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O

SEIO
Do original norte-americano THE BREAST
Copyright © 1972 by Philip Roth
Copyright 1974 da edição em português Editora Artenova S.A.
Traduzido por Roberto Mello
Capa de Salvio Negreiros – Studio Artenova
Reservados todos os direitos desta tradução. Proibida a reprodução, mesmo parcial, sem expressa
autorização da Editora Artenova S.A.
Editora Artenova S.A.
Composto e impresso no Brasil – Printed in Brazil

PHILIP ROTH
O SEIO
Tradução de ROBERTO MELLO
EDITORA ARTENOVA S.A.
Rua Prefeito Olímpio de Melo, 1774
Tel. PBX 228-7124 • 228-7125
end. telegráfico ARTNOVA
São Cristóvão – Rio – GB
Contracapa

O seio é um livro espantosamente estranho. Por um fantástico processo de


metamorfose, um homem vai, pouco a pouco, se transformando num seio de
mulher — e aqui está uma recriação kafkiana de um terrível simbolismo, do
mesmo nível, embora em outro contexto, de A Peste, de Albert Camus.

Orelhas

PHILIP ROTH, um dos maiores nomes da atual literatura americana, autor do


célebre O Complexo de Portnoy e de meia dúzia de outros romances que o
colocam entre os cinco mais importantes romancistas modernos dos Estados
Unidos, realiza neste pequeno e simbólico livro uma obra-prima de concisão e
angústia, deixando o leitor atônito. A transformação lenta e gradativa do
personagem principal em um seio feminino, e o crescimento angustiante de seus
desejos dentro de uma realidade monstruosamente erótica, reflete nitidamente,
em sua involução fisiológica, a evolução psicológica do ser humano na
sociedade atual, a libertação de suas fantasias eróticas (que o herói realiza talvez
muito mais como um seio do que como o homem comum, pelos processos
fálicos), a liberação, através da psicanálise, das cargas neuróticas de toda a
repressão sexual anterior: "Paixão talvez não seja a palavra exata: digamos,
prazer puramente táctil, mais suscetível ao imediato deleite sensual. Sexo, não na
cabeça, não no coração, mas tormentosamente na epiderme do pênis, sexo na
pele, profundo e cheio de êxtase. Em contorções de prazer, era como me
surpreendia na cama, arranhando os lençóis e torcendo a cabeça e os ombros de
um modo que anteriormente associava mais com as mulheres do que com os
homens, e mulheres mais imaginárias que reais. Aí, sentia que simplesmente não
poderia aguentar mais aquelas sensações, quase gritava de prazer, e quando dava
por mim estava com a orelha de Claire na minha boca e a lambia feito um
cachorro."
Com O Seio a Artenova reinicia a publicação no Brasil da obra de Philip
Roth, lançando a seguir Minha vida de homem (My life as a man) e A grande
novela americana (The Great American Novel), seus dois últimos best-sellers.

