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A Mancha Humana

Philip Roth
Sinopse
Durante o turbulento Verão do escândalo Lewinsky, Coleman Silk,
decano universitário, vê a sua reputação e a sua carreira arruinadas por
proferir uma expressão pouco afortunada num momento inoportuno. Como
nma nova caça às bruxas, a febre do politicamente correctodesata
consequências devastadoras.Mas a verdade sobre Silk não é a escandalosa
relação que mantém com a misteriosa Faunia, que tem menos de metade da
sua idadem nem o seu alegado racismo e misoginia, mas um segredo que
não conheceu nem a sua mulher, nem os seus quatro filhos, nem os seus
colegas, nem os seus amigos. Coleman ver-se-á forçado a mostrar a sua
autêntica identidade antes que seja tarde de mais...
Ficha Técnica
Título do original: The Human Stain
Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues
(c)2000, Philip Roth
(c) 2004, Publicações Dom Quixote
Tradução cedida por Publicações Dom Quixote, Leya.
(c) 2008, desta edição, (sic) idea y creación editorial, s.l Design de capa,
Sebastián Uribc

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alem do uso legal como breve citação em artigos e críticas — sem prévia e
expressa autorização do editor.
Para M. R.
ÉDIPO
o que é o ritual de purificação?
Como deve ser feito?

CREONTE
Pelo banimento de um homem ou pela expiação de sangue por sangue.

SÓFOCLES, Édipo Rei


1.
TODA A GENTE SABE

Foi no Verão de 1998 que o meu vizinho Coleman Silk — que, antes de
se reformar dois anos atrás, fora professor de estudos clássicos no Athena
College durante vinte e tal anos, além de ter servido dezasseis como reitor
da faculdade — me confidenciou que, aos 71, tinha um caso com uma
empregada de limpeza de 34, que trabalhava na universidade. Duas vezes
por semana também fazia a limpeza do posto dos correios rural, uma
pequena construção de madeira que poderia ter abrigado uma família Okie
dos ventos da Dust Bowl(1) nos anos 30 e que, solitária e desamparada
defronte da estação de serviço e do armazém-geral, hasteia a bandeira
americana no cruzamento das duas estradas que assinalam o centro
comercial desta cidade da encosta da montanha.
Coleman vira-a pela primeira vez a lavar o chão do posto dos correios
quando lá fora ao fim de um dia, poucos minutos antes da hora de
encerramento, buscar a sua correspondência. Era uma mulher alta, magra e
angulosa, com o cabelo louro a encanecer puxado para trás e preso num
rabo-de-cavalo e o género de feições duramente vincadas que costumamos
relacionar com as donas de casa dominadas pela igreja e sobrecarregadas de
trabalho que sofreram as agruras dos duros primeiros tempos da Nova
Inglaterra, colonas austeras, tolhidas pela moral vigente e obedecendo-lhe.
Chamava-se Faunia Farley e, fossem quais fossem os sofrimentos que
suportava, escondia-os atrás de um daqueles inexpressivos rostos ossudos
que não escondem nada e denunciam uma imensa solidão. Vivia num
quarto numa herdade leiteira local, onde ajudava na ordenha para pagar a
renda. Frequentara a escola secundária durante dois anos.
O Verão em que Coleman me fez a confidência acerca de Faunia Farley e
do segredo de ambos foi, por curiosa coincidência, aquele em que o segredo
de Clinton se tornou conhecido nos mais ínfimos e mortificantes
pormenores — nos mais ínfimos pormenores reais que tanto a realidade
como a mortificação supuravam da pungência dos dados específicos. Não
tínhamos uma estação assim desde que alguém descobrira, por acaso, a
nova Miss América nua num número antigo da Penthouse, em fotografias
que a mostravam em elegantes poses de joelhos e de costas e tinham
forçado a jovem a abdicar da coroa e tornar-se uma grande estrela pop. O
Verão de 98 foi, em Nova Inglaterra, um Verão de calor e sol intensos; no
basebol, um Verão de combate mítico entre um deus do homem que era
branco e outro que era acastanhado, e na América o Verão foi caracterizado
por um enorme regabofe de devoção, um regabofe de virtude, quando ao
terrorismo, que destronara o comunismo como ameaça predominante à
segurança do país, sucedeu o brochismo e um presidente viril, vigoroso e de
meia-idade e uma impetuosa e enfeitiçada funcionária de 21 anos,
desaforados no Salão Oval como dois putos adolescentes num parque de
estacionamento, ressuscitaram a mais antiga paixão comunal da América,
historicamente talvez, até, o seu prazer mais pérfido e subversivo: o êxtase
da beatice hipócrita. No Congresso, na imprensa e nas televisões os
farisaicos paladinos encartados da moral e dos bons costumes, sôfregos por
censurar, deplorar e punir, apareciam em todo o lado numa estridente
campanha moralizadora: todos eles num furor deliberado e com aquilo que
Hawthorne (que, na década de 1860, morava a relativamente poucos
quilómetros da minha porta) identificou, no país incipiente de há muito
tempo, como "o espírito persecutório -, todos eles ansiosos por porem em
prática os cáusticos rituais de purificação que excisariam a erecção do ramo
executivo, tornando assim as coisas suficientemente cómodas e seguras
para que a filha de 10 anos do senador Lieberman pudesse voltar a ver
televisão com o seu embaraçado papá. Não, quem não viveu no ano de 1998
não sabe o que é a indignação hipócrita. O colunista conservador William F.
Buckley escreveu: "Quando Abelardo o fez, foi possível impedir que
voltasse a acontecer", insinuando assim que a prevaricação do presidente --
aquilo a que, noutro lugar, Buckley chamou a carnalidade incontinente" de
Clinton — poderia ser mais justamente punida com algo que não fosse tão
incruento como a impugnação, mas, antes, com o castigo do século XII
aplicado ao cónego Abelardo pelos companheiros de faca em punho do
colega eclesiástico daquele, o cónego Fulberto, por ter seduzido e casado
secretamente com a sobrinha deste, a virgem Heloísa. Ao contrário da fattua
de Khomeíní que condenou Salman Rushdie à morte, o desejo ardente de
Buckley pelo castigo correctivo da castração não era acompanhado de
nenhum incentivo financeiro para qualquer provável perpetrador. Inspirava-
o, no entanto, um espírito não menos implacável do que o do aiatola e era
reclamado em nome de ideais não menos exaltados. Foi o Verão da América
em que a náusea regressou, em que as chalaças não pararam, em que a
especulação, a teorização e a hípérbole não pararam, em que a obrigação
moral de explicar aos filhos a vida adulta foi revogada pela vontade de lhes
conservar todas as ilusões a respeito da vida adulta, em que a pequenez das
pessoas era simplesmente esmagadora, em que um demónio qualquer fora
largado à solta na nação e, em ambos os lados, as pessoas perguntavam:
"Por que somos tão loucos?", em que tanto homens como mulheres, ao
acordarem de manhã, descobriam que durante a noite, num estado de sono
que os transportava para além de toda a repugnância, tinham sonhado com a
impudência de Clinton. Eu próprio sonhei com uma bandeira gigantesca,
disposta em estilo dadaísta, como um "embrulho" de Christo, de um
extremo ao outro da Casa Branca, com a legenda: VIVE AQUI UM SER
HUMANO. Foi o Verão em que, pela mílésima milionésima vez, a bagunça,
o caos e a confusão demonstraram ser mais subtis do que a ideologia deste e
a moralidade daquele. Foi o Verão em que o pénis de um presidente esteve
na cabeça de toda a gente e a vida, em toda a sua despudorada obscenidade,
confundiu uma vez mais a América.
Às vezes, ao sábado, Coleman Silk telefonava e convidava-me a meter-
me no carro e ir do meu lado da montanha a sua casa, depois do jantar, para
ouvir música, ou jogar, a um cêntimo por ponto, um pouco degin rummy, ou
sentar-me um par de horas na sua sala e emborcar um pouco de conhaque e
ajudá-lo a passar a que era sempre a sua pior noite da semana. No Verão de
1998 já ele ali estava sozinho — sozinho na grande e velha casa branca
revestida de tábuas sobrepostas onde criara quatro filhos com a sua mulher,
Iris — havia quase dois anos, desde que Iris tivera um acidente vascular e
morrera de um dia para o outro, enquanto Coleman estava em pleno
combate com a universidade por causa de uma acusação de racismo que lhe
fora feita por duas estudantes de uma das suas turmas.
Nessa altura, já passara na Athena quase toda a sua vida académica,
mostrando-se um extrovertido, arguto e energicamente afável sedutor de
cidade grande, com um pouco de guerreiro, um pouco de manipulador e
quase nada do prototípico professor pedante de Latim e Grego (como atesta
o Clube Coloquial de Grego e Latim que criou, hereticamente, quando
jovem professor auxiliar). O seu eminente curso panorâmico de literatura
antiga grega traduzida — conhecido por DHM: Deuses, Heróis e Mito —
era popular entre os estudantes precisamente graças a tudo quanto havia de
claro, franco e não academicamente enérgico no comportamento dele.
"Sabem como começou a literatura europeia?", perguntava, após ter feito a
chamada na primeira aula. "Com uma discussão. Toda a literatura europeia
nasce de uma briga. Depois pegava no seu exemplar da Ilíada e lia aos
estudantes os versos da introdução. "Divina Musa, cantai da desastrosa ira
de Aquiles ... Começai onde eles primeiro discutiram, Agamémnon, o rei
dos homens, e o grande Aquiles." E acerca de que discutem essas duas
violentas e poderosas criaturas? De uma coisa tão primitiva como uma rixa
de taberna. Discutem por causa de uma mulher. Uma rapariga, na verdade.
Uma rapariga roubada ao seu pai. Uma rapariga raptada numa guerra. Mia
kouri: assim é descrita no poema. Mia é, como no grego moderno, o artigo
indefinido uma; kouri, ou rapariga, evolui no grego moderno para kori, que
significa filha. Ora, Agamémnon prefere muito esta rapariga à.sua mulher,
Clitemenestra. "Clitemenestra não vale tanto como ela", diz:, "nem em rosto
nem em figura." Isso revela claramente por que não quer abrir mão dela,
não é verdade? Quando Aquiles exige que Agamémnon devolva a rapariga
ao pai a fim de apaziguar Apolo, o deus que está furiosamente zangado
devido às circunstâncias que rodearam o rapto, Agamémnon recusa: só
anuirá se Aquiles lhe der a rapariga dele em troca. voltando assim a
inflamar Aquiles. O adrenalínico Aquiles, o mais altamente inflamável dos
explosivos homens violentos que escritor algum jamais teve o prazer de
retratar, sobretudo quando estão em causa o seu prestígio e o seu apetite; a
máquina de matar mais hipersensível da história da guerra. O famoso
Aquiles: afastado e antagonizado por uma afronta à sua honra. Grande e
heróico Aquiles que, pela força da sua cólera perante um insulto — o
insulto de não conseguir a rapariga -, se isola e coloca desafiadoramente à
margem da própria sociedade da qual é o glorioso protector e que tão
enormemente precisa dele. Uma desavença, portanto, uma desavença brutal
por causa de uma jovem e do seu jovem corpo, das delícias da capacidade
sexual: é aí, para o bem ou para o mal, é nessa afronta ao direito fálico, à
dignidade fálica de um possante príncipe guerreiro, que começa a grande
literatura imaginativa da Europa, e é por isso que, quase três mil anos
depois, é por aí que hoje vamos começar..."
Quando foi contratado, Coleman fez parte de um punhado de professores
judeus da universidade e contou-se, talvez, entre os primeiros judeus a
quem foi permitido ensinar num departamento de estudos clássicos em
qualquer ponto da América; poucos anos antes, o único judeu da Athena
tinha sido E. I. Lonoff, o quase esquecido contista a quem eu próprio,
quando era um aprendiz recém-publicado e em apuros buscando
ansiosamente a caução de um mestre, fizera uma visita memorável. Durante
toda a década de 80 e entrando pela de 90, Coleman foi também o primeiro
e único judeu a trabalhar na universidade de Athena como reitor. Depois,
em 1995, tendo deixado de ser reitor para poder completar a sua carreira na
sala de aulas, voltou a ensinar dois dos seus cursos sob a égide do programa
combinado de línguas e literatura que incorporara o Departamento de
Estudos Clássicos e era dirigido pela professora Delphine Roux. Como
reitor, e com apoio total de um ambicioso novo presidente, Coleman pegara
numa instituição antiquada, estagnada e provinciana e, não sem mão
pesada, liquidara-a como clube de cavalheiros, encorajando insistentemente
os pesos mortos que faziam parte da velha guarda da faculdade a
procurarem obter a reforma antecipada, contratando jovens professores
ambiciosos e modificando radicalmente o currículo. É quase possível
afirmar, com toda a certeza, que se ele se tivesse aposentado sem incidentes
e no devido tempo, teria havido a publicação de escritos de homenagem,
teria sido instituído o Ciclo de Conferências Coleman Silk, teria havido
uma cadeira de estudos clássicos com o seu nome e talvez — dado o seu
papel importante na revitalização da universidade no século XX — o
edifício dos estudos humanísticos, ou até o Salão Norte, que era o ponto de
referência da instituição, tivessem mudado de nome, em sua honra, após o
seu falecimento. No pequeno mundo académico onde passara a maior parte
da sua vida, há muito que teria deixado de ser desaprovado ou controverso,
ou até temido, mas, ao invés, oficialmente exaltado para sempre.
Foi mais ou menos a meio do seu segundo semestre de novo como
professor a tempo inteiro que Coleman proferiu a palavra auto-
incriminadora que o levaria a cortar voluntariamente todos os laços com a
universidade — a única palavra auto-incriminadora dos muitos milhões
ditos em voz alta nos seus anos de ensino e administração na Athena e
aquela que, no entendimento dele, conduzira directamente à morte da sua
mulher.
A turma tinha catorze alunos. No início de várias das primeiras aulas,
Coleman fizera a chamada, a fim de decorar os nomes dos estudantes.
Como na quinta semana do semestre ainda havia dois nomes a que ninguém
respondia, na sexta semana Coleman iniciou a aula perguntando: "Alguém
conhece estas pessoas? Elas existem ou são "spooks(2)"?
Nesse mesmo dia, ficou cheio de espanto ao ser chamado pelo seu
sucessor, o novo reitor da faculdade, a fim de responder à acusação de
racismo apresentada contra ele pelas duas estudantes faltosas, que ficou a
saber serem negras e que, apesar de ausentes, tinham tomado rapidamente
conhecimento da frase em que ele levantara publicamente a questão da sua
ausência. Coleman explicou ao reitor: "Eu estava a referir-me à sua
natureza porventura ectoplásmica. Isso não é evidente? Essas duas
estudantes não tinham comparecido a uma única aula. Essa era a única coisa
que eu sabia a seu respeito. Usei a palavra no seu significado habitual e
principal: espectro ou fantasma. Não fazia a mínima ideia de qual seria a
sua cor. Soubera, talvez há uns cinquenta anos, mas esquecera-me
completamente disso, que se tratava de um termo odioso, por vezes
aplicado a negros. Caso contrário, e dado que sou absolutamente meticuloso
no tocante às susceptibilidades dos estudantes, jamais teria usado essa
palavra. Considere o contexto: Elas existem ou são fantasmas? A acusação
de racismo é espúria. É absurda. Os meus colegas sabem que é absurda e os
meus alunos sabem que é absurda. A questão, a única questão, é a ausência
dessas duas estudantes e a sua flagrante e indesculpável negligência quanto
ao estudo. O que considero exasperante é o facto de a acusação não ser
apenas falsa mas também espectacularmente falsa. Tendo dito o
estritamente suficiente em sua defesa e considerando o assunto encerrado,
foi para casa. Ora, ao que me consta, até comuns reitores, prestando serviço,
como prestam, numa terra-de-ninguém entre os professores e a
administração superior, arranjam invariavelmente inimigos. Nem sempre
concedem os aumentos de ordenado que lhes são pedidos, ou os tão
cobiçados lugares de estacionamento mais cómodos, ou os gabinetes
maiores a que os docentes se julgam com direito. Candidatos a nomeações
ou promoções, sobretudo em departamentos fracos, são normalmente
recusados, ete. Requerimentos departamentais para preenchimento de novos
lugares na faculdade e pessoal para secretariado são quase sempre
indeferidos, o mesmo acontecendo aos pedidos de redução de carga lectiva
e isenção de aulas de manhã cedo. Fundos para deslocações a conferências
académicas são regularmente negados, etc. Mas Coleman não tinha sido um
reitor comum e aqueles de quem se livrou, e como se livrou, aquilo que
aboliu e aquilo que instituiu, e o modo audacioso como desempenhou as
suas funções não obstante a tremenda resistência que se lhe deparava, tudo
isso se saldou em mais do que meras desfeitas ou ofensas a uns quantos
ingratos e descontentes avulsos. Sob a protecção de Pierce Roberts, o
elegante e eficaz jovem presidente de farta cabeleira que o nomeou para o
cargo de reitor — e lhe disse: "Não ser feitas mudanças e quem não se
sentir bem deve pensar em ir-se embora ou na aposentação antecipada" -,
Coleman virou tudo do avesso. Quando, oito anos depois, a meio da carreira
efectiva de Coleman, Roberts aceitou uma prestigiosa presidência das Dez
Grandes, isso deveu-se à reputação alcançada por tudo quanto tinha sido
realizado, em tempo recorde, na universidade de Athena — realizado,
porém, não pelo sedutor presidente, que era essencialmente um angariador
de fundos, que não sofreu nenhum dos embates e partiu de Athena louvado
e incólume, mas sim pelo seu determinado reitor.
Logo no seu primeiro mês como reitor, Coleman convidara todos os
membros da faculdade para uma conversa, incluindo vários professores
decanos oriundos de antigas famílias do condado que tinham fundado, e
inicialmente financiado, o estabelecimento, os quais não precisavam na
realidade do dinheiro, mas aceitavam de bom grado os seus honorários. Foi
pedido de antemão a cada um, ou cada uma, que trouxesse o seu c.v., e para
o caso de algum, ou alguma, o não levar por se sentir demasiado
importante, Coleman tinha-os à sua frente, na secretária. Manteve-os ali
durante uma boa hora, e algumas vezes mais, até que, tendo muito
persuasivamente feito ver que as coisas na universidade tinham, finalmente,
mudado, começara a fazê-los suar. Nem sequer hesitou em iniciar a
entrevista folheando o c.v. e dizendo: "O que andou afazer, exactamente,
nos últimos onze anos?! E quando lhe responderam, como aconteceu com
um número esmagador dos entrevistados, que tinham andado a publicar
regularmente na Athena Notes, quando ouviu mencionar, mais vezes do que
a sua paciência consentia, as dou tas ninharias filológicas, bibliográficas ou
arqueológicas que cada um deles seleccionava anualmente de uma antiga
tese de doutoramento para "publicação" na revista trimestral mimeografada,
com capa de cartolina cinzenta, que não se encontrava catalogada em lugar
algum da terra a não ser na biblioteca da universidade, constava que ousou
transgredir o código de civilidade de Athena, comentando: "Por outras
palavras, vocês reciclam o vosso próprio lixo" Depois não só encerrou a
Athenas Notes, devolvendo a insignificante doação ao doador — que era
sogro do redactor -, como também, para encorajar a aposentação
antecipada, retirou os mais mortos dos pesos mortos dos cursos que
andavam a ministrar rotineiramente há vinte ou trinta anos e transferiu-os
para o Inglês primeiranista, para panorama histórico e para o novo
programa de orientação primeiranista ministrados durante os últimos dias
quentes do Verão. Eliminou o mal-afamado Prémio do Investigador do Ano
e atribuiu os mil dólares a outra coisa. Pela primeira vez nos anais da
universidade, obrigou a apresentar candidaturas formais, com uma
descrição de projecto pormenorizada, para licença sabática paga, a qual a
maior parte das vezes era recusada. Livrou-se da sala de almoço, tipo clube,
da universidade, que alardeava o mais elegante dos interiores apainelados a
carvalho do campus, e reconverteu-a na sala de seminários dos melhores
estudantes, para que fora inicialmente destinada, obrigando o professorado
a comer na cafetaria com os alunos. Insistiu na realização de reuniões de
professores — o facto de nunca as fazer tornara o reitor que o antecedera
extremamente popular. Coleman encarregou o secretário da faculdade de
anotar as presenças, de modo que até as eminências com horários de três
horas por semana eram obrigadas a ir para o campus, a fim de se
mostrarem. Descobriu nos estatutos da universidade uma cláusula segundo
a qual não haveria comissões executivas e, com o argumento de que esses
ronceiros entraves à mudança séria tinham surgido apenas por convenção e
tradição, aboliu-as e passou a reger essas reuniões de professores por
marcação formal e aproveitando cada uma delas para anunciar o que ia
fazer a seguir e que não deixaria de gerar ainda mais ressentimento. Sob a
sua direcção as pro-moções tornaram-se difíceis, e esse foi, talvez, o maior
de todos os choques: as pessoas deixaram de ser promovidas
automaticamente por categoria, com base no facto de serem professores
populares, e não obtinham aumentos de ordenado que não decorressem do
mérito. Em resumo, introduziu a competição e tornou a universidade
competitiva, o que, como um dos primeiros inimigos observou, "é o que os
judeus fazem". E sempre que era constituída uma comissão ad hoc para ir
queixar-se a Pierce Roberts, o presidente apoiava infalivelmente Coleman.
No tempo de Roberts, todos os jovens brilhantes recrutados por ele
gostavam de Coleman, por causa do espaço que estava a arranjar para eles
e, também, dos bons elementos que começou a contratar, oriundos de
programas de licenciatura na Johns Hopkins, Yale e Cornell- "a revolução
da qualidade", como eles próprios gostavam de descrever o facto.
Apreciavam-no por tirar a elite dominante do seu pequeno clube e ameaçar
a sua auto-imagem, o que nunca deixa de enfurecer um professor pomposo.
Todos os indivíduos mais idosos que constituíam a parte mais fraca da
faculdade tinham sobrevivido de acordo com o que pensavam de si mesmos
— o maior especialista do século 100 a.c., e por aí fora -, mas, uma vez
contestados a partir de cima, a sua confiança foi-se corroendo, em poucos
anos, tinham desaparecido quase todos. Tempos excitantes! Mas depois de
Pierce Roberts sair para ocupar o grande cargo em Michigan e de Haines, o
novo presidente, lhe suceder sem nenhuma lealdade especial por Coleman
— e, ao contrário do seu antecessor, não sentir nenhuma tolerância especial
pelo género de vaidade arrasadora e ego autocrático que limpara o colégio
em tão curto espaço de tempo -, e à medida que as pessoas novas que
Coleman mantivera, assim como aquelas que contratara, se foram ornando
na faculdade veterana, começou a instalar-se uma reacção contra o reitor
Silk. Ele nunca se dera inteiramente conta de quanto essa reacção era forte
até começar a contar, departamento por departamento, todas as pessoas que
não pareciam de modo algum desagradadas com o facto de a palavra que o
velho reitor escolhera para caracterizar as suas duas aparentemente
inexistentes estudantes ser definível não apenas pelo primeiro significado
do dicionário, que ele afirmava ser, obviamente, o que pretendera, mas pelo
pejorativo significado racial que levara as suas duas jovens negras a
apresentar queixa.
Lembro-me muito bem desse dia de Abril de há dois anos em que Iris
Silk morreu e a insanidade se apoderou de Coleman. Além de uma
inclinação de cabeça a um ou outro ligando os nossos caminhos se
cruzavam no armazém-geral ou no posto dos correios, não conhecera
realmente os Silk, nem soubera grande coisa a respeito deles, antes dessa
ocasião. Não soubera, sequer, que Coleman crescera a uns nove ou dez
quilómetros de mim numa minúscula cidade de East Orange, em Essex
County, Newjersey, e que, tendo terminado o curso do liceu de East Orange
em 1944, me levara uns seis anos de avanço na escola de Newark da minha
área. Coleman não fizera esforço algum para travar conhecimento comigo,
nem eu saíra de Nova Iorque e me mudara para uma casa de madeira de
duas divisões, situada num campo afastado de uma estrada rural nos
Berkshire, para travar novos conhecimentos ou integrar-me numa nova
comunidade. Declinei cortesmente os convites que recebi nos primeiros
meses que ali passei, em 1993 — para um jantar, para tomar chá, para um
cocktail, para um estirão até à universidade, no vale, para um discurso
aberto ao público ou, se preferisse, falar informalmente numa aula de
literatura -, e depois disso tanto os vizinhos como a universidade deixaram-
me fazer o meu próprio trabalho em paz.
Mas naquela tarde de há dois anos, depois de tomar as providências
necessárias para o funeral de Iris, Coleman viera directamente de carro e
estava ao lado da minha casa, a bater à porta e a pedir para entrar. Embora
tivesse um pedido urgente para fazer, não conseguia ficar sentado mais de
trinta segundos e esclarecer do que se tratava. Levantava-se, sentava-se,
levantava-se de novo, andava às voltas na minha sala de trabalho, a falar
alto e muito depressa, chegando mesmo a agitar um punho ameaçador no ar
quando lhe parecia, erradamente, necessário usar a ênfase. Eu tinha de lhe
escrever qualquer coisa, quase me ordenou que o fizesse. Se fosse ele a
escrevera história em todo o seu absurdo, sem modificar nada, ninguém
acreditaria, ninguém a levaria a sério, as pessoas diriam que se tratava de
uma mentira ridícula, um exagero em benefício próprio, diriam que, como
se não bastasse ter proferido a palavra -spooks- numa sala de aula, também
tinha de mentir quanto à sua queda. Mas se eu a escrevesse, se um escritor
profissional a escrevesse ...
Todo o comedimento ruíra dentro dele e, por isso, observá-lo, ouvi-lo —
um homem que eu não conhecia, sem dúvida alguém com talento e
importância, mas agora completamente transtornado -, era como assistir a
um grave acidente de viação, a um incêndio ou a uma explosão assustadora,
a uma tragédia pública que hipnotiza tanto pela sua improbabilidade como
pelo seu carácter grotesco. A maneira como andava à toa pela sala
lembrava-me aqueles frangos que continuam a andar depois de degolados.
A sua cabeça tinha sido decepada, a cabeça que encerrava o cérebro culto
do outrora inatacável reitor e professor de estudos clássicos, e aquilo que eu
estava a ver era o resto amputado dele a girar descontrolado.
Eu, em cuja casa nunca antes entrara, cuja voz mal ouvira antes, tinha de
pôr de lado o que quer que estivesse a fazer e contar como os seus inimigos
de Athena, ao pretenderem atingi-lo, a .tinham derrubado a ela. Ao criarem
aquela falsa ideia a seu respeito, ao chamarem-lhe tudo o que ele não era e
nunca poderia ser, não tinham apenas falseado uma carreira profissional
conduzida com a máxima seriedade e dedicação: tinham morto a sua mulher
de mais de quarenta anos. Tinham-na morto como se houvessem feito
pontaria e disparado uma bala no seu coração. Eu tinha de escrever a
respeito deste "absurdo", daquele "absurdo": eu, que então não sabia nada
acerca das suas atribulações na universidade e não podia, sequer, elaborar
uma cronologia do horror que, durante cinco meses, o tinha atormentado, a
ele e à falecida Iris Silk: a imersão punitiva em reuniões, audições e
entrevistas, os documentos e as cartas apresentados a funcionários do
colégio, a comissões de professores, a um advogado negro pro bono
representante das duas estudantes... as acusações, os desmentidos e as
contestações, a estupidez, a ignorância e o cinismo, as grosseiras e
propositadas interpretações erróneas, as explicações penosas e repetitivas,
as perguntas persecutórias ... e, incessantemente, o sentimento difuso de
irrealidade. "O assassínio dela! -, gritou Coleman, inclinando-se por cima
da minha secretária e dando murros no tampo. "Aquela gente assassinou
Íris!"
O rosto que me mostrava, aquele rosto que colocou a um palmo do meu,
tornara-se entretanto vincado, as simétrico e — tratando-se do rosto de um
homem idoso, bem tratado e juvenilmente bem-parecido — estranhamente
repulsivo, por certo desfigurado pelo efeito tóxico de toda a emoção que o
percorria. Dir-se-ia, assim de perto, amolgado e pisado como um fruto que
caíra da sua banca no mercado e tinha sido pontapeado para cá e para lá
pelas pessoas que andavam às compras.
Há algo de fascinante no que o sofrimento moral pode fazer a alguém que
nada indicia ser uma pessoa frágil ou fraca. É uma coisa ainda mais
insidiosa do que a doença física pode causar, pois não há perfusão de
morfina, epidural ou cirurgia radical que possam aliviá-la. Quando caímos
nas suas garras dir-se-ia que só nos libertaremos dela se nos matar. Não
existe nada que se compare ao seu realismo brutal.
Assassinada. Para Coleman, só isso explicava como, sem mais nem
menos, o fim podia ter chegado para uma vigorosa mulher de 64 anos,
presença dominadoras perfeita saúde, uma pintora abstracta, cujas telas se
impunham nas exposições de arte locais e que administrava
autocraticamente a associação de artistas da cidade, uma poetisa publicada
no jornal do condado, uma mulher que, no seu tempo, fora a principal
opositora universitária politicamente activa dos abrigos antiatómicos, do
estrôncio 90 e, posteriormente, da Guerra do Vietname, obstinada,
inflexível, arrojada, um furacão de mulher reconhecível a cem metros de
distância pelo volumoso emaranhado de ouriçados cabelos brancos — uma
pessoa aparentemente tão forte que, apesar da sua própria invencibilidade, o
reitor que conseguira o que parecia academicamente impossível ao salvar a
universidade de Athena só era capaz de vencer no ténis.
No entanto, quando Coleman foi atacado, quando a acusação de racismo
foi sujeita a investigação não apenas pelo novo reitor mas também pela
pequena organização estudantil negra e por um grupo activista negro de
Píttsfíeld, a absoluta loucura de tudo isso obliterou o milhão de dificuldades
conjugais dos Silk e a mesma atitude imperiosa que durante quatro décadas
colidira com a obstinada autonomia do próprio Coleman e tivera como
resultado o infindável atrito das vidas deles, foi colocada por Iris ao serviço
da causa do marido. Apesar de haver anos que não dormiam na mesma
cama nem conseguiam suportar durante muito tempo a conversa um do
outro — ou os amigos de um e do outro -, os Silk estavam de novo lado a
lado, acenando com os punhos fechados às caras daqueles que detestavam
mais profundamente do que, nos seus momentos mais insuportáveis,
conseguiam detestar-se um ao outro. Tudo quanto tinham tido em comum
quarenta anos atrás, em Greenwich Village — quando ele estava na
Universidade de Nova Iorque a terminar o seu doutoramento e ela, recém-
evadida de casa dos pais chalados e anarquistas, servia de modelo em aulas
de desenho ao vivo na Art Students League, detentora já da sua grenha de
cabelo indomável, de feições grandes e voluptuosas, já então uma suprema
sacerdotisa, de aspecto teatral e adornada de joalharia folclórica, a suprema
sacerdotisa bíblica de antes do tempo da sinagoga -, tudo quanto tinham
tido em comum nesses tempos da Village (excepto a paixão erótica) veio de
novo descontroladamente à superfície... até à manhã em que ela acordou
com uma feroz dor de cabeça e sem qualquer sensibilidade num braço.
Coleman levou-a a correr para o hospital, mas no dia seguinte Iris estava
morta.
"Eles pretendiam matar-me e em vez disso mataram-na a ela" Foi isto
que Coleman me disse, diversas vezes, durante aquela visita não anunciada
a minha casa, e na tarde seguinte fez questão de o dizer a todas as pessoas
presentes no funeral. E continuava a acreditar nisso. Não estava receptivo
para qualquer outra explicação. Desde a morte dela, e desde que tinha
compreendido que a sua provação não era assunto de que eu desejasse tratar
na minha ficção e consentido que lhe devolvesse todos os documentos que
largara na minha secretária, naquele dia, andara a trabalhar num livro seu
acerca do motivo por que se demitira de Athena, um livro não ficcional a
que chamava Spooks.

