homme
[Vaidade do homem] (p. 79).
Encontram-se igualmente, na p. 20, sinais estenográficos que estão por
decifrar.
5. Feuillant, feuillantine (de Notre-Dame de Feuillans, perto de Toulouse).
Nome dado aos frades e monjas cistercienses, reformados por Jean de La
Barrière, famosos pelo rigor de sua observância. A ordem foi extinta em 1789.
(N. do T.)
6. Ao povo que será o juiz entre os jesuítas e os jansenistas. (N. do T.)
7. Decisão de 25 de junho de 1657 suprimindo a carta de Pascal relativa à
Inquisição. (N. do T.)
8. Bula de Alexandre VII condenando Jansênio (31 de março de 1657). (N. do
T.)
9. O nome oficial da congregação dos padres jesuítas é Sociedade de Jesus.
(N. do T.)
10. Jo. X, 34: “Respondeu-lhes Jesus: Não está dito na vossa lei: Eu disse:
Vós sois deuses?”
11. São Bernardo: “Faço apelo a vosso tribunal, Senhor Jesus! ” numa carta
a seu primo-irmão Roberto a quem o papa Calisto II (1119) havia, por um breve,
dispensado dos votos pronunciados em Cister, sem que tivesse havido debate
contraditório. (E. Vacandart, Vie de Saint Bernard, I, p. 92.)
12. Jo. XI, 33: “Quando Jesus viu (Maria) a chorar e os judeus que tinham
vindo com ela, também a chorar, estremeceu em espírito e ficou perturbado.”
13. Jo. XVIII, 4-5: “Mas Jesus, sabendo tudo que lhe devia acontecer,
adiantou-se e perguntou-lhes: A quem buscais? Responderam-lhe: A Jesus de
Nazaré.”
14. Cf. Horácio, Epístolas, liv. I, ep. 2, V, 26: “(Ulisses) vivera a vida de um
cão imundo, de uma porca presa à sua lama” (E. Jovy, Études pascaliennes, VIII,
Vrin, 1932).
15. Gn. III, 5: “Sereis como deuses, sabedores do bem e do mal.”
16. Cf. Símbolo de Nicéia: “(Creio na Igreja) una, santa, católica e
apostólica.” Alusão à bula Unam sanctam de Bonifácio VIII.
17. Referências a proposições de casuístas: “De tal homem”, “De um falso
crime”, “Do mais ou menos” “O mais recente”.
18. “Clemente (o papa?) admite.”
19. Deus escondido. (N. do T.)
20. Cf. Ofício do Sábado Santo: “Ele mereceu ter um Redentor.”
21. Cf. Ofício da Sexta-feira Santa: “Ele mereceu tocar membros tão
sagrados.”
22. Cf. Vexilla Regis: “Digna…”
23. Lc. VII, 6: “O Centurião enviou seus amigos (a Jesus) dizendo-lhe:
Senhor, … eu não sou digno de que entres sobmeu teto.” – I Cor. XI, 29: “Pois
quem dele come e bebe indignamente, come e bebe o seu próprio julgamento.”
24. Apoc. IV, 11: “Senhor nosso Deus, és digno de receber glória, honra e
poder; pois criaste todas as coisas…”
25. Ofício da Santíssima Virgem: “Julga-me digno.”
26. I Cor. I, 31: “… a fim de que, como está escrito, quem se glorifica se
glorifique no Senhor.”
27. Jo. XX, 17: “Não me toques.”
28. Cf. Miq. III, 5: “O Senhor disse estas coisas sobre os profetas que
seduzem o meu povo, que mordem com os dentes e pregam a paz. E se alguém
não lhes dá razão, pregam a guerra santa contra ele.”
29. “Se infligem a morte a um excomungado, não os reputamos homicidas,
pois é por arderem de zelo por sua mãe católica contra os excomungados que
são levados a matar um deles.”
30. “Queremos que saibas.”
31. Cf. acima “Clemens placet ”. Leitura duvidosa.
32. “Honorários contra as Constituições.”
33. “Outros tempos, outros cuidados.”
34. Literalmente: “O Jesuíta é todo homem”, isso quer dizer que ele sabe
modificar-se conforme as circunstâncias.
35. “Não enquanto esmola.”
36. Notas do punho de Arnaud, tomadas na coletânea das Cartas aos
superiores gerais da Sociedade de Jesus (Antuérpia, 1635). As reflexões em
francês [no original, aqui em português] são de Pascal.
37. “Se alguém disser”, início da fórmula de anátema.
38. “Palavra por palavra.”
39. Is. I, 19: “Se quiserdes e me ouvirdes, consumireis os bens da terra.”
40. “Em qualquer dia.”