ÁLVARO PACHECO
Editor

Para
ELIZABETH AMES,
diretora executiva da YADDO
e para
THE CORPORATION OF YADDO
Saratoga Springs, New York,
OS MELHORES AMIGOS
que um escritor pode ter.
O SEIO
COMEÇOU ESTRANHAMENTE. Mas poderia ter começado de outro modo, uma
vez que começou? Decerto, costuma-se dizer que todas as coisas sob o sol
começam "estranhamente" e terminam "estranhamente" e são "estranhas": uma
rosa perfeita é "estranha", assim como uma rosa imperfeita, assim como o bom
aspecto comum e róseo de uma rosa que cresce no jardim do seu vizinho. Sei
daquela perspectiva que torna todas as coisas terríveis e misteriosas. Se estiver
pronto para isso, reflita sobre a eternidade, considere o esquecimento, e tudo que
é maravilhoso. Apesar de tudo, deixaria a seu critério, com toda a humildade,
verificar que algumas coisas são mais maravilhosas do que outras, e eu sou uma
delas.
Começou estranhamente, e então com um suave, esporádico formigamento
na virilha. Naquela primeira semana, me recolhia diversas vezes por dia ao
banheiro dos homens perto do meu escritório no prédio de Letras para tirar as
calças, mas depois de me examinar não via nada de extraordinário, por mais
minuciosa que e fosse minha pesquisa. Com relutância, tibiamente (e não
realmente), decidi ignorá-lo. Durante toda minha vida, fui um hipocondríaco tão
devotado, tão atento a cada mudança na temperatura do corpo e na regularidade
orgânica, que há muito tempo se tornou impossível, para o homem razoável que
por coincidência eu também era, levar a sério os sintomas significativos que
descobria em mim mesmo quase toda semana, sinais de grave e incurável
doença, invariavelmente. Apesar das sombrias premonições de aniquilamento,
paralisia, ou sofrimento insuportável que pudessem acompanhar cada nova dor
ou febre, tinha afinal de admitir que completei trinta e oito anos sem nenhuma
doença séria no meu passado; era um homem de saudáveis movimentos
intestinais, com uma potência sexual digna de confiança, resistente e de bom
apetite, um metro e oitenta de altura, boa postura e físico em forma, com a
maioria dos fios de cabelo e todos os dentes. Portanto, embora pudesse
identificar de modo dramático e hipocondríaco este formigamento na virilha com
alguma doença nervosa do tipo das do herpes — se tanto — ao mesmo tempo
compreendia que sem dúvida, como sempre, não era nada.
compreendia que sem dúvida, como sempre, não era nada.
Eu estava errado. Era alguma coisa. Levei mais uma semana para poder
discernir um leve avermelhamento da pele debaixo dos meus pretos e
encaracolados pelos púbicos; a mancha, contudo, era tão tênue, que acreditei que
tinha de estar imaginando coisas. Mais outra semana — perfazendo, como
registro, um período de "incubação" de vinte e um dias — para me olhar uma
noite a caminho do chuveiro e descobrir que de algum modo, durante aquele
longo e agitado dia de aulas e conferências e permutas e jantar fora de casa, a
carne da base do meu pênis tinha se transformado numa suave sombra
avermelhada. Eu parecia manchado, como se uma pequena framboesa, ou talvez
uma cereja, tivesse sido esmagada contra meu púbis, e sucos escorrendo pelo
membro abaixo, colorindo sua raiz de modo desigual, mas inequivocamente de
vermelho. Mancha, decidi no instante seguinte, das minhas cuecas (que as
cuecas usadas por mim naquele dia fossem de um azul pálido e estivessem a
meus pés não significava nada naquele ímpeto de incredulidade apavorada).
No chuveiro, ensaboei e enxaguei meu pênis e meus pelos púbicos três vezes
seguidas, depois me cobri desde as coxas até o umbigo com uma densa camada
de bolhas de sabão; quando me enxaguei com água quente —
desconfortavelmente quente desta vez — a mancha ainda estava lá. Não uma
erupção da pele, não uma sarna, não um machucado ou uma ferida, mas uma
mudança de pigmento tão intensa, que associei logo a câncer. Telefonei
imediatamente para a casa do meu médico. Dr. Gordon é um homem meticuloso
e consciencioso, e apesar da tentativa de ocultar meu sobressalto, ele captou o
medo em minha voz, resolveu se vestir e atravessar a cidade até meu
apartamento para me examinar.
Era exatamente meia-noite, hora em que, segundo os chegados à magia,
acontecem as transformações, hora em que é muito difícil se achar um médico na
Cidade de Nova York. Se Claire tivesse ficado comigo naquela noite, em vez de
ter voltado para o seu apartamento, preparando um daqueles relatórios de
comitês, talvez eu tivesse tido a coragem do meu medo e dito ao doutor para vir
correndo. Certamente, é improvável que com base nos meus sintomas naquela
hora o Dr. Gordon tivesse decidido internar-me num hospital, nem podia parecer
pelo que agora sabemos — ou continuamos a não saber — que logo que eu
estivesse no hospital, qualquer coisa pudesse ter sido feita para evitar ou deter o
desastre. O sofrimento e o terror das próximas quatro horas poderiam talvez ter
sido aliviados pela morfina, mas nada indica que o processo em si pudesse ser
invertido por qualquer procedimento médico, salvo a eutanásia.
Com Claire ao meu lado, poderia então ter sido capaz de ceder
completamente, mas sozinho me senti de repente envergonhado e acovardado
pelo modo com que perdia o controle de mim mesmo; não mais que três minutos
pelo modo com que perdia o controle de mim mesmo; não mais que três minutos
se passaram desde a descoberta da mancha, e lá estava eu, molhado e nu em meu
sofá de couro, tentando inutilmente dominar o tremor na voz enquanto olhava
para baixo, para o meu pênis, e dava ao médico a descrição do que tinha visto.
Controle-se, pensei — e assim me controlei, como acontece quando eu o digo a
mim mesmo. Falei que se aquilo era o que temia desde o primeiro momento,
podia esperar até amanhã; e se não era, podia esperar também. Eu estaria ótimo.
Estava exausto, depois de um dia duro, chocado, apenas isso. Iria vê-lo em seu
consultório ao — como sou corajoso, pensei — meio-dia.
Nove, disse ele. Concordei e disse, o mais calmo que pude, "boa noite".
Ao telefone, repetia para o doutor a história da sensação de formigamento na
virilha, e descrevia meu pênis manchado de uma forma que, esperava eu, soasse
como objetividade "médica". Não tinha mencionado um terceiro sintoma, porque
até que desligasse não o associei a minha "condição". Tratava-se do aumento
dramático na sensação local que experimentava enquanto fazia amor com Claire,
durante as três semanas precedentes. Até então, eu o associava a uma
ressurgência do meu desejo por ela. De onde e por que, não podia saber — para
mim ela era aquela jovem e encantadora mulher não mais nem menos voluptuosa
do que sempre tinha sido — mas eu estava deliciado em senti-lo novamente. De
qualquer forma, a intensa lascívia que sua beleza física me despertou nos
primeiros dois anos do nosso caso vinha constantemente declinando desde há um
ano, até que, ultimamente, chegava a fazer amor com ela duas, quem sabe, três
vezes por mês, e então, então, geralmente sob sua provocação.
Meu desinteresse, minha frieza era deprimente para nós dois, mas como
ambos tínhamos suportado considerável transtorno emocional e desorientação
psíquica em nossas vidas (ela na infância com pais amargamente hostis e
acrimoniosos, eu com uma mulher enfurecida), éramos igualmente relutantes em
dar qualquer passo para dissolver nossa união por causa disso. Por mais
deprimente que fosse, e certamente o era, para uma mulher jovem e simpática de
vinte e cinco anos, ser rejeitada na cama noite após noite, Claire revelava
externamente o mínimo de suspeita ou frustração ou mágoa ou raiva que seriam
justificadas nas circunstâncias até mesmo por mim, a fonte da sua infelicidade.
Sim, ela paga um preço por esta "equanimidade" — não é a mulher mais
expressiva que já conheci, com toda sua paixão pelo sexo — mas atingi um
estágio na minha vida — isto é, tinha atingindo — em que as águas plácidas,
claras e calmas do porto me agradavam mais do que o drama espumante dos
altos mares. Eu que me iludia pela espontaneidade e pelo temperamento, agora
descobria meu prazer na moderação e no que era previsível. Se algumas vezes a
perfeita compostura de Claire tornava sua conversa ou sua companhia menos
comunicativa e menos interessante do que gostaria que fosse, na verdade eu
estava muitíssimo contente com sua firme sobriedade para me aborrecer muito
estava muitíssimo contente com sua firme sobriedade para me aborrecer muito
com ela pela falta de brilho.
Eu tinha tido muito "brilho", obrigado: seis anos.
O que me angustiava tanto em relação ao desejo evanescente se devia a que,
durante os nossos três anos, Claire e eu tínhamos planejado uma maneira de
viver juntos — que em parte implicava viver separados — para nos garantir o
calor e a segurança da companhia e da afeição de um pelo outro, sem o
acompanhamento do fardo da dependência, ou do tédio opressivo, ou do anseio
selvagem, opaco, ou da vigília das horas e suas estratégias de engano,
apaziguamento, e dominação que pareciam ter azedado quase todos os
casamentos que conhecíamos. Graças a sua infância infeliz, Claire era tão
obstinada e tão desiludida a respeito de casamento, quanto eu próprio, graças ao
meu infeliz encontro com ele — por mais limitada que minha experiência possa
ter sido, produziu em mim, não obstante, uma capacidade monumental para a
abstinência, e jurei que nunca mais iria tentar de novo. Além disso, ninguém
parecia ter um arranjo tão de bom senso e tão gratificante quanto o nosso;
realmente íamos levando a vida com tanta facilidade e com tão pouca tensão,
gostávamos tanto um do outro, que me pareceu algo muito semelhante a um
desastre (pouco sabia eu de desastre) quando, inesperadamente, comecei a achar
nosso romance enfadonho e sem prazer. No ano anterior, tinha terminado cinco
anos de psicanálise com a convicção de que as chagas que sofri naquele
casamento grandguignolesco (e no dilacerante divórcio) tinham sido curadas, na
medida do possível; não era o homem que tinha sido antes, mas também não era
mais o maldito recruta com o crânio enrolado em bandagens e batendo os
tambores da autocomiseração quando chegava em prantos ao consultório do
analista, saído daquele campo de batalha que todo mundo já está farto de saber
qual é. Com Claire, a vida tinha se tornado ordeira e estável — a primeira vez
em mais de uma década que pude dizer isso sobre minha vida; me sentia sobre
meus pés, ancorado e permanente a respeito de mim mesmo, como nunca desde
os tempos de veterano na faculdade, e sabia positivamente que eu era uma
pessoa séria e inteligente. Logo agora, eu em pleno apogeu, essa diminuição do
desejo pela própria mulher que tanto tinha ajudado a moldar minha nova vida de
contentamento. Era aflitivo, desconcertante, e por mais que tentasse, me sentia
incapaz de alterá-lo. Por fim, simplesmente não dava a mínima importância para
acariciá-la ou ser acariciado. De fato, tinha marcado uma consulta com meu ex-
analista para discutir com ele esta perda de interesse sexual por Claire, quando,
inesperadamente de novo, me senti subitamente mais apaixonado do que já tinha
estado antes por ela ou por qualquer outra.
Paixão talvez não seja a palavra exata: digamos, prazer puramente táctil,
mais suscetível ao imediato deleite sensual. Sexo, não na cabeça, não no
mais suscetível ao imediato deleite sensual. Sexo, não na cabeça, não no
coração, mas tormentosamente na epiderme do pênis, sexo na pele, profundo e
cheio de êxtase. Em contorções de prazer, era como me surpreendia na cama,
arranhando os lençóis e torcendo a cabeça e os ombros de um modo que
anteriormente associava mais com as mulheres do que com os homens, e
mulheres mais imaginárias que reais. Aí, sentia que simplesmente não poderia
aguentar mais aquelas sensações, quase gritava de prazer, e quando dava por
mim estava com a orelha de Claire na minha boca e a lambia feito um cachorro.
Lambia seu cabelo. Eu me surpreendia arquejante lambendo meu próprio ombro.
Durante a semana final do meu período de incubação, estava em cima dela como
um animal em perpétuo cio. Tendo deitado indiferentemente ao lado dela por
quase um ano, estava entrando agora numa nova fase compensatória de
suscetibilidade erótica e liberação carnal nada semelhante ao que já tivesse
conhecido — ou assim pensava eu. "É isso o que se entende por devassidão?",
perguntei a minha feliz amiga, cuja pele pálida trazia as marcas dos meus dentes.
Ela apenas sorria. Seu cabelo estava pegajoso de suor, como o de uma
menininha que tivesse brincado muito tempo exposta ao calor. Gratificante
Claire.
Ai de mim, o que me aconteceu não se parece em nada com que alguém já
tenha conhecido; além do entendimento, além da compaixão, além da comédia,
embora haja aqueles, eu sei, que pretendem estar à beira de alguma definitiva
explanação científica; e aqueles, meus fiéis visitantes, cuja compaixão é
profundamente sentida, pesarosos e delicados; e ainda há outros — não
poderiam faltar — espalhados pelo mundo afora e que não podem ajudar, mas
rir. E, às vezes, estou com eles: entendo, tenho pena, percebo a piada. Se ao
menos eu pudesse manter a risada por mais que alguns segundos — se ela ao
menos não fosse tão breve e tão amarga. Mas talvez seja isso o que tenha de
buscar, se os senhores da medicina forem capazes de manter a vida em mim
nesta situação, e se eu continuar querendo que eles o façam.
SOU UM SEIO. Um fenômeno que me descreveram de mil maneiras como "um
influxo hormonal maciço", "uma catástrofe endocrinopatica", e/ou "uma
explosão hermafrodítica de cromossomas", ocorreu dentro do meu corpo entre
meia-noite e quatro da manhã do dia 18 de fevereiro de 1971, e me transformou
numa glândula mamária desconectada de qualquer forma humana, uma glândula
mamária como a que só pudesse aparecer, supunha-se, num sonho ou numa
pintura de Dali. Disseram-me que sou agora um organismo com a forma
aproximada de uma bola de rúgbi, ou de um dirigível; que minha consistência é
esponjosa, com um peso de setenta quilos e duzentos e quinze gramas
(antigamente pesava setenta e três quilos e trezentos e oitenta e seis gramas), e
medindo, ainda, um metro e oitenta de altura. Embora continue a preservar,
numa forma "irregular" e avariada, boa parte dos sistemas nervoso e
cardiovascular, um sistema excretor descrito como "reduzido e primitivo" — os
canais agora me ajudam a evacuar — e um sistema respiratório que termina bem
acima da minha metade em algo que lembra um umbigo com aba, a arquitetura
básica na qual estas características humanas são desarranjadas e embutidas é a
do seio de uma fêmea mamífera.
A maior parte do meu peso é de tecido gorduroso. Numa de minhas
extremidades, sou arredondado como uma melancia; noutra, termino num
mamilo, de forma cilíndrica, que se projeta a treze centímetros do meu corpo e é
perfurado na ponta com dezessete aberturas, cada uma com a metade do
tamanho do orifício uretral masculino. São as aberturas dos ductos lactíferos, me
disseram. Como posso entender sem auxílio de diagramas — sou cego — os
ductos se ramificam em lóbulos compostos de células do tipo das que secretam o
leite que é conduzido até a superfície do mamilo comum, quando está sendo
sugado, ou ordenhado por meios mecânicos.
Minha carne é macia e "jovem" e ainda sou um "caucasiano", afirmam. Meu
mamilo é cor de rosa. O que é tido por insólito, já que na minha antiga
encarnação eu era um enfático moreno. Como disse ao endocrinologista que fez
