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Philip Roth
Sinopse
Durante o turbulento Verão do escândalo Lewinsky, Coleman Silk,
decano universitário, vê a sua reputação e a sua carreira arruinadas por
proferir uma expressão pouco afortunada num momento inoportuno. Como
nma nova caça às bruxas, a febre do politicamente correctodesata
consequências devastadoras.Mas a verdade sobre Silk não é a escandalosa
relação que mantém com a misteriosa Faunia, que tem menos de metade da
sua idadem nem o seu alegado racismo e misoginia, mas um segredo que
não conheceu nem a sua mulher, nem os seus quatro filhos, nem os seus
colegas, nem os seus amigos. Coleman ver-se-á forçado a mostrar a sua
autêntica identidade antes que seja tarde de mais...
Ficha Técnica
Título do original: The Human Stain
Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues
(c)2000, Philip Roth
(c) 2004, Publicações Dom Quixote
Tradução cedida por Publicações Dom Quixote, Leya.
(c) 2008, desta edição, (sic) idea y creación editorial, s.l Design de capa,
Sebastián Uribc
www.sicidea.net
CREONTE
Pelo banimento de um homem ou pela expiação de sangue por sangue.
Foi no Verão de 1998 que o meu vizinho Coleman Silk — que, antes de
se reformar dois anos atrás, fora professor de estudos clássicos no Athena
College durante vinte e tal anos, além de ter servido dezasseis como reitor
da faculdade — me confidenciou que, aos 71, tinha um caso com uma
empregada de limpeza de 34, que trabalhava na universidade. Duas vezes
por semana também fazia a limpeza do posto dos correios rural, uma
pequena construção de madeira que poderia ter abrigado uma família Okie
dos ventos da Dust Bowl(1) nos anos 30 e que, solitária e desamparada
defronte da estação de serviço e do armazém-geral, hasteia a bandeira
americana no cruzamento das duas estradas que assinalam o centro
comercial desta cidade da encosta da montanha.
Coleman vira-a pela primeira vez a lavar o chão do posto dos correios
quando lá fora ao fim de um dia, poucos minutos antes da hora de
encerramento, buscar a sua correspondência. Era uma mulher alta, magra e
angulosa, com o cabelo louro a encanecer puxado para trás e preso num
rabo-de-cavalo e o género de feições duramente vincadas que costumamos
relacionar com as donas de casa dominadas pela igreja e sobrecarregadas de
trabalho que sofreram as agruras dos duros primeiros tempos da Nova
Inglaterra, colonas austeras, tolhidas pela moral vigente e obedecendo-lhe.
Chamava-se Faunia Farley e, fossem quais fossem os sofrimentos que
suportava, escondia-os atrás de um daqueles inexpressivos rostos ossudos
que não escondem nada e denunciam uma imensa solidão. Vivia num
quarto numa herdade leiteira local, onde ajudava na ordenha para pagar a
renda. Frequentara a escola secundária durante dois anos.
O Verão em que Coleman me fez a confidência acerca de Faunia Farley e
do segredo de ambos foi, por curiosa coincidência, aquele em que o segredo
de Clinton se tornou conhecido nos mais ínfimos e mortificantes
pormenores — nos mais ínfimos pormenores reais que tanto a realidade
como a mortificação supuravam da pungência dos dados específicos. Não
tínhamos uma estação assim desde que alguém descobrira, por acaso, a
nova Miss América nua num número antigo da Penthouse, em fotografias
que a mostravam em elegantes poses de joelhos e de costas e tinham
forçado a jovem a abdicar da coroa e tornar-se uma grande estrela pop. O
Verão de 98 foi, em Nova Inglaterra, um Verão de calor e sol intensos; no
basebol, um Verão de combate mítico entre um deus do homem que era
branco e outro que era acastanhado, e na América o Verão foi caracterizado
por um enorme regabofe de devoção, um regabofe de virtude, quando ao
terrorismo, que destronara o comunismo como ameaça predominante à
segurança do país, sucedeu o brochismo e um presidente viril, vigoroso e de
meia-idade e uma impetuosa e enfeitiçada funcionária de 21 anos,
desaforados no Salão Oval como dois putos adolescentes num parque de
estacionamento, ressuscitaram a mais antiga paixão comunal da América,
historicamente talvez, até, o seu prazer mais pérfido e subversivo: o êxtase
da beatice hipócrita. No Congresso, na imprensa e nas televisões os
farisaicos paladinos encartados da moral e dos bons costumes, sôfregos por
censurar, deplorar e punir, apareciam em todo o lado numa estridente
campanha moralizadora: todos eles num furor deliberado e com aquilo que
Hawthorne (que, na década de 1860, morava a relativamente poucos
quilómetros da minha porta) identificou, no país incipiente de há muito
tempo, como "o espírito persecutório -, todos eles ansiosos por porem em
prática os cáusticos rituais de purificação que excisariam a erecção do ramo
executivo, tornando assim as coisas suficientemente cómodas e seguras
para que a filha de 10 anos do senador Lieberman pudesse voltar a ver
televisão com o seu embaraçado papá. Não, quem não viveu no ano de 1998
não sabe o que é a indignação hipócrita. O colunista conservador William F.
Buckley escreveu: "Quando Abelardo o fez, foi possível impedir que
voltasse a acontecer", insinuando assim que a prevaricação do presidente --
aquilo a que, noutro lugar, Buckley chamou a carnalidade incontinente" de
Clinton — poderia ser mais justamente punida com algo que não fosse tão
incruento como a impugnação, mas, antes, com o castigo do século XII
aplicado ao cónego Abelardo pelos companheiros de faca em punho do
colega eclesiástico daquele, o cónego Fulberto, por ter seduzido e casado
secretamente com a sobrinha deste, a virgem Heloísa. Ao contrário da fattua
de Khomeíní que condenou Salman Rushdie à morte, o desejo ardente de
Buckley pelo castigo correctivo da castração não era acompanhado de
nenhum incentivo financeiro para qualquer provável perpetrador. Inspirava-
o, no entanto, um espírito não menos implacável do que o do aiatola e era
reclamado em nome de ideais não menos exaltados. Foi o Verão da América
em que a náusea regressou, em que as chalaças não pararam, em que a
especulação, a teorização e a hípérbole não pararam, em que a obrigação
moral de explicar aos filhos a vida adulta foi revogada pela vontade de lhes
conservar todas as ilusões a respeito da vida adulta, em que a pequenez das
pessoas era simplesmente esmagadora, em que um demónio qualquer fora
largado à solta na nação e, em ambos os lados, as pessoas perguntavam:
"Por que somos tão loucos?", em que tanto homens como mulheres, ao
acordarem de manhã, descobriam que durante a noite, num estado de sono
que os transportava para além de toda a repugnância, tinham sonhado com a
impudência de Clinton. Eu próprio sonhei com uma bandeira gigantesca,
disposta em estilo dadaísta, como um "embrulho" de Christo, de um
extremo ao outro da Casa Branca, com a legenda: VIVE AQUI UM SER
HUMANO. Foi o Verão em que, pela mílésima milionésima vez, a bagunça,
o caos e a confusão demonstraram ser mais subtis do que a ideologia deste e
a moralidade daquele. Foi o Verão em que o pénis de um presidente esteve
na cabeça de toda a gente e a vida, em toda a sua despudorada obscenidade,
confundiu uma vez mais a América.
Às vezes, ao sábado, Coleman Silk telefonava e convidava-me a meter-
me no carro e ir do meu lado da montanha a sua casa, depois do jantar, para
ouvir música, ou jogar, a um cêntimo por ponto, um pouco degin rummy, ou
sentar-me um par de horas na sua sala e emborcar um pouco de conhaque e
ajudá-lo a passar a que era sempre a sua pior noite da semana. No Verão de
1998 já ele ali estava sozinho — sozinho na grande e velha casa branca
revestida de tábuas sobrepostas onde criara quatro filhos com a sua mulher,
Iris — havia quase dois anos, desde que Iris tivera um acidente vascular e
morrera de um dia para o outro, enquanto Coleman estava em pleno
combate com a universidade por causa de uma acusação de racismo que lhe
fora feita por duas estudantes de uma das suas turmas.
Nessa altura, já passara na Athena quase toda a sua vida académica,
mostrando-se um extrovertido, arguto e energicamente afável sedutor de
cidade grande, com um pouco de guerreiro, um pouco de manipulador e
quase nada do prototípico professor pedante de Latim e Grego (como atesta
o Clube Coloquial de Grego e Latim que criou, hereticamente, quando
jovem professor auxiliar). O seu eminente curso panorâmico de literatura
antiga grega traduzida — conhecido por DHM: Deuses, Heróis e Mito —
era popular entre os estudantes precisamente graças a tudo quanto havia de
claro, franco e não academicamente enérgico no comportamento dele.
"Sabem como começou a literatura europeia?", perguntava, após ter feito a
chamada na primeira aula. "Com uma discussão. Toda a literatura europeia
nasce de uma briga. Depois pegava no seu exemplar da Ilíada e lia aos
estudantes os versos da introdução. "Divina Musa, cantai da desastrosa ira
de Aquiles ... Começai onde eles primeiro discutiram, Agamémnon, o rei
dos homens, e o grande Aquiles." E acerca de que discutem essas duas
violentas e poderosas criaturas? De uma coisa tão primitiva como uma rixa
de taberna. Discutem por causa de uma mulher. Uma rapariga, na verdade.
Uma rapariga roubada ao seu pai. Uma rapariga raptada numa guerra. Mia
kouri: assim é descrita no poema. Mia é, como no grego moderno, o artigo
indefinido uma; kouri, ou rapariga, evolui no grego moderno para kori, que
significa filha. Ora, Agamémnon prefere muito esta rapariga à.sua mulher,
Clitemenestra. "Clitemenestra não vale tanto como ela", diz:, "nem em rosto
nem em figura." Isso revela claramente por que não quer abrir mão dela,
não é verdade? Quando Aquiles exige que Agamémnon devolva a rapariga
ao pai a fim de apaziguar Apolo, o deus que está furiosamente zangado
devido às circunstâncias que rodearam o rapto, Agamémnon recusa: só
anuirá se Aquiles lhe der a rapariga dele em troca. voltando assim a
inflamar Aquiles. O adrenalínico Aquiles, o mais altamente inflamável dos
explosivos homens violentos que escritor algum jamais teve o prazer de
retratar, sobretudo quando estão em causa o seu prestígio e o seu apetite; a
máquina de matar mais hipersensível da história da guerra. O famoso
Aquiles: afastado e antagonizado por uma afronta à sua honra. Grande e
heróico Aquiles que, pela força da sua cólera perante um insulto — o
insulto de não conseguir a rapariga -, se isola e coloca desafiadoramente à
margem da própria sociedade da qual é o glorioso protector e que tão
enormemente precisa dele. Uma desavença, portanto, uma desavença brutal
por causa de uma jovem e do seu jovem corpo, das delícias da capacidade
sexual: é aí, para o bem ou para o mal, é nessa afronta ao direito fálico, à
dignidade fálica de um possante príncipe guerreiro, que começa a grande
literatura imaginativa da Europa, e é por isso que, quase três mil anos
depois, é por aí que hoje vamos começar..."
Quando foi contratado, Coleman fez parte de um punhado de professores
judeus da universidade e contou-se, talvez, entre os primeiros judeus a
quem foi permitido ensinar num departamento de estudos clássicos em
qualquer ponto da América; poucos anos antes, o único judeu da Athena
tinha sido E. I. Lonoff, o quase esquecido contista a quem eu próprio,
quando era um aprendiz recém-publicado e em apuros buscando
ansiosamente a caução de um mestre, fizera uma visita memorável. Durante
toda a década de 80 e entrando pela de 90, Coleman foi também o primeiro
e único judeu a trabalhar na universidade de Athena como reitor. Depois,
em 1995, tendo deixado de ser reitor para poder completar a sua carreira na
sala de aulas, voltou a ensinar dois dos seus cursos sob a égide do programa
combinado de línguas e literatura que incorporara o Departamento de
Estudos Clássicos e era dirigido pela professora Delphine Roux. Como
reitor, e com apoio total de um ambicioso novo presidente, Coleman pegara
numa instituição antiquada, estagnada e provinciana e, não sem mão
pesada, liquidara-a como clube de cavalheiros, encorajando insistentemente
os pesos mortos que faziam parte da velha guarda da faculdade a
procurarem obter a reforma antecipada, contratando jovens professores
ambiciosos e modificando radicalmente o currículo. É quase possível
afirmar, com toda a certeza, que se ele se tivesse aposentado sem incidentes
e no devido tempo, teria havido a publicação de escritos de homenagem,
teria sido instituído o Ciclo de Conferências Coleman Silk, teria havido
uma cadeira de estudos clássicos com o seu nome e talvez — dado o seu
papel importante na revitalização da universidade no século XX — o
edifício dos estudos humanísticos, ou até o Salão Norte, que era o ponto de
referência da instituição, tivessem mudado de nome, em sua honra, após o
seu falecimento. No pequeno mundo académico onde passara a maior parte
da sua vida, há muito que teria deixado de ser desaprovado ou controverso,
ou até temido, mas, ao invés, oficialmente exaltado para sempre.
Foi mais ou menos a meio do seu segundo semestre de novo como
professor a tempo inteiro que Coleman proferiu a palavra auto-
incriminadora que o levaria a cortar voluntariamente todos os laços com a
universidade — a única palavra auto-incriminadora dos muitos milhões
ditos em voz alta nos seus anos de ensino e administração na Athena e
aquela que, no entendimento dele, conduzira directamente à morte da sua
mulher.
A turma tinha catorze alunos. No início de várias das primeiras aulas,
Coleman fizera a chamada, a fim de decorar os nomes dos estudantes.
Como na quinta semana do semestre ainda havia dois nomes a que ninguém
respondia, na sexta semana Coleman iniciou a aula perguntando: "Alguém
conhece estas pessoas? Elas existem ou são "spooks(2)"?
Nesse mesmo dia, ficou cheio de espanto ao ser chamado pelo seu
sucessor, o novo reitor da faculdade, a fim de responder à acusação de
racismo apresentada contra ele pelas duas estudantes faltosas, que ficou a
saber serem negras e que, apesar de ausentes, tinham tomado rapidamente
conhecimento da frase em que ele levantara publicamente a questão da sua
ausência. Coleman explicou ao reitor: "Eu estava a referir-me à sua
natureza porventura ectoplásmica. Isso não é evidente? Essas duas
estudantes não tinham comparecido a uma única aula. Essa era a única coisa
que eu sabia a seu respeito. Usei a palavra no seu significado habitual e
principal: espectro ou fantasma. Não fazia a mínima ideia de qual seria a
sua cor. Soubera, talvez há uns cinquenta anos, mas esquecera-me
completamente disso, que se tratava de um termo odioso, por vezes
aplicado a negros. Caso contrário, e dado que sou absolutamente meticuloso
no tocante às susceptibilidades dos estudantes, jamais teria usado essa
palavra. Considere o contexto: Elas existem ou são fantasmas? A acusação
de racismo é espúria. É absurda. Os meus colegas sabem que é absurda e os
meus alunos sabem que é absurda. A questão, a única questão, é a ausência
dessas duas estudantes e a sua flagrante e indesculpável negligência quanto
ao estudo. O que considero exasperante é o facto de a acusação não ser
apenas falsa mas também espectacularmente falsa. Tendo dito o
estritamente suficiente em sua defesa e considerando o assunto encerrado,
foi para casa. Ora, ao que me consta, até comuns reitores, prestando serviço,
como prestam, numa terra-de-ninguém entre os professores e a
administração superior, arranjam invariavelmente inimigos. Nem sempre
concedem os aumentos de ordenado que lhes são pedidos, ou os tão
cobiçados lugares de estacionamento mais cómodos, ou os gabinetes
maiores a que os docentes se julgam com direito. Candidatos a nomeações
ou promoções, sobretudo em departamentos fracos, são normalmente
recusados, ete. Requerimentos departamentais para preenchimento de novos
lugares na faculdade e pessoal para secretariado são quase sempre
indeferidos, o mesmo acontecendo aos pedidos de redução de carga lectiva
e isenção de aulas de manhã cedo. Fundos para deslocações a conferências
académicas são regularmente negados, etc. Mas Coleman não tinha sido um
reitor comum e aqueles de quem se livrou, e como se livrou, aquilo que
aboliu e aquilo que instituiu, e o modo audacioso como desempenhou as
suas funções não obstante a tremenda resistência que se lhe deparava, tudo
isso se saldou em mais do que meras desfeitas ou ofensas a uns quantos
ingratos e descontentes avulsos. Sob a protecção de Pierce Roberts, o
elegante e eficaz jovem presidente de farta cabeleira que o nomeou para o
cargo de reitor — e lhe disse: "Não ser feitas mudanças e quem não se
sentir bem deve pensar em ir-se embora ou na aposentação antecipada" -,
Coleman virou tudo do avesso. Quando, oito anos depois, a meio da carreira
efectiva de Coleman, Roberts aceitou uma prestigiosa presidência das Dez
Grandes, isso deveu-se à reputação alcançada por tudo quanto tinha sido
realizado, em tempo recorde, na universidade de Athena — realizado,
porém, não pelo sedutor presidente, que era essencialmente um angariador
de fundos, que não sofreu nenhum dos embates e partiu de Athena louvado
e incólume, mas sim pelo seu determinado reitor.
Logo no seu primeiro mês como reitor, Coleman convidara todos os
membros da faculdade para uma conversa, incluindo vários professores
decanos oriundos de antigas famílias do condado que tinham fundado, e
inicialmente financiado, o estabelecimento, os quais não precisavam na
realidade do dinheiro, mas aceitavam de bom grado os seus honorários. Foi
pedido de antemão a cada um, ou cada uma, que trouxesse o seu c.v., e para
o caso de algum, ou alguma, o não levar por se sentir demasiado
importante, Coleman tinha-os à sua frente, na secretária. Manteve-os ali
durante uma boa hora, e algumas vezes mais, até que, tendo muito
persuasivamente feito ver que as coisas na universidade tinham, finalmente,
mudado, começara a fazê-los suar. Nem sequer hesitou em iniciar a
entrevista folheando o c.v. e dizendo: "O que andou afazer, exactamente,
nos últimos onze anos?! E quando lhe responderam, como aconteceu com
um número esmagador dos entrevistados, que tinham andado a publicar
regularmente na Athena Notes, quando ouviu mencionar, mais vezes do que
a sua paciência consentia, as dou tas ninharias filológicas, bibliográficas ou
arqueológicas que cada um deles seleccionava anualmente de uma antiga
tese de doutoramento para "publicação" na revista trimestral mimeografada,
com capa de cartolina cinzenta, que não se encontrava catalogada em lugar
algum da terra a não ser na biblioteca da universidade, constava que ousou
transgredir o código de civilidade de Athena, comentando: "Por outras
palavras, vocês reciclam o vosso próprio lixo" Depois não só encerrou a
Athenas Notes, devolvendo a insignificante doação ao doador — que era
sogro do redactor -, como também, para encorajar a aposentação
antecipada, retirou os mais mortos dos pesos mortos dos cursos que
andavam a ministrar rotineiramente há vinte ou trinta anos e transferiu-os
para o Inglês primeiranista, para panorama histórico e para o novo
programa de orientação primeiranista ministrados durante os últimos dias
quentes do Verão. Eliminou o mal-afamado Prémio do Investigador do Ano
e atribuiu os mil dólares a outra coisa. Pela primeira vez nos anais da
universidade, obrigou a apresentar candidaturas formais, com uma
descrição de projecto pormenorizada, para licença sabática paga, a qual a
maior parte das vezes era recusada. Livrou-se da sala de almoço, tipo clube,
da universidade, que alardeava o mais elegante dos interiores apainelados a
carvalho do campus, e reconverteu-a na sala de seminários dos melhores
estudantes, para que fora inicialmente destinada, obrigando o professorado
a comer na cafetaria com os alunos. Insistiu na realização de reuniões de
professores — o facto de nunca as fazer tornara o reitor que o antecedera
extremamente popular. Coleman encarregou o secretário da faculdade de
anotar as presenças, de modo que até as eminências com horários de três
horas por semana eram obrigadas a ir para o campus, a fim de se
mostrarem. Descobriu nos estatutos da universidade uma cláusula segundo
a qual não haveria comissões executivas e, com o argumento de que esses
ronceiros entraves à mudança séria tinham surgido apenas por convenção e
tradição, aboliu-as e passou a reger essas reuniões de professores por
marcação formal e aproveitando cada uma delas para anunciar o que ia
fazer a seguir e que não deixaria de gerar ainda mais ressentimento. Sob a
sua direcção as pro-moções tornaram-se difíceis, e esse foi, talvez, o maior
de todos os choques: as pessoas deixaram de ser promovidas
automaticamente por categoria, com base no facto de serem professores
populares, e não obtinham aumentos de ordenado que não decorressem do
mérito. Em resumo, introduziu a competição e tornou a universidade
competitiva, o que, como um dos primeiros inimigos observou, "é o que os
judeus fazem". E sempre que era constituída uma comissão ad hoc para ir
queixar-se a Pierce Roberts, o presidente apoiava infalivelmente Coleman.