41. Suprimir. (N. do T.)
42. “Esta é a grande cegueira do coração.”
43. “Esta é a maior cegueira do coração.”
44. São Próspero (?): “Então o abismo da iniquidade encerra o homem.”
45. Cf. notas 12 (Primeira Seção) e 53 (Segunda Seção).
46. Tito III, 9: “Quanto às questões imprudentes, às genealogias, às
contensões, às disputas sobre a lei, evitai-as…”
47. “Prestou-me contas disso.”
48. “Suprimir ”.
49. “Eles não acreditavam, levianamente, no caluniador.”
50. “Caindo de todos os lados, fez com que eu também caísse.”
51. Sab. XIX, 4: “Como os conduzisse para esse fim uma justa
necessidade…”
52. Cf. Décima Quinta Provincial: “Vós mentis desbragadamente.”
53. Prov. XII, 8: “É por sua doutrina que se conhecerá o homem.”
54. Jer. IX, 5: “Porque treinaram a língua para mentir e trabalharam para agir
injustamente.”
55. cf. nota 46.
56. “Ampliando-as, diminuindo-as, do mais ao menos.” “O mais recente.”
57. À questão de Escobar “se uma mulher é obrigada a restituir a seu marido o
ganho que obteve com o adultério”, Molina responde afirmativamente, porque “o
marido é o dono dos atos conjugais da mulher”. Lessius julgava, ao contrário,
que “a injustiça ou o adultério não pode ser compensado com dinheiro.”
58. Cf. nota 105 (Segunda Seção).
59. São Bernardo, Últimos sermões, sobre o texto de São Lucas (I, 26): “O
anjo Gabriel foi enviado.”
60. “A quem pede será dado.”
61. Barônio, X-XVIII: “Ninguém se encontra, entre os antigos hebreus, que
tenha contado que os livros se tenham destruído e tenham sido reconstituídos por
Esdras, a não ser no IV livro de Esdras.”
62. Filon. liv. II: “A língua e as letras em que foi antigamente escrita a lei
permaneceram as mesmas até os Setenta.”
63. Tertuliano, liv. I: “De cultu femin. c. 3: “(Noé) pôde tão bem restabelecer
em espírito o livro (de Enoc) destruído pela violência do cataclisma, como é
certo que Esdras pôde fazê-lo para o conjunto dos livros hebraicos destruídos no
decorrer da tomada de Babilônia.”
64. A tradução latina do texto de Eusébio é de Pascal. “Deus foi glorificado, e
se deu fé às verdadeiras escrituras divinas, que todos recitavam nos mesmos
termos exatamente desde o início até o fim, a fim de que os povos presentes
conhecessem que as Escrituras foram interpretadas pela inspiração de Deus, e que
não era de estranhar que Deus tenha cumprido neles essa obra, pois que, no
cativeiro do povo sob Nabucodonosor, tendo sido destruídas as Escrituras, e
retornando, setenta anos mais tarde, os judeus ao seu país e, em seguida, no
tempo de Artaxerxes, rei dos persas, ele inspirou a Esdras, sacerdote da tribo de
Levi, a ideia de lembrar as profecias antigas e de restituir ao povo a lei que ele
tinha dado por Moisés.”
65. Cf. II Tim. IV, 3: “Pois um tempo virá em que os homens não suportarão
mais a sã doutrina mas segundo os seus desejos darão a si mesmos mestres em
grande quantidade.”
66. “O que a guerra confirmou, não o roube uma falsa paz.” – Cf. Réponse
des Curés de Paris… (1o de abril de 1658.)
67. II Reis XIV, 17: “Pois como é um anjo de Deus, assim é meu Senhor, o
rei, pois não se comove nem com a bênção nem com a maldição…”
68. Mat. VII, 16: “Por seus frutos os julgareis.”
Proposições atribuídas a Pascal
1000
O Sr. Pascal dizia desses autores que, falando de suas obras, dizem:
“Meu livro, meu comentário, minha história etc.” que eles transpiram o
seu lado de burguês estabelecido, que têm sempre um “lá em casa” na
boca. Fariam melhor, acrescentava esse excelente homem, se dissessem:
“Nosso livro, nosso comentário, nossa história etc.”, visto que
ordinariamente há nisso maior parte de bem alheio do que deles.
(Relatado por De Vigneul-Marville.)