Há em Springfield uma pequena estação de rádio em FM que nas noites


de sábado, das seis à meia-noite, põe de lado a habitual programação
clássica e transmite música de big-band nas primeiras horas e depois, mais
tarde, jazz. Do meu lado da montanha só ouvimos estática quando
sintonizamos essa frequência, mas na encosta onde Coleman vive a
recepção é boa e, nas ocasiões em que ele me convidava para tomar uma
bebida, aos sábados, todas aquelas delicodoces melodias de dança que os
miúdos da nossa geração ouviam continuamente no rádio e tocavam nas
jukeboxes, nos anos 40, me chegavam aos ouvidos, vindas da sua casa,
assim que me apeava do carro no seu caminho de acesso. Ele ouvia-as no
volume máximo, não só no aparelho estereofónico da sala mas também no
rádio ao lado da cama, no rádio ao lado do chuveiro e no rádio ao lado da
caixa do pão, na cozinha. Fosse o que fosse que estivesse a fazer em casa
aos sábados à noite, e até a estação encerrar à meia-noite — depois dos
trinta minutos rituais de Benny Goodman -, não estava um minuto sequer
fora do alcance auditivo dos aparelhos.
Curiosamente, dizia, nenhuma da música séria que ouvira durante toda a
sua vida adulta lhe tocara na corda sensível da emoção do modo que a velha
música de sunng lhe tocava agora: "Tudo quanto há de estóico dentro de
mim se solta e o desejo de não morrer, de nunca morrer, é quase demasiado
grande para ser suportável. E tudo isto", explicava, "por ouvir Vaughn
Monroe." Havia noites em que cada verso de cada canção assumia um
significado tão estranhamente momentoso que ele acabava a dançar sozinho
o foxetrote arrastado, leve, repetitivo, banal e, contudo, maravilhosamente
útil para criar ambiente que costumava dançar com as raparigas do liceu de
East Orange, contra as quais comprimia, através das calças, as suas
primeiras erecções significativas. E, enquanto dançava, nada do que sentia,
disse-me, era simulado, nem o terror (da extinção) nem o êxtase (das
palavras "You sigh, the song begins. You speak, and I hear violins"). As
lágrimas caíam todas espontaneamente, por muito que pudesse surpreendê-
lo a pouca resistência que tinha a Helen O'Connell e a Bob Eberly cantando
alternadamente os versos de "Green Eyes-, por muito que pudesse
maravilhá-lo o condão de Jimmy e Tommy Dorsey para o transformarem no
género de velho vulnerável que nunca julgara poder vir a ser. "Mas deixem
alguém nascido em 1926", dizia, "tentar ficar sozinho em casa num sábado
à noite, em 1998, e ouvir Dick Haynes cantar "Those Little White Lies".
Deixem-nos fazer isso e deixem-nos dizer-me, depois, se não
compreenderam finalmente a famosa doutrina da catarse desencadeada pela
tragédia"
Coleman estava a lavar a louça do jantar quando entrei por um guarda-
vento do lado da casa que dava para a cozinha. Como estava inclinado para
o lava-louça, a água a correr, o rádio ligado no volume máximo e ele a
cantar em coro com o jovem Frank Sinatra -Everythíng Happens to Me",
não me ouviu entrar. Estava uma noite quente. Coleman usava uns calções
de ganga e umas sapatilhas, e mais nada. Visto de trás, aquele homem de 71
anos parecia não ter mais de 40: esguio, em forma e 40 anos. Não media
muito mais de um metro e setenta, se tanto, nem era muito musculoso, mas
apesar disso havia muita força nele e ainda era visível uma boa quantidade
do vigor do atleta liceal, a vivacidade, o ímpeto para a acção a que
costumávamos chamar pedalada. O seu cabelo de anéis compactos, aparado
curto, tornara-se da cor de papas de aveia e, por isso, visto de frente e
apesar do travesso nariz arrebitado, não parecia tão novo como poderia ter
parecido se o seu cabelo ainda fosse escuro. Tinha também sulcos
profundamente esculpidos de ambos os lados da boca e nos seus olhos
castanho-esverdeados havia, desde a morte de Iris e da sua aposentação da
universidade, muita, mas muita, mesmo, fadiga e vazio espiritual. Coleman
possuía o bom aspecto incongruente, e quase de marioneta, que
encontramos nos rostos a envelhecer de actores de cinema que foram
famosos no ecrã como crianças fulgurantes e nos quais a estrela juvenil fica
indelevelmente gravada.
No todo, continuava a ser um agradável homem atraente, mesmo com a
sua idade, do tipo de judeu de nariz pequeno e com o peso facial
concentrado no queixo, um daqueles judeus de cabelo frisado e
pigmentação epidérmica amarelado-clara, possuidores de algo relacionado
com a aura ambígua dos negros claros que por vezes são tomados por
brancos.
Quando Coleman Silk foi marinheiro na base naval de Norfolk, na
Virgínia, no fim da Segunda Guerra Mundial, em virtude de o seu nome não
o denunciar como judeu — porque podia com a mesma facilidade ser um
nome de negro -, fora uma vez identificado num bordel como um preto a
tentar passar por branco e posto na rua, "Expulso de uma casa de putas em
Norfolk por ser negro, expulso da universidade de Athena por ser branco"
Nos últimos dois anos ouvira-o frequentemente dizer coisas deste género,
fazer comentários furiosos sobre anti-semitismo negro e os seus traiçoeiros
e cobardes colegas que estavam obviamente a ser descritos, sem disfarces,
no seu livro.
"Expulso da universidade de Athena", dizia-me, "por ser um judeu
branco do tipo a quem aqueles sacanas ignorantes chamam o inimigo, O
causador da sua miséria americana, Quem lhes roubou o paraíso, E quem os
tem impedido de progredir durante todos estes anos, Qual é a maior força
do sofrimento negro deste planeta? Eles sabem a resposta sem precisarem
de comparecer às aulas, Eles sabem-na sem precisarem de abrir um livro.
Sem ler, eles sabem; sem pensar, eles sabem, Quem é o culpado? Os
mesmos monstros perversos do Antigo Testamento culpados do sofrimento
dos alemães, "Eles mataram-na, Nathan. E quem poderia ter imaginado que
Iris não conseguiria suportar? Mas, apesar de forte como era, de refilona
como era, Iris não conseguiu, O calibre da estupidez deles era excessivo até
para um peso-pesado como a minha mulher, "Spooks." E quem me
defenderia, aqui? Herb Keble? Na minha qualidade de reitor, fui eu quem
trouxe Herb Keble para o colégio, Fi-lo meses, apenas, depois de assumir o
cargo, Trouxe-o não só como o primeiro negro a ensinar ciências sociais
mas também como o primeiro negro em tudo menos num lugar de guarda,
Mas Herb também foi radicalizado pelo racismo de judeus como eu, "Não
posso estar consigo nisto, Coleman. Vou ter de estar com eles," Foi isto que
ele me disse quando pedi o seu apoio, Na minha cara, Vou ter de estar com
eles, Eles!
"Só queria que o visse no funeral de Irís. Esmagado, Arrasado, Morreu
alguém? Herbert não pretendera que ninguém morresse, Toda aquela
conversa fiada não passava de uma manobra, de truque para conquistar
poder. Para conseguir uma voz mais activa no modo como a universidade é
dírígída. Eles estavam apenas a explorar uma situação útil. Era uma maneira
de espicaçar Haines e a administração e levá-los a fazer o que de outro
modo nunca fariam, Mais negros no compus. Mais estudantes negros, mais
professores negros, Representação: a questão era essa, A única questão,
Deus sabe que não se pretendia que ninguém morresse, Ou sequer se
demitisse, Isto também apanhou Herbert de surpresa, Por que havia
Coleman Silk de se demitir? Ninguém ia despedi-lo, Ninguém ousaria
demiti-lo, Eles faziam o que estavam a fazer simplesmente porque podiam
fazê-lo, A sua intenção era manter os meus pés por cima das chamas apenas
durante um pouco mais de tempo, Por que não pude eu ser paciente e
esperar? No semestre seguinte, quem se lembraria mais do assunto? O
incidente — o incidente! — proporcionava-lhes um "problema de
organização" do tipo necessário num lugar racialmente atrasado como a
Athena. Por que saí eu? Quando saí, o caso já estava essencialmente
acabado, Por que diabo saía eu"
Na minha visita anterior, Coleman começara a acenar com qualquer coisa
à frente da minha cara a partir do momento em que eu entrara: mais outro
documento das centenas já arquivadas em caixas identificadas com a
palavra Spooks. "Veja, Um dos meus talentosos colegas, Escreveu-me a
respeito de uma das duas raparigas que apresentaram queixa contra mim:
uma estudante que nunca pusera os pés na minha aula chumbou em todas as
outras disciplinas, menos uma, que estava a estudar e raramente lá
apareceu, Eu pensava que ela não conseguia enfrentar a matéria, quanto
mais começar sequer a dominá-la, mas afinal ela chumbava porque se sentia
tão intimidada com o racismo que emanava dos seus professores brancos
que não era capaz de arranjar coragem para frequentar as aulas, O mesmo
racismo que eu revelara, Num daqueles encontros, audições, ou lá como se
chamavam, perguntaram-me: "Na sua opinião, que factores conduziram ao
insucesso desta estudante?" "Que factores?", repeti. "Indiferença,
Arrogância, Apatia, Angústia pessoal. Quem pode saber?" "Mas",
continuaram, "à luz desses factores, que recomendações positivas fez a esta
estudante?" "Nenhuma, Nunca lhe pus sequer os olhos em cima, Mas se
tivesse tido essa oportunidade, ter-lhe-ia recomendado que abandonasse a
escola," Perguntaram-me porquê, "Porque o lugar dela não era na escola,"
"Deixe-me ler umas passagens deste documento, Ouça isto, Apresentado
por uma colega minha em defesa de Tracy Cummings como alguém com
quem não devemos ser demasiado severos nem julgar com demasiada
pressa, alguém a quem, com certeza, não devemos virar as costas nem
rejeitar. Deve-mos estimular Tracy, devemos compreendê-la; precisamos de
saber, diz-nos esta entendida, "de onde Tracyvem". Deixe-me ler-lhe as
últimas frases, "Tracy tem antecedentes muito complicados, em virtude de
se ter separado da família imediata no décimo ano e ido viver com parentes,
Em consequência disso, não estava especialmente apta a lidar com as
realidades de uma situação, Admito esta insuficiência, Mas está preparada,
disposta e é capaz de mudar a maneira como encara a vida, O que tenho
visto nascer nela durante as últimas semanas é uma consciência da
gravidade da sua evasão da realidade," Frases da autoria de uma tal
Delphine Roux, presidente do Departamento de Línguas e Literatura, que
dá, entre outras coisas, um curso de classicismo francês, Uma consciência
da gravidade da sua evasão da realidade, Ah, chega, Chega, Isto é
revoltante, É, pura e simplesmente, revoltante de mais"
Era a isto que eu assistia, a maior parte das vezes, quando ia fazer
companhia a Coleman nas noites de sábado: uma humilhante ignomínia que
continuava a consumir alguém ainda cheio de vitalidade, O grande homem
derrubado ainda a sofrer a vergonha da queda, Algo parecido com o que
poderíamos ter visto se encontrássemos Nixon em San Clemente ou Jimmy
Carter, na [orgia, antes de este ter começado a penitenciar-se da sua derrota
tornando-se carpinteiro, Algo muito triste, E, contudo, apesar da minha
pena pela provação de Coleman, por tudo quanto ele injustamente perdera e
pela quase impossibilidade de se libertar da sua amargura, havia noites em
que, depois de ter bebido apenas uns goles do seu brandy, só conseguia
manter-me acordado graças a qualquer coisa parecida com um truque de
magia.
Mas na noite a que me refiro, depois de termos passado para o fresco
alpendre lateral fechado que usava como escritório no Verão, ele gostava
tanto do mundo quanto é possível alguém gostar. Tirara duas garrafas de
cerveja do frigorífico, quando saíramos da cozinha, e estávamos sentados,
de frente um para o outro, de cada lado da comprida mesa de cavalete que
lhe servia de secretária e numa extremidade da qual se encontravam
empilhados uns vinte ou trinta cadernos de rascunhos repartidos por três
pilhas.
— Bem, aqui está — disse Coleman, agora tão calmo e desoprimido que
dir-se-ia outra pessoa. — É isto: Spooks. Acabei ontem um primeiro
rascunho, passei todo o dia de hoje a lê-lo e fiquei enojado com cada uma
das suas páginas. A violência da escrita à mão bastou para que desprezasse
o autor. Seria de espantar que tivesse passado um simples quarto de hora
com isto, quanto mais dois anos ... Iris morreu por causa deles? Quem
acreditará nisso? Eu próprio já tenho dificuldade em acreditar. Transformar
esta arenga enfadonha num livro, depurar a angústia furiosa e transformá-la
em qualquer coisa escrita por um ser humano são de espírito, exigiria outros
dois anos, pelo menos. E que teria eu então, além de ter passado mais dois
anos a pensar "neles"? Não quero com isto dizer que me tenha convertido
ao perdão. Não me interprete mal: odeio os pulhas. Odeio os cabrões dos
pulhas do mesmo modo que Gulliver odeia toda a espécie humana depois
de ter ido viver com os cavalos. Odeio-os com uma genuína aversão
biológica, visceral. Embora sempre tenha achado aqueles cavalos ridículos.
E você, não? Faziam-me lembrar o sistema WASP que dirigia a
universidade, quando cheguei.
— Está em boa forma, Coleman, mal se vislumbra a sua antiga demência.
Há três semanas ou um mês, enfim, a última vez que o vi, ainda estava
mergulhado até aos joelhos no seu próprio sangue.
— Por causa desta coisa. Mas li-a, é uma merda e superei-a. Não sei
fazer o que os profissionais fazem. Ao escrever a respeito de mim mesmo,
não sei lidar com o distanciamento criativo. Página após página, continua a
ser a realidade crua, em carne viva. Um arremedo da memória
autojustificativa. A impossibilidade da explicação. — Acrescentou,
sorrindo: Kissinger pode produzir mil e quatrocentas páginas de lixo deste
género de dois em dois anos, mas eu não fui capaz. Por muito cegamente
confiante que possa parecer na minha bolha narcisista, não estou à altura
dele. Desisto.
Ora, na sua maioria, os escritores que se sentem paralisados depois de
relerem um trabalho que lhes levou dois anos — ou até um, ou mesmo,
apenas, seis meses -, o acham irremediavelmente disparatado e deixam
abater-se sobre ele a guilhotina crítica, ficam reduzidos a um estado de
desespero suicida do qual podem precisar de meses para começarem a
refazer-se.
Mas Coleman, ao abandonar o esquisso de um livro tão mau como aquele
que acabara de escrever, conseguira de algum modo nadar não só para longe
dos destroços do livro naufragado mas também dos do naufrágio da sua
vida. Sem o livro, parecia agora completamente isento do mínimo desejo de
ajuste de contas; liberto da ânsia veemente de limpar o seu nome e
criminalizar, como homicidas, os seus adversários, deixara de estar
impregnado de injustiça. Eu nunca tinha visto uma mudança de atitude
transformar tão rápida e radicalmente um ser martirizado, a não ser, pela
televisão, quando Nelson Mandela perdoara aos seus carcereiros ao deixar a
cadeia ainda com a última miserável refeição prisional a ser assimilada pelo
seu organismo. Era uma mudança que não podia compreender e na qual, ao
princípio, também não podia acreditar.
— Desistir dessa maneira, dizendo alegremente "não fui capaz", desistir
de todo esse trabalho, de todo esse ódio ... Como vai você preencher o vazio
deixado pela afronta? -Não vou.
Tirou da gaveta as cartas e um livrinho para anotar os resultados e
puxámos as nossas cadeiras para o espaço da mesa onde não havia papéis.
Ele embaralhou as cartas, eu parti e ele deu. E depois, naquele estranho e
sereno estado de contentamento provocado pela aparente libertação do seu
desprezo por todos aqueles que, na Athena, o tinham, deliberadamente e de
má-fé, julgado mal, ofendido e caluniado — por aqueles que, durante dois
anos, o tinham mergulhado num esforço misantrópico de proporções
swiftianas -, lançou-se na descrição rapsódica dos seus bons tempos
passados em que a sua taça transbordava e o seu considerável talento para a
rectidão se aplicava a acumular e distribuir prazer.
Agora que já não estava atolado no seu ódio, íamos falar de mulheres.
Este era um novo Coleman. Ou talvez um velho Coleman, o mais antigo
Coleman adulto que havia, o Coleman mais satisfeito que jamais houvera.
Não o Coleman pré-spooks- e difamação como racista, mas o Coleman
contaminado apenas pelo desejo.
— Quando saí da Marinha, arranjei alojamento na Village — começou a
contar-me, enquanto juntava as suas cartas — e a única coisa que tinha de
fazer era descer para o metro. Era como se fosse pescar lá em baixo. Descia
para o metro e regressava com uma rapariga, E depois — fez uma pausa
para apanhar o meu descarte -, de repente, licenciei-me, casei, arranjei o
meu emprego, tive filhos ... e adeus pesca.
— Nunca mais voltou a pescar.
— Quase nunca. É verdade. Praticamente nunca. Pode dizer-se que
nunca. Está a ouvir estas canções? — Os quatro rádios da casa estavam
ligados, de tal modo que até lá fora, na strada, teria sido impossível não os
ouvir. — Depois da guerra, as canções eram estas. Quase cinco anos de
canções, as raparigas ... isso chegava para realizar todos os meus ideais.
Hoje encontrei uma carta. Ao arrumar aquela papelada de Spooks encontrei
uma carta de lima das raparigas. Da rapariga. Depois de arranjar o meu
primeiro emprego em Long Island, na Adelphi, estava Iris grávida do Jff,
chegou essa carta. Era uma rapariga com quase um metro e oitenta de
altura. Iris também era grande, mas não como Steena. Iris era robusta.
Steena era outra coisa. Steena escreveu-me essa carta em 1954 e ela
apareceu hoje, enquanto eu estava a despejar as pastas.
Tirou da algibeira de trás dos calções o sobrescrito original que continha
a carta de Steena. Continuava sem camisola, o que, agora que saíramos da
cozinha e estávamos no alpendre, não pude deixar de notar: estava uma
noite quente de Julho, mas não tão quente como isso. Ele nunca me dera a
impressão de ser um homem cuja vaidade, ainda que considerável, se
estendesse também à sua anatomia. Mas agora parecia-me que aquela
exibição da superfície bronzeada do seu corpo exprimia mais do que mero
à-vontade. Estavam expostos ao meu olhar os ombros, os braços e o peito
de um homem de estatura um pouco baixa, ainda em forma e atraente, um
ventre que, não sendo, sem dúvida, já plano, também não passava
gravemente das marcas: em resumo, o físico de alguém que poderia ter sido
um competidor desportivo mais hábil e astuto do que avassalador. E tudo
isso me fora antes ocultado porque sempre o vira de camisa e, também, por
ele estar a ser tão desvairadamente consumido pela raiva.
Oculta estivera de igual modo a pequena tatuagem azul, à Popeye,
situada no alto do seu braço direito, exactamente na articulação do ombro:
as palavras "U. S. Navy" inscritas entre os braços em forma de gancho de
uma pequena âncora e ao longo da hipotenusa do músculo deltóide. Um
minúsculo símbolo — se tal fosse necessário — do milhão de
circunstâncias da vida do outro, da nevasca de pormenores que constitui o
tumulto confuso de uma biografia humana -, um minúsculo símbolo para
me lembrar por que motivo a nossa compreensão das pessoas não pode
deixar de estar sempre, na melhor das hipóteses, ligeiramente errada.
— Guardou-a? À carta? Ainda a tem? Deve ter sido uma carta muito
importante.
— Uma carta assassina. Acontecera-me uma coisa que não tinha
compreendido até a receber. Estava casado, empregado como compete a
uma pessoa responsável e íamos ter um filho, e no entanto eu ainda não
compreendera que as Steenas tinham acabado. Recebi essa carta e dei-me
conta de que as coisas sérias haviam, realmente, começado, a vida séria
devotada a coisas sérias. O meu pai tinha um bar perto de Grove Street, em
East Orange. Você é um tipo de Weequahic, não conhece East Orange. Era
o lado pobre da cidade. E ele era um daqueles judeus donos de bares que
proliferavam em New Jersey e, claro, todos eles com ligações aos Reinfeld
e à mafia local- não tinham, aliás, outro remédio, se queriam sobreviver à
mafia. O meu pai não era um rufião, mas também não era nenhum santo e
queria uma vida melhor para mim. Morreu de repente, quando eu
frequentava o último ano do liceu. Eu era filho único. E adorado. Ele não
me deixava sequer trabalhar no bar quando os frequentadores começavam a
obsequiar-me. Tudo na vida, incluindo o bar — começando pelo bar — me
instigava sempre a ser bom aluno e levar os estudos a sério e, nesse tempo,
quando estudei o meu latim elementar no liceu, e depois o latim e o grego
mais adiantados, que ainda faziam parte do antigo currículo, o filho do dono
do bar não poderia ter-se esforçado mais para levar os estudos ainda mais a
sério.
Houve uma jogada rápida entre nós e Coleman baixou as cartas para me
mostrar a sua mão vencedora. Quando comecei a dar, ele reatou a história.
Era a primeira vez que a ouvia. Anteriormente, nunca me contara nada,
além do que conduzira ao seu ódio pela universidade.
— Bem, depois de ter realizado o sonho do meu pai e me ter tornado um
professor universitário ultra-respeitável, pensei, como o meu pai pensara,
que daí em diante a vida séria nunca acabaria. Que não podia acabar nunca,
uma vez obtidas as credenciais. Mas acabou, Nathan. Bastou-me perguntar
"Ou são "spooks"?" para levar um pontapé no cu. Quando aqui estava,
Roberts gostava de dizer às pessoas que o meu êxito como reitor se devia a
ter aprendido as minhas maneiras num bar. O presidente Roberts, com a sua
linhagem de classe superior, gostava de ter este rufia de bar mesmo ali à
mão, do outro lado do corredor. Sobretudo na presença da velha-guarda,
fingia apreciar-me pelos meus antecedentes, embora, como sabemos, os
gentios detestem, realmente, aquelas histórias a respeito dos judeus e da sua
notável ascensão a partir de bairros miseráveis. Sim, havia uma certa dose
de zombaria em Pierce Roberts, e já então, sim, pensando bem, começando
precisamente então ... — Mas chegado aqui conteve-se. Não quis ir mais
além. Pusera fim à psicose de ser o monarca deposto. A afronta que nunca
morrerá é por este meio declarada morta.
Regresso a Steena. Recordar Steena ajuda muitíssimo.
— Conheci-a em 1948. Eu tinha então 22 anos, estudava na Universidade
de Nova Iorque com uma bolsa do GI Bill e deixara para trás o serviço na
Marinha, e ela tinha 18 anos e estava em Nova Iorque havia poucos meses,
apenas. Tinha um emprego qualquer e também frequentava a faculdade,
mas à noite. Era uma rapariga independente, do Minnesota. Segura de si, ou
assim parecia. Dinamarquesa de um lado, islandesa do outro. Viva.
Inteligente. Bonita. Alta. Maravilhosamente alta. Aquela soberba reclinação
de estátua que nunca esqueci. Estive com ela dois anos. Chamava-lhe
Voluptas. Filha de Psique. A personificação, para os romanos, do prazer
sensual.
Pôs as cartas em cima da mesa, pegou no sobrescrito que deixara ao lado
da rima de cadernos descartados e tirou a carta. Duas páginas
dactilografadas.
— Encontráramo-nos por acaso. Eu tinha vindo de Adelphi, estava a
passar o dia na cidade, e eis que vejo Steena, então com 24 ou 25 anos.
Parámos e conversámos, eu disse-lhe que a minha mulher estava grávida,
ela disse-me o que andava a fazer, despedimo-nos com um beijo, e mais
nada. Cerca de uma semana depois chegou esta carta para mim, ao cuidado
da universidade. Está datada. Ela datou-a, veja: 18 de Agosto de 1954.
"Querido Coleman: Fiquei muito feliz por te ver em Nova Iorque. Apesar
da brevidade do nosso encontro, depois de te ver senti uma melancolia
outonal, talvez porque os seis anos decorridos desde que te conheci tornam
dolorosamente evidente quantos dias da minha vida "acabaram". Achei-te
óptimo e sinto-me satisfeita por estares feliz. Foste também muito
cavalheiresco. Não mergulhaste, que foi o que fizeste, ou pareceste que
fazias, quando te conheci e alugaste aquele quarto de cave na Sullivan
Street. Lembras-te de ti, nesse tempo? Tinhas uma habilidade incrível para
mergulhar, quase como os pássaros fazem quando voam sobre terra ou mar,
detectam alguma coisa que se move, alguma coisa estuante de vida,
mergulham a pique — ou visam — e arrebatam-na. Surpreendeu-me,
quando te conheci, a tua capacidade de voo. Lembro-me de estar no teu
quarto, a primeira vez. Sentei-me numa cadeira, quando cheguei, e tu
andavas de um lado para o outro e de vez em quando paravas e
empoleiravas-te num banco ou no sofá-cama. Tinhas um sofá-cama coçado,
do Exército de Salvação, onde dormias antes de comprarmos a meias O
Colchão. Ofereceste-me uma bebida, que me estendeste ao mesmo tempo
que me observavas com uma expressão de incrível espanto e curiosidade,
como se fosse uma espécie de milagre eu ter mãos e poder segurar um copo,
ou ter boca e poder beber por ele, ou até o facto de me ter materializado,
sequer, no teu quarto um dia depois de nos termos conhecido no metro. Tu
falavas, fazias perguntas, por vezes respondias a perguntas, com um ar
perfeitamente sério e, ao mesmo tempo, hilariante, e eu fazia um grande
esforço para falar também; conversar não era tão fácil para mim como para
ti. Por isso ali estava, a devolver os teus olhares, a absorver e a
compreender muito mais do que esperava compreender. Mas não conseguia
encontrar palavras que preenchessem o espaço criado pelo facto de tu
pareceres atraído por mim e de eu me sentir atraída por ti. Não parava de
pensar: "Não estou preparada. Acabei de chegar a esta cidade. Ainda não.
Mas estarei, com um pouco mais de tempo, com um pouco mais de
conversa, se for capaz de pensar no que desejo dizer, estarei." ("Preparada"
para quê, não sei. Não apenas para fazer amor. Preparada para ser.) Mas
depois tu "mergulhaste", quase do meio do quarto, para onde eu estava, e
fiquei aturdida, mas encantada. Era e não era cedo de mais."
Coleman parou de ler quando ouviu, transmitidos pelo rádio, os
primeiros compassos de "Bewitched, Bothered and Bewildered" cantado
por Sinatra.
— Tenho de dançar — disse. — Quer dançar?
Ri-me. Não, este não era o vingador feroz, amargo e aguerrido de
Spooks, desavindo com a vida e enfurecido por ela; não era sequer outro
homem. Era outra alma. E ainda por cima uma alma agarotada. Tive então
uma imagem forte, formada não só pela carta de Steena mas também por
ele próprio, enquanto a lia de corpo nu, de como Coleman Silk tinha sido
outrora. Antes de se tornar um reitor revolucionário, antes de se tornar um
grave professor de estudos clássicos — e muito antes de se tornar o pária da
Athena -, ele fora, além de um rapaz estudioso, um rapaz adorável e
sedutor. Arrebatado. Travesso. Um pouco diabólico, até, um Pã de nariz
arrebitado e pés de cabra. Noutro tempo, antes de as coisas sérias se
imporem por completo.
— Depois de ouvir o resto da carta — disse-lhe, em resposta ao convite
para dançar. Leia-me o resto da carta de Steena.
— Ela viera do Minnesota há três meses quando nos encontrámos.
Bastou-me descer para o metro e trazê-la para cima. Bem, fique a saber que
1948 era assim.
Voltou à leitura da carta:
— "Sentia-me muito atraída por ti, mas receava que pudesses achar-me
demasiado nova, uma desinteressante e pacata rapariga provinciana do
Midwest, e além disso já andavas a sair com outra "inteligente, elegante e
encantadora", embora tivesses acrescentado, com um sorriso malicioso:
"Não creio que ela e eu nos casemos." "Porquê?", perguntei. "Posso ficar
um bocadinho enfastiado", respondeste, conseguindo assim que eu
resolvesse fazer tudo quanto estivesse ao meu alcance para não te enfastiar,
incluindo desaparecer, se fosse necessário, para não correr o risco de me
tornar enfadonha. Pronto, aqui tens. Já disse o suficiente. Não devia sequer
ter-te incomodado. Prometo que não voltarei a fazê-lo, nunca mais. Tem
cuidado contigo. Tem cuidado contigo. Tem cuidado contigo. Muito
ternamente, Steena.
— Bem, 1948 era assim — observei.
— Vamos dançar.
— Mas não me cante ao ouvido.
— Levante-se. Venha.
Ora, que se lixe, pensei, não tarda estaremos os dois mortos. Levantei-
me, por isso, e Coleman Silk e eu começámos a dançar o foxtrote um com o
outro, no alpendre. Ele conduzia e eu acompanhava-o o melhor que podia.
Lembrei-me daquele dia em que irrompera pelo meu escritório, depois de
ter tratado dos preparativos para o funeral de Iris, e enlouquecido pelo
desgosto e pela fúria, me dissera que queria que lhe escrevesse o livro a
respeito de todos os incríveis absurdos do seu caso que tinham culminado
com o assassínio da sua mulher. Seria lógico pensar, então, que aquele
homem nunca mais voltaria :\ ter gosto pela patetice da vida, que tudo
quanto houvera nele de divertido e alegre fora destruído e se perdera
juntamente com a sua carreira, a sua reputação e a sua temível mulher. Se
não me passou sequer pela cabeça desatar a rir e deixá-lo, se quisesse,
dançar sozinho no alpendre, enquanto eu ficava sentado a observá-lo e a
divertir-me com o seu papel, se lhe dei a minha mão e o deixei passar o
braço à volta das minhas costas e conduzir-me sonhadoramente à roda
naquele velho chão de pedra azul, talvez tenha sido apenas porque estivera
presente no dia em que o cadáver dela ainda estava quente e vira a
expressão do rosto dele.
— Espero que ninguém do serviço dos bombeiros voluntários passe de
carro por aqui comentei.
— Também eu. Não queremos que venha alguém bater-me no ombro e
perguntar: "Posso roubar-lhe a dama?"
Continuámos a dançar. Não havia nada de francamente carnal naquilo,
mas como Coleman trazia apenas os calções de ganga e a minha mão
descansava com naturalidade nas suas costas mornas como se fossem as de
um cão ou de um cavalo, também não se tratava inteiramente de uma
paródia. Havia uma sinceridade meio séria no modo como ele me conduzia
pelo chão de pedra, para não falar do prazer descuidado de estar vivo,
acidental, burlescamente e sem nenhuma razão especial vivo — um prazer
do género do que sentimos em criança quando aprendemos pela primeira
vez a tocar uma melodia com um pente e papel higiénico.
Coleman falou-me da mulher quando nos voltámos a sentar.
— Tenho uma ligação, Nathan. Tenho uma ligação com uma mulher de
34 anos. Nem lhe sei explicar o bem que me faz.
— Acabámos de dançar ... não tem de me contar.
— Pensava que já não era capaz de suportar nada de nada. Mas quando
uma coisa destas volta tão tarde na nossa vida, sem mais nem menos, de
modo completamente inesperado e até indesejado, quando volta e não
temos nada com que diluí-la, quando já não estamos a bater-nos em vinte e
duas frentes, quando já não estamos profundamente mergulhados no
tumulto quotidiano ... quando é apenas isto ...
— E quando ela tem 34 anos.
— E é fogosa. Uma mulher fogosa. Tornou de novo o sexo num vício.
— "La Belle Dame sans Merci tem-vos escravizados(3).
— Assim parece. Eu pergunto-lhe: "Como é para ti, com um homem de
71 anos?", e ela responde: "É perfeito com um homem de 71 anos. Ele tem
os seus costumes determinados e não pode mudar. Sabemos o que ele é.
Não há surpresas."
— O que foi que a tornou tão sábia?
— As surpresas. Trinta e quatro anos de surpresas selvagens deram-lhe
sabedoria. Mas é uma sabedoria anti-social muito tacanha. Selvagem,
também. É a sabedoria de alguém que não espera nada. É essa a sua
sabedoria, é essa a sua dignidade, mas é uma sabedoria negativa e não
pertence ao tipo que nos mantém no rumo, dia após dia. Trata-se de uma
mulher cuja vida tem tentado esmagá-la quase desde que ela existe. Tudo o
que aprendeu vem daí.
Ele encontrou alguém com quem pode falar, pensei. E eu também, pensei
a seguir. No momento em que um homem começa a falar de sexo a outro,
está a dizer alguma coisa acerca de ambos. Noventa por cento das vezes
isso não acontece, e talvez seja melhor que não aconteça, mas se não
conseguimos alcançar um certo grau de franqueza no que respeita a sexo e
optamos por proceder como se nem sequer pensássemos nisso, então a
amizade masculina é incompleta. A maioria dos homens nunca encontra um
amigo assim. Não é comum. Mas quando acontece, quando dois homens se
descobrem de acordo sobre esta parte essencial de ser um homem, sem
medo de serem julgados, aviltados, invejados ou dominados, seguros de que
a sua confiança não será traída, a sua relação humana pode tornar-se muito
forte e nascer uma intimidade inesperada. Isto provavelmente não é habitual
nele, pensava eu, mas como me procurou no pior momento da sua vida,
cheio de um ódio que, fui disso testemunha, o envenenou ao longo de
meses, sente a liberdade que resulta de estarmos com alguém que nos viu da
cabeceira da nossa cama durante uma doença terrível. O que sente é menos
o desejo de se vangloriar do que o enorme alívio de não ter de guardar só
para si uma coisa tão espantosamente nova como o seu próprio
renascimento.
— Onde a conheceu?
— Fui buscar o meu correio, ao fim do dia, e ela estava lá, a lavar o chão.
É aquela loura magra que às vezes faz a limpeza do posto dos correios.
Pertence ao quadro fixo do pessoal de limpeza da universidade. É
empregada da limpeza a tempo inteiro onde eu fui reitor. Uma mulher que
não tem nada. Chama-se Faunia Farley. Faunia não tem absolutamente
nada.
— Não tem nada porquê?
— Foi casada. O marido batia-lhe tanto que a deixou em coma. Tinham
uma herdade leiteira. Ele dirigia-a tão mal que a levou à falência. Ela tinha
dois filhos. Um aquecedor virou-se, causou um incêndio e as duas crianças
morreram asfixiadas. Tirando as cinzas dos dois filhos que guarda numa
lata debaixo da cama, não tem nada de valor a não ser um Chevrolet de 83.
A única vez que a vi à beira das lágrimas foi quando me disse: "Não sei o
que fazer às cínzas" A tragédia rural secou até as lágrimas de Faunia. E
pensar que começou a vida como uma criança rica e privilegiada. Criada
numa enorme casa no sul de Boston. Lareiras nos cinco quartos, as
melhores antiguidades, porcelanas de família... tudo antigo e do melhor,
incluindo a família. Consegue falar surpreendentemente bem, quando quer.
Mas desceu tão baixo, e de tão alto, na escala social que hoje é uma
verdadeira miscelânea de inanidades verbais. Faunia foi exilada do lugar
que deveria pertencer-lhe por direito. Socialmente degradada. Há uma
verdadeira democratização no seu sofrimento.
— O que foi que a perdeu?
— Perdeu-a um padrasto. Perdeu-a o mal da alta burguesia. Houve um
divórcio quando ela tinha 5 anos. O próspero pai surpreendeu a bela mãe a
ser-lhe infiel. A mãe, que gostava de dinheiro, voltou a casar com um
homem endinheirado, e o padrasto rico não deixava Faunia em paz.
Começou a acariciá-la desde o primeiro dia. Não conseguia estar longe
dela. Acariciava, metia os dedos naquela angelical criança loura ... quando
tentou fodê-la ela fugiu. Tinha 14 anos. A mãe recusou-se a acreditar nela.
Levaram-na a um psiquiatra. Faunia contou-lhe o que acontecera e, ao fim
de dez sessões, o psiquiatra tomou o partido do padrasto. "Aliou-se aos que
lhe pagavam", diz Faunia. "Como toda a gente" Depois a mãe teve uma
aventura com o psiquiatra. Esta é a história, que ela conta, do que a lançou
na vida de uma rebelde obrigada a desenvencilhar-se sozinha. Fugiu de
casa, fugiu do liceu, foi para o Sul, trabalhou lá, voltou para este lado,
trabalhou no que pôde e, aos 20 anos, casou com o dono da herdade leiteira,
um homem mais velho do que ela, veterano do Vietname, convencida de
que se trabalhassem arduamente, criassem filhos e tornassem a herdade
rentável, poderia ter uma vida normal e estável, apesar de o indivíduo ser
um bocado estúpido — sobretudo por ele ser um bocado estúpido. Pensou
que poderia ser melhor para ela se a cabeça pensante fosse a sua. Pensou
que isso seria uma vantagem para ela. Estava enganada. Tudo quanto
tinham em comum era aborrecimentos. A herdade deu com os burros na
água. "O idiota", disse-me, "comprou um tractor a mais do que a conta" E
ele espancava-a regularmente. Deixava-a toda negra. Sabe o que ela
considera o ponto alto do casamento? Aquilo a que chama -a grande batalha
da bosta quente". Um dia, ao fim da tarde, estavam no estábulo depois da
ordenha, a discutir a respeito de qualquer coisa, quando uma vaca, perto
dela, largou uma grande poia. Faunia apanhou uma mão-cheia de trampa e
atirou-a à cara de Lester. Ele ripostou com outra e foi assim que a coisa
começou. "Aquela batalha da bosta quente deve ter sido o melhor momento
que passámos juntos", disse-me. No fim, estavam cobertos de merda de
vaca e a rebentar a rir, e depois de se lavarem com a mangueira do estábulo
subiram para foder. Mas isso foi abusar da sorte, levar uma coisa boa longe
de mais. Não valeu sequer um centésimo da paródia da batalha. Uma queca
com Lester nunca era uma coisa divertida; segundo Faunia, ele não sabia
fazê-lo. "Demasiado estúpido até para foder como deve ser" Quando me diz
que eu sou o homem perfeito, respondo-lhe que compreendo que lhe possa
parecer isso, tendo eu vindo depois dele ...
— E lutar desde os 14 anos contra os Lester da vida com mãos-cheias de
merda quente, fez dela o quê, aos 34 anos, além de ferozmente sábia? Dura?
Sagaz? Irada? Louca?
— A vida de luta tornou-a dura, sem dúvida alguma sexualmente dura,
mas não a fez louca. Pelo menos não me parece, por enquanto. Irada? Se
existe ira — e por que não haveria de existir? -, é uma ira furtiva. Uma ira
sem raiva. E, para alguém que parece ter vivido inteiramente sem sorte, não
há nenhuma queixa nela — ou, pelo menos, nenhuma queixa que me
mostre. Quanto a sagaz, não. Às vezes diz coisas que parecem sagazes. Por
exemplo: "Talvez devesses ver-me como uma companheira da mesma idade
que por acaso parece mais nova. Acho que é isso que sou" Quando lhe
perguntei: "O que queres de mim?", respondeu: "Algum companheirismo.
Talvez algum saber. Sexo. Prazer. Não te preocupes. É só isso.. Uma vez,
quando lhe disse que era sábia de mais para a sua idade, respondeu-me:
"Sou estúpida de mais para a minha idade." Era, sem dúvida, mais
inteligente do que Lester, mas sagaz? Não. Há em Faunia alguma coisa que
terá sempre 14 anos e estará sempre o mais longe que é possível estar da
sagacidade. Teve uma ligação com o seu chefe, o indivíduo que a contratou.
Smoky Hollenbeck Por acaso, eu contratei-o a ele, é o tipo que administra a
estrutura física da universidade. Smoky foi uma estrela do futebol
americano, aqui. Conheci-o como estudante, nos anos 70. Agora é
engenheiro civil. Contrata Faunia para o quadro do pessoal da limpeza e, ao
mesmo tempo que ele o faz, ela compreende o que lhe vai na cabeça. O tipo
sente-se atraído por ela. Está aprisionado num casamento insípido, mas não
lhe quer mal por isso, não a olha desdenhosamente, enquanto pensa: Por
que não assentaste, por que ainda andas a vadiar por aí e a dormir com uns e
outros? Não há da parte de Smoky quaisquer ares de superioridade
burguesa. Ele está a fazer todas as coisas certas e a fazê-las muito bem: tem
mulher e filhos, cinco filhos, não é possível estar mais casado do que ele, é
um herói do desporto que continuou na universidade, é popular e admirado
na cidade... mas tem um dom: também sabe despir essa pele. Falando com
ele, ninguém diria. O Sr. Certinho de Athena Square, comportando-se em
todos, mas todos, os aspectos como esperam que se comporte. Parece
encaixar-se cem por cento na história de si mesmo. Seria natural esperar
que pensasse: Esta cabra estúpida com a sua vida tramada? Ponha-se a
cavar do meu gabinete. Mas não pensa. Ao contrário de toda a gente de
Athena, não está tão cego pela lenda de Smoky que seja incapaz de pensar:
Sim, aqui está uma rica pachacha que eu gostaria de comer. Ou incapaz de o
fazer. Ele come-a, Nathan. Vai para a cama com Faunia e com outra mulher
do pessoal da limpeza. Come as duas, juntas. A coisa dura há seis meses.
Depois uma mulher ligada ao imobiliário, recém-divorciada e recém-
chegada à paisagem local, junta-se ao número. O circo de Smoky. O circo
secreto de três pistas de Smoky. Mas ao fim de seis meses larga-a: tira
Faunia do circuito e dá-lhe o fora. Eu não sabia nada disto até ela me contar.
E só mo disse porque uma noite, na cama, de olhos revirados, me chamou
pelo nome dele. Segredou-me: "Smoky. Montada no velho Smoky(4). O
facto de ela ter estado naquele ménage permitiu-me fazer uma ideia mais
clara da dama com quem estava a lidar. Subiu a parada. Confesso que senti
até um choque: não se trata de nenhuma amadora. Quando lhe pergunto
como consegue Smoky atrair as suas hordas, responde-me: "Pela força do
seu bacamarte" "Explica", peço, e ela responde: "Quando uma gaja boa
entra numa sala, um homem sabe, não sabe? Bem, acontece a mesma coisa
ao contrário. Com certas pessoas, seja qual for o disfarce, sabemos para o
que estão ali" A cama (. o único lugar onde Faunia mostra alguma
sagacidade, Nathan. Uma sagacidade física espontânea representa o papel
principal na cama; o segundo papel cabe à audácia transgressiva. Na cama
nada escapa a Faunia. A carne dela tem olhos. A carne dela vê tudo. Na
cama ela é um ser unificado possante e coerente, cujo prazer reside em
ultrapassar os limites. Na cama é um fenómeno insondável. Talvez isso seja
um dom alcançado através dos abusos sofridos. Quando descemos para a
cozinha, quando mexo uns ovos e nos sentamos a comer juntos, é uma
miúda. Talvez isso também seja um dom alcançado através dos abusos
sofridos. Estou na companhia de uma miúda incoerente, confusa, de olhar
vazio. Isto não acontece em nenhum outro lugar. Mas sempre que
comemos, é a mesma coisa: eu e a minha miúda. Parece ser tudo o que resta
nela da condição de filha. Não consegue sentar-se direita na cadeira, não
consegue alinhavar duas frases que tenham alguma ligação entre si. Toda a
aparente despreocupação a respeito de sexo e tragédia, tudo isso desaparece
e eu fico ali sentado com vontade de lhe dizer: "Chega-te para a mesa, tira a
manga do meu roupão do teu prato, tenta ouvir o que estou a dizer e, com
os diabos, olha para mim quando falas"
— E diz-lho, mesmo?
— Não parece aconselhável. Não, não digo ... não, prefiro preservar a
intensidade do que existe ali. Penso na lata debaixo da: cama dela, onde
guarda as cinzas a que não sabe que destino dar, e apetece-me dizer-lhe:
"Passaram dois anos. Já é tempo de as enterrares. Se não queres pô-las
debaixo do chão, vai até ao rio e lança-as da ponte. Deixa-as vogar. Deixa-
as partir. Eu vou contigo, faremos isso juntos" Mas eu não sou o pai desta
filha, não é esse o meu papel. Não sou o seu professor. Não sou professor
de ninguém. Deixei de ensinar pessoas, corrigir pessoas, aconselhá-las,
submetê-las a exames e instrui-las. Aposentei-me disso. Sou um homem de
71 anos com uma amante de 34, o que me incapacita, na comunidade de
Massachusetts, de instruir seja quem for. Tomo Viagra, Nathan. Aí está La
Belle Dame sans Merci. Devo toda esta turbulência, toda esta felicidade, ao
Viagra. Sem o Viagra nada disto estaria a acontecer. Sem o Viagra teria uma
imagem do mundo apropriada à minha idade e objectivos inteiramente
diferentes. Sem o Viagra teria a dignidade de um senhor idoso liberto do
desejo e que se comporta como deve ser. Não estaria a fazer uma coisa que
não tem sentido nenhum. Não estaria a fazer uma coisa indecorosa,
temerária, precipitada e potencialmente perigosa para todas as pessoas
envolvidas. Sem o Viagra podia continuar, nos meus anos de declínio, a
desenvolver a larga perspectiva impessoal de um homem experiente e culto,
honrosamente aposentado, que há muito tempo renunciou ao gozo sensual
da vida. Podia continuar a extrair conclusões filosóficas profundas e a
exercer uma influência moral estabilizadora sobre os jovens, em vez de me
ter recolocado no perpétuo estado de emergência que é o inebriamento
sexual. Graças ao Viagra, acabei por compreender as transformações
amorosas de Zeus. Era esse nome que deviam ter dado ao Viagra. Deviam
ter-lhe chamado Zeus.
Está admirado por me dizer tudo isto? Penso que talvez esteja. Mas
também está animado de mais para parar. É o mesmo impulso que o levou a
dançar comigo. Sim, pensei, já não é a escrita de Spooks que gera a reacção
desafiadora à humilhação: é foder Faunia. Mas também não é só isso, há
mais alguma coisa que o impele. Há o desejo de soltar a besta, de libertar
essa força, de durante meia hora, duas horas, seja o tempo que for, ser livre
no que é natural. Foi casado durante muito tempo. Teve filhos. Foi reitor de
uma universidade. Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer.
Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa.
Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual,
professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou.
Evidentemente que aos 71 anos não é a vigorosa besta lúbrica que foi aos
26. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que
ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-
se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz:
sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por
causa dessa emoção. Não é de família que se trata, :1 biologia já não lhe
serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é
dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são
grandes discussões de grandes ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção.
Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa
emoção.
Por que me está ele a contar? Porque para uma pessoa se poder
abandonar livremente a Isto alguém tem de o saber. Ele está livre para se
abandonar, pensei, porque nada está em jogo. Porque que não há nenhum
futuro. Porque tem 71 anos e ela 34. Ele não está nisto para aprender, nem
para fazer projectos, mas pela aventura; está nisto pelo mesmo motivo que
ela: pelo gozo. Os trinta e sete anos que os separam concederam-lhe muita
liberdade de acção. Um velho e, uma última vez, o ímpeto sexual. Há
alguma coisa mais excitante para alguém?
— Claro que tenho de me perguntar o que está ela a fazer comigo —
continuou Coleman.
O que se passa realmente na sua cabeça? É uma excitante experiência
nova para ela estar com um homem com idade para ser seu avô?
— Suponho que existe um tipo de mulher para quem isso é, de facto,
uma experiência mirante. Se há todos os outros tipos, por que não haveria
esse? Olhe, Coleman, é óbvio que há uma secção qualquer, algures, uma
agência federal que se ocupa de homens idosos, foi de lá que ela veio.
— Quando era novo, nunca me envolvi com mulheres feias. Mas na
Marinha tive um amigo, um tipo chamado Farriello, cuja especialidade era
as mulheres feias. Quando estávamos em Norfolk, se íamos a um baile
numa igreja ou, à noite, até à USO(5), Farriello disparava direitinho à mais
feia das raparigas presentes. Quando me ria dele, respondia que eu não
sabia o que estava a perder. Elas são frustradas, dizia-me. Como não são tão
bonitas como as imperatrizes que escolhemos, fazem tudo o que queremos.
Na sua maioria, os homens são estúpidos, afirmava, porque desconhecem
isso. Não compreendem que se abordarmos a mulher mais feia, ela revelar-
se-a a mais extraordinária. Se soubermos desinibi-la, claro. Ah, mas se
conseguimos! Se conseguimos desinibi-la não sabemos por onde começar,
de tal maneira ela vibra. E tudo porque é feia. Porque nunca é escolhida.
Porque fica a um canto enquanto todas as outras dançam. E ser um velho é
a mesma coisa. É como ser a rapariga feia. Ficar a um canto no baile.
— Quer dizer que Faunia é o seu Farriello.
Coleman sorriu.
— Mais ou menos.
— Bem, seja o que for que possa estar a acontecer, graças ao Viagra
deixou de sofrer a tortura de escrever aquele livro.
— Creio que sim. Creio que é verdade. Aquele livro idiota. Já lhe disse
que Faunia não sabe ler? Descobri isso quando, uma noite, fomos de carro
jantar a Vermont. Não soube ler a ementa. Pô-la de lado. Quando quer
parecer adequadamente desdenhosa, tem uma maneira especial de soerguer
apenas metade do lábio superior, uma coisa de nada, e depois dizer o que
lhe vai na cabeça. Adequadamente desdenhosa, nessa noite disse à
empregada de mesa: "O que ele quiser, idem para mim"
— Mas se andou na escola até aos 14 anos... como é possível que não
saiba ler?
— A capacidade de ler parece ter perecido juntamente com a infância em
que a adquiriu. Também lhe perguntei como era possível, mas ela limitou-se
a rir. "Foi fácil", disse. Os bons liberais da Athena estão a tentar persuadi-la
a inscrever-se num programa de líteracía, mas ela recusa-se. "E tu não
tentes ensinar-me. Podes fazer-me tudo o que quiseres, tudo", disse-me
nessa noite, "mas não me venhas com essa merda. Já me chega ter de ouvir
as pessoas falar. Começa a ensinar-me a ler, obriga-me a isso, impõe-me a
leitura, e serás tu quem me atira pela borda fora" Mantive-me calado
durante todo o caminho de regresso de Vermont. E ela também. Só quando
chegámos a casa quebrámos o silêncio. "Não estás interessado em foder
uma mulher que não sabe ler", disse-me. "Vais largar-me porque eu não sou
uma pessoa legítima e digna que lê. Vais dizer-me: "Aprende a ler ou vai-te
embora."" "Não", respondi, "vou foder-te ainda com mais gana por não
saberes ler" "Ainda bem, compreendemo-nos um ao outro. Eu não faço
aquilo como aquelas raparigas letradas e não quero que mo façam como a
elas" "Vou foder-te", respondi, "exactamente pelo que és" "É isso mesmo"
Nessa altura, já estávamos ambos a rir. O riso de Faunia é como o de uma
empregada de bar que tem um bastão de basebol aos pés, para o caso de
haver sarilho, e era assim que estava a rir-se, com aquela gargalhada
desconexa de quem já viu tudo — você sabe como é, o riso fácil e grosseiro
da mulher vivida -, e enquanto se ria ia-me abrindo o fecho da braguilha.
Mas ela acertara em cheio quanto à minha decisão de a deixar. Durante todo
o caminho de regresso de Vermont vim a pensar exactamente o que ela
disse que eu estava a pensar. Mas não vou fazê-lo. Não lhe vou impor a
minha maravilhosa virtude. Nem a mim mesmo. Isso acabou. Eu sei que
estas coisas têm o seu preço. Eu sei que não há um seguro que cubra esse
risco. Eu sei que aquilo que nos está a renovar pode acabar por nos matar.
Eu sei que cada erro que um homem é capaz de cometer tem geralmente um
acelerador sexual. Mas, neste momento, estou-me nas tintas. Acordo de
manhã e há uma toalha no chão e óleo para bebés na mesa-de-cabeceira.
Como veio isto aqui parar? Mas depois lembro-me. Foi ali parar porque
estou de novo vivo. Porque regressei ao furacão. Porque isto é o que é com
maiúscula. Não vou desistir dela, Nathan. Comecei a tratá-la por Voluptas.

Em consequência da cirurgia a que me submeti há alguns anos, para


ablação da próstata — cirurgia oncológica que, apesar de bem-sucedida,
não deixou de ter as consequências adversas quase inevitáveis em
intervenções semelhantes devido a lesão de nervos e cicatrizes internas -,
fiquei incontinente. Por isso, a primeira coisa que fiz ao chegar a casa,
depois de estar com Coleman, foi livrar-me do resguardo higiénico
absorvente que uso de noite e de dia, entalado no entrepernas das cuecas
como um cachorro quente no pão. Por causa do calor daquele anoitecer e do
facto de não ir a um lugar público ou a qualquer reuníão social, tentara
resolver o problema apenas com uns normais calções de algodão por cima
do resguardo, em vez dos de plástico, e por isso um pouco de urina passara
para as calças de caqui. Quando cheguei a casa descobri que estavam um
bocado manchadas na frente e havia um leve cheiro; os pensos são tratados
para evitar estes percalços, mas desta vez havia um pequeno odor. Deixara-
me absorver de tal maneira por Coleman e pela sua história que me
esquecera de me controlar. Durante o tempo todo em que estive em sua
rasa, a beber uma cerveja, a dançar com ele, a prestar atenção à clareza — à
racionalidade previsível e à clareza descritiva — que usava para tornar
menos inquietante para si mesmo aquela reviravolta que a sua vida levara,
não me retirara para verificar o estado em que me encontrava, como
costumo fazer nas horas em que estou acordado, e por isso o que me
acontece agora de vez em quando aconteceu naquela noite.
É claro que um revés desta natureza já não me abala tanto como abalava
nos primeiros meses após a operação, quando comecei a experimentar os
modos de lidar com o problema e quando, evidentemente, ainda não me
desabituara de ser um adulto que me sentia à vontade, seco e sem odores, na
posse de um domínio adulto das funções elementares do corpo, alguém que,
durante uns sessenta anos, tratara dos seus assuntos quotidianos sem se
preocupar com o estado da sua roupa interior. No entanto, não me livro de
pelo menos uma ponta de tristeza quando tenho de me confrontar com algo
mais sujo e embaraçoso do que a habitual incomodidade que faz agora parte
da minha vida, e ainda me desespera pensar que a contingência que define
virtualmente a primeira infância nunca conhecerá alívio.
A cirurgia também me deixou impotente. A terapia medicamentosa que
ainda era praticamente nova no Verão de 1998, mas que no curto tempo que
tinha de mercado já demonstrara ser algo parecido com um elixir
míraculoso, restaurador da potência funcional de tantos homens idosos, mas
noutros aspectos saudáveis, como Coleman, não tinha qualquer utilidade
para mim dadas as extensas lesões dos nervos causadas pela operação. Em
situações como a minha, o Viagra não podia fazer nada, embora eu não
creia que, mesmo que tivesse alguma utilidade, eu o tivesse tomado.
Quero tornar claro que não foi a impotência que me levou a uma
existência de reclusão. Pelo contrário. Eu já vivia e escrevia há cerca de
dezoito meses na minha casa de madeira com duas divisões, aqui em cima,
nos Berkshíre, quando, após um exame médico de rotina, 1me foi feito um
diagnóstico preliminar de cancro da próstata e, passado um mês, depois de
mais exames, fui a Boston para me submeter à prostatectomia. O que
pretendo esclarecer é que, ao mudar-me para aqui, modificara
deliberadamente o meu relacionamento com o chimfrim do sexo, não
porque os meus impulsos ou, sequer, as minhas erecções tivessem sido
efectivamente enfraquecidos pelo tempo, mas sim porque já não podia
suportar as suas exigências clamorosas, já não podia reunir o engenho, a
força, a paciência, a ilusão, a ironia, o ardor, o egoísmo, a flexibilidade —
ou a tenacidade, a astúcia, a falsidade, a simulação, a duplicidade, o
profissionalismo erótico — para lidar com o seu cortejo de significados
enganosos e contraditórios. Por esse motivo pude atenuar um pouco o meu
choque pós-operatório, ante a perspectiva de impotência permanente,
lembrando-me de que a cirurgia mais não fizera do que obrigar-me a manter
uma renúncia que já voluntariamente me tinha imposto. A cirurgia mais não
fez do que reforçar, tornar definitiva, uma decisão tomada de motu proprio
sob a pressão da experiência de toda uma vida de complicações, mas
tomada numa altura de plena, vigorosa e insatisfeita potência, quando
nenhum problema fisiológico detinha a indómita mania masculina de repetir
o acto — repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo.
Foi só quando Coleman me falou de si e da sua Voluptas que todas as
minhas reconfortantes ilusões acerca da serenidade alcançada através de
uma resignação esclarecida se dissiparam e perdi por completo o equilíbrio.
Fiquei acordado até a manhã ir alta, tão incapaz de controlar os meus
pensamentos como um louco, hipnotizado pelo outro casal e comparando
com o deles o meu estado de depleção. Fiquei acordado sem ao menos
tentar impedir-me de reconstruir mentalmente a "audácia transgressíva" à
qual Coleman se recusava a renunciar. E o facto de ter dançado, como um
eunuco inofensivo, com aquele participante ainda vigoroso e potente do
furor do sexo, pareceu-me de súbito tudo menos uma agradável
autocaricatura.

Como podemos dizer: "Não, isso não faz parte da vida", quando na
realidade faz, sempre? O contágio do sexo, a corrupção redentora que
desidealiza a espécie e nos mantém eternamente conscientes da matéria que
somos.

No meio da semana seguinte, Coleman recebeu a carta anónima de uma


só frase, com sujeito, predicado e tudo o mais, vigorosamente escrita, com
letras grandes, numa única folha de papel de máquina branco, uma
mensagem com dezassete palavras deliberadamente acusadoras e enchendo
a página de alto a baixo:

Toda a gente sabe que explora sexualmente uma mulher molestada e


analfabeta com metade da sua idade.

Tanto o sobrescrito como a carta propriamente dita tinham sido escritos


com uma esferográfica de tinta vermelha. Apesar do carimbo do correio da
cidade de Nova Iorque, Coleman reconheceu imediatamente a letra como
sendo da jovem francesa que dirigia o seu departamento quando ele
regressara ao ensino depois de ter abandonado as funções de reitor e que,
mais tarde, se contara entre os mais empenhados em vê-lo denunciado
como racista e admoestado pelo insulto que fizera às suas estudantes negras
absentistas.
Nos seus dossiês de Spooks, em alguns dos documentos a que o seu caso
dera origem, encontrou amostras de letra que confirmavam a sua
identificação de Delphine Roux, professora de Línguas e Literatura, como
autora da carta anónima. Além de ter escrito as primeiras quatro palavras
em letra de imprensa, não fizera qualquer esforço, de que Coleman se
apercebesse, para o despistar, falsificando a caligrafia. Talvez tivesse
começado com essa intenção, mas parecia tê-la abandonado, ou esquecido,
após escrever "Toda a gente sabe". No sobrescrito, a professora de origem
francesa não tivera sequer o cuidado de evitar os denunciadores setes à
europeia, com traço, no endereço e no código postal de Coleman. Este
descuido, estranha negligência tratando-se de uma carta anónima, em
ocultar os indícios da sua identidade, poderia ser explicado por se encontrar
num estado emocional extremo que a impedira de pensar bem no que estava
a fazer antes de expedir a carta, não fora o facto de esta não ter sido
expedida localmente — e apressadamente -, mas, a fazer fé no carimbo
postal, dar a impressão de ter sido transportada mais de duzentos
quilómetros para sul antes de ser posta no correio. Talvez ela tivesse
imaginado que não havia nada de característico ou fora do vulgar na sua
letra que permitisse a Coleman reconhecê-la do tempo em que fora reitor;
talvez não se tivesse lembrado dos documentos relacionados com o caso
dele, dos apontamentos da suas duas conversas com Tracy Cummings que
enviara à comissão de investigação da faculdade juntamente com o relatório
final assinado pelo seu punho. Talvez desconhecesse que, a pedido de
Coleman, a comissão lhe fornecera fotocópias dos originais das notas dela e
de todos os outros dados relativos à queixa apresentada contra ele. Ou
talvez não se importasse que ele percebesse quem descobrira o seu segredo:
talvez quisesse provocá-lo com a agressividade ameaçadora de uma
acusação anónima e, ao mesmo tempo, dar-lhe praticamente a entender que
essa acusação partira de uma pessoa a quem, agora, não faltava poder.
Na tarde em que Coleman me telefonou a pedir que fosse ver a carta
anónima, todas as amostras da letra de Delphine Roux, constantes das
pastas de Spooks, estavam cuidadosamente dispostas na mesa da cozinha,
tanto originais como cópias de originais que ele já examinara e em que
assinalara, com círculos vermelhos, todos os traços caligráficos que
considerava réplicas dos encontrados na carta anónima. Assinalara
sobretudo letras isoladas — um g, um s, um x, um e final com uma curva
larga aqui, um e um pouco parecido com um i quando precedia e se
encostava a um d, mas mais convencionalmente desenhado quando
antecedia um r -; no entanto, embora as semelhanças caligráficas entre a
carta e os documentos de Spooks fossem dignas de nota, só quando
Coleman me mostrou onde o seu nome completo aparecia no sobrescrito e
nos apontamentos da conversa dela com Tracy Cummings me pareceu
incontestável que ele desmascarara a culpada apostada em inculpá-lo.
Toda a gente sabe que explora sexualmente uma mulher molestada e
analfabeta com metade da sua idade.