No tempo de Roberts, todos os jovens brilhantes recrutados por ele
gostavam de Coleman, por causa do espaço que estava a arranjar para eles
e, também, dos bons elementos que começou a contratar, oriundos de
programas de licenciatura na Johns Hopkins, Yale e Cornell- "a revolução
da qualidade", como eles próprios gostavam de descrever o facto.
Apreciavam-no por tirar a elite dominante do seu pequeno clube e ameaçar
a sua auto-imagem, o que nunca deixa de enfurecer um professor pomposo.
Todos os indivíduos mais idosos que constituíam a parte mais fraca da
faculdade tinham sobrevivido de acordo com o que pensavam de si mesmos
— o maior especialista do século 100 a.c., e por aí fora -, mas, uma vez
contestados a partir de cima, a sua confiança foi-se corroendo, em poucos
anos, tinham desaparecido quase todos. Tempos excitantes! Mas depois de
Pierce Roberts sair para ocupar o grande cargo em Michigan e de Haines, o
novo presidente, lhe suceder sem nenhuma lealdade especial por Coleman
— e, ao contrário do seu antecessor, não sentir nenhuma tolerância especial
pelo género de vaidade arrasadora e ego autocrático que limpara o colégio
em tão curto espaço de tempo -, e à medida que as pessoas novas que
Coleman mantivera, assim como aquelas que contratara, se foram ornando
na faculdade veterana, começou a instalar-se uma reacção contra o reitor
Silk. Ele nunca se dera inteiramente conta de quanto essa reacção era forte
até começar a contar, departamento por departamento, todas as pessoas que
não pareciam de modo algum desagradadas com o facto de a palavra que o
velho reitor escolhera para caracterizar as suas duas aparentemente
inexistentes estudantes ser definível não apenas pelo primeiro significado
do dicionário, que ele afirmava ser, obviamente, o que pretendera, mas pelo
pejorativo significado racial que levara as suas duas jovens negras a
apresentar queixa.
Lembro-me muito bem desse dia de Abril de há dois anos em que Iris
Silk morreu e a insanidade se apoderou de Coleman. Além de uma
inclinação de cabeça a um ou outro ligando os nossos caminhos se
cruzavam no armazém-geral ou no posto dos correios, não conhecera
realmente os Silk, nem soubera grande coisa a respeito deles, antes dessa
ocasião. Não soubera, sequer, que Coleman crescera a uns nove ou dez
quilómetros de mim numa minúscula cidade de East Orange, em Essex
County, Newjersey, e que, tendo terminado o curso do liceu de East Orange
em 1944, me levara uns seis anos de avanço na escola de Newark da minha
área. Coleman não fizera esforço algum para travar conhecimento comigo,
nem eu saíra de Nova Iorque e me mudara para uma casa de madeira de
duas divisões, situada num campo afastado de uma estrada rural nos
Berkshire, para travar novos conhecimentos ou integrar-me numa nova
comunidade. Declinei cortesmente os convites que recebi nos primeiros
meses que ali passei, em 1993 — para um jantar, para tomar chá, para um
cocktail, para um estirão até à universidade, no vale, para um discurso
aberto ao público ou, se preferisse, falar informalmente numa aula de
literatura -, e depois disso tanto os vizinhos como a universidade deixaram-
me fazer o meu próprio trabalho em paz.
Mas naquela tarde de há dois anos, depois de tomar as providências
necessárias para o funeral de Iris, Coleman viera directamente de carro e
estava ao lado da minha casa, a bater à porta e a pedir para entrar. Embora
tivesse um pedido urgente para fazer, não conseguia ficar sentado mais de
trinta segundos e esclarecer do que se tratava. Levantava-se, sentava-se,
levantava-se de novo, andava às voltas na minha sala de trabalho, a falar
alto e muito depressa, chegando mesmo a agitar um punho ameaçador no ar
quando lhe parecia, erradamente, necessário usar a ênfase. Eu tinha de lhe
escrever qualquer coisa, quase me ordenou que o fizesse. Se fosse ele a
escrevera história em todo o seu absurdo, sem modificar nada, ninguém
acreditaria, ninguém a levaria a sério, as pessoas diriam que se tratava de
uma mentira ridícula, um exagero em benefício próprio, diriam que, como
se não bastasse ter proferido a palavra -spooks- numa sala de aula, também
tinha de mentir quanto à sua queda. Mas se eu a escrevesse, se um escritor
profissional a escrevesse ...
Todo o comedimento ruíra dentro dele e, por isso, observá-lo, ouvi-lo —
um homem que eu não conhecia, sem dúvida alguém com talento e
importância, mas agora completamente transtornado -, era como assistir a
um grave acidente de viação, a um incêndio ou a uma explosão assustadora,
a uma tragédia pública que hipnotiza tanto pela sua improbabilidade como
pelo seu carácter grotesco. A maneira como andava à toa pela sala
lembrava-me aqueles frangos que continuam a andar depois de degolados.
A sua cabeça tinha sido decepada, a cabeça que encerrava o cérebro culto
do outrora inatacável reitor e professor de estudos clássicos, e aquilo que eu
estava a ver era o resto amputado dele a girar descontrolado.
Eu, em cuja casa nunca antes entrara, cuja voz mal ouvira antes, tinha de
pôr de lado o que quer que estivesse a fazer e contar como os seus inimigos
de Athena, ao pretenderem atingi-lo, a .tinham derrubado a ela. Ao criarem
aquela falsa ideia a seu respeito, ao chamarem-lhe tudo o que ele não era e
nunca poderia ser, não tinham apenas falseado uma carreira profissional
conduzida com a máxima seriedade e dedicação: tinham morto a sua mulher
de mais de quarenta anos. Tinham-na morto como se houvessem feito
pontaria e disparado uma bala no seu coração. Eu tinha de escrever a
respeito deste "absurdo", daquele "absurdo": eu, que então não sabia nada
acerca das suas atribulações na universidade e não podia, sequer, elaborar
uma cronologia do horror que, durante cinco meses, o tinha atormentado, a
ele e à falecida Iris Silk: a imersão punitiva em reuniões, audições e
entrevistas, os documentos e as cartas apresentados a funcionários do
colégio, a comissões de professores, a um advogado negro pro bono
representante das duas estudantes... as acusações, os desmentidos e as
contestações, a estupidez, a ignorância e o cinismo, as grosseiras e
propositadas interpretações erróneas, as explicações penosas e repetitivas,
as perguntas persecutórias ... e, incessantemente, o sentimento difuso de
irrealidade. "O assassínio dela! -, gritou Coleman, inclinando-se por cima
da minha secretária e dando murros no tampo. "Aquela gente assassinou
Íris!"
O rosto que me mostrava, aquele rosto que colocou a um palmo do meu,
tornara-se entretanto vincado, as simétrico e — tratando-se do rosto de um
homem idoso, bem tratado e juvenilmente bem-parecido — estranhamente
repulsivo, por certo desfigurado pelo efeito tóxico de toda a emoção que o
percorria. Dir-se-ia, assim de perto, amolgado e pisado como um fruto que
caíra da sua banca no mercado e tinha sido pontapeado para cá e para lá
pelas pessoas que andavam às compras.
Há algo de fascinante no que o sofrimento moral pode fazer a alguém que
nada indicia ser uma pessoa frágil ou fraca. É uma coisa ainda mais
insidiosa do que a doença física pode causar, pois não há perfusão de
morfina, epidural ou cirurgia radical que possam aliviá-la. Quando caímos
nas suas garras dir-se-ia que só nos libertaremos dela se nos matar. Não
existe nada que se compare ao seu realismo brutal.
Assassinada. Para Coleman, só isso explicava como, sem mais nem
menos, o fim podia ter chegado para uma vigorosa mulher de 64 anos,
presença dominadoras perfeita saúde, uma pintora abstracta, cujas telas se
impunham nas exposições de arte locais e que administrava
autocraticamente a associação de artistas da cidade, uma poetisa publicada
no jornal do condado, uma mulher que, no seu tempo, fora a principal
opositora universitária politicamente activa dos abrigos antiatómicos, do
estrôncio 90 e, posteriormente, da Guerra do Vietname, obstinada,
inflexível, arrojada, um furacão de mulher reconhecível a cem metros de
distância pelo volumoso emaranhado de ouriçados cabelos brancos — uma
pessoa aparentemente tão forte que, apesar da sua própria invencibilidade, o
reitor que conseguira o que parecia academicamente impossível ao salvar a
universidade de Athena só era capaz de vencer no ténis.
No entanto, quando Coleman foi atacado, quando a acusação de racismo
foi sujeita a investigação não apenas pelo novo reitor mas também pela
pequena organização estudantil negra e por um grupo activista negro de
Píttsfíeld, a absoluta loucura de tudo isso obliterou o milhão de dificuldades
conjugais dos Silk e a mesma atitude imperiosa que durante quatro décadas
colidira com a obstinada autonomia do próprio Coleman e tivera como
resultado o infindável atrito das vidas deles, foi colocada por Iris ao serviço
da causa do marido. Apesar de haver anos que não dormiam na mesma
cama nem conseguiam suportar durante muito tempo a conversa um do
outro — ou os amigos de um e do outro -, os Silk estavam de novo lado a
lado, acenando com os punhos fechados às caras daqueles que detestavam
mais profundamente do que, nos seus momentos mais insuportáveis,
conseguiam detestar-se um ao outro. Tudo quanto tinham tido em comum
quarenta anos atrás, em Greenwich Village — quando ele estava na
Universidade de Nova Iorque a terminar o seu doutoramento e ela, recém-
evadida de casa dos pais chalados e anarquistas, servia de modelo em aulas
de desenho ao vivo na Art Students League, detentora já da sua grenha de
cabelo indomável, de feições grandes e voluptuosas, já então uma suprema
sacerdotisa, de aspecto teatral e adornada de joalharia folclórica, a suprema
sacerdotisa bíblica de antes do tempo da sinagoga -, tudo quanto tinham
tido em comum nesses tempos da Village (excepto a paixão erótica) veio de
novo descontroladamente à superfície... até à manhã em que ela acordou
com uma feroz dor de cabeça e sem qualquer sensibilidade num braço.
Coleman levou-a a correr para o hospital, mas no dia seguinte Iris estava
morta.
"Eles pretendiam matar-me e em vez disso mataram-na a ela" Foi isto
que Coleman me disse, diversas vezes, durante aquela visita não anunciada
a minha casa, e na tarde seguinte fez questão de o dizer a todas as pessoas
presentes no funeral. E continuava a acreditar nisso. Não estava receptivo
para qualquer outra explicação. Desde a morte dela, e desde que tinha
compreendido que a sua provação não era assunto de que eu desejasse tratar
na minha ficção e consentido que lhe devolvesse todos os documentos que
largara na minha secretária, naquele dia, andara a trabalhar num livro seu
acerca do motivo por que se demitira de Athena, um livro não ficcional a
que chamava Spooks.
Como podemos dizer: "Não, isso não faz parte da vida", quando na
realidade faz, sempre? O contágio do sexo, a corrupção redentora que
desidealiza a espécie e nos mantém eternamente conscientes da matéria que
somos.
Mais para o fim dessa tarde, Coleman levou-me a uma pequena herdade
leiteira, a cerca de dez quilómetros da sua casa, para conhecer Faunia. Era
lá que ela morava sem pagar renda, a troco de fazer a ordenha, de vez em
quando. A empresa leiteira, agora já com alguns anos, fora criada por duas
divorciadas, ambientalistas que se tinham formado na universidade, eram
oriundas de famílias de agricultores de Nova Inglaterra e tinham juntado os
seus recursos — e também os seus filhos pequenos, seis crianças que, como
gostavam de dizer aos seus clientes, não dependiam da Rua Sésamo para
saberem de onde vinha o leite — para se lançarem na aventura quase
impossível de ganhar a vida com a venda de leite em estado natural. Era um
empreendimento único, sem qualquer semelhança com o que se passava nas
grandes herdades leiteiras, sem nada de impessoal ou industrial, um lugar
onde a maioria das pessoas dos nossos dias não veria qualquer semelhança
com uma herdade leiteira. Chamava-se Organic Livestock e engarrafava e
fornecia o leite em estado natural que se encontrava à venda nos armazéns
locais e em alguns supermercados da região, além de estar disponível, na
herdade, para clientes regulares, que compravam doze litros ou mais por
semana.
Havia apenas doze vacas, todas Jerseys de raça pura, e cada uma com um
nome de vaca à moda antiga em vez de uma etiqueta de identificação na
orelha. Porque o leite delas não era misturado com o de vacas de enormes
manadas às quais são injectadas drogas de toda a espécie, e porque, isento
das consequências da homogeneização e da pasteurização, adquiria os
laivos, e até o leve sabor, do que quer que as vacas comiam estação após
estação — alimentos cultivados sem recorrer ao uso de herbicidas,
pesticidas ou adubos químicos -, e também porque era mais rico em
nutrientes do que o misturado, o leite da herdade era apreciado pelos
habitantes das redondezas, que se esforçavam por compor a dieta da família
com alimentos integrais em vez de processados. A herdade contava com
uma forte clientela, sobretudo entre as muitas pessoas que se tinham
instalado ali em cima, tanto para gozar a reforma como para criar os filhos,
fugindo da poluição, das frustrações e dos problemas das cidades grandes.
O semanário local publicava regularmente uma carta ao editor de alguém
que encontrara recentemente uma vida melhor ao longo daquelas estradas
rurais E não deixava de referir, em termos elogiosos, o leite da Organics
Livestock, não apenas corno uma bebida saborosa mas também como o
símbolo de uma pureza campestre revigorante e apaziguadora, tão
necessária ao seu idealismo maltratado pela cidade. Palavras como
"bondade" e "alma" surgem regularmente nessas cartas, como se beber um
copo de leite da Organics Lívestock fosse, além de uma bênção nutricional,
um rito religioso redentor "Quando bebemos leite da Organic Livestock, o
nosso corpo, a nossa alma e o nosso espírito são alimentados como um
todo. Vários órgãos do nosso corpo recebem esta integralidade e apreciam-
na de uma maneira que pode passar-nos despercebida." Frases deste género
eram escritas por indivíduos adultos e em tudo o mais sensatos, mas que,
libertos dos aborrecimentos que os tinham feito sair de Nova Iorque,
Hartford ou Boston, sentiam prazer em passar alguns minutos agradáveis à
secretária, fingindo que eram miúdos de sete anos.
Embora, ao todo, provavelmente não utilizasse mais do que o meio copo
de leite que deitava nos cereais da manhã, Coleman inscrevera-se na
Organic Livestock como um clíente de doze litros de leite por semana. Isso
permitia-lhe ir buscar o seu leite à quinta, acabado de sair da vaca: metia-se
no carro, saía da estrada e seguia pelo longo caminho de tractores até ao
estábulo, apeava-se, entrava no estábulo e tirava o seu leite fresquinho do
frigorífico. Optara por este esquema não para beneficiar do desconto
concedido aos clientes de doze litros semanais, mas porque o frigorífico
estava instalado logo à entrada lia vacaria e apenas a uns cinco metros da
baia aonde as vacas eram conduzi das para serem ordenhadas, uma por
uma, duas vezes por dia, e onde às cinco da tarde (quando ele chegava),
Faunia, terminado o seu trabalho na universidade, se encarregava da
ordenha diversas vezes por semana.
A única coisa que fazia era vê-la trabalhar. Embora raramente houvesse
mais alguém por ali àquela hora, Coleman ficava no exterior da baia, a
observar, e deixava-a fazer o seu trabalho sem ter de se incomodar a falar
com ele. A maior parte das vezes não diziam nada, porque não dizer nada
intensificava o prazer que sentiam. Faunia sabia que ele estava a observá-la,
e, sabendo que ela sabia, Coleman observava-a ainda com maior
concentração. o facto de não poderem acasalar ali mesmo, no chão térreo,
não fazia a mínima diferença. Bastava estarem os dois sozinhos, sem ser na
cama dele; bastava terem de manter a naturalidade de estarem separados por
obstáculos sociais intransponíveis, desempenharem os seus papéis de
trabalhadora agrícola e professor universitário aposentado; bastava
comportarem-se, de modo consumado, ela como uma mulher trabalhadora,
forte e magra, de 37 anos, praticamente analfabeta e silenciosa, uma
campónia primitiva toda músculo e osso, acabada de vir do pátio de
forquilha na mão, depois de limpar a porcaria da ordenha da manhã, e ele
como um cidadão idoso e sério, de 71 anos, classicista eminente, grande
intelectual com o cérebro repleto de vocabulários de duas línguas antigas.
Bastava serem capazes de se conduzirem como duas pessoas que não
tinham nada, absolutamente nada, em comum, sem esquecerem um
momento a capacidade mútua de destilarem e concentrarem numa essência
orgástica tudo quanto havia neles de irreconciliável, as discrepâncias
humanas que produziam toda a energia. Bastava sentirem o frémito de uma
vida dupla.
À primeira vista, pouco havia susceptível de aumentar excessivamente as
expectativas carnais de alguém na mulher magra e esgalgada, suja de terra,
de calções, T-shirt e botas de borracha, que eu vi naquela tarde com a
manada e que Coleman identificou como sendo a sua Voluptas. As criaturas
de aspecto carnalmente peremptório eram aquelas cujos corpos ocupavam o
espaço todo, as vacas cor de creme, com os flancos largos a oscilar
livremente, as panças grandes como barricas e os úberes imensamente
túmidos de leite, ao ponto de parecerem caricaturas, as mansas,
pachorrentas e pacíficas vacas, cada qual uma indústria ambulante de
autocomprazimento com mais de seiscentos quilos, animais de grandes
olhos para os quais remoer num extremo de uma manjedoura enquanto
eram sugadas até ficarem secas no outro, e não por uma, duas ou três, mas
por quatro latejantes e infatigáveis bocas mecânicas — para os quais a
estimulação sensual simultânea em ambos os extremos era o seu voluptuoso
e justo direito. Cada uma delas mergulhada numa existência bestial
abençoadamente isenta de significado espiritual: esguichar leite, ruminar,
defecar e mijar, pastar e dormir, a isso se resumia toda a sua raison d'être.
De tempos a tempos (explicou-me Coleman), um braço humano revestido
de uma comprida luva de plástico entra no recto para remover o esterco e
depois, tacteando com a luva pela parede rectal, guia o outro braço na
introdução de uma pistola de inseminação, tipo seringa, no tracto
reprodutivo, a fim de depositar o sémen. Isso significa que as vacas
procriam sem precisarem de ser importunadas pelo touro, apaparicadas até
na reprodução e depois assistidas no parto — que, segundo Faunia, pode
tornar-se um processo emocional para todos os intervenientes, mesmo com
temperaturas abaixo de zero em noites de nevasca. Não lhes falta nada, têm
tudo do bom e do melhor no aspecto físico, incluindo o prazer de ruminar
com toda a calma fartas quantidades espapaçadas e pingosas do próprio
bolo alimentar fibroso. Poucas cortesãs levaram vida tão regalada, quanto
mais mulheres trabalhadoras.
Entre aquelas criaturas saciadas e a sua aura de opulenta e telúrica
harmonia com a abundância feminina, era Faunia quem trabalhava como
uma besta de carga, apesar de, emoldurada pelas vacas, parecer um dos
pesos-pluma mais patéticos da evolução. Chamando-as para saírem do
barracão aberto onde estavam tranquilamente estiraçadas numa mistura de
feno e bosta — "Vamos, Daisy, não me compliques a vida. Então, Maggie,
porta-te como uma boa menina. Mexe-me esse eu, Flossie, velho coirão" -,
agarrando-as pelo cachaço e puxando-as com meiguice pelo lamaçal do
pátio, fazendo-as subir um degrau para o piso de cimento da sala de
ordenha, empurrando aquelas avantajadas Daisys e Maggies na direcção da
manjedoura até ficarem bem seguras no espeque, medindo e servindo a
cada uma a ração respectiva de vitaminas e alimento, desinfectando-lhes e
enxugando-lhes as tetas e iniciando a saída do leite com alguns movimentos
das mãos e colocando nas tetas esterilizadas os copos de sucção das
extremidades do aparelho de ordenhar, estava em constante actividade,
atenta a cada fase do processo, mas, em exagerado contraste com a
obstinada docilidade dos animais, não parava de se mexer com uma
diligência de abelha até o leite correr pelo tubo transparente para o
reluzente balde de aço inoxidável. Só então parava e ficava sossegada a
observar, para ter a certeza de que tudo estava a funcionar como devia ser e
a vaca também estava sossegada. Depois voltava a movimentar-se,
massajava o úbere para se certificar de que o animal estava bem ordenhado,
retirava os copos de sucção, deitava a ração para a vaca que mungiria
depois de soltar a mungida do espeque, levava o grão para a vaca seguinte,
no outro espeque e depois, dentro dos confins daquele espaço reduzido,
agarrava a vaca mungida pelo cachaço, virava o seu enorme corpanzil,
dava-lhe um empurrão com o ombro e dizia-lhe, em tom mandão: "Põe-te a
andar daqui, põe-te a andar, vamos ... ", enquanto a conduzia pelo hmaçal
de regresso ao barracão.