esta observação, por mim eu o acho menos "insólito" do que alguns outros
esta observação, por mim eu o acho menos "insólito" do que alguns outros
aspectos da transformação, mas acontece que o endocrinologista aqui não sou
eu. Juízo amargo, mas juízo, afinal, e deve ter sido observado e anotado que eu
estava me "ajustando" a minha nova situação.
Meu mamilo é cor de rosa — tal como a mancha que tinha descoberto na
base do meu pênis a caminho do chuveiro na noite em que tudo isso me
aconteceu. Pelo fato de que as aberturas no mamilo me proporcionavam algo
remotamente parecido com uma boca e orelhas — ao menos posso me fazer
entender pelo mamilo e ouvir vagamente o que está acontecendo a minha volta
— logo supus que era minha cabeça que tinha se transformado no mamilo.
Contudo, os médicos tinham uma hipótese diferente, pelo menos neste mês. Com
pouco mais de indícios para manter esta conjectura contra qualquer outra,
pensava eu, eles agora sustentam que a pele enrugada e arrepiada do mamilo —
que reconhecidamente é muito mais sensível ao toque do que qualquer outro
tecido do rosto, inclusive a membrana mucosa dos lábios — era constituída pela
glande do pênis. Dizem que a aréola rosa pálido e pregueada que circunda o
mamilo, e contém o sistema muscular que o enrijece quando sou estimulado,
também, se metamorfoseou do tronco do pênis sob a pressão (afirmam) de uma
vulcânica secreção de fluido "mamogênico" da glândula pituitária. Dois belos e
longos fios de cabelo avermelhado saíam de uma das pequenas elevações na
beira da minha aréola. "Devem ter um aspecto estranho. Quanto medem de
comprimento?"
"Exatamente dezoito centímetros."
"Minhas antenas."
Amargura. E incredulidade.
"Por favor, podia tirar um deles?"
"Se quiser, David, eu extrairei suavemente."
Dr. Gordon não estava mentindo. Um fio de cabelo do meu corpo tinha sido
arrancado. Era uma sensação familiar, e me fez querer estar morto.
Depois da mudança, levei dias para recuperar a consciência, e só depois de
outra semana é que me disseram algo diferente do velho papo de que eu tinha
estado "muito doente" com "um desequilíbrio endócrino", e mesmo então, cada
vez que redescobria ao despertar que não podia ver, cheirar, sentir gosto, ou me
mexer, uivava tão desgraçadamente que tinham de me manter dopado.
Quando meu "corpo" era tocado, eu ficava perplexo. A sensação era
surpreendentemente agradável e calmante, mas indiferenciada, fazendo me
lembrar mais de água caindo sobre a pele do que de outra coisa qualquer. Um
dia, despertei sentindo que alguma coisa estranha estava acontecendo a uma das
minhas extremidades. Nada de dor, apenas sentia, embora tivesse gritado: "Me
queimaram! Me incendiaram!"
"Acalme-se, Sr. Kepesh", disse uma mulher. "É apenas um banho. Estou
apenas lavando seu rosto."
"Meu rosto? Onde está meu rosto!? Onde estão meus braços!? Minhas
pernas! Onde está minha boca!? O que aconteceu comigo!?"
Foi a vez do Dr. Gordon falar. "Você está no Hospital Lenox Hill, David.
Está num quarto privado no décimo sétimo andar. Há dez dias que está aqui.
Venho vê-lo todos os dias pela manhã e novamente à noite. Está recebendo um
tratamento excelente e uma atenção contínua. Agora mesmo está sendo lavado
com uma esponja e um pouco d'água morna e sabão. É tudo. Isto o magoa?"
"Não", choraminguei, "mas onde está meu rosto...?"
"Deixe que a enfermeira o lave, e falaremos disso mais tarde, se você estiver
em condições. Trate de descansar o máximo que puder."
"O que aconteceu comigo?"
A angústia e o terror eram tudo de que podia me lembrar daquela noite no
meu apartamento: me sentia como se estivesse sendo disparado vezes sem conta
de um canhão contra um muro de tijolos, e depois pisoteado por um exército de
botas. Na verdade, era como se eu fosse um homem feito de puxa-puxa, esticado
em direções opostas pelo meu pênis e minhas nádegas até que ficasse tão largo,
quanto já tinha sido alto. Os médicos acreditavam que não poderia ter estado
consciente por mais do que um minuto ou dois logo que a "explosão" ou
"catástrofe" entrou em plena marcha, mas me parece, em retrospecto, que tinha
sido despertado para sentir cada um dos ossos do meu corpo quebrado em dois e
então martelado ou esmagado até virar pó.
"Se ao menos você relaxasse agora, David, relaxe, relaxe."
"Como estou sendo alimentado!?"
"Por injeção na veia. Está sendo alimentado de tudo que precisa."
"Onde estão meus braços!?"
"Deixe apenas que a enfermeira lave você, e depois ela vai lhe esfregar um
pouco de óleo, e você vai se sentir muito melhor. Então, vai poder dormir."
Toda manhã era lavado dessa maneira, mas foi preciso outra semana ou mais
até que estivesse suficientemente calmo para associar as sensações que
acompanhavam o banho com os prazeres da estimulação erótica. Por enquanto,
concluía que todos os meus membros tinham sido amputados. Imaginei que a
caldeira tivesse explodido debaixo do piso do meu apartamento, e que tinha
ficado cego e mutilado na explosão. Soluçava quase sem parar, não dando o
mínimo crédito às explanações hormonais que o Dr. Gordon e seus colegas
continuavam a oferecer para minha "doença". Então, numa manhã, exaurido e
entorpecido pelos meus dias de choro sem lágrimas, senti que estava
despertando. Era uma suave e latejante sensação ali pelo que ainda achava que
despertando. Era uma suave e latejante sensação ali pelo que ainda achava que
era meu "rosto", um agradável sentimento de ingurgitamento. Eu estava sendo
lavado.
"Gosta disso?"
A voz era de um homem! De um estranho!
"Quem é você? Onde estou?"
"Sou o enfermeiro."
"Onde está a outra enfermeira?"
"É domingo. Calma, Dave, ainda é domingo.
No dia seguinte, a enfermeira habitual voltou a sua tarefa, acompanhada pelo
Dr. Gordon. Mais uma vez, enquanto meu "rosto" era lavado, comecei a ter
aquelas sensações que acompanham os jogos eróticos, mas desta vez permiti que
elas me envolvessem. Quando a enfermeira começou a me esfregar com óleo,
sussurrei: "Como é gostoso."
"Quê?," perguntou o Dr. Gordon.
Agora podia sentir cada um dos dedos dela me tocando; e alguma coisa se
movia sobre mim em círculos lentos e suaves. A palma macia de sua mão.
"Oh, oh", gritei, à medida em que aquele extraordinário senso de iminência
que antecede uma ejaculação perfeita atravessava todo o meu ser, "oh, isto
realmente me faz muito bem!" E então comecei a soluçar incontrolavelmente e
tive que afinal ser posto para dormir.
Logo depois, Dr. Gordon, acompanhado pelo Dr. Klinger, meu psicanalista
durante cinco anos, me contou no que eu tinha me transformado.
Eu era lavado suavemente, mas de maneira completa, todas as manhãs e em
seguida meu mamilo e minha aréola eram lubrificados com óleo. Seis dias por
semana, estas abluções eram executadas por uma mulher, Srta. Clark, e no
domingo, por um homem. Só depois que se passaram mais dez semanas é que
pude me recuperar inteiramente do horror de ouvir a verdade sobre mim mesmo,
e me sentir capaz de relaxar de novo sob as mãos hábeis da Srta. Clark. Como
ficou claro mais tarde, descobri que nunca podia me submeter completamente ao
frenesi sexual provocado pela massagem de óleo no meu mamilo, até que o Dr.
Gordon consentiu em me deixar sozinho no quarto com a enfermeira. Mas então
as sensações eram quase além do que poderia suportar, deliciosamente "quase"
— semelhantes ao que tinha experimentado naquelas semanas finais de relações
com Claire, porém mais intensas, talvez, por me atingirem num estado de
completo desamparo, na escuridão total, e originárias de uma fonte desconhecida
para mim, aparentemente imensa e exclusivamente dedicada a mim e ao meu
prazer. Nesse ínterim, tinha ficado amarrado com uma suave armadura numa
geringonça parecida com uma padiola — meu mamilo na cabeceira, minha
extremidade arredondada nos pés deste negócio parecido com um estilingue — e
extremidade arredondada nos pés deste negócio parecido com um estilingue — e
depois que a Srta. Clark se retirava do meu quarto com a bacia de água morna e
os frascos de óleo (eu imaginava frascos, não garrafas), minhas contorções
balançavam a padiola para cá e para lá, durante longos e gloriosos minutos no
fim. Estava ainda balançando, quando meu mamilo amoleceu e me deixei
arrastar pelo sono dos saciados.
Afirmei que o doutor consentiu em deixar o quarto. Mas como podia saber se
alguém já tinha deixado o quarto? Faz mais sentido concluir que na verdade
estou sob contínua observação, se não pela equipe de observadores científicos
bem aqui ao lado (comigo num anfiteatro, talvez?), então pelo circuito fechado
de televisão. Dr. Gordon me garante que não estou sob supervisão maior do que
a de qualquer outro "caso difícil", mas quem ou que pode impedir que ele me
engane? Meu pai? Claire? Dr. Klinger? Quem poderia ser tão tolo para estar
atento às minhas liberdades civis no meio de uma calamidade como esta? Isto é
ridículo. E por que, neste estado, deveria me preocupar de um modo ou de outro
se estou ou não sozinho, quando me imagino sozinho? Pelo que sei, devo estar
sob uma cúpula de vidro à prova de som numa plataforma no meio do Madison
Square Garden, ou na vitrina da Macy's — e que diferença faria? Onde quer que
me tenham posto, quem quer que possa estar me menosprezando, estou mesmo
tão completamente só, como ninguém jamais desejaria. Talvez fosse melhor
deixar de pensar demais na minha "dignidade", apesar do que ela significou para
mim quando eu era um professor de literatura, um amante, um filho, um amigo,
um vizinho, um freguês, um cliente, e um cidadão. Alguém poderia pensar que
uma das consequências de tal transformação pudesse ser que a vítima cessaria,
nas atuais circunstâncias, de se aborrecer com os temas da retidão e decoro e
orgulho pessoal. Mas, como eles são intimamente ligados à minha ideia de
sanidade e à minha autoestima, estou realmente "chateado" como nunca tinha
estado na minha vida anterior, quando o constrangimento social exercido em
geral pelas classes educadas me proporcionava genuínas satisfações éticas e
estéticas. Embora o mundo me tivesse feito aos trinta e oito anos um tanto
formal e até mesmo reservado, não creio que fosse menos aberto ou íntimo com
meus amigos mais próximos por causa disso; mas agora, pensar que meu frenesi
sexual está sendo levado "ao vivo" na televisão, pensar que quando me
"masturbo" estou sendo observado por centenas de pessoas numa galeria, é
profundamente perturbador e contundente. Que mesquinho, que "inibido" que eu
sou numa circunstância destas, você pode dizer; mas então, meu liberado amigo,
que sabe você das circunstâncias? Veja: quando o Dr. Gordon me garante que
minha "privacidade" está sendo respeitada, não mais o contradigo. Digo
"obrigado por sua consideração." Desse modo, sou capaz de, pelo menos, fingir
para eles que penso que estou sozinho, mesmo quando não estou.
Compreenda, não se trata de fazer o que é certo ou conveniente; não estou
preocupado, posso lhe garantir, com a etiqueta de ser um seio; trata-se, antes, de
fazer o que faria se continuasse a ser eu. E eu continuaria, pois se não fosse eu,
quem? o quê? Ou eu continuo a ser eu mesmo, ou ficaria louco, e então
certamente morrerei. E pelo jeito não desejo morrer; me surpreende muito
também, mas continua a ser assim. Não prevejo um milagre, uma espécie de raid
retaliatório dos meus hormônios antimamogênicos, se é que existem (e só Deus
sabe se existem em alguém como eu), que pudesse restituir-me as anteriores
proporções físicas; desconfio que é um pouco tarde para isso, e assim não é com
tal esperança batendo eternamente no peito que o peito continua a querer existir.
Humano eu insisto que sou, mas não aquele humano. E não é que esteja
querendo viver agora porque sou capaz, porque o pior já passou; de forma
alguma estou certo de que o caso é esse. Com todo meu "equilíbrio" e a aparente
"objetividade" que me permitem narrar a história do meu desastre, às vezes
penso que o pior ainda está por vir. Então é isto: tendo ficado com medo da
morte desde os dois anos de idade, me tornei defendido em meu ódio por ela,
tomei contra a morte uma posição da qual não posso me retirar exatamente
porque isto me aconteceu. Por mais horrível que Isso seja, meu mais antigo e
mais cruel inimigo, a Extinção, continua a me impressionar como se fosse ainda
pior. Então, dirá você, talvez Isso não seja tão horrível, afinal. Bem, leitor, diga
você, se quiser. O que sei é que há tanto tempo venho querendo não morrer, que
simplesmente não posso parar com isso de um dia para o outro.
Que eu não tenha morrido é um tema de grande interesse para a ciência
médica, como você pode imaginar; este milagre continua a ser estudado,
afirmam, por microbiologistas, fisiologistas, bioquímicos, etc., todos eles
trabalhando em "equipes" aqui no hospital e em instituições médicas por todo o
país; estão tentando imaginar como continuo pulsando. Dr. Klinger pensa que,
não importa como eles misturem as peças do quebra-cabeça, vão talvez acabar
cedendo àquelas velhas xaropadas, "força de caráter" e "vontade de viver".
Assim fala meu sacerdote moderno, e quem sou eu para não concordar com tão
heroica avaliação de mim mesmo?
"Parece", disse ao Dr. Klinger, "que minha análise funcionou; um tributo ao
senhor." Ele riu, zombeteiro. "Você sempre foi mais forte do que pensava."
"Mais do que nunca, eu deveria ter descoberto. E além disso, não é assim.
Não posso mais viver deste jeito."
"Mas você tem que viver, você deve."
"Devo mas não posso. Nunca fui forte. Apenas determinado. Um pé depois
do outro. Pontualidade. Honestidade. Cortesia. Boas notas em todas as matérias.
Venho de uma época em que entregava meu dever de casa a tempo e ganhava os
prêmios. Aqui é medonho, Dr. Klinger. Quero partir, quero ficar louco, sair
girando por aí, fanfarrão e selvagem, mas não posso. Soluço. Grito. Desço ao
fundo do poço. Fico lá naquele fundo! Mas então volto à tona. Digo piadas, um
pouco amargas e totalmente sem graça. Ouço o rádio. Ouço a vitrola. Penso no
que nós dissemos. Contenho, contenho minha raiva, e espero que o senhor volte
de novo. Mas isso é loucura, tudo isso que está acontecendo. Ficar botando um
pé depois do outro é loucura na medida em que não tenho pés! Uma catástrofe
horrível desabou sobre mim e ouço o noticiário das seis! Ouço a previsão do
tempo!"
“Não, não, diz o Dr. Klinger: força de caráter, vontade de viver.”
Por mais que anunciasse de tempos em tempos que queria ficar louco, parece
que é impossível: está além de minhas forças, está aquém de mim mesmo. Foi
preciso que Isto me acontecesse para saber que sou uma cidadela da sanidade.
Assim, embora finja que não, sei que eles estão me estudando, me vigiando,
como se estivessem num barco com fundo de vidro a observar a vida privada do
golfinho ou da baleia. Penso nestes mamíferos aquáticos por causa da total
semelhança que agora tenho com eles no tamanho e na forma, e porque o
golfinho, em particular, é considerado uma criatura inteligente, talvez até
racional. Sou uma espécie de golfinho, digo a mim mesmo, por algum motivo
profundo ou esquisito. Uma baleia encalhada. Jonas na baleia. "Como pode o
peixe vivo...", uma daquelas piadas sem sentido que sou incapaz de reprimir...
Em meio ao insólito, o irremediavelmente comum aparece para lembrar do nível
em que costuma ser levada a maior parte da vida de uma pessoa. De fato, é a
simplicidade, a trivialidade, a ausência de sentido da experiência o que mais faz
falta numa situação como esta; à parte o monstruoso fato físico, existe