Enquanto segurava a carta e, tão cuidadosamente quanto podia — e


Coleman pretendia -, avaliava a escolha de palavras e a sua disposição
linear, como se tivessem sido com postas não por Delphine Roux, mas por
Emily Dickinson, ele explicou-me que fora Faunia, levada pela sua
sabedoria selvagem, e não ele, quem impusera a ambos o segredo que
Delphine Roux parecia de algum modo ter descoberto e mais ou menos
veladamente ameaçava revelar. "Não quero que ninguém se meta na minha
vida. A única coisa que quero é uma queca sem pressão uma vez por
semana, pela calada, com um homem que já passou por tudo e está
agradavelmente calmo. E isso não é da porra da conta de ninguém."
O "ninguém" a quem Faunia se referia era, sobretudo, Lester Farley, seu
ex-marído, Não que ela tivesse sido maltratada na vida apenas por esse
homem: "Como poderia não ter sido, se fui obrigada a desenrascar-rrie
sozinha desde os 14 anos?" Quando tinha 17 anos por exemplo, e estava na
Florida a trabalhar como empregada de mesa, o seu namorado: de então não
só a espancou e lhe espatifou o apartamento como ainda lhe roubou o
vibrador. "Aquilo doeu", disse Faunia. E na origem dos maus tratos estava
sempre o ciúme, Ela olhara para outro homem da maneira errada, ela
encorajara outro homem a olhá-la d maneira errada, ela não explicara
convincentemente onde estivera meia hora antes, ele dissera uma palavra
que não devia ter dito, usara um tom que não devia ter usado insinuara,
imaginariamente, supunha, que era uma galdéria desprezível e traiçoeira:
enfim fosse qual fosse a razão, fosse qual fosse o homem, caía-lhe em cima
aos murros e pontapés e Faunia tinha de gritar por socorro.
Lester Farley mandara-a duas vezes para o hospital no ano anterior ao
seu divórcio, e como ainda estava a viver algures nos montes e, desde a
falência, a trabalhar para a brigada municipal de manutenção de estradas, e
como não havia dúvida alguma de que continuava. louco, ela afirmava que
tinha tanto medo por Coleman como por si mesma, se Farley algum vez
descobrisse o que se passava. Desconfiava de que Smoky a largara tão
precipitadamente, por causa de alguma espécie de discussão ou escaramuça
com Les Farley, o qual, espião furtivo periódico da ex-mulher, descobrira o
que se passava entre ela e o chefe, apesar de os lugares dos encontros de
Hollenbeck serem escolhidos com extraordinárias precauções, bem
escondidos em cantos isolados de antigos edifícios que ninguém, a não ser o
responsável pela estrutura física da universidade, conhecia ou aos quais
podia ter acesso, Se, por um lado, podia parecer temerário o facto de Smoky
recrutar namoradas entre o seu próprio pessoal da limpeza e encontrar-se
com elas ali mesmo, no campus. por outro ele fora tão meticuloso na gestão
da sua vida de prazer como no seu trabalho para a universidade. Com a
mesma eficiência profissional com que desimpedia em poucas horas os
caminhos do campus congestionados pelas nevascas, também conseguia, se
fosse necessário, livrar-se com igual desembaraço de uma das suas
raparigas.
— O que podia eu fazer? — perguntou-me Coleman. — Não era contra
manter este caso oculto antes mesmo de saber da existência do ex-marido
violento. Sabia que uma coisa deste género poderia acontecer. Mesmo
esquecendo que em tempos fui reitor onde ela limpa agora as retretes, tenho
71 anos e ela 34. Podia ter a certeza de que só isso bastaria. Assim, quando
me disse que ninguém tinha nada com isso, pensei: Tirou-me o problema
das mãos. Não preciso sequer de tocar no assunto. Levar as coisas como se
se tratasse de adultério? Por mim, estava bem. Foi por isso que fomos jantar
a Vermont. É por isso que, se nos cruzamos no posto dos correios, não nos
incomodamos sequer a dar os bons-dias.
— Talvez alguém os tenha visto em Vermont. Talvez alguém os tenha
visto juntos no seu carro.
— Claro, foi provavelmente isso que aconteceu. Só pode ter sido isso.
Talvez fosse o próprio Farley quem nos viu. Jesus, Nathan, eu não saía com
uma mulher há quase cinquenta anos... pensei que o restaurante ... Sou um
idiota.
— Não, não foi nada idiota. Não ... tornou-se apenas claustrofóbico.
Olhe, quanto a Delphine Roux ... não tenho a presunção de compreender
por que motivo ela se importaria tão veementemente com quem você anda a
dormir na sua reforma, mas, como sabemos, há pessoas que não vêem com
bons olhos alguém que não respeita as convenções e vamos supor que ela é
uma delas. Mas você não é. Você é livre. É um homem livre e independente.
Um velho livre e independente. Perdeu muito ao deixar a universidade, mas
já pensou no que ganhou? Como você mesmo disse, já não tem a obrigação
de instruir ninguém. E isto tão-pouco é um teste para saber se pode ou não
libertar-se de todas as inibições sociais. Pode estar reformado, mas não
deixa de ser um homem que passou praticamente a vida inteira dentro dos
limites da sociedade académica comunal.. Se bem o compreendi, isto é uma
coisa muito invulgar para si. Talvez nunca tenha querido que Faunia
acontecesse. Pode até estar convencido de que não devia ter querido que ela
acontecesse. Mas as defesas mais fortes estão crivadas de pontos fracos e,
por isso, a última coisa que poderia esperar infiltrou-se, entrou de
mansinho. Aos 71 anos, aparece Faunia; em 1998,, aparece o Viagra, e eis
de novo aquilo, a coisa quase esquecida. O enorme conforto. A força
infinita. A intensidade desorientadora. De repente, sem saber como, surge a
última grande aventura de Coleman Silk. Tanto quanto sabemos, a última
grande aventura do derradeiro momento. Digamos que as particularidades
da biografia de Faunia Farley formam um contraste inverosímil com as da
sua. Digamos que não correspondem ao modelo imaginário da decência
aplicável a quem devia estar na cama com um homem da sua idade e da sua
posição, admitindo que alguém devia estar. E as consequências de você ter
dito a palavra -spooks estão, por acaso, conformes com o modelo de
decência? A trombose de Iris está conforme com o modelo de decência?
Ignore essa carta ridiculamente estúpida. Por que há-de permitir que ela o
detenha?
— Carta anónima ridiculamente estúpida. Quem me enviou, jamais, uma
carta anónima?
Quem, capaz de pensar racionalmente, envia uma carta anónima a
alguém?
— Talvez isso seja uma coisa de franceses — lembrei. — Não proliferam
em Balzac? Em Stendhal? Não há cartas anónimas em O Vermelho e o
Negro?
— Não me lembro.
— Olhe, por qualquer razão, tudo quanto você faz tem de ter a
inexorabilidade como explicação e tudo quanto Delphine Roux faz tem de
ter a virtude como explicação. Não está a mitologia povoada de gigantes,
monstros e serpentes? Ao defini-lo como um monstro, ela define-se como
uma heroína. Essa é a maneira dela de aniquilar o monstro. É a sua
vingança por você predar os indefesos. Ela está a dar a tudo isso um
estatuto mitológico.
Percebi, pelo sorriso indulgente que me lançou, que não estava a sair-me
muito bem ao apresentar, ainda que de brincadeira, uma interpretação pré-
homérica da acusação anónima.
— Não é na criação de mitos que pode encontrar uma explicação para o
modo como os mecanismos mentais dela funcionam. Delphine Roux não
possui os recursos imaginativos necessários para a criação de mitos. O seu
métier são as histórias que os camponeses contam para explicar a sua
miséria. O mau-olhado. Os feitiços. Eu enfeiticei Faunia. O seu métier são
as histórias folclóricas cheias de bruxas e bruxos.
Agora estávamos a divertir-nos, e eu compreendi que, ao esforçar-me
para o distrair do seu furioso ressentimento saindo em defesa da primazia
do seu prazer, dera um empurrão à sua simpatia por mim e expusera a
minha por ele. Transbordava de afecto, e sabia-o. Surpreendi-me com a
minha ânsia de agradar, senti-me a dizer de mais, a explicar de mais, senti-
me demasiado envolvido e demasiado excitado como quando, em miúdos,
julgamos ter encontrado uma alma gémea no rapaz que veio morar ao fundo
da rua e nos sentimos tão atraídos pela força dessa espécie de namoro que
procedemos de maneira diferente da que é normal em nós e muito mais
abertamente do que até nós próprios desejaríamos. Mas desde que ele me
batera à porta no dia seguinte à morte de Iris e me propusera que escrevesse
Spooks em seu nome, mergulhara, sem o perceber ou planear, numa séria
amizade com Coleman Silk. Não me interessava pela sua complicada
situação por mero exercício mental. As suas dificuldades eram importantes
para mim, apesar da minha determinação de me preocupar, no tempo que
porventura me resta, única e exclusivamente com as exigências quotidianas
do trabalho, de não me deixar absorver por mais nada além do trabalho
consistente, de não procurar aventura em mais nada — de não ter sequer de
me preocupar com uma vida própria, minha, quanto mais com a de outra
pessoa qualquer.
E foi com alguma decepção que tomei consciência de tudo isto. A
renúncia à companhia, a abstenção do divertimento, uma ruptura auto-
imposta com toda, absolutamente toda, a aspiração profissional, ilusão
social, veneno cultural e intimidade sedutora, uma reclusão rigorosa como a
praticada por devotos religiosos que se enclausuram em cavernas, Idas ou
cabanas isoladas na floresta, tudo isso se alimenta de uma substância mais
resistente e inflexível do que aquela de que sou feito. Resistira sozinho
apenas cinco anos, cinco anos passados a ler e escrever a alguns
quilómetros de altitude, na encosta de Madamaska Mountain, numa
agradável casa de madeira de duas divisões situada entre uma pequena
lagoa nas traseiras da casa e, para lá dos arbustos do outro lado de um
caminho de terra, um pântano de cerca de cinco hectares onde os gansos
selvagens migradores do Canadá se abrigam todas as noites e uma paciente
garça azul pesca, solitária, o Verão inteiro. O segredo de viver com um
mínimo de sofrimento na voragem do mundo reside em atrair o maior
número de pessoas para as nossas ilusões; o truque para viver sozinho aqui
em cima, longe de todas as perturbadoras confusões, seduções e
expectativas, afastado, sobretudo, da própria intensidade, consiste em
organizar o silêncio, em pensar na sua plenitude de cume de montanha
como capital, no silêncio como riqueza crescendo exponencialmente. No
silêncio circundante como a fonte de proveito que escolhemos e a nossa
única coisa íntima. O truque consiste em encontrar sustento (Hawthorne, de
novo) nas comunicações de uma mente solitária consigo mesma". O
segredo consiste em encontrar sustento em pessoas como Hawthorne, na
sabedoria dos mortos talentosos.
Precisei de tempo para dominar as dificuldades geradas por esta escolha,
de tempo e paciência de garça para silenciar os desejos de tudo quanto
desaparecera, mas decorridos cinco anos tornara-me tão hábil no acto de
trinchar cirurgicamente os meus dias que já não havia uma única hora da
existência estéril de acontecimentos que abraçara que não tivesse a sua
importância para mim. A sua necessidade. A sua excitação, até. Já não me
dava ao luxo do desejo pernicioso de qualquer outra coisa e achava que a
última coisa que poderia suportar de novo seria a companhia constante de
outra pessoa. A música que ouço depois de jantar não é um lenitivo do
silêncio, mas algo semelhante à sua substancialização: ouvir música uma ou
duas horas todas as noites não me priva do silêncio; pelo contrário, a
música é o silêncio a tornar-se realidade. No Verão, a primeira coisa que
faço todas as manhãs é nadar meia hora na minha lagoa, e no resto do ano,
depois da manhã de escrita e enquanto a neve não impossibilita a
caminhada, passeio duas horas pelos caminhos da montanha quase todas as
tardes. Não houve qualquer recorrência do cancro que me custou a próstata.
Tenho sessenta e cinco anos, estou em forma, sinto-me bem, trabalho muito
— e sei como é. Tenho de saber.
Sendo assim, e tendo transformado a experiência da reclusão radical
numa existência solitária rica e plena, por que motivo havia,
inesperadamente e sem mais nem menos, de me sentir só, privado? Mas
privado de quê? O que passou, passou. Não é possível abrandar o rigor,
desfazer as renúncias. Só, privado de quê, precisamente? É simples: daquilo
por que adquirira uma aversão. Daquilo a que virara as costas. De vida. Do
envolvimento com a vida.
Foi deste modo que Coleman se tornou meu amigo e eu abandonei a
força corajosa de viver só na minha casa isolada e fazer frente aos golpes do
cancro. Dançando, Coleman Sil devolvera-me directamente à vida. Primeiro
a universidade de Athena, depois eu: ali esta um homem que fazia acontecer
coisas. Na realidade, a dança que selou a nossa amizade foi também o que
tornou o seu infortúnio assunto meu. E tornou a sua dissimulação assunto
meu. E fez com que a revelação adequada do seu segredo se tornasse um
problema que eu teria de resolver. Foi assim que deixei de ser capaz de
viver afastado da turbulência e intensidade de que fugira. Bastou-me
encontrar um amigo para que toda a malignidade do mundo avançasse de
roldão, impetuosamente.

Mais para o fim dessa tarde, Coleman levou-me a uma pequena herdade
leiteira, a cerca de dez quilómetros da sua casa, para conhecer Faunia. Era
lá que ela morava sem pagar renda, a troco de fazer a ordenha, de vez em
quando. A empresa leiteira, agora já com alguns anos, fora criada por duas
divorciadas, ambientalistas que se tinham formado na universidade, eram
oriundas de famílias de agricultores de Nova Inglaterra e tinham juntado os
seus recursos — e também os seus filhos pequenos, seis crianças que, como
gostavam de dizer aos seus clientes, não dependiam da Rua Sésamo para
saberem de onde vinha o leite — para se lançarem na aventura quase
impossível de ganhar a vida com a venda de leite em estado natural. Era um
empreendimento único, sem qualquer semelhança com o que se passava nas
grandes herdades leiteiras, sem nada de impessoal ou industrial, um lugar
onde a maioria das pessoas dos nossos dias não veria qualquer semelhança
com uma herdade leiteira. Chamava-se Organic Livestock e engarrafava e
fornecia o leite em estado natural que se encontrava à venda nos armazéns
locais e em alguns supermercados da região, além de estar disponível, na
herdade, para clientes regulares, que compravam doze litros ou mais por
semana.
Havia apenas doze vacas, todas Jerseys de raça pura, e cada uma com um
nome de vaca à moda antiga em vez de uma etiqueta de identificação na
orelha. Porque o leite delas não era misturado com o de vacas de enormes
manadas às quais são injectadas drogas de toda a espécie, e porque, isento
das consequências da homogeneização e da pasteurização, adquiria os
laivos, e até o leve sabor, do que quer que as vacas comiam estação após
estação — alimentos cultivados sem recorrer ao uso de herbicidas,
pesticidas ou adubos químicos -, e também porque era mais rico em
nutrientes do que o misturado, o leite da herdade era apreciado pelos
habitantes das redondezas, que se esforçavam por compor a dieta da família
com alimentos integrais em vez de processados. A herdade contava com
uma forte clientela, sobretudo entre as muitas pessoas que se tinham
instalado ali em cima, tanto para gozar a reforma como para criar os filhos,
fugindo da poluição, das frustrações e dos problemas das cidades grandes.
O semanário local publicava regularmente uma carta ao editor de alguém
que encontrara recentemente uma vida melhor ao longo daquelas estradas
rurais E não deixava de referir, em termos elogiosos, o leite da Organics
Livestock, não apenas corno uma bebida saborosa mas também como o
símbolo de uma pureza campestre revigorante e apaziguadora, tão
necessária ao seu idealismo maltratado pela cidade. Palavras como
"bondade" e "alma" surgem regularmente nessas cartas, como se beber um
copo de leite da Organics Lívestock fosse, além de uma bênção nutricional,
um rito religioso redentor "Quando bebemos leite da Organic Livestock, o
nosso corpo, a nossa alma e o nosso espírito são alimentados como um
todo. Vários órgãos do nosso corpo recebem esta integralidade e apreciam-
na de uma maneira que pode passar-nos despercebida." Frases deste género
eram escritas por indivíduos adultos e em tudo o mais sensatos, mas que,
libertos dos aborrecimentos que os tinham feito sair de Nova Iorque,
Hartford ou Boston, sentiam prazer em passar alguns minutos agradáveis à
secretária, fingindo que eram miúdos de sete anos.
Embora, ao todo, provavelmente não utilizasse mais do que o meio copo
de leite que deitava nos cereais da manhã, Coleman inscrevera-se na
Organic Livestock como um clíente de doze litros de leite por semana. Isso
permitia-lhe ir buscar o seu leite à quinta, acabado de sair da vaca: metia-se
no carro, saía da estrada e seguia pelo longo caminho de tractores até ao
estábulo, apeava-se, entrava no estábulo e tirava o seu leite fresquinho do
frigorífico. Optara por este esquema não para beneficiar do desconto
concedido aos clientes de doze litros semanais, mas porque o frigorífico
estava instalado logo à entrada lia vacaria e apenas a uns cinco metros da
baia aonde as vacas eram conduzi das para serem ordenhadas, uma por
uma, duas vezes por dia, e onde às cinco da tarde (quando ele chegava),
Faunia, terminado o seu trabalho na universidade, se encarregava da
ordenha diversas vezes por semana.
A única coisa que fazia era vê-la trabalhar. Embora raramente houvesse
mais alguém por ali àquela hora, Coleman ficava no exterior da baia, a
observar, e deixava-a fazer o seu trabalho sem ter de se incomodar a falar
com ele. A maior parte das vezes não diziam nada, porque não dizer nada
intensificava o prazer que sentiam. Faunia sabia que ele estava a observá-la,
e, sabendo que ela sabia, Coleman observava-a ainda com maior
concentração. o facto de não poderem acasalar ali mesmo, no chão térreo,
não fazia a mínima diferença. Bastava estarem os dois sozinhos, sem ser na
cama dele; bastava terem de manter a naturalidade de estarem separados por
obstáculos sociais intransponíveis, desempenharem os seus papéis de
trabalhadora agrícola e professor universitário aposentado; bastava
comportarem-se, de modo consumado, ela como uma mulher trabalhadora,
forte e magra, de 37 anos, praticamente analfabeta e silenciosa, uma
campónia primitiva toda músculo e osso, acabada de vir do pátio de
forquilha na mão, depois de limpar a porcaria da ordenha da manhã, e ele
como um cidadão idoso e sério, de 71 anos, classicista eminente, grande
intelectual com o cérebro repleto de vocabulários de duas línguas antigas.
Bastava serem capazes de se conduzirem como duas pessoas que não
tinham nada, absolutamente nada, em comum, sem esquecerem um
momento a capacidade mútua de destilarem e concentrarem numa essência
orgástica tudo quanto havia neles de irreconciliável, as discrepâncias
humanas que produziam toda a energia. Bastava sentirem o frémito de uma
vida dupla.
À primeira vista, pouco havia susceptível de aumentar excessivamente as
expectativas carnais de alguém na mulher magra e esgalgada, suja de terra,
de calções, T-shirt e botas de borracha, que eu vi naquela tarde com a
manada e que Coleman identificou como sendo a sua Voluptas. As criaturas
de aspecto carnalmente peremptório eram aquelas cujos corpos ocupavam o
espaço todo, as vacas cor de creme, com os flancos largos a oscilar
livremente, as panças grandes como barricas e os úberes imensamente
túmidos de leite, ao ponto de parecerem caricaturas, as mansas,
pachorrentas e pacíficas vacas, cada qual uma indústria ambulante de
autocomprazimento com mais de seiscentos quilos, animais de grandes
olhos para os quais remoer num extremo de uma manjedoura enquanto
eram sugadas até ficarem secas no outro, e não por uma, duas ou três, mas
por quatro latejantes e infatigáveis bocas mecânicas — para os quais a
estimulação sensual simultânea em ambos os extremos era o seu voluptuoso
e justo direito. Cada uma delas mergulhada numa existência bestial
abençoadamente isenta de significado espiritual: esguichar leite, ruminar,
defecar e mijar, pastar e dormir, a isso se resumia toda a sua raison d'être.
De tempos a tempos (explicou-me Coleman), um braço humano revestido
de uma comprida luva de plástico entra no recto para remover o esterco e
depois, tacteando com a luva pela parede rectal, guia o outro braço na
introdução de uma pistola de inseminação, tipo seringa, no tracto
reprodutivo, a fim de depositar o sémen. Isso significa que as vacas
procriam sem precisarem de ser importunadas pelo touro, apaparicadas até
na reprodução e depois assistidas no parto — que, segundo Faunia, pode
tornar-se um processo emocional para todos os intervenientes, mesmo com
temperaturas abaixo de zero em noites de nevasca. Não lhes falta nada, têm
tudo do bom e do melhor no aspecto físico, incluindo o prazer de ruminar
com toda a calma fartas quantidades espapaçadas e pingosas do próprio
bolo alimentar fibroso. Poucas cortesãs levaram vida tão regalada, quanto
mais mulheres trabalhadoras.
Entre aquelas criaturas saciadas e a sua aura de opulenta e telúrica
harmonia com a abundância feminina, era Faunia quem trabalhava como
uma besta de carga, apesar de, emoldurada pelas vacas, parecer um dos
pesos-pluma mais patéticos da evolução. Chamando-as para saírem do
barracão aberto onde estavam tranquilamente estiraçadas numa mistura de
feno e bosta — "Vamos, Daisy, não me compliques a vida. Então, Maggie,
porta-te como uma boa menina. Mexe-me esse eu, Flossie, velho coirão" -,
agarrando-as pelo cachaço e puxando-as com meiguice pelo lamaçal do
pátio, fazendo-as subir um degrau para o piso de cimento da sala de
ordenha, empurrando aquelas avantajadas Daisys e Maggies na direcção da
manjedoura até ficarem bem seguras no espeque, medindo e servindo a
cada uma a ração respectiva de vitaminas e alimento, desinfectando-lhes e
enxugando-lhes as tetas e iniciando a saída do leite com alguns movimentos
das mãos e colocando nas tetas esterilizadas os copos de sucção das
extremidades do aparelho de ordenhar, estava em constante actividade,
atenta a cada fase do processo, mas, em exagerado contraste com a
obstinada docilidade dos animais, não parava de se mexer com uma
diligência de abelha até o leite correr pelo tubo transparente para o
reluzente balde de aço inoxidável. Só então parava e ficava sossegada a
observar, para ter a certeza de que tudo estava a funcionar como devia ser e
a vaca também estava sossegada. Depois voltava a movimentar-se,
massajava o úbere para se certificar de que o animal estava bem ordenhado,
retirava os copos de sucção, deitava a ração para a vaca que mungiria
depois de soltar a mungida do espeque, levava o grão para a vaca seguinte,
no outro espeque e depois, dentro dos confins daquele espaço reduzido,
agarrava a vaca mungida pelo cachaço, virava o seu enorme corpanzil,
dava-lhe um empurrão com o ombro e dizia-lhe, em tom mandão: "Põe-te a
andar daqui, põe-te a andar, vamos ... ", enquanto a conduzia pelo hmaçal
de regresso ao barracão.
Faunia Farley. pernas magras, pulsos magros, braços magros, costelas
claramente desenhadas na camisola e omoplatas salientes. No entanto,
quando o esforço lhe retesava o corpo, víamos que os seus membros eram
duros; quando se esticava ou estendia os braços para qualquer coisa, víamos
que os seus seios eram surpreendentemente firmes e robustos, e quando, por
causa das moscas e dos mosquitos que zumbiam à volta da manada naquele
abafado dia de Verão, dava uma palmada no pescoço ou nas costas,
entrevíamos como era capaz de ser brincalhona, apesar do estilo
aparentemente sério. Percebíamos que o seu corpo era algo mais do que
eficientemente magro e severo, que ela era uma mulher de constituição
firme, em equilíbrio precário no momento em que já atingiu a maturidade
mas ainda não iniciou o declínio, uma mulher no apogeu do apogeu, cujo
punhado de cabelos brancos é fundamentalmente enganador pelo simples
facto de os pronunciados contornos ianques das suas faces e do seu queixo e
o seu longo pescoço inequivocamente feminino .ainda não terem sofrido as
transformações do envelhecimento.
— Este é o meu vizinho — disse-lhe Coleman, quando ela aproveitou um
momento para limpar o suor do rosto com a curva do cotovelo e olhar na
nossa direcção. — Nathan.
Eu não esperara compostura. Esperara alguém claramente mais zangado.
Ela só demonstrou que me via com um movimento brusco do queixo, mas
foi um gesto que disse muito. Era um queixo muito eloquente, o seu.
Empinado, como geralmente o mantinha, dava-lhe virilidade. Isso também
se encontrava na reacção: havia algo viril e implacável, além de um pouco
reles, naquele olhar directo. O olhar de alguém para quem tanto o sexo
como o coração são tão básicos como o pão. O olhar do fugitivo e o olhar
gerado pela irritante monotonia da pouca sorte. O seu cabelo, o cabelo
louro-dourado na dolorosa primeira fase da inevitável transformação, estava
preso atrás por um elástico, mas uma madeixa caía-lhe constantemente para
a sobrancelha enquanto trabalhava, e agora, ao olhar em silêncio na nossa
direcção, ela puxou-a para trás com a mão e eu reparei, pela primeira vez,
num pequeno traço fisionómico que, talvez erradamente, visto eu procurar
um indício qualquer, produziu o efeito de uma coisa reveladora: a
tumescência convexa do estreito arco de carne entre a crista da sobrancelha
e as pálpebras superiores. Ela era uma mulher de lábios finos, nariz recto,
olhos azuis claros, bons dentes e queixo proeminente, e aquele papo de
carne logo abaixo das sobrancelhas constituía o seu único traço exótico, o
único símbolo de sedução, uma coisa túmida de desejo. E também
contribuía muito para o que havia de perturbadoramente obscuro na dura
monotonia do seu olhar.
No conjunto, Faunia não era a sedutora sereia que nos deixa sem fôlego,
mas uma mulher de feições regulares, a respeito da qual pensamos que
devia ter sido muito bonita quando era criança. E foi: segundo Coleman, foi
uma bonita criança loura com um padrasto rico e uma mãe sem carácter que
não a protegeu.
Ficámos ali a observar, enquanto ela mungia cada uma das onze vacas —
Daisy, Maggie, Flossie, Bessy, Dolly, Maiden, Sweetheart, Stupid, Emma,
Friendly e Jill-, ficámos ali enquanto repetia a mesma rotina invariável com
cada uma delas, e quando isso terminou e ela passou para a sala de paredes
caiadas com grandes pias de lavagem, mangueiras e aparelhos de
esterilização contígua ao espaço de ordenha, observámo-la pela porta a
misturar a solução de lixívia e os agentes de limpeza e, depois de separar o
tubo de vácuo do tubo transportador e os copos de sucção do braço de que
pendiam e os dois baldes das suas tampas — enfim, depois de desmontar
toda a aparelhagem de ordenha que levara para ali consigo -, observámo-la
a trabalhar com uma variedade de escovas e bacias e mais bacias de
lavagem cheias de água limpa, esfregando bem todas as superfícies de todos
os tubos, válvulas, juntas, batoques, tabuleiros, camisas, tampas, discos e
êmbolos, até ficar tudo imaculadamente limpo e desinfectado. Antes de
Coleman tirar o seu leite, voltarmos para o carro e partirmos, ele e eu
ficáramos cerca de hora e meia parados junto do frigorífico e, tirando as
palavras que ele disse para me apresentar, não se ouviu nenhuma voz
humana. Os únicos sons que ouvíamos era o sussurro de asas e o piar das
andorinhas-da-chaminé que ali nidificavam à vontadeentre as traves, onde o
estábulo abria atrás de nós, as bolinhas a cair no cocho de cimento quando
ela sacudia o balde da ração e o bater abafado de cascos que mal se
levantavam do chão na sala de ordenha quando Faunia, empurrando-as,
puxando-as e guiando-as, colocava as vacas no espeque, e depois o ruído da
sucção, o respirar suave e profundo da bomba de ordenhar.
Quatro meses depois, quando já estavam ambos enterrados, recordava-
me daquela sessão de ordenha como se tivesse sido uma representação
teatral em que desempenhara o papel de um figurante, um extra, que é na
realidade o que sou agora. Passava as noites insone, uma após outra,
incapaz de dormir porque não conseguia deixar de estar lá, no palco, com os
dois actores principais e o coro de vacas, observando a cena,
impecavelmente representada por todo o elenco, de um velho apaixonado a
ver trabalhar a empregada de limpeza-criada de lavoura e sua amada
secreta: uma cena de pathos, hipnose e subjugação sexual, em que tudo
quanto a mulher faz com aquelas vacas, o modo como lida com elas, lhes
toca, as cuida, lhes fala, de tudo isso o sôfrego fascínio dele se apropria;
uma cena em que, possuído por uma força tanto tempo reprimida dentro de
si que praticamente se extinguira, um homem revelou, diante dos meus
olhos, a ressurgência desse estonteante Império. Foi, suponho, algo
parecido com ver Aschenbach observar febrilmente Tadzio, o seu desejo
sexual exacerbado, incendiado pela realidade angustiante da mortalidade,
com a diferença de que nós não estávamos num hotel de luxo do Lido de
Veneza nem éramos personagens de um romance escrito em alemão nem
mesmo, nesse tempo, de um romance escrito em inglês: estávamos em
pleno Verão e encontrávamo-nos num estábulo no Nordeste do nosso país,
na América, e no ano da impugnação presidencial americana, e, nessa
altura, havia tanto de romanesco em nós como de mitológico ou
embalsamado nas vacas. A luz e o calor do dia (essa bênção), a imutável
tranquilidade da vida de cada vaca análoga à de todas as outras, o velho
apaixonado a observar a flexibilidade da mulher activa e eficiente, a
adoração a crescer nele, o seu ar de alguém a quem nunca acontecera nada
mais excitante, e, sim, também a minha própria espera voluntária, o meu
próprio fascínio pela imensa disparidade existente entre os dois como tipos
humanos, com a não-uniformidade, a variabilidade, a prolífica
irregularidade das configurações sexuais — e com a imposição que nos é
feita, a humanos e bovinos, aos altamente diferenciados e aos praticamente
indiferenciados, de vivermos, não apenas de suportarmos a vida, mas de
vivermos, de continuarmos a receber, a dar, a alimentar, a ordenhar, a
reconhecer com toda a sinceridade, como o enigma que é, o sentido sem
sentido de viver -, tudo foi registado como real por dezenas de milhares de
minúsculas impressões. A saciedade sensorial, a pletora, o abundante —
superabundante — pormenor da vida que é a rapsódia. E Coleman e Faunia,
ambos agora mortos, levados pela corrente do inesperado, dia a dia, minuto
a minuto, eles próprios pormenores nessa superabundância.
Nada dura e, todavia, nada acaba, também. E nada acaba precisamente
porque nada dura. Os problemas com Les Farley começaram mais tarde,
nessa noite, quando Coleman ouviu qualquer coisa mexer nos arbustos, no
exterior, achou que não se tratava de um gamo ou de um racoon, levantou-
se da mesa da cozinha onde ele e Faunia tinham acabado de comer o
espaguete do jantar e, da porta da, cozinha e à meia-luz estival do anoitecer,
distinguiu um homem a correr pelo campo das traseiras da casa, na direcção
do bosque. "Eh, você! Pare!", gritou, mas o homem desapareceu
rapidamente entre as árvores, sem parar nem olhar para trás. Não era a
primeira vez que, nos últimos meses, tivera a impressão de estar a ser
observado por alguém escondido a pouca distância da casa, mas até àquela
noite fora sempre mais tarde e estava demasiado escuro para saber ao certo
se tinham sido os movimentos de um bisbilhoteiro ou de um animal que
tinham chamado a sua atenção, E nas vezes anteriores encontrava-se sempre
sozinho. Esta era a primeira vez que Faunia estava presente e foi ela quem,
sem precisar de ver o vulto do homem a atalhar pelo campo, identificou o
intruso como o seu ex-marído.
Contou a Coleman que, depois do divórcio, Farleya espiara
constantemente, mas nos meses seguintes à morte dos seus dois filhos,
quando a acusava de os ter morto com a sua negligência, tornara-se
assustadoramente implacável. Saíra-lhe duas vezes ao caminho, de repente,
uma no parque de estacionamento de um supermercado e outra quando ela
estava numa estação de serviço, e gritara-lhe pela janela da pick-up. "Puta
assassina! Galdéría assassina! Mataste os meus filhos, grande puta
assassina" Havia muitas manhãs em que, quando ia para a universidade,
olhava para o retrovisor e via a pick-up e, atrás do pára-brísas, o rosto dele e
os seus lábios a desenharem as palavras: "Assassinaste os meus fílhos"
Algumas vezes seguia-a na estrada, quando ela regressava do trabalho a
casa. Nesse tempo Faunia ainda morava na metade que não ardera do
bungalow-garagem onde os filhos tinham morrido asfixiados, em
consequência do fogo ateado pelo aquecedor, e fora o medo dele que a
levara a mudar-se para um quarto em Seeley Falls e a seguir, depois de uma
tentativa de suicídio gorada, para o quarto da herdade leiteira, onde as duas
proprietárias e os seus filhos pequenos estavam quase sempre perto e o
perigo de ser abordada por ele não era tão grande. Depois da segunda
mudança, a pick-up de Farley passou a aparecer com menos frequência no
seu retrovisor, e quando decorreram alguns meses sem dar qualquer sinal de
vida, Faunia teve esperança de que se livrara dele para sempre. Mas agora
estava convencida de que Farley descobrira de algum modo o que havia
entre ela e Coleman e, enfurecido de novo com tudo quanto sempre o
enfurecera nela, tinha reatado a dementada espionagem, escondido no
exterior da casa de Coleman para ver o que ela lá estava a fazer. O que eles
lá estavam a fazer.
Nessa noite, quando Faunia se meteu no seu carro — o velho Chevrolet
que Coleman preferia que ela arrumasse, fora das vistas, no seu barracão -,
Coleman resolveu segui-la de perto, no seu próprio automóvel, durante os
cerca de dez quilómetros até chegar em segurança ao caminho de terra que
passava pelo estábulo e conduzia à casa da herdade. E depois, no regresso,
prestou atenção, para ver se alguém vinha atrás dele. Quando chegou,
dirigiu-se a pé do telheiro onde deixava o carro para casa, a brandir uma
chave de rodas numa das mãos, em todas as direcções, na esperança de que
isso mantivesse à distância alguém que porventura estivesse de atalaia no
escuro.
Na manhã seguinte, depois de passar oito horas na cama às voltas com as
suas preocupações, resolveu não apresentar queixa à polícia estadual. Como
não era possível estabelecer positivamente a identidade de Farley, a polícia
nada poderia fazer contra ele, e se constasse que Coleman a contactara, isso
só serviria para corroborar os boatos que já corriam a respeito do antigo
reitor e da mulher da limpeza da universidade de Athena.
Mas essa decisão não significou que, após a noite de insónia, Coleman se
resignasse a não fazer nada a respeito de tudo: depois do pequeno-almoço
telefonou ao seu advogado, Nelson Primus, e nessa tarde foi a Athena para
o consultar quanto à carta anónima e, comunicando a sugestão de Primus
para que esquecesse o assunto, convenceu-o a escrever o seguinte a
Delphine Roux, para a universidade: "Cara Ms. Roux: Represento Coleman
Silk. Há alguns dias, a senhora enviou a Mr. Silk uma carta anónima que é
ofensiva, difamatória e lesiva para o meu cliente. O conteúdo da sua carta é
o seguinte: "Toda a gente sabe que explora sexualmente uma mulher
molestada e analfabeta com metade da sua idade." Lamentavelmente, a
senhora intrometeu-se numa coisa que não lhe diz respeito. Ao fazê-lo,
violou os legítimos direitos de Mr. Silk e expôs-se a ser processada.
Poucos dias depois, Primus recebeu três frases curtas do advogado de
Delphine Roux.
Coleman sublinhou a vermelho a frase do meio, que negava
terminantemente ser Delphine Roux a autora da carta anónima: "Nenhuma
das afirmações da sua carta é verdadeira", escrevera o advogado dela a
Primus, "e todas são, na realidade, dífamatórias"
Coleman obteve imediatamente, do seu advogado, o nome de um
examinador oficial de documentos, de Boston, um perito em grafologia que
fazia trabalho forense para empresas privadas, agências governamentais
americanas e para o estado, e no dia seguinte meteu-se no carro e percorreu
o trajecto de três horas até Boston, a fim de entregar pessoalmente ao perito
as suas amostras da caligrafia de Delphine Roux, assim como a carta
anónima e o respectivo sobrescrito. Recebeu as conclusões pelo correio, na
semana seguinte. A seu pedido", dizia o relatório, "examinei e comparei
cópias de caligrafia conhecida de Delphine Roux com um bilhete e um
sobrescrito dirigido a Coleman Silk, ambos questionados e anónimos.
Pediu-me que determinasse a autoria da caligrafia dos documentos
questionados. O meu exame abrange características caligráficas como
inclinação, espaçamento e formação das letras, qualidade da linha, modelo
de pressão, proporção, inter-relação de altura das letras, ligações e formação
de iniciais e traço terminal. Baseado nos documentos que me foram
apresentados, é minha opinião profissional que a mão que escreveu tolas as
amostras atribuídas a Delphine Roux é a mesma que escreveu o bilhete e o
sobrescrito questionados e anónimos. Cumprimentos, Douglas Gordon,
CDE(6)." Quando Coleman entregou o relatório do perito a Nelson Primus,
com instruções para enviar uma cópia ao advogado de Delphine Roux,
Primus já não levantou qualquer objecção, apesar de lhe custar multo vê-lo
quase tão furioso como na altura da sua crise com a universidade.
Ao todo, tinham decorrido oito dias desde a noite em que Coleman vira
Farley fugir para o arvoredo, oito dias durante os quais decidira que seria
melhor Faunia manter-se afastada e comunicarem pelo telefone. A fim de
não despertar a ninguém, fosse quem fosse, o desejo de espiar qualquer dos
dois, também não foi à herdade buscar o seu leite e permaneceu o mais
possível em casa, onde manteve, no entanto, uma vigilância cuidadosa,
sobretudo depois de escurecer, para descobrir se andava alguém a
bisbilhotar. E recomendou a Faunia que, pelo seu lado, também estivesse
atenta, tanto na herdade como ao retrovisor, quando saísse no carro para ir a
algum lado. "É como se fôssemos uma ameaça à segurança pública", disse-
lhe ela a rir, com a sua gargalhada especial. "À segurança pública não: à
saúde pública", respondeu ele. -Estamos em transgressão com o Ministério
da Saúde"
Ao fim dos oito dias, quando pôde, pelo menos, confirmar a identificação
de Delphine Roux como a autora da carta, ainda que não a de Farley como
o invasor da sua propriedade, Coleman decidiu decidir que fizera tudo
quanto estava ao seu alcance para se proteger de toda aquela desagradável e
irritante intromissão. Quando Faunia lhe telefonou nessa tarde, durante a
sua hora de almoço, e lhe perguntou: "A quarentena acabou?", ele sentiu-se,
enfim, suficientemente livre da sua ansiedade — ou decidiu decidir que se
sentia — para lhe dar luz verde.
Como esperava que ela aparecesse por volta das sete da tarde, tomou um
comprimido de Viagra às seis e, depois de se servir de um copo de vinho,
saiu com o telefone para se sentar numa cadeira de jardim e telefonar à
filha. Ele e Iris tinham criado quatro filhos: dois rapazes, agora na casa dos
quarenta e ambos professores universitários de ciências, casados, com filhos
e residentes na costa ocidental, e os gémeos, Lisa e Mark, solteiros, no fim
da casa dos trinta e ambos residentes em Nova Iorque. Todos os seus filhos,
menos um, tentavam vir aos Berkshire três ou quatro vezes por ano, para
visitarem o pai, e todos os meses comunicavam telefonicamente com ele. A
excepção era Mark, que toda a vida estivera em desacordo com o pai e,
esporadicamente, cortava por completo relações com ele.
Coleman ia ligar a Lisa porque se lembrara de que não falava com ela
havia mais de um mês, possivelmente até de dois. Talvez se estivesse
apenas a render a um passageiro sentimento de solidão que passaria quando
Faunia chegasse, mas, fosse qual fosse o motivo, estava longe de supor,
antes de ligar, o que o esperava. A última coisa que desejava era, sem
dúvida, mais oposição, sobretudo da parte daquela filha cuja voz — doce,
melodiosa, e ainda juvenil, apesar de doze difíceis anos como professora no
Lower East Side — bastava, sempre, para o apaziguar, para o acalmar, e
algumas vezes, até, para mais do que isso: para se apaixonar de novo por
ela. Talvez estivesse a fazer o mesmo que muitos pais idosos quando, por
qualquer de numerosas razões diferentes, fazem um telefonema de longa
distância para um reviver momentâneo de antigos pontos de referência. A
contínua e inequívoca história de ternura entre Coleman e Lisa faziam dela
a pessoa a quem menos desejava afrontar entre as que ainda lhe eram
chegadas.
Cerca de três anos atrás — antes do incidente dos -spooks- -, quando Lisa
perguntava a si mesma se não teria cometido um erro tremendo ao deixar o
ensino tradicional para se tornar professora de Recuperação de Leitura,
Coleman tinha ido a Nova Iorque e ficado lá vários dias, para avaliar em
que estado ela se encontrava. Nessa altura Iris ainda estava viva, bem viva,
mas não era da sua enorme energia que Lisa precisava — não era de um
safanão para agir, método expedito de Iris para levar as pessoas a
decidirem, que ela precisava -, mas sim do ex-reitor universitário, com o
seu jeito metódico e determinado para desenredar trapalhadas. Iris diria com
certeza à filha que fosse em frente, o que a deixaria oprimida e encurralada,
mas com a presença do pai havia a possibilidade de, no caso de Lisa
apresentar argumentos convincentes contra a sua própria perseverança, ele
lhe dizer que, se desejasse, poderia evitar danos maiores, desistindo — o
que provavelmente produziria o efeito contrário de despertar nela a
coragem para prosseguir.
Ele não só ficara a primeira noite sentado na sala da filha até altas horas,
a escutar as suas preocupações, como no dia seguinte fora à escola para ver
o que estava a consumi-la. E viu, oh, se viu! Logo de manhã, para começar,
quatro sessões seguidas de meia hora, cada uma com uma criança de seis ou
sete anos que se contava entre os alunos com menor grau de aproveitamento
da primeira e segunda classes, e depois disso, até ao fim do dia, sessões de
quarenta e cinco minutos com grupos de oito miúdos cuja capacidade de
leitura não era superior à dos das sessões individuais, mas para quem ainda
não havia pessoal suficientemente preparado no programa intensivo.
— As classes normais são demasiado grandes — disse-lhe Lisa -, e por
isso os professores não conseguem alcançar essas crianças. Eu fui
professora de classes normais. As crianças com dificuldades são três em
trinta, três ou quatro. Não é muito mau. Temos o progresso das outras para
nos ajudar a continuar. Em vez de pararem e darem aos alunos mais
atrasados aquilo de que precisam, misturam-nos, mais ou menos, e vão-nos
empurrando com os outros, pensando — ou fingindo que pensam — que
eles avançam levados pela onda. São arrastados, assim, para o segundo ano,
o terceiro ano, o quarto ano ... e depois é o falhanço grave. Mas aqui só há
essas crianças, aquelas a quem não é possível chegar e a quem não se
chega, e como eu sou muito emotiva no que diz respeito aos meus alunos e
ao meu ensino, isso afecta todo o meu ser ... todo o meu mundo. E a escola,
a direcção ... não presta, pai. Temos uma directora sem a mínima visão do
que pretende e temos uma misturada de pessoas a fazerem o que julgam ser
o melhor. Mas que não é necessariamente o melhor. Quando aqui cheguei,
há doze anos, foi formidável. A directora era de facto boa. Deu uma volta
completa à escola. Mas agora tivemos vinte e um professores em quatro
anos. o que é muito. Perdemos uma quantidade de gente boa. Há dois anos,
passei para a recuperação de Leitura porque as aulas tradicionais me
estavam a consumir. Dez anos do mesmo, dia após dia. Não podia suportar
mais.
Ele deixou-a falar, falou pouco e, porque ela estava a poucos anos dos
quarenta, refreou sem grande dificuldade o impulso para abraçar aquela
filha maltratada pela realidade, como ímaginava que ela refreava o mesmo
impulso em relação à criança de 6 anos que não sabia ler. Lisa possuía toda
a intensidade de Iris, mas sem o seu autoritarismo, e, tratando-se de alguém
que existia apenas para os outros — a sua maldição era um altruísmo
incurável, encontrava-se sempre, como professora, à beira do esgotamento.
Geralmente havia também um namorado carente ao qual não podia negar
solicitude, pelo qual se virava do avesso e para o qual a sua impoluta
virgindade ética acabava infalivelmente por se tornar uma grande, uma
enorme chatice. Lisa estava sempre empenhada moralmente a cem por
cento, mas sem a insensibilidade para decepcionar a necessidade do outro
ou a força para se desiludir a si mesma a respeito da sua força. Por isso ele
sabia que a filha nunca abandonaria o pro-grama de Recuperação da Leitura
e o orgulho paterno que tinha dela, além de ensombrado pelo medo, era
também, por vezes, matizado por uma impaciência que raiava o desprezo.
— Confiam-nos trinta crianças que nos chegam com níveis diversos e
experiências diversas, e temos de fazer com que tudo funcione — dizia-lhe
ela. — Trinta crianças diferentes, oriundas de trinta ambientes diferentes e
com trinta maneiras de aprender diferentes. Exige muita gestão. Exige
muita papelada. Exige muito tudo. Mas mesmo assim não é nada
comparado com isto. É verdade que mesmo nisto, mesmo em Recuperação
da Leitura, há dias em que penso, "hoje saí-me bem", mas na maior parte
deles tenho vontade de me atirar pela janela. Debato-me muito com a
incerteza de este ser o programa adequado para mim. Porque, caso não
saiba, sou muito intensa. Quero fazer as coisas da maneira certa, mas não há
uma maneira certa: cada criança é diferente e cada criança é um caso
desesperado, e espera-se de mim que ponha tudo a funcionar. É claro que
toda a gente tem sempre de se esforçar muito com as crianças que não
aprendem. O que fazemos com uma criança que não sabe ler? Pense nisso:
uma criança que não sabe ler. É difícil, paizinho. O nosso ego fica um
pouco atrapalhado com isso, sabe.