Faunia Farley. pernas magras, pulsos magros, braços magros, costelas
claramente desenhadas na camisola e omoplatas salientes. No entanto,
quando o esforço lhe retesava o corpo, víamos que os seus membros eram
duros; quando se esticava ou estendia os braços para qualquer coisa, víamos
que os seus seios eram surpreendentemente firmes e robustos, e quando, por
causa das moscas e dos mosquitos que zumbiam à volta da manada naquele
abafado dia de Verão, dava uma palmada no pescoço ou nas costas,
entrevíamos como era capaz de ser brincalhona, apesar do estilo
aparentemente sério. Percebíamos que o seu corpo era algo mais do que
eficientemente magro e severo, que ela era uma mulher de constituição
firme, em equilíbrio precário no momento em que já atingiu a maturidade
mas ainda não iniciou o declínio, uma mulher no apogeu do apogeu, cujo
punhado de cabelos brancos é fundamentalmente enganador pelo simples
facto de os pronunciados contornos ianques das suas faces e do seu queixo e
o seu longo pescoço inequivocamente feminino .ainda não terem sofrido as
transformações do envelhecimento.
— Este é o meu vizinho — disse-lhe Coleman, quando ela aproveitou um
momento para limpar o suor do rosto com a curva do cotovelo e olhar na
nossa direcção. — Nathan.
Eu não esperara compostura. Esperara alguém claramente mais zangado.
Ela só demonstrou que me via com um movimento brusco do queixo, mas
foi um gesto que disse muito. Era um queixo muito eloquente, o seu.
Empinado, como geralmente o mantinha, dava-lhe virilidade. Isso também
se encontrava na reacção: havia algo viril e implacável, além de um pouco
reles, naquele olhar directo. O olhar de alguém para quem tanto o sexo
como o coração são tão básicos como o pão. O olhar do fugitivo e o olhar
gerado pela irritante monotonia da pouca sorte. O seu cabelo, o cabelo
louro-dourado na dolorosa primeira fase da inevitável transformação, estava
preso atrás por um elástico, mas uma madeixa caía-lhe constantemente para
a sobrancelha enquanto trabalhava, e agora, ao olhar em silêncio na nossa
direcção, ela puxou-a para trás com a mão e eu reparei, pela primeira vez,
num pequeno traço fisionómico que, talvez erradamente, visto eu procurar
um indício qualquer, produziu o efeito de uma coisa reveladora: a
tumescência convexa do estreito arco de carne entre a crista da sobrancelha
e as pálpebras superiores. Ela era uma mulher de lábios finos, nariz recto,
olhos azuis claros, bons dentes e queixo proeminente, e aquele papo de
carne logo abaixo das sobrancelhas constituía o seu único traço exótico, o
único símbolo de sedução, uma coisa túmida de desejo. E também
contribuía muito para o que havia de perturbadoramente obscuro na dura
monotonia do seu olhar.
No conjunto, Faunia não era a sedutora sereia que nos deixa sem fôlego,
mas uma mulher de feições regulares, a respeito da qual pensamos que
devia ter sido muito bonita quando era criança. E foi: segundo Coleman, foi
uma bonita criança loura com um padrasto rico e uma mãe sem carácter que
não a protegeu.
Ficámos ali a observar, enquanto ela mungia cada uma das onze vacas —
Daisy, Maggie, Flossie, Bessy, Dolly, Maiden, Sweetheart, Stupid, Emma,
Friendly e Jill-, ficámos ali enquanto repetia a mesma rotina invariável com
cada uma delas, e quando isso terminou e ela passou para a sala de paredes
caiadas com grandes pias de lavagem, mangueiras e aparelhos de
esterilização contígua ao espaço de ordenha, observámo-la pela porta a
misturar a solução de lixívia e os agentes de limpeza e, depois de separar o
tubo de vácuo do tubo transportador e os copos de sucção do braço de que
pendiam e os dois baldes das suas tampas — enfim, depois de desmontar
toda a aparelhagem de ordenha que levara para ali consigo -, observámo-la
a trabalhar com uma variedade de escovas e bacias e mais bacias de
lavagem cheias de água limpa, esfregando bem todas as superfícies de todos
os tubos, válvulas, juntas, batoques, tabuleiros, camisas, tampas, discos e
êmbolos, até ficar tudo imaculadamente limpo e desinfectado. Antes de
Coleman tirar o seu leite, voltarmos para o carro e partirmos, ele e eu
ficáramos cerca de hora e meia parados junto do frigorífico e, tirando as
palavras que ele disse para me apresentar, não se ouviu nenhuma voz
humana. Os únicos sons que ouvíamos era o sussurro de asas e o piar das
andorinhas-da-chaminé que ali nidificavam à vontadeentre as traves, onde o
estábulo abria atrás de nós, as bolinhas a cair no cocho de cimento quando
ela sacudia o balde da ração e o bater abafado de cascos que mal se
levantavam do chão na sala de ordenha quando Faunia, empurrando-as,
puxando-as e guiando-as, colocava as vacas no espeque, e depois o ruído da
sucção, o respirar suave e profundo da bomba de ordenhar.
Quatro meses depois, quando já estavam ambos enterrados, recordava-
me daquela sessão de ordenha como se tivesse sido uma representação
teatral em que desempenhara o papel de um figurante, um extra, que é na
realidade o que sou agora. Passava as noites insone, uma após outra,
incapaz de dormir porque não conseguia deixar de estar lá, no palco, com os
dois actores principais e o coro de vacas, observando a cena,
impecavelmente representada por todo o elenco, de um velho apaixonado a
ver trabalhar a empregada de limpeza-criada de lavoura e sua amada
secreta: uma cena de pathos, hipnose e subjugação sexual, em que tudo
quanto a mulher faz com aquelas vacas, o modo como lida com elas, lhes
toca, as cuida, lhes fala, de tudo isso o sôfrego fascínio dele se apropria;
uma cena em que, possuído por uma força tanto tempo reprimida dentro de
si que praticamente se extinguira, um homem revelou, diante dos meus
olhos, a ressurgência desse estonteante Império. Foi, suponho, algo
parecido com ver Aschenbach observar febrilmente Tadzio, o seu desejo
sexual exacerbado, incendiado pela realidade angustiante da mortalidade,
com a diferença de que nós não estávamos num hotel de luxo do Lido de
Veneza nem éramos personagens de um romance escrito em alemão nem
mesmo, nesse tempo, de um romance escrito em inglês: estávamos em
pleno Verão e encontrávamo-nos num estábulo no Nordeste do nosso país,
na América, e no ano da impugnação presidencial americana, e, nessa
altura, havia tanto de romanesco em nós como de mitológico ou
embalsamado nas vacas. A luz e o calor do dia (essa bênção), a imutável
tranquilidade da vida de cada vaca análoga à de todas as outras, o velho
apaixonado a observar a flexibilidade da mulher activa e eficiente, a
adoração a crescer nele, o seu ar de alguém a quem nunca acontecera nada
mais excitante, e, sim, também a minha própria espera voluntária, o meu
próprio fascínio pela imensa disparidade existente entre os dois como tipos
humanos, com a não-uniformidade, a variabilidade, a prolífica
irregularidade das configurações sexuais — e com a imposição que nos é
feita, a humanos e bovinos, aos altamente diferenciados e aos praticamente
indiferenciados, de vivermos, não apenas de suportarmos a vida, mas de
vivermos, de continuarmos a receber, a dar, a alimentar, a ordenhar, a
reconhecer com toda a sinceridade, como o enigma que é, o sentido sem
sentido de viver -, tudo foi registado como real por dezenas de milhares de
minúsculas impressões. A saciedade sensorial, a pletora, o abundante —
superabundante — pormenor da vida que é a rapsódia. E Coleman e Faunia,
ambos agora mortos, levados pela corrente do inesperado, dia a dia, minuto
a minuto, eles próprios pormenores nessa superabundância.
Nada dura e, todavia, nada acaba, também. E nada acaba precisamente
porque nada dura. Os problemas com Les Farley começaram mais tarde,
nessa noite, quando Coleman ouviu qualquer coisa mexer nos arbustos, no
exterior, achou que não se tratava de um gamo ou de um racoon, levantou-
se da mesa da cozinha onde ele e Faunia tinham acabado de comer o
espaguete do jantar e, da porta da, cozinha e à meia-luz estival do anoitecer,
distinguiu um homem a correr pelo campo das traseiras da casa, na direcção
do bosque. "Eh, você! Pare!", gritou, mas o homem desapareceu
rapidamente entre as árvores, sem parar nem olhar para trás. Não era a
primeira vez que, nos últimos meses, tivera a impressão de estar a ser
observado por alguém escondido a pouca distância da casa, mas até àquela
noite fora sempre mais tarde e estava demasiado escuro para saber ao certo
se tinham sido os movimentos de um bisbilhoteiro ou de um animal que
tinham chamado a sua atenção, E nas vezes anteriores encontrava-se sempre
sozinho. Esta era a primeira vez que Faunia estava presente e foi ela quem,
sem precisar de ver o vulto do homem a atalhar pelo campo, identificou o
intruso como o seu ex-marído.
Contou a Coleman que, depois do divórcio, Farleya espiara
constantemente, mas nos meses seguintes à morte dos seus dois filhos,
quando a acusava de os ter morto com a sua negligência, tornara-se
assustadoramente implacável. Saíra-lhe duas vezes ao caminho, de repente,
uma no parque de estacionamento de um supermercado e outra quando ela
estava numa estação de serviço, e gritara-lhe pela janela da pick-up. "Puta
assassina! Galdéría assassina! Mataste os meus filhos, grande puta
assassina" Havia muitas manhãs em que, quando ia para a universidade,
olhava para o retrovisor e via a pick-up e, atrás do pára-brísas, o rosto dele e
os seus lábios a desenharem as palavras: "Assassinaste os meus fílhos"
Algumas vezes seguia-a na estrada, quando ela regressava do trabalho a
casa. Nesse tempo Faunia ainda morava na metade que não ardera do
bungalow-garagem onde os filhos tinham morrido asfixiados, em
consequência do fogo ateado pelo aquecedor, e fora o medo dele que a
levara a mudar-se para um quarto em Seeley Falls e a seguir, depois de uma
tentativa de suicídio gorada, para o quarto da herdade leiteira, onde as duas
proprietárias e os seus filhos pequenos estavam quase sempre perto e o
perigo de ser abordada por ele não era tão grande. Depois da segunda
mudança, a pick-up de Farley passou a aparecer com menos frequência no
seu retrovisor, e quando decorreram alguns meses sem dar qualquer sinal de
vida, Faunia teve esperança de que se livrara dele para sempre. Mas agora
estava convencida de que Farley descobrira de algum modo o que havia
entre ela e Coleman e, enfurecido de novo com tudo quanto sempre o
enfurecera nela, tinha reatado a dementada espionagem, escondido no
exterior da casa de Coleman para ver o que ela lá estava a fazer. O que eles
lá estavam a fazer.
Nessa noite, quando Faunia se meteu no seu carro — o velho Chevrolet
que Coleman preferia que ela arrumasse, fora das vistas, no seu barracão -,
Coleman resolveu segui-la de perto, no seu próprio automóvel, durante os
cerca de dez quilómetros até chegar em segurança ao caminho de terra que
passava pelo estábulo e conduzia à casa da herdade. E depois, no regresso,
prestou atenção, para ver se alguém vinha atrás dele. Quando chegou,
dirigiu-se a pé do telheiro onde deixava o carro para casa, a brandir uma
chave de rodas numa das mãos, em todas as direcções, na esperança de que
isso mantivesse à distância alguém que porventura estivesse de atalaia no
escuro.
Na manhã seguinte, depois de passar oito horas na cama às voltas com as
suas preocupações, resolveu não apresentar queixa à polícia estadual. Como
não era possível estabelecer positivamente a identidade de Farley, a polícia
nada poderia fazer contra ele, e se constasse que Coleman a contactara, isso
só serviria para corroborar os boatos que já corriam a respeito do antigo
reitor e da mulher da limpeza da universidade de Athena.
Mas essa decisão não significou que, após a noite de insónia, Coleman se
resignasse a não fazer nada a respeito de tudo: depois do pequeno-almoço
telefonou ao seu advogado, Nelson Primus, e nessa tarde foi a Athena para
o consultar quanto à carta anónima e, comunicando a sugestão de Primus
para que esquecesse o assunto, convenceu-o a escrever o seguinte a
Delphine Roux, para a universidade: "Cara Ms. Roux: Represento Coleman
Silk. Há alguns dias, a senhora enviou a Mr. Silk uma carta anónima que é
ofensiva, difamatória e lesiva para o meu cliente. O conteúdo da sua carta é
o seguinte: "Toda a gente sabe que explora sexualmente uma mulher
molestada e analfabeta com metade da sua idade." Lamentavelmente, a
senhora intrometeu-se numa coisa que não lhe diz respeito. Ao fazê-lo,
violou os legítimos direitos de Mr. Silk e expôs-se a ser processada.
Poucos dias depois, Primus recebeu três frases curtas do advogado de
Delphine Roux.
Coleman sublinhou a vermelho a frase do meio, que negava
terminantemente ser Delphine Roux a autora da carta anónima: "Nenhuma
das afirmações da sua carta é verdadeira", escrevera o advogado dela a
Primus, "e todas são, na realidade, dífamatórias"
Coleman obteve imediatamente, do seu advogado, o nome de um
examinador oficial de documentos, de Boston, um perito em grafologia que
fazia trabalho forense para empresas privadas, agências governamentais
americanas e para o estado, e no dia seguinte meteu-se no carro e percorreu
o trajecto de três horas até Boston, a fim de entregar pessoalmente ao perito
as suas amostras da caligrafia de Delphine Roux, assim como a carta
anónima e o respectivo sobrescrito. Recebeu as conclusões pelo correio, na
semana seguinte. A seu pedido", dizia o relatório, "examinei e comparei
cópias de caligrafia conhecida de Delphine Roux com um bilhete e um
sobrescrito dirigido a Coleman Silk, ambos questionados e anónimos.
Pediu-me que determinasse a autoria da caligrafia dos documentos
questionados. O meu exame abrange características caligráficas como
inclinação, espaçamento e formação das letras, qualidade da linha, modelo
de pressão, proporção, inter-relação de altura das letras, ligações e formação
de iniciais e traço terminal. Baseado nos documentos que me foram
apresentados, é minha opinião profissional que a mão que escreveu tolas as
amostras atribuídas a Delphine Roux é a mesma que escreveu o bilhete e o
sobrescrito questionados e anónimos. Cumprimentos, Douglas Gordon,
CDE(6)." Quando Coleman entregou o relatório do perito a Nelson Primus,
com instruções para enviar uma cópia ao advogado de Delphine Roux,
Primus já não levantou qualquer objecção, apesar de lhe custar multo vê-lo
quase tão furioso como na altura da sua crise com a universidade.
Ao todo, tinham decorrido oito dias desde a noite em que Coleman vira
Farley fugir para o arvoredo, oito dias durante os quais decidira que seria
melhor Faunia manter-se afastada e comunicarem pelo telefone. A fim de
não despertar a ninguém, fosse quem fosse, o desejo de espiar qualquer dos
dois, também não foi à herdade buscar o seu leite e permaneceu o mais
possível em casa, onde manteve, no entanto, uma vigilância cuidadosa,
sobretudo depois de escurecer, para descobrir se andava alguém a
bisbilhotar. E recomendou a Faunia que, pelo seu lado, também estivesse
atenta, tanto na herdade como ao retrovisor, quando saísse no carro para ir a
algum lado. "É como se fôssemos uma ameaça à segurança pública", disse-
lhe ela a rir, com a sua gargalhada especial. "À segurança pública não: à
saúde pública", respondeu ele. -Estamos em transgressão com o Ministério
da Saúde"
Ao fim dos oito dias, quando pôde, pelo menos, confirmar a identificação
de Delphine Roux como a autora da carta, ainda que não a de Farley como
o invasor da sua propriedade, Coleman decidiu decidir que fizera tudo
quanto estava ao seu alcance para se proteger de toda aquela desagradável e
irritante intromissão. Quando Faunia lhe telefonou nessa tarde, durante a
sua hora de almoço, e lhe perguntou: "A quarentena acabou?", ele sentiu-se,
enfim, suficientemente livre da sua ansiedade — ou decidiu decidir que se
sentia — para lhe dar luz verde.
Como esperava que ela aparecesse por volta das sete da tarde, tomou um
comprimido de Viagra às seis e, depois de se servir de um copo de vinho,
saiu com o telefone para se sentar numa cadeira de jardim e telefonar à
filha. Ele e Iris tinham criado quatro filhos: dois rapazes, agora na casa dos
quarenta e ambos professores universitários de ciências, casados, com filhos
e residentes na costa ocidental, e os gémeos, Lisa e Mark, solteiros, no fim
da casa dos trinta e ambos residentes em Nova Iorque. Todos os seus filhos,
menos um, tentavam vir aos Berkshire três ou quatro vezes por ano, para
visitarem o pai, e todos os meses comunicavam telefonicamente com ele. A
excepção era Mark, que toda a vida estivera em desacordo com o pai e,
esporadicamente, cortava por completo relações com ele.
Coleman ia ligar a Lisa porque se lembrara de que não falava com ela
havia mais de um mês, possivelmente até de dois. Talvez se estivesse
apenas a render a um passageiro sentimento de solidão que passaria quando
Faunia chegasse, mas, fosse qual fosse o motivo, estava longe de supor,
antes de ligar, o que o esperava. A última coisa que desejava era, sem
dúvida, mais oposição, sobretudo da parte daquela filha cuja voz — doce,
melodiosa, e ainda juvenil, apesar de doze difíceis anos como professora no
Lower East Side — bastava, sempre, para o apaziguar, para o acalmar, e
algumas vezes, até, para mais do que isso: para se apaixonar de novo por
ela. Talvez estivesse a fazer o mesmo que muitos pais idosos quando, por
qualquer de numerosas razões diferentes, fazem um telefonema de longa
distância para um reviver momentâneo de antigos pontos de referência. A
contínua e inequívoca história de ternura entre Coleman e Lisa faziam dela
a pessoa a quem menos desejava afrontar entre as que ainda lhe eram
chegadas.
Cerca de três anos atrás — antes do incidente dos -spooks- -, quando Lisa
perguntava a si mesma se não teria cometido um erro tremendo ao deixar o
ensino tradicional para se tornar professora de Recuperação de Leitura,
Coleman tinha ido a Nova Iorque e ficado lá vários dias, para avaliar em
que estado ela se encontrava. Nessa altura Iris ainda estava viva, bem viva,
mas não era da sua enorme energia que Lisa precisava — não era de um
safanão para agir, método expedito de Iris para levar as pessoas a
decidirem, que ela precisava -, mas sim do ex-reitor universitário, com o
seu jeito metódico e determinado para desenredar trapalhadas. Iris diria com
certeza à filha que fosse em frente, o que a deixaria oprimida e encurralada,
mas com a presença do pai havia a possibilidade de, no caso de Lisa
apresentar argumentos convincentes contra a sua própria perseverança, ele
lhe dizer que, se desejasse, poderia evitar danos maiores, desistindo — o
que provavelmente produziria o efeito contrário de despertar nela a
coragem para prosseguir.
Ele não só ficara a primeira noite sentado na sala da filha até altas horas,
a escutar as suas preocupações, como no dia seguinte fora à escola para ver
o que estava a consumi-la. E viu, oh, se viu! Logo de manhã, para começar,
quatro sessões seguidas de meia hora, cada uma com uma criança de seis ou
sete anos que se contava entre os alunos com menor grau de aproveitamento
da primeira e segunda classes, e depois disso, até ao fim do dia, sessões de
quarenta e cinco minutos com grupos de oito miúdos cuja capacidade de
leitura não era superior à dos das sessões individuais, mas para quem ainda
não havia pessoal suficientemente preparado no programa intensivo.