certamente a responsabilidade intelectual que pareço ter desenvolvido pela
singularidade e enormidade do meu infortúnio. O QUE É ISTO? COMO CHEGOU A
ESTE PONTO? E POR QUÊ? EM TODA A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA, POR QUE O
PROFESSOR KEPESH? Acho que é bem uma medida da habilidade do Dr. Klinger o
fato de ele me falar em "força de caráter" e "vontade de viver", ou f. de c. e v. de
v., como me refiro a elas nos nossos encontros. Estas expressões banais são o
equivalente terapêutico das minhas piadas sem graça. Nestes tempos absurdos,
devemos reter o que é comum e familiar; é melhor o banal do que o apocalíptico
— pois depois de tudo que foi dito e feito, por mais cidadela da sanidade que eu
possa ser, ambos reconhecemos que a dose é um pouco demais, até mesmo para
mim.
PELO QUE SEI, meus únicos visitantes além de cientistas, médicos, e o pessoal
do hospital, têm sido Claire, meu pai e Arthur Schonbrunn, meu antigo chefe de
departamento e atual Reitor da Faculdade. A bravura do meu pai tem sido
surpreendente. Não sei como explicá-la, só posso dizer que simplesmente nunca
conheci o homem. Ninguém conhecia o homem. Diligente, esperto, até tirânico
— isto eu sabia por observá-lo durante todos aqueles anos no trabalho; conosco,
com sua pequena família, tinha sido irascível, exigente, ingênuo, protetor, terno,
profundamente apaixonado. Mas este sangue frio diante do horror, esta
serenidade diante do monstruoso, quem poderia ter esperado tal reação de
alguém que passou a vida dirigindo um hotel de segunda classe em South
Fallsburg, Nova York? Começando como um rápido cozinheiro, chegou
finalmente a proprietário; aposentado, agora "mata o tempo" atendendo às
encomendas por telefone do florescente serviço de bufê do irmão em Bayside.
Vem me visitar uma vez por semana e, sentado numa cadeira que é colocada
perto do meu mamilo, narra detalhadamente as aventuras atuais de pessoas que
foram nossos hóspedes quando eu era menino. Lembra-se de Rosenheim, com os
truques de cartas e o Cadillac? Sim, sim, acho que sim. Bem, um está morrendo,
outro foi para Califórnia, outro tem um filho que se casou com uma egípcia.
"Que acha disso?", diz ele, "eu nem sabia que permitiam isso lá." Oh, papai,
pensei em dizer, todo dia é dia de milagre... Mas não sonharia em fazer uma
piada tão estúpida para ele: seu desempenho é terrível demais para isso. Mas é
um desempenho? Penso: "Este é meu pai que costumava ser o mestre de
cerimônias no cassino à noite — com toda a solenidade ao apresentar aqueles
garçons cantando "Eli, Eli". Este é Abe Kepesh do Kepesh's Hungarian Royale
de South Fallsburg. Quem sou eu para fazer pouco disso? Ele é um deus ou um
simplório, ou apenas insensível? Ou será que não há escolha para ele, a não ser
falar comigo como sempre fez? Ele não compreende? Não compreende o que
aconteceu?
Uma hora e ele vai embora — sem me beijar. Algo novo para o meu pai e
para mim. E é quando percebo tudo que isto lhe custou; quando percebo que é
para mim. E é quando percebo tudo que isto lhe custou; quando percebo que é
um desempenho, e que meu pai é um grande e nobre homem.
E a minha excitada mãe? Está morta, misericordiosamente para ela; se não
estivesse, isto a teria matado. Teria? O quanto era nobre, ela, aquela camareira e
cozinheira? Ela, que enfrentava padeiros bêbados, quitandeiros homicidas e
ajudantes de garçom que ainda urinavam na cama, poderia ter enfrentado isto
também? Animais, ela os xingava, quadrúpedes, mas sempre voltava para as
panelas, de volta para os esfregões e as roupas, apesar da angústia que devia
suportar desde o fim de semana do Memorial Day até o Yom Kippur por causa
da radical imperfeição humana de nossa ajuda. Não é da minha mãe que herdei,
acima de tudo, minha determinação? Não é ao seu exemplo que devo minha
sobrevivência? Mais banalidade para você: sou capaz de suportar minha
transformação numa glândula mamária por causa da minha criação num
hotelzinho tipicamente judaico, familiar e perseguido pela crise.
Claire, cuja calma tem sido desde o início um tônico para mim, um suave
antídoto contra minha ex-mulher, e suponho que até mesmo para minha mãe e
aqueles seus acessos de raiva que testemunhei nas cavernas da infância, não era
tão capaz quanto meu pai de neutralizar imediatamente sua angústia. O que me
deixava atônito, contudo, não eram suas lágrimas, mas o peso de sua cabeça em
cima da minha metade, quando, mais ou menos aos cinco minutos de sua
primeira visita, ela desabou e começou a soluçar. Como é que ela pode querer
me tocar? Como pode colocar seu rosto em mim? Eu estava achando que nunca
mais seria manuseado novamente por alguém que não o doutor ou o enfermeiro
ou algum técnico em medicina. Pensei: Se Claire tivesse se transformado num
enorme pênis... Mas não podia ver sentido em seguir a fantasia até o fim. O que
aconteceu comigo aconteceu comigo e ninguém mais porque não poderia
acontecer com qualquer outro, e ainda que não soubesse por que era assim, era
assim, e deve haver razões para que assim seja, chegasse eu a desvendá-las ou
não. Como observou Dr. Klinger, com seu estilo decididamente rústico, me
colocar na pele de Claire talvez fosse um pouco além do senso do dever. Bem
além; parecia insípido, inclusive para mim, eis o motivo pelo qual desisti de
imaginar Claire Ovington como um membro masculino de um metro e setenta e
três centímetros...
Apesar disso, não consegui me libertar completamente do sentimento de
vergonha ao pensar que nunca tinha sido capaz da devoção demonstrada por esta
jovem calma, discreta, e notavelmente retraída, não só da sua devoção, mas
também da sua espontânea simpatia humana.
Não, nem mesmo in extremis era capaz de desistir de determinar meu valor
comparando-me com outros e me repreendendo pelo que considerei deficiências
do entendimento, da emoção, e da perspicácia moral. Sabe-se que tal tipo de
autocrítica implacável e mórbida em geral vem de mãos dadas com um estreito
farisaísmo e arraigados conceitos de superioridade, e não negaria que, no meu
passado, por mais baixa que fosse uma opinião sobre mim mesmo, era raro ela
não ser sutilmente posta em xeque por uma decente consideração das minhas
virtudes e qualidades. O que quero dizer é que apesar da minha alteração, meu
modo de me perceber e me avaliar não tinha sido muito alterado; e se este tem
sido o meio pelo qual continuo a manter minha identidade e minha sanidade e
com ela minha v. de v., também no plano sexual tem ocasionado considerável
turbulência interna, quase me levando ao colapso e à morte.
Falo agora dos favores que pedi a Claire e que ela me concedeu sem queixa.
Depois de sua primeira visita, foi uma questão de dias para lhe pedir que
massageasse meu mamilo, mas não "inadvertidamente", não castamente como a
enfermeira na manhã em que se comportou como se estivesse preparando o
paciente para o dia, em vez de levá-lo à loucura com suas mãos. Se Claire nem
chegasse a pôr seu rosto sobre mim naquela primeira vez, duvido que teria sido
tão rápido em fazer a sugestão; simplesmente nunca teria feito. Mas para falar
com franqueza, no instante em que senti o peso de sua cabeça sobre mim, a ouvi
soluçando por mim na miséria em que eu estava, todas as possibilidades se
revelaram em minha mente, e era apenas uma questão de tempo (e não muito)
para que chegasse a querer dela o supremo ato de extravagância sexual naquelas
circunstâncias.
Devo deixar claro antes de continuar que Claire não era a Virago, nem a
Virgem de espírito; durante todo o nosso caso, ela tinha sido maravilhosamente
estimulada por práticas sexuais comuns, era robusta e sempre disposta, embora
decididamente indiferente ao que parecia considerar como extras dispensáveis.
Pode parecer uma estatística estranha, uma vez que se poderia imaginar que
ocorresse o contrário, mas ela é a única mulher que conheci que sempre se
recusou a manter relações sexuais per anum. Para minha maior surpresa, desde o
início se melindrava quanto a receber meu esperma na sua boca, e afinal acabava
topando fazer fellatio somente como uma espécie de antecedente lúdico para o
intercurso, e nunca como um meio garantido de me satisfazer, embora ela
própria sentisse um prazer orgástico profundo quando eu fazia cunnilingus. Não
me queixava amargamente disso, mas de vez em quando, me queixava — sabe
como é, não estava obtendo tudo que queria da vida. Por outro lado, como já
expliquei, nossa paixão durante os primeiros dois anos não era absolutamente
mais rica do que a que conheci antes, mas se animava de uma maneira
encantadoramente nova; e mesmo quando meu desejo por ela estava em franco
declínio, sempre me agradava vê-la nua, e ainda gostava de deitar na cama e
olhá-la enquanto se vestia de manhã e se despia à noite.
Na verdade, foi a própria Claire quem sugeriu que podia brincar com meu
mamilo se eu quisesse. Aconteceu durante sua quarta visita em quatro dias; tinha
acabado de descrever para ela pela primeira vez o estranho prazer sensual que
experimentei quando fui ministrado pela enfermeira de manhã. Meu plano era
dizer isto e nada mais, peio menos por enquanto.
Mas Claire disse:
"Gostaria que eu fizesse o que ela faz?"
"Você... faria?"
"Se você quisesse, certamente."
Certamente. Que calma.
"Eu quero!" gritei. "Eu quero!"
"Me diz então o que você gosta", disse ela. "Me diz o que você gosta mais."
"Tem alguém no quarto?"
"Só você e eu."
"Isto está sendo televisado, Claire?"
"Oh! não, querido, não não."
"Oh, me abrace, me abrace bem forte!"
Novamente, dias mais tarde, depois de eu ter mantido uma conversa
incoerente durante quase uma hora, Claire disse: "David, querido, o que você
quer? Quer que eu ponha minha boca nele?"
"Sim! Sim!"
Como é que ela podia? Como pode? Por que faz isso? Eu faria? Digo ao Dr.
Klinger: "É pedir demais. É terrível demais. Tenho que parar com isso. Quero
que ela o faça sempre, cada minuto que está aqui. Não quero nem falar mais. Só
quero que ela me abrace e me chupe e me lamba. Nada me satisfaz. Não aguento
quando ela para. Grito, berro, Continue! Continue! Não aguento quando ela vai
embora, porque quero mais. Mas vou expulsá-la. Tenho que parar. Isto vai
acabar por expulsá-la. Então não vou ter ninguém. Então só vou ter a enfermeira
de manhã e pronto. Meu pai virá e me dirá quem morreu e quem casou. E o
senhor virá e me falará do meu caráter forte, mas eu não terei uma mulher.
Nunca mais terei amor e sexo de novo. Posso imaginar Claire, posso vê-la — eu
a vejo me chupando! Quero que ela tire as roupas — mas estou com medo de
pedir! Não quero expulsá-la, já é bem esquisito, mas ainda posso imaginar que
ela tira as roupas, quero vê-las a seus pés, no chão. Quero que ela suba em cima
de mim, e role em cima de mim. Oh, Doutor, o senhor sabe o que eu quero
mesmo? Quero fodê-la! Quero que aquela garotona se curve na cabeceira da
padiola e enfie meu mamilo na sua boceta por trás. E remexa em cima dele, para
cima e para baixo. Quero que ela fique louca em cima do meu mamilo! Mas
tenho medo de que isto acabe por expulsá-la, se eu chegar a pedir! Tenho medo
de que ela saia correndo e nunca mais volte!"
Claire me visita à noite, depois do seu jantar, e nos fins de semana. Durante o
dia, dá aulas para os alunos do quarto ano da Bank Street School, aqui em Nova
York. Diplomou-se (Phi Beta Kappa) por Cornell; a mãe dela é diretora de uma
escola em Schenectady, agora divorciada do seu pai um engenheiro da Western
Electric; sua irmã mais velha, a mais conservadora das duas filhas dos
Ovingtons, casou-se com um economista do Departamento do Comércio, e mora
com ele e quatro filhos louros em Alexandria, Virgínia. Possuem uma casa em
South Beach, Martha's Vineyard, onde Claire e eu os visitamos a caminho de
uma semana de férias em Nantucket, no verão passado. Discutíamos política —
a guerra. Feito isto, jogávamos beisebol com as crianças lá na beira da praia e
depois saíamos para comer caldeiradas de lagostas em Edgartown; mais tarde,
íamos ao cinema, rostos queimados pelo vento e dedos engordurados. Delicioso.
Nós nos divertíamos muito, realmente, por mais "caretas" que fossem nossos
anfitriões; sei que eram "caretas" porque eles próprios não paravam de me dizer
que eram. Contudo, a gente se divertia a valer. Claire, loura de olhos verdes, é
magra e de pernas muito longas, mas de busto cheio.
"Imagine como cairão aos cinquenta", diz ela, "se caem assim aos vinte e
cinco."
"Não posso", digo, e nos buracos das dunas, depois de desabotoar a parte de
cima do seu biquíni e vê-la cair, me deito de costas na areia quente, afundo os
calcanhares, fecho os olhos, abro os lábios, e espero que ela abaixe o seio direto
na minha boca. Que sensação, com o mar bramindo lá embaixo! Como se fosse o
próprio globo — suave globo! — e eu um Poseidon ou Zeus! Não é de admirar
que os gregos imaginavam deuses antropomórficos — são os únicos que se
divertem.
"Vamos passar todo o verão que vem no mar", digo eu, como fazem as
pessoas no primeiro dia de férias.
"Primeiro vamos para casa e fazer amor", sussurra Claire, alta e de seios nus,
ajoelhando-se ao meu lado; ela pensa que estou excitado, como antigamente.
"Oh, vamos ficar aqui. Ei, onde está aquilo? De volta para minha boca,
senhorita."
"Não quero tirar seu ar. Você estava ficando verde."
"De inveja", digo.
Sim, foi o que eu disse. Reconheço com franqueza que disse. E se isto fosse
um conto de fadas, podíamos agora entender a moral: "Cuidado com os desejos
fantasiosos; você pode ser feliz." Mas esta história é verdadeira, se não para
você, leitor, para mim. Quis ser muitas coisas em minha vida, bem menos
esquisitas do que quando naquela praia quis ter seios, ou ser os seios de Claire.
Se isto é um conto de fadas, por que então aquele inocente desejo (se é que
chegava a ser "desejo") dito por charme e por lisonja e não para virar realidade,
fluindo não de uma ânsia, mas da felicidade e da animação, por que aquele
desejo me era concedido, enquanto as esperanças e os sonhos de muito maior
urgência, clamados estridentemente, repetidamente, e no desespero, só chegaram
a se realizar colocando um pé depois do outro depois do outro depois do outro
depois do outro... Não, a vítima não subscreve a teoria da realização do desejo, e
eu o aconselho a também não fazê-lo, por mais nítida e elegante e
deliciosamente punitiva que possa ser. A realidade é mais nobre do que isto. A
realidade tem mais estilo. Isto. A moral deste conto, para os que não podem
viver sem uma. "A realidade tem algum estilo", conclui o amargurado professor
que se transformou num seio de mulher. Andem, seus refinados, Houyhnhnms
autossatisfeitos, e moralizem em cima disto!
Não foi para Claire que fiz a "suprema" proposta, então, mas para a minha
enfermeira. Disse: "Sabe o que penso quando você me lava assim? Posso lhe
dizer o que estou pensando agora mesmo?"
"O que é, Sr. Kepesh?"
"Gostaria de fodê-la com meu mamilo, Srta. Clark."
"Não consigo ouvi-lo, Sr. Kepesh."
"Estou tão excitado, eu quero fodê-la! Quero que sente em cima do meu
mamilo — com sua boceta!"
Sem levar mais que um segundo para considerar suas palavras (ela foi
treinada para isso), disse: "Vou terminar agora mesmo, Sr. Kepesh."
Grito, me contorcendo, "Você me ouviu, sua puta? Ouviu o que eu quero?"
"Vamos terminar agora mesmo..."
Quando Dr. Klinger chegou, às quatro, eu era setenta quilos e duzentos e
quinze gramas de vergonha e remorso. Os efeitos secundários da perda de