Lisa, que acumula dentro de si tantas preocupações, cuja sensibilidade


não conhece ambivalências e que deseja existir só para servir. Lisa, a
Refractária à Desilusão, Lisa, a Indizivelmente Idealista. Telefona a Lisa,
disse ele para consigo, longe, muito longe de imaginar que alguma vez
pudesse ouvir àquela sua tolamente virtuosa filha o tom de acerada
desaprovação com que ela recebeu o seu telefonema.
— Passa-se alguma coisa? Nem pareces tu.
— Estou bem.
— O que aconteceu, Lisa?
— Nada.
— Como vão as aulas de Verão? Como vão as lições?
— Bem.
— E Josh? — referia-se ao namorado mais recente.
— Bem.
— E os teus miúdos? O que aconteceu àquele que não sabia reconhecer a
letra n? Conseguiu chegar ao nível dez? O miúdo que, afinal tinha dois n no
nome: Hernando. — Está tudo bem.
Coleman resolveu adoptar um tom ligeiro, para perguntar: — E tu não
queres saber como eu estou?
— Eu sei como está.
— Sabes?
Não obteve resposta.
— O que está a preocupar-te, minha querida?
— Nada. — Um "nada", o segundo, que significava, muito claramente
Não me venha com essa conversa de minha querida.
Estava a passar-se alguma coisa incompreensível. Quem lhe dissera? O
que lhe tinham dito? Quando em miúdo andara no liceu, e depois, a seguir à
guerra, na universidade, tinha-se aplicado nos estudos mais exigentes;
quando fora reitor da Athena, tinha-se dado bem com as dificuldades de um
cargo desgastante; quando fora acusado no incidente dos "spooks", não
tinha desfalecido uma única vez na luta contra a falsa acusação de que fora
alvo, e até a sua demissão da universidade tinha sido, não um acto de
capitulação, mas sim de indignado protesto, uma demonstração deliberada
do seu inquebrantável desprezo. Mas, ao longo de todos os anos em que
tivera de manter a sua dignidade perante qualquer missão, revés ou abalo,
fosse qual fosse a sua natureza, e mesmo depois da morte de Iris, jamais se
sentira tão despojado de todas as suas defesas como quando Lisa, a
personificação de uma bondade quase risível, condensara naquela única
palavra "nada" toda a dureza de sentimentos para a qual nunca antes, em
toda a sua vida, encontrara um alvo merecedor.
E foi então, no próprio momento em que o "nadas de Lisa destilava o seu
terrível significado, que Coleman viu uma pick-up aparecer na estrada
alcatroada que levava à sua casa, avançar lentamente um par de metros,
travar, avançar com a mesma lentidão, travar de novo ... Levantou-se,
começou a atravessar, hesitante, a relva aparada, esticou o pescoço para
conseguir ver e depois desatou a correr e a gritar: -Eh, você! O que está
aqui a fazer? Eh!" Mas o veículo acelerou rapidamente e desapareceu antes
de Coleman ter tempo de se aproximar o suficiente para distinguir alguma
coisa que lhe pudesse ser útil, tanto sobre o motorista como sobre a pick-up.
Em virtude de não saber distinguir uma marca de outra e, daquela distância,
não ter podido perceber, sequer, se o veículo era novo ou velho, a única
coisa de que teve consciência foi da sua cor, um cinzento indeterminado.
E agora o telefone estava mudo. Enquanto corria pelo relvado tocava
inadvertidamente no botão de desligar. Ou então tinha sido Lisa que
desligara, de propósito. Quando ligou de novo, respondeu-lhe um homem.
"Josh?", perguntou Coleman. "Sim" "Fala Coleman Silk, o pai de Lisa"
Decorrido um momento, o homem disse: "Ela não quer falar" E desligou.
Aquilo era obra de Mark. Tinha de ser. Não podia ter sido mais ninguém.
Não podia ter sido o raio do Josh ... Quem diabo era ele? Não conseguia
perceber como teria Mark descoberto a respeito de Faunia, nem ele nem
Delphine Roux ou qualquer outra pessoa, mas isso agora não interessava. O
que interessava é que tinha sido Mark quem contara à sua gémea o crime do
pai. Sim, porque para aquele rapaz só podia ser isso: crime. Quase a partír
do momento em que aprendera a falar, Mark tinha sido incapaz de
abandonar a ideia de que o pai era contra ele: a favor dos dois filhos mais
velhos porque eles eram mais velhos, alunos brilhantes e absorviam sem
protestar as pretensões intelectuais do pai; a favor de Lisa porque ela era
Lisa, a menina querida da família e indiscutivelmente a mais mimada pelo
pai; contra Mark porque ele não era, e recusava-se a ser, tudo quanto a sua
gémea era: adorável e adoradora, virtuosa, comovente, nobre até à medula.
Mark talvez possuísse a personalidade mais difícil que Coleman tivera
não de tentar compreender — os ressentimentos eram bem fáceis de
compreender -, mas de enfrentar. As lamúrias e os amuos tinham começado
antes de ele ter idade de ir para o jardim infantil e o protesto contra a
família e o modo como via as coisas surgiram pouco depois e, apesar de
todos os esforços conciliatórios, entranharam-se ao longo dos anos na
medula dele. Aos 14 anos apoiou clamorosamente Nixon durante as
audiências da impugnação, enquanto os outros membros da família
desejavam que o presidente fosse preso para o resto da vida; aos 16 tornou-
se judeu ortodoxo, enquanto os outros, na esteira dos pais ateus e
anticlericais, eram judeus praticamente apenas de nome; aos 20 enfureceu o
pai ao sair da Brandeis com dois semestres por terminar, e agora, quase aos
40 e tendo aceite e abandonado uma dúzia de empregos diferentes que
considerava aquém do seu mérito, descobrira que era um poeta narrativo.
Devido à sua hostilidade inabalável para com o pai, Mark tornava-se tudo
aquilo que a sua família não era — ou, o que era ainda mais triste, tudo
aquilo que ele não era. Apesar de ser um rapaz inteligente, culto, com uma
mente arguta e uma língua afiada, nunca conseguiu levar a melhor sobre
Coleman, até que, aos 38 anos, como poeta narrativo dedicado a temas
bíblicos, passou a alimentar a grande aversão que lhe preenchia a vida com
toda a arrogância de alguém que não foi bem-sucedido em nada. Uma
namorada devotada, uma jovem mulher sem sentido de humor, excitável e
religiosa praticante, ganhava o sustento de ambos como técnica
odontológica em Manhattan, enquanto Mark ficava em casa, no prédio sem
elevador de Brooklyn onde viviam, a escrever os poemas de inspiração
bíblica que nem as revistas judaicas publicavam, poemas intermináveis,
relatando como David enganou o seu filho Absalão, como Isac enganou o
seu filho Esaú, como Iudah enganou o seu irmão José e a maldição do
profeta Nataniel depois de David ter pecado com Betsabé — poemas que,
de um ou outro modo espantosamente mal-disfarçado, repisavam a ideia
fixa na qual Markie tudo apostara e tudo perdera.
Como podia Lisa ter-lhe dado ouvidos? Como podia Lisa ter levado a
sério qualquer acusação feita por Markie, sabendo como sabia o que o
movera durante toda a vida? Mas a verdade é que a generosidade de Lisa
para com o irmão, por muito injustos que considerasse os antagonismos que
o deformavam, remontava quase ao nascimento de ambos como gémeos.
Em virtude de ser benevolente por natureza, e em virtude também de, desde
os primeiros tempos da escola, ter sentido a consciência pesada que
costuma caracterizar a criança preferida dos pais, aceitara bondosamente as
queixas do seuirmão gémeo e reconfortara-o nas zangas com a família. Mas
teria a sua solicitude para com esse membro menos favorecido da parelha
de estender-se àquela louca acusação? E, afinal, qual era a acusação? Que
acto malfazejo cometera o pai, que injúria fizera aos filhos capaz de colocar
os gémeos do lado de Delphine Roux e Lester Farley? E os outros dois, os
seus filhos cientistas, também estariam, eles e os seus escrúpulos, metidos
naquilo? Há quanto tempo não tinha notícias deles?
Recordou aquela terrível hora, em casa, depois do funeral de Iris,
recordou-a e sentiu de novo, em toda a sua pungência, a dor causada pelas
acusações que Mark lhe fizera antes de os irmãos mais velhos intervirem e
o levarem à força para o seu antigo quarto, onde passou o resto da tarde.
Nos dias que se seguiram, enquanto os filhos continuaram todos presentes,
Coleman não tivera dificuldade em culpar o sofrimento do filho, e não o
próprio Mark, pelo que o rapaz ousara dizer, mas isso não significava que o
tivesse esquecido ou viesse alguma vez a esquecê-lo. Markie começou a
acusá-lo poucos minutos, apenas, depois de regressarem do cemitério. "Não
foi a universidade. Não foram os negros. Não foram os seus inimigos. Foi
você. Foi você quem matou a mãe. Como mata tudo! Porque tem de ter
sempre razão! Porque não pede desculpa, porque todas as vezes está cem
por cento certo, em tudo, agora é a mãe que está morta! E podia ter sido
tudo resolvido tão facilmente, podia ter sido tudo resolvido em vinte e
quatro horas se, uma vez na vida, tivesse sabido pedir desculpa. "Lamento
ter usado a palavra "spooks"" Bastaria ter dito isso, grande homem, bastaria
ter procurado as duas estudantes e dito que lamentava, e a mãe não estaria
morta!"
Ali fora, no seu relvado, Coleman foi, de súbito, tomado pelo tipo de
indignação que não sentia desde o dia seguinte à explosão de Markie,
quando, no espaço de uma hora, apenas, redigira e apresentara a sua
demissão da universidade. Sabia que não era correcto ter semelhantes
sentimentos em relação aos seus filhos. Sabia, devido ao incidente dos -
spooks", que uma indignação de tais proporções não podia conduzir a uma
abordagem serena e racional do problema. Como educador sabia educar,
como pai sabia ser pai e como homem com mais de 70 anos sabia que não
devemos considerar nada implacavelmente Imutável, sobretudo no seio de
uma família, mesmo de uma família onde existe um filho cheio de
ressentimento como Mark. E não era só por causa do incidente dos -spooks-
que sabia o que pode consumir e destruir um homem que acredita ter sido
vítima de grave injustiça. Aprendera com a ira de Aquiles, a fúria de
Filotectes, as invectivas de Medeia, a loucura de Ajax, o desespero de
Electra e o sofrimento de Prometeu os muitos horrores que podem deflagrar
quando se atinge o auge da indignação e, em nome da justiça, se clama por
vingança e desencadeia um ciclo de retaliações.
E ainda bem que sabia tudo isso, nada menos do que isso, nada menos do
que a profilaxia de toda a tragédia ática e poesia épica grega, para o impedir
de telefonar imediatamente a Markie e recordar-lhe o sacana emproado que
era e sempre fora.
O choque frontal com Farley aconteceu cerca de quatro horas depois.
Pela reconstituição que fiz do sucedido, Coleman, para ter a certeza de que
ninguém estava a espiar a casa, saiu e entrou pelas portas da frente, das
traseiras e da cozinha umas seis ou sete vezes nas horas que se seguiram à
chegada de Faunia. Foi só mais ou menos por volta das dez horas, quando
estavam os dois parados do lado de dentro do guarda-vento da cozinha, a
abraçar-se antes de se separarem por aquela noite, foi só então que
conseguiu sobrepor-se à indignação corrosiva e permitir que a única coisa
realmente séria da sua vida — a embriaguez da última aventura, aquilo a
que Mann, ao escrever a respeito de Aschenbach, chamou a "derradeira
aventura dos sentimentos" — se reafirmasse e apoderasse dele. Quando
Faunia se preparava para sair sentiu, finalmente, uma necessidade tão funda
dela que era como se nada mais contasse, e de facto não contava, nem a
filha, nem os filhos, nem o ex-marído de Faunia, nem Delphine Roux. Isto
não é simplesmente vida, pensou, isto é ofim da vida. O que considerava
insuportável não era toda aquela ridícula antipatia que os dois tinham
despertado; o insuportável era o facto de ele ter chegado à última taça dos
dias, ao fundo da última taça, ao momento mais do que todos adequado para
acabar com a discórdia, renunciar à refutação, libertar-se da consciência
moral com que criara os quatro enérgicos filhos, persistira no casamento
tempestuoso, influenciara os colegas recalcitrantes e guiara os medíocres
estudantes da Athena, o melhor que pudera, pelos caminhos de uma
literatura com alguns dois mil e quinhentos anos de existência. Chegara a
altura de ceder, de deixar aquela necessidade simples ser o seu guia. Sem
fazer caso da acusação deles. Sem fazer caso da incriminação deles. Sem
fazer caso da condenação deles. Aprende antes de morrer, disse a si mesmo,
aprende a viver fora da alçada da sua enfurecedora, detestável e estúpida
reprovação.

O confronto com Farley. O confronto dessa noite com Farley, o confronto


com um industrial leiteiro que não quisera falhar mas falhara, um
funcionário da brigada de manutenção de estradas que dera tudo à
municipalidade por muito modesta e degradante que fosse a tarefa que lhe
atribuíram, um americano leal que servira o seu país não numa comissão de
serviço, mas em duas, que voltara uma segunda vez para acabar a maldita
tarefa. Reergueu-se e voltou, porque quando regressou a casa a primeira vez
todos disseram que não era a mesma pessoa e não o reconheciam, e ele
compreendeu que era verdade: tinham todos medo dele. Voltara da guerra
na selva e, como se não bastasse não ser apreciado, era temido; por isso, o
melhor seria voltar para lá. Não esperara ser recebido como herói, mas
olharem-no todos daquele modo... Por isso voltou para um segundo
período, e desta vez com toda a gana. Fulo da vida. Entusiástico. Um
guerreiro muito agressivo. Na primeira vez não tinha toda aquela fúria. Na
primeira vez era o Les bonacheirão, que desconhecia o que era sentir-se
desesperado. Na primeira vez era o rapaz dos Berkshire que confiava muito
nas pessoas e não fazia a mínima ideia de que a vida podia não valer nada,
não sabia o que era estar sob medicação, não se sentia inferior a ninguém,
era o Les despreocupado que não constituía uma ameaça para a sociedade,
tinha montes de amigos, carros velozes, rodas essas coisas. Na primeira vez
cortara orelhas porque estava ali e se fazia isso, mais nada. Não era
daqueles que mal chegavam a todo aquele caos de violência ficavam
impacientes por se lançarem ao barulho, daqueles que não regulavam muito
bem ou eram muito agressivos por natureza e a quem bastava a mais
pequena oportunidade para ficarem loucos violentos. Havia um tipo na sua
unidade, um indivíduo a quem chamavam Calmeirão, que um ou dois dias
depois de chegar abrira o ventre de uma mulher grávida. Farley só
começara a tornar-se bom naquilo no fim da sua primeira vez. Mas na
segunda, naquela unidade onde havia uma quantidade de outros tipos que
também tinham voltado e não o haviam feito apenas para matar tempo ou
ganhar umas massas extra, naquela segunda vez na companhia de tipos
sempre ansiosos para serem postos na frente, tipos chalados que tinham
consciência do horror mas sabiam que era o melhor momento das suas
vidas, tornou-se também chalado, igual a eles. Debaixo de fogo, a fugir do
perigo, com armas a disparar por todos os lados, é impossível não sentir
medo, mas um tipo pode passar-se e ficar eufórico e temerário, e por isso,
na segunda vez, ele passou-se. Na segunda vez apoderou-se dele o frenesi
da fúria e espalhou o caos e a destruição. Estar ali à beira do abismo, a todo
o gás, ébrio de excitação e medo: não há na vida civil nada que se possa
comparar a isso. Metralhador de helicóptero. Estão a perder helis e
precisam de metralhadores. Em dado momento, pedem voluntários para
metralhadores de helicópteros e ele não hesita, oferece-se. Lá em cima,
sobrevoando a acção, tudo parece pequeno, e ele metralha, metralha como
um louco. Atira a tudo quanto mexe. Morte e destruição, metralhar isso, só
isso. Com a vantagem acrescida de que um tipo não tem de estar lá em
baixo, na selva, o tempo todo. Mas depois regressa e não é melhor do que
da primeira vez: pelo contrário, é pior. Não é como com os tipos da
Segunda Guerra Mundial que tinham a viagem de navio, tempo para se
descontraírem, alguém para cuidar deles, perguntar-lhes como se sentiam.
Agora não há qualquer transição. Um dia está a metralhar do helicóptero,
no Vietname, a ver helicópteros explodir, está a meia altura a ver os seus
companheiros explodir, tão baixo que sente o cheiro da pele deles a arder,
ouve os seus gritos, vê aldeias inteiras irromperem em chamas, e no dia
seguinte está de novo nos Berkshire. E agora aquele uno é, realmente, o seu
lugar, e além disso tem medo das coisas que lhe passam por cima da cabeça.
Não quer estar perto de outras pessoas, não é capaz de se rir ou gracejar,
sente que já não pertence ao mundo delas, que viu e fez coisas tão alheias
ao que aquela gente conhece que não consegue estabelecer contacto com
elas, nem elas com ele. Disseram-lhe que podia voltar para a sua terra. Mas
como podia ele voltar para a sua terra? Na sua terra não tem um helicóptero.
Fica sozinho e bebe, e quando recorre à Administração dos Veteranos
dizem-lhe que está ali apenas por causa do dinheiro, mas ele sabe que está
ali para receber ajuda. Inicialmente, tentou obter ajuda do governo e a única
coisa que lhe deram foi uns comprimidos para dormir; portanto, foda-se o
governo. Trataram-no como lixo. É jovem, disseram-lhe, vai superar isso. E
ele tenta superar. Já que não pode contar com o governo, terá de fazê-lo à
sua custa. Mas não é fácil, depois de dois períodos de serviço, regressar e
refazer-se sem ajuda de ninguém. Não está calmo. Está agitado. Está
inquieto. Bebe. Não é preciso muito para ficar furioso. E há aquelas coisas
que passam por cima da sua cabeça. Mesmo assim, tenta: acaba por
conseguir a mulher, a casa, os filhos e a herdade. Ele quer ficar só, mas ela
quer assentar, instalar-se e trabalhar com ele na herdade. Por isso, tenta
fazer o mesmo. Tenta querer de novo coisas que se lembra de o Les
bonacheirão ter querido há dez, quinze anos, antes do Vietname. O
problema é que não consegue sentir, realmente, alguma coisa por aquelas
pessoas. Senta-se na cozinha e come com elas, mas não há nada. Não é
capaz de passar daquilo para isto. No entanto, continua a tentar. Acordou
duas vezes, no meio da noite, a estrangular a mulher, mas a culpa não é sua,
a culpa é do governo. Foi o governo que o pôs assim. Foi o governo que lhe
fez isso. Pensou que ela era a porra do inimigo. Que julgou ela que lhe ia
fazer? Sabia que ele ia superar aquilo. Nunca lhes fez mal, nem a ela nem
aos miúdos. Tudo isso eram mentiras. Ela nunca quis saber de mais nada
além de si mesma. Nunca a devia ter deixado ir-se embora com as crianças.
Esperou que iniciasse o programa de desintoxicação, foi por isso que quis
que ele se inscrevesse. Disse que desejava que melhorasse para poderem
ficar de novo juntos, mas em vez disso aproveitou-se da situação contra ele,
para lhe tirar os filhos. Grande cabra. Puta de merda. Enganou-o bem.
Nunca devia tê-la deixado partir com as crianças. A culpa fora em parte
dele próprio, pois estava sempre tão bêbado que podiam tê-lo obrigado a
fazer a desintoxicação, mas teria sido melhor se tivesse acabado com todos
quando disse que o faria. Devia tê-la morto, devia ter morto os miúdos, e tê-
lo-ia feito se não fosse a desintoxicação. E ela sabia-o, sabia que os teria
morto sem qualquer problema se ela tentasse levá-los. Era o pai, se alguém
tinha o direito de os criar era ele. E se ele não pudesse criá-los, o melhor
para eles seria morrerem. Ela não tinha direito nenhum de lhe roubar os
filhos. Roubou-lhos e depois matou-os. A paga pelo que fizera no
Víetname. Na desintoxicação diziam todos isso. A paga por isto, a paga por
aquilo, mas o facto de todos o dizerem não impedia que fosse assim. Era a
paga, tudo era a paga, a morte dos filhos era a paga e o carpinteiro com
quem ela estava a foder também. Não sabia por que não matara o tipo. Ao
princípio cheirara-lhe apenas a fumo. Estava nos arbustos da beira da
estrada, a espiar os dois napick-up do carpinteiro. Tinham estacionado no
caminho de acesso da casa dela. Ela desce — o apartamento que alugara
ficava por cima de uma garagem, nas traseiras de um bungalow qualquer —
e entra na pick-up, e embora não haja nenhuma luz acesa, nem luar, ele sabe
o que está a acontecer. Depois cheira-lhe a fumo. O único motivo por que
sobrevivera no Vietname fora porque qualquer mudança, um ruído, o cheiro
de um animal, qualquer movimento de qualquer espécie na selva, era
detectado por ele primeiro do que por qualquer outro — estava alerta na
selva, como se lá tivesse nascido. Não via o fumo, não via as chamas,
estava tão escuro que não via nada, mas, de repente, cheira o fumo, aquelas
coisas estão a voar por cima da sua cabeça e desata a correr. Eles vêem-no
aproximar-se e pensam que vai roubar as crianças. Não sabem que a casa
está a arder. Pensam que endoideceu. Mas ele cheira o fumo, sabe que vem
do segundo piso e sabe que as crianças estão lá. Sabe que a mulher, aquela
puta estúpida, não vai fazer nada, porque está napick-up a chupar o
carpinteiro. Passa por eles a correr. Agora não sabe onde está, esquece onde
está, a única coisa que sabe é que tem de entrar ali e subir a escada, e por
isso arromba a porta lateral e corre para onde lavra o fogo, e é então que vê
as crianças na escada, encolhidas no cimo da escada, ofegantes, e pega-lhes.
Estão agarradas uma à outra no patamar, e ele pega-lhes e corre pela porta
fora. Estão vivas, tem a certeza. Não pensa sequer que exista uma
possibilidade de não estarem vivas. Pensa apenas que estão assustadas.
Depois levanta a cabeça e quem vê do lado de fora da porta, parado a olhar?
O carpinteiro. Foi então que perdeu a cabeça, que deixou de saber o que
estava a fazer. Foi então que se atirou ao pescoço do tipo. Começou a
esganá-lo, e aquela cabra, em vez de socorrer os filhos, preocupa-se com o
facto de ele estar a esganar o cabrão do namorado. A grande puta tem medo
que ele mate o namorado em vez de se preocupar com o raio dos seus
próprios filhos. E eles ter-se-iam salvo. Foi por isso que morreram. Porque
ela se esteve nas tintas para eles. Como sempre. Eles não estavam mortos
quando lhes pegou. Estavam quentes. Ele sabe o que é estar morto. Depois
de ter estado duas vezes no Vietname não precisa que ninguém lhe diga o
que é estar morto. Sabe cheirar a morte, quando é necessário. Conhece-lhe o
gosto. Conhece-a, sabe o que ela é. Eles ... não ... estavam ... mortos. Quem
teria ücado morto da silva seria o namorado se a polícia, mancomunada
com o governo, não tivesse chegado com as suas pistolas, e quem foi preso
foi ele. A cabra matou os filhos, a negligente foi ela, e quem vai dentro é
ele. Jesus Cristo, permite que eu tenha razão ao menos uma vez, ao menos
um momento! A cabra não estava a prestar atenção! Nunca presta atenção.
Foi como daquela vez em que ele teve o pressentimento de que iam cair
numa emboscada. Não sabia explicar porquê, mas sabia que iam apanhá-los
e ninguém acreditou nele. E estava certo. Um idiota de um oficial qualquer
acaba de chegar à companhia, não lhe dá ouvidos, e é por essas e outras que
tipos são mortos. É por essas e outras que morrem horrorosamente
queimados! É por essas e outras que parvalhões do caraças causam a morte
dos dois melhores compinchas de um gajo! Não lhe dão ouvidos! Não lhe
dão crédito! Ele regressou vivo, não regressou? Regressou com os braços e
as pernas, regressou com a sua Haita ... sabem o que isso custou? Mas ela
não lhe dá ouvidos! Nunca! Virou-lhe as costas e virou as costas aos seus
filhos. Ele não passa de um veterano chalado do Vietname. Mas ele sabe
coisas, porra! E ela não sabe nada. Mas foi à cabra estúpida que
engavetaram? Não, fora a ele. Encharcaram-no de drogas. Voltaram a
imobilizá-lo e não o deixaram sair da Administração dos Veteranos de
Northampton. E a única coisa que tinha feito fora aquilo para que o tinham
treinado: vês o inimigo, matas o inimigo. Treinam-te durante um ano,
depois tentam matar-te durante um ano, e quando estás a fazer exactamente
aquilo para que te treinaram voltam a imobilizar-te com a porra das correias
e atafulham-te de merda. Fez o que o tinha sido treinado para fazer e,
enquanto o fazia, a puta da sua mulher virava as costas aos filhos dele.
Devia tê-los morto a todos enquanto pudera. A ele, sobretudo. Ao
namorado. Devia ter-lhes cortado a porra das cabeças. Não sabe por que não
o fez. Mas será melhor não se aproximar dele! Se descobre onde o cabrão
do namorado está, mata-o tão depressa que o gajo nem perceberá o que o
atingiu. E não saberão que foi ele, pois sabe como fazê-lo sem ninguém
ouvir. Pois foi para isso que o governo o treinou. É um assassino experiente
graças ao governo dos Estados Unidos da América. Fez o seu trabalho. Fez
o que lhe mandaram fazer. E é assim que o tratam, porra? Metem-no na
enfermaria prisional, põem-no no isolamento põe-no, a ele, no caraças do
isolamento. E nem um cheque lhe dão. Por tudo isso, recebe uma merda de
vinte por cento. Vinte por cento. Fez a família inteira viver num inferno a
troco de vinte por cento. E mesmo para isso tem de rastejar. "Conteme lá o
que aconteceu", dizem-lhe os assistentes sociais de merda, os sacanas dos
psicólogos com os seus diplomas universitários. "Matou alguém quando
esteve no Vietname?" Mas havia alguém que ele não tivesse morto quando
esteve no Vietname? Não era isso que pretendiam que fizesse quando o
enviaram para o Vietname? Matar amarelos. Não tinham dito que valia
tudo? Pois valera tudo. Está tudo relacionado com a palavra "matar". Matar
amarelos! Como se perguntar "Matou alguém?" não bastasse, arranjaram-
lhe um sacana de um psiquiatra amarelo, um merda parecido com um
chinês. Um gajo serve o seu país e nem sequer lhe arranjam um médico que
fale inglês, porra. Em Northampton há restaurantes chineses, restaurantes
vietnamitas e lojas coreanas em toda a parte ... e ele? Se um gajo é
vietnamita, se um gajo é chinês, safa-se, arranja um restaurante, arranja uma
loja, arranja uma mercearia, arranja uma família, recebe uma boa educação.
Mas para ele não têm nada, nem a ponta de um corno. Porque o querem
morto. Gostariam que nunca tivesse regressado. Ele. é o pior dos pesadelos
deles. Não esperavam que regressasse. E agora aparece aquele professor
universitário. Sabem onde ele estava quando o governo nos mandou para lá,
com um braço torcido atrás das costas? Estava à frente dos cabrões dos
manifestantes. Pagam-lhes, quando vão para a universidade, para ensinar,
para ensinar os miúdos, não para se manifestarem contra a porra da Guerra
do Vietname. Não nos deram o caraças de uma oportunidade. Dizem que
perdemos a guerra. Nós não perdemos a guerra, quem perdeu a guerra foi o
governo. Mas quando lhes dava na gana, professores apinocados desfilavam
contra a guerra em vez de darem aulas, e este é o agradecimento que ele
recebe por ter servido o seu país. É o agradecimento por toda a merda que
teve de suportar, dia após dia. Não consegue dormir uma maldita noite
descansada. Há vinte e seis anos que não dorme uma porra de uma noite
descansada. E por causa disso, por causa disso a sua mulher chupa um
merdoso de um professor judeu qualquer? Não havia muitos judeus no
Vietname, pelo menos que se lembre. Andavam muito atarefados a obter os
seus diplomas.
Filho da puta de judeu. Há alguma coisa errada nos filhos da puta dos
judeus. Não parecem normais. Ela chupa-o? Jesus! Dá vómitos, porra. Para
que serviu tudo aquilo? Ela não imagina o que foi. Nunca teve um dia
difícil na vida. Ele nunca lhes fez mal, nem a ela nem aos miúdos, nunca.
"Oh, o meu padrasto foi indecente comigo." O padrasto costumava meter-
lhe o dedo. Devia tê-la fodido, isso ter-lhe-ia feito bem ao juízo. Os miúdos
ainda estariam vivos! Ele seria como todos os outros gajos, lá fora, com as
suas famílias e os seus belos carros. Em vez disso, estava na porra de uma
instituição da Administração dos Veteranos. Era esse o agradecimento que
recebia: Thorazine. A confusão da Thorazine: o seu agradecimento. Só
porque pensava que estava de novo no Vietname.

Este era o Lester Farley que saíra aos berros dos arbustos. Este era o
homem que avançou para Coleman e Faunia quando estavam do lado de
dentro da entrada da cozinha, que veio direito a eles da escuridão dos
arbustos do lado da casa. E tudo aquilo era apenas um pouco do que estava
dentro da sua cabeça, noite após noite, durante toda a Primavera e entrando
agora no começo do Verão, escondido horas a fio, encolhido, imóvel,
atormentado por tanta emoção e esperando ali, oculto, para a ver a fazer
aquilo. A fazer o que estava a fazer enquanto o fumo asfixiava até à morte
os seus próprios filhos. Desta vez não era sequer com um indivíduo da sua
idade. Nem mesmo da idade de Farley. Desta vez não era com o chefe dela,
Hollenbeck o grande americano-modelo. Este podia, pelo menos, dar-lhe
alguma coisa em troca. Era quase possível respeitá-la pelo Hollenbeck. Mas
agora a mulher descera tanto que fazia aquilo à borla com qualquer um.
Agora era com um velho grisalho e pele-e-osso, com um arrogante
professor judeu, cujo amarelento rosto judeu se contorcia de prazer e cujas
velhas e trémulas mãos lhe agarravam a cabeça. Quem mais tinha uma
mulher que chupava um judeu velho? Quem?! Desta vez a cadela
desbragada, assassina e gemente recebia na boca de puta o leite aguado de
um repugnante velho judeu, e entretanto Rawley eLes júnior continuavam
mortos.
A paga. Não acabava nunca.

Era como voar, era como o Vietname, era como o momento em que se
perde a cabeça.
Subitamente mais louco ainda por ela estar a chupar aquele judeu do que
por ter morto os miúdos, Farley dá consigo a saltar, a voar para cima, aos
gritos, e o professor judeu grita ambém, o professor judeu levanta uma
chave de rodas ... e é só por Farley estar desarmado por naquela noite ter
ido directamente do treino dos Bombeiros para ali sem uma única das armas
que tem na cave cheia delas -, é só por isso que não os criva de balas.
Nunca saberá por que motivo não estendeu a mão para a chave de rodas,
não lha tirou e acabou com tudo desse modo. Poderia ter feito um belo
trabalho com aquela chave de rodas. "Larga lssol Racho-te a puta da cabeça
com ela! Larga essa porra" E o judeu largou-a. Sorte do Judeu, tê-la
largado.
Depois de chegar a casa nessa noite (também nunca soube como fez isso)
e até às primeiras horas da manhã — altura em que foram precisos cinco
homens dos Bombeiros, cinco colegas dele, para o dominarem, vestirem-lhe
a camisa-de-forças e conduzirem-no a Northampton -, Lester viu tudo,
reviveu tudo ao mesmo tempo, ali na sua própria casa, suportou o calor,
suportou a chuva, a lama, formigas gigantes, abelhas assassinas no seu
próprio chão de linóleo, mesmo ao lado da mesa da cozinha; sentiu-se mal
com diarreia, dores de cabeça, teve fome e sede, falta de munições, teve a
certeza de que aquela seria a sua última noite, esperou que isso acontecesse,
viu Foster pisar a armadilha, Quillen afogar-se, ele mesmo quase a afogar-
se, acagaçado, a atirar granadas para todas as direcções e a gritar "Não
quero morrer", os aviões de combate todos baralhados e a dispararem contra
eles, Drago a perder uma perna, um braço, o nariz, o corpo queimado de
Conrity a colar-se às suas mãos, incapaz de conseguir que um helicóptero
aterrasse, a dizerem do helicóptero que não podem aterrar porque estamos a
ser atacados e ele tão furioso por saber que vai morrer que tenta abatê-lo,
tenta abater o nosso próprio helicóptero ... a noite mais desumana que
jamais viu e agora está ali de novo na sua própria casa de merda, a noite
mais desumana e também a mais longa, a sua mais longa noite na terra, e
ele petrificado a cada movimento que faz, gajos a berrarem, a cagarem-se e
a chorarem, ele sem preparação para ouvir tanto choro, gajos atingidos na
cara e a morrerem, a soltarem o último suspiro e a morrerem, o corpo de
Conrity pegado às suas mãos, Drago a sangrar por todos os lados, Lester a
sacudir um morto para tentar acordá-lo e a gritar, a berrar sem parar: "Não
quero morrer" Não há tempo para a morte. Não há intervalo para a morte.
Não há fuga da morte. Nenhuma pausa, nenhum abrandamento. Lutar
contra a morte até de manhã e tudo tão intenso. Intenso o medo, intensa a
ira, nenhum helicóptero a querer pousar e o cheiro horrível do sangue de
Drago, ali, na puta da sua própria casa. Não imaginava que pudesse cheirar
tão mal. TUDO TÃO INTENSO E TODOS TÃO LONGE DE CASA E
FÚRIA FÚRIA FÚRIA FÚRIA RAIVA!
Durante quase todo o caminho para Northampton — até não poderem
suportar mais e o terem amordaçado -, Farleyescava, escava noite adentro, e
quando acorda de manhã descobre que dormiu com as larvas na sepultura
de alguém. "Por favor", grita. "Mais não! Mais não!" Por isso não tiveram
outro remédio senão silenciá-lo.
No hospital da Administração dos Veteranos, um lugar para onde só
conseguiram levá-lo à força e de onde andava a fugir há anos — a fugir do
hospital de um governo com o qual não conseguia entender-se -, puseram-
no na enfermaria prisional, amarraram-no à cama, re-hidrataram-úo,
estabilizaram-no, desintoxicaram-no, desabituaram-no do álcool, trataram-
no das lesões hepáticas e depois, durante as seis semanas seguintes, ele
contava todas as manhãs, nas sessões de terapia grupal, como Rawleye Les
júnior tinham morrido. Contava a todos o que tinha acontecido, contava-
lhes todos os dias o que não acontecera quando viu os rostos asfixiados dos
seus dois filhos pequenos e teve a certeza de que estavam mortos.
— Insensível- dizia. — Insensível, porra. Nenhuma emoção. Insensível
perante a morte dos meus próprios filhos. Os olhos do meu filho revirados e
não se sente o pulso. O coração não bate. O meu filho não respira, merda. O
meu filho. O pequeno Les. O único filho que jamaisterei. Mas eu não sentia
nada. Agia como se ele fosse um estranho. E Rawley também. Era uma
estranha. A minha menina. Maldito Vietname, foste o causador disto! Todos
os meus sentimentos estão baralhados. Quando não acontece nada sinto-me
como se houvesse levado uma grande cacetada na cabeça. Depois acontece
alguma coisa, uma coisa imensa, e não sinto nada, caraças. Insensível. Os
meus filhos estão mortos, mas o meu corpo está entorpecido e a minha
cabeça vazia. Vietname. É por causa disso! Nunca chorei pelos meus filhos.
Ele tinha 5 anos e ela 8. Perguntei a mim mesmo: "Por que não posso sentir
nada?" Perguntei: "Por que não os salvei? Por que não pude salvá-los?" É a
paga! É a paga! Não parava de pensar no Vietname. Em todas as vezes que
julguei que morri. Foi assim que comecei a perceber que não posso morrer.
Porque já morri. Porque já morri no Vietname. Porque sou um homem que
morreu, porra.
O grupo era composto por veteranos do Vietname como Farley,
exceptuando dois da Guerra do Golfo, choramingas a quem tinha entrado
um pouco de areia nos olhos durante uma guerra de quatro dias em terra.
Uma guerra de cem horas. Um compasso de espera no deserto. Os ex-
combatentes do Vietname eram homens que, nas suas vidas pós-guerra,
tinham passado pessoalmente pelo pior: divórcio, álcool, drogas, crime, a
polícia, cadeia, o tormento devastador da depressão, crises de choro
incontroláveis, vontade de gritar, vontade de destruir qualquer coisa, as
mãos trémulas, o corpo sacudido por espasmos, o rosto crispado e os suores
da cabeça aos pés, causados pelas recordações de metal a voar, o clarão das
explosões e dos membros decepados, pelas recordações das matanças de
prisioneiros, de famílias, de velhas senhoras e de crianças... Por isso,
embora acenassem com as cabeças ao ouvi-lo falar de Rawley e do pequeno
Les e compreendessem que não pudesse ter sentido nada por eles quando os
viu de olhos revirados, porque ele próprio estava morto, esses indivíduos
realmente doentes achavam, no entanto (naquele raro momento em que
qualquer deles conseguia falar de quaisquer outros a não ser de si mesmos a
vaguear pelas ruas prestes a estoirar e a berrar -Porquêõ- ao céu, de
quaisquer outros que não recebiam o respeito que lhes era devido, de
quaisquer outros que não se sentiriam felizes enquanto não estivessem
mortos, enterrados e esquecidos), que o melhor que Farley tinha a fazer era
atirar com o assunto para trás das costas e continuar a viver a sua vida.
Continuar a viver a sua vida. Ele sabe que a sua vida é uma merda, mas é
tudo quanto tem. Continuar a vivê-la. Pois sim.
Quando em fins de Agosto teve alta do hospital, estava decidido a fazer
isso. E com a ajuda de um grupo de apoio a que aderiu, e em especial de um
tipo que caminhava com uma bengala e se chamava Jimmy Borrero,
conseguiu chegar pelo menos a meio do caminho.
Era difícil, mas com a ajuda de Jimmy foi-se aguentando, esteve sem
beber quase trê meses inteiros, até Novembro. Mas então — e não foi por
causa de alguma coisa que alguém lhe dissesse, ou de alguma coisa que
visse na televisão, ou da proximidade de mais um Dia de Acção de Graças
sem família, mas sim porque não havia alternativa para Farley, nenhuma
maneira de impedir o passado de voltar e impor-se, impor-se e intimá-lo a
agir, exigir-lhe uma enorme reacção -, em vez de ter ficado tudo para trás,
estava tudo à sua frente.
Uma vez mais, era a sua vida.
2.
JOGO DE ESQUIVA