— As classes normais são demasiado grandes — disse-lhe Lisa -, e por
isso os professores não conseguem alcançar essas crianças. Eu fui
professora de classes normais. As crianças com dificuldades são três em
trinta, três ou quatro. Não é muito mau. Temos o progresso das outras para
nos ajudar a continuar. Em vez de pararem e darem aos alunos mais
atrasados aquilo de que precisam, misturam-nos, mais ou menos, e vão-nos
empurrando com os outros, pensando — ou fingindo que pensam — que
eles avançam levados pela onda. São arrastados, assim, para o segundo ano,
o terceiro ano, o quarto ano ... e depois é o falhanço grave. Mas aqui só há
essas crianças, aquelas a quem não é possível chegar e a quem não se
chega, e como eu sou muito emotiva no que diz respeito aos meus alunos e
ao meu ensino, isso afecta todo o meu ser ... todo o meu mundo. E a escola,
a direcção ... não presta, pai. Temos uma directora sem a mínima visão do
que pretende e temos uma misturada de pessoas a fazerem o que julgam ser
o melhor. Mas que não é necessariamente o melhor. Quando aqui cheguei,
há doze anos, foi formidável. A directora era de facto boa. Deu uma volta
completa à escola. Mas agora tivemos vinte e um professores em quatro
anos. o que é muito. Perdemos uma quantidade de gente boa. Há dois anos,
passei para a recuperação de Leitura porque as aulas tradicionais me
estavam a consumir. Dez anos do mesmo, dia após dia. Não podia suportar
mais.
Ele deixou-a falar, falou pouco e, porque ela estava a poucos anos dos
quarenta, refreou sem grande dificuldade o impulso para abraçar aquela
filha maltratada pela realidade, como ímaginava que ela refreava o mesmo
impulso em relação à criança de 6 anos que não sabia ler. Lisa possuía toda
a intensidade de Iris, mas sem o seu autoritarismo, e, tratando-se de alguém
que existia apenas para os outros — a sua maldição era um altruísmo
incurável, encontrava-se sempre, como professora, à beira do esgotamento.
Geralmente havia também um namorado carente ao qual não podia negar
solicitude, pelo qual se virava do avesso e para o qual a sua impoluta
virgindade ética acabava infalivelmente por se tornar uma grande, uma
enorme chatice. Lisa estava sempre empenhada moralmente a cem por
cento, mas sem a insensibilidade para decepcionar a necessidade do outro
ou a força para se desiludir a si mesma a respeito da sua força. Por isso ele
sabia que a filha nunca abandonaria o pro-grama de Recuperação da Leitura
e o orgulho paterno que tinha dela, além de ensombrado pelo medo, era
também, por vezes, matizado por uma impaciência que raiava o desprezo.
— Confiam-nos trinta crianças que nos chegam com níveis diversos e
experiências diversas, e temos de fazer com que tudo funcione — dizia-lhe
ela. — Trinta crianças diferentes, oriundas de trinta ambientes diferentes e
com trinta maneiras de aprender diferentes. Exige muita gestão. Exige
muita papelada. Exige muito tudo. Mas mesmo assim não é nada
comparado com isto. É verdade que mesmo nisto, mesmo em Recuperação
da Leitura, há dias em que penso, "hoje saí-me bem", mas na maior parte
deles tenho vontade de me atirar pela janela. Debato-me muito com a
incerteza de este ser o programa adequado para mim. Porque, caso não
saiba, sou muito intensa. Quero fazer as coisas da maneira certa, mas não há
uma maneira certa: cada criança é diferente e cada criança é um caso
desesperado, e espera-se de mim que ponha tudo a funcionar. É claro que
toda a gente tem sempre de se esforçar muito com as crianças que não
aprendem. O que fazemos com uma criança que não sabe ler? Pense nisso:
uma criança que não sabe ler. É difícil, paizinho. O nosso ego fica um
pouco atrapalhado com isso, sabe.
Este era o Lester Farley que saíra aos berros dos arbustos. Este era o
homem que avançou para Coleman e Faunia quando estavam do lado de
dentro da entrada da cozinha, que veio direito a eles da escuridão dos
arbustos do lado da casa. E tudo aquilo era apenas um pouco do que estava
dentro da sua cabeça, noite após noite, durante toda a Primavera e entrando
agora no começo do Verão, escondido horas a fio, encolhido, imóvel,
atormentado por tanta emoção e esperando ali, oculto, para a ver a fazer
aquilo. A fazer o que estava a fazer enquanto o fumo asfixiava até à morte
os seus próprios filhos. Desta vez não era sequer com um indivíduo da sua
idade. Nem mesmo da idade de Farley. Desta vez não era com o chefe dela,
Hollenbeck o grande americano-modelo. Este podia, pelo menos, dar-lhe
alguma coisa em troca. Era quase possível respeitá-la pelo Hollenbeck. Mas
agora a mulher descera tanto que fazia aquilo à borla com qualquer um.
Agora era com um velho grisalho e pele-e-osso, com um arrogante
professor judeu, cujo amarelento rosto judeu se contorcia de prazer e cujas
velhas e trémulas mãos lhe agarravam a cabeça. Quem mais tinha uma
mulher que chupava um judeu velho? Quem?! Desta vez a cadela
desbragada, assassina e gemente recebia na boca de puta o leite aguado de
um repugnante velho judeu, e entretanto Rawley eLes júnior continuavam
mortos.
A paga. Não acabava nunca.
Era como voar, era como o Vietname, era como o momento em que se
perde a cabeça.
Subitamente mais louco ainda por ela estar a chupar aquele judeu do que
por ter morto os miúdos, Farley dá consigo a saltar, a voar para cima, aos
gritos, e o professor judeu grita ambém, o professor judeu levanta uma
chave de rodas ... e é só por Farley estar desarmado por naquela noite ter
ido directamente do treino dos Bombeiros para ali sem uma única das armas
que tem na cave cheia delas -, é só por isso que não os criva de balas.
Nunca saberá por que motivo não estendeu a mão para a chave de rodas,
não lha tirou e acabou com tudo desse modo. Poderia ter feito um belo
trabalho com aquela chave de rodas. "Larga lssol Racho-te a puta da cabeça
com ela! Larga essa porra" E o judeu largou-a. Sorte do Judeu, tê-la
largado.
Depois de chegar a casa nessa noite (também nunca soube como fez isso)
e até às primeiras horas da manhã — altura em que foram precisos cinco
homens dos Bombeiros, cinco colegas dele, para o dominarem, vestirem-lhe
a camisa-de-forças e conduzirem-no a Northampton -, Lester viu tudo,
reviveu tudo ao mesmo tempo, ali na sua própria casa, suportou o calor,
suportou a chuva, a lama, formigas gigantes, abelhas assassinas no seu
próprio chão de linóleo, mesmo ao lado da mesa da cozinha; sentiu-se mal
com diarreia, dores de cabeça, teve fome e sede, falta de munições, teve a
certeza de que aquela seria a sua última noite, esperou que isso acontecesse,
viu Foster pisar a armadilha, Quillen afogar-se, ele mesmo quase a afogar-
se, acagaçado, a atirar granadas para todas as direcções e a gritar "Não
quero morrer", os aviões de combate todos baralhados e a dispararem contra
eles, Drago a perder uma perna, um braço, o nariz, o corpo queimado de
Conrity a colar-se às suas mãos, incapaz de conseguir que um helicóptero
aterrasse, a dizerem do helicóptero que não podem aterrar porque estamos a
ser atacados e ele tão furioso por saber que vai morrer que tenta abatê-lo,
tenta abater o nosso próprio helicóptero ... a noite mais desumana que
jamais viu e agora está ali de novo na sua própria casa de merda, a noite
mais desumana e também a mais longa, a sua mais longa noite na terra, e
ele petrificado a cada movimento que faz, gajos a berrarem, a cagarem-se e
a chorarem, ele sem preparação para ouvir tanto choro, gajos atingidos na
cara e a morrerem, a soltarem o último suspiro e a morrerem, o corpo de
Conrity pegado às suas mãos, Drago a sangrar por todos os lados, Lester a
sacudir um morto para tentar acordá-lo e a gritar, a berrar sem parar: "Não
quero morrer" Não há tempo para a morte. Não há intervalo para a morte.
Não há fuga da morte. Nenhuma pausa, nenhum abrandamento. Lutar
contra a morte até de manhã e tudo tão intenso. Intenso o medo, intensa a
ira, nenhum helicóptero a querer pousar e o cheiro horrível do sangue de
Drago, ali, na puta da sua própria casa. Não imaginava que pudesse cheirar
tão mal. TUDO TÃO INTENSO E TODOS TÃO LONGE DE CASA E
FÚRIA FÚRIA FÚRIA FÚRIA RAIVA!
Durante quase todo o caminho para Northampton — até não poderem
suportar mais e o terem amordaçado -, Farleyescava, escava noite adentro, e
quando acorda de manhã descobre que dormiu com as larvas na sepultura
de alguém. "Por favor", grita. "Mais não! Mais não!" Por isso não tiveram
outro remédio senão silenciá-lo.
No hospital da Administração dos Veteranos, um lugar para onde só
conseguiram levá-lo à força e de onde andava a fugir há anos — a fugir do
hospital de um governo com o qual não conseguia entender-se -, puseram-
no na enfermaria prisional, amarraram-no à cama, re-hidrataram-úo,
estabilizaram-no, desintoxicaram-no, desabituaram-no do álcool, trataram-
no das lesões hepáticas e depois, durante as seis semanas seguintes, ele
contava todas as manhãs, nas sessões de terapia grupal, como Rawleye Les
júnior tinham morrido. Contava a todos o que tinha acontecido, contava-
lhes todos os dias o que não acontecera quando viu os rostos asfixiados dos
seus dois filhos pequenos e teve a certeza de que estavam mortos.
— Insensível- dizia. — Insensível, porra. Nenhuma emoção. Insensível
perante a morte dos meus próprios filhos. Os olhos do meu filho revirados e
não se sente o pulso. O coração não bate. O meu filho não respira, merda. O
meu filho. O pequeno Les. O único filho que jamaisterei. Mas eu não sentia
nada. Agia como se ele fosse um estranho. E Rawley também. Era uma
estranha. A minha menina. Maldito Vietname, foste o causador disto! Todos
os meus sentimentos estão baralhados. Quando não acontece nada sinto-me
como se houvesse levado uma grande cacetada na cabeça. Depois acontece
alguma coisa, uma coisa imensa, e não sinto nada, caraças. Insensível. Os
meus filhos estão mortos, mas o meu corpo está entorpecido e a minha
cabeça vazia. Vietname. É por causa disso! Nunca chorei pelos meus filhos.
Ele tinha 5 anos e ela 8. Perguntei a mim mesmo: "Por que não posso sentir
nada?" Perguntei: "Por que não os salvei? Por que não pude salvá-los?" É a
paga! É a paga! Não parava de pensar no Vietname. Em todas as vezes que
julguei que morri. Foi assim que comecei a perceber que não posso morrer.
Porque já morri. Porque já morri no Vietname. Porque sou um homem que
morreu, porra.
O grupo era composto por veteranos do Vietname como Farley,
exceptuando dois da Guerra do Golfo, choramingas a quem tinha entrado
um pouco de areia nos olhos durante uma guerra de quatro dias em terra.
Uma guerra de cem horas. Um compasso de espera no deserto. Os ex-
combatentes do Vietname eram homens que, nas suas vidas pós-guerra,
tinham passado pessoalmente pelo pior: divórcio, álcool, drogas, crime, a
polícia, cadeia, o tormento devastador da depressão, crises de choro
incontroláveis, vontade de gritar, vontade de destruir qualquer coisa, as
mãos trémulas, o corpo sacudido por espasmos, o rosto crispado e os suores
da cabeça aos pés, causados pelas recordações de metal a voar, o clarão das
explosões e dos membros decepados, pelas recordações das matanças de
prisioneiros, de famílias, de velhas senhoras e de crianças... Por isso,
embora acenassem com as cabeças ao ouvi-lo falar de Rawley e do pequeno
Les e compreendessem que não pudesse ter sentido nada por eles quando os
viu de olhos revirados, porque ele próprio estava morto, esses indivíduos
realmente doentes achavam, no entanto (naquele raro momento em que
qualquer deles conseguia falar de quaisquer outros a não ser de si mesmos a
vaguear pelas ruas prestes a estoirar e a berrar -Porquêõ- ao céu, de
quaisquer outros que não recebiam o respeito que lhes era devido, de
quaisquer outros que não se sentiriam felizes enquanto não estivessem
mortos, enterrados e esquecidos), que o melhor que Farley tinha a fazer era
atirar com o assunto para trás das costas e continuar a viver a sua vida.
Continuar a viver a sua vida. Ele sabe que a sua vida é uma merda, mas é
tudo quanto tem. Continuar a vivê-la. Pois sim.
Quando em fins de Agosto teve alta do hospital, estava decidido a fazer
isso. E com a ajuda de um grupo de apoio a que aderiu, e em especial de um
tipo que caminhava com uma bengala e se chamava Jimmy Borrero,
conseguiu chegar pelo menos a meio do caminho.
Era difícil, mas com a ajuda de Jimmy foi-se aguentando, esteve sem
beber quase trê meses inteiros, até Novembro. Mas então — e não foi por
causa de alguma coisa que alguém lhe dissesse, ou de alguma coisa que
visse na televisão, ou da proximidade de mais um Dia de Acção de Graças
sem família, mas sim porque não havia alternativa para Farley, nenhuma
maneira de impedir o passado de voltar e impor-se, impor-se e intimá-lo a
agir, exigir-lhe uma enorme reacção -, em vez de ter ficado tudo para trás,
estava tudo à sua frente.
Uma vez mais, era a sua vida.
2.
JOGO DE ESQUIVA
— Se Clinton lhe tivesse ido ao cu, talvez ela tivesse calado a boca. Bill
Clinton não é O homem que dizem ser. Se a tivesse virado de barriga para
baixo no Salão Oval e lhe tivesse ido ao cu, nada disto teria acontecido.
— Bem, ele nunca a dominou. Jogou pelo seguro.
— Sabes, depois de chegar à Casa Branca o tipo deixou de dominar. Não
podia. Também não dominou a Willey. Foi por isso que ela ficou fula com
ele. Quando se tornou presidente perdeu todo seu talento arkansiano típico
para dominar mulheres. Enquanto foi procurador. -geral e governador de
um pequeno estado obscuro, dominar era perfeito para ele.
— Sem dúvida. Basta pensar na Gennifer Flowers.
— O que acontece no Arkansas? Se um tipo cai quando ainda se encontra
lá, não cai de muito alto.
— Exactamente. E calcula-se que tenha tara pelo eu. É uma tradição.
— Mas quando chega à Casa Branca, não pode dominar. E quando não
pode dominar, Miss Willey vira-se contra ele, e Miss Monica vira-se contra
ele. Teria garantido a lealdade dela se lhe fosse ao cu. O pacto devia ter sido
esse. Isso tê-los-ia ligado. Mas não houve pacto, — Bem, ela assustou-se.
Sabes bem que esteve prestes a não dizer nada. Starr esmagou-a. Onze
gajos na sala com ela naquele hotel, já imaginaste? A massacrá-la? Foi uma
geraldina. Uma violação colectiva encenada por Starr naquele hotel.
— Isso é verdade. Mas ela já andava a falar com Linda Tripp.
— Ah, sim.
— Andava a falar com toda a gente. Pertence àquela cultura idiota do
blá-blá-blá. A esta geração que se orgulha da sua superficialidade. A
sinceridade é tudo. Sincera e vazia, totalmente vazia. A sinceridade que
dispara em todas as direcções. A sinceridade que é pior do que a falsidade e
a inocência que é pior do que a corrupção. Toda a rapacidade oculta sob o
manto da sinceridade. E do jargão. Aquele vocabulário maravilhoso de
todos eles, e em que parecem acreditar, a respeito da "falta de mérito
próprio", quando na realidade estão sempre convencidos de que têm direito
a tudo. Chamam carinho ao descaramento e mascaram a desumanidade de
perda de "auto-estima", Hitler também tinha falta de auto-estima. Esse era o
problema dele. É uma farsa, o que esses miúdos armaram. A
hiperdramatização das emoções mais insignificantes. Relação. A minha
relação. Clarificar a minha relação. Quando abrem a boca apetece-me
amarinhar pelas paredes. Toda a linguagem deles é um somatório de
estupidez dos últimos quarenta anos. Conclusão. Eis um dos chavões. Os
meus alunos não podem permanecer no lugar onde o pensamento deve
ocorrer. Conclusão! Fixam-se na narrativa convencionalizada com o seu
princípio, o seu meio e o seu fim. Qualquer exigência, por muito ambígua,
intrincada ou misteriosa que seja, tem de se prestar a esse lugar-comum
normalizante e convencionalizante de pivô de televisão. Chumbo qualquer
miúdo que peça conclusão. Querem conclusão? Eu dou-lhes a conclusão.
_ Bem, seja ela o que for — uma narcisista absoluta, uma cabra
intriguista, a rapariga judia mais exibicionista da história de Beverly Hills,
corrompida até à medula pelo privilégio -, ele sabia-o de antemão. Ele
podia topá-la. Se não é capaz de topar Monica Lewinsky, como pode topar
Saddam Hussein? Se o tipo não é capaz de topar e cortar as voltas a Monica
Lewínsky, não devia ser presidente. Isso é fundamento genuíno para
impugnação. Mas, insisto, ele topou. Ele topou tudo. Não acredito que
tenha ficado muito tempo hipnotizado com a história da carochinha do seu
disfarce. Claro que viu que ela era absolutamente corrupta e dissolutamente
inocente. A extrema inocência era a corrupção: era a sua corrupção, a sua
loucuura e a sua astúcia. Era nisso que residia a sua força, nessa
combinação. Era nisso, no facto de ela não ter qualquer profundidade, que
ele encontrava encanto quando terminava o seu dia de comandante-chefe. A
atracção estava aí, na intensidade da superficialidade. Para não falar na
superficialidade da intensidade. As histórias sobre a sua infância. O alarde
da sua adorável teimosia: "Está a ver, com apenas três anos já tinha
personalidade." Tenho a certeza de que ele compreendia que tudo quanto
fizesse em desacordo com as ílusóes dela seria mais uma agressão brutal ao
seu amor-próprio. Mas o que não percebeu foi que tinha de lhe ir ao cu.
Porquê? Para a calar. Estranho comportamento o elo nosso presidente. Foi a
primeira coisa que ela lhe mostrou. Pôs-lha à frente do nariz. Ofereceu-lha.
E ele não fez nada. Não compreendo este tipo. Se lhe tivesse ido ao cu,
duvido que ela tivesse falado com Linda Tripp. Pororque não quereria falar
a esse respeito.
— Mas quis falar a respeito do charuto.
— Isso é outra história. Isso é criancice. Não, ele não lhe deu, com
regularidade, uma coisa acerca da qual ela não desejasse falar. Uma coisa
que ele queria e ela não. O erro foi esse.
— É pelo cu que se gera a lealdade.
_ Não sei se isso a teria calado. Duvido que seja humanamente possível
calá-la. Não estamos perante um caso de Garganta Funda, mas sim de Boca
Escancarada.
— Mesmo assim, temos de admitir que esta rapariga revelou mais a
respeito da América do que qualquer outra pessoa desde john dos Passos.
Ela enfiou um termómetro no cu do país. A trílogia U. S. A. de Monica.
— O problema é que Clinton lhe estava a dar o mesmo que todos os
outros tipos e o que ela queria dele era diferente. Ele é o presidente, ela é
uma terrorista do amor. Ela queria que ele fosse diferente daquele professor
com quem teve um caso.
— Sim, a delicadeza dele lixou-o. Interessante. Não a sua brutalidade,
mas a sua delicadeza. Não jogou pelas suas regras, mas pelas dela. Ela
controla-o porque ele quer ser controlado. Tem de ser. Está tudo errado.
Sabem o que Kennedy lhe teria dito quando ela lhe aparecesse a pedir
emprego? Sabem o que Nixon lhe teria dito? Harry Truman, e até
Eisenhower, ter-lhe-iam dito o mesmo. O general que conduziu a Segunda
Guerra Mundial sabia ser desagradável. Ter-lhe-iam dito, todos, que não só
não lhe davam emprego como mais ninguém voltaria a empregá-la durante
toda a sua vida. Que não conseguiria sequer arranjar trabalho a guiar um
táxi em Horse Springs, Novo México. Nada. Que o consultório do pai seria
sabotado e ele também ficaria sem trabalho. Que a mãe nunca mais voltaria
a trabalhar, que o irmão nunca mais voltaria a trabalhar, que nunca mais
ninguém da sua família voltaria a ganhar um cêntimo se ela se atrevesse a
abrir a boca para falar das onze mamadas. Onze. Nem sequer doze, para
arredondar a conta. Não acho que menos ele uma dúzia em dois anos
chegue para alguém se candidatar ao grande prémio da libertinagem, pois
não?