1001
Não posso perdoar a Descartes: ele bem que gostaria, em toda a
filosofia, de poder dispensar Deus; mas não pôde evitar de atribuir-lhe
um piparote para colocar o mundo em movimento; depois disso, ele não
tem mais o que fazer de Deus. (Relatado por Marguerite Périer.)

1002
1o Perguntam-me se não me arrependo de ter feito as Provinciais. –
Respondo que, longe de me arrepender, se tivesse de fazê-las agora
(1662), eu as faria ainda mais fortes.
2o Perguntam-me por que mencionei o nome dos autores dos quais
tirei todas as proposições abomináveis que ali citei. – Respondo que se
eu estivesse numa cidade onde houvesse doze chafarizes, e soubesse
com certeza de que um estivesse envenenado, estaria obrigado a avisar
toda a gente para que não fossem buscar água nesse chafariz; e, como se
podia imaginar que era uma pura imaginação de minha parte, seria
obrigado a nomear aquele que o envenenou, antes que expor toda uma
cidade a se envenenar.
3o Perguntam-me por que empreguei um estilo agradável, brincalhão
e divertido. – Respondo que se tivesse escrito num estilo dogmático, não
haveria para lê-lo senão os sábios, e estes não tinham necessidade,
sabendo tanto quanto eu a respeito; assim, achei que devia escrever de
maneira própria a que as minhas cartas fossem lidas pelas mulheres e
pelas pessoas da sociedade, a fim de que conhecessem o perigo de todas
essas máximas e de todas essas proposições, que se espalhavam então
por toda parte e pelas quais se deixavam facilmente persuadir.
4o Perguntam-me se eu mesmo li todos os livros que cito. –
Respondo que não: certamente seria necessário que passasse a minha
vida a ler livros muito ruins; mas li duas vezes Escobar por inteiro; e,
quanto aos outros, pedi a meus amigos que os lessem; mas não citei
nenhuma passagem sem que a tivesse lido eu mesmo no livro citado, e
sem ter examinado a matéria sobre a qual é feita a afirmação, e sem ter
lido o que precede e o que segue, para não arriscar citar uma objeção
como se fosse uma resposta, o que teria sido censurável e injusto.
(Relatado por Marguerite Périer.)

1003
Eis uma boa ocupação para M. Arnaud, trabalhar para uma lógica!
As necessidades da Igreja pedem todo o seu trabalho. (Relatado pelo
padre Pascal.)

1004
Muitas vezes ouviram-no dizer (a respeito da instrução de um
príncipe) que nada havia para que ele mais quisesse contribuir, se fosse
incumbido disso, e sacrificaria de bom grado a vida por uma coisa tão
importante. (Relatado por Nicole.)

1005
O falecido Sr. Pascal, quando queria dar um exemplo de um
devaneio que podia ser aprovado por teimosia, propunha em geral a
opinião de Descartes sobre a matéria e sobre o espaço. (Relatado por
Nicole.)
1006
A piedade cristã aniquila o eu humano, e a civilidade humana o
esconde e o suprime. (Relatado em La Logique de Port-Royal [A lógica
de Port-Royal.])

1007
O Sr. Pascal escreveu no dorso da sua Bíblia: Todas as falsas belezas
que encontramos em Santo Agostinho têm admiradores, e eles são
numerosíssimos. (Manuscrito 4333. Biblioteca Nacional f. fr.)

1008
O falecido Sr. Pascal chamava a filosofia cartesiana de romance da
natureza, mais ou menos parecido com a história de Dom Quixote…
(Relatado por Menjot.)

1009
Sr. le Maistre. Processos.
O Sr. Pascal zombava disso e dizia ao Sr. le Maistre que este havia
escrito bem, entretanto, bem para as domésticas do palácio que não
entendiam nada.
(B. N. N. Acq. ms. 4333.)

1010
O Sr. Pascal queria que todas a maneiras de falar em versos fossem
francesas e boas; que sejam nobres e escorreitas oportunamente: de outra
forma, são só palavrório enrolado.
(B. N. N. Acq. ms. 4333.)
Nota a respeito do retrato de Pascal por François II
Quesnel
O padre Pierre Guerrier dá a esse respeito as seguintes informações
(B. N. f. fr. 13913. P. 293):
“A Senhorita Périer me disse que o Sr. Pascal, seu tio, usava sempre
um relógio preso ao seu pulso esquerdo. Quando o Sr. Quesnel, irmão do
padre Quesnel, terminou o retrato do Sr. Pascal, que morrera fazia vários
anos, mostrou-se esse retrato a um número bastante grande de pessoas
que tinham conhecido aquele grande homem. Todos o acharam
perfeitamente parecido. A Srta. Périer mostrou-o a um relojoeiro de
Paris, que trabalhara frequentes vezes para seu tio, e perguntou-lhe se
reconhecia o retrato. ‘É o retrato, disse o homem, de um senhor que
esteve aqui muitas vezes para mandar consertar o relógio, mas eu não sei
o nome dele.’”
(O retrato deve ter sido executado em 1664, sendo que os Périer só
deixaram Paris no fim de 1664. A Srta. Périer (Marguerite) só voltou a
Paris em 1686. – Ela já tinha mais de oitenta anos na época em que
transmitiu as suas recordações ao Pe. Pierre Guerrier.)

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