controle eram piores do que eu tinha esperado. Cheguei até mesmo a soluçar,
quando disse ao Dr. Klinger aonde tinha chegado e o que tinha feito, contra
todas as minhas apreensões e a despeito de suas palavras de advertência. Agora,
afirmei, estava gravado em fita; tinha sido observado por centenas (ou milhares)
com os olhos fixos em mim lá de cima da galeria — ou da arquibancada. Pelo
que sabia, estaria na primeira página dos tabloides amanhã de manhã. Que prato
para os devoradores de escândalo! Pois, certamente, havia um lado cômico
nisso: o que é uma catástrofe, sem o seu lado cômico? A Srta. Clark, veja só, é
uma solteirona de cinquenta e seis anos e, me disseram, encalhada. E eu sabia
disso o tempo todo.
Ao contrário do Dr. Gordon, de Claire e do meu pai, que garantiam o tempo
todo que eu não estava sendo observado a não ser por aqueles que anunciam sua
todo que eu não estava sendo observado a não ser por aqueles que anunciam sua
presença, Dr. Klinger nunca se deu ao incômodo de discutir comigo sobre este
assunto.
"E se estiver na primeira página?", disse ele. "E aí?"
"Não é da conta de ninguém!"
"Mas o senhor gostaria de fazer aquilo, não gostaria?"
"Sim! Sim! Mas ela me ignorou! Fingiu que eu tivesse pedido a ela que se
apressasse e terminasse logo! Não a quero mais! Não posso suportar aquela
cadela eficiente! Quero uma enfermeira nova!"
"O senhor está pensando em quem?"
"Numa pessoa jovem — e bonita! Por que não!?"
"E que diga sim?"
"Sim! Sim! Por que não!? Por que não deveria ter, se estou querendo? Se não
for assim, é loucura! Devia ter permissão para tê-la o dia todo! Isto não é mais
uma vida comum e eu não vou fingir que é! O senhor é que quer que eu seja
comum — o senhor espera que eu seja comum numa situação desta! Espera-se
que eu seja um homem sensível — quando estou assim! Mas isto é loucura de
sua parte, Doutor! Quero que ela sente em mim com sua boceta! Por que não!?
Quero que Claire faça isso! Por que Claire não vai fazer isso? Ela vai fazer
qualquer outra coisa! Por que não isso!? Por que isso é tão grotesco!? Que sabem
vocês do que é grotesco!? Afinal, o que pode ser mais grotesco do que me
negarem um pequeno prazer no meio deste pesadelo implacável!? Por que não
deveria ser esfregado, oleado, massageado, chupado, lambido e fodido, também,
se estou querendo!? Por que não deveria ter direito a qualquer coisa que possa
pensar em cada minuto do dia, se isto pode me tirar deste inferno miserável!?
Diga-me por que não deve ser assim!? Em vez disso, fico eu aqui sendo
sensível! Eis a loucura, Doutor, ser sensível!"
Não sei quanto o Dr. Klinger entendeu de tudo que eu disse; parece bastante
difícil compreender minhas palavras quando estou falando em voz alta e clara, e
agora estava soluçando e berrando sem ligar para a câmara ou para os
espectadores na plateia... Ou era exatamente por isso que estava me
comportando assim? Estava realmente tão atormentado pela proposta indecente
que tinha feito naquela manhã para minha enfermeira? Ou este episódio histérico
era em benefício de minha grande audiência lá fora, para convencê-los de que
ainda sou um homem — por que quem, senão um homem, tem consciência,
razão, desejo, e remorso?
Esta crise durou vários meses. Tornei-me cada vez mais impudico com a
corpulenta e compenetrada Srta. Clark, cada vez mais ostensivo, abusado,
covarde — finalmente, numa manhã, durante o banho, no auge do meu êxtase,
ofereci-lhe dinheiro, o quanto quisesse, para desamarrar a cinta e enfiar meu
ofereci-lhe dinheiro, o quanto quisesse, para desamarrar a cinta e enfiar meu
mamilo na boceta.
"Incline-se — pegue-o de trás! Eu lhe darei tudo que quiser!"
Como é que passaria o dinheiro da minha conta para suas mãos, como
conseguiria pedir emprestado, se ela quisesse mais do que eu tinha, era o que
tentava imaginar durante aquele dia longo e solitário. Sabia que ninguém
realmente estava me vendo e por isso nunca fui capaz de completar a transação,
a não ser num acesso de mágicas possibilidades masturbatórias... Nesta época,
embora já tivesse uns cinco meses de nova existência, ainda estava sem vontade
de receber visitas, exceto as de Claire e de meu pai, ainda extremamente
vulnerável. Agora pode parecer ridículo, se pensarmos na certeza que eu tinha de
que minhas atividades estavam sendo gravadas em fita e publicadas no Daily
News. Mas não estou discutindo aqui que eu tenha sido capaz de dominar por
completo os sentimentos mais ruidosamente contraditórios, ou esmagar, sem
luta, os espasmos da falta de lógica ou do infantilismo. Estou apenas
descrevendo como consegui chegar ao meu estado atual de equilíbrio
melancólico... De certo, como ajuda, poderia facilmente ter recorrido a um
amigo, um colega jovem e barbudo do Departamento de Inglês em Stony Brook,
um poeta inteligente de Brooklyn; ele poderia ter conseguido o dinheiro para
mim, além dos necessários arranjos financeiros em meu auxílio, ou com a Srta.
Clark, ou, se ela continuasse a se sentir constrangida pela ética profissional, com
alguma mulher cuja profissão lhe permitisse satisfazer meu desejo por um preço.
Meu jovem colega não era um pudico, e em outros tempos tinha tido um gosto
pela aventura não menos desenvolvido do que o dele próprio no plano sexual.
Apesar do modo pelo qual possa ter expressado ao Dr. Klinger minha confusão
em meio à fanfarronice, você deve entender que no fundo não era a perversão
sexual que me fez vítima de sentimentos freneticamente contraditórios em
relação ao meu desejo. Lá pelos meus vinte e poucos anos, tinha experimentado,
na maior tranquilidade, com mais ou menos uma dúzia de prostitutas, e durante
um ano, como bolsista da Fullbright em Londres, mantive por vários meses um
caso estranho e complicado com duas mulheres jovens, estudantes de minha
idade, que vieram juntas da Universidade de Lund na Suécia; compartilhavam
um apartamento e uma cama comigo em Bloomsbury, até que a menos bonita
das duas tentou relutantemente se atirar debaixo de um caminhão em Camden
High Street. Portanto, não era um homem excessivamente inexperiente e
dolorosamente inibido que estava sendo tão atormentado; o que me alarmava
tanto em ceder a este anseio grotesco era que assim fazendo poderia estar me
separando irreparavelmente do meu próprio passado e da minha própria espécie.
Tinha medo de que, se me habituasse a tais práticas, meus apetites só podiam
tornar-se cada vez mais estranhos, até que afinal atingiria o auge da
desorientação, de onde cairia — ou pularia — no vazio. Ficaria louco. Deixaria
de saber quem tinha sido ou o que era. Deixaria de saber qualquer coisa. E
mesmo que o resultado fosse a morte, que poderia eu ter me tornado a não ser
um amontoado de carne e nada mais?
Assim, com a assistência do Dr. Klinger, tentei extinguir, e se não extinguir,
pelo menos (na expressão favorita do doutor) tolerar o desejo de inserir meu
mamilo na vagina de alguém. Mas com toda minha força de vontade — e que
pode ser considerável quando mobilizo minhas forças — simplesmente me
descontrolava, logo que o banho entrava em ação; e no final, ficou decidido que,
para me ajudar no meu empreendimento heroico, o mamilo e a aréola seriam
borrifados com uma suave solução anestésica, antes que a Srta. Clark começasse
a me preparar para o dia. E ainda que o gélido spray não bloqueasse
completamente toda a sensação, reduzia-a tanto, que me dava o controle da
batalha. Foi a solução do problema. Pois mesmo antes do spray, nunca fui capaz
de eliminar o tabu homossexual e imaginar meu mamilo, por exemplo, na boca
ou no ânus do Sr. Brooks, o enfermeiro, embora compreenda que a conjunção de
uma boca masculina e de um mamilo feminino dificilmente pode ser descrita
como um ato homossexual.
Ainda assim, aos domingos, quando ele era o único a me lavar e a passar
óleo, embora nunca pudesse conter meu estremecimento, meus sonhos — meus
gritos — eram para a Srta. Clark ou Claire ou aquela call girl a quem
pagaríamos um punhado de notas de cem para passar os lábios de sua vagina no
meu mamilo ereto e menear sobre toda sua extensão com suas partes alugadas...
De qualquer forma, para concluir este capítulo com uma nota de triunfo, agora
— temporariamente anestesiado e nas mãos de um homem — sou capaz de
receber minhas abluções matinais como qualquer outro inválido, mais ou menos.
E ainda há Claire — angélica Claire! — para "fazer amor" comigo, senão
com sua vagina, com seus dedos e sua boca. E não é suficiente? Meu Deus —
não é incrivelmente bastante? Certamente eu sempre quero MAIS, morreria por
MAIS (ou por sua falta), pois não há um orgásmico finale para o meu
excitamento, sem explosão e sem liberação, apenas o contínuo senso de iminente
ejaculação no qual me contorço do primeiro ao último segundo. Mas por
coincidência, na verdade me decidi por menos e não por MAIS. A visita de
Claire durava uma hora e só por meia hora é que pedia a ela para atender minha
luxúria. Em grande parte pela mesma razão é que não pedi para ter intercurso
vaginal com meu mamilo, donde eu ter reduzido o tempo extra dedicado ao
prazer puramente sensual: não quero perdê-la. Não quero que ela chegue a se ver
como uma espécie de máquina convocada para servir este organismo absurdo,
algo com quem David Kepesh não tem o menor interesse em manter um contato
humano normal de natureza recíproca. Não sei por mais quanto tempo posso
depender dela para lembrar quem era eu ou o que éramos nós dois juntos,
angélica, pura como ela tem sido. Seguramente, quanto mais tempo passamos
conversando, mesmo numa conversa superficial e tagarela, maiores as chances
que tenho para manter seu amor e lealdade. Estou até pensando em cortar mais
uma vez pela metade o tempo dedicado à estimulação do meu mamilo.
Raciocino assim: se a excitação está sempre no mesmo nível sexual, não
aumentando, nem diminuindo de intensidade, uma vez iniciada, qual a diferença
se a experimento durante quinze e não trinta minutos? Qual a diferença se a
experimento por apenas um minuto?
Note bem, ainda não estou apto para essa renúncia, nem estou convencido de
que é desejável até mesmo do ponto de vista de Claire. Mas já é muito para mim,
garanto, chegar a cogitar de tal coisa, depois da tormenta do desejo por que
passei. Mesmo agora ainda há momentos, raros mas causticantes, em que tenho
de me esforçar ao máximo para não implorar à bela e jovem professora do quarto
ano e diplomada Phi Beta Kappa pela Universidade de Cornell, cujos lábios
estão apertados nas dezessete aberturas do meu mamilo: "Foda-o, Ovington!
Foda-o com sua boceta!" Mas eu não, eu não. Se Claire estivesse de acordo em ir
tão longe comigo, ela própria teria feito a sugestão há muito tempo. Não só estou
afinado com o sentido do seu silêncio, como também estou decidido a não
induzi-la a considerar com atenção demasiada as extravagâncias de que ela,
milagrosamente, já se declarou desejosa de participar.
ARTHUR SCHONBRUNN me visitou em algum momento entre a primeira e a
segunda das duas maiores "crises" a que sobrevivi no 55 hospital — se é que se
trata de um hospital. Ele é o Reitor da Faculdade de Artes e Ciências em Stony
Brook, e meu conhecido desde os tempos de faculdade em Palo Alto, quando era
então o quente em matéria de jovem professor e eu um diplomando em busca de
um Ph . D.. Arthur — quando era chefe do recém-formado departamento de
literatura comparada — foi quem me trouxe de Stanford para Stony Brook, há
oito anos. Agora, beirando os cinquenta, é um homem estranho, articulado, e,
para um acadêmico, invulgarmente, quase assustadoramente suave no trato e no
vestir. Até hoje, é uma espécie de enigma para mim, mais do que nunca um
enigma, diria, desde aquela visita que me fez há nove meses.
Schonbrunn é um daqueles acadêmicos (em geral reitores e diretores,
ocasionalmente apenas bêbados) que produzem uma obra de distinção intelectual
nos seus trinta e poucos anos — no seu caso, um penetrante livrinho sobre a
ficção de Robert Musil, romancista em grande parte não traduzido e quase
desconhecido para os leitores americanos naquela época — e depois nunca mais
se ouve falar deles; o segundo livro (o de Arthur era para ter sido sobre Heinrich
von Kleist), aquele que estão escrevendo nas férias e nos fins de semana e que
planejam terminar na licença-prêmio, é mencionado incidentalmente durante
quase uma década até que afinal o autor subiu tão alto nos círculos universitários
que é impossível imaginar que tenha uma existência fora da sala do comitê, sem
falar na máquina de escrever no sótão, diante da qual ele se senta num sábado,
ou tarde da noite, para meditar sobre qualquer coisa tão irredutível quanto a
ficção de um Kleist. Provavelmente, Arthur será nosso presidente algum dia —
primeiro de Stony Brook, depois, se sua mulher fizer o que deseja, dos Estados
Unidos da América. Dizem que aquela Debbie Schonbrunn é a Lady Macbeth de
Long Island, o que não é pouco, uma vez que Long Island é um bocado grande.
Que ela tem pique para isso e ambição suficiente é algo que eu sequer ponho em
questão; mas o Reitor Schonbrunn não é uma pessoa excessivamente tímida, ou
um tolo, e eu, por minha parte, nunca pude acreditar que o sacrifício de seus
um tolo, e eu, por minha parte, nunca pude acreditar que o sacrifício de seus
dons beletrísticos se devia aos sonhos kennedyescos de sua mulher, e não aos
seus próprios. Sua confiança nas pessoas, seu poder sobre uma audiência de dois
ou dois mil, suas maneiras diplomáticas e espetacularmente suaves — toda esta
bem azeitada maquinaria sempre me desconcertou um pouco, mas, apesar disso,
estimulou a convicção de que ali estava um homem que era mais ou menos
senhor de si próprio. No entanto, ele veio me visitar há nove meses escreveu
antes um bilhete delicadíssimo, perguntando se podia — e me deixou
profundamente perplexo (e quase me destruiu) com seu comportamento
indescritível. Desde então, concluí que dificilmente se tratava da conduta de um
homem em paz com seus desejos. Tinha que concluir alguma coisa, sabe como é,
e foi isso.
A visita de Arthur foi ao mesmo tempo oficial e oficiosa. Dentre todos os
meus colegas, o escolhi como primeiro visitante (e, como se verificou mais
tarde, o último) precisamente porque seu agudo senso de medida, em
combinação com nosso relacionamento pessoal existente há muito tempo,
levaram-me (e ao Dr. Klinger) a concluir que ele seria alguém cuja presença eu
poderia "manobrar", uma pessoa de confiança, com quem poderia fazer meu
debut social depois da minha vitória sobre a turbulenta lascívia. Arthur, com seu
jeito suave, foi sempre generoso e atencioso comigo — ainda sou considerado
uma espécie de seu protégé — e depois havia também seu renomado sangue frio
para nos garantir que não ficaria paralisado ou horrorizado, ou, o que era pior,
inoportunamente queixoso ou consolador. Também tive a ideia de propor a
Arthur um meio pelo qual pudesse manter minha filiação à Universidade, se não
fosse durante esta visita, então na próxima ou na terceira. Quando eu era de
Stanford, fui seu assistente e o ajudava numa das imensas classes de
segundanistas para quem ele lecionava as "Obras-primas da Literatura
Ocidental" — não poderia novamente desempenhar alguma função secundária
como esta? Claire poderia ler em voz alta os trabalhos dos estudantes para mim,
e eu lhe ditaria as correções, os comentários, e as notas... Ou será que tal arranjo
estava simplesmente fora de questão? Com Arthur Schonbrunn, pensamos, não