— A prudência, foi a prudência que o lixou. Sem a mínima dúvida. O
tipo agiu como um advogado.
— Não queria dar-lhe nenhuma prova. Era por isso que não se vinha.
— E tinha razão. No momento que se veio, lixou-se. Ela ficou com O
material. Recolheu uma amostra. A prova incontestável. Se ele lhe tivesse
ido ao cu, a nação poderia ter sido poupada a este terrível trauma.
Riram-se. Eram três.
— Ele nunca se abandonou por completo. Estava sempre com um olho na
porta. Tinha a sua táctica. E ela tentava subir a parada.
— Não é isso que a Mafia faz? Dá às pessoas alguma coisa de que não
podem falar. E fica com elas nas mãos.
— Envolve-as numa transgressão mútua que acaba numa corrupção
mútua. É isso mesmo.
— Donde, o problema dele é ser insuficientemente corrupto.
— Sem dúvida. E pouco sofisticado.
— Ou seja, exactamente o oposto da acusação de que é censurável.
Afinal, ele é insuficientemente censurável.
— Nem mais. Se um tipo envereda por esse comportamento, para quê
fixar um limite onde ele fixou? Isso não terá sido um tanto ou quanto
artificial?
— Quando fixamos limites tornamos claro que estamos assustados. E
quando estamos assustados, estamos lixados. A nossa destruição não está
mais longe do que o telemóvel de Monica.
— Bem, o homem não queria perder o controlo. Não se lembram de que
ele disse: Não quero tornar-me dependente de ti, não quero viciar-me em ti?
Isso pareceu-me sincero.
— Eu achei que era conversa fiada.
— Não creio. É possível que, do modo como ela o recordou, pareça
conversa fiada, mas penso que a motivação... não, ele não queria a
dependência sexual. Ela era boa, mas substituiível.
— Toda a gente é substituível.
— Mas tu não sabes qual era a experiência dele. Ele não frequentava
putas e esse género de coisas.
— O Kennedy, sim, era dependente de putas.
— Oh, sim. Com esse a coisa era séria. Comparado com ele, Clinton é
um menino de coro.
— Não creio que tenha sido um menino de coro quando estava no
Arkansas.
— Não, no Arkansas a coisa estava equilibrada. Aqui está tudo
descontrolado. E deve ter dado com ele em doido. Presidente dos Estados
Unidos, tem acesso a tudo e não pode errar em nada. Deve ter sido um
inferno. Sobretudo com aquela santa de pau carunchoso da mulher.
— Achas que ela é isso?
— Se é!
— Ela e o Vince Foster?
— Bem, podia apaixonar-se por alguém, mas nunca faria nenhuma
loucura porque ele era casado. Seria capaz de tornar até o adultério uma
chatice. É a antítese absoluta da transgressora.
— Achas que andava a dormir com o Foster?
— Acho. Acho, sim.
— E agora o mundo inteiro apaixonou-se pela santa de pau carunchoso.
Foi exactamente por serr essa mulher que todos se apaixonaram.
— O golpe de génio de Clinton foi arranjar trabalho para Vince Foster
em Washington. Colocá-lo ali mesmo a jeito. Fazê-lo dar o seu contributo à
administração. Genial, de facto. Nisso, Clinton agiu como um bom
padrinho da Mafia e levou a palma à mulher.
— Sim, essa foi boa. Não foi, no entanto, o que fez com Monica. Estão a
ver, ele só podia ular de Monica a Vernon Jordan, Que aliás talvez fosse a
melhor pessoa para isso. Mas estavam longe de perceber o que se passava.
Porque julgavam que ela só andava a dar à língua com as suas estúpidas
amiguinhas de California Valley. Paciência, o que se há-de fazer. O pior é
que a tal Linda Tripp, essa logo, essa logo toupeira que Starr tinha a
trabalhar na Casa Branca ...
Coleman levantou-se e afastou-se na direcção do campus. Escutara a
conversa até àquele momemto, sentado num banco do largo a meditar no
que faria a seguir. Não reconhecera as vozes dos homens e, como estavam
de costas para ele e num banco que ficava do lado da árvore oposto ao do
seu, também não lhes pôde ver os rostos. Supunha que se tratava de três
indivíduos jovens, chegados à universidade depois da sua saída, que se
tinham sentado no largo para beberem água engarrafada ou descafeinado de
lata, no regresso de um aquecimento nas quadras de ténis da cidade, e
descansarem juntos enquanto comentavam as notícias do dia relacionadas
com Clinton antes de irem para casa, onde os esperavam as mulheres e os
filhos. Pareciam-lhe sexualmente entendidos e confiantes, de um modo que
não relacionava com jovens professores auxiliares, sobretudo em Athena.
Usavam uma linguagem muito grosseira, muito crua, que não era habitual
nem mesmo naquele tipo de conversas académicas. Era pena que não
estivessem lá no seu tempo. Poderiam ter formado uma barreira de
resistência contra... Não, não. No campus, onde ninguém é parceiro de ténis
de ninguém, esta espécie de força tem tendência para se dispersar em
gracejos, quando não é totalmente auto-reprimida. O mais provável seria
não se mostrarem mais disponíveis do que os restantes membros da
faculdade quando se tratara de se unirem para o apoiarem. De qualquer
modo, não os conhecia nem tinha vontade de os conhecer. Já não conhecia
ninguém. Tinham decorrido dois anos, o tempo que levara a escrever
Spooks, desde que se afastara por completo dos amigos, colegas e
conhecidos de toda a vida, e só hoje -- pouco antes do meio-dia e após o
encontro com Nelson Primus que, mais do que apenas mal, acabara
espantosamente mal, com Coleman a surpreender-se a si mesmo com as
suas palavras injuriosas -, só hoje voltara a deixar Town Street, como estava
a fazer, para descer South Ward e depois, chegado ao monumento à Guerra
Civil, subir a encosta para o campus. Era muito provável que não
encontrasse ninguém conhecido, excepto, talvez, quem estivesse a ensinar
os reformados que costumavam vir em Julho passar duas semanas ao abrigo
do programa da universidade para idosos, que incluía idas aos concertos de
Tanglewood e visitas às galerias de Stockbridge e ao museu Norman
Rockwell.
Esses estudantes estívais foram precisamente a primeira coisa que viu,
quando chegou à crista da colina e saiu de trás do antigo edifício de
astronomia para o pátio principal sarapintado de sol que, naquele momento,
tinha um aspecto universitário mais kitsch do que jamais tivera na capa do
anuário da universidade de Athena. Dirigiam-se para a cafetaria, para
almoçar, ziguezagueando aos pares por um dos caminhos entrecruzados e
ladeados de árvores do pátio. Um cortejo de pares: maridos e mulheres
juntos, pares de maridos e pares de mulheres, pares de viúvos, pares
recompostos de viúvas e viúvos — ou assim os imaginou Coleman -, que se
tinham emparceirado como casais depois de se conhecerem ali, nos cursos
para idosos. Estavam todos muito bem arranjados, com roupas estivais
claras, muitas camisas e blusas de tons pastel vivos, calças de caqui branco
ou claro, alguns xadrezes leves de Brooks Brothers. A maior parte dos
homens usava bonés de pala, bonés de todas as cores, muitos deles com
emblemas de equipas desportivas profissionais. Não havia, pelo menos à
vista, cadeiras de rodas, nem andarilhos, nem canadianas, nem bengalas.
Pessoas activas da sua idade, aparentemente tão em forma como ele, umas
um pouco mais novas, outras claramente mais velhas, mas aproveitando o
que a liberdade da reforma deve proporcionar aos que têm a sorte de
respirar mais ou menos sem dificuldade, movimentar-se mais ou menos sem
dores e pensar mais ou menos lucidamente. Era ali que ele devia estar
devidamente emparceirado. Apropriadamente.
Apropriado: eis a palavra-chave em vigor para reprimir quase todos os
desvios das linhas de conduta sadias e fazer com que, desse modo, toda a
gente se sentisse "tranquila". Fazendo não aquilo que ele fazia, e lhe
criticavam, mas sim, parecia-lhe, o que era considerado adequado sabe
Deus por qual dos nossos filósofos morais. Barbara Walters? Joyce
IImthers? William Bennett? Dateline NBC? Se ainda estivesse por ali como
professor, poderia ensinar "Comportamento Apropriado na Tragédia
Clássica Grega", um curso que acabaria antes mesmo de começar.
No caminho para o almoço passavam à vista do North Hall, o belo
edifício de tijolo de estílo colonial, coberto de hera e das marcas do tempo,
onde durante mais de uma década Coleman Silk, então reitor da faculdade,
ocupara o gabinete defronte da suíte do presidente.
O símbolo arquitectónico da universidade, o relógio da torre hexagonal
de North Hall, adornado pelo pináculo que por sua vez era encimado pela
bandeira — e que podia ser visto de baixo, do centro da cidade, do mesmo
modo que as maciças catedrais europeias são ,Ivistadas das estradas de
acesso por aqueles que se dirigem para a cidade-catedral-, batia as\ doze
horas quando ele se sentou num banco à sombra do carvalho mais
famosamente idoso e retorcido pelos anos de todo o pátio, se sentou e, com
calma, tentou considerar as coacções da decência. A tirania da decência. A
meio do ano de 1998 era difícil, até para ele, acreditar na capacidade de
resistência da decência americana, e era ele quem se considerava tiranizado:
o freio que continua a ser para a retórica pública, a inspiração que
proporciona à atitude pessoal, a persistência, praticamente em todo o lado,
desse desvirtuador púlpito morígerador da virtude que H. L. Mencken
identificou com idiotismo, Philip Wylie considerou momismo, a que os
europeus chamam erroneamente puritanismo uncrícano e Ronald Reagan e
afins valores essenciais da América, e que mantém o seu vasto predomínio
mascarando-se de outra coisa qualquer — de tudo o mais. Como força, a
decência é versátil, uma dominadora com mil disfarces que se insinua, se
necessário, como responsabilidade cívica, dignidade WASP, direitos das
mulheres, orgulho negro, lealdade étnica ou sensibilidade ética judaica
saturada de emoção. Não apenas como se Marx, Freud, Darwin, Estáline,
Hitler ou Mao nunca tivessem existido mas também como se nem Sinclair
Lewis tivesse existido. Como, pensou Coleman, se Babbiü nunca tivesse
sido escrito. Como se nem esse baixíssimo nível elementar de pensamento
imaginativo tivesse sido absorvido pelo consciente para causar a mais
ínfima perturbação. Um século de destruição sem paralelo na sua terrível
magnitude abate-se sobre a espécie humana e flagela-a: dezenas die milhões
de pessoas comuns condenadas a sofrer privações atrás de privações,
atrocidades atrás de atrocidades, infortúnio atrás de infortúnio; metade do
mundo, ou mais, sujeita a sadismo patológico sob a capa de política social,
sociedades inteiras organizadas e. agrilhoadas pelo medo da perseguição
violenta, a degradação da vida individual manipulada a uma escala sem
precedentes na História, nações dominadas e escravizadas por criminosos
ideológicos que lhes roubam tudo, populações inteiras tão desmoralizadas
que são incapazes de se levantar de manhã com o mínimo desejo de encarar
o dia ... Tantos marcos terríveis a caracterizar o século e eles aqui em pé-de-
guerra por causa de Faunía Farley. Aqui, na América, quando não é Faunia
Farley, é Monica Lewinsky! O conforto destas vidas tão perturbado pelo
comportamento indecoroso de Clinton e Silk! Isto, em 1998, é a
perversidade que têm de suportar. Isto, em 1998, é a sua tortura, o seu
tormento e a sua morte espiritual. A fonte do seu maior desespero moral,
Faunia a chupar-me e eu a comê.-la. Sou depravado não apenas por ter dito
uma vez a palavra "spooks" numa aula de estudantes brancos — e tendo-o
dito, notem, não enquanto passava em revista o legado da escravatura, as
denúncias explosivas de Malcom X, a retórica de James Baldwin ou a
popularidade radiofónica de Amos 'n' Andy, mas enquanto fazia
rotineiramente a chamada. Sou depravado não apenas por...
Pensara tudo isto em menos de cinco minutos, sentado num banco e a
olhar para o bonito edifício onde outrora tinha sido reitor.
Mas o erro estava feito. Ele voltara. Estava ali. Voltara à colina de onde o
tinham escorraçado. E com ele voltara também o desprezo pelos amigos
que não tinham cerrado filei.ras em sua defesa, e pelos colegas que não se
tinham dado ao incómodo de o apoiar; e pelos inimigos que com tanta
facilidade tinham destruído todo o significado da sua carreira profissional.
A ânsia de denunciar a pundunorosa crueldade da hipócrita idiotice de todos
eles encheu-o de fúria. Estava de novo na colina sob o império da fúria, de
uma fúria tão intensa que a sentia a expulsar todo o bom senso e a impor-
lhe que agisse de imediato.
Delphine Roux.
Levantou-se e dirigiu-se para o gabinete dela. Numa certa idade, pensou,
é aconselhável para a saúde não fazer o que me preparo para fazer. Numa
certa idade, a melhor coisa para serenar a perspectiva de um homem é a
moderação, se não a resignação, se não mesmo a capitulação pura e
simples. Numa certa idade, devíamos viver sem escutar muito as queixas do
passado, ou convidar à resistência no presente personificando um desafio às
devoções vigentes. No entanto, renunciar a representar qualquer papel que
não seja o socialmente atribuído, e atribuído, neste caso, aos
respeitavelmente reformados — aos 71 anos, com certeza só isso pode ser
adequado -, era inaceitável para Coleman Silk, como há muito tempo
demonstrara com inexorável implacabilidade à sua própria mãe.
Não era um anarquista amargo como o maluco pai de Iris, Gíttelman.
Não era, em sentido algum, um provocador ou um agitador. Nem sequer um
louco. Nem sequer um radical ou um revolucionário, mesmo intelectual ou
filosoficamente falando, a não ser que seja revolucionário crer que ignorar
as delimitações mais restritívas de uma sociedade prescritiva e afirmar de
modo independente uma escolha livre e pessoal, dentro dos parâmetros da
lei, possa ser outra coisa que não um direito humano fundamental; a não ser
que seja revolumário recusarmo-nos, quando atingimos a maioridade, a
aceitar automaticamente o contrato redigido à nascença para assinarmos.
Entretanto, passara por trás do North Hall e dirigia-se para o comprido
relvado para boliche que conduzia a Barton e ao gabinete de Delphine
Roux. Não fazia a mínima ideia do que lhe diria se por acaso a encontrasse
sentada à secretária num tão magnífico dia de Verão, com o semestre do
Outono ainda a seis ou sete semanas do seu início. Não fazia ideia nem teve
oportunidade de fazer, porque, antes mesmo de chegar perto do largo
caminho de tijolo que contornava o Barton, reparou que, atrás do North
Hall, numa extensão de relva à sombra, ao lado de uma escada que dava
para a cave, estava um grupo de cinco funcionários da universidade, todos
fardados com as camisas e as calças castanhas do pessoal de manutenção, a
comer uma piza de uma caixa e a rir com gosto de uma graça qualquer. A
única mulher, e o centro das atenções dos seus companheiros de almoço —
a que contara a anedota, dissera a graça ou fizera a provocação, e que por
sinal ria mais alto do que todos os outros --, era Faunia Farley.
Os homens aparentavam trinta, trinta e poucos anos. Dois usavam barba e
um dos barbudos, um tipo com um comprido rabo-de-cavalo, era
particularmente entroncado e tinha um aspecto bovino. Era o único que se
encontrava de pé, talvez para melhor pairar sobre Faunia, que eslava
sentada no chão com as longas pernas estendidas à sua frente e a cabeça
atirada para trás, num gesto provocado pela alegria do momento. O seu
cabelo foi uma surpresa para Coleman. Estava solto. Até então, vira-o
sempre infalivelmente bem preso atrás, com um elástico. Assim solto, só no
leito, quando tirava o elástico e o deixava cair para os ombros nus.
Estava com os rapazes. Estes deviam ser os rapazes a quem costumava
referir-se. Um deles, recém-divorciado e ex-mecânico de automóveis mal-
sucedido, mantinha-lhe o chevrolet a funcionar e dava-lhe boleia para o
trabalho e para casa nos dias em que o maldito chaço se recusava a pegar,
fizesse ele o que fizesse; outro, queria levá-la ao cinema para verem um
filme porno nas noites em que a mulher trabalhava no turno da noite na
fábrica de embalagens de papel de Blackwell, e outro era tão inocente que
nem sabia o que era um hermafrodita. Quando os rapazes apareciam nas
suas conversas, Coleman escutava sem fazer comentários e sem exprimir
qualquer contrariedade com o que ela tinha a dizer a respeito deles, apesar
da curiosidade que lhe despertava o interesse dos rapazes por ela, dada a
substância dos assuntos abordados referidos por Faunia. Mas como ela não
falava constantemente neles e ele não a encorajava fazendo perguntas a seu
respeito, os rapazes nãocausavam em Coleman a impressão que causariam,
por exemplo, a Lester Farley, Claro que ela poderia, de moto próprio, ser
um pouco menos descuidada e prestar-se menos a alimentar-lhes as
fantasias, mas mesmo quando se sentia tentado a sugerir-lho conseguia
facilmente conter-se. Ela podia falar tão despropositada ou
intencionalmente quanto quisesse, fosse com quem fosse, e arcar com as
consequências, fossem elas quais fossem. Não era sua filha. Não era sequer
a sua rapariga. Era ... o que era.
Mas, ao observá-la sem ser visto de trás do muro sombrio de North Hall,
onde se ocultara, não achou tão fácil, pelo contrário, manter uma opinião
tão indiferente e tolerante, É que, agora, via não apenas o que costumava
ver — o que o facto de ter alcançado tão pouco na vida lhe fizera — mas
também, talvez, a razão por que alcançara tão pouco; do seu ponto de
observação a não mais de quinze metros de distância, podia ver quase
microscopicamente como, sem ele para lhe dar as dicas, ela as ia buscar ao
exemplo mais grosseiro que se encontrava ao seu alcance, às pessoas mais
ordinárias, àquelas cujas expectativas humanas eram as mais baixas e cuja
concepção de si mesmas a mais superficial. Como, por muito inteligente
que sejamos, Voluptas torna realidade quase tudo quanto queremos pensar,
certas possibilidades não chegam nunca a ser encaradas, quanto mais
vígorosamente conjecturadas, e avaliar correctamente as qualidades da
nossa Voluptas é a última coisa que estamos preparados para fazer... até ao
momento em que nos esgueiramos para as sombras e a observamos a rolar
de costas na relva, com os joelhos dobrados e um pouco afastados, o queijo
da piza a escorrer por uma das mãos, uma Diet Coke erguida na outra e a rir
como uma louca — de quê? Do hermafroditismo? -, enquanto paira sobre
ela, na pessoa do serralheiro de automóveis falhado, tudo aquilo que é a
antítese do nosso próprio modo de vida. Outro Farley? Outro Les Farley?
Talvez nada tão assustador como isso, talvez mais um substituto de Farley
do que de nós.
Uma cena de campus que teria parecido insignificante se Coleman a
tivesse surpreendido num dia de Verão do tempo em que era reitor — e isso
acontecera sem dúvida numerosas vezes -, uma cena de campus que então
lhe teria parecido, além de inofensiva, agradavelmente sugestiva do prazer
que podia ser comer ao ar livre num bonito dia, mas que hoje estava
carregada de significado. Enquanto nem Nelson Primus, nem a sua querida
Lisa, nem mesmo a denúncia obscura anonimamente enviada por Delphine
Roux o tinham convencido de nada, esta cena de pouca importância no
relvado atrás de North Hall revelava-lhe finalmente a face oculta da sua
própria vergonha.