Quando no dia seguinte Coleman foi a Athena perguntar o que era


possível fazer para "segurar que Farley nunca mais voltaria a invadir a sua
propriedade, o advogado, Nelson Prtmus, disse-lhe o que ele não queria
ouvir: devia considerar a ideia de pôr fim à sua aventura amorosa.
Consultara Primus pela primeira vez no início do incidente desencadeado
pelas duas estudantes e, por causa dos bons conselhos que ele lhe dera, e
também de um certo ar de franqueza arrogante no estilo do jovem advogado
que lhe lembrava a sua própria maneira de ser quando era da idade dele, e
de uma certa recusa, que não fazia o mínimo esforço para disfarçar, em
perder tempo com rodeios de circunstância em vez de ir directamente ao
assunto, como era timbre da atitude de porreirismo amável predominante
entre os outros advogados da Cidade, por tudo isso, fora a Primus que
resolvera levar a carta de Delphine Roux.
Primus tinha trinta e poucos anos e era casado com uma jovem
doutorada, uma prdessora de Filosofia que Coleman contratara uns quatro
anos atrás, e pai de dois filhos pequenos. Numa cidade universitária da
Nova Inglaterra como Athena, onde a maior parte dos profissionais liberais
se vestiam para trabalhar no descontraído estilo L. L. Bean, este jovem
agradavelmente bem-parecido, com cabelo de azeviche, alto, esbelto e
atleticamente ágil, ia todas as manhãs para o escritório com impecáveis
fatos feitos por medida, reluzentes sapatos pretos e camisas brancas
engomadas e discretamente monogramadas, apresentação que, além de
denunciar enorme confiança em si mesmo e grande sentido de importância
pessoal, também revelava aversão por todo e qualquer tipo de desleixo — o
que sugeria, igualmente, que Nelson Primus estava sedento de algo mais do
que um escritório por cima da loja Talbot do outro lado do largo. A mulher
ensinava ali; por isso, por agora, ele estava ali. Mas não seria por muito
tempo. Era uma jovem pantera com botões de punho e fato às riscas, uma
pantera pronta para saltar.
— Não duvido de que Farley seja psicopata — disse-lhe Primus, pesando
cada palavra com uma precisão compassada e rigorosa, e sem desviar o
olhar penetrante de Coleman, enquanto falava. — Eu preocupar-me-ia se
ele me espiasse. Mas Farley espiava-o antes de você andar com a ex-mulher
dele? Não sabia quem você era. A carta de Delphine Roux é uma coisa
completamente diferente. Você quis que eu lhe escrevesse e, embora
discordasse, fiz-lhe a vontade e escrevi. Quis que um perito analisasse a
letra dela e, embora discordasse, arranjei-lhe alguém para fazer isso. Quis
que eu enviasse a análise grafológica ao advogado dela e embora
discordasse, enviei-lhe os resultados. Apesar de preferir que a sua maneira
de ser tivesse permitido tratar um aborrecimento de pouca monta como tal,
fiz tudo o que me mandou fazer. Mas Lester Farley não é um aborrecimento
de pouca monta. Delphine Roux não chega aos calcanhares de Farley, nem
como psicopata nem como adversária. O mundo de Farley é o mundo onde
Faunia mal conseguiu sobreviver e que não pode deixar de trazer com ela
quando transpõe a sua porta. Lester Farley trabalha na brigada camarária,
não é verdade? Conseguimos um mandado liminar contra ele e o seu
segredo espalha-se por toda a sua tranquila cidade do interior. E em breve
espalha-se também por toda esta cidade e pela universidade, e aquilo que
você desencadeou acabará por não ter semelhança alguma com o
puritanismo rancoroso com que o cobrirão de alcatrão e penas. Lembro-me
da minúcia com que o semanário humorístico publicou uma interpretação
errada da ridícula acusação que lhe fizeram e do significado da sua
demissão. "Ex-reitor abandona a faculdade sob suspeita racista" Lembro-me
da legenda por baixo da sua fotografia "Um epíteto denegridor usado na
aula força o Professor Silk a aposentar-se, Lembro-me do que isso foi para
si, então, julgo saber o que está a ser agora e estou convencido de que sei o
que será no futuro, quando o condado inteiro tomar conhecimento das
escapadelas sexuais do indivíduo que deixou a universidade sob suspeita de
racismo. Não pretendo com isto dizer que aquilo que se passa atrás da porta
do seu quarto seja da conta de alguém, a não ser da sua. Sei que não deveria
ser assim. Estamos em 1998. Há anos, já, que Janis Joplin e Norman
O'Brown mudaram tudo para melhor. Mas temos aqui, nos Berkshíre,
pessoas, tanto rústicos como professores universitários, que se recusam a
modificar os seus valores e a acompanhar cortesmente a revolução sexual.
Devotos de ideias estreitas, defensores acérrimos da decência, toda a
espécie de gente retrógrada ansiosa por denunciar e punir tipos como você.
São capazes de aquecer as coisas para si, Coleman ... e não da maneira que
o Viagra aquece.
Rapaz espertalhão, para se sair com esta do Viagra sem precisar de ajuda.
Está a exibir-se, claro, mas já foi útil antes, pensou Coleman. Por isso não o
interrompas, não o mandes calar por muito irritante que seja a sua
esperteza. Não há frestas de compaixão na sua armadura? Por mim, tanto
faz. Pediste-lhe conselho, portanto escuta-o. Não te convém cometer um
erro por falta de teres sido avisado.
— Evidentemente que posso conseguir o mandado liminar — continuou
Primus. -- Mas acha que isso o vai deter? Não, o que vai é inflamá-lo ainda
mais. Consegui-lhe um perito em grafología, posso conseguir-lhe o
mandado liminar e também um colete à prova de bala. Mas o que não posso
conseguir-lhe é aquilo que nunca terá enquanto estiver envolvido com essa
mulher: uma vida sem escândalo, sem censura, sem Farley. A paz de
espírito decorrente de não ser espiado. Ou caricaturado. Ou desprezado. Ou
mal interpretado. A propósito, ela é seronegativa? Mandou-a fazer análises,
Coleman? Você usa preservativo, Coleman?
Por muito desempoeirado que se julgue, não é realmente capaz de
relacionar este velho com sexo, pois não? Parece-lhe uma coisa
absolutamente anómala. Mas quem pode, aos 32 anos, compreender que aos
71 é exactamente a mesma coisa? Ele pensa: Como e porquê faz ele aquilo?
A minha virilidade de velhadas e as complicações que causa. Aos 32 anos,
pensou Coleman, eu também não teria compreendido. Por outro lado, no
entanto, ele fala da maneira como o mundo funciona com a autoridade de
alguém dez ou vinte anos mais velho. Mas que experiência pode ter tido,
que conhecimento pode ter das dificuldades da vida, para falar de modo tão
condescendente a um homem com mais do dobro da sua idade? Muito,
muito pouco, se não nenhum.
— Se você não usa, Coleman — estava Primus a dizer -, sabe se ela usa
alguma coisa? E, se ela diz que usa, pode ter a certeza de que é verdade? É
sabido que, de vez em quando, as simples empregadas de limpeza disfarçam
a verdade, algumas vezes, mesmo, como antídoto para as canalhíces de que
foram vítimas. O que acontece se Faunia Farley engravidar? É capaz de
pensar como muitas mulheres têm pensado desde que o acto de gerar um
bastardo foi destígmatízado por Jim Morrison e pelos Doors. Faunia poderia
muito bem querer levar a gravidez por diante e tornar-se mãe do filho de um
distinto professor universitário aposentado, apesar de todos os seus
pacientes argumentos em contrário. Tornar-se mãe do filho de um distinto
professor universitário poderia ser uma mudança anímadora para quem foi
mãe dos filhos de um tipo que, além de um fracasso absoluto, é também
transtornado mental. E se, uma vez grávida, resolver que não quer continuar
a ser uma serviçal, que não quer trabalhar em nada, nunca mais, um tribunal
esclarecido não hesitará em condená-lo a sustentar a criança e a mãe
solteira. É claro que eu posso representá-lo no processo de paternidade e, se
e quando tiver de o fazer, esforçar-me para reduzir a sua responsabilidade
financeira a metade da sua pensão. Farei tudo quanto estiver ao meu alcance
para garantir que reste alguma coisa na sua conta bancária à medida que
você avançar para os 80 anos. Escute-me, Coleman: é um mau negócio. É,
em todos os sentidos possíveis, um mau negócio. Se consultar o seu
conselheiro hedonista, ele dir-lhe-á algo diferente, mas eu sou o seu
conselheiro jurídico e, por isso, digo-lhe que é um horrível, um péssímo,
negócio. No seu lugar, não me atravessaria no caminho das desvairadas
razões de queixa de Lester Farley. No seu lugar, rasgaria o contrato de
Faunia e saía dessa.
Tendo dito tudo quanto tinha para dizer, Primus levantou-se da cadeira
atrás da secretária, uma grande e bem polida secretária despojada de todos
os papéis e pastas, praticamente despida de tudo menos das fotografias
emolduradas da jovem professora universitária com quem era casado e dos
seus dois filhos, uma secretária cuja superfície era o epítome da ficha limpa
e imaculada e só podia levar Coleman a concluir que nada de desorganizado
se atravessava no caminho daquele jovem loquaz, nem fragilidades de
carácter; nem opiniões extremas, nem compulsões impetuosas, nem, sequer,
a possibilidade de erro imprevidente: nada mal ou bem escondido que
pudesse jamais emergir, inexplicadamente, e impedi-lo de alcançar todas as
recompensas profissionais e êxitos burgueses. Não haverá "spooks" na vida
de Nelson Primus, não haverá Faunias Farley ou Lesters Farley, não haverá
Markies para o desprezarem nem Lisas para o abandonarem. Primus traçou
o risco e a nenhuma impureza incriminadora será jamais consentido que o
pise. Mas não o tracei eu também, e não menos rigorosamente? Acaso fui
menos vigilante na busca de objectivos legítimos e de uma vida respeitável
e bem equilibrada? Acaso fui menos seguro ao marchar com passo certo
atrás dos meus inexpugnáveis escrúpulos? Terei sido menos arrogante? Não
foi exactamente assim que procedi com a velha guarda nos meus primeiros
cem dias como homem forte de Rohert? Não foi assim que dei com eles em
loucos e os forcei a sair? Terei sido menos inexoravelmente seguro de mim
mesmo? E, contudo, aquela única. palavra bastou. Uma palavra que, não
sendo de modo algum a mais explosiva, a mais horrenda, a mais odiosa da
língua inglesa, chegou no entanto para pôr a nu, para expor aos olhos de
todos e a todos permitir julgar e achar deficiente a verdade de quem sou e
do que sou.
O advogado, que não fora de meias-palavras, que praticamente revestira
cada uma delas de um sarcasmo admonitório que equivalia a uma clara
repreensão e cujo propósito recusava disfarçar do seu distinto e idoso
cliente com um único circunlóquio, saiu de trás da secretária para
acompanhar Coleman à porta do escritório e, aí, foi mesmo ao extremo de
descer a escada com ele até à rua cheia de sol. Fora em grande parte em
nome de Beth, sua mulher, que Primus quisera ter a certeza de dizer tudo
quanto pudesse a Coleman o mais convincentemente possível, de dizer o
que tinha de ser dito por muito pouco amável que pudesse parecer, na
esperança de impedir aquela outrora notável personagem universitária de se
desacreditar ainda mais. O incidente com as duas estudantes coincidindo
como coincidiu com a morte súbita da sua mulher — perturbara tão
gravemente o reitor Silk que ele não só dera o passo impensado de se
demitir para mais quando a espúria acusação ele que fora alvo já dera
praticamente o que tinha a dar, como agora, decorridos dois anos inteiros,
continuava incapaz de avaliar o que era e não era do seu interesse a longo
prazo. Primus tinha quase a impressão de que Coleman Silk não se sentia
ainda suficientemente injustiçado e humilhado, como se, com a insensatez
astuta de um homem condenado, como alguém que perde a graça de um
deus, procurasse desvairadamente um golpe derradeiro, perverso e aviltante,
uma suprema injustiça que para sempre justificasse o seu ressentimento.
Um indivíduo que em tempos dispusera de considerável poder no seu
pequeno mundo dir-se-ia agora não apenas incapaz de se defender das
intromissões de uma Delphine Roux e de um Lester Farley, mas também, o
que era igualmente comprometedor para a sua aguerrida imagem própria,
incapaz de se escudar contra os deploráveis tipos de tentações com que o
macho a envelhecer tenta compensar a falta de uma masculinidade vigorosa
e viril. O advogado percebeu pela atitude de Coleman que não se enganara
a respeito do Viagra. Mais outra ameaça química, pensou. Pelo bem que o
Viagra lhe fazia, era como se o tipo estivesse a fumar crack.
Na rua, trocaram um aperto de mão.
— Coleman — disse Primus, cuja mulher, nessa mesma manhã, quando
ele lhe dissera que ia receber a visita do reitor Silk, exprimira o seu pesar
por ele ter deixado a universidade e mencionara de novo, desdenhosamente,
Delphine Roux, a quem desprezava pelo papel que tinha desempenhado no
caso dos -spooks". — Coleman, Faunia Farley não pertence ao seu mundo.
A noite passada teve oportunidade de ver bem o mundo que a moldou, que
a magoou, e ao qual, por razões que conhece tão bem quanto eu, nunca
conseguirá escapar. De tudo isso pode resultar alguma coisa pior do que
aconteceu a noite passada, muito pior. Já não está a lutar num mundo onde
estão empenhados em destrui-lo e afastá-lo do seu lugar para o substituírem
por um dos deles. Já não está a lutar com um bando de igualitários elitistas
que disfarçam a sua ambição atrás de ideais magnânimos. Agora luta num
mundo onde ninguém se dá, sequer, ao trabalho ele mascarar a crueldade
sob a capa da retórica humanitária O sentimento fundamental destas
pessoas em relação à vida é que foram implacavelmente fodidas desde o
início. O que sofreu por causa do modo como o seu caso foi tratado pela
universidade, por muito horrível que tenha sido, é o que esta gente sente a
cada minuto de cada hora da ...
Neste ponto, a palavra Basta! estava tão claramente escrita no olhar de
Coleman que Primus teve consciência de que era altura de se calar. Durante
o encontro, Coleman ouvira em silêncio, refreando os seus sentimentos,
tentando manter o espírito aberto e ignorar a satisfação por de mais aparente
com que Primus expunha e aconselhava, com pompa, as virtudes da
prudência a um professor universitário quase quarenta anos mais velho do
que ele. Num esforço para não perder a calma, pensara: Estarem irritados
comigo permite a todos sentirem-se melhor, dá-lhes a liberdade de me
dizerem que estou errado. mas quando chegaram à rua deixou de ser
possível separar a argumentação da verbalização, ou separar-se a si mesmo
do homem no comando que sempre fora, o homem no comando o homem a
quem se sub-metiam. Primus não teria precisado de tanto rendílhado
satírico para falar sem rodeios ao seu cliente e ir direito ao assunto. Se o
objectivo fosse aconselhálo de modo advocacionalmente persuasivom, uma
dose muito pequena de troça teria sido mais eficaz. Mas Coleman pensava
que a opinião que Primus tinha de si mesmo, como homem brilhante e
destinado a altos voos, parecia ter levado a melhor e, por isso, ele não
resistira a zombar sem limites de um velho ridículo que um produto
farmacêutico, à venda por dez dólares o comprimido, tornava potente.
— Em oratória, você é um mestre de uma loquacidade prodigiosa,
Nelson. Tão perspicaz. Tão fluente. Um mestre de oratória no que toca à
frase interminável, pomposa e desmedidamente rebuscada. E tão
prodigamente rico de desdém por todo e qualquer problema humano que
nunca teve de enfrentar! — Sentia uma vontade tremenda de agarrar o
insolente filho da puta pelo peitilho da camisa e atirá-lo contra a montra da
Talbots. Em vez disso, deu um passo, conteve-se e, falando de modo
calculado e no tom mais suave que conseguiu, embora não tão
cuidadosamente quanto poderia ter feito, longe disso, declarou:
— Não quero voltar a ouvir, nunca mais, essa voz cheia de admiração por
si mesmo, nem ver a puta dessa cara presunçosa de lírio branco.
— "Lírio branco"?(7) — repetiu Primus à mulher, nessa noite. — "Lírio
branco" porquê? Sei que não podemos responsabilizar as pessoas pelo que
deitam pela boca fora quando se sentem usadas e ofendidas na sua
dignidade. Mas pretendia eu parecer que estava a atacá-lo? Evidentemente
que não. É pior do que isso. É pior porque o velho perdeu o norte e eu
queria ajudá-lo. É pior porque o homem está na iminência de transformar
um erro numa catástrofe e eu queria detê-lo. O que ele tomou por uma
agressão da minha parte foi na realidade um esforço desastrado para que me
levasse a sério, para o convencer. Falhei, Beth, falhei redondamente. Geri
mal a situação. Talvez porque eu estava intimidado. Com o seu ar frágil, de
homenzinho, O indivíduo é uma força. Nunca o conheci como o grande
reitor. Conheci-o apenas como alguém com problemas. Mas sentimos a
presença, percebemos por que intimidava as pessoas. Quando está à nossa
frente, temos consciência de que está ali alguém. Não sei o que é. Não é
fácil saber que ideia fazer de uma pessoa que vimos meia dúzia de vezes na
vida. Talvez se trate, principalmente, de algo de estúpido que há em mim.
Mas, fosse qual fosse a causa, cometi todos os erros amadorísticos da
cartilha. Psicopatologia, Viagra, The Doors, Norrnan o. Brown,
contracepção, sida. Como se soubesse tudo de tudo. Sobretudo tratando-se
de alguma coisa que aconteceu antes de eu nascer, sabia tudo quanto era
humanamente possível saber. Devia ter sido conciso, objectivo, pragmático,
mas em vez disso fui provocador. Quis ajudá-lo e acabei por ofendê-lo e
tornar a situação mais grave para ele. Não, não o censuro por ter
descarregado em mim daquela maneira, Mas, querida, a questão permanece:
porquê branco?
Havia dois anos que Coleman não ia ao campus da universidade e, agora,
nem sequer ia à cidade, se podia evitá-lo. Já nâo odiava todos e cada um dos
membros da faculdade, só não queria ter contacto algum com eles, receoso
de que, se parasse para conversar, ainda que de coisas sem importância,
fosse incapaz de esconder o seu sofrimento ou de esconder que o escondia,
incapaz de ficar ali parado a ferver ou, pior ainda, de evitar descontrolar-se
e lançar-se incontidamente numa versão demasiado clara da neurastenía do
homem injustiçado. Poucos dias depois de se ter demitido, abrira novas
contas no banco e no supermercado de Blackwell, uma cidade industrial
deprimida, no rio, a menos de trinta quilómetros de Athena, e requisitara até
um cartão da biblioteca local, resolvido a frequentá-la, por muito reduzido
que fosse o seu acervo, só para nunca mais ter de deambular entre as pilhas
de livros da biblioteca de Athena. Inscreveu-se na YMCA ele Blackwell e,
em vez de nadar na piscina da universidade ao fim do dia, ou de fazer
exercício no tapete do ginásio como fora seu hábito, depois do trabalho,
durante quase trinta anos, passou a dar as suas braçadas duas vezes por
semana na piscina menos agradável da YMCA de Blackwell e a subir; até,
ao maltratado ginásio e, pela primeira vez desde o liceu, começou, a um
ritmo muito mais lento do que nos anos 40, a treinar os reflexos no saco de
couro e a bater no saco mais pesado. Ir de carro para norte, para Blackwell,
demorava o dobro do tempo do que descer a encosta para Athena, mas era
improvável que encontrasse ex-colegas em Blackwell, e quando isso
acontecia era mais fácil e menos conscientemente carregado de emoção,
acenar-lhes com a cabeça, sem sorrir, e continuar a tratar dos seus assuntos,
do que seria nas bonitas ruas antigas de Athena onde não havia uma
tabuleta, um banco, uma árvore ou um monumento do largo que não lhe
recordasse de alguma maneira o que ele fora antes de ser o racista da
Universidade e tudo ser diferente. A enfiada de lojas do outro lado do largo
nem sequer existia amtes de a sua actividade como reitor ter trazido toda a
espécie de gente nova para Athena, tanto professores como estudantes e
pais de estudantes, de tal modo que, com o tempo, ele acabara por mudar a
comunidade em não menor grau do que agitara a universidade. A
moribunda loja de antiguidades, o mau restaurante, a mercearia ao nível da
subsistência, a loja de bebidas provinciana, a barbearia rústica, a loja de
fanqueiro do século XIX, a livraria mal abastecida, o salão de chá piroso, a
farmácia escura, a taberna deprimente, o quiosque de jornaís sem jornais, a
enigmática e deserta loja de magia: tudo isso desaparecera e fora substituído
por estabelecimentos onde era possível comer uma refeição decente, beber
uma boa chávena ele café, aviar uma receita, comprar uma boa garrafa de
vinho, encontrar um livro acerca de outra coisa que não fossem os
Berkshire — e encontrar também qualquer coisa além de ceroulas
compridas para estar quente no Inverno. A "revolução da qualidade", cuja
Imposição à faculdade e ao currículo de Athena lhe fora outrora
elogiosamente atribuída, estendera-a também, ainda que sem dar por isso, à
Lown Street. O que só aumentava o sofrimento e a surpresa de ser ali o
estranho que era agora.
Entretanto, decorridos dois anos, sentia-se sitiado, não tanto por eles —
tirando Delphine Roux, quem, em Athena, se importava ainda com
Coleman Silk e o incidente dos -spooks-? como pelo cansaço da sua própria
mal contida e facilmente galvanizável amargura; as ruas de Athena
inspiravam-lhe agora (para começar) uma aversão maior por si mesmo do
que por aqueles que, por indiferença, cobardia ou ambição, não tinham
esboçado o mais pequeno protesto em sua defesa. Pessoas instruídas,
doutoradas, pessoas que ele próprio contratara convencido de que eram
capazes de pensar de modo racional e independente, tinham-se revelado
desprovidas de qualquer desejo de avaliar a absurda acusação que lhe
faziam e chegar a uma conclusão adequada. Racista: este tornara-se, de
súbito, o epíteto de maior carga emocional que se podia aplicar a alguém na
universidade de Athena e toda a faculdade sucumbira a esse emocionalismo
(e ao medo do que pudesse acontecer ao seu cadastro pessoal e a futuras
promoções). A palavra "racista", pronunciada com ressonância oficial: eis
quanto bastara para que todos os seus potenciais aliados desatassem a fugir
para se porem a salvo.
Ir a pé até ao campus! Era Verão. Não havia aulas. Depois de quase
quatro décadas em Athena, depois de tudo o que fora destruído e perdido,
depois de tudo quanto passara para ali chegar, por que não? Primeiro
"spooks", agora "lírio branco": quem sabe que repulsiva eficiência revelará
a sua próxima e levemente antiquada locução, o próximo ídiomatísmo
quase encantadoramente obsoleto que lhe sairá pela boca fora? Como a
palavra perfeita pode revelar ou perder uma pessoa! O que queima, o que
destrói a camuflagem, o disfarce e o encobrimento. É isso, a palavra certa
dita espontaneamente, sem precisarmos sequer de pensar, Pela rnilésima
vez: eu disse "spooks" porque queria referir-me a "spooks". O meu pai tinha
um bar, mas insistia comigo para que fosse preciso na linguagem, e eu segui
o seu exemplo nisso, As palavras têm significados, Até o meu pai sabia
isso. apesar de ter estudado apenas até ao sétimo ano, Tinha duas coisas
atrás do balcão para o ajudarem a resolver discussões entre os clientes: um
bastão e um dicionário, O meu melhor amigo, dizia-me, é o dicionário — e
é também o meu, hoje, Porque, se consultamos o dicionário, o que
encontrarmos como primeiro significado de "spook"? Como significado
principal "1.Informal, um fantasma, espectro". "Mas, reitor Silk, não foi
com esse sentido que foi interpretado, Permita que lhe leia o segundo
significado do dicionário: "2, Depreciativo. um negro" Foi com esse sentido
que foi interpretado, e o senhor pode compreender a lógica da frase:
"Alguém as conhece ou são negras que vocês não conhecem?" "Se a minha
intenção fosse dizer alguém as conhece ou não as conhece porque são
negras?", seria isso que eu teria dito. "Alguém as conhece ou nenhum de
vocês as conhece por se tratar de duas estudantes negras" Alguém as
conhece ou são negras que ninguém conhece/" Se eu tivesse querido dizer
isso, tê-lo-ia dito exactamente assim. Mas como podia saber que eram
estudantes negras se nunca lhes pusera os olhos em cima e, exceptuando os
seus nomes, não sabia nada a seu respeito? O que sabia,
incontestavelmente, era que elas eram estudantes invisíveis, e a palavra para
invisível, para fantasma, para espectro é a que eu usei no seu significado
principal: "spook". Queira consultar o adjectivo "spooky", que é: a entrada
que se segue no dicionário depois de "spook". "Spooky" uma palavra que
todos nós recordamos da infância, e que significa o quê? segundo a edição
integral do dicionário: "Informal, 1. semelhante a ou próprio de um "spook"
ou fantasma; que sugere "spooks". 2, misterioso, assustador. 3. (referindo-se
esp. a cavalos) nervoso, espantadiço. Referindo-se especialmente a cavalos,
Alguém se lembraria de insinuar que as minhas duas estudantes estavam a
ser caracterizadas por mim também como cavalos! Não! Mas por que não!
Já que estão com a mão na massa, por que não, também, isso?"
Um ultimo olhar a Athena e, depois, que a ignomínia seja completa,
Silky. Silky Silk(8): O nome pelo qual ninguém o conhecera durante mais de
cinquenta anos, mas que, apesar disso, ele quase esperava ouvir alguém
gritar, de repente: "Eh, Silky", como se estivesse de novo em East Orange, a
subir a Central Avenue depois das aulas — em vez de a atravessar a Town
Street de Athena e, pela primeira vez desde que se demitira, a iniciar a
subida para o campus -, a subir a Central Avenue com a irmã, Ernestine, e a
ouvir a história absurda que ela lhe contava, dizendo que a tinha escutado
na noite anterior, quando o Dr. Fensterman, o médico judeu, o grande
cirurgião do hospital onde a mãe deles trabalhava em Newark, fora visitar
os seus pais, Enquanto Coleman treinava no ginásio com a equipa de
corrida, Ernestine estava a fazer os deveres de casa na cozinha, onde pudera
ouvir o Dr. Fensterman, sentado na sala com os pais, explicar por que
motivo era extremamente importante para ele e para Mrs. Fensterman que o
seu filho, Bert terminasse o liceu como o melhor do curso, Como os Silk
sabiam, Coleman era então o primeiro do ano deles, com Bert em segundo,
ainda que apenas por uma única nota, () único B que constava da caderneta
escolar de Bert do período anterior, um B em Física, que por direito
absoluto deveria ter sido um A, esse B era tudo quanto separava os dois
melhores alunos do último ano, O Dr. Fensrerman explicou a Mr. e a Mrs.
Silk que Bert queria ser médico, como o pai, mas que para isso era essencial
ter um cadastro escolar perfeito, não apenas na universidade mas desde
sempre, da pré-primária em diante, talvez os Silk não estivessem ao
corrente das quotas discriminatórias, instituídas com o objectivo de impedir
aos judeus o acesso às escolas médicas, sobretudo às de Havard e Yale,
onde o Dr. e Mrs Fenstennan estavam convencidos de que, se lhe fosse dada
essa oportunidade, bert poderia tornar-se o melhor entre os melhores. Em
virtude das quotas reduzidas reservadas para os judeus na maioria das
escolas médicas, o próprio Dr, Fensterman tivera de ir estudar para o
Alabama, onde pudera ver em primeira mão todas as dificuldades contra as
quais as pessoas de cor tinham de lutar, O Dr. Fensterman não ignorava que
o preconceito contra os estudantes de cor nas instituições académicas era
muito maior do que o preconceito contra os judeus. Conhecia o tipo de
obstáculos que os próprios Silk tinham tido de vencer para alcançarem tudo
aquilo que os distinguia como uma família negra modelo. Sabia as
atribulações que Mr. Silk tivera de enfrentar desde que a loja de oculista
falira, durante a Depressão. Sabia que Mr. Silk tinha, como ele, um curso
universitário e que, ao trabalhar para os caminhos-de-ferro como comissário
— Foi esse o nome que ele deu a criado, Coleman. "comissário"" -, tinha
uma profissão com um nível que não estava de modo algum àaltura da sua
qualificação profissional. Quanto a Mrs, Silk, conhecia-a, claro, do hospital.
Na opinião do Dr, Fensterman, não havia melhor enfermeira no hospital,
nenhuma era mais inteligente, mais conhecedora, mais digna de confiança
ou mais competente do que Mrs, Silk — incluindo a própria enfermeira-
supervisora. Na sua opinião, há muito tempo que Gladys Silk devia ter sido
nomeada enfermeira-chefe do serviço de cirurgia, Uma das promessas que o
Dr. Fensterman desejava fazer aos Silk era a da sua disposição para fazer
tudo quanto estivesse ao seu alcance, junto do director do pessoal, a fim de
conseguir esse cargo para Mrs. Silk quando Mrs. Noonan, a actual
enfermeira-chefe do serviço de cirurgia, se aposentasse, Além disso, estava
disposto a ajudar os Silk com um "empréstimo" isento de juros e não
reembolsável de três mil dólares, entregue de uma só vez quando Coleman
partisse para a faculdade e a família tivesse de incorrer em despesas
adicionais, Em troca, não pedia tanto como eles poderiam pensar, Como
segundo classificado, Colman não deixaria de ser o melhor aluno de cor do
curso de 1944, para já não mencionar que seria o melhor aluno de cor, de
sempre, a formar-se em East Orange. Com a sua média de curso, era até
mais do que provável que viesse a ser o aluno de cor mais bem classificado
do condado, ou mesmo do estado, e o facto de concluir o curso liceal em
segundo lugar em vez de em primeiro, não faria diferença absolutamente
nenhuma quando se inscrevesse na Howard University. Com uma
classificação daquelas, eram ínfimas as probabilidades de encontrar a
mínima dificuldade. Coleman não perderia nada e os Silk teriam três mil
dólares para ajudar os estudos dos filhos; além disso, com a ajuda e o apoio
do Dr. Pensterman, Gladys Silk podia muito bem ser promovida e, em
poucos anos, tornar-se na primeira enfermeira chefe de cor de qualquer
serviço de qualquer hospital da cidade de Newark. A Coleman nada mais
era pedido do que escolher as duas matérias em que era mais fraco e, em
vez de obter classificação A nos exames finais, obter a B. Competiria então
a Bert conseguir A em todas as matérias, cumprindo assim o que constituía
a sua parte do acordo. E se Bert deixasse alguém ficar mal por não se
esforçar para obter todos esses A's, os dois rapazes acabariam o ano
empatados, havendo mesmo a possibilidade de Coleman ficar em primeiro
lugar, o que não significaria que o Dr. Fensterman deixasse de cumprir as
suas promessas. Escusado seria dizer que todas as partes envolvidas se
comprometeriam a manter o acordo confidencial.
Coleman ficou tão encantado com o que ouviu que se soltou da mão de
Ernestine e correu, exuberante, pela rua acima, subiu a Central até à
Evergreen e voltou para trás, a gritar: "As duas matérias em que sou mais
fraco ... quais são elas" Era como se, ao atribuir-lhe uma fraqueza
académica, o Dr. Fensterman lhe tivesse contado a mais cómica das
anedotas. "Que responderam eles, Ern? O que disse o pai?" "Não consegui
ouvir. Ele falou muito baixo., "O que disse a mãe?" "Não sei, também não
consegui ouvi-la. Mas ouvi o que eles disseram depois de o doutor sair.
"Conta-me! O que foi?" "O pai disse: "Apeteceu-me matar aquele
homem."" "A sério?" "A sério. Disse" "E a mãe?" "tEu mordi a língua." Foi
isso que ela disse. "Eu mordi a língua."" "Mas não ouviste o que eles lhe
disseram?" "Nào." "Bem, vou dizer-te uma coisa: não farei o que ele quer.
"É claro que não", disse Ernestine. "E se o pai lhe disse que eu o faria?"
"Endoideceste, Coleman?" "Ernie, três mil dólares é mais do que o pai
ganha num ano inteiro. três mil dólares, Ernie!" Pensar no Dr. Fensterman a
entregar ao seu pai um grande saco de papel atafulhado com todo aquele
dinheiro pô-lo de novo a correr, a saltar, de brincadeira, imaginárias
barreiras baixas (era há vários anos o campeão liceal de provas de barreiras
baixas de Essex County e o segundo nos duzentos metros sprinte) até à
Evergreen e volta. Outro triunfo, era isso que estava a pensar. Mais um
triunfo, mais um recorde batido pelo grande, o incomparável, o único Silky
Silk! Era sem dúvida o melhor aluno do seu curso, assim como um
campeão da pista de corridas, mas como tinha só 17 anos a proposta do Dr.
Fensterman significava para ele, apenas, que era muitíssimo importante
para quase toda a gente. Ainda não sabia ver o quadro em toda a sua
dimensão.
Em East Orange, cujos habitantes eram na sua maioria brancos —
italianos pobres, que moravam no limite da cidade do lado de Orange ou,
mais abaixo, junto do primeiro bairro de Newark, ou episcopalianos ricos,
que residiam nas grandes casas de Upsala ou nas imediações de South
Harrison -, havia ainda menos judeus do que negros, mas apesar disso,
nesse tempo, eram os judeus e os seus filhos que estavam mais presentes na
vida extra-curricular de Coleman. Primeiro fora o Doc Chizner, que
praticamente o adoptara no anterior, quando Coleman se inscrevera nas suas
aulas nocturnas de boxe, e agora o Dr. Fensterman oferecia três mil dólares
para ele ficar em segundo lugar no liceu, a fim de permitir que Bert ficasse
em primeiro. Doc Chizner era um dentista apaixonado pelo boxe. Sempre
que podia, não desperdiçava uma oportunidade de assistir a um combate:
em Jersey, em Laurel Garden e no Meadowbrook Bowl, em Nova Iorque,
no Garden e no St. Nick's. Pensamos que percebemos de boxe até nos
sentarmos ao lado do Dooc." costumavam dizer as pessoas. "Quando nos
sentamos ao lado dele compreendemos que não estamos a ver o mesmo
combate. Doc oficiava em combates amadores em todo o condado de Essex,
incluindo o Luvas de Ouro em Newark, e os pais judeus de todos os
Oranges, de Maplewood, de Irvington e, até, de Weequahic, no extremo
sudoeste de Newark, mandavam os filhos às suas aulas locais de boxe, para
aprenderem a defender-se. Coleman não fora parar às aulas de Doc Chizner
por não saber defender-se, mas porque o pai descobrira que, desde o
segundo ano do liceu, depois de treinar na pista de corridas sozinho, o filho
se escapava, por vezes até três dias por semana, para o Newark Boys Club,
abaixo da High Street dos bairros de lata de Newark que davam para a
Morton Street, e treinava em segredo para ser pugilista. Com 14 anos e
cerca de cinquenta quilos, passava lá duas horas, descontraía-se, lutava três
assaltos, treinava-se no saco pesado e no saco de couro, saltava à corda,
fazia os exercícios e depois ia para casa e fazia os deveres da escola.
Chegou até a treinar duas vezes com Cooper Fulham, que no ano anterior
vencera os campeonatos nacionais em Boston. A mãe de Coleman fazia um
turno e meio, e até dois turnos seguidos, no hospital, o pai servia à mesa no
comboio e quase não ia a casa a não ser para dormir, o irmão mais velho,
Walt, estava ausente, primeiro na universidade e depois no exército, e por
isso ele entrava e saía como lhe apetecia, obrigava Ernestine a jurar que
guardava segredo e, para que as suas notas não descessem, estudava na sala
de estudo, na cama, à noite, e nos autocarros, nas idas e vindas para e de
Newark — dois autocarros por dia -, aplicando-se mais ainda do que
habitualmente nos trabalhos escolares para ter a certeza de que ninguém
descobria as suas escapadelas para Morton Street.
Quando um rapaz queria jogar boxe amador, ia ao Newark Boys Club e,
se era bom e tinha entre 13 e 18 anos, era escolhido para combater contra
rapazes do Boys Club de Paterson, de Jersey City, de Butler, da Liga de
Boxe Amador de Ironbound, ete. Havia um grande número de miúdos no
Boys Club, alguns de Rahway, de Linden, de Elizabeth, até, dois de
Morristown e um surdo-mudo a quem chamavam Dummy, que vinha de
Bellevílle, mas na sua maioria eram de Newark e todos de cor, embora os
dois tipos que dirigiam O clube fossem brancos. Um, chamado Mac
Machrone, era polícia em West Side Park, tinha uma pistola e disse a
Coleman que se descobrisse que ele não fazia o seu trabalho na estrada lhe
dava um tiro. Mac acreditava na velocidade e, por isso, também acreditava
em Coleman. Velocidade, jogo de pernas e contra-ataque. Depois de ter
ensinado a Coleman como estar parado, como movimentar-se e como
desferir os socos, depois de verificar que ele aprendia depressa, era
inteligente e tinha reflexos rápidos, Mac começou a ensinar-lhe coisas mais
sofisticadas. Como mexer a cabeça, como esquivar-se aos golpes, como
bloquear e como contra-atacar. Para lhe ensinar o jab, Mac repetia: "É como
se enxotasses uma mosca do nariz, com a diferença que a enxotas do nariz
do outro" Ensinou-o a ganhar um combate usando apenas ojab. "Lança o
jab, bloqueia para baixo, cruza. Lançam-te umjab, encaixas, respondes com
um cruzado de direita. Ou esquivas e respondes com um gancho, Ou
baixas-te, apenas, e contra-atacas com um direito ao coração e um gancho
esquerdo ao estômago. Apesar de pouco corpulento, por vezes Coleman
encaixava rapidamente o jab com ambas as mãos, puxava o adversário,
atirava-lhe um gancho ao estômago, endireitava.-se e desferia um gancho
para a cabeça. "Bloqueia para baixo. Contra-ataca. És bom nisso, Silky.
Muito bom." Depois foram a Paterson. O seu primeiro torneio amador. Um
miúdo desferiu um jab e a parte superior do corpo de Coleman inclinou-se
para trás, mas os seus pés permaneceram firmes e ele pôde inclinar-se para
a frente e replicar com um direito, e continuou a fazer o mesmo durante
todo o combate. O miúdo insistiu, por isso, Coleman fez o mesmo e ganhou
os três assaltos. No Boys Club, esse passou a ser o estilo de Silky Silk.
Quando atacava, era para que ninguém pudesse dizer que ficava ali parado
sem fazer nada. A maior parte das vezes esperava que o adversário atacasse
e depois respondia com dois, três golpes e ficava de novo à espera. Podia
bater mais no adversário esperando que ele tomasse a iniciativa do que
tomando-a pessoalmente. Em consequência disso, quando chegou aos 16
anos, só nos condados de Essex e Hudson, em torneios amadores, em
espectáculos de amadores no arsenal, no Knights of Pythias, em exibições
para antigos combatentes no hospital dos veteranos, Coleman poderia ter
vencido três adversários campeões das Luvas de Ouro. Pelos seus cálculos,
poderia ter ganho 112, 118, 126 ... não fosse o caso de ser impossível
disputar as Luvas de Ouro sem isso vir nos jornais e a sua família descobrir.
O que, no entanto, não a impediu de descobrir. Não sabia como. Nem
poderia saber. Descobriram porque alguém lhes disse. Tão simples como
isso.
Estavam todos sentados à mesa, um domingo depois da ida à igreja,
quando o pai lhe perguntou:
— Como te correram as coisas, Coleman?
— Que coisas?
— Ontem à noite, no Knights of Pythias. Como te saíste?
— O que é o Knights of Pythias?
76 -