custava nada pelo menos perguntar.
Nem sequer tive a chance. Exatamente quando estava lhe agradecendo pelo
bilhete atencioso que tinha mandado, quando lhe dizia, um pouco
"chorosamente" — eu podia fazer o quê? — como estava sensibilizado por ele
ter vindo me ver e falar comigo, pensei ter ouvido uma risadinha. "Arthur",
perguntei, "estamos sós?"
"Sim", respondeu. Depois, deu uma risadinha, inconfundível. Apesar de
cego, podia imaginar meu antigo mentor: no seu blazer azul, com forro de linho
escocês feito em Londres por Kilgore, francês, o de Jack Kennedy — nas suas
macias calças de flanela e reluzentes mocassins Gucci, o diplomático Reitor da
Faculdade de Artes e Ciências, em breve Secretário-Geral da ONU no mínimo
— dando risadinha! Com sua juba cuidadosamente desalinhada e de
impressionantes cabelos cor de burro quando foge, o bastardo tinha começado a
rir! E eu ainda nem tinha chegado a fazer a sugestão de me tornar assistente;
estava rindo não por qualquer coisa jocosa que eu tivesse sugerido, mas porque
viu que era verdade, eu realmente tinha me transformado num seio. Meu
orientador na faculdade, meu superior, o cavalheiro mais cortês que já conheci
estava, pela intensidade do som, dominado pela hilaridade simplesmente ao me
ver!
"Eu... Eu... David, eu sinto muito que eu... eu... eu..." Mas agora estava
urrando tanto, que nem mesmo podia falar coerentemente. Arthur Schonbrunn
incapaz de falar coerentemente. Inacreditável. Vinte, trinta segundos de urros, e
depois foi embora. Ao todo, a visita durou cerca de dois minutos.
Dois dias depois, veio o pedido de desculpas, feito de um modo tão elegante,
diria eu, como nada que Arthur tivesse produzido desde o livrinho sobre Musil.
E na semana seguinte — talento para datas têm esses arrivistas — um pacote
vindo de Sam Goody's, com o pequeno cartão assinado Debbie e Arthur S.,
escrito com a letra de Debbie, Claire me diz, e mais do que provável, ideia dela
própria.
Uma gravação em LP de Hamlet na interpretação de Laurence Olivier.
Shakespeare, William. Oh, perfeito! Tu salvarás minha alma, Deborah, e a tua e
a do Reitor, todas com a escolha de bom gosto de um LP! Shakespeare! Cadela
filisteia pretensiosa! Cadê minha coleção de Balzac encadernada de couro de
luxo!? Cadê minha carteira de sócio do Clube dos Grandes Livros!? Por que não
a Quinta de Beethoven, sua Jacquelinemanqué!?
Arthur escreveu: "Teu infortúnio não deveria ter sido compartilhado por um
homem fraco como eu. Estou perplexo, para explicar o que se abateu sobre mim.
Seria muito mais chocante para nós dois se eu tentasse."
Na décima quarta ou décima quinta tentativa, consegui esta resposta, que
ditei para Claire e que ela levou ao correio para mim: "Queridos Debbie e Arthur
S. Agradexo mucho pelo disco bacana. Dave O Seio K." Chequei duas vezes
com Claire para ter certeza de que ela tinha escrito agradeço com x, antes que
fosse adiante e selasse o envelope... Os bilhetes anteriormente ditados, mas
descartados, tinham sido graciosos, eloquentes, clementes, literários, reservados,
práticos, astutos, zangados, veementes, perversos, selvagens, inautênticos,
dadaístas — alguns foram até mais idiotas do que o que mandei. Não vale a pena
considerar por que motivo disse a Claire para pôr aquele no correio e não
qualquer um dos outros; qualquer coisa que eu escrevesse para aqueles dois não
significaria nada, assim como qualquer coisa que Arthur tivesse feito aqui
naquela tarde que me visitou não significaria nada. Que Claire o tivesse posto no
correio (se é que o fez) sem qualquer objeção ao conteúdo ou ao tom só revela
seu bom senso e sua compreensão do problema; ela também sabia que não
significava nada.
"Fraco?", escrevi para Arthur, logo no primeiro bilhete que pedi a Claire para
anotar, segundos depois que ela me leu o dele, "por que, se nada evidencia
melhor sua telúrica vitalidade do que o fato de você ter sido tão forte? O fraco
sou eu, pois se não fosse assim eu teria aderido. Não conseguir apreciar a imensa
comédia de tudo isso só porque sou realmente mais Arthur Schonbrunn do que
você, seu presunçoso, seu piroca almofadinha narcisista!"
Mas sou? É esta a verdade fundamental, leitor? É a minha vaidade que dói
mais do que tudo? É a isso que se resumia minha dignidade? É a isso que se
resume? Ah, só eu dando uma boa gargalhada, às minhas próprias custas! Uma
risada começando lá embaixo na minha extremidade em forma de melancia e se
expandindo até que escorra jubilosamente das aberturas do meu mamilo.
A segunda crise que ameaçou me aniquilar e que, por enquanto (tenho que
fazer esta observação continuamente) parece que consegui vencer, poderia ser
chamada minha crise de fé. Como ela teve seu ponto culminante um mês depois
da visita de Arthur, é difícil dizer ao certo se foi precipitada de algum modo por
este bizarro incidente; desde então, estou odiando Arthur Schonbrunn por ter me
magoado tanto naquele dia — pelo menos tenho feito tudo para isso — e assim,
no momento, tendo a concordar com o Dr. Klinger: embora a visita de Arthur
possa ter acelerado as coisas, o que eu tinha de enfrentar dali para frente era mais
ou menos inevitável.
Aconteceu o seguinte: não quis acreditar que tivesse me transformado num
seio. Depois do grande esforço que fiz para manter minhas fantasias sexuais
quase completamente sob controle, fui dominado pela ideia de que tudo isto era
impossível. Um homem não pode se transformar num seio, a não ser na sua
própria imaginação. Tudo aquilo tinha me dado um choque tão grande, que levei
quase seis meses para questionar sua realidade.
"Mas, preste atenção, isto não está acontecendo... não pode!"
"Não pode por quê?", perguntou Dr. Klinger.
"Sabe por quê! Qualquer criança sabe por quê! Porque é uma
impossibilidade anatômica, biológica e fisiológica, eis por quê!"
"Então, como explica o seu estado?"
"É um sonho! Tudo isso é uma espécie de sonho! Não se passaram seis
meses — é ilusão! Estou sonhando! É apenas uma questão de acordar!"
"Mas está acordado, Sr. Kepesh. Sabe que está acordado."
"Mas está acordado, Sr. Kepesh. Sabe que está acordado."
"Pare de falar isso! Pare de me torturar assim! Deixe-me levantar! Chega!
Quero acordar!"
Lutei para despertar durante dias — ou, decidi, o que corresponde a dias num
pesadelo. Veio Claire, veio meu pai, veio o Sr. Brooks, meu enfermeiro — às
vezes, ele dava um tapinha bem na beira da minha aréola para me estimular. Nos
primeiros segundos de consciência, imaginava que estava bem desperto e que era
um seio, mas só para entender, horrorizado, que não tinha despertado de um
sono real, mas do sono que dormi dentro do próprio pesadelo, e que eu ainda era
David Alan Kepesh sonhando. É um sonho! Pare de me torturar! Deixe-me
levantar! Urrei e amaldiçoei meus carcereiros, embora, claro, se aquilo era um
sonho, estava apenas amaldiçoando os carcereiros que eu mesmo tinha
inventado. Mesmo assim, amaldiçoei: Claire, sua boceta insensível! Pai, seu
estúpido! Sr. Brooks, seu serviçal sádico! Klinger, seu mentiroso! Gordon, seu
ignorante! Amaldiçoei os espectadores na galeria que tinha construído,
amaldiçoei os técnicos de televisão no circuito fechado que tinha imaginado —
voyeurs! voyeurs covardes! — e sem parar, até que afinal, temendo que meu
sistema avariado não pudesse suportar tal ataque psíquico contínuo (sim, foram
essas as palavras que pus nas suas bocas inteligentes), eles decidiram me dopar.
Como eu berrava, então! "Assassinos!", gritei. "Criminosos! Demônios!",
mesmo quando afundava sob o efeito entorpecente da droga, e eles me
arrastavam, me debatendo e gritando, de minha cela para uma masmorra ainda
mais negra, para o completo isolamento e cadeias pesadas, muito pesadas.
Quando dei por mim, entendi pela primeira vez que tinha ficado louco. Não
estava sonhando, estava maluco. Não ia acontecer um mágico "despertar", uma
arrancada deste pesadelo para me levantar da cama, escovar os dentes, dirigir na
preferencial até Long Island e dar aulas; se devia acontecer alguma coisa (e rezei
para que acontecesse e não estivesse numa situação tão crítica), era o longo
caminho de volta, ficando melhor, me tornando sadio novamente. E com certeza
o primeiro grande passo no sentido da recuperação da minha sanidade era a
compreensão de que meu senso de identidade como um seio, minha vida como
um seio, não passava de ilusão de um lunático.
Ora, absolutamente não entendi por que e como foi que cheguei a perder
minha sanidade. Lembrar o que foi que precipitou um colapso esquizofrênico tão
completo estava além das minhas forças, mas não era um argumento contra
minha nova teoria, pois o que quer que tivesse causado meu colapso teria sido
inevitavelmente tão assustador, que eu tinha de suprimir toda a lembrança disso.
Podia ser que eu realmente estivesse sentado num quarto de um hospital para
doentes mentais neste exato momento, não é? Que não pudesse ver, que não
pudesse sentir gosto, que não pudesse cheirar, que pudesse ouvir apenas
vagamente, que não pudesse ter contato com minha própria anatomia, que me
sentisse a mim mesmo como se estivesse falando com os outros, como alguém
enterrado no seu próprio tecido adiposo e quase estrangulado por ele — todos
esses sintomas eram tão desconhecidos no inferno da psicose?
Mas, pensei, se é assim, por que então o Dr. Klinger está — e que era o Dr.
Klinger eu tenho certeza; afinal, tinha que ter certeza de alguma coisa para
começar, portanto me agarrei ao seu inglês com ligeiro sotaque, seu jeito franco,
seu humor simples, como prova de que pelo menos isso em minha experiência
era real — por que então o Dr. Klinger estava me dizendo que minha sanidade
depende de eu aceitar minha situação, que minha sanidade depende de eu
aprender a manter o equilíbrio apesar deste acidente horrendo, quando na
verdade o caminho de volta à saúde é claramente desafiar, afrontar esta absurda
concepção de mim mesmo? A resposta era óbvia: aquilo não era absolutamente
o que o Dr. Klinger estava dizendo. A serviço da minha doença, eu estava
tomando suas palavras, simples e claras como sem dúvida eram, e dando-lhes
exatamente o sentido oposto ao que ele pretendia.
Quando ele chegou para minha sessão naquela tarde, concentrei toda minha
famosa determinação a fim de lhe explicar, de modo tão simples e claro quanto
eu era capaz, a descoberta que tinha feito naquela manhã. Chorei de alegria e
alívio quando terminei, mas de qualquer forma, meu discurso era tão inspirado
como sempre tinha sido. As vezes, dando aula, uma pessoa ouve-se a si mesma
falando em cadências perfeitas, com a ênfase exata e correta noção de tempo,
desenvolvendo ideias em orações completas e combinando-as em parágrafos
com sentido pleno, e então é difícil acreditar que o camarada que se dirige agora
aos seus silenciosos estudantes, com eloquência e grande determinação, estava
confundindo-os há apenas uma hora com a mais inacreditável especulação
literária proferida aos trancos e barrancos. Imagine, então, como me era difícil
associar a voz comedida que agora se dirigia ao Dr. Klinger com o uivo do
alienado que eu tinha sido, antes da minha semana sob sedativo. Se eu ainda era
um lunático — e se ainda era um seio, eu era ainda um lunático — sem dúvida,
era um dos mais lúcidos e eloquentes do meu andar.
"Curioso", disse, "a visita de Arthur Schonbrunn é que me dá certeza de que
finalmente estou na pista certa. Como poderia sequer ter acreditado que Arthur
viria aqui e ia rir? Como poderia até mesmo ter tomado por verdade essa ilusão
completamente paranoide? Desde há um mês, venho amaldiçoando a ele e a
Debbie, e nada disso faz absolutamente o menor sentido, porque se existe uma
pessoa no mundo que simplesmente não perderia o controle em tal situação, essa
pessoa é Arthur."
"Ele está além dos perigos da natureza humana, esse Reitor?"
"Ele está além dos perigos da natureza humana, esse Reitor?"
"Quer saber de uma coisa? A resposta é sim. Ele está além dos perigos da
natureza humana"
"Que sujeito perspicaz."
"Não é que ele seja tão perspicaz — não se trata disso. É que eu estive muito
louco. Inventei tudo isso. Meu Deus. Meu Deus!"
"E o bilhete dele que respondeu com tanta graça? O bilhete que o deixou tão
lívido?"
"Mais paranoia."
"E a gravação de Hamlet?"
"Ah, isso é a própria Realidade. Isto é real. Bem uma daquelas de Debbie.
Oh, sim, agora posso sentir a diferença, mesmo quando falo, posso perceber a
diferença entre o real e o imaginário, entre a besteirada insana e o que
verdadeiramente aconteceu. Oh, sinto mesmo a diferença, o senhor tem de me
acreditar. Tinha enlouquecido, mas agora sei disso!"
"E o que acha que causou, como diz, seu enlouquecimento?", perguntou Dr.
Klinger.
"Não me lembro."
"Tem qualquer ideia, por mais insignificante que seja? O que poderia ter
induzido alguém como o senhor a essa ilusão impenetrável e tão elaborada?"
"Estou lhe dizendo a verdade, Doutor. Não tenho a menor ideia. Não por ora,
pelo menos."
"O que vem à mente? Qualquer coisa por menor que seja?"
"Bem, o que vem à mente nesta manhã — realmente não parece suficiente ou
convincente."
"O que é?"
"Sabe como é, estou me agarrando a qualquer coisa no desespero. Pensei: eu
peguei isso da ficção. Os livros que venho ensinando foram os inspiradores.
Puseram a ideia na minha cabeça. Não tenho intenção de parecer esquisito, mas
estou pensando no meu curso de Literatura Europeia. Gogol e Kafka todo ano —
ensinando O Nariz e Metamorfose."
"Certamente, muitos professores ensinam O Nariz e Metamorfose."
"Mas talvez", disse, agora com humor intencional, "não com tanta convicção
quanto eu."
Ele riu também.
"Sou louco, aliás... não sou?"
"Não."
O recuo era apenas momentâneo: compreendi que ele deve ter dito "sim" e
eu instantaneamente o transformei no seu oposto, como viramos de cabeça para
cima as imagens que brilham na retina de cabeça para baixo.
cima as imagens que brilham na retina de cabeça para baixo.
"Quero lhe dizer que apesar de o senhor ter acabado de responder sim
quando perguntei se estava louco, ouvi o senhor dizer "não'."
"Eu disse não, mesmo. O senhor não está louco. Não está sob o poder de
uma ilusão, nem tem estado até agora. Não sofreu o que chama de "um colapso
esquizofrênico'. O senhor é um seio, dos piores. Tem sido heroico nos seus
esforços por se adaptar a este misterioso infortúnio. Posso entender a tentação,
até mesmo a necessidade em certo grau, de ceder à ideia atraente de que isso é
apenas um sonho, uma alucinação, uma ilusão, ou o que seja — talvez um estado
induzido por droga. Mas não é nada disso. Trata-se de algo que aconteceu ao
senhor. É o caminho para a loucura, Sr. Kepesh, está me ouvindo? O caminho
da loucura é fingir o contrário. O bem-estar será efêmero, posso lhe assegurar.
Quero que se afaste deste caminho antes que vá mais longe. Quero que abandone
a ideia de que está louco. O senhor não está louco. O senhor não está louco e
fingir que está só lhe vai trazer aflição. A insanidade não é solução, nem a
insanidade imaginada, nem a real."
"Ouvi tudo ao contrário, mais uma vez. Inverti completamente o sentido de
suas palavras."
"Não inverteu, não."
"Responda-me apenas isto, faz algum sentido para o senhor pensar que esta
ilusão foi de algum modo alimentada por anos de ensino daquelas histórias? Isto
é, independentemente de qual tenha sido o trauma que de fato disparou a coisa
toda?"
"Mas não houve qualquer trauma de tipo psicológico, e isto, como já lhe
disse, não é uma ilusão."