Lisa. Lisa e as suas crianças. A pequenina Carmen. Foi isso que lhe veio
ao pensamento, como um relâmpago, a pequenina Carmen que tinha 6 anos,
mas, segundo Lisa, era como se fosse muito mais nova, "Ela é engraçada",
dizia a filha, "mas como um bebé" E, quando ele a viu, Carmen era de facto
adoravelmente engraçada: pele castanho-clara, cabelo muito preto preso em
duas tranças espetadas, olhos como ele nunca vira iguais noutro ser
humano, dois carvões azulados com um calor e uma luz que vinham de
dentro, corpo infantil ágil e flexível, muito bem arranjada, de jeans e
sapatilhas, meias curtas coloridas e uma T-shírt branca quase tão estreita
como um limpa-cachimbos, uma menina viva e aparentemente atenta a
tudo, em especial a ele. "Este é o meu amigo Coleman", disse-lhe Lisa
quando ela entrou na sala com um sorriso irónico e ligeiramente divertido
no rostinho matinal bem lavado e senhor de si. "Bom dia, Carmen", saudou-
a Coleman. "Ele só queria ver o que nós fazemos", explicou Lisa. "Está
bem", disse a criança com delicadeza, mas observando-o com o mesmo
cuidado com que ele a observava, aparentemente com o sorriso. "Vamos
fazer o que costumamos fazer sempre", continuou Lisa, "Está bem", repetiu
Carmen, mas olhando-o agora com uma versão bastante mais séria do
sorriso. Quando se voltou para as letras de plástico magnetizadas dispostas
no pequeno quadro baixo e Lisa lhe pediu que começasse a deslizá-las para
formar as palavras "mala", "mesa", "mimo" e "moda" — "Digo-te sempre",
explirava Lisa, "que tens de olhar para as primeiras letras. Vamos, lê-nos as
primeiras letras, indica-as com o dedo" -, Carmen começou a virar
intermitentemente a cabeça, e depois o corpo todo, para olhar para Coleman
e permanecer em contacto com ele. "Tudo a distrai", disse Lisa, em voz
baixa, ao pai. -vamos lá, menina Carmen. Vamos lá, minha querida. Ele é
imvisível." "O que é isso" "Invisível", repetiu Lisa. "Não o podes ver".
Carmen riu-se. "Isso é que posso. "Vamos. Volta para mim. As primeiras
letras. Isso. Muito bem. Mas também tens de ler o resto da palavra.
Percebes? A primeira letra ... e agora o resto da palavra. Está bem ...
"Mimo". E esta tu sabes. Tu sabes esta. "Moda". Muito bem" No dia da
visita de Coleman fazia vinte e cinco semanas que começara o programa de
Recuperação da Leitura, e embora Carmen tivesse feito progressos, não
tinham sido muitos. Ele lembrava-se das dificuldades que ela tivera com a
palavra "teu" do livro de histórias ilustrado do qual estava a ler em voz alta.
Esfregara os olhos, torcera e enrolara a frente da camisola, enfiara as pernas
à volta da trave da cadeira em miniatura e, lenta mas decididamente, fora
afastando o rabo para a beira do assento da cadeira -- e continuara incapaz
de reconhecer ou pronunciar "teu". "Estamos em Março, pai. Vinte e cinco
semanas. É tempo de mais para continuar a ter dificuldades com teu". É
tempo de mais para continuar a confundir "sabia" com "subia", embora,
nesta altura do campeonato, eu já me contentasse com "teu". Em princípio,
o programa deve durar vinte semanas e acabar. Ela frequentou a pré-
primária e devia ter aprendido a identificar à vista algumas palavras básicas.
Mas quando lhe mostrei uma lista de palavras em Setembro — e nessa
altura ela ia entrar na primeira classe -, perguntou-me: "O que é isto?" Não
sabia sequer o que eram palavras. E quanto a letras o panorama não era
melhor: não conhecia o h, não conhecía o j, confundia o u com o c. Isso
compreendia-se, em certa medida, pois há uma semelhança visual, mas
passaram vinte e cinco semanas e o problema subsiste, O m e o u, o i e o l,
o g e o d continuam a ser um problema para ela. Tudo é um problema para
ela. "Pareces muito desanimada com a Carmen, Lisa" "Bem, meia hora,
todos os dias? É muito .usíno. É muito trabalho. Ela devia ler em casa, mas
em casa há uma irmã de 16 anos que acaba de ter um bebé e os pais ou se
esquecem ou não estão para se ralar. Os pais são imigrantes, tiveram de
aprender uma segunda língua e não é fácil para eles ler aos filhos em Illglês,
mas Carmen também nunca aprendeu a ler em espanhol. E eu tenho de lidar
com isto dia após dia. Preciso de ver se as crianças sabem manejar um livro,
dou-lhes um, como esse, um livro com uma grande ilustração colorida
debaixo do título, e peço: "Mostrem-me a frente do livro." Algumas sabem,
mas a maioria não sabe. As letras impressas não significam nada para elas.
E", acrescentou com um sorriso exausto e muito, muito menos cativante do
que o de Carmen, "supostamente as minhas crianças não são inaptas para
aprender Carmen não olha para as palavras enquanto eu estou a ler. Não lhe
interessa. E é por isso que chegamos estoirados ao fim do dia. Outros
professores têm tarefas difíceis, bem sei, mas ao fim de um dia de Carmen,
após Carmen, após Carmen, chegamos a casa emocionalmente esgotados.
Nessa altura, eu não consigo ler. Não consigo sequer usar o telefone. Como
qualquer coisa e vou para a cama. Gosto destas crianças. Amo-as. Mas isto
é pior do que esgotante, isto mata-me"
Agora Faunia estava sentada na relva, a beber o resto do refrigerante,
enquanto um dos rapazes — o mais novo, mais magro e com o ar mais
agarotado de todos, com uma barba incongruente no queixo e usando, com
o uniforme castanho, um lenço vermelho aos quadrados e o que pareciam
botas de cowboy de tacão alto — recolhia todos os restos do almoço e os
metia num saco de lixo, e os outros três estavam um pouco afastados, de pé
ao sol, a fumar um último cigarro antes do regresso ao trabalho.
Faunia estava só. E calada, agora. Sentada com ar grave e com a lata
vazia da bebida, a pensar em quê? Nos dois anos passados como criada de
mesa na Florida, quando tinha 16 e 17 anos, nos homens de negócios
reformados que costumavam aparecer para almoçar sem as mulheres e lhe
perguntavam se não gostaria de viver num bonito apartamento, ter roupas
bonitas e um bonito Pinto novo, conta aberta nas lojas de roupa Bal
Harbour, na joalharia e no salão de beleza, tudo isso em troca, apenas, de
ser namorada deles algumas noites por semana e, de vez em quando, aos
fins-de-semana? Recebeu não uma, mas duas, três, quatro propostas desse
género só no primeiro ano. E depois a proposta do cubano. Cem dólares por
cabrito limpos, livres de impostos. Para uma loura magra de mamas
grandes, uma miúda alta e bonita como ela, expedita, ambiciosa e com
garra, encadernada numa mini-saia, num top e botas, seria fácil facturar mil
dólares por noite. Um ano ou dois e, se quisesse, reformava-se, poderia dar-
se a esse luxo. "E não aceitaste?", perguntou Coleman. "Não. Ná! Mas não
julgues que não pensei no assunto. Toda aquela merda do restaurante,
aqueles tipos nojentos, os cozinheiros chalados, um cardápio que eu não
sabia ler, pedidos que não sabia escrever e me obrigavam a fixar tudo na
cabeça... não era nada fácil. Mas o facto de não saber ler não significa que
não saiba contar. Sei somar. Sei subtrair. Não sei ler palavras, mas sei quem
foi Shakespeare. Sei quem foi Einsteín. Sei quem ganhou a Guerra Civil.
Não sou estúpida, sou apenas iletrada. Não é uma grande diferença, mas é
uma diferença. Com números a história é outra. De números, podes crer,
percebo. Não julgues que não pensei que talvez a ideia não fosse nada má.
Mas Coleman não precisava de que ela o esclarecesse a esse respeito. Não
só achava que, com 17 anos, ela pensara que ser prostituta podia ser uma
boa ideia como também que era uma ideia que ela não se limitara a
considerar.
"Que fazemos com as crianças que não sabem ler?", perguntara-lhe Lisa,
no seu desespero. "É a chave para tudo e, por isso, temos de fazer alguma
coisa, mas esse esforço está a consumir-me. Neste campo, diz-se que o
segundo ano é melhor, e o terceiro ainda melhor. Este é o meu quarto ano"
"E não é melhor?", perguntara ele. "É difícil. É tão difícil. Cada ano é mais
difícil. Mas que podemos fazer se ensinar uma criança de cada vez não
resultar" Bem, o que ele fez com a miúda que não conseguia ler foi torná-la
sua amante. O que Farley fez foi torná-la seu saco de porrada. O que o
cubano fez foi torná-la sua puta, ou uma das suas putas — pelo menos era
isso que Coleman pensava a maior parte das vezes. E sua puta durante
quanto tempo? Era nisso que Faunia estava a pensar antes de se levantar
para regressar ao North Hall e acabar a limpeza dos corredores? Estava a
pensar no tempo que tudo ISSO durara? A mãe, o padrasto, a sua fuga do
padrasto, os lugares no Sul, os lugares no Norte, os homens, as tareias, os
empregos, o casamento, a herdade, as vacas, a falência, os filhos, os seus
dois filhos mortos. Não admirava que meia hora ao sol, partilhando uma
piza com os rapazes, lhe parecesse o paraíso.
— Este é o meu amigo Coleman, Faunia. Ele vai só assistir.
— Está bem — responde Faunia. Traz um vestido de bombazina verde,
soquetes brancos muito limpos e sapatos pretos reluzentes, está longe de ter
a desenvoltura de Carmen; éuma menina serena, com boas-maneiras,
sempre um pouco desanimada, uma bonita críança caucasiana da classe
média com cabelo louro comprido preso aos lados por dois ganchos em
forma de borboleta e que, ao contrário de Carmen, não mostra nenhum
interesse, nenhuma curiosidade por ele, depois de lhe ser apresentado.
"Olá", murmura, tímida, e volta a deslocar as letras magnetizadas, juntando
os w's, os t's, os n's os s's e agrupando, noutra parte do quadro, todas as
vogais.
— Serve-te das duas mãos — diz-lhe Lisa, e ela obedece. — Que letras
são estas? Faunia lê-as, sem se enganar em nenhuma.
— Vamos fazer uma coisa que ela sabe — diz Lisa ao pai. — Escreve
"meu", Faunia. Faunia obedece. Faunia junta as letras de "meu".
— Muito bem. Agora uma coisa que ela não sabe. Escreve "teu".
Faunia olha atenta e demoradamente para as letras, mas não acontece
nada. E ela não diz nada. Espera. Espera que aconteça a coisa seguinte.
Toda a sua vida tem esperado que aconteça a coisa seguinte. E acontece
sempre.
— Quero que mudes a primeira parte, Faunia. Vamos lá. Tu sabes. Qual é
a primeira parte de "teu"?
— T — Afasta o m do princípio da palavra e põe o t no seu lugar.
— Muito bem. Agora escreve "seu".
Ela obedece. Seu.
— Está certo. Agora lê com o teu dedo.
Faunia passa o dedo por baixo de cada letra enquanto pronuncia
claramente o respectivo som:
— Esse ... e ... u.
— Ela é rápida — comenta Coleman.
— Sim, mas isto é para ser rápido.
Há três outras crianças com três outros professores noutros lugares da
grande sala, de modo que Coleman ouve, à sua volta, vozes fracas a ler alto,
a subir e descer nos mesmos padrões infantis independentemente do
conteúdo, e ouve os outros professores dizer: "Tu sabes essa ... u, de "uva"
... u, u ... ", e "Tu sabes isso ... er, tu sabes, er", e "Tu sabes, él ... bem,
muito bem", e quando olha em redor vê que todas as outras crianças que
estão a ser ensinadas também são Faunia. Há mapas com o alfabeto por
todo o lado, com imagens de objectos a ilustrar cada letra, e há por todo o
lado letras de plástico, para poderem ser pegadas com a mão, letras de cores
diferentes para ajudarem a formar as palavras foneticamente, uma letra de
cada vez, e há por todo o lado livros simples que contam as histórias mais
simples: " ... na sexta-feira fomos à praia. No sábado fomos ao aeroporto"
"Pai Urso, o bebé Urso está consigo? "Não", respondeu o pai Urso. "De
manhã um cão ladrou a Sara. Ela assustou-se. "Tenta ser uma menina
corajosa, Sara", disse a mãe.. Além de todos estes livros, todas estas
histórias, todas estas Saras, todos estes cães, todos estes ursos e todas estas
praias há quatro professores, quatro professores todos para Faunia, e mesmo
assim não conseguem ensiná-la a ler ao nível correspondente à sua classe.
— Ela está na primeira classe — diz-lhe Lisa. — Esperamos que, se
trabalharmos os quatro juntos com ela todo o dia e todos os dias, no fim do
ano conseguiremos acelerá-la. Mas é difícil conseguir que se motive por si
mesma.
— É uma bonita menina — diz Coleman.
— É? Acha-a bonita? Gosta daquele tipo? É esse o seu tipo, pai, a
menina bonita com dificuldade em aprender a ler; de cabelo louro
comprido, vontade fraca e ganchos com borboletas?
— Eu não disse isso.
— Não precisou de dizer. Observei-o com ela. — Lisa aponta em redor
da sala, para as quatro Faunias sentadas em silêncio diante do quadro, a
formar e a corrigir com letras de plástico coloridas as palavras "meu", "teu"
e "seu". — A primeira vez que ela soletrou "seu" com o dedo, não
conseguiu desviar os olhos da miúda. Bem, se isso o excita, devia ter estado
aqui em Setembro. Em Setembro ela soletrou mal o nome e o primeiro
apelido. Tinha acabado de sair da pré-primária e a única palavra da lista que
reconheceu foi "seu". Não compreendia que as letras contêm uma
mensagem. Não sabia distinguir a página esquerda da página direita. Não
conhecia Caracolinhos Louros e os Três Ursos. "Conheces Caracolinhos
Louros e os Três Ursos, Faunia?" "Não" O que significa que a sua
experiência na pré-primária — pois é isso que aprendem lá, contos de fadas
e canções de embalar — não foi muito boa. Hoje conhece O Capuchinbo
Vermelho, mas naquele tempo ... Esqueça. Oh, se tivesse conhecido Faunía
em Setembro, logo depois de ter falhado na pré-primária, garanto-lhe, pai,
que ela o teria enlouquecido.
Que fazemos com a criança que não sabe ler? A criança que está a chupar
alguém numa pick-up, no caminho para casa, enquanto no primeiro anelar
de um pequeno apartamento em cima de uma garagem os filhos pequenos
estão supostamente a dormir, com um calorífero aceso — duas crianças sem
ninguém a olhar por elas, um aquecedor a petróleo aceso e ela com o tipo
na pick-up dele. A miúda fugitiva desde os 14 anos, a vida inteira na
cavatina da sua inexplicável vida. A miúda que casa pela estabilidade e pela
protecção que lhe dará o marido, um ex-combatente marado da cabeça
pelos combates que lhe salta ao pescoço se ela se vira sequer na cama,
enquanto dorme. A miúda que é falsa, a miúda que se esconde em si mesma
e mente, a miúda que não sabe ler, mas que sabe ler, que finge que não sabe
ler, que assume voluntariamente essa insuficiência para melhor representar
o papel de membro de uma subespécie a que não pertence nem precisa de
pertencer, mas a que, por todas as razões erradas, quer fazê-lo acreditar que
pertence. A miúda cuja existência se tornou uma alucinação aos 7 anos,
uma catástrofe aos 14 e uma calamidade depois disso, cuja vocação não é
ser criada de mesa, nem prostituta, nem trabalhadora rural, nem funcionária
da limpeza, mas sim e para sempre a enteada de um padrasto lascivo e a
filha desprotegída de uma mãe obcecada consigo mesma, a miúda que
desconfia de toda a gente, vê um vigarista em toda a gente e, no entanto,
não está protegida contra coisa nenhuma, a miúda cuja capacidade de
resistir, sem se intimidar, é enorme e, no entanto, tem sobre a vida uma
influência insignificante, a aguerrida filha favorita do infortúnio, a miúda a
quem pode acontecer, e aconteceu, tudo quanto há de execrável e cuja sorte
não mostra qualquer sinal de mudar, mas que o excita e estimula como
ninguém depois de Steena e que, moralmente falando, não é a pessoa mais
e, sim, a menos repugnante que ele conhece, a única por quem se sente
atraído — por ter estado durante tanto tempo apontado na direcção oposta, e
por tudo o que perdeu por ter ido na direcção oposta, e porque o sentimento
subjacente de rectidão que o controlou antes é exactamente o mesmo que o
impele agora -, a inverosímil criatura íntima com quem partilha uma união
que não é menos espiritual do que física, que é tudo menos um brinquedo
sobre o qual arremessa o corpo duas vezes por semana a fim de sustentar a
sua natureza animal, que, mais do que qualquer outra pessoa no mundo, é
para ele como um camarada-de-armas.
E que fazemos com uma criança assim? Procuramos o mais depressa
possível uma cabina telefónica e corrigimos o nosso erro idiota.
Ele julga que ela está a pensar há quanto tempo tudo aquilo acontece, a
mãe, o padrasto, a fuga do padrasto, os lugares no Sul, os lugares no Norte,
os homens, as tareias, os empregos, o casamento, a herdade, as vacas, a
falência, os filhos, os filhos mortos ... e talvez esteja, de facto. Talvez esteja,
mesmo que, sozinha agora na relva enquanto os rapazes fumam e limpam
os restos do almoço, julgue que está a pensar em gralhas. Pensa muitas
vezes em gralhas. Elas estão em todo o lado. Empoleiram-se nos bosques
não longe da cama onde ela dorme, estão no pasto quando lá vai afastar a
cerca para as vacas e, hoje, estão a grasnar em todo o campus e, por isso,
em vez de pensar o que está a pensar do modo que Coleman pensa que ela
está a pensar, pensa na gralha que costumava andar nas imediações do
armazém de SeeIey Falls quando, depois do fogo e antes de se mudar para a
herdade, alugou lá um quarto mobilado para tentar esconder-se de Farley,
pensa na gralha que andava pelo parque de estacionamento entre o posto
dos correios e o armazém, na gralha que alguém transformara em mascote
porque tinha sido abandonada ou porque a sua mãe tinha sido morta — ela
nunca soubera o que a tornara órfã. E agora fora abandonada pela segunda
vez e habituara-se a andar pelo parque de estacionamento por onde quase
toda a gente passava ao longo do dia. Esta gralha causava muitos problemas
em Seely Falls porque começou a mergulhar a pique sobre as pessoas que
entravam nos correios, atraída pelos travessões do cabelo das meninas
pequenas e outros objectos assim — como é próprio das gralhas, visto ser
da sua natureza coleccionar coisas brilhantes, pedaços de vidro, etc. — e,
por isso, a encarregada do posto, depois de consultar algumas pessoas
interessadas da cidade, resolveu levá-la para a Auclubon Society, onde a
meteram numa gaiola, da qual só a deixavam sair de vez em quando, para
voar; não a soltavam porque um pássaro que se habituou a andar por um
parque de estacionamento não pode, pura e simplesmente, adaptar-se à vida
selvagem. A voz daquela gralha. Faunia lembrava-se dela a toda a hora, de
dia ou de noite, acordada, a dormir ou com insônias. Era uma voz estranha.
Não se parecia com a das outras gralhas, provavelmente porque não
crescera entre elas. Logo após o fogo, costumava ir visitá-la à Auduhon
Society, e quando a visita acabava e me voltava para sair; ela chamava-me
com a sua voz. É verdade que se encontrava fechada numa gaiola, mas,
sendo como era, estava melhor assim. Havia outros pássaros em gaiolas que
as pessoas tinham levado para lá porque já não podiam viver em liberdade.
Havia duas pequenas corujas, umas coisinhas sarapintadas que pareciam
brinquedos. Eu também costumava visitá-las. E um gavião que soltava um
grito agudo. Bonitos pássaros. Depois mudei-me para aqui e, sozinha como
estava, como estou, aprendi a conhecer as gralhas como nunca as conhecera
antes. E elas a mim. O seu sentido de humor. Será disso que se trata? Talvez
não seja sentido de humor, mas a mim é o que me parece. O seu andar. A
sua maneira de esconder a cabeça debaixo da asa. O modo como me gritam
se não tenho pão para lhes dar, Faunia, vai buscar o pão! Andam todas
empertigadas. Armam em mandonas com os outros pássaros das
proximidades. No sábado, depois de ter conversado com o falcão de cauda
vermelha na Cumberland, voltei para casa e ouvi duas gralhas no pomar.