— Julgas que nasci ontem, filho? Foi no Knights of Pythias que se


realizou o torneio da noite passada. Quantos combates estavam
programados?
— Quinze.
— E como te saíste?
— Venci.
— Quantos combates venceste até agora? Em torneios. Em exibições.
Quantos, desde que começaste?
— Onze.
— E quantos perdeste?
— Até agora, nenhum.
— E quanto te deram pelo relógio?
. Que relógio?
— O relógio que ganhaste no Lyons Veterans Hospital. O relógio que os
veteranos te ofereceram por teres ganho o combate. O relógio que
empenhaste em Mulberry Street. em Newark, Coleman, o relógio que
empenhaste em Newark a semana passada.
O homem sabia tudo.
_- Quanto calcula que me deram? — atreveu-se Coleman a perguntar,
mas sem levantar os olhos dos bordados da toalha de mesa dos domingos.
_ Deram-te dois dólares, Coleman. Quando tencionas tornar-te
profissional?
_ Não combato por dinheiro — respondeu, ainda de olhos baixos. — Não
me interessa o dinheiro. Combato para me divertir. Não é um desporto que
escolhamos se não nos dá prazer.
— Sabes o que eu te diria agora, Coleman, se fosse teu pai?
— Mas é meu pai.
— Ah, sou?
— Bem, com certeza ...
-_ Bem ... mas eu não tenho a certeza, de modo algum. Andei mesmo a
pensar se o teu pai não seria, talvez, o Mac Machrone, do Newark Boys
Club.
— Ora, pai. O Mac é o meu treinador.
— Compreendo. Nesse caso, quem é o teu pai, se me é permitida a
pergunta?
_ Sabe isso muito bem, pai. O meu pai é o senhor.
— Sou? Sou mesmo?
_ Não! -- gritou Coleman. — Não, não é!
E, num repente, levantou-se da mesa, logo no início da refeição
dominical, saiu de casa , durante quase uma hora fez o seu treino de estrada:
subiu a Central Avenue até à fronteira de Orange, atravessou Orange até à
fronteira de West Orange, percorreu a Wat, Illlng Avenue até ao cemitério
de Rosedale, virou para sul pela Washington na direcção da Main, sempre a
correr e a desferir socos, em sprinte, depois só a correr, depois só em
sprinte, depois simulando combater com um adversário todo o caminho de
regresso até à estação de Brick Church e, por fim, toda a restante distância
até casa, à sala onde a família estava a comer a sobremesa, para se voltar a
sentar à mesa, muito mais calmo do que quando se levantara num repente, e
esperar que o pai reatasse a conversa onde a interrompera, o pai que nunca
perdia a calma, O pai que tinha outra maneira de desancar alguém, Com
palavras. Com discursos, Com aquilo a que chamava "a linguagem de
Chaucer, Shakespeare e Dickens". Com a língua inglesa que ninguém
jamais nos poderia tirar e que Mr. Silk pronunciava opulentamente, sempre
com grande sonoridade, clareza e pompa, como se, até numa conversa
comum, estivesse a declamar o discurso de Marco Antónío diante do
cadáver de César. Cada um dos seus três filhos recebera um segundo nome
retirado da peça mais fortemente gravada na memória de Mr. Silk e que, na
sua opinião, era o ponto mais elevado da literatura inglesa e o mais belo
texto pedagógico jamais escrito sobre a traição: o filho mais velho
chamava-se Walter Antony, o segundo filho Coleman Brutus e Ernestine
Calpur nia, a irmã mais nova de ambos, devia o segundo nome à leal esposa
de César.
O encerramento dos bancos pusera um amargo fim à viela de trabalhador
por conta própria de Mr. Silk. Levara muito tempo a refazer-se — se é que
alguma vez o conseguira — da perda da sua loja de oculista, em Orange.
Coitado cio paizinho, costumava dizer a mãe deles, sempre quis trabalhar
por conta própria. Andara na universidade no Sul- na Geórgia, de onde era
natural; ela era de New Jersey — e estudara agricultura e pecuária, Mas
depois desistiu, foi para norte e, em Irenton, matriculou-se na escola de
oftalmologia. Em seguida foi recrutado para o exército, na Primeira Guerra
Mundial, e depois conheceu a mulher, mudou-se com ela para East Orange,
abriu a loja, comprou a casa, veio o crash e, agora, era empregado de mesa
numa carruagem-restaurante. Mas, se não podia fazê-lo na carruagem-
restaurante, pelo menos em casa nada o impedia de falar com toda a
intencionalidade, precisão e clareza e fulminar os outros com palavras. Era
muito rigoroso na exigência de que os filhos falassem correctamente.
Enquanto cresciam, nunca diziam: "Olha o ão-ão", nem sequer: "Olha o
cãozínho., Diziam: "Olha o dobermann. Olha o bigle. Olha o terrier"
Aprenderam que as coisas tinham classificações. Aprenderam a força de as
designar com precisão. Estava sempre a ensinar-lhes inglês. Mr. Silk
corrigia até as crianças que visitavam a sua casa, os amigos dos seus filhos.
Quando era oculista, usava uma bata branca de médico por cima do
severo fato preto, tinha um horário de trabalho mais ou menos regular e
ficava sentado à mesa depois do jantar, a ler o jornal. Todos o liam, Cada
um dos filhos, até Ernestine, a mais pequenina, tinha a sua vez de ler o
Newark Evening Neus, e não era a parte das histórias aos quadradinhos. A
mãe dele, e avó de Coleman, fora ensinada a ler pela sua dona e, depois da
Emancipação, frequentara a que então se chamava Georgia State Normal
and Industrial School for Colored. O pai, e avô paterno de Coleman, fora
pastor metodista. Na família Silk tinham todos lido os clássicos antigos. Na
família Silk as crianças não eram levadas a combates de boxe, mas sim ao
Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, para verem armaduras.
Eram levadas ao Hayden Planetarium para aprenderem a conhecer o
sistema solar. Eram levadas regularmente ao Museum of Natural History. E
depois, em 1937, no 4 de julho, e apesar do custo dos bilhetes, foram todas
levadas por Mr. Silk ao Music Box Theatre, na Broadway, para verem
George M. Cohan em I'd Rather Be Right. Coleman ainda se lembrava do
que o pai dissera pelo telefone ao irmão, o tio Bobby, no dia seguinte,
quando o pano desceu à frente de George M. Cohan, depois das muitas
chamadas ao palco, sabes o que o homem fez? Voltou durante uma hora e
cantou todas as suas canções. Ei-las elas. Haverá melhor maneira de dar o
teatro a conhecer a uma criança?"(9)
— Se eu fosse teu pai — disse o pai de Coleman, reatando a conversa
interrompida, enquanto o rapaz se sentava solenemente diante do prato
vazio -, sabes o que te diria agora?
_ O quê? — perguntou o rapaz em voz baixa, não porque estivesse sem
fôlego por causa do esforço que fizera, mas porque estava envergonhado
por ter dito ao próprio pai, que não era oculista, mas sim empregado de
mesa de carruagem-restaurante, e continuaria a ser empregado de mesa de
carruagem-restaurante até morrer, que ele não era seu pai.
— Diria: "Ganhaste a noite passada? Óptimo, Agora podes retirar-te sem
teres conhecido a derrota. Penduraste as luvas" Aí tens o que te diria,
Coleman.
Foi muito mais fácil quando Coleman voltou a falar com ele
posteriormente, depois de ter passado a tarde a fazer os deveres de casa e de
a mãe ter tido uma oportunidade de conversar e esclarecer as coisas com o
pai, Puderam sentar-se todos, mais ou menos pacificamente, na sala e ouvir
Coleman descrever as virtudes do boxe e explicar que, dadas todas as
capacidades a que era preciso recorrer para se distinguir nele, ultrapassavam
até as das vitórias na pista de corridas.
Agora era a mãe quem fazia as perguntas, e responder-lhe não constituía
nenhum problema. O filho mais novo de Gladys Silk dír-se-ía envolto como
uma prenda em todos os sonhos de melhoria que ela jamais acalentara, e
quanto mais bonito e mais inteligente ele se tornava mais difícil era para a
mãe distinguir o filho dos seus sonhos. Apesar de sensível e cuidadosa com
os pacientes do hospital, também era capaz de ser exigente e severa com as
outras enfermeiras e até com os médicos, com os médicos brancos,
impondo-lhes um código de conduta em nada menos rigoroso do que aquele
que impunha a si mesma, Era capaz de ser assim até com Ernestine. Mas
nunca com Coleman. O filho recebia dela o mesmo que os doentes: a sua
bondade e os seus cuidados conscienciosos. Coleman conseguia
praticamente tudo quanto queria. O pai mostrava o caminho, a mãe
ministrava o amor. O um-dois clássico.
— Não compreendo como podes enfurecer-te com alguém que não
conheces — disse ela, — sobretudo tu, com o teu bom feitio.
— Não nos enfurecemos. Concentramo-nos, apenas, É um desporto.
Fazemos aquecimento antes de um combate, Treinamos com um adversário
imaginário, Preparamo-nos para o que vamos ter pela frente, seja o que for.
— Nunca tendo visto o adversário antes? — perguntou o pai, contendo o
melhor que podia o sarcasmo.
— Eu só quero dizer que não temos de nos enfurecer.
— E se o outro rapaz se enfurece? — perguntou a mãe.
— Não tem importância. É a inteligência que vence, não a fúria. Deixá-lo
enfurecer-se.
Que importa isso? Precisamos de pensar. É como um jogo de xadrez.
Como o rato e o gato, Podemos influenciar um tipo. Ontem à noite calhou-
me um com 18 ou 19 anos, com ar de lento. Atingiu-me com um jah no alto
da cabeça. Por isso, ela próxima vez que tentou o mesmo, eu estava
preparado e, pumba, contra-ataquei com a direita e ele nem soube de onde
veio o soco que o atirou ao tapete. Não costumo atirá-los ao tapete, mas a
este atirei-o. E fi-lo porque o induzi a pensar que podia acertar-me de novo
com aquele tipo de soco.
— Coleman, não gosto do que estou a ouvir -- disse a mãe. Ele levantou-
se para fazer uma demonstração.
— Olhe. Foi um soco lento. Está a ver? Eu percebi que o jab dele era
lento e não ia apanhar-me. Não foi nada que me magoasse, mãe. Eu só
pensei: se ele o repetir, esquivo-me e respondo com um directo de direita.
Por isso, quando ele ia repeti-lo, eu vi vir o soco, por ser tão lento, e pude
esquivar-me e acertar-lhe. Atirei-o ao tapete, mãe, não por estar zangado,
mas sim porque jogo boxe melhor do que ele.
— Mas esses rapazes ele Newark com quem combates ... Eles não se
parecem nada com os amigos que tens. — E, afectuosamente, a mãe
mencionou o nome dos dois outros rapazes negros mais bem-comportados e
inteligentes do ano dele no liceu de East Orange, que eram de facto aqueles
com quem Coleman almoçava e acamaradava na escola.>- Vejo esses
rapazes de Newark na rua e acho-os tão duros ... A corrida é muito mais
civilizada do que o boxe e condiz muito melhor contigo, Coleman. Corres
tão bem, meu querido.
— Ora, não importa que sejam duros ou pensem que são, mãe. Na rua,
sim, importa.
Mas no ringue, não. Na rua, este tipo ele que falei talvez fosse capaz de
me dar uma valente tareia. Mas no ringue? Com regras? Com luvas? Não,
não. Não conseguiu acertar um soco, — E quando te acertam, o que
acontece? Com certeza te magoam. O impacte. É inevitável. E isso é tão
perigoso. Para a tua cabeça. Para o teu cérebro.
-- Nós balanceamos com o soco, mãe. É para isso que nos ensinam a
balancear a cabeça, Assim, está a ver? Isso reduz o impacte. Uma vez,
apenas uma, e só porque fui um idiota, só porque cometi um erro estúpido e
não estava habituado a combater com um canhoto, fiquei um pouco
atordoado. Mas foi só como quando batemos com a cabeça na parede e
ficamos um pouco tontos. Mas depois, de repente, o nosso corpo volta à
normalidade, Tudo quanto temos de fazer é agarrar-nos ao adversário ou
desviar-nos e a cabeça desanuvia-se. Às vezes somos atingidos no nariz e os
nossos olhos ficam um pouco molhados durante um segundo, mas é só isso.
Se sabemos o que estamos a fazer, não é perigoso.
Depois deste comentário, o pai achou que já tinha ouvido o suficiente.
— Já vi homens atingidos por socos que não viram sequer aproximar-se.
E quando isso acontece os seus olhos não ficam molhados, quando isso
acontece os tipos apagam-se, ficam inconscientes. Até a Joe Louis, se bem
te lembras, isso aconteceu, não é verdade? Estou enganado? E se isso pôde
acontecer a Joe Louis, também te pode acontecer a ti, Coleman.
_ Sim, pai, mas Schmeling, quando combateu com Joe Louis nessa
primeira vez, viu uma falha. E a falha deveu-se ao facto de Louis, quando
desferiu ojab, em vez de insistir... — de novo de pé, demonstrou aos pais o
que queria dizer. -- Em vez de insistir, baixou a mão esquerda -- estão a ver?
— e Schmeling continuou a atacar — estão a ver? — e foi assim que o pôs
KO. É tudo raciocínio. Palavra, pai, é. Juro-lhe.
-- Não digas isso. Não digas "juro-lhe".
_ Está bem, não digo. Mas, veja, se ele não insiste quando está na
posição de o fazer, e em vez disso vem para aqui, então o outro ataca com a
direita e acaba por lhe acertar. Foi isso que aconteceu naquela primeira vez.
Foi exactamente isso que aconteceu.
Mas Mr. Silk tinha visto muitos combates. Vira combates entre soldados,
realizados à noite para as tropas, onde os contendores não só eram postos
KO como Joe Louis mas também sofriam golpes tão graves que não era
possível fazer nada para conter a hemorragia. Na sua base vira pugilistas de
cor que se serviam da cabeça como arma principal, que deviam ter usado
uma luva na cabeça, brigões de rua duros e embrutecidos, homens
estúpidos, que batiam e tornavam a bater com a cabeça até o rosto do
adversário ficar irreconhecível. Não, Coleman tinha de sair sem ter sido
vencido ou então, se queria praticar boxe por prazer, por desporto, não o
faria no Newark Boys Club, que na opinião de Mr. Silk era para miúdos dos
bairros de lata, para analfabetos e rufias condenados a acabar na valeta ou
na cadeia, mas ali mesmo, em East Orange, sob os auspícios de Doc
Chizner, que fora o dentista dos United Electrical Workers quando Mr. Silk
era o oculista que fornecia óculos aos membros do sindicato antes de ter de
fechar a loja. Doc Chizner continuava a ser dentista, mas depois das horas
de trabalho ensinava aos filhos de médicos, advogados e homens de
negócios judeues as bases do boxe, com a certeza de que nenhum dos seus
alunos ficaria ferido ou mutilado para toda a vida. Para o pai de Coleman,
os judeus, até os judeus atrevidamente desagradáveis como o Dr,
Fensterman, eram como batedores índios, pessoas sagazes, que mostravam
aos estranhos o caminho de entrada, as possibilidades sociais, que
mostravam a uma inteligente família de cor como as coisas podiam ser
feitas.
Foi por essa via que Coleman chegou ao Doc Chizner e se tornou o
miúdo de cor que todos os miúdos judeus privilegiados passaram a
conhecer — provavelmente, o único miúdo de cor que jamais conheceriam.
Coleman tornou-se rapidamente assistente do Doc, ensinando a esses
miúdos judeus não exactamente as subtilezas de como economizar energia e
movimento que Mac Machrone ensinara ao seu aluno brilhante, mas os
elementos básícos, que de qualquer maneira eram tudo o que lhes
interessava: "Eu digo um, vocês fazem umjab. Digo um-um, fazemjab
duplo. Digo um-dois,jab de esquerda e cruzado de direita. Um-dois-três,jab
de esquerda, cruzado de direita, gancho de esquerda. Depois de os outros
alunos irem para casa — de vez em quando, algum saía com o nariz a
sangrar e não voltava mais -, o Doc Chizner trabalhava sozinho com
Coleman, dedicando algumas noites a reforçar-lhe a resistência, sobretudo
em corpo-a-corpo com ele, o que implicava agarrar e bater, de tal modo
que, depois, o treino era uma brincadeira de crianças. Doc fazia-o levantar-
se e sair para o trabalho de estrada e boxe sombra, à hora em que o cavalo
do leiteiro, atrelado à carroça, chegava ao bairro para o fórnecimento
matinal. Coleman estava na rua às cinco da manhã, com a sua camisola de
treino cinzenta, com capuz, estivesse frio ou nevasse, e passava lá três horas
e meia, até tocar a primeira sineta do liceu, Não se via ninguém, mais
ninguém andava a correr, ainda faltava muito tempo para alguém saber
sequer o que era correr. Fazia cinco quilómetros rápidos, dando socos no ar
durante todo o caminho e parando apenas para não assustar o grande animal
castanho, velho e pesado quando, sinistramente coberto pelo capuz
monacal, alcançava o leiteiro e depois o ultrapassava em sprinte. Detestava
o aborrecimento da corrida, mas nunca talhava um dia.
Uns quatro meses antes de o Dr. Fensterman ir a sua casa fazer a proposta
aos seus pais, Coleman encontrara-se, certo sábado, no carro de Doc a
caminho de West Point, onde o mestre ia arbitrar um combate entre o
Exército e a universidade de Pittsburgh. Doc conhecia o treinador da
universidade e queria que ele visse Coleman combater. Tinha a certeza de
que, com as notas que o rapaz tinha, o treinador lhe conseguiria uma bolsa
de quatro anos para Pittsburgh, uma bolsa que seria maior do que qualquer
que poderia obter em atletismo, e tudo quanto precisaria de fazer para isso
seria jogar boxe pela universidade.
No caminho, Doc não o aconselhou a dizer ao treinador que era branco:
limitou-se a dizer-lhe que não mencionasse que era de cor.
— Se o assunto não vier à conversa — explicou-lhe -, não serás tu quem
o levanta. Não és nem uma coisa nem outra. És Silky Silk. Isso basta. Está o
caso arrumado.
"Está o caso arrumado" era a expressão preferida de Doc — mais uma
das que o pai de Coleman não lhe permitiria repetir em casa.
— Mas ele não vai saber? -- perguntou o rapaz.
— Como? Como é que ele vai saber? Como diabo vai ele saber? Ele vai
ver o melhor aluno do liceu de East Orange, acompanhado por Doc
Chizner. É isso que ele vai ver. E sabes o que vai pensar, se pensar alguma
coisa?
— O quê?
— Tens o aspecto que tens, estás comigo e, por isso, ele vai pensar que és
um dos rapazes do Doc. Vai pensar que és judeu.
Coleman nunca considerara Doc um indivíduo cómico — nada que se
parecesse com Mac Machrone e as suas histórias relacionadas com ser chui
em Newark -, mas aquela ideia fê-lo rir à gargalhada. Depois recordou-lhe:
— Eu vou para a Howard. Não posso ir para a Pittsburgh. Tenho de ir
para a Howard. Desde que tinha memória, vira o pai firmemente decidido a
mandar aquele filho, que era o mais inteligente dos seus três filhos, para
uma universidade historicamente negra, para onde iam os filhos
privilegiados da elite dos profissionais liberais negros.
— Coleman, combate para o tipo. É só isso que tens de fazer, e está o
caso arrumado. Depois veremos o que acontece.
A não ser para idas ocasionais à cidade de Nova Iorque com a família,
Coleman nunca saira de Newlersey Por isso passou primeiro um óptimo dia
a andar por West Point, fingindo que lá estava porque ia ingressar em West
Point, e depois jogou boxe para o treinador em Pittsburgh com um tipo
parecido com aquele com quem combatera no Knights of Pythias: lento, tão
lento que lhe bastaram segundos para compreender que não havia
possibilidade nenhuma de aquele indivíduo o vencer, apesar de ter 20 anos e
ser pugilista da universidade. Meu Deus, pensou, no fim do primeiro
assalto, se pudesse combater contra este tipo até ao fim da minha vida, seria
melhor do que o Ray Robinson. Não era apenas por pesar mais três quilos
do que quando combatera como amador nos Knights of Pythia, havia
qualquer coisa, qualquer coisa que nem sabia identificar; que lhe dava
vontade de ser mais demolidor do que alguma vez ousara, de fazer algo
mais, naquele dia, do que vencer, simplesmente vencer. Seria por o
treinador da Pitt não saber que ele era de cor? Seria por aquilo que
realmente era um segredo única e exclusivamente seu. Adorava segredos. O
segredo de ninguém saber o que se passava na sua cabeça, de pensar o que
quisesse, fosse lá o que fosse, sem que ninguém pudesse saber o que
pensava. Todos os outros miúdos passavam a vida a tagarelar a respeito de
si mesmos. Mas não era aí que estava o poder, nem tão-pouco o prazer. O
poder e o prazer encontravam-se no oposto, estavam em ser
contraconfessional do mesmo modo que era contra-atacante no boxe, e ele
sabia isso sem precisar que ninguém lho tivesse dito sem mesmo ter tido de
pensar a esse respeito. Era por esse motivo que gostava de treino de sombra
e de bater no saco de areia: pelo segredo, pela intimidade inerente. Era
também por esse motivo que gostava de correr, mas o boxe era ainda
melhor. Havia rapazes que se limitavam a bater, e bater, no saco de areia.
Coleman, não. Coleman pensava, e pensava do mesmo modo que fazia na
escola ou numa corrida: excluía tudo o mais, não deixava entrar nada
exterior e mergulhava na coisa, na matéria, no exame: fosse o que fosse que
era preciso dominar, tornava-se nessa coisa. Sabia fazer isso na biologia,
sabia fazer isso no sprinte e sabia fazer isso no boxe. E nada, exterior ou
interior, fazia alguma diferença. Se, no combate, havia alguém a gritar
contra ele, conseguia abstrair-se e não prestar nenhuma atenção, e se o tipo
com quem estava a combater era o seu melhor amigo, também conseguia
não prestar atenção a isso. Depois do combate havia muito tempo para
voltarem a ser amigos. Medo, insegurança e até amizade, conseguia
obrigar-se a ignorar os seus sentimentos: tinha esses sentimentos, mas
tinha-os desligados de si mesmo. Quando fazia treino de sombra, por
exemplo, não estava apenas a descontrair-se. Estava também a imaginar
outro indivíduo, na sua cabeça lutava secretamente com outro indivíduo.
E no ringue, onde o outro indivíduo era real — fedorento, ranhoso,
suado, desferindo socos que não podiam ser mais reais -, nada impedia que
não fizesse a mínima ideia do que ele estava a pensar. Não havia um
professor para pedir a resposta à pergunta. Todas as respostas que
encontrávamos no ringue devíamos guardá-las para nós mesmos, e quando
deixávamos escapar o segredo, deixávamo-lo escapar por todo o lado
menos pela boca.
Por isso, na mágica e mítica West Point, onde naquele dia lhe parecia
haver mais América em cada centímetro quadrado da bandeira desfraldada
no mastro da Academia do que em qualquer bandeira que alguma vez vira,
e onde os rostos rígidos dos cadetes tinham para ele o mais intenso
significado heróico, ali, até mesmo ali, no âmago patriótico, na medula da
inquebrável coluna vertebral do seu país, onde a fantasia do lugar gerada
pelos seus 16 anos condizia perfeitamente com a fantasia oficial, onde tudo
quanto via o enchia de um amor frenético não apenas por si mesmo mas
também por tudo quanto era visível, como se tudo na natureza fosse uma
manifestação da sua própria vida — o sol, o céu, as montanhas, o rio, as
árvores, tudo isso apenas e só Coleman Brutus "Silky. Silk elevado à
milionésima potência -, até ali ninguém conhecia o seu segredo, e por isso
iniciou o primeiro assalto e, ao contrário do contra-atacante invicto de Mac
Machrone, começou a massacrar o adversário com tudo quanto tinha.
Quando o adversário e ele eram do mesmo calibre, tinha de usar o cérebro,
mas quando o adversário era fácil e ele o percebia depressa, podia sempre
ser mais agressivo e começar a bater com gana. Foi isso que aconteceu em
West Point. Num ápice, cortara a arcada supracíliar do rapaz, cujo nariz
sangrava, e batia-lhe em tudo quanto era sítio. E depois aconteceu uma
coisa que nunca antes acontecera. Desferiu um soco lateral com tal força
que três quartos da luva pareceram penetrar no corpo do adversário. Entrou
tão fundo que o deixou estupefacto, embora muito menos do que ao tipo da
Pitt. Coleman pesava cinquenta e oito quilos, estava longe de ser um jovem
pugilista que punha os adversários KO. Não firmou realmente os pés para
desferir um soco tão bom, não era esse o seu estilo. E, no entanto, aquele
golpe lançado contra o corpo penetrou tão fundo que o tipo, um pugilista
universitário já com 20 anos, se dobrou para a frente e Coleman atingiu-o
naquilo a que Doc Chizner chamava "a pança". Em cheio na pança, e o tipo
dobrou-se para a frente e, por instantes, Coleman pensou que ele ia vomitar
e por isso, antes que tal acontecesse e antes que ele caísse, preparou-se para
lhe bater mais uma vez com a direita — tudo quanto via, enquanto aquele
branco caía, era alguém a quem desejava desancar -, mas, de súbito, o
treinador da Pitt, que era o árbitro, gritou: "Não, Silky!", e quando Coleman
começava a lançar aquele último directo com a direita, o treinador agarrou-
o e pôs fim ao combate.
— E, imagina, aquele miúdo — disse Doc na viagem de regresso — era
um excelente pugilista. Mas quando o arrastaram para o seu canto tiveram
de lhe dizer que o combate terminara. Já estava no canto e ainda não sabia o
que o tinha atingido!
Absorto na vitória, na magia, no êxtase daquele último soco e na
deliciosa enchente de fúria que galgara todas as barreiras e não o avassalara
menos do que à sua vítima, Coleman disse, quase como se falasse no sono e
não em voz alta, no carro, enquanto revivia mentalmente o combate:
— Acho que fui demasiado rápido para ele, Doc.
_ Rápido, com certeza. Rápido, evidentemente. Eu sei que és rápido. Mas
também forte. Aquele foi o melhor gancho que já te vi aplicar, Silky. Meu
rapaz, foste demasiado forte para ele.
Teria sido? Verdadeiramente forte?
De qualquer maneira, foi para a Howard. Se não tivesse ido, o pai tê-lo-ia
morto só com palavras, só com a língua inglesa. Mr. Silk tinha tudo
calculado: Coleman ia para a Howard estudar para médico, conhecer uma
rapariga de pele clara de uma boa família negra, casar com ela, instalar-se e
ter filhos que, por sua vez, iriam também para a Howard. Nessa
universidade cem por cento negra as tremendas vantagens de intelecto e
aparência de Coleman Impeli-lo-iam para os escalões mais elevados da
sociedade negra, fariam dele alguém que as pessoas sempre admirariam. E,
no entanto, na sua primeira semana na Howard, quando, cheio de
entusiasmo, saiu no sábado com o colega de quarto, filho de um advogado
de New [\runswick, para ver o monumento a Washington, entraram na
Woolworth para comprar um cachorro quente e chamaram-lhe preto. Pela
primeira vez. E recusaram-se a servir-lhe o cachorro quente. Recusaram-lhe
um cachorro quente na Woolworth, no centro de Washingron, chamaram-
lhe preto e, em consequência disso, foi incapaz de se separar dos seus
sentimentos com tanta facilidade como no ringue. No liceu de East Orange,
o melhor aluno do ano; no Sul segregacionista, apenas mais um preto. No
Sul segregacionista não havia identidades separadas, nem mesmo para ele e
para o seu colega de quarto. Não eram permitidas tais subtilezas, e o choque
foi devastador. Preto, e essa palavra referia-se a ele.
É claro que nem mesmo em East Orange escapara às minimamente
menos malévolas linhas de exclusão que separavam a sua família e a
pequena comunidade de cor do resto da cidade: a tudo o que dimanava
daquilo a que o pai chamava a "negro fobia" do país. E ele também não
ignorava que, ao trabalhar para os caminhos-de-ferro da Pensilvânia, o pai
tinha de suportar insultos na carruagem-restaurante e, com sindicato ou sem
sindicato, um tratamento muito mais humilhante, da parte da companhia, do
que qualquer coisa que ele podia ter conhecido como uma criança de East
Orange que, além de ter a pele tão clara quanto era possível a um negro, era
um rapaz esfuziante, entusiasta e inteligente, e por acaso, também, um atleta
excepcional e um aluno que tinha sempre a nota máxima. Via o pai fazer
tudo quanto podia para não explodir, quando regressava do trabalho a casa
depois de lhe ter acontecido no trabalho alguma coisa acerca da qual, se não
queria perder o emprego, nada mais podia fazer do que murmurar
humildemente: "Síssenhor" ideia de que os negros de pele mais clara eram
mais bem tratados do que os outros nem sempre correspondia à verdade.
"Sempre que um branco fala connosco -, dizia o pai à família, "por muito
bem-intencionado que possa ser, existe a presunção da nossa inferioridade
intelectual. De uma maneira ou de outra, se não o demonstra explicitamente
pelas suas palavras, demonstra-o pela expressão facial, pelo tom da voz,
pela impaciência e, até, pelo oposto: pela sua paciência, pela sua
maravilhosa demonstração de humanidade, fala-nos sempre como se
fôssemos estúpidos, e depois, se mostramos que não somos, fica admirado"
"O que aconteceu, paii?", perguntava Coleman. Mas, fosse por orgulho ou
por indignação, o pai raramente o esclarecia. Bastava-lhe ter feito a
constatação pedagógica. "Repetir, sequer, o que aconteceu", explicava a
mãe de Coleman, "está abaixo da dignidade do teu pai"
No liceu de East Orange havia professores em quem Coleman sentia uma
desigualdade de aceitação, uma desigualdade de aprovação, comparadas
com as que prodigamente demonstravam aos miúdos brancos inteligentes,
mas nunca ao ponto de essa desigualdade deter os seus objectivos. Fosse
qual fosse a desconsideração ou o obstáculo, aceitava-os do mesmo modo
que aceitava as barreiras baixas. Mesmo que fosse apenas para fingir que
não conseguiam atingi-lo, ignorava coisas que Walter, por exemplo, não
engoliria. Walt jogava futebol americano na equipa da universidade, tinha
boas notas, a cor da sua pele não era menos anómala, como negro, do que a
de Coleman, e no entanto tudo o irritava sempre um pouco mais. Quando,
por exemplo, não era convidado para entrar em casa de um miúdo branco e
tinha de esperar à porta, quando não era convidado para o aniversário de um
colega de equipa branco que cometera a tolice de considerar amigo,
Coleman, que partilhava o quarto com ele, ouvia-o falar do assunto durante
meses. Quando não obteve o esperado A em trigonometria, Walt foí ter com
o professor e disse-lhe sem rodeios, na cara branca: "Acho que se enganou"
O professor consultou o livro das classificações, viu de novo os resultados
dos exercícios de Walt e, embora admitindo o seu erro, teve o descaramento
de dizer: "Não pude acreditar que as suas notas fossem tão altas como são",
e só depois deste comentário se dignou mudar o B para A. Nunca passaria
pela cabeça ele Coleman pedir a um professor que corrigisse uma nota, mas
também nunca tinha precisado disso. Talvez por não ter o ar eriçadamente
desafiador de Walt, ou por ter sorte, ou por ser mais inteligente e não
precisar de se esforçar como Walt para se notabilizar academicamente,
obtinha a nota máxima sem problemas. E quando, no sétimo ano, não foi
convidado para a festa de aniversário de um amigo branco (que morava ali
perto, no prédio da esquina, era filho do porteiro do edifício e desde o
jardim infantil ia e vinha com ele da escola), Coleman não considerou isso
um acto de rejeição dos brancos para com ele: depois da surpresa inicial,
considerou o sucedido um acto de rejeição dos estúpidos pais de Dicky
Watkin. Quando ensinava nas aulas de Doc Chizner, sabia que havia miúdos
que se sentiam repugnados por ele, não gostavam que lhes tocasse nem de
entrar em contacto com o seu suor e que, de vez em quando, um
abandonava as aulas -- uma vez mais, provavelmente, por causa de pais que
não queriam que o filho recebesse ínstruções de boxe, ou fosse do que
fosse, de um rapaz de cor --, mas apesar disso, ao contrário de Walt, a quem
não escapava a mínima desconsideração, Co/eman acabava por esquecer,
ignorava ou resolvia, simplesmente, fazer de conta que esquecia ou
ignorava. Houve uma ocasião em que um dos corredores da sua equipa
ficou gravemente ferido num acidente de automóvel e os seus colegas de
equipa apressaram-se a oferecer sangue à família, para as transfusões.
Coleman foi um deles, mas a família não aceitou o seu sangue.
Agradeceram-lhe e disseram-lhe que já não era preciso, mas ele percebeu
qual era a verdadeira razão. Não, não se tratava de desconhecer o que se
passava. Era por de mais inteligente para não saber. Competia nas pistas
contra muitos rapazes brancos de Newark, italianos de Barringer, polacos
de East Side, irlandeses de Central, judeus de Weequahic. Via, ouvia,
escutava. Sabia o que se passava. Mas também sabia o que não se passava,
pelo menos no centro da sua vida. A protecção dos pais, a protecção de
Walt, seu irmão mais velho com um metro e oitenta e seis de altura, a sua
própria confiança inata, o seu encanto irradiante, as suas proezas como
corredor como miúdo mais rápido de todos os quadrantes de Orange") e até
a sua cor, que fazia dele alguém que às vezes as pessoas não sabiam bem
como classificar, tudo isso se combinava para atenuar, no caso dele, os
insultos que Walt achava intoleráveis. E havia ainda a diferença de
personalidaeles: Walt era Walt, vigorosamente Walt, e Coleman não era,
vigorosamente. Talvez não houvesse explicação melhor elo que essa para as
reacções diferentes dos dois.
Mas "preto", chamarem-lhe preto, a ele? Isso enfureceu-o. No entanto, a
não ser que quisesse meter-se em sérios apuros, não pôde fazer outra coisa
senão continuar a andar e sair do estabelecimento. Aquilo não era o
campeonato de boxe amador no Knights of Pythias. Aquilo era a
Woolworth's em Washington D.C. Os seus punhos eram inúteis, o seu jogo
de pernas era inútil, como inútil era a sua fúria. Não penses em Walter. Mas
como podia o seu pai ter engolido aquela merda? Engolir, sob uma forma
ou outra, merda daquele género na carruagem-restaurante, dia após dia!
Nunca antes, apesar de toda a sua precoce intelígência, tivera consciência
de quanto a sua vida fora protegida, nunca soubera avaliar a coragem moral
do pai ou fizera alguma ideia da força poderosa que aquele homem era,
poderosa não apenas em virtude de ser seu pai. Via finalmente tudo quanto
o pai tinha sido comdenado a aceitar. Via, também, toda a impotência, toda
a vulnerabilidade do pai Onde, antes, fora um rapazínho suficientemente
ingénuo para imaginar, pela atitude altiva, austera e, por vezes, insuportável
de Mr. Silk, que não havia nada de vulnerável. Mas porque, tardiamente,
alguém tivera o atrevimento de lhe chamar preto, na cara, Coleman
reconhecia, enfim, a enorme barreira contra a grande ameaça americana que
o pai fora para ele.
Mas isso não lhe tornou a vida mais fácil na Howard. Sobretudo quando
começou a pensar que havia algo de preto nele até para os rapazes do seu
dormitório, todos eles com montes de roupas novas e as algíbeiras cheias de
dinheiro, os quais no Verão, em vez de ficarem nas ruas quentes das suas
terras, iam "acampar", mas não em acampamentos de escuteiros na parvónia
de Jersey e, sim, em lugares chiques, onde andavam a cavalo, jogavam ténis
e representavam peças. Que diabo era um cotillion? Onde ficava Highland
Beach? De que raio falavam aqueles rapazes? Ele contava-se entre os mais
claros dos estudantes mais claros do primeiro ano, era ainda mais claro do
que o seu colega de quarto cor de chá, mas, a julgar por tudo quanto eles
sabiam e ele não, poderia ser o mais negro e ignorante dos trabalhadores
rurais. Detestou Howard desde o dia em que chegou e ao fim de uma
semana também detestava Washington. Por isso, quando no princípio de
Outubro o pai morreu subitamente, enquanto servia o almoço na carruagem-
restaurante da Pennsylvania Railroad que partia da estação da 30th Street de
Filadélfia para Wilmington, e Coleman foi a casa para o funeral, disse à
mãe que não queria mais nada com aquela universidade. Ela suplicou-lhe
que lhe desse uma segunda oportunidade, afirmou-lhe que havia, com
certeza, rapazes com os mesmos modestos antecedentes dele, bolsistas
como ele com os quais poderia conviver e travar amizade, mas nada do que
a mãe disse, por muito verdadeiro que fosse, o fez mudar de ideias. Só duas
pessoas eram capazes de fazer Coleman mudar de ideias, depois de ele ter
tomado uma decisão: o pai e Walt, e mesmo esses tinham praticamente de o
obrigar a vergar a sua vontade para o conseguirem. Mas Walt estava em
Itália com o exército americano e o pai, a quem Coleman tinha de aplacar
fazendo o que ele lhe mandava, já não estava presente para impor
sonoramente fosse o que fosse.
É claro que chorou no funeral e teve consciência de quanto era colossal
aquilo que, de maneira tão inesperada, fora levado. Quando o pastor leu,
juntamente com passagens bíblicas, um conjunto de excertos de Júlío César
do amado volume de peças de Shakespeare do seu pai — um livro enorme,
com uma encadernação de couro mole que, quando Colcman era pequeno,
lhe lembrava sempre um cocker spaniel -, o filho sentiu como nunca a
majestade do pai: a grandeza tanto da sua ascensão como da sua queda, a
grandeza que, como caloiro universitário ausente havia um escasso mês do
pequeno reduto da sua casa em East Orange, começara, ainda muito ao de
leve, a ver como o que na realidade era.

Os cobardes morrem muitas vezes antes de morrerem;


O corajoso só uma vez o sabor da morte prova.
De todos os prodígios de que já ouvi falar,
O mais estranho me parece que temam os homens;
Posto que a morte, um fim inescapável,
Virá quando tiver de vir.

A palavra "corajoso", com a intonação que o pregador lhe deu, despojou


Coleman de todos os seus viris esforços para um autodomínio sóbrio e
estóico e pôs a nu a sua saudade daquele homem que lhe era mais do que
todos chegado e nunca mais voltaria a ver, o pai incomensurável que sofria
em segredo e falava com tal facilidade e arrebatamento que o o dom da
palavra bastara para, inadvertidamente, incutir nele a vontade de ser
admirável. Coleman chorou com a mais fundamental e transbordante das
emoções, irremediavelmente reduzido a tudo aquilo que lhe era
insuportável. Quando, adolescente, se queixava do pai aos amigos,
caracterizava-o com muito mais desdém do que sentia ou tinha, sequer, a
capacidade de sentir; aparentar um modo impessoal de julgar o próprio pai
era mais um dos métodos que divisara para inventar e proclamar
invulnerabilidade. Mas sentir que já não estava circunscrito nem definido
pelo pai era como descobrir que todos os relógios para que olhava tinham
parado e não existia maneira alguma de saber que horas eram. Quer lhe
agradasse quer não, era como se, até ao dia em que chegara a Washington e
entrara na Haward, tivesse sido o pai que fizera em seu lugar a sua história.
Agora teria de ser ele fazê-Ia, e essa perspectiva era aterradora. Mas depois
deixou de ser. Passaram três dias terríveis e assustadores, passou uma
semana terrível, duas semanas terríveis, e de repente, sem mais nem menos,
o que era aterrador tornou-se estimulante.
"Como evitar aquilo / Cujo fim é determinado pelos poderosos deuses?"
Versos também de Júlio César, que lhe tinham sido citados pelo pai, e,
contudo, só com o pai na sepultura dele se dignara finalmente a escutar, mas
que, ao escutá-los, de imediato engrandecera. Isto tinha sido determinado
pelos poderosos deuses! A liberdade de Silky. O Eu puro. Toda a subtileza
de ser Silky Silk.
Descobrira em Howard que não era apenas um preto para Washington
D.C. - e, como se essse choque não tivesse sido suficientemente forte,
descobriu que era também um negro. Um negro de Howard, para mais. Da
noite para o dia, o puro Eu tornou-se parte de um nós com toda a solidez
dominadora do nós, e Coleman não quis ter nada a ver nem com ele nem
com outro nós opressivo que surgisse. Saímos finalmente de casa, a Ur de
nós, e encontramos outro nós? Outro lugar que é exactamente como esse, o
substituto desse? Enquanto cresceu em East Orange foi sem dúvida um
negro, uma parte muito integrante da sua pequena comunidade de cerca de
cinco mil almas, mas no boxe, na corrida, no esiudo, em tudo aquilo em que
se concentrara e fora bem-sucedido, nas suas andanças solítárías por todos
os cantos de Orange e, com ou sem Doc Chízner, para o outro lado da
fromteira de Newark, foi, sem pensar nisso, também tudo o mais. Foi
Coleman, o maior dos grandes pioneiros do Eu.
Depois partiu para Washington e, no primeiro mês, foi um preto e nada
mais e foi um negro e nada mais. Não, não. Viu o destino à sua espera e não
o quis. Compreendeu-o instintivamente e recuou espontaneamente. Não
podemos deixar o grande eles impor-nos a sua intolerância, do mesmo
modo que não podemos deixar o pequeno eles tornar-se um nós e impor-nos
a sua ética. Não à tirania do nós e dos nossos discursos e de tudo que o nós
pretende fazer desabar sobre a nossa cabeça. Jamais, para ele, a tirania do
nós desejoso de nos absorver, do nós moral coercivo, inclusivo, histórico e
inelutável com o seu insidioso E Pluríbus unum. Nem o eles da Woolworth,
nem o nós de Howard. Em vez dele, o Eu puro com toda a sua agilidade.
Descoberta de si: era esse o directo à pança. Singularidade. A luta
apaixonada pela singularidade. O animal singular. A relação deslizante com
tudo. Não estática, mas deslizante. Conhecimento de si, mas oculto. Haverá
alguma coisa mais poderosa?
"Cuidado com os idos de Março." Treta. Cuidado com coisa nenhuma.
Livre. Com ambos os sustentáculos perdidos — o irmão mais velho do
outro lado do mar e o pai morto -, sente-se revigorado e livre para fazer o
que quiser, livre para atingir o maior dos objectivos, sente nos próprios
ossos a confiança necessária para ser o seu Eu individual. Livre numa
escala inimaginável para o seu pai. Tão livre quanto o seu pai fora
oprimido. Livre agora não só do pai mas também de tudo o que o pai tivera
sempre de suportar. As imposiçôes. As humilhaçôes. As obstruções. A
ferida, a dor, a atitude, a vergonha: todas as angústias secretas do fracasso e
da derrota. Em vez disso, livre no grande palco. Livre para seguir em frente
e ser grandioso. Livre para representar o drama sem limites e
autocaracterízador dos pronomes nós, eles e eu.
A guerra continuava e, a não ser que terminasse de um momento para o
outro, ele acabaria por ser recrutado. Se Walt estava em Itália a combater
contra Hitler, por que não haveria ele de lutar também contra o saca na?
Corria o mês de Outubro ele 1944 e ainda lhe faltava um mês para
completar 18 anos. Mas ser-lhe-ia fácil mentir a respeito da idade, não seria
problema nenhum atrasar um mês a data do seu nascimento, passando-a de
12 de Novembro para 12 de Outubro. E, a contas com o desgosto da mãe —
e com o abalo que lhe causara ao abandonar a universidade -, não lhe
ocorreu imediatamente que, se quisesse, também poderia mentir a respeito
da sua raça. Tirar partido da sua pele da maneira que lhe apetecesse, atribuir
a si mesmo a cor que quisesse. Isso só lhe veio ao espírito quando estava
sentado no edifício federal de Newark, com todos os impressos para se
alistar na Marinha à frente e, antes de os preencher, começou a lê-los
cuidadosamente, com a mesma atenção meticulosa com que estudara para
os exames liceais, como se tudo quanto fizesse, de grande ou pouca monta e
tomasse-lhe o tempo que tomasse, fosse a coisa mais importante do mundo.
E nem mesmo então lhe ocorreu, a ele. Quem primeiro se deu conta foi o
seu coração, que começou a bater com força como o coração de alguém na
iminência de cometer o seu primeiro grande crime.

Em 1946, quando Coleman foi desmobilizado, Ernestíne já estava


matriculada no programa de educação elementar do Montclair State
Teachers College e Walt terminava os estudos, também no Montclair States,
e viviam ambos em casa, com a mãe viúva. Mas Coleman, decidido a viver
sozinho e por sua conta, estava do outro lado do rio, matriculado na New
York University. Muito mais do que estudar na NYU, queria viver em
Greenwich Village, assim como, mais do que estudar para obter um
diploma, queria ser poeta ou dramaturgo; mas não encontrava melhor
maneira de alcançar os seus objectivos sem ter de trabalhar para se manter
do que aproveitando os benefícios do GI Bill. O problema é que, mal
começou a frequentar as aulas, começou a acumular A's e a interessar-se, e
no fim dos dois primeiros anos estava no bom caminho para Phi Beta
Kappa e uma licenciatura em clássicos com distinção e louvor. A sua
agilidade mental, a sua memória prodigiosa e a sua fluência tornaram o seu
desempenho acadêmico tão proeminente como sempre fora nos seus
estudos, de modo que aquilo que mais pretendera ao ir para Nova Iorque foi
destronado pelo seu êxito no que todos os outros achavam que ele devia
fazer, o encorajavam a fazer e o admiravam por fazer tão brilhantemente.
Começavam a desenhar-se os contornos de um padrão: era cooptado em
virtude das suas façanhas académicas. É claro que podia aceitar tudo isso e
até gostar, saborear o prazer de ser inconvencionalmente convencional, mas
a ideia não era, na realidade, essa. Tinha sido uma fera em Latim e Grego
no liceu e obtido a bolsa para a Howard, quando o que ele queria era jogar
boxe nas Luvas de Ouro; agora continuava a ser a mesmafera na
universidade, ao passo que a sua poesia, quando a mostrava aos professores,
não despertava qualquer entusiasmo. Ao princípio, continuou a correr e a
praticar boxe pelo prazer que isso lhe causava, até que um dia, no ginásio,
lhe propuseram um combate de quatro assaltos na St. Nick's Arena e lhe
ofereceram trinta e cinco dólares para substituir um pugilista que desístíra.
Desejando acima de qualquer outra coisa com pensar tudo o que perdera
nas Luvas de Ouro, aceitou e, para seu grande prazer, tornou-se
secretamente profissional.
Havia, pois, universidade, poesia, boxe profissional e raparigas, raparigas
que sabiam cuidar e sabiam como usar um vestido, sabiam mover-se com
um vestido, raparigas que correspondiam a tudo quanto imaginara quando
saíra do centro de desvinculação militar de São Francisco para Nova Iorque,
raparigas que reivindicavam para seu uso adequado as ruas de Greenwich
Village e os passeios entrecruzados de Washington Square. Havia tépidas
urdes primaveris em que nada na triunfante América do pós-guerra, e muito
menos a Antiguidade, podia interessar mais a Coleman do que as pernas das
raparigas que caminhavam à sua frente. Não era, aliás, o único regressado
da guerra a sofrer dessa fixação. Nesse tempo, parecía não haver em
Greenwich Village diversão de horas vagas mais absorvente para ex-
soldados estudantes da NYU do que avaliar as pernas das mulheres que
passavam pelas cafetarias e cafés onde eles se reuniam para ler os jornais e
jogar xadrez. Não se sabe por que razão sociológica, ou outra, mas aquela
foi a grande era americana das pernas afrodísíacas, e uma ou duas vezes por
dia, pelo menos, Coleman seguiu um par de pernas quarteirão após
quarteirão, para não perder de vista o modo como se moviam, as suas linhas
e o que pareciam quando em repouso, enquanto esperavam que a luz do
semáforo da esquina mudasse de vermelho para verde. E quando calculava
que o momento era certo, depoís de as ter seguido tempo suficiente para se
sentir verbalmente preparado e ínsaciávelmente faminto — e acelerava o
passo para as alcançar, quando falava e conseguia insínuar-se ao ponto de
lhe ser permitido caminhar ao lado da rapariga, perguntar-lhe o nome, fazê-
la rir-se e convencê-la a aceitar um encontro, estava, consciente ou
inconscientemente, a propor um encontro às pernas dela.
E as raparigas, por sua vez, gostavam das pernas dele. Steena Palsson, a
exilada de 18 anos do Minnesota, escreveu mesmo um poema a respeito de
Coleman em que falava nas suas pernas. Escreveu-o à mão, numa folha de
caderno com linhas, assinou-o com um "S", dobrou-a em quatro e meteu-a
na ranhura da caixa do correio dele, no patamar ladrilhado por cima do seu
quarto na cave. Haviam decorrido duas semanas desde que tinham
namoriscado pela primeira vez na estação do metro, e aquela era a segunda-
feira depois do domingo da sua primeira maratona de vinte e quatro horas.
Coleman saíra a correr para as aulas da manhã, enquanto Steena ainda
estava a arranjar-se na casa de banho. Poucos minutos depois, foi a vez de
ela sair para trabalhar, mas não sem antes lhe deixar o poema que, apesar de
toda energia que tão ardorosamente tinham demonstrado ao longo do dia
anterior; a timidez não lhe permitiu entregar por mão própria. Como o
horário de Coleman o levou das aulas para a biblioteca e daí para o treino
tardio no ringue de um ginásio decrépito em Chinatown, só encontrou o
poema, a espreitar pela ranhura da caixa do correio, quando regressou a
Sullivan Street às onze e meia dessa noite.

Ele tem um corpo.


Ele tem um belo corpo - os músculos das barrigas das pernas e da sua
nuca.

Também é inteligente e impetuoso.


É quatro anos mais velho do que eu, mas às vezes sinto que é mais novo.

É terno, calmo e romântico, embora diga que não é romântico.

Sou quase perigosa para este homem.

Que posso eu dizer do que vejo nele?


Pergunto-me o que faz depois de me engolir inteira.