Com uma ironia que me agradou — e bendita saúde! saúde! — afirmei:
"Mas se fosse, Dr. Klinger... pois que acabei de ouvir o senhor dizer mais uma
vez que não é uma ilusão... se fosse, o senhor então estaria inclinado a ver
alguma relação entre a espécie de alucinação em que me enterrei e o poder de
Kafka ou de Gogol sobre minha imaginação? Ou de Swift? Estou pensando nas
Viagens de Gulliver, que também ensinei durante anos. Dr. Klinger, está me
ouvindo? Talvez, se procedêssemos assim, falando de minha doença como de
algo hipotético".
"Mas para repetir outra vez: não há doença psíquica. Isto é, não houve até
agora. Houve choque, pânico, fúria, desespero, desorientação, profundos
sentimentos de desamparo e isolamento, forte depressão, mas em meio a tudo
isto, que milagre, nada que eu pudesse chamar de doença. Nem mesmo quando
seu velho amigo, o Reitor, deu as caras e teve um acesso de riso. Foi um choque
para o senhor. Ainda é. O senhor ficou terrivelmente oprimido por aquilo. Por
que não ficaria? E sei que não ajudaria nada eu lhe dizer que ele é um homem
que tem de lidar com o seu próprio eu vulnerável. Foi horrível ter ouvido tal
gargalhada, ainda que o riso tivesse menos a ver com o senhor do que com o
precário senso que tal pessoa tem da vida, atrás de toda aquela loquacidade e das
roupas feitas sob medida. Não inventou a visita de Arthur Schonbrunn, Sr.
Kepesh, não inventou o que aconteceu aqui com ele. Aconteceu. O senhor está
se fazendo de ingênuo, sabe, quando me diz que tal reação dele, ou de qualquer
outro, é impossível. O senhor é melhor estudioso da natureza humana do que
isto. Leu Dostoievsky demais para dar uma dessa."
"Devo lhe repetir o que pensei ter ouvido o senhor dizer?"
"Não precisa. O que pensou que ouviu, ouviu. Caia fora disso, Sr. Kepesh... e
quanto mais cedo melhor. Como sugere a si mesmo, esta especulação literária
que faz por excentricidade, Gogol, Kafka etc., vai lhe trazer uma séria encrenca,
se continuar a mantê-la. Prossiga nesta linha de pensamento e vai enfraquecer
tanto o controle que por acaso o senhor tem sobre uma realidade particularmente
difícil, que no próximo passo, já sabe, terá fabricado ilusões genuínas que agora
diz que tem. Está me entendendo, Sr. Kepesh? É um homem muito inteligente e
tem uma vontade muito forte, e eu quero que pare com isso agora mesmo."
Era exaustivo, este combate imaginário, no entanto eu não tinha mais
esperanças de que retornar ao ponto em que tinha começado ia ser tão simples
como acordar de um sonho mau. Ia ser um inferno, mas o que era aquele inferno
comparado a este?
"Dr. Klinger!” gritei. "Ouça-me... não permitirei que isto me ponha maluco!
Seja o que for, não vou mais deixar que me ponha maluco! Vou abrir caminho à
força para sair disso! Juro ao senhor, lutarei até ficar em pedaços! Vou parar de
ouvir o contrário! Vou começar a ouvir tudo que está me dizendo! Está me
ouvindo, Doutor? Está entendendo minhas palavras? Não aceitarei esta ilusão!
Não serei seu escravo! Não serei sua vítima! O senhor conseguirá comigo! Não
me abandone!" supliquei. "Está me ouvindo? Está me entendendo? Não me
abandone, por favor! Não me deixe perdido! Acabarei com esta coisa e serei eu
mesmo novamente! Prometo!"
Então, meus dias foram dedicados inteiramente à tentativa de compreender o
que ouvia, a fim de que pudesse captar o que de fato tinha sido dito para mim,
seja pelos médicos, pelo Sr. Brooks, ou por Claire. A tarefa requeria uma espécie
de força de vontade desconcentrada, embora contínua, e tão fatigante, que, ao
anoitecer, sentia que bastava um sopro dos lábios de uma criança para apagar a
vacilante e pequena chama de memória, inteligência e esperança que ainda
alegava ser David Alan Kepesh.
Quando meu pai veio me visitar no domingo, lhe dei as boas novas, embora
tivesse certeza de que ele já tinha sido notificado pelo Dr. Klinger e por Claire.
Balbuciava feito um menino que tivesse ganho um troféu. Disse-lhe que era
verdade, eu não acreditava mais que fosse um seio. Se ainda não tinha sido capaz
de me livrar do lado físico da alucinação, estava dia a dia me despojando da
ilusão psíquica; a cada dia, a cada hora, me percebia voltando a ser eu mesmo, e
podia até antever o tempo em que estaria de volta diante dos meus alunos,
ensinando Gogol e Kafka, e não ficar vivenciando falsamente as transformações
desnaturadas que aqueles escritores imaginaram para as personagens das suas
famosas ficções. Porque meu pai não sabe nada de livros, continuei de modo
borbulhantemente pueril a contar como Gregor Samsa despertou uma manhã na
obra-prima de Kafka e descobri que tinha se transformado numa enorme barata;
dei-lhe um resumo de O Nariz, narrei rapidamente como o herói de Gogol
desperta e descobre que está sem o seu nariz, saí procurando por ele em S.
Petersburgo, põe um anúncio no jornal pedindo-o de volta, avista-o caminhando
na rua etc., até que no fim o nariz aparece de volta ao seu rosto pela mesma
ausência de motivo que o levou a desaparecer. (Eu podia ouvir seu pensamento:
"Você ensina esta besteira, numa faculdade?”) Expliquei que ainda não
conseguia me lembrar do trauma que devia ter sofrido; tinha sido tão assustador,
que até mesmo agora simplesmente ficava surdo, não pude ouvir, quando o
doutor tentou me fazer lembrar dele. Vai levar tempo, disse-lhe, muito tempo,
mas pelo menos eu estava no caminho de volta.
Fosse qual fosse o acontecimento traumático em si, e para escapar dele, era
como se eu tivesse me apoderado da mais absurda ideia à mão, a fantasia
kafkiana, gogoliana, de transformação física da qual tinha falado na minha sala
de aula apenas uma semana antes da catástrofe, expliquei ao meu pai. Agora,
com a ajuda do Dr. Klinger, eu estava tentando compreender por que tinha
imaginado que era um seio. Que caos turbìlhonante de desejo e medo tinha
irrompido nesta primitiva identificação com o objeto da veneração infantil? Que
insaciados apetites ou antigas confusões, que fragmentos do meu mais remoto
passado podiam ter colidido para faiscar uma gigantesca ilusão de tão
esplêndida, tão clássica simplicidade? Como explicar a "inveja mamária" que
pode ser considerada como a inspiradora dessa invenção tão extravagante? Eu
era mais um menino americano criado com uma dieta rica demais em revistas de
sacanagem? Ou era, antes, uma saudade em mim, bem lá no fundo do meu
magma central, um ardente desejo de ser totalmente e bem-aventuradamente
desamparado, de ser um montão de tecido sem cérebro, desejável, embotado,
passivo, imóvel, atuado em vez de atuante, dependente, lá, como um seio pende
e está lá. Ou devo pensar nisto como uma forma de hibernação, um longo sono
de inverno enterrado nas montanhas da anatomia feminina. Ou, ou, pensar no
seio como meu casulo, primo irmão daquela bolsa na qual trilhei as águas de
minha mãe. Ou, ou, ou. Balbuciei, fui além dele certamente, entretanto fui além
de mim mesmo, e também do senso comum — mas onde estava aquele em quem
pudesse me apoiar num fenômeno como este? Assim, balbuciei para meu papai,
saindo da loucura, e então, mais uma vez, chorei de alegria. Sem lágrimas, mas
chorei. Onde estavam minhas lágrimas? Quando sentiria as lágrimas de novo?
Quando sentiria meus dentes, minha língua, meus dedos do pé?
Meu pai não disse nada, por um longo tempo. Talvez, pensei, esteja
chorando também. Depois desandou a dar o noticiário semanal: a filha de fulano
está grávida, o filho de sicrano comprou uma casa de cem mil dólares, meu tio
está fazendo as encomendas para a festa de casamento do filho do irmão mais
moço de Richard Tucker.
Na minha excitação, agora compreendi, tinha sido totalmente
incompreensível. Eliminei a ideia de que era um seio, mas tinha esquecido, por
algum motivo, que ainda era necessário que eu fizesse praticamente uma
declamação, como num palco, toda vez que quisesse tornar inteligível cada
palavra. Alguma coisa ainda estava errada com o meu controle de volume, ou
talvez o problema fosse com o meu aparelho de escuta, pois ainda tendia a
resmungar ou sussurrar quando acreditava que estivesse falando num tom de
conversa aparentemente normal. Mas uma coisa eu sabia: não era porque minha
caixa de voz estivesse embutida numa glândula mamária de setenta quilos e
duzentos e quinze gramas. Meu corpo ainda era meu corpo! Repeti, com a minha
voz mais ribombante, mais ou menos o que tinha acabado de lhe dizer a respeito
da minha ruptura. Então, cheguei até a pensar para dizer apenas — como demora
a luz da manhã para o louco:
"Pai, onde estamos?"
"No teu quarto", respondeu.
"E eu me transformei num seio?"
"Bem, é o que dizem."
"Mas não é verdade! Sou um doente mental! Me diga novamente. Eu sou o
quê?"
"Oh, Davie."
"Eu sou o quê?"
"Você é um seio de mulher."
"Não é verdade! O que ouvi você dizer não é verdade! Sou um doente
mental! Num hospital! E você está me visitando! Pai, se isto for a verdade, quero
que você diga apenas sim. Agora me ouça: eu sou um doente mental. Estou num
hospital. Tive um sério colapso. Sim ou não. Diga-me a verdade."
E meu pai respondeu, "sim, filho, sim. Você é um doente mental."
"Ouvi!", gritei para o Dr. Klinger quando mais tarde ele veio para a nossa
"Ouvi!", gritei para o Dr. Klinger quando mais tarde ele veio para a nossa
hora. "Ouvi meu pai! Ouvi claramente! Ouvi a verdade! Ouvi meu pai dizer que
eu era um doente mental!"
"Ele nunca deveria ter-lhe dito isto."
"Eu ouvi! Não foi invertido!"
"Seu pai ama o senhor. É um homem simples, e o ama muito. Pensou que
ajudaria, se dissesse. Agora sabe que não pode. E o senhor também sabe que não
pode."
Mas perdi o controle de mim mesmo, e não parava de chorar. Meu pai
conseguiu comigo; os outros viriam logo em seguida.
"Ouvi!", disse, "Não sou um seio! Sou louco!"
Na semana seguinte, comecei a fazer progresso, pelo menos para me ouvir
dizer isto. Quantas teorias elaborei para explicar minha ilusão! Quanto engenho
no meu desespero de ser curado! Como me esforcei por ser sadio e íntegro! Varri
o lixo das minhas origens em busca de uma única lembrança resplandecente das
minhas gengivas famintas naquela torneira, meu nariz no globo nutriente.
"Se ela estivesse viva, se ela pudesse me dizer!"
"Dizer-lhe o quê?", pergunta o Dr. Klinger.
Dou um gemido. Como posso saber? Mas por onde começar a não ser lá... só
que lá não há nada. É tudo remoto demais, muito longe de onde estou. Arranho o
lodo no fundo do mar, mas quando subo à superfície, não há nem mesmo limo
sob minhas unhas. Ah, mas o mergulho é revigorante! O esforço! A energia que
pus nisso! Não serei derrotado, se não fugir! Regredi às primeiras horas da
minha existência humana, digo ao doutor, quando o seio sou eu e eu sou o seio,
quando tudo sou eu mesmo e eu mesmo sou tudo, quando o côncavo é o convexo
e o convexo, o côncavo, minhas primeiras mil horas depois da eternidade do
nada, a aurora da minha vida, minha Mesopotâmia! Como falo! Qualquer coisa!
Tudo! Ainda terei êxito! Não ficarei silencioso até que esteja são! Talvez tudo
não passe de um colapso pós-analítico, um ano em formação... o meio mais
desesperado que poderia inventar para pegar Klinger.
"Já pensou, Doutor, que fantasias de dependência vicejam nos seus pacientes
imaturos a partir da simples lembrança do seu nome? Já percebeu, Doutor, que
todos os nossos nomes começam com K, o seu, o meu e o de Kafka? E ainda há
Claire e a Srta. Clark!"
"O alfabeto", ele me recorda num tom professoral, "tem apenas vinte e seis
letras. E existem bilhões de pessoas como nós com necessidade de iniciais para
os fins de identificação.
"Mas!"
"Mas o quê?"
"Mas alguma coisa! Mas qualquer coisa! Por favor, se eu posso, o senhor
pode... dê-me uma chave! Dê-me uma pista! Quero sair daqui!"
Tentei repassar com ele os acontecimentos importantes da minha vida
psíquica, mais uma vez vivo as páginas daquela antologia de histórias que nós
dois tínhamos reunido como uma espécie de texto para o curso que dávamos
juntos durante cinco anos sobre A História de David Alan Kepesh. Mas as
histórias não servem para nada, até eu tenho que concordar. Familiares demais,
agora; mastigadas, ruminadas demais. O drama da minha vida tem todo o
atrativo de alguma antologia escolar que contenha O colar de Maupassant, por
exemplo. Se de fato minha própria antologia tivesse continuado a me intrigar
com sua densidade e seu caráter sugestivo, não teria terminado minha análise
como terminei, mas um forte indício, entre outros, de que o projeto tinha
chegado a um fim foi que os contos da vida de Kepesh, outrora tão excitantes
para mim quanto Os Irmãos Karamazov, tinham sido recontados e glosados
tantas vezes que no fim estavam tão insossos quanto a mais surrada piada
literária do mais retrógrado professor secundário na América. E uma análise bem
sucedida é aquela.
Ah-hah, pensei. Eis o trauma que não posso recordar: o próprio sucesso. É
disso que eu fujo: minha vitória. Era isso que não podia enfrentar!
"O quê?", pergunta o Dr. Klinger. "Não podia enfrentar o quê?"
"As recompensas! Integridade! Conforto! Uma vida calma, pacífica e
gratificante! Uma vida sem..."
"Espere, espere. Por que não podia enfrentar essas coisas? São coisas
maravilhosas. Vamos, Sr. Kepesh. O senhor podia perfeitamente se gratificar
com essas coisas."
Mas eu não ouço, pois o que diz não é o que está dizendo mesmo. Falo sobre
o que os pacientes costumam falar, naquela amiga imaginária do homem
confuso, Minha Culpa. Falo sobre Helen, minha ex-mulher, cuja vida, entendo, é
ainda mais horrível agora do que quando sofremos juntos aquele desastre
conhecido por nosso casamento. Pois ela se casou de novo, com um bêbado, e
pelo que sei, tornou-se bêbada também. Lembro como não podia fazer mais
nada, a não ser me regozijar malignamente quando, há sete anos, um velho
amigo de São Francisco, onde Helen vive novamente, me visitou e me falou (e à
minha adorável e jovem amante, que tinha feito nosso esplêndido jantar) da
contínua infelicidade de Helen, a chaga da família, os onze quilos que ela
ganhou, as bolsas debaixo dos olhos. Bem feito para aquela cadela, pensei...
"E agora o senhor pensa que está se punindo com a loucura por essa malícia
comum, do dia a dia? Ora, Sr. Kepesh."
"Estou dizendo que a perspectiva da minha felicidade era demais para mim!
Eis porque o sexo começou a esfriar com Claire, também! Tanta satisfação me
Eis porque o sexo começou a esfriar com Claire, também! Tanta satisfação me
assustava! Parecia radicalmente injusto! Minha culpa!"
"Oh, vamos Sr. Kepesh. Isto é análise de porta de botequim. Tanta
religiosidade. Tanta autoadoração sob a máscara de pensamento objetivo. Vindo
de um homem da sua sofisticação, nada mais que isso."
"Então, senão isso, o quê? Ajude-me! O que provocou isso?"
"Nada provocou isso."
"Então por que estou louco?"
"Mas não está. E sabe disso."
No domingo seguinte, quando perguntei mais uma vez ao meu pai se eu era
um doente mental — só para ter certeza — ele respondeu: "Não".
"Mas na semana passada o senhor disse que sim"!
"Estava errado ao dizer."
"Mas é a verdade!"
"Não é."
"Meu Deus, estou invertendo novamente! Estou invertendo!"
"Não está", disse o Dr. Klinger.
"O que está fazendo aqui? Hoje é domingo! Meu pai é que está aqui, não o
senhor! O senhor nem está aqui!"
"Estou aqui, Sr. Kepesh. Com seu pai. Bem a seu lado."
"Tudo ficando confuso! Não quero ser confundido! Ajude-me! Está me
ouvindo? Ajude-me! Preciso da sua ajuda! Não posso fazer isso sozinho!
Levante-me! Diga-me apenas a verdade! Se sou um seio, onde está meu leite!?