Compreendi, pelo seu grasnar assustado, que se passava alguma coisa. E
não me enganava: estavam lá três pássaros, duas gralhas grasnavam e
enxotavam um falcão. Talvez o mesmo com o qual eu estivera a falar
minutos antes. Enxotavam-no. Era evidente que ele estava a tramar alguma
coisa. Mas enfrentar um falcão? Seria boa ideia? Elas podiam marcar
pontos aos olhos das outras gralhas, mas não sei se, no seu lugar, me
atreveria. Mesmo sendo duas, conseguiriam lear a melhor a um falcão? Os
falcões são uns estupores agressivos. Muito hostis. Uma vez vi uma
fotografia de uma gralha a ir direita a uma águia e grasnar-lhe como se
ladrasse. A águia permanecia impávida, nas tintas. Como se nem sequer a
visse. Mas a gralha é um espectáculo. A sua maneira de voar. Não são tão
bonitas como os corvos, quando eles voam e fazem aquelas belas
acobracias maravilhosas. As gralhas têm de levantar do chão uma grande
fuselagem, mas apesar disso não precisam necessariamente de correr para
ganhar impulso, antes de descolarem. Bastam alguns passos. Tenho
observado isso. É mais uma questão de esforço. Fazem um enorme esforço
e levantam voo. Havia milhões delas, quando levava os miúdos para
comermos no Friendly. Há quatro anos. No Friendly da East Main Street de
Blackwell. Ao fim da tarde, antes de escurecer. Milhões delas no parque de
estacionamento. A assembleia das gralhas no Fríendly. Que ligação há entre
gralhas e parques de estacionamento? De que se trata? Nunca saberemos
nada a esse respeito, nem de tudo o mais. Comparados com as gralhas,
outros pássaros parecem um bocado estúpidos, desinteressantes. É verdade
que os galos azuis têm aquele espantoso ressalto. como se andassem num
trampolim. É bonito. Mas as gralhas podem fazer o ressalto e o impulso de
peito. Impressionante. Viram a cabeça da esquerda para a direita, a avaliar o
espaço. Oh, são um espectáculo. São o máximo. O grasnar delas. O grasnar
ruidoso. Escutem só. Oh, adoro. Permanecer em contacto, assim. O grito
frenético, que significa perigo. Adoro isso. Saio a correr, quando o ouço.
Podem ser cinco horas da manhã que não me importo. Soa o grito frenético,
saímos a correr e podemos ter a certeza de que o espectáculo vai começar a
qualquer momento. Quanto aos outros gritos, não posso dizer que sei o que
significam. Talvez nada. Às vezes é um grito breve. Outras é gutural, A não
confundir com o grito do corvo. Gralhas acasalarn com gralhas e corvos
com corvos. É espantoso que nunca se confundam. Pelo menos que eu
saiba. Quem diz que são horrendos pássaros carniiceiros — e não falta
quem diga — não regula bem. Eu acho-os belos. Oh, sim, muito belos. O
seu lustro. Os cambiantes. Tão pretos, tão pretos que é possível distinguir
tons violeta. As suas cabeças. Aquele tufo de pêlos no nascer do bico,
aquela espécie de bigode, aqueles pêlos que saem das penas. Provavelmente
tem um nome, mas o nome não tem importâncía. Nunca tem. O que importa
é que está ali. E ninguém sabe porquê. É como tudo o mais: está
simplesmente ali. Os olhos de todos são pretos. Têm todos olhos pretos. E
garras pretas. Que sensação causará voar? Os corvos sobem muito alto,
planam, enquanto as gralhas parecem ir apenas aonde vão. Tanto quanto me
parece, não se limitam a voar à roda. Os corvos que subam e planem. Os
corvos que galguem quilómetros, batam recordes e conquistem os prémios.
A~ gralhas têm de ir de um lugar para outro. Ouvem que eu tenho pão, por
isso estão aqui. Ouvem que alguém, três quilómetros mais abaixo, tem pão,
por isso estão lá. Quando lhes atiro pão, há sempre uma que está de atalaia e
outra que podemos ouvir, ao longe, e transmitem sinais de um lado para o
outro para que todas saibam o que está a acontecer. Custa a acreditar que
todas estejam atentas para se avisarem umas às outras, mas é isso que
parece. Há uma história maravilhosa que nunca esqueci e me foi contada,
quando era pequena, por uma amiga a quem fora contada pela mãe. É a
respeito de umas gralhas tão espertas que descobriram uma maneira de
levar umas nozes que tinham, e não podiam partir, para a auto-estrada.
Observavam os faróis, as luzes de trânsito, percebiam quando os carros iam
arrancar — eram inteligentes ao ponto de saberem como elas funcionavam
— e colocavam as nozes mesmo à frente dos pneus, para que as partissem,
e assim que a luz mudava desciam. Na altura, acreditei. Nesse tempo
acreditava em tudo. E agora que as conheço e não conheço mais ninguém,
acredito de novo. Eu e as gralhas. A equipa perfeita. Fica com as gralhas e
estás garantida. Ouvi dizer que alisam as penas umas das outras. Mas nunca
vi. Tenho-as visto muito juntas e pergunto-me o que estarão a fazer. No
entanto, nunca as vi, realmente, alisarem as penas umas das outras. Nem
mesmo alisarem as próprias penas. Mas a verdade é que moro ao lado do
ninho e não lá dentro. Embora gostasse de lá morar. Embora preferisse ser
uma delas. Oh, sim, com toda a certeza. Não tenho qualquer dúvida a esse
respeito. Preferia, de longe, ser uma gralha. Elas não precisam de se
preocupar com mudanças para se afastarem de alguém ou de alguma coisa.
Vão-se embora e está o caso arrumado. Não têm de fazer a mala. Vão-se
embora e já está. Quando são atingidas por alguma coisa, é o fim, acabou.
Rasgam uma asa, acabou. Partem uma perna, acabou. É muito mais prático
e melhor do que isto. Talvez eu volte um dia como uma gralha. O que fui
antes de voltar como isto? Fui uma gralha! Sim! Fui uma gralha! E disse:
"Meu Deus, quem me dera ser aquela rapariga de mamas grandes lá de
baixo. O meu desejo foi satisfeito e agora, Jesus, quero voltar ao meu
estatuto de gralha. Bom nome para uma gralha. Estatuto. Bom nome para
qualquer coisa grande e preta. Diz bem com o seu andar empertigado.
Estatuto. Quando era criança reparava em tudo. Gostava de pássaros. Tive
sempre um fraco por gralhas, falcões e corujas. Ainda vejo as corujas à
noite, quando regresso de carro de casa de Coleman. Não resisto, apeio-me
e falo com elas. Não devia. Devia ir direita para casa antes que aquele
sacana me mate. Que pensam as gralhas quando ouvem os outros pássaros
cantar? Acham estúpido. E é. Grasnar. Isso é que está bem. Não combina,
um pássaro que anda empertigado cantar uma terna cançãozinha. Não,
minhas lindas, grasnem, grasnem com todas as ganas. Isso é que está certo,
porra: grasnar com todas as ganas, não ter medo de nada e comer tudo
quanto está morto. Para voar assim, precisam enfardar uma quantidade de
vítimas da estrada por dia. Nem se dão ao trabalho de arrastá-las de lá,
comem-nas mesmo na estrada. Esperam até ao último momento, quando um
carro se aproxima, antes de levantarem voo e se afastarem, mas não para tão
longe que não possam saltar de novo e cravar o bico no petisco, assim que o
carro passa. Comer no meio da estrada. Pergunto a mim mesma o que
acontece quando a carne apodrece. Talvez não apodreça para elas. Talvez
seja esse o significado de ser um pássaro necrófago. Elas e os urubus: é esse
o seu trabalho. Encarregam-se de fazer desaparecer da floresta e da estrada
todas aquelas coisas com as quais não queremos ter nada a ver. Nenhuma
gralha passa fome em todo este mundo. Nunca lhes falta uma refeição. Se a
comida apodrece, não vemos a gralha fugir dela. Se há morte, as gralhas
estão presentes. Se há alguma coisa morta, elas aparecem e encarregam-se
dela. Gosto disso. Gosto muito disso. Vão comer aquele raccoon custe o
que custar. Esperam que a camioneta passe e lhe rache a espinha, depois
voltam e chupam todo o bom recheio necessário para levantar aquela bonita
carcaça preta do solo. É verdade, admito, têm um comportamento estranho,
que lhes é próprio. Como todas as coisas. Já as vi lá em cima, naquelas
árvores, lidas juntas, a falar umas com as outras, e é claro que se passa
alguma coisa. Mas nunca saberei o quê. Existe ali uma estrutura muito
forte. Nem faço a mínima ideia se elas próprias sabem do que se trata.
Talvez seja tão isenta de sentido como tudo o mais. Aposto, no entanto, que
não é esse o caso e que faz um milhão de vezes mais sentido do que
qualquer porra cá em baixo. Ou não? Poderá ser apenas um faz-de-conta
que parece qualquer outra coisa mas não é? Talvez não passe tudo de um
tique genético. Ou de um loque. Imaginem se as gralhas estivessem no
poder. Seria a mesma merda de sempre? O que têm de especial é que nelas
tudo é prático. No voo. No falar. Até na cor. Todo aquele negrume. Nada
senão negrume. Talvez eu tenha sido uma gralha, talvez não tenha sido.
Penso que às vezes tenho a certeza de que já o sou. Sim, há meses que
acredito, ínterrníicntemente, nisso. Por que não? Se há homens que estão
fechados em corpos de mulheres e mulheres que estão fechadas em corpos
de homens, por que não posso eu ser uma gralha fechada neste corpo? Sim,
e onde está o médico que me vai fazer o que eles fazem para me deixar
sair? Onde conseguirei a cirurgia que me permita ser o que sou? Com quem
devo Ltlar? Aonde tenho de ir, o que faço e corno saio, porra?
Sou uma gralha. Sei que sou. Sei que sou!
Mas só isso. Ficou por aí. Três noites mais tarde, poucos minutos depois
de ter apagado a luz, levantou-se da cama e, recuperada a serenidade,
dirigiu-se à secretária para amarrotar, deitar fora e esquecer para sempre a
folha de papel com as palavras -Toda a gente sabe". Em vez disso, porém,
inclinou-se para a secretária, sem mesmo se sentar — receando perder de
novo a coragem no tempo que levasse a sentar-se -, e escreveu de jacto mais
treze palavras que chegariam para ele ficar a saber que a denúncia estava
iminente. O sobrescrito foi endereçado, estampílhado e, depois de metido lá
dentro o bilhete anónimo, fechado, e a luz da secretária apagada. Aliviada
por ter optado decisivamente pelo procedimento mais eficaz dentro dos
limites práticos da sua situação, voltou para a cama, moralmente preparada
para dormir tranquila.
Mas primeiro teve de dominar tudo quanto a impelia a voltar à secretária,
abrir o sobresc.rito e reler o que tinha escrito, para ver se dissera pouco ou
em tom demasiado fraco- ou, pelo contrário, demasiado estridente. Claro
que aquela não era a sua retórica. Nem podia ser. Por isso mesmo a
empregara, por ser espalhafatosa de mais, vulgar de mais, a puxar de mais
para o slogan para ser relacionada com ela. Mas, precisamente por essa
razão, talvez a mensagem não tivesse sido bem avaliada, talvez fosse
inconvincente. Tinha de se levantar para verificar se se lembrara de
disfarçar a letra, para ver se, inadvertidamente, na cegueira do momento, se
esquecera e, num floreado colérico, assinara o seu nome. Tinha de verificar
se revelara de alguma maneira, impensadamente, quem era. E se tivesse
revelado? Devia assinar o seu nome. Toda a sua vida fora um combate para
não se deixar intimidar pelos Coleman Silk deste mundo, que se aproveitam
dos seus privilégios para oprimirem toda a gente e fazerem o que muito
bem lhes agrada, Falar claro aos homens, Dar-lhes réplica, Até a homens
muito mais velhos, Aprender a não ter medo da sua suposta autoridade ou
das suas sábias pretensões, Capacitar-se de que a inteligência dela contava,
Ousar considerar-se igual a eles, Aprender a vencer o desejo de capitular
quando apresentava um argumento que não funcionava, aprender a recorrer
à lógica, à confiança e à serenidade para continuar a argumentar, ignorando
fosse o que fosse que eles fizessem ou dissessem para a calar. Aprender a
insistir, a perseverar no esforço em vez de se render, de sucumbir, Aprender
a defender o seu ponto de vista sem recuar. Ela não tinha de se submeter a
ele, não tinha de se submeter a ninguém. Ele já não era o reitor que a
contratara. Nem o presidente do departamento. A presidente era ela. Agora
o reitor Silk não era nada. Devia, realmente, abrir aquele sobrescrito e
assinar o seu nome. Ele não era nada. A palavra tinha todo o conforto de um
mantra: nada.
Andou semanas a fio com o sobrescrito fechado na mala de mão,
recapitulando as suas razões não apenas para o enviar mas também para ir
em frente e assinar o que escrevera, Ele decide-se por uma mulher
destroçada que não tem possibilidade de lhe fazer frente, Que não pode, de
modo algum, competir com ele. Que intelectualmente nem sequer existe,
Decide-se por uma mulher que nunca se defendeu, que é incapaz de se
defender, uma mulher tão fraca que não deve haver no mundo outra de
quem seja mais fácil tirar proveito, tão radicalmente inferior a ele em todos
os aspectos possíveis e imaginários, e decide-se por ela pelo mais
transparente dos motivos antitéticos: porque considera todas as mulheres
inferiores e porque tem medo de qualquer mulher que tenha cérebro, Porque
eu penso pela minha cabeça, porque não permito que me intimidem, porque
sou bem-sucedida, porque sou atraente, porque tenho espírito independente,
porque tive uma educação de primeira, porque tenho um diploma de
primeira...
E depois, em Nova Iorque, aonde fora um sábado para ver a exposição de
Pollock, tirou o sobrescrito da mala de mão e quase meteu a carta de
dezassete palavras e sem assinatura numa caixa de correio do edifício da
Administração Portuária, a primeira caixa de correio que viu depois de
descer do autocarro de Bonanza. Ainda a tinha na mão quando chegou ao
metro, mas quando o comboio começou a andar esqueceu-se da carta,
voltou a metê-la na mala e deixou todo o significado do metro apoderar-se
dela. O metro de Nova Iorque continuava a assombrá-la e a excitá-la.
Quando estava no Métro, em Paris, nunca pensava nisso, mas a angústia
melancólica dos passageiros do metropolitano de Nova Iorque nunca
deixava de lhe devolver a certeza de que a sua decisão de vir para a
América fora acertada, O metropolitano de Nova Iorque era o símbolo do
motivo por que viera: a sua recusa de fugir da realidade.
A exposição de Pollock exercera sobre ela um impacte emocional tão
grande que, ao passar de um admirável quadro para o seguinte, sentia algo
semelhante à crescente e clamorosa sensação que é o furor erótico. Quando
o telemóvel de uma mulher tocou, de súbito, no momento em que todo o
caos do quadro íntitulado Number IA, 1948 invadia desvaíradamente o
espaço que antes, nesse dia — antes, nesse ano -, nada mais fora do que o
seu corpo, ficou tão furiosa que se voltou e exclamou: "Minha senhora,
apetecia-me esganá-Ia!"
Depois foi à Biblioteca Pública de Nova Iorque, na 42th Street, Fazia
sempre isso, em Nova Iorque. Ia aos museus, às galerias, a concertos, via os
filmes que jamais chegariam ao único miserável cinema da provinciana
Athena, e, no fim, fossem quais fossem as coisas específicas que a tinham
levado a Nova Iorque, passava cerca de uma hora a ler o livro que trouxera
consigo, sentada na sala de leitura principal da biblioteca.
Lê. Olha em redor. Observa. Tem fugazes paixonetas pelos homens
presentes. Em Paris tinha visto o filme O Homem da Maratona num dos
festivais. (Ninguém sabe que, no cinema, é uma terrível sentimental e chora
com frequência.) Em O Homem da Maratona, a personagem, a falsa
estudante, anda pela Biblioteca Pública de Nova Iorque e é engatada por
Dustin Hoffman, e por isso é a essa luz romântica que sempre pensa na
biblioteca. Até agora, no entanto, ninguém lá a engatou, a não ser um
estudante de medicina demasiado jovem, demasiado ínexperiente e que
disse logo o que não devia dizer. Abriu a boca e disse qualquer coisa a
respeito do seu sotaque, e ela achou-o insuportável. Um rapaz que ainda
não vivera, sequer, e a fez sentir-se uma avó, Com a idade dele, já passara
por tantos casos amorosos tanto pensar e repensar, tantos níveis de
sofrimento — aos 20 anos, bas, tante mais nova do que ele, já tivera a sua
grande história de amor, não uma vez, mas duas. Em parte, fora para a
América para fugir da sua história de amor (e, também, para fazer a sua
saída do papel de figurante do drama há muito tempo em cena — intitulado
Ele. — que era a vida quase criminosamente coroada de êxitos da sua mãe).
Mas agora sente-se só, ah, tão só, na sua difícil busca de um homem a quem
se ligar.
Outros, quando tentam engatá-la, dizem algumas vezes coisas muito
aceitáveis e, outras vezes, coisas tão irónicas ou tão maliciosas que
conseguem ser encantadoras, mas depois — porque de perto ela é mais
bonita do que lhes pareceu e, para uma pessoa tão pequena, um pouco mais
arrogante do que porventura esperavam — sentem-se intimidados e batem
em retirada. Os que estabelecem contacto ocular com ela são, regra geral,
aqueles de quem não gosta. E os que estão perdidos nos seus livros, que
estão encantadoramente absortos e são encantadoramente desejáveis,
esses... bem, esses estão perdidos nos seus livros. Quem procura ela?
Procura o homem que a reconheça. Procura o Grande Reconhecedor.
Hoje está a ler, em francês, um livro de Julia Kristeva, um dos mais
maravilhosos trabalhos sobre melancolia alguma vez escritos, e, na mesa ao
lado, vê um homem a ler — imaginem! — um livro em francês escrito pelo
marido de Julia Kristeva, Philippe Sollers. Sollers é um escritor cuja
jocosidade presentemente se recusa a tomar a sério, apesar do muito que o
tomou a sério numa fase anterior do seu desenvolvimento intelectual; os
escritores franceses divertidos, ao contrário dos escritores leste-europeus
divertidos, como Kundera, deixaram de a satisfazer... mas na Biblioteca
Pública de Nova Iorque a questão não é essa. A questão é a coincidência,
uma coincidência quase sinistra. No seu estado de forte desejo e
desassossego, lança-se em mil especulações acerca do homem que lê
Sollers enquanto ela lê Kristeva e sente a iminência não apenas de um
engate, mas de uma ligação. Sabe que aquele homem de cabelo escuro e 40
ou 42 anos possui o tipo exacto de gravidade que ela não pode encontrar em
ninguém de Athena. O que consegue inferir do modo sereno como está
sentado a ler aumenta-lhe a esperança de que está prestes a acontecer
alguma coisa.
E acontece, de facto: vem ter com ele uma rapariga, sem sombra de
dúvida uma rapariga, mais nova ainda do que ela, e os dois partem juntos. E
Delphíne pega nas suas coisas, sai da biblioteca e, ao ver a primeira caixa
de correio, tira a carta da mala -- a carta que lá trazia há mais de um mês —
e mete-a na caixa com algo semelhante à fúria com que disse à mulher, na
exposição de Pollock, que lhe apetecia esganá-la. Pronto! Foi-se! Enviei-a!
Óptimo!
Passam pelo menos cinco segundos antes de a consciência avassaladora
da magnitude do disparate cometido se apoderar dela. Sente uma fraqueza
nos joelhos. "Oh, meu Deus" Mesmo não a tendo assinado, mesmo tendo
empregue uma retórica vulgar que não era a sua, a origem da carta não
constituiria mistério algum para alguém com uma fixação tão forte por ela
como Coleman Silk.
Agora ele nunca a deixaria em paz.
158
4.
QUE LOUCO A CONCEBEU...?
Depois daquele mês de Julho só voltei a ver Coleman vivo mais uma vez.
Pessoalmente, nunca me falou da visita à universidade nem do telefonema
que fez ao filho, Jeff da Associação de Estudantes. Tive conhecimento de
que esteve no campus, nesse dia, porque foi observado lá — por acaso, da
janela de um gabinete — pelo seu ex-colega Herb Keble, o qual, ao
terminar o discurso no funeral, referiu que tinha visto Coleman escondido,
encostado ao muro de North Hall, ocultando-se aparentemente por razões
sobre as quais ele só podia espccular. Soube do telefonema porque Jeff Silk,
com quem falei depois do funeral, mencionou qualquer coisa a esse
respeito, o bastante para eu perceber que Coleman perdera por completo o
controlo da conversa telefónica. Foi por Nelson Primus, em pessoa, que
fiquei a saber da visita que Coleman fizera ao escritório do advogado nesse
mesmo dia, horas antes de ter telefonado a Jeff e que terminara, como o
telefonema, com Coleman a soltar vitupéríos indignados. Depois disso, nem
Primus nem Jeff Silk voltaram a falar com Coleman, que não respondia às
suas chamadas nem às minhas — vim a saber que não respondia às de
ninguém. Parece que desligou o gravador, pois em breve o telefone tocava
apenas interminavelmente, quando eu tentava comunicar com ele.