Enquanto decifrava rapidamente a letra de Steena à luz fraca da entrada,


ao princípio confundiu "nuca" com "negra". e da sua negra ... A sua negra
quê? Até então surpreendera-o como estava a ser fácil. O que se presumia
ser difícil e de certo modo vergonhoso ou destrutivo estava afinal a ser não
apenas fácil mas também isento de consequências, sem preço algum a pagar
Mas naquele momento sentiu-se encharcado em suor Continuou a ler, mais
depressa ainda do que antes, mas as palavras não formavam qualquer
combinação lógica. A sua negra QUÊ? Tinham passado um dia e uma noite
inteiros nus, juntos, e durante a maior parte desse tempo não mais do que
alguns centímetros afastados. Desde bebé que ninguém, além dele próprio,
tivera tanto tempo para examinar como era feito. Como não navia no longo
e pálido corpo de Steena nada que ele não tivesse observado, nada que ela
tivesse ocultado E nada que ele não conseguisse recordar agora com uma
percepção de pintor, com o conhecímento estético meticuloso e excitado de
um amante, e como passara o dia inteiro não menos estimulado pela
presença dela nas suas narinas do que pelas suas pernas abertas nos olhos da
sua mente, a conclusão lógica era que não podia haver no corpo dele nada
que ela nºao tivesse absorvido microscopicamente, nada naquela extensa
superfície onde estava gravada a sua singularidade evolutiva auto-
adoradora, nada na sua configuração única como homem, na sua pele, nos
seus poros, nas suas patilhas, nos seus dentes, nas suas mãos, no seu nariz,
nas suas orelhas, nos seus lábios, na sua língua, nos seus pés, nos seus
testículos, nas suas veias, no seu pênis, nas suas axilas, no seu rabo, no
emaranhado dos seus pêlos púbicos, no cabelo da sua cabeça, na penugem
do seu corpo, nada na sua maneira de rir; dormir, respirar, nada nos seus
gestos, no seu odor, no modo como estremecia convulsívamente quando se
vinha que ela não tivesse registado. E recordado. E reflectido sobre.
A causa disso era o acto em si, a sua intimidade absoluta quando não só
estamos dentro do corpo da outra pessoa como ela nos envolve
estreitamente? Ou era a nudez física? Tiramos a nossa roupa e deitamo-nos
na cama com alguém, e é na verdade aí que vai ser descoberto o que quer
que escondamos, a nossa particularidade, seja ela qual for e seja como for
que esteja codificada, e é aí também que está a origem da timidez e o que
toda a gente receia. Quanto de mim está a ser descoberto nesse louco lugar
anárquico? Agora lei quem tu és. Vejo através da tua negra ...
Mas como, vendo o quê? O que poderia ter sido? Fosse o que fosse, seria
visível para ela em virtude de ser uma loura dano-islandesa descendente de
uma longa linhagem de islandeses e dinamarqueses louros, criada num meio
escandinavo em casa, na escola, na igreja, toda a sua vida na companhia
apenas de ... Mas, nisto, Coleman reparou que a palavra do poema tinha
quatro e não cinco letras. Ela não escrevera -negra": escrevera "nuca". Ah, a
minha nuca! Trata-se apenas da minha nuca! ... os músculos das barrigas
das pernas e da sua nuca.
Mas, nesse caso, o que significava: "Que posso eu dizer / do que vejo
neles O que havia de tão ambíguo no que ela via nele? Se tivesse escrito
"deduzir do que" em vez de "dizer o que" o significado tornar-se-ia mais
claro? Ou menos claro? Quanto mais relia aquela simples estância, mais
opaco se tornava o significado e mais ele se convencia de que Steena
pressentira o problema que levara para a vida dela. A não ser que com as
palavras " ... que vejo nele" ela não quisesse dizer mais do que,
coloquialmente, as pessoas cépticas querem dizer quando perguntam a
alguém apaixonado: "Mas que podes tu ver nele?"
E quanto a "dízer"? O que pode ela dizer a quem? Poderá querer
significar, com dizer, "revelar"? .. "Que posso eu revelar", etc. .. ou será
denunciar? E quanto a "Sou quase perigosa para este homem"? Perigosa
como, a que perigo se refere?
Cada vez que tentava penetrar no sentido das palavras de Steena, ele
escapava-se-lhe.
Ao fim de dois minutos terríveis parado na entrada, a única coisa de que
tinha a certeza era do seu medo. E isso deixou-o estupefacto. Mas, como
sempre lhe acontecia, a sua vulnerabilidade, ao apanhá-lo desprevenido,
também o envergonhou e fez soar um SOS, um sinal de alerta para que a
autovigilância compensasse a negligência.
Inteligente, corajosa e bela, Steena tinha apenas 18 anos e acabara de
chegar a Nova Iorque vinda de Fergus Falls, Minnesota. Apesar disso, ele
sentia-se agora mais intimidado por ela, e pelo seu inequívoco e quase
absurdo esplendor, do que por alguém que alguma vez tivesse defrontado
no ringue. Só naquela noite no bordel de Norfolk, quando a mulher que o
observava da cama, enquanto ele começava a despir o uniforme — uma
puta de grandes mamas, gorda e desconfiada, não inteiramente feia, mas
que também não devia nada à beleza (e talvez, ela própria, uns setenta por
cento de qualquer outra cor menos branca) -, sorriu acidamente e disse, "És
preto, não és, rapaz", e os dois gorilas foram chamados para o porem na rua,
só nessa noite se sentira tão indefeso como se sentia agora com o poema de
Steena.
Pergunto-me o que faz depois de me engolir inteira.
Nem isso conseguia compreender. Sentado à secretária, no seu quarto,
debateu-se até de manhã com as implicaçôes paradoxais daquela última
estância, descobrindo, e depois rejeitando, sucessivas formulações
complicadas, até que, ao romper do dia, tinha uma única certeza: a de que
para Steena, para a arrebatadora Steena, nem tudo quanto ele erradicara de
si mesmo desaparecera, se evaporara para sempre.
Estava redondamente enganado. O poema não significava nada. Não era
sequer um poema. Sob o peso da sua confusão, fragmentos de ideias,
esboços incipientes de pensamentos, tinham desabado de modo caótico na
cabeça da rapariga enquanto estava debaixo do chuveiro e, por isso,
arrancara uma folha de um dos livros de apontamentos dele, escrevinhara
na sua secretária as palavras que írrompíam desse magma e se gelificavam,
dobrara o papel e metera-o na caixa do correio antes de sair a correr para o
trabalho. Aquelas frases eram apenas uma coisa que fizera — que tivera de
fazer — impelida pela maravilhosa novidade do seu espanto. Poeta, ela?
Longe disso, pensou Steena, a rir: era apenas alguém saltando pelo meio de
um anel de fogo.
Durante mais de um ano, passaram na cama dele todos os fins-de-
semana, alimentando-se um do outro como presos em regime de solitária
engolindo desvairadamente a sua ração quotídíana de pão e água. Ela
surpreendeu-o, e surpreendeu-se, com a dança que executou numa noite de
sábado, de pé aos pés do sofá-cama de Coleman, tendo como único
vestuário uma combinação curta. Steena estava a despir-se, o rádio tocava
— Symphony Sid e, primeiro, para a pôr em movimento e com disposição,
Count Basie e um grupo de músicos de jazz improvisaram sobre -Lady Be
Good", numa desenfreada gravação em directo, e a seguir mais Gershwin, a
versão de Artie Shaw de "The Man I Love", com Roy Eldridge a pôr tudo
ao rubro. Coleman estava soerguido na cama, a fazer o que mais lhe
agradava nas noites de sábado, depois de regressarem do jantar de cinco
dólares composto de chianti, espaguete e cannoli no seu restaurante de cave
preferido da Fourteenth Street: vê-la despir-se. De súbito, sem nenhuma
instigação da parte dele — aparentemente ínstígada .ipenas pela trompete
de Eldridge — ela iniciou aquilo que Coleman gostava de descrever como a
mais sinuosa dança a solo jamais executada por uma rapariga de Fergus
Falls ao fim de pouco mais de um ano em Nova Iorque. Teria sido capaz de
fazer levantar o próprio Gershwin da sepultura com aquela dança e com o
modo como cantava a canção. Invocada por um trompetista de cor que a
tocava como uma canção black torch, ali bem à vista, clara como o dia,
estava toda a força da sua brancura. Aquela grande maravilha branca. "Um
dia ele virá ... o homem que eu amo ... e será grande e forte ... o homem que
eu amo" As palavras eram tão comuns que podiam ter sido tiradas do mais
inocente livro de leitura da escola primária, mas quando a gravação
terminou Steena levantou as mãos para esconder o rosto, como se
pretendesse, meio a sério, meio a fingir, ocultar a sua vergonha. O gesto,
porém, não a protegeu de nada, e muito menos do deslumbramento dele. O
gesto serviu apenas para o deslumbrar ainda mais. "Onde te encontrei,
voluptas", perguntou-lhe. "Como te encontrei? Quem és?"
Foi nesse tempo, de todos o mais inebriante, que Coleman abandonou o
treino nocturno no ginásio de Chinatown, reduziu a corrida matinal de cinco
mil metros e, por fim, rennciou a tomar a sério, em qualquer aspecto, o
facto de se ter tornado profissional. Disputara e vencera, ao todo, quatro
combates profissionais, três de quatro assaltos e depois, ao concluir, um de
seis assaltos, todos eles às segundas-feiras à noite na velha St. Nicholas
Arena. Nunca falou a Steena nos combates, nunca disse nada a ninguém da
universidade ,, sobretudo, nunca falou nisso à família. Tratou-se, nesses
primeiros anos de universidade, de mais um segredo, embora combatesse
com o nome de Silk:y Silk e os resultados da St. Nick's viessem impressos,
em tipo pequeno, numa caixa da página desportíva dos tablóides do dia
seguinte. Desde o primeiro segundo do primeiro assalto do seu combate de·
quatro assaltos e trinta e cinco dólares, passou a entrar no ringue como
profissional com uma atitude diferente da do seu tempo de amador. Não
que, como amador, alguma vez tívesse querido perder. Mas como
profissional empenhava-se a dobrar, nem que fosse apenas para provar a si
mesmo que poderia continuar ali, se quisesse. Nenhum dos combates durou
até ao fim e no último, o de seis assaltos — com Beau Iack como cabeça de
cartaz-, pelo qual recebeu cem dólares, derrotou o adversário em dois
minutos e poucos segundos e nem sequer se sentiu fatigado. Quando descia
a coxia para disputar os seis assaltos, teve de passar pelo lugar, no espaço
do exterior das cordas, de Solly Tabak, o promotor, que já lhe acenava com
um contrato nos termos do qual ficaria com um terço dos seus ganhos nos
próximos dez anos. Solly deu-lhe uma palmada no rabo e disse-lhe, no seu
murmúrio profundo: -Apalpa o preto no primeiro assalto, vê o que ele vale,
Silky, e dá ao público a compensação correspondente ao bilhete que pagou"
Coleman acenou com a cabeça e sorriu-lhe, mas enquanto subia para o
ringue pensou: Vai-te foder, pá. Pagam-me cem dólares e queres que deixe
um gajo qualquer dar-me porrada para compensar o público pelo bilhete
que pagou? Tenho de me importar com um punheteíro qualquer sentado na
décima quinta fila? Peso sessenta e três quilos e meço um metro e setenta e
três centímetros, ele pesa sessenta e sete quilos e meio e mede um metro e
setenta e oito, e querem que deixe o gajo arriar-me na cabeça quatro, cinco,
dez vezes mais do que o necessário só para fazer render o espectáculo? Que
se foda o espectáculo.
Depois do combate, Solly não se mostrou satisfeito com o
comportamento de Coleman.
Pareceu-lhe infantil. "Podias ter acabado com o preto no quarto assalto
em vez de no primeiro e dado às pessoas o valor do seu dinheiro. Mas não o
fizeste. Peço-te as coisas delicadamente e tu não fazes o que te peço.
Porquê, espertalhão"
"Porque não ando com nenhum preto ao colo" Foi isto que respondeu o
estudante de literatura clássica da NYU, melhor aluno finalista do liceu e
filho do falecido Clarence Silk, oculista, empregado de mesa de carruagem-
restaurante, linguista amador, gramático, disciplinador e estudioso de
Shakespeare. Era esta a medida da sua obstinação, do seu secretismo em
tudo quanto fazia, fosse lá o que fosse: era este o modo ele o miúdo de cor
do liceu de East Orange levar as coisas a sério.
Deixou de combater por causa de Steena. Por muito errado que estivesse
quanto ao inauspicioso significado oculto no poema dela, continuava
convencido de que as forças misteriosas que tornavam inesgotável o ardor
sexual dos dois — que os tornavam amantes tão desenfreados que Steena,
numa manifestação de irónico autodeslumbramento própria de neófita,
rotulou ambos, à boa maneira do Midwest, de "casos mentais" — acabariam
mais cedo ou mais tarde por destruir a sua história de si mesmo diante dos
olhos dela. Ignorava como isso aconteceria, assim como ignorava como
poderia impedi-lo. Mas sabia que o boxe não ia ajudar. Quando ela
descobrisse a existência de Silky Silk, surgiriam perguntas que a levariam
inevitavelmente a tropeçar na verdade. Steena sabia que ele tinha em East
Orange uma mãe que era enfermeira díplomada e ia à igreja com
regularidade, um irmão mais velho que começara a leccionar os dois
primeiros anos no liceu de Asbury Park e uma irmã prestes a terminar o
curso de professora na Montclair State, e que uma vez por mês o domingo
na sua cama de Sullivan Street tinha de ser encurtado porque o esperavam
para almoçar em East Orange. Sabia que o pai dele fora oculista -- apenas
isso, oculista — e até que era natural da Giórgia Coleman era extremamente
escrupuloso no seu cuidado para que ela não tivesse a mínima razão para
duvidar da verdade do que lhe dizia, e depois de abandonar em definitivo o
boxe nem a esse respeito precisou de mentir. Não mentia a Steena a respeito
de nada. Limitava-se a seguir as instruçôes que Doc Chizner lhe dera no dia
em que tinham ido de carro a West Point (instruçôes essas que já lhe tinham
permitido passar pela Marinha): se a pergunta não for feita, não tens de
tocar no assunto.
A sua decisão de a convidar para o almoço dominical em East Orange,
como acontecia agora com todas as suas decisões — até com a de mandar
silenciosamente Solly Tabak foder-se ao derrotar o adversário no primeiro
assalto -, foi ditada pela sua cabeça e pela de mais ninguém. Conheciam-se
havia quase dois anos, Steena tinha 20 e ele 24 anos, e já não conseguia
imaginar-se a descer a Eighth Strcet, quanto mais a percorrer o caminho da
vida, sem ela. O sereno e convencional comportamento quotidiano de
Steena, combinado com a intensidade do seu abandono nos fins-de-semana
— e acrescido tudo de uma incandescência física, um brilho puelar
americano de lâmpada eléctrica quase voduista na sua intensidade --,
conquistara uma espantosa supremacia sobre uma vontade tão
implacavelmente independente como a ele Coleman: ela não só o afastara
do boxe e do desafio fílíal combatívo contido em ser Silky Silk, o invicto
pugilista profissional peso-meio-médio, como também o libertara do desejo
por qualquer outra pessoa.
Apesar disso, não lhe podia dizer que era de cor. As palavras que se
ouvia a dizer, a ter de dizer, fariam com que tudo parecesse pior do que era.
Fariam com que ele parecesse pior do que era. E se, depois, a deixasse
imaginar a sua família, ela imaginaria pessoas completamente diferentes do
que eram. Em virtude de não conhecer negros, imaginaria o gênero de
pessoas negras que via nos filmes, ou conhecia da rádio, ou de que ouvira
falar em anedotas. Compreendera entretanto que ela não tinha preconceitos
e que, se conhecesse Ernestine, Walt e a sua mãe, perceberia logo quanto
eram convencionais e o que tinham em comum com a respeitabilidade
cansativa que ela própria se sentia encantada por ter deixado para trás em
Fergus Falls. "Não me interpretes mal, apressara-se a dizer-lhe, -Iergus
Falls é uma bonita cidade. E é fora do vulgar, pois tem o lago Otter Tail
logo a leste e, não muito longe da nossa casa, o rio Otter Tail. E acho que é
um pouco mais sofisticada [lo que outras cidades locais do mesmo
tamanho, porque fica na parte sul e a leste de FargoMoorhead, a cidade
universitária da região., O pai dela tinha uma loja de ferragens e uma
pequena serração. "O meu pai é um homem irreprimível, gigantesco,
espantoso. Enorme. Parece um naco de presunto. Bebe numa noite uma
garrafa inteira de qualquer bebida alcoólica que esteja à mão. Nunca pude
acreditar. E ainda não posso. Não pára. Faz um golpe grande no músculo da
barriga da perna, às voltas com uma máquina, e deixa ficar como está, nem
sequer lava a ferida. Os islandeses têm tendência para ser assim.
Verdadeiros buldozeres. Mas o que é interessante é a sua personalidade.
Uma pessoa surpreendente. Quando conversa, precisa da sala toda. E ele
não é o único. Acontece a mesma coisa com os meus avós Palsson. O pai
dele é a mesma coisa. A mãe dele é a mesma coisa. "Islandeses. Eu nem
sequer sabia que se chamam islandeses. Nem mesmo que os havia cá. Não
sei nada a respeito de islandeses-, comentou Coleman. "Quando foi que
vieram para o Minnesota?" Ela encolheu os ombros e riu-se. "Boa pergunta.
Eu diria que depois dos dinossauros. Pelo menos é o que parece. "E foi dele
que fugiste?" "Suponho que sim. É difícil ser filha de alguém com aquele
tipo de energia e exuberância. Até parece que nos submerge. "E a tua mãe?
Ele submerge-a?" "Esse é o ramo dinamarquês da família, os Rasmussen.
Não, ela é insubmersível. A minha mãe é demasiado prática para se deixar
submergir. As características da sua família — e não creio que sejam
peculiares daquela família; penso que os dinamarqueses são assim mesmo e
nisso também não diferem muito dos noruegueses ... Interessam-se por
objectos. Objectos. Toalhas de mesa. Pratos. Jarras. Não se cansam de falar
do preço de cada objecto. O pai da minha mãe, o meu avô Rasrnussen,
também é assim. Toda a família dela é assim. Não sonham. Para eles não
existe irrealidade. É tudo feito de objectos, quanto custam, por quanto é
possível obtê-los. Ela vai a casa de pessoas, examina todos os objectos, sabe
onde adquiriram metade deles e diz-lhes onde poderiam tê-los obtido por
menos dinheiro. E roupas. Cada peça de roupa. Acontece a mesma coisa. O
sentido prático. Possuem um sentido prático evidente, todos eles. Poupados.
Extremamente poupados. Asseados. Extremamente asseados. Quando eu
regressava da escola, ela reparava logo se eu tinha um pouco de tinta
debaixo de uma unha, de ter enchido a caneta de tinta permanente. Quando
tem convidados para jantar num sábado, põe a mesa na sexta-feira, cerca
das cinco da tarde. Tudo, cada copo, cada talher. E depois cobre-os com um
pano grande fino, para que não apanhem nem um grão de poeira. É tudo
organizado com a maior perfeição. E é uma cozinheira fantástica, para
quem não goste de especiarias, sal ou pimenta. Ou qualquer espécie de
condimento. Aqui tens como são os meus pais. Não consigo ir ao fundo das
coisas, em especial com ela. A respeito de coisa nenhuma, É tudo
superfície. Ela organiza tudo, o meu pai desorganiza tudo, e por isso,
quando cheguei aos 18 anos e terminei o liceu, tive de vir para cá. Como
teria de continuar a viver em casa se fosse para a Moorhead State
Uníversity ou para a North Dakota University, disse para comigo: para o
diabo com a universidade. E vim para Nova Iorque. E aqui estou e sou o
que sou: Steena..
Foi assim que ela explicou quem era, de onde vinha e porque viera. Para
ele não ia ser tão simples. Depois, pensou Coleman. Depois, ou seja,
quando pudesse explicar-se e pedir-lhe que compreendesse por que motivo
não podia permitir que as suas perspectivas fossem injustamente limitadas
por uma designação tão arbitrária como a raça. Se ela tivesse calma
suficiente para o ouvir até ao fim, estava certo de que conseguiria fazê-la
ver o motivo por que optara por tomar o futuro nas próprias mãos em vez de
permitir que uma sociedade não esclarecida o determinasse por ele — uma
sociedade onde, mais de oitenta anos depois de proclamada a Emancipação,
intolerantes fanáticos ainda desempenhavam um papel demasiado grande
para o seu gosto. Conseguiria demonstrar-lhe que, longe de ser errada, a sua
decisão de se identificar como branco era a coisa mais natural que alguém
com a sua maneira de ver as coisas, o seu temperamento e a sua cor de pele
podia ter feito. Aquilo que mais desejara desde a mais tenra infância fora
ser livre: nem preto nem, mesmo, branco, apenas livre e senhor de si. Não
pretendia insultar ninguém com a sua escolha, nem estava a tentar imitar
alguém que tomasse por seu superior, nem se tratava de qualquer espécie de
protesto contra a sua raça ou a dela. Reconhecia que as pessoas
convencionais, para quem tudo era pronto-a-usar e rigidamente inalterável,
nunca achariam correcto o que estava a fazer. Mas ousar ser absoluta e
unicamente correcto nunca fora o seu objectivo. O que pretendia era que o
seu destino não fosse determinado pelas intenções ignorantes e cheias de
ódio de um mundo hostil, mas sim, na medida em que tal fosse
humanamente possível, pela sua própria resolução. Por que haveria de
aceitar uma vida em quaisquer outras condições?
Seria isso que lhe diria. Mas não lhe soaria a disparate, a conversa fiada
publicitária para vender uma mentira pretensiosa? A não ser que conhecesse
primeiro a sua família — fosse directamente confrontada com o facto de ele
ser tão negro como eles e eles tão diferentes como ele da ideia que ela fazia
dos negros -, essas palavras, ou quaisquer outras, parecer-lhe-iam apenas
uma forma mais de encobrimento da verdade. Enquanto Steena não se
sentasse a almoçar com Ernestine, Walt e a sua mãe, e não tivessem todos
trocado banalidades tranquilizadoras ao correr do dia, fossem quais fossem
as explicações que ele lhe desse parecer-lhe-iam prosápia jactanciosa, auto-
engrandecedora e autojustífícatíva, conversa pomposa e bombástica que não
o envergonharia menos aos próprios olhos do que aos dela. Não, também
não lhe podia impingir essa verborreia. Era indigno dele. Se queria de
verdade aquela rapariga, o que a situação impunha agora era ousadia e não
poeira nos olhos elocutóría à la Clarence Silk.
Na semana que antecedeu a visita, embora não preparasse mais ninguém,
preparou-se a si próprio, da mesma maneira concentrada com que
costumava preparar-se mentalmente para um combate, e quando, naquele
domingo, desceram do comboio na Brick Church Station foi até ao extremo
de invocar as frases que nunca deixava de entoar, meio miticamente, nos
segundos que antecediam o toque do gongo: "A tarefa a cumprir, nada mais
do que a tarefa a cumprir. Em uníssono com a tarefa. Nada mais é
permitido" Só então, quando o gongo soava e ele saía do seu canto — ou
ali, quando começava a subir os degraus do alpendre para a porta da frente
-, acrescentava o habitual apelo às armas de Joe: "Ao trabalho."
Os Silk moravam na sua casa monofamiliar desde 1925, o ano anterior ao
do nascimento de Coleman. Quando chegaram, o resto da rua era habitado
por brancos e a pequena casa de madeira fora-lhes vendida por um casal
zangado com os vizinhos do lado, que resolvera vendê-la a gente de cor
para os aborrecer. Mas ninguém das casas particulares se fora embora por
causa da sua vinda e, embora os Silk nunca tivessem confraternizado com
os vizinhos, naquela extensão da rua que levava à reitoria e à igreja
epicospaliana toda a gente se mostrava agradável. Isso apesar de o pároco,
quando para ali fora uns anos antes, ter olhado em redor, visto um número
razoável de oriundos das Baamas e de Barbados, que eram da igreja
anglicana -- muitos deles empregados domésticos de brancos ricos de East
Orange, ilhéus que conheciam o seu lugar, se sentavam cá atrás e pensavam
que eram aceites -, se debruçara do púlpito e, antes de começar o sermão do
seu primeiro domingo, dissera: "Vejo que temos aqui algumas famílias de
cor. Precisamos de fazer alguma coisa a esse respeito" Depois de consultar
o seminário em Nova Iorque, arranjara maneira de alguns serviços
religiosos e aulas de catecismo para pessoas de cor passarem a efectuar-se,
Contrariando a lei fundamental da igreja, nas casas das famílias de cor
Posteriormente, a piscina do liceu tinha sido encerrada pelo director, para
que as crianças brancas não tivessem de nadar com as de cor. Tratava-se de
uma grande piscina, usada para aulas de natação e por uma equipa de
nadadores, que fazia parte do programa de Educação Física há anos, mas
como houve reclamaçôes de alguns dos pais dos miúdos brancos, que eram
patrões dos pais dos miúdos negros — criadas, criados, motoristas,
jardineiros e serventes _, a piscina foi despejada e coberta.
Nos cerca de seis quilómetros quadrados e meio daquela insignificante
área residencial de uma cidade de Icrsey que não chegava a ter setenta mil
habitantes, assim como por todo o país durante a juventude de Coleman,
existiam rígidas distinções deste género entre classes e raças, santificadas
pela igreja e legitimadas pelas escolas. No entanto, na modesta rua
transversal ladeada de árvores onde os Silk moravam, as pessoas comuns
não precisavam de ser tão responsáveis perante Deus e o Estado como
aqueles cuja vocação consistia em manter uma comunidade humana,
incluindo piscina e tudo o mais, imaculada e intocada pelas impurezas, e
por isso os vizinhos eram de modo geral amistosos com os ultra-
respeitáveis Silk de pele clara — negros, sem dúvida, mas, segundo as
palavras de uma mãe tolerante de um colega de jardim infantil de Coleman,
"pessoas com um tom de pele muito agradável, a lembrar gomada, -,
chegando mesmo ao ponto de pedir um utensílio ou um escadote
emprestados ou uma ajuda para descobrir o que se passava com o
automóvel quando ele se recusava a arrancar. O grande prédio da esquina
continuou habitado exclusivamente por brancos até a guerra acabar. Depois,
em fins de 1945, quando começou a aparecer gente de cor no lado de
Orange da rua — sobretudo famílias de profissionais liberais, como
professores, médicos e dentistas -, todos os dias havia uma camioneta de
mudanças à porta do prédio e em poucos meses metade dos inquilinos
brancos desapareceu. Mas as coisas recompuseram-se depressa e, embora o
senhorio começasse a alugar casas a pessoas de cor só para manter o prédio,
os brancos que restavam na vizinhança imediata deixaram-se ficar até terem
uma razão diferente da negrofobia para partirem.
Ao trabalho. E tocou à campainha, empurrou a porta e anunciou:
"Chegámos"
Walt não pudera vir de Ashbury Park nesse dia, mas, vindas da cozinha, a
mãe e Ernestine apareceram no corredor. E ali estava, na casa delas, a sua
namorada. Steena podia ou não ser o que elas esperavam. A mãe de
Coleman não fizera perguntas. Desde que ele tomara unilateralmente a
decisão de se alistar na Marinha como branco, quase não se atrevia a
perguntar-lhe nada, receosa do que pudesse ouvir em resposta. Fora do
hospital, onde se tornara finalmente a primeira enfermeira de cor a dirigir
um serviço de um hospital de Newark -- sem ter precisado da ajuda do Dr.
Fensterman -, adquirira agora uma certa tendência para deixar Walt
encarregar-se da vida dela e da família em geral. Não, ela não perguntara
nada a respeito ela rapariga, declinara delicadamente fazê-lo e encorajara
Ernestine a proceder do mesmo modo. Coleman, pelo seu lado, não tinha
dito nada a ninguém. E agora, de tez tão clara quanto era possível- com a
sua malinha de mão azul e sapatos decotados a condizer, o seu camíseiro de
algodão com flores estampadas, as suas pequenas luvas brancas e o seu
chapelinho redondo — e tão ímaculadamente arranjada e correcta como
qualquer rapariga viva e jovem em 1950, ali estava na sua frente Steena
Palsson, descendente americana de islandeses e dinamarqueses, cuja
ascendência remontava ao rei Canuto e até mais para trás no tempo.
Ele fizera-o, conseguira-o à sua maneira, e nenhuma delas estremeceu,
sequer. Bem se pode falar da capacidade de adaptação das espécies!
Ninguém hesitou a procurar palavras, ninguém ficou mudo e também
ninguém desatou a falar a toda a velocidade. Lugares-comuns, sim,
trivialidades, com certeza: não faltaram, pelo contrário, generalidades,
truísmos, frivolidades. Não fora em vão que Steena tinha sido criada nas
margens do rio Otter Tai]: tratando-se de ideias feitas e convencionalismos,
estava à altura. Era mais do que provável que, se Coleman tivesse vendado
as três mulheres antes de as apresentar e as mantivesse vendadas durante
todo o dia, a conversa delas não tivesse tido um significado mais profundo
do que teve enquanto se olhavam nos olhos e sorriam. Tão-pouco teria tido
outra intenção além da prototípíca, ou seja, eu não direi nada que te possa
ofender se tu não disseres nada que me possa ofender. Respeitabilidade a
todo o preço: nisso as Palsson e as Silk eram iguais.
Curiosamente, o ponto em que as três se atrapalharam um bocado foi
quando falavam da altura de Steena. É verdade que ela media um metro e
oitenta, era quase oito centímetros mais alta do que Coleman e quinze
centímetros mais alta do que a irmã e a mãe dele. Mas o pai de Coleman
medira um metro e oitenta e cinco e Walt media mais quatro centímetros do
que ele, de modo que a altura em si mesma não era novidade nenhuma para
a família, apesar de, no caso de Steena e Coleman, a mais alta ser a mulher.
No entanto, aqueles cerca de oito centímetros extra de Steena — digamos
que a distância da linha do seu cabelo às sobrancelhas — desencadearam
uma conversa discordante a respeito de anomalias físicas que resvalou e
esteve perigosamente perto da catástrofe durante cerca de um quarto de
hora, até Coleman sentir um cheiro a queimado e as mulheres — todas as
três — correrem para a cozinha a fim de impedirem que os biscoitos
irrompessem em chamas.
Depois disso, durante o almoço e até serem horas de o jovem casal
regressar a Nova Iorque, correu tudo com uma correcção irrepreensível, foi,
na aparência, um domingo que dir-se-ia o sonho de completa felicidade
dominical de qualquer família decente e, por consequência, em flagrante
contraste com a vida que, como a experiência já ensinara até à mais jovem
das quatro pessoas ali reunidas, não podia, nem durante meio minuto
seguido, expurgar-se da sua instabilidade inerente, quanto mais deixar-se
reduzir a uma essência previsível.
Só quando o comboio que levava Coleman e Steena de regresso a Nova
Iorque parou na Pennsylvania Station, ao anoitecer, Steena se desfez em
lágrimas.
Tanto quanto ele imaginara, até então ela viera a dormir profundamente
desde Jersey, com a cabeça no seu ombro, adormecera a bem dizer no
momento em que tinham partido de Brick Church Station sem dúvida para
se refazer da exaustão causada pelo esforço da tarde, em que fora
extraordinária.
— Steena ... o que é?
— Não posso! — gritou e, sem qualquer palavra de explicação, ofegante,
a chorar violentamente, apertando a malinha contra o peito — e
esquecendo-se do chapéu, que estivera no colo dele enquanto ela dormia -,
correu para fora do comboio como se fugisse de um atacante e nunca mais
lhe telefonou ou tentou voltar a vê-lo.
Quatro anos depois, em 1954, quase chocaram um com o outro no
exterior da Grand Central Station e pararam para se darem as mãos e
falarem apenas o tempo suficiente para reavivarem a centelha inicial de
maravilhado espanto que tinham ateado mutuamente aos 22 e 18 anos e
depois seguir cada qual o seu caminho, esmagados pela certeza de que nada
tão estatisticamente espectacular como aquele encontro fortuito poderia
voltar a acontecer. Nessa altura já ele estava casado e prestes a ser pai, era
assistente de literatura clássica na Adelphi e fora passar o dia à cidade, e ela
trabalhava numa agência de publicidade ali perto, na Lexington Avenue,
continuava solteira, continuava bonita, mas agora com uma beleza de
mulher, tinha todo o ar de nova-íorquína elegantemente vestida e via-se que
era uma pessoa com quem a ida a East Orange poderia ter terminado de
modo diferente se tivesse acontecido algum tempo depois.
A única coisa em que ele conseguia pensar era no modo como poderia ter
terminado, na conclusão contra a qual a realidade votara de forma decisiva.
Atordoado por verificar quão pouco a esquecera e ela a ele, afastou-se
compreendendo, como nunca antes tivera necessidade de compreender fora
do estudo do drama clássico grego, a facilidade com que a vida pode ser
uma coisa em vez de outra e em que medida um destino pode ser acidental
... e como, por outro lado, um destino pode parecer acidental quando é
impossível as coisas serem, jamais, diferentes do que são. Isto é, afastou-se
sem compreender nada, sabendo que não podia compreender nada, mas
com a ilusão de que poderia ter compreendido metafisicamente alguma
coisa de enorme importância acerca da sua obstinada determinação de se
tornar senhor de si mesmo se ... se ao menos tais coisas fossem
compreensíveis.
A encantadora carta de duas páginas que ela lhe escreveu na semana
seguinte, ao cuídado da universidade, acerca do modo incrivelmente
extraordinário como ele "mergulhara" na primeira vez que tinham estado
juntos no seu quarto de Sullivan Street: "mergulhando quase como as aves
fazem quando sobrevoam terra ou mar, descobrem qualquer coísa que
mexe, qualquer coisa estuante de vida, mergulham a pique e caem sobre
ela", Começava assim: "Querido Coleman, fiquei muito feliz por te ver em
Nova Iorque. Apesar de o nosso encontro ter sido breve, depois de te ver
senti uma tristeza outonal, talvez porque os seis anos decorridos desde a
primeira vez que nos vimos tornaram violentamente claro quantos dias da
minha vida "acabaram". Estás com óptimo aspecto e alegra-me que sejas
feliz ... " e terminava num lânguido e instável clímax composto por sete
pequenas frases e um melancólico fecho que, após numerosas releituras, ele
interpretou como a medida do pesar de Steena pela sua perda, e também
como uma confissão velada de remorso, apresentando-lhe de modo
comovente um semíaudível pedido de desculpas:
"Pronto, aqui tens. Basta. Não devia sequer ter-te incomodado. Prometo
que não voltarei a escrever-te, nunca mais. Tem cuidado contigo. Tem
cuidado contigo. Tem cuidado contigo. Muito ternamente, Steena.
Ele nunca se desfez da carta e quando, por acaso, dava com ela entre os
seus papéis e, no meio de qualquer coisa que estivesse a fazer, se detinha a
relê-la — apesar de a ter esquecido durante cinco ou seis anos -, pensava o
mesmo que pensara na rua, naquele dia, depois de a ter beijado ao de leve
na face e lhe ter dito adeus para sempre: que se tivessem casado -- como ele
quisera — ela teria sabido tudo — como ele quisera que soubesse — e o
que aconteceria depois com a família dele, com a família dela, com os
filhos deles, teria sido díferente do que era com Iris. O que acontecera com
a mãe dele e com Walt poderia muito bem nunca ter acontecido. Se Steena
tivesse dito está bem, ele teria vivido outra vida.
Não posso. Havia sabedoria nesta frase, uma tremenda dose de sabedoria
para uma rapariga tão jovem, nada que se comparasse com o que é habitual
quando se tem apenas 20 anos. Mas tinha sido por esse motivo que se
apaixonara por ela, porque ela tinha aquela sabedoria que é sólido bom
senso, que é saber pensar com a própria cabeça. Se não tivesse ... mas, se
não tivesse, não teria sido Steena e ele não a teria querido como mulher.
Pensou os mesmos pensamentos inúteis — inúteis para um homem como
ele, sem nenhum grande talento a não ser para Sófocles: como um destino
pode ser acidental.Como tudo pode parecer que é acidental quando é
inescapável.
De acordo com o retrato que, ao princípio, fez de si e das suas origens a
Coleman, Iris Gittelman crescera voluntariosa, inteligente, furtivamente
rebelde, maquinando em segredo, desde a escola primária, uma maneira de
escapar ao meio asfixiante em que vivia: no seio de uma família de Passaic
tonitruante de ódio por todas as formas de opressão social e, sobretudo, pela
autoridade dos rabis e das suas preporentes mentiras, O seu pai iidichófono,
como o designava, era um anarquista herético tão absoluto que nem
consentira que os dois irmãos mais velhos de Iris fossem circuncidados, E
os pais também não se tinham dado ao trabalho de pedir uma licença de
casamento ou submeter-se a uma cerimônia civil. Consideravam-se marido
e mulher; proclamavam-se americanos e até se declaravam judeus, aqueles
dois imigrantes ateus e sem instrução que cuspiam para o chão quando
passava um rabi. Mas intitulavam-se o que se intitulavam livremente, sem
pedir a autorização nem procurar a aprovação daqueles que o pai
classificava desdenhosamente como os inimigos hipócritas de tudo o que
era natural e bom — ou seja, o funcionalismo, os que detinham ilegalmente
o poder. Na parede rachada e cheia de sujidade acumulada por cima do
balcão das bebidas gasosas da loja de rebuçados da família, na Myrtle
Avenue — um estabelecimento atravancado e tão pequeno que, como ela
dizia, não seria possível enterrá-los lá aos cinco, lado a lado -, havia duas
fotografias emolduradas, uma de Sacco e outra de Vanzcttí, que tinham sido
recortadas do suplemento de rorogravura do jornal. Iodos os anos, a 22 de
Agosto- aniversário do dia em que, no ano de 1927, Massachusetts
executara os dois anarquistas por assassínios que Iris e os irmãos tinham
sido ensinados a acreditar que nenhum deles cometera -, a loja fechava e a
família recolhia-se no minúsculo e sombrio apartamento do andar de cima,
cuja incrível desarrumação conseguia ultrapassar até a da loja, e observava
um dia de jejum, Era um ritual que o pai inventara, qual guia de culto,
inspirando-se absurdamente no Dia da Expiação dos judeus, O pai não fazia
nenhuma ideia real daquilo que considerava ideias, Tudo quanto havia de
profundamente enraizado nele eram uma ignorância cega, o desespero
amargo dos desvalidos, o ódio revolucionário impotente, Dizia tudo de
punho cerrado e tudo quanto dizia era uma arenga, Sabia os nomes de
Kropotkine e Bakunine, mas não sabia nada dos seus escritos e, embora
andasse sempre com o semanário anarquista, em iídiche, Freie Arbeiter
Stimme, de um lado para o outro, em casa, raramente lia mais do que meia
dúzia de palavras cada noite, antes de adormecer. Os seus pais, explicou ela
a Coleman — e fê-lo em tom dramático, escandalosamente dramático, num
café de Bleecker Street, minutos depois de ele a ter encontrado em
Washington Square -, eram pessoas simples, apanhadas nas malhas de um
sonho fantástico e ilusório que estavam longe de expor com clareza ou
defender com racionalidade, mas pelo qual estavam fanaticamente dispostos
a sacrificar amigos, família, negócio, a boa vontade dos vizinhos e até a sua
sanidade mental, até a sanidade mental dos próprios filhos. Conheciam
apenas aquilo com que não tinham nada em comum e que a Irís, quanto
mais velha se tornava, mais parecia ser tudo, A sociedade tal como estava
constituída, com as suas forças em constante movimento, a complexa rede
subjacente de interesses esticada até ao limite, a luta incessante para tirar
proveito, a opressão contínua, os conflitos e conluios entre facções, a gíria
ardilosa da moralidade, o despotismo benigno da convenção, a instável
ilusão de estabilidade, em suma, a sociedade como era, sempre fora e
sempre teria de ser, detalhes tão estranha como a corte do rei Artur para os
ianques de Connecticut. E, no entanto, isso não acontecia por eles terem
estado ligados por laços fortíssiimos a algum outro tempo e lugar de onde
os haviam arrancado e transportado à força para um mundo estranho.
Pareciam mais pessoas que tinham passado directamente do berço para a
idade adulta, sem terem tido de permeio nenhum aprendizado sobre o modo
de governar e reger a bestialidade humana, Desde pequenina que lris não
percebia se estava a ser criada por desequilibrados ou visionários, nem se o
ódio veemente que pretendiam que partilhasse era uma revelação da terrível
verdade ou uma coisa absolutamente ridícula e talvez, mesmo, insana.
Durante toda essa tarde contou a Coleman histórias folcloricamente
fascinantes, que faziam com que o facto de ter sobrevivido a uma infância
passada por cima da loja de rebuçados de Passaic, como filha de
individualistas tão clamorosamente ignorantes como Morris e Ethel
Gittelman, parecesse uma aventura sinistra, menos condizente com a
literatura russa do que com jornais humorísticos russos, como se os
Gittelman tivessem sido os desaparafusados vizinhos do lado de uma banda
desenhada dominical com o título ele "Os lutos Karamazov-. Fora uma
proeza notável e brilhante para uma rapariga com escassos 19 anos
atravessar o Hudson para fugir de Jersey — mas quem, entre os conhecidos
dele de Village, não andava a fugir, e de lugares tão distantes como
Amarillo? -, sem qualquer ideia de ser outra coisa além de livre, uma nova
figura exótica no palco da Eighth Street, uma rapariga morena e cheia de
vivacidade, com traços físíonómícos de dimensões espectaculares,
emocionalmente uma força dinâmica e, segundo a gíria da época, "um
peixão", aluna da Art Students League onde pagava parcialmente os estudos
posando em aulas de desenho ao vivo, alguém cujo estilo consistia em não
esconder nada e que parecia ter tanto medo de causar sensação num lugar
público como uma dançarina do ventre, A sua cabeleira era um espanto,
uma labiríntica grinalda encapelada de espirais e caracóis, encrespada e
entrelaçada como retrós e suficientemente grande para servir de ornamento
natalício, Toda a ansiedade da sua infância parecia ter-se transferido para as
convoluções daquele tortuoso nutagal capilar. Daquele cabelo írreversível.
Podiam arcar-se panelas com ele que a sua estrutura permaneceria tão
inalterada como se tivesse sido colhida nas caliginosas profundezas do mar,
uma espécie de organismo hirsuto formador de recifes, um denso ônix vivo
híbrido de coral e arbusto, quiçá possuidor de propriedades curativas.
Durante três horas manteve Coleman fascinado pelo seu histrionismo, o
seu excesso, o seu cabelo e o seu talento para forjar excitação, por um
delirante e imaturo intelecto adolescente e uma tal capacidade histriónica
para se inflamar e acreditar em cada exagero seu que Coleman — ele
próprio um modelo acabado de astuciosa auto-invenção, um produto de cuja
patente era o único detentor — se sentiu, comparado com ela, alguém que
não tinha a mínima noção do que era.
Mas quando nessa noite a levou a Sullivan Street, tudo mudou. Afinal,
Iris é que não tinha a mínima ideia de quem era. Uma vez transposta a
barreira do cabelo, toda ela era liquefacção. A antítese da seta apontada à
vida que Coleman Silk era aos 25 anos: também uma lutadora pela sua
liberdade, sem dúvida, mas na versão agitada, na versão anarquista de
alguém que quer encontrar o seu caminho.
Não ficaria nem cinco minutos perturbada se soubesse que ele nascera e
fora criado numa família de cor e se identificara como negro durante quase
toda a sua vida, assim como não lhe teria pesado minimamente ter de
guardar esse segredo dele, se fosse isso que ele lhe pedisse. Uma tolerância
pelo invulgar, pelo insólito, não era coisa que constasse do rol de
deficiências de Iris Gittelman. Insólito, para ela, era o que mais se
conformava com os padrões de legitimidade. Ser dois homens em vez de
um? Ser de duas cores em vez de uma? Andar incógnito pelas ruas,
disfarçado, não ser isto nem aquilo, mas uma coisa intermédia? Possuir uma
dupla, uma tripla ou uma quádrupla personalidade? Não via nada de
assustador nessas aparentes deformidades. A largueza de espírito de Iris não
era sequer uma qualidade moral daquelas de que os liberais e os libertários
se vangloriam; enquadrava-se mais na categoria de mania, era a antítese
perturbada da intolerância. As expectativas indispensáveis à maioria das
pessoas, a premissa de significado, a confiança na autoridade, a
consagração da coerência e da ordem, pareciam-lhe, mais do que qualquer
outra coisa na vida, absurdas, totalmente disparatadas. Por que
aconteceriam as coisas como acontecem e se leria a História como se lê se,
inerente à existência, houvesse uma coisa chamada normalidade?
Mas, mesmo assim, o que ele disse a Iris foi que era judeu, que Silk era
uma mitigação de Silberzweig imposta ao pai por um carídoso funcionário
alfandegário de Ellís Island. Ele tinha até a marca bíblica da circuncisão, o
que não acontecia a muitos dos seus amigos negros de East Orange daquele
tempo. A mãe, que trabalhava como enfermeira num hospital onde o corpo
médico era predominantemente judeu, deixara-se convencer, pela crescente
tendência clínica nesse sentido, dos importantes benefícios higiénicos da
circuncisão e, por isso, os Silk tinham tomado providências para que o
ritual, que era tradição entre os judeus e começava, nessa época, a ser
adoptado como procedimento cirúrgico pós-natal por um número crescente
de pais gentios, fosse cumprido por um médico em cada um dos seus filhos
do sexo masculino na segunda semana de vida.
Havia já alguns anos que Coleman admitia ser judeu — ou deixava os
outros pensarem que era, se quisessem -, desde que percebera que na
NTYU, assim como nos cafés que frequentava, muitos dos seus conhecidos
o tinham desde sempre considerado como tal. Aprendera na Marinha que
bastava apresentar uma boa e coerente versão a respeito de si mesmo para
que ninguém fizesse perguntas, pois ninguém estava interessado a esse
ponto. Os seus conhecidos da universidade e da Village teriam presumido
com a mesma facilidade — como acontecera com amigos seus da tropa —
que os seus ascendentes eram do Médio Oriente, mas aquele era um
momento em que o narcísismo judeu atingira o auge no pós-guerra entre a
vanguarda intelectual de Washington Square, em que a sede de
engrandecimento que impelia a sua audácia mental caracteristicamente
judaica começava a atrever-se incontrolável e uma aura de importância
cultural emanava tanto dos seus gracejos, das suas anedotas familiares, do
seu riso, das suas piadas e das suas discussões — e até dos seus insultos —
como das Commentary, Midstream e Partisan Review, e quem era ele para
não aproveitar a boleia, tanto mais que os seus anos de liceu, em que fora
assistente de Doc Chizner como instrutor de boxe de miúdos judeus de
Essex County, tomavam a alegação de uma juventude judaica em New
Jersey menos carregada de perigos, armadilhas do que fazer-se passar por
marinheiro americano com raízes sírias ou libanesas. Assumir o prestígio
artificial de um judeu americano de ideias agressivas, dado a íntrospecção,
irreverente e que se deliciava com as ironias da existência marginal em
Manhattan, revelou-se muito menos temerário do que poderia ter parecido
se tivesse passado anos a sonhar com o seu disfarce e a arquitectá-lo com
minúcia e a sós, o que no entanto não o impedia de se sentir, de modo muito
agradável, espectacularmente temerário. E quando se lembrava do Dr.
Fensterman, que oferecera à sua família três mil dólares para que ele
descesse a nota no exame final a fim de permitir ao brilhante Bert terminar
o curso como melhor aluno, isso também lhe parecia espectacularmente
cómico, um anedótíco, ,colossal e sui generis ajuste de contas. Que ideia
genial e omnímoda o mundo tivera para se tornar naquilo, que partida
sublimemente colossal! Se alguma vez houvera uma criação singular
perfeita — e não fora sempre a singularidade a mais profunda ambição
alimentada pelo seu ego? -, só podia ter sido esta convergência mágica do
filho do seu pai com o filho de Fensterman.
Ele agora já não brincava a coisa nenhuma. Já não era um jogo. Com Iris
— a convulsiva, a indornada, o oposto absoluto de Steena, a judia não judia
Iris — como meio através do qual podia fazer-se de novo, tudo se tornou
finalmente claro. Já não tinha de experimentar e rejeitar, de ensaiar e
preparar-se interminavelmente para ser. Era aquilo, aquela era a solução, o
segredo do seu segredo, temperado apenas com uma gota de ridículo, do
redentor e tranquilizador ridículo, do pequeno contributo da vida para todas
as decisões humanas.
Como uma amálgama até então desconhecida dos mais dissemelhantes
indesejáveis históricos da América, ele agora fazia sentido.