Quando Claire me chupa, por que não dou leite!? Cadê meu leite! Responda-
me!"
"Oh, Davie."
Era meu pai — com sua bochecha não barbeada sobre a minha aréola!
"Meu filho, meu filhinho."
"Papai, que aconteceu? Ajude-me, paizinho — o que aconteceu? Por que
fiquei louco?"
"Não ficou, querido", soluçou, suas lágrimas umedecendo minha pele.
"Então onde está meu leite!? Responda-me! Se eu fosse um seio, daria leite!
Teria leite! Incharia com leite! E isto é maluquice demais para alguém acreditar!
Até mesmo eu! NÃO PODE SER!"
Mas pelo jeito pode ser. Assim como eles são capazes de aumentar a
produção do leite das vacas com injeções de agente lactogênico HC, o hormônio
do crescimento, também lançaram a hipótese de que eu teria grandes
possibilidades de me tornar uma glândula mamária produtora de leite com o
adequado estímulo hormonal. Agora, há momentos que me dão vontade de dizer:
"adiante, experimentem, seus bastardos mentirosos." Tenho certeza de que
"adiante, experimentem, seus bastardos mentirosos." Tenho certeza de que
existem na comunidade científica aqueles que avidamente aproveitariam a
chance. Talvez, quando estiver farto disso, eu lhes conceda alguma. E se não me
matarem no processo? Se tiverem êxito? Bem, então, saberei que nunca houve
alguém mais louco do que eu, ou que sou um seio totalmente autêntico, e não
apenas um "caso" endocrinológico que ainda atende pelo nome de David Alan
Kepesh.
NESSE ÍNTERIM, quinze meses se passaram — aceitei o cálculo deles, por que
não? — e no momento vivo num estado de relativa calma. Metade de cada hora
que Claire passa comigo é dedicada ao prazer sensual, o resto do tempo
conversamos. Ela me ajuda com o meu Shakespeare. Sim, ultimamente venho
ouvindo as gravações de apresentações dramáticas das grandes tragédias.
Comecei com o presente de Schonbrunn, o Hamlet por Olivier. Estava aqui no
quarto durante meses, até que numa manhã pedi ao Sr. Brooks (a propósito,
descobri que ele era um negro, de modo que o vejo com os olhos da imaginação
parecido com o Senador de Massachusetts), até que pedi ao Sr. Brooks que
tivesse a gentileza de colocá-lo na vitrola para mim. O caso é que desde os
tempos de faculdade queria reler Shakespeare, mas com tantas outras coisas que
ainda não tinha lido sequer uma vez, nunca foi possível; era uma daquelas mil
tarefas culturais que pensei que me fariam "bem" realizar "algum dia". Pelo que
posso depreender, talvez tenha dito uma vez algo semelhante a Debbie
Schonbrunn, naqueles nossos tempos em Palo Alto. E ela se lembrou. Nesse
caso, foi um presente tão docemente atencioso como qualquer um que ela
pudesse ter escolhido. Contudo, você se lembra, eu estava tão furioso com ela;
bem, isto só mostra, não é, que as pessoas são muitas vezes feitas de barro mais
fino do que queremos admitir. Ao contrário, o seu marido — chega, chega, o-
ele-não-teve-culpa, como se diz... Passo várias horas toda manhã ouvindo as
gravações de Hamlet e Otelo por Olivier, Lear por Paul Scofield, Macbeth pela
Companhia Old Vic. Impossibilitado de acompanhar o texto enquanto a peça
está sendo falada, não alcanço o sentido de uma palavra estranha, minha mente
vagueia, e quando retorno descubro que por linhas e linhas estou perdido na
sintaxe e no sentido. Faço o máximo de esforço por não perder o pé, por assim
dizer, mas a despeito deste esforço — este esforço! sempre este esforço! — por
me manter firmemente atento à sorte dos heróis de Shakespeare, continuo
mesmo a considerar a minha própria mais do que gostaria.
O texto de Shakespeare que usava na faculdade — Neilson and Hill, The
Complete Plays and Poems of William Shakespeare, encadernado em linho azul,
surrado, amassado em alguns trechos pela minha fervorosa garra de estudante, e
fortemente sublinhado, naquela época, por erudição — está aqui em cima da
mesa ao lado da padiola. É um dos vários livros que pedi a Claire que trouxesse
do meu apartamento. Lembro-me muito bem da sua forma, em parte é o motivo
pelo qual o quis aqui. Claire procura palavras nos pés de página e me lê os
significados elizabetanos que há muito tempo esqueci; ou lê calmamente em voz
alta alguma passagem que me escapou naquela manhã em que minha mente se
apartou de Elsinore Castle para o Hospital Lenox Hill. Sinto que é importante
estudar aquelas passagens, entendê-las antes que adormeça. Se não fosse assim,
poderia parecer que ouço o Hamlet pela mesma razão que meu pai atende o
telefone na loja do Tio Larry, para matar o tempo. De fato, estou sendo tão sério
quanto posso a respeito de mim mesmo.
Olivier é um grande homem, você sabe. Apaixonei-me um pouco por ele,
como uma aluna pelo seu astro de cinema. Na verdade, nunca tinha dedicado
minha atenção tão completamente a um gênio, nem mesmo na leitura. Como
estudante, depois como professor, minha vivência de literatura foi contaminada
inevitavelmente pela autoconsciência e pelo fardo da verbalização; ou estava
aprendendo, ou estava ensinando. Mas são águas passadas, como muitas outras
coisas.
No início, tentaria imitar o estilo de Olivier, e, com todo o tempo de que
disponho, consegui memorizar falas inteiras que podia recitar com sua
entonação, seu ritmo, e sua interpretação. Declamaria estas falas para meu
divertimento, quando estivesse sozinho à noite. Na faculdade, trabalhava como
ator nas peças encenadas pelo grupo de teatro, e sempre tive talento para
imitação, bem como um pequeno dom teatral com que, oportunamente,
encantaria meus alunos.
Minha semelhança com Olivier era notável, pensei, numa noite em que
declamei a fala da cena da morte em Otelo. Percebi, entretanto, que estava sendo
observado — era meia-noite, mas ninguém ainda me deu um bom motivo para
que a câmera de TV deva parar a qualquer hora do dia ou da noite — e portanto
desisti da minha imitação. Por que desejaria aparecer ainda mais ridículo, ou
ainda mais patético do que já sou?
Disse a mim mesmo, ora, David, é tudo tão pungente e magoante demais,
um seio recitando. E dizem, ademais, que uma vez em Aleppo... Os cientistas
iriam em lágrimas para casa. Amargura, leitor, uma espécie superficial de
amargura, mas me permita um descanso para minha dignidade, ta? Isto não é
tragédia, tampouco farsa. É apenas a vida, e, queira ou não, sou apenas humano.
Será que a ficção fez isso comigo?
"De que maneira, Sr. Kepesh?", pergunta o Dr. Klinger.
"De que maneira, Sr. Kepesh?", pergunta o Dr. Klinger.
Não, hormônios são hormônios e arte é arte. Não fiquei assim porque deixei
me arrastar pela influência das grandes imaginações.
"Mas", digo, "podia ser a minha maneira de ser Kafka, de ser Gogol, de ser
Swift. Eles podiam visualizar aquelas transformações maravilhosas... eram
artistas. Possuíam a linguagem e aqueles obsessivos cérebros ficcionais. Eu não.
Portanto, tinha que viver a coisa."
"Tinha?"
"Para realizar minha arte. Possuía o anseio artístico sem o necessário
distanciamento. Amava o extremo na literatura, idolatrava aqueles que o faziam,
era fascinado por suas imagens, sua força e sugestividade".
"E? Sim? O mundo está cheio de amantes da arte... e daí?"
"E daí dei o salto. Além da sublimação. Transformei a palavra em carne.
Kafkianizei Kafka. Ele podia apenas imaginar um homem se transformando em
barata. Mas veja o que fiz."
Até eu ri. Pois onde, permita-me perguntar, estão as fontes da minha arte?
Por que, entre todas as pessoas, o Professor David Alan Kepesh do
Departamento de Literatura Comparada da Universidade Estadual de Nova York
em Stony Brook? No entanto, por que Kafka? Por que Gogol? Por que Swift?
Pode ser até que eles se tenham perguntado. Por que alguém? A grande arte
acontece às pessoas como qualquer outra coisa... Ah, mas devo manter minha
perspectiva. Nada de ilusões; por certo, nada de ilusões de grandeza.
Mas, senão grandeza, que tal frivolidade? Que tal depravação? Eu podia ser
rico, você sabe, podia ser rico, famoso, e delirante de prazer em cada hora do
dia. Podia pedir ao meu amigo que me visitasse, o colega aventureiro mais moço
de que falei antes. Até agora ainda não permiti que viesse, e não porque temo
uma repetição da minha experiência com Arthur Schonbrunn; o que me dá medo
agora não é uma risada irreprimível, mas um conselho sério, alguém com uma
nova ideia sobre como deveria me comportar nesta vida. O que me mete medo
agora é que chegue um visitante e me diga que não devo estar regulando bem
para ficar aqui numa padiola, neste estado, sendo bonzinho para tudo, ouvindo
discos, falando com meu analista, e recebendo trinta minutos por dia a dose de
tórrido sexo na concepção de uma bem educada e bem comportada
professorinha... Podia então chamar o meu amigo e dizer: "quero sair daqui.
Podemos ir com quantos trancos e barrancos forem necessários para me manter.
Podemos contratar tantos médicos e enfermeiras quantos forem necessários para
cuidar de mim. Estou farto de me preocupar com a ideia de perder Claire. Que
ela vá embora e consiga um novo amante cujo esperma ela não beberá e leve
com ele uma vida normal. Estou cansado de me defender da perda de sua
bondade. E também estou cansado dos disparates do meu pai; ele me enche. E
até quando vou ter saco para ouvir Shakespeare? Percebi que todas as grandes
peças da literatura ocidental podem agora ser encontradas em LPs; sei que
poderia continuar com Sófocles, Sheridan, Aristófanes, Shaw, Synge, Racine
etc... mas para quê? Isso é matar o tempo. Para um seio, é o assassinato
sangrento do tempo. Vou ganhar um montão de dinheiro, amizade. Não acho que
vai ser difícil demais. Se os Beatles podem encher o Shea Stadium, eu também
posso. Teremos que pensar em tudo, você e eu, mas para que serve toda nossa
inteligência, se não é para pensar em coisas como essas? Para ler mais livros?
Ganharei centenas de milhares de dólares. E então terei meninas. Quero meninas
de doze e treze anos. Quero três, quatro, cinco e seis de uma vez só. Quero que
lambam meu mamilo todas ao mesmo tempo. Quero-as nuas e dando risadinhas,
me acariciando e me chupando durante dias seguidos. E nós podemos achá-las,
amizade. Se os Rolling Stones podem achá-las, se Charles Manson pode achá-
las, podemos achá-las também. E vai haver mulheres que terão desejos de abrir
as coxas para uma coisa tão nova e tão emocionante quanto o meu mamilo,
ficaremos surpresos com o número de mulheres, mães casadas inclusive, que
virão bater na porta do camarim com seus casacos de chinchilas. Bem, só
teremos de escolher a dedo, não é, selecionar de acordo com a beleza, boas
maneiras, e lascívia. E eu serei delirantemente feliz. E eu serei delirantemente
feliz. Lembra-se de Gulliver entre os Brobdingnags? Como as criadas do rei, de
brincadeira, obrigaram-no a caminhar nos seus mamilos? Ele não achava
divertido, pobrezinho. No entanto, era um médico inglês humanitário, um filho
da Idade da Razão, vivendo com absoluta precariedade numa longínqua terra de
gigantes; mas esta, meu amigo, é a Terra da Promissão na Era da
Autorrealização, e eu sou David Alan Kepesh, o Seio, e viverei de acordo com a
minha própria consciência!"
"Viver ou morrer por ela?"
"É o que veremos, Doutor."
Permita-me concluir a preleção, citando o apreciado poeta germânico Rainer
Maria Rilke. Todos sabem o quanto nós, os apaixonados e bem intencionados
professores de literatura, gostamos de terminar a aula com alguma coisa de
tocante para que os alunos a transportem da pureza da sala de aula para o mundo
degradado dos dormitórios e entorpecentes. Como podia então este professor
deffroqué resistir, quando é bem provável que na base da sua fama recém-criada
ele mereça a atenção de enormes rebanhos de carneiros tão ignorantes da grande
poesia quanto da grande catástrofe.
("Fama?", diz o Dr. Klinger. "Com certeza, o mundo inteiro agora já sabe",
respondo, "exceto talvez os russos e os chineses." "De acordo com os seus
desejos, seu caso foi conduzido com todo o sigilo possível." "Mas meus amigos
sabem. O pessoal daqui do hospital sabe — alguns, pelo menos. Não é preciso
muito mais para que um petisco grotesco desses se espalhe." "É verdade. Mas de
um modo geral, acho que quando isto se filtrar bem além dos que estão perto do
senhor, quando atingir o homem da rua, ele tenderá a não acreditar." "Vai pensar
que é uma piada." "Vai pensar que se trata de uma história, sim, isto é, se
conseguir desviar a atenção dos seus próprios problemas por um tempo longo o
bastante para ouvir, pelo menos." "E a imprensa?" "Nada, absolutamente nada."
"Essa agora eu não engulo, Dr. Klinger." "Como quiser. Não vou discutir. Eu já
lhe disse há muito tempo e isto devia ser bastante. No início, claro, houve
indagações. Mas foram manejadas com estrita consideração pelo seu legítimo
direito à privacidade. Alguns insistiram, mas no fim eles têm que ganhar a vida
como todo mundo, e foram andando até a próxima calamidade." "Então,
ninguém sabe tudo que aconteceu." "Tudo? Só o senhor, Sr. Kepesh." "Bem,
talvez, então, seja eu quem deva dizer-lhes." "E assim vai ficar famoso, não é?"
"Melhor ser famoso com a verdade do que com o mexerico sádico e a fantasia
alucinada dos jornais. Melhor que saibam por mim do que pelos loucos e
mentecaptos lá de fora." "Certamente, os loucos e os mentecaptos lá de fora vão
entender mal de qualquer jeito, independentemente da precisão e do escrúpulo
que o senhor tente dar ao seu relato, não é? Portanto, já sabe, o senhor sequer
será avaliado nos seus próprios termos — antes de mais nada, é isso que precisa
compreender." "Isto é, eu sempre serei uma piada." "Para muitos, sim. Uma
piada. Um absurdo. Um charlatão. Isso mesmo." "Está me aconselhando, então,
a viver só." "Não estou lhe aconselhando nada," respondeu Dr. Klinger, "só
queria lembrá-lo da onipresença e da onipotência de nosso velho amigo de
barbas brancas sentado no trono de ouro." "O Sr. Real." "Precisamente.")
E assim, permitam-me concluir, mentecaptos e loucos, obstinados e céticos,
amigos, alunos, parentes, colegas, e todos vocês estranhos, distraídos e
desgraçados, com seus bilhões de faces e impressões digitais diferentes,
permitam-me concluir, meus companheiros mamíferos, com um poema de Rilke
intitulado Arcaico Torso de Apolo. Minha história, narrada aqui na sua totalidade
pela primeira vez, e com toda a autenticidade que me caracteriza, talvez lhes
sirva ao menos para iluminar de modo novo os grandes versos de Rilke,
particularmente sua advertência final, que não é necessariamente um sentimento
tão nobre quanto todos um dia gostamos de acreditar. Sim, vamos continuar com
a nossa educação, todos.

Torso arcaico de Apolo


(Rainer Maria Rilke)
Tradução de Manuel Bandeira
("Poemas Traduzidos", Ed. Globo, 1948)

Não sabemos como era a cabeça, que falta,


De pupilas amadurecidas, porém
O torso arde ainda como um candelabro e [tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que [salta

E brilha. Se não fosse assim, a curva rara


Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro onde o sexo se [alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera


Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida


Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire. Força é mudares de vida.

Este livro foi composto e impresso nas oficinas da
EDITORA ARTENOVA S. A.
Rua Prefeito Olímpio de Melo, 1.774
Rio de Janeiro – GB – 1974

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini
Janeiro de 2019

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