Mas estava lá em casa sozinho, não se tinha ido embora. Soube que
estava porque, ao fim de duas semanas a ligar-lhe em vão, num sábado do
princípio de Agosto resolvi meter-me no carro e ir até lá verificar, depois de
escurecer. Estavam apenas algumas lâmpadas acesas, quando estacionei ao
lado dos enormes ramos dos seus velhos bordos, desliguei o motor e fiquei
imóvel no carro, na estrada alcatroada ao fundo do relvado ondulante, e
ouvi o som de música de dança sair pelas janelas abertas da casa de tábuas
brancas e postigos pretos, o programa das noites de sábado, em FM, que o
transportava ao tempo de Steena Palsson e ao quarto na cave de Sullivan
Street, logo depois da guerra. Encontra-se lá agora sozinho com Faunia,
cada um a proteger o outro de todos os outros — cada um abrangendo, para
o outro, todos os outros. Ali dançam, muito provavelmente despidos, ao
abrigo das provações terrenas, num paraíso extramundano de luxúria muito
deste mundo, no qual o seu acasalamento é o drama onde decantam todo o
furioso desencanto das suas vidas. Lembro-me de uma coisa que ele me
contara ter-lhe Faunia dito no resplendor crepuscular de uma das suas
noites, quando tanto parecia estar a passar-se entre eles. Ele dissera-lhe:
"Isto é mais do que sexo", e ela respondera, redondamente: "Não, não é. Tu
é que te esqueceste do que o sexo é. Isto é sexo. Sexo puro. Não lixes tudo
fingindo que é outra coisa."
Quem são eles agora? A versão mais simples possível de si mesmos. A
essência da singularidade. Tudo quanto é doloroso cristalizado em paixão.
Podem até já não lamentar que as coisas não sejam diferentes, Estão por de
mais entrincheirados na indignação para se preocuparem com isso, Saíram
de baixo de tudo quanto jamais se acumulou sobre eles, Nada na vida os
tenta, nada na vida os excita, nada na vida mitiga o seu ódio pela vida como
esta intimidade. Quem são estas pessoas radicalmente desiguais, tão
incongruentemente aliadas ali aos 71 e 34 anos? São a tragédia para a qual
foram intimadas, Ao ritmo da banda de Tommy Dorsay e ao som da voz
doce do jovem Sinatra, caminham, dançando completamente nus, para uma
morte violenta, todos neste mundo encenam um fim diferente, cada qual à
sua maneira, Esta é a maneira deles, Agora já não é possível deterem-se a
tempo, Não há volta; está decidido.
Não sou o único a escutar a música, da estrada,
Parecia sereno, mas isso era impostura. Tomou a sua decisão. Usaria o
carro. Acabaria com todos, incluindo ele próprio. Ao longo do rio, iria
direito a eles, na mesma faixa de rodagem, na faixa deles, na curva onde o
rio vira.
Tomou a sua decisão. Não tem nada a perder e tem tudo a ganhar. Não se
trata de uma questão de se: se aquilo acontecer, ou se eu vir isto, ou se eu
pensar isto, faço-o; caso contrário, não faço. Tomou a sua decisão tão
definitivamente que já nem pensa. Está numa missão suicida e,
interiormente, numa agitação incontrolável. Não há palavras. Não há
pensamentos. É só ver, ouvir, saborear, cheirar: é fúria, é adrenalina e é
resignação. Não estamos no Vietname. Estamos para além do Vietname.
(Internado de novo na ADMINISTRAÇÃO DOS VETERANOS um ano
depois, tenta explicar à psicóloga, em inglês simples, este puro estado de
alguma coisa que é nada. De qualquer modo, é tudo confidencial. Ela é
médica. Há a ética clínica. Fica tudo rigorosamente entre os dois. "Em que
estava a pensar?" "Não pensava" "Tinha de estar a pensar em alguma
coisa." "Em nada. "Em que altura entrou na sua camioneta?" "Depois de
escurecer" "Tinha jantado?" "Não tinha jantado" "Por que pensou que ia
meter-se na camioneta. "Eu sabia porquê" "Sabia aonde ia. -Apanhã-lo., -
Apanhar quem?" "O judeu. O professor judeu" "Por que ia fazer isso?"
"Para o apanhar" "Porque tinha de o fazer?" "Porque tinha de o fazer"
"Tinha de o fazer porquê?" - Kenny. "Ia matá-lo" -Oh, sim. Ia matar-nos a
todos" "Nesse caso, foi planeado" "Não houve planeamento" "Sabia o que
estava a fazer" "Sabia .• "Mas não o planeou" "Não." "Pensou que estava de
novo no Vietname?" "Não havia Vietname" "Teve uma retrospecção?"
"Não, nenhuma" "Pensou que estava na selva?"Não" "Pensou que se
sentiria melhor?" "Não senti nada" "Estava a pensar nas crianças? Tratava-
se de retaliação?" "Não era retaliação" "Tem a certeza?" "Não era
retaliação" -Disse -me que essa mulher matou os seus filhos, "um broche",
disse-me, "matou os meus filhos".
Não estava a tentar vingar-se disso?" "Não foi vingança" "Estava
deprimido?" "Não, não estava deprimido. "Saiu para matar duas pessoas, e
a si mesmo, e não estava furioso?" "Não, a fúria passara. "você meteu-se na
sua camioneta, sabia onde eles estavam e lançou-se contra os faróis
dianteiros do carro deles. E pretende dizer-me que não estava a tentar matá-
los" ,Eu não os matei" "Quem os matou?" "Eles mataram-se."
Conduz, apenas. É só isso que faz. Planeia e não planeia. Sabe e não
sabe. Os outros faróis vêm na sua direcção e depois desaparecem. Não
houve colisão? Pronto, não houve colisâo. Depois de eles guinarem para
fora da estrada, muda de faixa e continua a conduzir. L.imita-se a conduzir.
Na manhã seguinte, quando espera com a brigada da estrada para Iniciar o
trabalho, ouve falar do que aconteceu na garagem municipal. Os outros
trabalhadores já sabem.
Como não houve colisão, ele, apesar de ter uma vaga ideia do sucedido,
não conhece os pormenores e, quando chega a casa e sai da camioneta, não
tem a certeza do que acconteceu. Um grande dia para ele. 11 de Novembro.
Dia dos Ex-Combatentes. Nessa manhã sai com Louie, nessa manhã vai ver
o Muro; nessa tarde regressa a casa depois de ver o Muro; nessa noite sai
para matar toda a gente. Matou? Não pode saber, em virtude de não ter
havido colisão, mas não deixa de ser um grande dia do ponto de vista
terapêutico, a segunda metade mais terapêutica do que a primeira. Agora
alcançou uma serenidade genuína. Agora Kenny pode falar com ele. Estava
a disparar ao lado de Kenny, ambos em rogo automático total, quando
Hector, o chefe da equipa, ordena: "Peguem nas vossas coisas e toca a andar
daqui para fora!" E, de súbito, Kenny está morto. Assim, de repente. Num
monte qualquer. Sob ataque, batendo em retirada ... e Kenny está morto.
Não pode ser. O seu parceiro, um rapaz do campo como ele, com os
mesmos antecedentes, exceptuando o Missouri, iam explorar juntos uma
herdade leiteira. Um tipo que aos 6 anos vira o pai morrer, vira a mãe
morrer aos 9 e, depois disso, fora criado por um tio que amava e de quem
estava sempre a falar, um industrial leiteiro bem-sucedido, com uma
exploração de bom tamanho — cento e oitenta vacas leiteiras, doze
máquinas que ordenhavam seis vacas de cada vez ... E de repente a cabeça
de Kenny desapareceu e ele está morto.
Agora Les tem a impressão de que está a comunicar com o amigo.
Mostrou a Kenny que ele não tinha sido esquecido. Kenny queria que ele
fizesse aquilo, e ele fez. Agora sabe que aquilo que fez — embora não
tenha a certeza do que foi — o fez por Kenny. Mesmo que tenha morto
alguém e seja preso, não tem importância — não pode ter importância,
porque ele está morto. Aquilo foi apenas uma última coisa que tinha de
fazer por Kenny. Acertou as contas com ele. Sabe que agora está tudo bem
com Kenny.
"Fui ao Muro, o nome dele estava lá e fez-se silêncio. Esperei, esperei,
esperei. Olhei para ele e ele olhou para mim. Não ouvi nada, não senti nada,
e foi assim que soube que não estava tudo bem com ele. Faltava fazer
alguma coisa. Não sabia o que era. Mas ele não me deixaria assim, sem
mais nada. Era por isso que não havia nenhuma mensagem para mim.
Porque eu ainda tinha de fazer mais por Kenny. Agora? Agora Kenny está
bem. Agora pode descansar, "E você ainda está morto?" "É parva ou quê?
Não vale a pena falar consigo, sua parva! Eu fiz aquilo porque estou
morto".
A primeira coisa que ouve na manhã seguinte, na garagem, é que ela
estava com o judeu quando houve um desastre de automóvel. Toda a gente
imagina que ela estava a chupá-lo, ele perdeu o controlo do carro, saíram da
estrada, rebentaram a barreira de protecção estamparam-se por ali abaixo,
de frente, na água pouco funda do rio. O judeu perdeu o controlo do carro.
Não, ele não associa isso ao que aconteceu a noite passada. Tinha saído
na camionete num estado de espírito completamente diferente.
— O que foi? — pergunta. — O que aconteceu. Quem a matou?
— O judeu. Saiu da estrada.
— Provavelmente ela estava a chupá-lo.
— É isso que dizem.
E ficou por aí. Também não sente nada a esse respeito. Ainda não sente
nada. A não ser o seu sofrimento. Por que sofre ele tanto com o que lhe
aconteceu quando ela podia continuar a chupar judeus velhos? Quem sofre
é ele, e agora ela sai de campo e livra-se tudo.
Pelo menos é isso que lhe parece, enquanto bebe o seu café matinal na
garagem da câmara.
Quando todos se levantam para se dirigirem para as camionetas, Les diz:
— Suponho que aquela música não voltará a sair daquela casa, nas noites
de sábado.
Embora, como às vezes acontece, ninguém perceba do que está ele a
falar, os colegas riem-se e o dia de trabalho começa.
Se ela se situasse na parte ocidental do Massachusetts, o anúncio poderia
ser relacionado com ela pelos seus colegas assinantes da New }6rk Review
of Books, sobretudo se descrevesse o seu aspecto físico e enumerasse os
seus títulos. Por outro lado, se não especificasse onde residia poderia acabar
sem uma única resposta de ninguém num raio de duzentos, trezentos ou,
até, quinhentos quilómetros. E considerando que, em todos os anúncios que
estudara na New York Review, a idade mencionada pelas mulheres
ultrapassava a sua ent quinze a trinta anos, como poderia revelar a sua idade
verdadeira — revelar-se inteira e correctamente — sem despertar a suspeita
de que devia estar a ocultar alguma coisa importante, ou alguma coisa
errada: o quê, uma mulher que alegava ser tão jovem, tão atraente, tão
dotada, achava necessário recorrer a um anúncio para arranjar um homem.
Se dissesse que era -ardente-, isso poderia ser imediatamente interpretado
pelos possuidores de mentalidade lasciva como uma provocação deliberada,
como significando que era "dissoluta" ou pior, e iriam chover na sua caixa
de correio da NYRB cartas de homens com os quais não queria ter nada.
Mas se transmitisse a impressão de que era uma sabichona para quem o
sexo tinha, decididamente, menos importância do que as suas actividades
académicas, eruditas e intelectuais, podia ter a certeza de que inspiraria
respostas de um tipo de homem pudico de mais para alguém tão apaixonado
quanto ela podia ser com um parceiro erótico no qual pudesse confiar. Se se
apresentasse como "bonita", estaria a associar- se a uma vaga categoria
abrangente de mulheres, mas se optasse por descrever-se, sem evasivas,
como "bela", se ousasse ser suficientemente franca para empregar a palavra
que nunca parecia extravagante aos seus amantes — que lhe tinham
chamado éblouissante como em "Éblouissante! Tu as un visage de chat"),
deslumbrante, entontecedora — ou se, por uma questão de precisão num
texto de apenas trinta, trinta e poucas palavras, referisse a semelhança,
referida por pessoas mais velhas do que ela, com Leslie Caron, que o seu
pai gostava sempre muito de alardear, então todos, a não ser algum
megalómano, poderiam sentir-se demasiado intimidados para a abordar ou
recusar-se a tomá-la a sério como intelectual. Se escrevesse "Uma
fotografia a acompanhar a carta será bem-vinda" ou, simplesmente,
"Fotografia, por favor", poderia arriscar-se a ser mal interpretada e a
deduzirem que apreciava o bom aspecto acima da inteligência, da erudição
e do requinte cultural. Além de que quaisquer fotografias que recebesse
podiam ter sido retocadas, terem sido tiradas há anos ou mesmo
completamente falsas. Pedir uma fotografia talvez desencorajasse, até, uma
resposta precisamente dos homens cujo interesse ela esperava despertar. No
entanto, se não pedisse uma fotografia arriscar-se-ia a viajar até Boston,
Nova Iorque ou ainda mais longe e dar consigo a jantar na companhia de
alguém inteiramente inadequado ou mesmo indesejável. E indesejável não
necessariamente apenas por causa do aspecto. E se fosse um mentiroso? E
se fosse um charlatão? E se fosse um psicopata? E se tivesse SIDA? E se
fosse violento, depravado, casado ou vivesse de um subsídio social? E se
fosse um excêntrico, alguém de quem não se conseguisse livrar? E se ela
indicasse o seu nome e o seu lugar de trabalho a um perseguidor furtivo?
No entanto, como poderia ocultar o seu nome num primeiro encontro?
Como poderia uma pessoa franca e honesta, em busca de um caso amoroso
apaixonado e sério que conduzisse ao casamento e à constituição de uma
família, Cono poderia alguém assim começar por mentir a respeito de uma
coisa tão fundamental como o seu nome? E quanto à raça? Não deveria
incluir também a amável declaração "A raça é indiferente"? Mas não era
indiferente; deveria ser, teria de ser, poderia ser não fora o fiasco em Paris,
quando tinha 17 anos, tê-la convencido de que um homem de outra raça era
um parceiro inexequível, porque irreconhecível.
Era jovem e temerária, não queria ser cautelosa, e ele pertencia a uma
boa família de Brazaville, era filho de um juiz do Supremo Tribunal- pelo
menos era o que dizia -, estava em Paris ao abrigo de um programa de
permuta, para estudar um ano em Nanterre.
Chamava-se Dominique e ela considerava-o colega espiritual no amor
pela literatura.
Conhecera-o numa das conferências de Milan Kundera. Ele conquistara-a
aí. Depois, cá fora continuaram encantados com as observações do escritor
sobre Madame Bovary contagiados, ambos, por aquilo que Delphine
considerava excitadamente "a doença Kundera-. Na opinião deles, o facto
de Kundera ser perseguido como escritor checo, de 5, alguém que perdera a
grande batalha histórica da Checoslováquia para se tornar li legitimava-o. A
sua jovialidade não lhes parecia frívola, de modo algum. Adoravam O Livro
Riso e do Esquecimento. Havia nele alguma coisa que inspirava confiança.
O s europeísmo oriental. A natureza inquieta do intelectual. O facto de tudo
parecer difícil par ele. Sentiam-se ambos conquistados pela modéstia de
Kundera, que era o oposto absoluto da atitude de superstar, e acreditavam
ambos no seu etos do pensamento e do sofrimento Todas aquelas
atribulações intelectuais. E havia também o seu aspecto. Delphine
sentiamuito fascinada com o físico poeticamente pugilístico do escritor, que
para ela era um sin exterior de tudo quanto colidia no interior dele.
Depois da conquista na conferência de Kundera, o caso tornou-se uma
experiência i teiramente física para Dominique, coisa que ela nunca
conhecera antes. Era inteiramen a respeito do seu corpo. Sintonizara-se de
mais com a conferência de Kundera, confundi essa sintonização com a que
tinha com Dominique e acontecera tudo muito depressa. Não havia nada
além do seu corpo. Dominique não compreendia que ela não queria apenas
isso. Ela desejava ser alguma coisa mais do que um pedaço de carne num
espeto, que se vira e regava. Era isso que ele fazia, eram até essas as
palavras que ele usava: virá-la e regá-la. Não estava interessado em mais
nada, e muito menos em literatura. Solta-te e cala-te, era a sua atitude para
com ela, uma atitude na qual ela se deixara de certo modo aprisionar, até á
terrível noite em que chega ao quarto dele e o encontra à sua espera com um
amigo. Não se trata, agora, de ter preconceitos, mas apenas de se ter dado
conta de que não se teria enganado tanto com um homem da sua raça. Esse
foi o seu pior fracasso e nunca conseguiu esquecê-lo. A redenção só
chegara com o professor que lhe tinha dado o seu anel romano. Sexo, sim,
sexo maravilhoso, mas sexo com metafísica. Sexo com metafísica com um
homem com gravidade e sem vaidade. Alguém como Kundera. O plano é
esse.
O problema com que se defrontava, ali sentada sozinha ao computador
muito depois de ter escurecido — a única pessoa que ainda se encontrava
em Barton Hall -, incapaz de sair do seu gabinete e, também, de suportar
mais uma noite, que fosse, no seu apartamento sem ter sequer um gato por
companhia, o problema era como incluir no seu anúncio, aínda que do
modo mais subtilmente codificado possível, alguma coisa que,
essencialmente, significasse: "Só devem responder brancos." Se em Athena
descobrissem que fora ela que especificara essa exclusão ... não, isso seria
impensável numa pessoa que subira tão depressa na hierarquia académica
da universidade. Não podia, no entanto, deixar de pedir uma fotografia,
embora soubesse — graças ao esforço constante para tentar o mais possível
pensar em tudo e não ser ingénua a respeito de nada, para, apesar da sua
breve vida de mulher entregue a si mesma, ter sempre em conta o modo
como os homens podiam comportarse — que nada impediria alguém
suficientemente sádico ou perverso de enviar uma fotografia
especificamente destinada a enganar na questão da raça.
Não, em definitivo, era arriscado de mais — além de indigno dela — pôr
um anúncio para .a ajudar a conhecer um homem de um calibre que jamais
encontrara entre os membros da faculdade de um lugar tão atrozmente
provinciano como Athena. Não podia nem devia fazê-lo, e contudo, ao
mesmo tempo que pensava nas incertezas, nos verdadeiros perigos de se
anunciar a desconhecidos como uma mulher em busca de um companheiro
adequado, pensava também na imprudência de, como presidente do
Departamento de Línguas e Literatura, correr o risco de revelar aos colegas
outra faceta que não a de professora, da intelectual séria, de se expor como
alguém com necessidades e desejos que, embora absolutamente humanos,
poderiam ser deliberadamente deturpados com o intuito de a banalizar.
Depois de enviar por correio electrónico, a cada um dos membros do seu
departamento, as suas últimas ideias a respeito das teses dos estudantes do
último ano, estava a tentar compor um anúncio conforme com a fórmula
linguística banal do padrão de anúncios pessoais daNew York Review, mas
que permitisse também fazer uma avaliação real do valor dela. Há mais de
uma hora que tentava, mas continuava incapaz de encontrar um modelo que
não fosse humilhante, mesmo enviado por correio electrónico e sob
pseudónimo.
Dois funerais.
De: c1ytemnestra@houseofatreus.com
Para: díscussão.fac
Assunto: morte de uma faunia
Data: quinta-feira, 12 Nov. 1998
Não fui além disto. A minha intenção era esperar que eles partissem,
ligar para o College Arms e extrair do recepcionista, mediante um pretexto
qualquer, o nome e a morada do homem, a fim de lhe enviar a minha carta
pelo correio. Se não conseguisse obter o endereço no hotel, pedi-lo-ia a
Sally e Peg. Mas, na realidade, acabaria por não fazer uma coisa nem outra.
O que quer que Faunia tivesse deixado no seu quarto já fora deitado fora ou
destruído por Sylvia — do mesmo modo que a minha carta seria destruída
quando chegasse ao destino. Aquela criatura franzina, cujo objectivo era
impedir o passado de atormentar mais o pai de Faunia, nunca deixaria entrar
em casa dele o que não permitira quando se defrontara comigo cara a cara.
Além disso, eu não podia contestar a sua atitude. Se naquela família o
sofrimento se transmitia como uma doença, não havia nada a fazer se não
colocar um aviso do género do que costumavam pendurar nas portas dos
doentes contagiosos quando eu era pequeno, um aviso onde se lia a palavra
QUARENTENA ou que mostrava aos olhos dos não infectados um simples,
grande e negro Q maiúsculo. A franzina Sylvia era esse sinistro Q e não
havia qualquer possibilidade de eu conseguir ultrapassá-lo.
Rasguei o que escrevera e atravessei a cidade a pé para assistir ao
funeral.
T)
11. As Três Gordas. (N. T.)
12. É um solidéu, como a quipá, mas usado sobretudo pelos judeus
ortodoxos, homens ou rapazes. (N. T.)