Houve, no entanto, um interlúdio. Depois de Steena e antes de Iris houve


um interlúdio de cinco meses chamado Ellie Magee, uma delicada e bem
feita rapariga de cor, de pele acastanhada, ligeiramente sardenta no nariz e
nas faces, que parecia não ter ainda transposto por completo a fronteira
entre a adolescência e a idade adulta e trabalhava na Village Doar Shop, na
Sixth Avenue, onde vendia com entusiasmo módulos de prateleiras para
estantes e portas: portas assentes em pernas para servirem de secretárias e
portas assentes em pernas para servirem de camas. O velho judeu fatigado
proprietário da loja dizia que o volume das vendas aumentara cinquenta por
cento com a contratação de Ellie como empregada, "Isto não estava a render
nada", contou a Coleman. "Dava à justa para viver. Mas agora todos os
tipos de Village querem uma porta para improvisar uma secretária. Entram
e não perguntam por mim, perguntam pela Ellíe. Telefonam e é com ela que
querem falar. Esta menina mudou tudo. Era verdade, ninguém lhe resistia,
incluindo Coleman, que ficou impressionado primeiro com as suas pernas,
empoleiradas nos sapatos de salto alto, e depois com a sua grande
naturalidade. Saía com rapazes brancos da NYU que se sentiam atraídos por
ela, saía com rapazes de cor da NYU que se sentiam atraídos por ela. Era
uma jovem esfuziante de 23 anos que nada na vida ainda ferira, que se
mudara de Yonkers, onde crescera, para a Village e levava a vida sem
convencionalismos com u pequeno(10)", como a vida da Village é descrita.
Um achado, aquela rapariga. Por isso, Coleman entra para comprar uma
secretária de que não precisa e nessa noite sai com ela para tomar uma
bebida, Depois de Steena e do abalo de perder alguém que tanto quisera,
está de novo a divertir-se, está de novo vivo, e tudo isso a partir do
momento em que começaram a namoriscar na loja. Tê-lo-á ela tomado por
branco, na loja? Não sabe. Interessante. Depois, nessa noite, ela ri-se e,
olhando-o comicamente de soslaio, pergunta: "O que és tu, afinal?" Ela
percebeu logo qualquer coisa e perguntou sem hesitar. Mas desta vez ele
não fica encharcado em suor como quando interpretou mal o poema de
Steena. "O que sou? Isso é contigo, escolhe o que quiseres", responde. "É
assim que tu fazes?" "Claro que é assim que eu faço." "Quer dizer que as
raparigas brancas pensam que és branco?" "Seja o que for que elas pensem,
deixo-as pensar", responde Coleman. "E o que eu pensar?", pergunta Ellie.
"A mesma coisa. Este torna-se o pequeno jogo deles, um jogo cuja
ambiguidade os excita. Ele não tem muita intimidade com ninguém em
especial, mas os tipos que conhece da escola pensam que anda a sair com
uma rapariga de cor, enquanto todos os amigos dela pensam que ela anda
com um branco. Há um certo prazer genuíno em saber que outras pessoas
os acham importantes, e isso acontece em quase todos os lugares aonde vão.
Corria o ano de 1951. Alguns tipos perguntavam a Coleman: "Como é ela?"
"Quente", respondia, enquanto abanava molemente uma mão, como os
italianos costumavam fazer em East Orange. Dia a dia, segundo a segundo,
há uma agradável sensação de gozo em tudo isto, a sua vida adquire uma
certa magnitude de vida de estrela de cinema: ele está sempre em cena
quando sai com Ellie. Na Eighth Street ninguém sabe que diabo se passa, e
isso agrada-lhe. Ela tem aquelas pernas. Ela ri constantemente. Ela é uma
mulher de maneira natural, cheia de à-vontade e com uma inocência
animada, que o encanta. Em certa medida como Steena, com a diferença de
não ser branca, de modo que não vão a correr visitar a família dele, nem a
dela. Onde que haveriam de ir? Vivem na Village. Nem sequer passa pela
cabeça de Coleman levá-la a East Orange. Talvez porque não quer ouvir o
suspiro de alívio, não quer que lhe digam, mesmo sem palavras, que está a
fazer a coisa certa. Pensa na sua motivação para levar Steena a casa. Para
ser sincero com todos? E o que ganhou com isso? Não, nada de famílias.
Pelo menos por agora.
Entretanto, sente-se tão bem com ela que, uma noite, a verdade escapa,
naturalmente. Até a respeito de ser pugilista, coisa que nunca foi capaz de
dizer a Steena. Mas é muito fácil dizé-Io a Ellie. O facto de ela não se
mostrar desaprovadora fá-la subir ainda mais na sua consisíderação. Não é
convencional, o que não obsta a que seja tão lúcida. Coleman sente que está
a lidar com uma pessoa sem a mínima estreiteza de espírito. A esplêndida
rapariga quer saber tudo e, por isso, ele fala, e como a falar sem
constrangimentos é um extraordinário conversador, Ellie escuta-o fascinada.
Fala-lhe da Marinha. Fala-lhe da família, que descobre não ser muito
diferente da dela, excepto no facto de o pai, que é farmacêutico e ter uma
farmácia no Harlem, ainda ser vivo e, embora não se sinta feliz com a sua
mudança para a Village, felizmente para ela não pode deixar de a adorar.
Fala-lhe da Howard e da sua capacidade de lá permanecer, por detestar tudo
aquilo. Falam muito da Howard, porque era para lá, também, que os pais
dela queriam que Ellie fosse. E, seja do que for que falem, ele descobre que
consegue sempre fazê-la rir sem ter de se esforçar para isso. "Eu nunca
tinha visto tanta gente de cor junta, nem mesmo na parte sul de Jersey
quando a família se unia. A Universidade de Howard parecia-me uma
concentração de um número excessivo de negros num só lugar. Eram de
todos os credos e todos os tons, mas numerosos de mais e eu não me sentia
bem entre eles. Não percebia o que aquilo tinha a ver comigo. Tudo ali era
tão concentrado que qualquer orgulho que pudesse ter ficou enfraquecido.
Completamente enfraquecido por um concentrado falso ambiente." "Como
uma gasosa doce de mais", comentou Ellie. "Olha, o problema não era bem
o excesso, mas antes tudo o mais que fora excluído. Ao falar abertamente
com Ellie, Coleman sente um enorme alívio. É verdade que já não é um
herói, mas também não é, de modo algum, um vilão. Aquela rapariga é uma
lutadora. A sua conquista da independência, a sua transformação numa
rapariga da Village, o modo como lida com a família... tudo isso parece
demonstrar que cresceu da maneira como devíamos poder crescer.
Uma noite, leva-o a uma pequena joalharia de Bleecker Street, cujo
proprietário branco tem belas coisas de esmalte. Limitam-se a ver montras,
a passear na rua, mas quando se vêm embora ela diz a Coleman que o
indivíduo é negro. "Estás enganada, não pode ser", afirma de. "Não me
digas que estou enganada, tu é que és cego", replica ela, a rir. Noutra
ocasião, perto da meia-noite, leva-o a um bar da Hudson Street onde se
costumam reunir pintores para beber. "Estás a ver aquele, todo delicado",
pergunta em voz baixa, inclinando a cabeça em direcção ele um indivíduo
branco bem-parecido, dos seus 25 anos, que distribuía o seu encanto por
todas as raparigas que estavam ao balcão. "Aquele", repete ela. -Nào", diz
Coleman, que é quem ri agora. "Estás em Greenwich Village, Coleman Silk,
os dez quilómetros quadrados mais livres da América. Quarteirão sim,
quarteirão não, há um. És tão vaidoso que julgavas ser o único que tivera
essa ideia. E se ela conhece três, e com certeza conhece, isso significa que
há dez, se não mais. "Vêm de todos os lados e vão direitos à Eighth Street.
Como tu fizeste, vindo da pequena East Orange", acrescentou Ellie. "E eu
não topo nada", admitiu Coleman. E isso também os faz rir, rir muito,
porque ele não tem remédio, não consegue ver o que se passa nos outros, e
porque Ellie é a sua guia e lho mostra.
Ao princípio, regala-se com a solução para o seu problema. Perdido o
segredo, volta a sentir-se um rapaz. O rapaz que fora antes de ter o segredo.
De novo uma espécie de diabrete. A grande naturalidade dela proporciona-
lhe o prazer e o bem-estar de ser ele próprio natural. Para ser cavaleiro e
herói é necessário usar couraça, e ele agora pode saborear o prazer de
dispensar a couraça. "Você é um homem de sorte", diz-lhe o patrão de Ellie.
"Um homem de sorte", repete ele, convicto. Com Ellie o segredo perde a
razão de ser. Não só porque lhe pode dizer tudo, e diz, mas também porque,
se e quando quiser, agora pode ir a casa. Pode enfrentar o irmão, coisa que,
da outra maneira, sabe muito bem que jamais conseguiria. Ele e a mãe
podem voltar atrás e ser de novo tão íntimos e sentir-se tão bem um com o
outro como sempre. Mas depois conhece Iris, e isso acaba. A ligação com
Ellie foi e continua a ser divertida, mas é como se lhe faltasse uma
dimensão qualquer. A ambição está ausente da sua relação, não encontra
nela o conceito de si mesmo que o moveu durante toda a vida. Iris aparece e
ele volta ao ringue. O pai dissera-lhe: "Agora podes retirar-te sem teres
conhecido a derrota. Penduraste as luvas" Mas ei-lo que sai
impetuosamente do seu canto: tem de novo o segredo. E o dom de guardar
de novo segredo, que não é fácil de conseguir. Talvez haja mais uma dúzia
de indivíduos como ele na Village, mas nem todos podem ter esse dom. Ou
seja, têm-no, mas num aspecto mesquinho, insignificante: estão sempre a
mentir. Não guardam segredo do modo grandioso e cuidadoso com que
Coleman o faz. Retomou a trajectória ostensiva. Possui o elixir do segredo e
é como se fosse fluente noutra língua, é como se estivesse num lugar que
lhe é sempre novo. Viveu sem ele, foi bom, não aconteceu nada horrível,
não foi criticável. Foi divertido, Inocentemente divertido. Mas
insuficientemente tudo o mais. É verdade que recuperou a inocência. Ellie
deu-lhe, sem dúvida, isso. Mas para que serve a inocência? Iris dá-lhe mais,
eleva tudo a outro nível. Iris devolve-lhe a vida à escala a que ele quer vivê-
la.
Dois anos depois de se conhecerem resolveram casar-se, e foi então que
lhe foi exigido o primeiro grande pagamento: pela permissão que se
arrogara, pela liberdade que aprofundara, pelas escolhas que ousara fazer —
e poderia, de facto, ter sido mais as tu cioso e inteligente no modo de
alcançar uma personalidade funcional suficientemente grande para acolher
a sua ambição e suficientemente colossal para afrontar o mundo?
Coleman foi a East Orange visitar a mãe. Mrs. Silk desconhecia a
existência de Iris Gittelman, embora não tivesse ficado nada surpreendida
quando ele lhe comunicou que ia rasar e a rapariga era branca. E nem
sequer se surpreendeu quando acrescentou que ela não sabia que ele era
negro. Se alguém ficou surpreendido, foi o próprio Coleman que, depois de
ter exposto claramente as suas intenções, perguntou de súbito a si mesmo se
aquela decisão, a mais monumental da sua vida, não se basearia na coisa
menos importante que se poderia imaginar: o cabelo de Iris, aquele tortuoso
bosque cerrado de cabelo muito mais negróide do que o dele, mais parecido
com o de Ernestine do que com o seu. Quando era pequena, Ernestine
tornou-se famosa por perguntar: "Por que não tenho cabelo voador como o
da mamã", querendo com isso saber por que motivo não voava o seu,
cabelo na brisa, não apenas como o da mãe, mas como o de todas as
mulheres do lado materno da família.
Perante a angústia da mãe, apoderou-se de Coleman o medo fantástico e
louco de que tudo quanto sempre pretendera de Iris Gittelman fora a
explicação que o aspecto dela poderia fornecer para a textura do cabelo dos
filhos dele.
Mas como pudera um motivo tão grosseira e ofuscantemente utilitário
como aquele ter-lhe escapado até agora? Porque não era, em sentido algum,
verdadeiro? Vendo a mãe sofrer como sofria — intimamente abalado pelo
seu próprio comportamento mas decidido, como sempre, a ir até ao fim -,
como poderia aquela ideia assustadora parecer-lhe outra coisa senão
verdadeira? Ali sentado defronte da mãe, num estado aparente de perfeito
autodomínio, teve a nítida impressão de que escolhera uma mulher pela
mais estúpida de todas as razões do mundo e de que era o mais vazio dos
homens.
— E ela pensa que os teus pais morreram, Coleman. Foi isso que lhe
disseste?
— Foi.
— Não tens nenhum irmão, não tens nenhuma irmã. Ernestine não existe.
Walt não existe.
Ele acenou afirmativamente.
— E que mais lhe disseste?
— O que pensa que lhe disse?
— O que te conveio dizer, fosse lá o que fosse. — Estas foram as
palavras mais ásperas que ela lhe disse durante a tarde toda. A sua
capacidade de se encolerizar nunca seria capaz de se estender a ele. Desde o
momento em que Coleman nascera, o simples facto de o ver desencadeava
nela sentimentos contra os quais não possuía quaisquer defesas e que nada
tinham a ver com o que ele valia.
— Nunca conhecerei os meus netos.
Ele preparara-se. O importante era esquecer o cabelo de Iris e deixar a
mãe falar, deixá-la recuperar a fluência e, no fluir suave das próprias
palavras, encontrar justíficação para ele.
— Nunca os deixarás ver-me. Nunca os deixarás saber quem eu sou.
"Mãe", dir-me-ás, "mãe, vá à estação do caminho-de-ferro de Nova Iorque,
sente-se no banco da sala de espera às onze e vinte e cinco da manhã, eu
passo com os meus filhos, vestidos com as suas roupas de domingo." Esse
será o meu presente de aniversário, daqui a cinco anos. "Sente-se lá, mãe,
não diga nada e eu passo com eles, devagar. E sabes muito bem que eu lá
estarei. Na estação dos caminhos-de-ferro. No jardim zoológico. Em
Central Park. Claro que estarei onde quer que digas. Se me disseres que a
única maneira de alguma vez poder tocar nos meus netos será contratares-
me como Mrs. Brown para tomar conta deles e metê-los na cama, eu farei
isso. Diz-me que vá limpar-te a casa como Mrs. Brown e eu farei isso. Com
certeza que farei o que me disseres. Não tenho escolha.
— Não tem mesmo?
— Escolha? Que outra escolha tenho, Coleman?
— Renegar-me.
Quase zombeteiramente, ela fingiu pensar um pouco nessa ideia.
— Penso que sim, que seria capaz de ser cruel contigo a esse ponto. Sim,
penso que seria possível. Mas aonde achas que iria encontrar a força para
ser tão cruel comigo mesma?
O momento não era indicado para recordar a sua infância. Não era o
momento indicado para admirar a lucidez dela, ou o seu sarcasmo, ou a sua
coragem. Não era o momento indicado para se deixar subjugar pelo
fenômeno quase patológico do amor maternal. Não era o momento indicado
para ouvir todas as palavras que ela não estava a dizer, mas que soavam
ainda mais convincentemente do que as que dizia. Não era o momento
indicado para outros pensamentos que não fossem aqueles com que viera
armado. Não era, com certeza, o momento indicado para recorrer a
explicações, para começar a enumerar brilhantemente as vantagens e
desvantagens e fingir que aquela mais não era do que uma decisão lógica.
Não existia explicação capaz de atenuar, sequer, a infâmia do que lhe estava
a fazer. Era, isso sim, o momento para se concentrar profundamente no que
pretendera alcançar ao ir ali. Se renegá-lo era uma escolha fora de questão
para ela, a única coisa que a mãe podia fazer era aceitar o golpe. "Fala
calmamente, diz pouco, esquece o cabelo de Iris e, demore o tempo que
demorar, deixa-a continuar a empregar as palavras que lhe permitam
absorver no seu ser a brutalidade da coisa mais brutal que jamais fizeste."
Estava a assassiná-la. Não precisamos de assassinar o nosso pai; o mundo
encarrega-se disso por nós. Não faltam forças empenhadas em apanhar o
nosso pai. O mundo encarregar-se-á dele, como se encarregou, de facto, de
Mr. Silk. Quem há para assassinar é a mãe, e ele via que era isso que lhe
estava a fazer, ele, o rapaz que fora amado da maneira que fora por aquela
mulher. Assassiná-la em nome do seu exaltante conceito de liberdade! Teria
sido muito mais fácil sem ela. Mas só através desta prova ele pode ser o
homem que escolheu ser, inalteravelmente desligado do que lhe foi entregue
à nascença, livre para lutar para ser livre como todo o ser humano desejaria
ser. Para obter isso da vida, para ter direito a esse destino alternativo
segundo as suas próprias condições, tem de fazer o que deve ser feito, Não
querem as pessoas, na sua maioria, abandonar a porra das vidas que lhes
foram dadas? Mas não abandonam, e é isso que faz delas elas, enquanto isto
era o que estava a fazer dele ele. Dar o soco, causar o estrago e fechar a
porta para sempre. Não podemos fazer isto a uma mãe maravilhosa que nos
ama incondicionalmente e nos tornou felizes, não podemos infligir esta dor
e depois pensar que podemos voltar atrás. É tão horrível que a única coisa a
fazer é viver com esse peso. Quando fazemos uma coisa destas, cometemos
uma violência tão imensa que jamais pode ser anulada — e é isso que
Coleman quer. É como aquele momento em West Point, quando o tipo
estava a ir ao chão. Só o juiz podia salvá-lo do que ele tinha vontade de lhe
fazer. Então como agora, sentia o poder dessa vontade como um pugilista.
Porque isso também faz parte da prova, dar à brutalidade da rejeição o seu
real "imperdoável significado humano, enfrentar com todo o realismo e
clareza possíveis o minuto em que o nosso destino se cruza com algo
enorme. Este é o momento dele. Este homem e a sua mãe. Esta mulher e o
seu amado filho. Se, com o fim de aguçar o fio de si mesmo, está disposto a
fazer a coisa mais difícil de imaginar, com excepção de a apunhalar, é isto
que tem de fazer. É isto que o conduz directamente ao coração do assunto.
É este o acto supremo da sua vida, e ele sente intensamente,
conscientemente, a sua imensidade.
— Não sei por que não estou mais bem preparada para isto, Coleman.
Devia estar — disse a mãe, — Não tens parado de dar avisos quase desde o
dia em que vieste ao mundo. Mostraste muito pouca inclinação até mesmo
para aceitar o seio. Sim, é verdade. Agora percebo porquê. Até isso poderia
retardar a tua evasão. Houve sempre alguma coisa na nossa família, e não
estou a referir-me à cor... houve sempre alguma coisa em nós que te tolhia.
Pensas como um prisioneiro. É verdade, Coleman Brutus, pensas. És branco
como a neve e pensas como um escravo.
Não era o momento indicado para dar crédito à inteligência dela, para
considerar a frase mais comovente como expressão de alguma sabedoria
especial. Era frequente a sua mãe dizer alguma coisa que dava a impressão
de que sabia mais do que na realidade sabia. A outra face racional. Era o
resultado de ter deixado a parte oratória para o marido, procurando assim,
em comparação, dizer o que importava.
— Poderia dizer-te que não há fuga possível, que todas as tuas tentativas
de fuga só te conduzirão ao ponto de partida. Seria isso que o teu pai te
diria. E encontraria qualquer coisa emjúlio César que confirmaria as suas
palavras. Mas a um jovem como tu, com quem toda a gente simpatiza? Um
jovem bonito, encantador e inteligente, com o teu físico, a tua
determinação, a tua argúcia, com todos os teus maravilhosos dotes? Com os
teus olhos verdes e as tuas compridas pestanas escuras? Meu Deus, isso não
te causaria a mínima perturbação. Imagino que vires ver-me deve ser das
coisas mais difíceis que poderias fazer, mas repara como estás aí
calmamente sentado. E isso deve-se ao facto de saberes que o que fazes tem
todo o sentido. Eu sei que tem, porque tu não te empenharias num objectivo
que não o tivesse. Evidentemente que terás decepções. Evidentemente que
pouco acontecerá como imaginas, aí sentado, tão calmo, à minha frente. O
teu destino especial será, com certeza, especial, mas em que sentido? Com
26 anos não podes, sequer, fazer a mínima ideia.
Mas não seria o mesmo se não fizesses nada? Suponho que qualquer
mudança profunda na vida implica dizer "não te conheço" a alguém.
Continuou a falar durante quase duas horas, num longo discurso sobre a
autonomia dele datar da infância, disfarçando habilmente o sofrimento ao
delinear tudo aquilo que tinha pela frente, não esperava poder contrariar e
teria de suportar, e durante todo esse tempo Coleman fez tudo quanto estava
ao seu alcance para não reparar — nas coisas mais simples, como o seu
cabelo mais ralo (o cabelo da sua mãe, não o de Iris) e a sua cabeça
projectada para diante, o inchaço dos seus tornozelos, a dilatação do seu
ventre, os espaços exagerados entre os seus dentes grandes — quanto ela
avançara na direcção da morte desde aquele domingo, três anos atrás, em
que recorrera a toda a amabilidade de que era capaz para que Steena se
sentisse à vontade. A certa altura, a meio da tarde, pareceu a Coleman que a
mãe chegou mesmo à beira da grande mudança, ao ponto crítico em que os
idosos se transformam irreversivelmente em deformados seres minúsculos.
Quanto mais ela falava, mais ele se convencia de que isso estava a
acontecer diante dos seus olhos. Tentou não pensar na doença que a mataria,
no funeral que lhe fariam, nas honras fúnebres que lhe seriam prestadas e
nas orações que seriam rezadas à beira da sua sepultura. Mas depois tentou
também não pensar na continuação da sua vida, na partida dele e na
permanência dela ali, viva, os anos a passarem e ela a pensar nele, nos
filhos e na mulher dele, os anos a passarem e a ligação entre os dois a
tornar-se cada vez mais forte para ela, por ter sido renegada.
Não podia permitir que a longevidade da mãe ou a sua mortalidade
pudessem ter qualquer influência no que ele estava a fazer, nem isso nem as
dificuldades que a família dela passara em Lawnside, onde a mãe nascera
numa barraca miserável e vivera com os pais e quatro irmãos até à morte do
pai, quando tinha 7 anos. A sua família paterna estivera em Lawnsicle, New
Jersey, desde 1855. Eram escravos foragidos, trazidos de Marilândia para
norte pela organização clandestina antiesclavagista Railroad Underground e
para o Sudoeste de New jersey pelos quacres. Os negros começaram por dar
ao lugar o nome de Free Heaven. Não viviam lá quaisquer brancos, então, e
agora existia apenas um punhado deles na periferia de uma cidade com dois
mil habitantes, onde quase todos descendiam de escravos foragidos a quem
os quacres de Haddonfield tinham protegido: o perfeito descendia deles,
assim como o comandante dos bombeiros, o chefe da Polícia, o cobrador de
ímpos tos, os professores e os alunos da escola primária. Mas a
singularidade de Lawnsíde como cidade negra também não tinha qualquer
relação com o assunto. Nem a singularidade de Gouldtown, mais no Sul de
New Jersey, perto de Cape May. A família materna da sua mãe era daí e
tinha sido para lá que a família fora viver depois da morte do pai. Tratava-
se de outra colónia de pessoas de cor; muitas delas quase brancas, incluindo
a própria avó dela, e todas mais ou menos aparentadas. "Há muito, muito
tempo", como costumava explicar a Coleman quando ele era pequeno —
simplificando e condensando o melhor que sabia todas as histórias
tradicionais que ouvira contar -, um escravo tivera como dono um soldado
do Exército Continental que fora morto na Guerra contra os franceses e os
índios. O escravo tomou conta da viúva do soldado. Tratava de tudo, não
parava do nascer ao fim do dia para fazer o que precisava de ser feito.
Cortava e transportava a lenha, fazia as colheitas, cavou os alicerces e
construiu uma casa para guardar as couves, armazenava as abóboras,
enterrava as maçãs, os nabos e as batatas no chão, para o Inverno,
empilhava o centeio e o trigo no celeiro, matava e salgava o porco, abatia a
vaca e conservava a carne, até que um dia a viúva casou com ele e tiveram
três filhos. E esses filhos casaram com raparigas de Gouldtown. AS duas
famílias remontavam às origens da colonização no século XVII e que,
quando da evolução, estavam todas ligadas por casamentos endogâmicos e
unidas por muitos e váriados parentescos. Uma ou outra, ou todas, dizia ela,
descendiam do índio da grande colónia de Lenape em Indian Fielcls que
casara com uma sueca — suecos e finlandeses tinham suplantado
localmente os iniciais colonos holandeses — e com ela tivera cinco filhas;
uma ou outra, ou todas, descendiam de dois irmãos mulatos trazidos das
Antilhas num navio mercante que subiu o rio de Greenwich para Brídgeton,
onde foram entregues por contrato aos proprietários de terras que lhes
tinham pago as passagens, e os quais pagaram mais tarde as passagens a
duas irmãs para virem da Holanda e serem suas mulheres; uma ou outra, ou
todas, descendiam da neta de john Fenwick, filho de um baronete inglês,
oficial de cavalaria do Exército ela Commonwealth de Cromwell e membro
da Society ofFriends, que morreu em New jersey não muitos anos depois de
New Cesarea (a província situada entre o Hudson e o Delaware que foi
transferida por escritura pelo irmão do rei de Inglaterra para dois
proprietários ingleses) se tornar New Jersey. Fenwick morreu em 1683 e foi
sepultado algures, na colónia pessoal que comprara, fundara e governara, e
que se estendia a norte de Bridgeton para Salem e a sul e leste para o
Delaware.
A neta de 19 anos de Fenwick, Elizabeth Adarns, casou com Gould, um
homem de cor. Aquele preto que foi a desgraça dela", como o avô
descreveu Gould no testamento em que excluía Elizabeth de qualquer parte
dos seus bens até "o Senhor lhe abrir os olhos e ela ver a abominável ofensa
que Lhe fez". Segundo a história, apenas um dos cinco filhos de Gould e
Elizabeth viveu até à idade adulta: Benjamin Gould, que casou com Ann,
uma finlandesa. Benjamin morreu em 1777, o ano seguinte ao da
Declaração da Independência do outro ladodo Delaware, em Filadélfia,
deixando uma filha, Sarah, e quatro filhos, Anthony, Samuel, Abijah e
Elisha, dos quais veio o nome de Gouldtown.
Foi pela mãe que Coleman tomou conhecimento do dédalo da história
familiar que remomtava ao tempo do aristocrático John Fenwick, o qual foi
para aquela região sudoeste de New Iersey o que William Penn foi para a
parte da Pensilvânia que abrangia Filadélfia.- de quem às vezes parecia que
Gouldtown inteira descendia. Depois voltou a ouvir a aquela história,
embora nunca igual em todos os seus pormenores, da boca de tias-avós e
tios-avôs e de tias-bisavós e tios-bisavôs, alguns deles quase centenários,
quando, em crianças, ele, Walt e Ernestine iam com os pais a Gouldtown
para a reunião anual da família: quase duzentos familiares vindos da parte
sudoeste de Jersey, de Filadélfia, de Atlantic City e, até, de tão longe como
Boston, para comer peixe-azul frito, frango guisado, frango frito, gelado
caseiro, pêssegos em calda, tortas e bolos, para comer os pratos favoritos da
família, jogar basebol, cantar canções e passar o dia inteiro a recordar e a
contar histórias de mulheres de tempos muito antigos, que fiavam, faziam
malha, coziam carne de porco gorda, coziam pães enormes para os homens
levarem para os campos, faziam o vestuário, tiravam água do poço,
administravam remédios feitos principalmente à base de coisas apanhadas
nos bosques, infusões de ervas para tratar sarampo, xaropes de melaço e
cebola para a tosse convulsa. Histórias de mulheres da família que tinham
uma leitaria onde faziam belos queijos, de mulheres que iam para a cidade
de Filadélfia para se tornarem governantas, modistas e professoras
primárias e de mulheres que ficavam em casa e cultivavam uma
hospitalidade extraordinária. Histórias de homens que iam para as matas e,
com armadilhas e a tiro, apanhavam caça de Inverno para terem carne, de
agricultores que lavravam os campos, cortavam lenha para queimar e
estacas para as cercas, compravam, vendiam e abatiam o gado, e de outros,
prósperos, negociantes, que vendiam toneladas de feno salgado para
acondicionamento às olarias de Trenton, feno cortado nos pântanos
salgados que tinham ao longo da baía e das margens do rio. Histórias de
homens que abandonavam as matas, a quinta, o pântano e o paul de cedros
para combaterem — uns como soldados brancos, outros como negros — na
Guerra Civil. Histórias de homens que iam para o mar para forçarem
bloqueios, que iam para Filadélfia para se tornarem cangalheiros,
tipógrafos, barbeiros, electricistas, charuteiros e pastores da Igreja
Episcopal Metodista Africana — e um que foi para Cuba com Teddy
Roosevelt e os seus Rough Riders, e alguns que se meteram em encrencas,
fugiram e nunca mais voltaram. Histórias de crianças como eles, muitas
vezes pobremente vestidas, algumas vezes sem sapatos ou casacos,
dormindo nas noites de Inverno em quartos gelados de casas simples, indo
no calor do Verão cortar, carregar e transportar feno com os homens, mas
bem-educadas pelos pais e catequizadas na escola pelos presbiterianos, que
também as ensinavam a ler e escrever, enchendo sempre a barriga, mesmo
nesse tempo, de carne de porco, batatas, pão, melaço e caça e tornando-se
adultos fortes, saudáveis e honrados.
Mas decide-se tanto não ser pugilista por causa da história dos escravos
foragidos de Lawnside, da abundância de tudo nas reuniões em Gouldtown
e da complexidade da genealogía americana da família, ou não ser professor
de estudos clássicos por causa da história dos escravos foragidos de
Lawnside, da abundância de tudo nas reuniões em Gouldtown e da
complexidade da genealogia americana da família, como se decide não ser
qualquer outra coisa por razões semelhantes. Muitas coisas desaparecem da
vida de uma família. Lawnside é uma delas, Gouldtown outra, genealogia
uma terceira e CoJeman Silk foi uma quarta.
Nos últimos cinquenta anos, ou mais, ele também não foi a primeira
criança que ouviu falar da colheita de feno salgado para as olarias de
Trenton ou comeu peixe-azul frito e pêssegos em calda nas reuniões em
Gouldtown e cresceu para desaparecer assim — para desaparecer, como
costumavam dizer na família, "até se perderem todos os vestígios dele".
"Perdeu-se para todos os seus" era outra variante, outra maneira de dizer o
mesmo.
O culto dos antepassados, era assim que Coleman lhe chamava. Honrar o
passado era uma coisa, a idolatria que é o culto dos antepassados, outra. Ao
diabo com esse aprisionamento. Dispensava-o.
Nessa noite, depois de regressar de East Orange a Village, recebeu um
telefonema de Asbury Park, do irmão, que acelerou as coisas mais do que
ele planeara. "Nunca mais te aproximes dela", advertiu-o Walt numa voz em
que vibrava qualquer coisa dificilmente comtida — que o facto de ser
contida tornava ainda mais assustadora — e que Coleman não ouvia desde
o tempo do pai. Havia agora outra força naquela família, uma força que o
empurrava completamente para o outro lado. O acto foi cometido por um
jovem audacioso em 1953, em Greenwich Village, por uma pessoa
específica num lugar específico num momento específico, mas agora ficará
para sempre no outro lado. No entanto, como acaba por descobrir, essa é,
precisamente, a questão: a liberdade é perigosa. A liberdade é muito
perigosa. E nada acontece durante muito tempo de acordo com os nossos
próprios termos. "Nunca mais tentes vê-la. Nenhum contacto. Nenhum
telefonema. Nada. Nunca. Ouviste?", disse Walt. -Nunca. Não ouses nunca
mais mostrar de novo essa cara de lírio branco nesta casa!. "
3.
QUE FAZEMOS COM A CRIANÇA QUE NÃO SABE LER?

— Se Clinton lhe tivesse ido ao cu, talvez ela tivesse calado a boca. Bill
Clinton não é O homem que dizem ser. Se a tivesse virado de barriga para
baixo no Salão Oval e lhe tivesse ido ao cu, nada disto teria acontecido.
— Bem, ele nunca a dominou. Jogou pelo seguro.
— Sabes, depois de chegar à Casa Branca o tipo deixou de dominar. Não
podia. Também não dominou a Willey. Foi por isso que ela ficou fula com
ele. Quando se tornou presidente perdeu todo seu talento arkansiano típico
para dominar mulheres. Enquanto foi procurador. -geral e governador de
um pequeno estado obscuro, dominar era perfeito para ele.
— Sem dúvida. Basta pensar na Gennifer Flowers.
— O que acontece no Arkansas? Se um tipo cai quando ainda se encontra
lá, não cai de muito alto.
— Exactamente. E calcula-se que tenha tara pelo eu. É uma tradição.
— Mas quando chega à Casa Branca, não pode dominar. E quando não
pode dominar, Miss Willey vira-se contra ele, e Miss Monica vira-se contra
ele. Teria garantido a lealdade dela se lhe fosse ao cu. O pacto devia ter sido
esse. Isso tê-los-ia ligado. Mas não houve pacto, — Bem, ela assustou-se.
Sabes bem que esteve prestes a não dizer nada. Starr esmagou-a. Onze
gajos na sala com ela naquele hotel, já imaginaste? A massacrá-la? Foi uma
geraldina. Uma violação colectiva encenada por Starr naquele hotel.
— Isso é verdade. Mas ela já andava a falar com Linda Tripp.
— Ah, sim.
— Andava a falar com toda a gente. Pertence àquela cultura idiota do
blá-blá-blá. A esta geração que se orgulha da sua superficialidade. A
sinceridade é tudo. Sincera e vazia, totalmente vazia. A sinceridade que
dispara em todas as direcções. A sinceridade que é pior do que a falsidade e
a inocência que é pior do que a corrupção. Toda a rapacidade oculta sob o
manto da sinceridade. E do jargão. Aquele vocabulário maravilhoso de
todos eles, e em que parecem acreditar, a respeito da "falta de mérito
próprio", quando na realidade estão sempre convencidos de que têm direito
a tudo. Chamam carinho ao descaramento e mascaram a desumanidade de
perda de "auto-estima", Hitler também tinha falta de auto-estima. Esse era o
problema dele. É uma farsa, o que esses miúdos armaram. A
hiperdramatização das emoções mais insignificantes. Relação. A minha
relação. Clarificar a minha relação. Quando abrem a boca apetece-me
amarinhar pelas paredes. Toda a linguagem deles é um somatório de
estupidez dos últimos quarenta anos. Conclusão. Eis um dos chavões. Os
meus alunos não podem permanecer no lugar onde o pensamento deve
ocorrer. Conclusão! Fixam-se na narrativa convencionalizada com o seu
princípio, o seu meio e o seu fim. Qualquer exigência, por muito ambígua,
intrincada ou misteriosa que seja, tem de se prestar a esse lugar-comum
normalizante e convencionalizante de pivô de televisão. Chumbo qualquer
miúdo que peça conclusão. Querem conclusão? Eu dou-lhes a conclusão.
_ Bem, seja ela o que for — uma narcisista absoluta, uma cabra
intriguista, a rapariga judia mais exibicionista da história de Beverly Hills,
corrompida até à medula pelo privilégio -, ele sabia-o de antemão. Ele
podia topá-la. Se não é capaz de topar Monica Lewinsky, como pode topar
Saddam Hussein? Se o tipo não é capaz de topar e cortar as voltas a Monica
Lewínsky, não devia ser presidente. Isso é fundamento genuíno para
impugnação. Mas, insisto, ele topou. Ele topou tudo. Não acredito que
tenha ficado muito tempo hipnotizado com a história da carochinha do seu
disfarce. Claro que viu que ela era absolutamente corrupta e dissolutamente
inocente. A extrema inocência era a corrupção: era a sua corrupção, a sua
loucuura e a sua astúcia. Era nisso que residia a sua força, nessa
combinação. Era nisso, no facto de ela não ter qualquer profundidade, que
ele encontrava encanto quando terminava o seu dia de comandante-chefe. A
atracção estava aí, na intensidade da superficialidade. Para não falar na
superficialidade da intensidade. As histórias sobre a sua infância. O alarde
da sua adorável teimosia: "Está a ver, com apenas três anos já tinha
personalidade." Tenho a certeza de que ele compreendia que tudo quanto
fizesse em desacordo com as ílusóes dela seria mais uma agressão brutal ao
seu amor-próprio. Mas o que não percebeu foi que tinha de lhe ir ao cu.
Porquê? Para a calar. Estranho comportamento o elo nosso presidente. Foi a
primeira coisa que ela lhe mostrou. Pôs-lha à frente do nariz. Ofereceu-lha.
E ele não fez nada. Não compreendo este tipo. Se lhe tivesse ido ao cu,
duvido que ela tivesse falado com Linda Tripp. Pororque não quereria falar
a esse respeito.
— Mas quis falar a respeito do charuto.
— Isso é outra história. Isso é criancice. Não, ele não lhe deu, com
regularidade, uma coisa acerca da qual ela não desejasse falar. Uma coisa
que ele queria e ela não. O erro foi esse.
— É pelo cu que se gera a lealdade.
_ Não sei se isso a teria calado. Duvido que seja humanamente possível
calá-la. Não estamos perante um caso de Garganta Funda, mas sim de Boca
Escancarada.
— Mesmo assim, temos de admitir que esta rapariga revelou mais a
respeito da América do que qualquer outra pessoa desde john dos Passos.
Ela enfiou um termómetro no cu do país. A trílogia U. S. A. de Monica.
— O problema é que Clinton lhe estava a dar o mesmo que todos os
outros tipos e o que ela queria dele era diferente. Ele é o presidente, ela é
uma terrorista do amor. Ela queria que ele fosse diferente daquele professor
com quem teve um caso.
— Sim, a delicadeza dele lixou-o. Interessante. Não a sua brutalidade,
mas a sua delicadeza. Não jogou pelas suas regras, mas pelas dela. Ela
controla-o porque ele quer ser controlado. Tem de ser. Está tudo errado.
Sabem o que Kennedy lhe teria dito quando ela lhe aparecesse a pedir
emprego? Sabem o que Nixon lhe teria dito? Harry Truman, e até
Eisenhower, ter-lhe-iam dito o mesmo. O general que conduziu a Segunda
Guerra Mundial sabia ser desagradável. Ter-lhe-iam dito, todos, que não só
não lhe davam emprego como mais ninguém voltaria a empregá-la durante
toda a sua vida. Que não conseguiria sequer arranjar trabalho a guiar um
táxi em Horse Springs, Novo México. Nada. Que o consultório do pai seria
sabotado e ele também ficaria sem trabalho. Que a mãe nunca mais voltaria
a trabalhar, que o irmão nunca mais voltaria a trabalhar, que nunca mais
ninguém da sua família voltaria a ganhar um cêntimo se ela se atrevesse a
abrir a boca para falar das onze mamadas. Onze. Nem sequer doze, para
arredondar a conta. Não acho que menos ele uma dúzia em dois anos
chegue para alguém se candidatar ao grande prémio da libertinagem, pois
não?
— A prudência, foi a prudência que o lixou. Sem a mínima dúvida. O
tipo agiu como um advogado.
— Não queria dar-lhe nenhuma prova. Era por isso que não se vinha.
— E tinha razão. No momento que se veio, lixou-se. Ela ficou com O
material. Recolheu uma amostra. A prova incontestável. Se ele lhe tivesse
ido ao cu, a nação poderia ter sido poupada a este terrível trauma.
Riram-se. Eram três.
— Ele nunca se abandonou por completo. Estava sempre com um olho na
porta. Tinha a sua táctica. E ela tentava subir a parada.
— Não é isso que a Mafia faz? Dá às pessoas alguma coisa de que não
podem falar. E fica com elas nas mãos.
— Envolve-as numa transgressão mútua que acaba numa corrupção
mútua. É isso mesmo.
— Donde, o problema dele é ser insuficientemente corrupto.
— Sem dúvida. E pouco sofisticado.
— Ou seja, exactamente o oposto da acusação de que é censurável.
Afinal, ele é insuficientemente censurável.
— Nem mais. Se um tipo envereda por esse comportamento, para quê
fixar um limite onde ele fixou? Isso não terá sido um tanto ou quanto
artificial?
— Quando fixamos limites tornamos claro que estamos assustados. E
quando estamos assustados, estamos lixados. A nossa destruição não está
mais longe do que o telemóvel de Monica.
— Bem, o homem não queria perder o controlo. Não se lembram de que
ele disse: Não quero tornar-me dependente de ti, não quero viciar-me em ti?
Isso pareceu-me sincero.
— Eu achei que era conversa fiada.
— Não creio. É possível que, do modo como ela o recordou, pareça
conversa fiada, mas penso que a motivação... não, ele não queria a
dependência sexual. Ela era boa, mas substituiível.
— Toda a gente é substituível.
— Mas tu não sabes qual era a experiência dele. Ele não frequentava
putas e esse género de coisas.
— O Kennedy, sim, era dependente de putas.
— Oh, sim. Com esse a coisa era séria. Comparado com ele, Clinton é
um menino de coro.
— Não creio que tenha sido um menino de coro quando estava no
Arkansas.
— Não, no Arkansas a coisa estava equilibrada. Aqui está tudo
descontrolado. E deve ter dado com ele em doido. Presidente dos Estados
Unidos, tem acesso a tudo e não pode errar em nada. Deve ter sido um
inferno. Sobretudo com aquela santa de pau carunchoso da mulher.
— Achas que ela é isso?
— Se é!
— Ela e o Vince Foster?
— Bem, podia apaixonar-se por alguém, mas nunca faria nenhuma
loucura porque ele era casado. Seria capaz de tornar até o adultério uma
chatice. É a antítese absoluta da transgressora.
— Achas que andava a dormir com o Foster?
— Acho. Acho, sim.
— E agora o mundo inteiro apaixonou-se pela santa de pau carunchoso.
Foi exactamente por serr essa mulher que todos se apaixonaram.
— O golpe de génio de Clinton foi arranjar trabalho para Vince Foster
em Washington. Colocá-lo ali mesmo a jeito. Fazê-lo dar o seu contributo à
administração. Genial, de facto. Nisso, Clinton agiu como um bom
padrinho da Mafia e levou a palma à mulher.
— Sim, essa foi boa. Não foi, no entanto, o que fez com Monica. Estão a
ver, ele só podia ular de Monica a Vernon Jordan, Que aliás talvez fosse a
melhor pessoa para isso. Mas estavam longe de perceber o que se passava.
Porque julgavam que ela só andava a dar à língua com as suas estúpidas
amiguinhas de California Valley. Paciência, o que se há-de fazer. O pior é
que a tal Linda Tripp, essa logo, essa logo toupeira que Starr tinha a
trabalhar na Casa Branca ...
Coleman levantou-se e afastou-se na direcção do campus. Escutara a
conversa até àquele momemto, sentado num banco do largo a meditar no
que faria a seguir. Não reconhecera as vozes dos homens e, como estavam
de costas para ele e num banco que ficava do lado da árvore oposto ao do
seu, também não lhes pôde ver os rostos. Supunha que se tratava de três
indivíduos jovens, chegados à universidade depois da sua saída, que se
tinham sentado no largo para beberem água engarrafada ou descafeinado de
lata, no regresso de um aquecimento nas quadras de ténis da cidade, e
descansarem juntos enquanto comentavam as notícias do dia relacionadas
com Clinton antes de irem para casa, onde os esperavam as mulheres e os
filhos. Pareciam-lhe sexualmente entendidos e confiantes, de um modo que
não relacionava com jovens professores auxiliares, sobretudo em Athena.
Usavam uma linguagem muito grosseira, muito crua, que não era habitual
nem mesmo naquele tipo de conversas académicas. Era pena que não
estivessem lá no seu tempo. Poderiam ter formado uma barreira de
resistência contra... Não, não. No campus, onde ninguém é parceiro de ténis
de ninguém, esta espécie de força tem tendência para se dispersar em
gracejos, quando não é totalmente auto-reprimida. O mais provável seria
não se mostrarem mais disponíveis do que os restantes membros da
faculdade quando se tratara de se unirem para o apoiarem. De qualquer
modo, não os conhecia nem tinha vontade de os conhecer. Já não conhecia
ninguém. Tinham decorrido dois anos, o tempo que levara a escrever
Spooks, desde que se afastara por completo dos amigos, colegas e
conhecidos de toda a vida, e só hoje -- pouco antes do meio-dia e após o
encontro com Nelson Primus que, mais do que apenas mal, acabara
espantosamente mal, com Coleman a surpreender-se a si mesmo com as
suas palavras injuriosas -, só hoje voltara a deixar Town Street, como estava
a fazer, para descer South Ward e depois, chegado ao monumento à Guerra
Civil, subir a encosta para o campus. Era muito provável que não
encontrasse ninguém conhecido, excepto, talvez, quem estivesse a ensinar
os reformados que costumavam vir em Julho passar duas semanas ao abrigo
do programa da universidade para idosos, que incluía idas aos concertos de
Tanglewood e visitas às galerias de Stockbridge e ao museu Norman
Rockwell.
Esses estudantes estívais foram precisamente a primeira coisa que viu,
quando chegou à crista da colina e saiu de trás do antigo edifício de
astronomia para o pátio principal sarapintado de sol que, naquele momento,
tinha um aspecto universitário mais kitsch do que jamais tivera na capa do
anuário da universidade de Athena. Dirigiam-se para a cafetaria, para
almoçar, ziguezagueando aos pares por um dos caminhos entrecruzados e
ladeados de árvores do pátio. Um cortejo de pares: maridos e mulheres
juntos, pares de maridos e pares de mulheres, pares de viúvos, pares
recompostos de viúvas e viúvos — ou assim os imaginou Coleman -, que se
tinham emparceirado como casais depois de se conhecerem ali, nos cursos
para idosos. Estavam todos muito bem arranjados, com roupas estivais
claras, muitas camisas e blusas de tons pastel vivos, calças de caqui branco
ou claro, alguns xadrezes leves de Brooks Brothers. A maior parte dos
homens usava bonés de pala, bonés de todas as cores, muitos deles com
emblemas de equipas desportivas profissionais. Não havia, pelo menos à
vista, cadeiras de rodas, nem andarilhos, nem canadianas, nem bengalas.
Pessoas activas da sua idade, aparentemente tão em forma como ele, umas
um pouco mais novas, outras claramente mais velhas, mas aproveitando o
que a liberdade da reforma deve proporcionar aos que têm a sorte de
respirar mais ou menos sem dificuldade, movimentar-se mais ou menos sem
dores e pensar mais ou menos lucidamente. Era ali que ele devia estar
devidamente emparceirado. Apropriadamente.
Apropriado: eis a palavra-chave em vigor para reprimir quase todos os
desvios das linhas de conduta sadias e fazer com que, desse modo, toda a
gente se sentisse "tranquila". Fazendo não aquilo que ele fazia, e lhe
criticavam, mas sim, parecia-lhe, o que era considerado adequado sabe
Deus por qual dos nossos filósofos morais. Barbara Walters? Joyce
IImthers? William Bennett? Dateline NBC? Se ainda estivesse por ali como
professor, poderia ensinar "Comportamento Apropriado na Tragédia
Clássica Grega", um curso que acabaria antes mesmo de começar.
No caminho para o almoço passavam à vista do North Hall, o belo
edifício de tijolo de estílo colonial, coberto de hera e das marcas do tempo,
onde durante mais de uma década Coleman Silk, então reitor da faculdade,
ocupara o gabinete defronte da suíte do presidente.
O símbolo arquitectónico da universidade, o relógio da torre hexagonal
de North Hall, adornado pelo pináculo que por sua vez era encimado pela
bandeira — e que podia ser visto de baixo, do centro da cidade, do mesmo
modo que as maciças catedrais europeias são ,Ivistadas das estradas de
acesso por aqueles que se dirigem para a cidade-catedral-, batia as\ doze
horas quando ele se sentou num banco à sombra do carvalho mais
famosamente idoso e retorcido pelos anos de todo o pátio, se sentou e, com
calma, tentou considerar as coacções da decência. A tirania da decência. A
meio do ano de 1998 era difícil, até para ele, acreditar na capacidade de
resistência da decência americana, e era ele quem se considerava tiranizado:
o freio que continua a ser para a retórica pública, a inspiração que
proporciona à atitude pessoal, a persistência, praticamente em todo o lado,
desse desvirtuador púlpito morígerador da virtude que H. L. Mencken
identificou com idiotismo, Philip Wylie considerou momismo, a que os
europeus chamam erroneamente puritanismo uncrícano e Ronald Reagan e
afins valores essenciais da América, e que mantém o seu vasto predomínio
mascarando-se de outra coisa qualquer — de tudo o mais. Como força, a
decência é versátil, uma dominadora com mil disfarces que se insinua, se
necessário, como responsabilidade cívica, dignidade WASP, direitos das
mulheres, orgulho negro, lealdade étnica ou sensibilidade ética judaica
saturada de emoção. Não apenas como se Marx, Freud, Darwin, Estáline,
Hitler ou Mao nunca tivessem existido mas também como se nem Sinclair
Lewis tivesse existido. Como, pensou Coleman, se Babbiü nunca tivesse
sido escrito. Como se nem esse baixíssimo nível elementar de pensamento
imaginativo tivesse sido absorvido pelo consciente para causar a mais
ínfima perturbação. Um século de destruição sem paralelo na sua terrível
magnitude abate-se sobre a espécie humana e flagela-a: dezenas die milhões
de pessoas comuns condenadas a sofrer privações atrás de privações,
atrocidades atrás de atrocidades, infortúnio atrás de infortúnio; metade do
mundo, ou mais, sujeita a sadismo patológico sob a capa de política social,
sociedades inteiras organizadas e. agrilhoadas pelo medo da perseguição
violenta, a degradação da vida individual manipulada a uma escala sem
precedentes na História, nações dominadas e escravizadas por criminosos
ideológicos que lhes roubam tudo, populações inteiras tão desmoralizadas
que são incapazes de se levantar de manhã com o mínimo desejo de encarar
o dia ... Tantos marcos terríveis a caracterizar o século e eles aqui em pé-de-
guerra por causa de Faunía Farley. Aqui, na América, quando não é Faunia
Farley, é Monica Lewinsky! O conforto destas vidas tão perturbado pelo
comportamento indecoroso de Clinton e Silk! Isto, em 1998, é a
perversidade que têm de suportar. Isto, em 1998, é a sua tortura, o seu
tormento e a sua morte espiritual. A fonte do seu maior desespero moral,
Faunia a chupar-me e eu a comê.-la. Sou depravado não apenas por ter dito
uma vez a palavra "spooks" numa aula de estudantes brancos — e tendo-o
dito, notem, não enquanto passava em revista o legado da escravatura, as
denúncias explosivas de Malcom X, a retórica de James Baldwin ou a
popularidade radiofónica de Amos 'n' Andy, mas enquanto fazia
rotineiramente a chamada. Sou depravado não apenas por...
Pensara tudo isto em menos de cinco minutos, sentado num banco e a
olhar para o bonito edifício onde outrora tinha sido reitor.
Mas o erro estava feito. Ele voltara. Estava ali. Voltara à colina de onde o
tinham escorraçado. E com ele voltara também o desprezo pelos amigos
que não tinham cerrado filei.ras em sua defesa, e pelos colegas que não se
tinham dado ao incómodo de o apoiar; e pelos inimigos que com tanta
facilidade tinham destruído todo o significado da sua carreira profissional.
A ânsia de denunciar a pundunorosa crueldade da hipócrita idiotice de todos
eles encheu-o de fúria. Estava de novo na colina sob o império da fúria, de
uma fúria tão intensa que a sentia a expulsar todo o bom senso e a impor-
lhe que agisse de imediato.
Delphine Roux.
Levantou-se e dirigiu-se para o gabinete dela. Numa certa idade, pensou,
é aconselhável para a saúde não fazer o que me preparo para fazer. Numa
certa idade, a melhor coisa para serenar a perspectiva de um homem é a
moderação, se não a resignação, se não mesmo a capitulação pura e
simples. Numa certa idade, devíamos viver sem escutar muito as queixas do
passado, ou convidar à resistência no presente personificando um desafio às
devoções vigentes. No entanto, renunciar a representar qualquer papel que
não seja o socialmente atribuído, e atribuído, neste caso, aos
respeitavelmente reformados — aos 71 anos, com certeza só isso pode ser
adequado -, era inaceitável para Coleman Silk, como há muito tempo
demonstrara com inexorável implacabilidade à sua própria mãe.
Não era um anarquista amargo como o maluco pai de Iris, Gíttelman.
Não era, em sentido algum, um provocador ou um agitador. Nem sequer um
louco. Nem sequer um radical ou um revolucionário, mesmo intelectual ou
filosoficamente falando, a não ser que seja revolucionário crer que ignorar
as delimitações mais restritívas de uma sociedade prescritiva e afirmar de
modo independente uma escolha livre e pessoal, dentro dos parâmetros da
lei, possa ser outra coisa que não um direito humano fundamental; a não ser
que seja revolumário recusarmo-nos, quando atingimos a maioridade, a
aceitar automaticamente o contrato redigido à nascença para assinarmos.
Entretanto, passara por trás do North Hall e dirigia-se para o comprido
relvado para boliche que conduzia a Barton e ao gabinete de Delphine
Roux. Não fazia a mínima ideia do que lhe diria se por acaso a encontrasse
sentada à secretária num tão magnífico dia de Verão, com o semestre do
Outono ainda a seis ou sete semanas do seu início. Não fazia ideia nem teve
oportunidade de fazer, porque, antes mesmo de chegar perto do largo
caminho de tijolo que contornava o Barton, reparou que, atrás do North
Hall, numa extensão de relva à sombra, ao lado de uma escada que dava
para a cave, estava um grupo de cinco funcionários da universidade, todos
fardados com as camisas e as calças castanhas do pessoal de manutenção, a
comer uma piza de uma caixa e a rir com gosto de uma graça qualquer. A
única mulher, e o centro das atenções dos seus companheiros de almoço —
a que contara a anedota, dissera a graça ou fizera a provocação, e que por
sinal ria mais alto do que todos os outros --, era Faunia Farley.
Os homens aparentavam trinta, trinta e poucos anos. Dois usavam barba e
um dos barbudos, um tipo com um comprido rabo-de-cavalo, era
particularmente entroncado e tinha um aspecto bovino. Era o único que se
encontrava de pé, talvez para melhor pairar sobre Faunia, que eslava
sentada no chão com as longas pernas estendidas à sua frente e a cabeça
atirada para trás, num gesto provocado pela alegria do momento. O seu
cabelo foi uma surpresa para Coleman. Estava solto. Até então, vira-o
sempre infalivelmente bem preso atrás, com um elástico. Assim solto, só no
leito, quando tirava o elástico e o deixava cair para os ombros nus.
Estava com os rapazes. Estes deviam ser os rapazes a quem costumava
referir-se. Um deles, recém-divorciado e ex-mecânico de automóveis mal-
sucedido, mantinha-lhe o chevrolet a funcionar e dava-lhe boleia para o
trabalho e para casa nos dias em que o maldito chaço se recusava a pegar,
fizesse ele o que fizesse; outro, queria levá-la ao cinema para verem um
filme porno nas noites em que a mulher trabalhava no turno da noite na
fábrica de embalagens de papel de Blackwell, e outro era tão inocente que
nem sabia o que era um hermafrodita. Quando os rapazes apareciam nas
suas conversas, Coleman escutava sem fazer comentários e sem exprimir
qualquer contrariedade com o que ela tinha a dizer a respeito deles, apesar
da curiosidade que lhe despertava o interesse dos rapazes por ela, dada a
substância dos assuntos abordados referidos por Faunia. Mas como ela não
falava constantemente neles e ele não a encorajava fazendo perguntas a seu
respeito, os rapazes nãocausavam em Coleman a impressão que causariam,
por exemplo, a Lester Farley, Claro que ela poderia, de moto próprio, ser
um pouco menos descuidada e prestar-se menos a alimentar-lhes as
fantasias, mas mesmo quando se sentia tentado a sugerir-lho conseguia
facilmente conter-se. Ela podia falar tão despropositada ou
intencionalmente quanto quisesse, fosse com quem fosse, e arcar com as
consequências, fossem elas quais fossem. Não era sua filha. Não era sequer
a sua rapariga. Era ... o que era.
Mas, ao observá-la sem ser visto de trás do muro sombrio de North Hall,
onde se ocultara, não achou tão fácil, pelo contrário, manter uma opinião
tão indiferente e tolerante, É que, agora, via não apenas o que costumava
ver — o que o facto de ter alcançado tão pouco na vida lhe fizera — mas
também, talvez, a razão por que alcançara tão pouco; do seu ponto de
observação a não mais de quinze metros de distância, podia ver quase
microscopicamente como, sem ele para lhe dar as dicas, ela as ia buscar ao
exemplo mais grosseiro que se encontrava ao seu alcance, às pessoas mais
ordinárias, àquelas cujas expectativas humanas eram as mais baixas e cuja
concepção de si mesmas a mais superficial. Como, por muito inteligente
que sejamos, Voluptas torna realidade quase tudo quanto queremos pensar,
certas possibilidades não chegam nunca a ser encaradas, quanto mais
vígorosamente conjecturadas, e avaliar correctamente as qualidades da
nossa Voluptas é a última coisa que estamos preparados para fazer... até ao
momento em que nos esgueiramos para as sombras e a observamos a rolar
de costas na relva, com os joelhos dobrados e um pouco afastados, o queijo
da piza a escorrer por uma das mãos, uma Diet Coke erguida na outra e a rir
como uma louca — de quê? Do hermafroditismo? -, enquanto paira sobre
ela, na pessoa do serralheiro de automóveis falhado, tudo aquilo que é a
antítese do nosso próprio modo de vida. Outro Farley? Outro Les Farley?
Talvez nada tão assustador como isso, talvez mais um substituto de Farley
do que de nós.
Uma cena de campus que teria parecido insignificante se Coleman a
tivesse surpreendido num dia de Verão do tempo em que era reitor — e isso
acontecera sem dúvida numerosas vezes -, uma cena de campus que então
lhe teria parecido, além de inofensiva, agradavelmente sugestiva do prazer
que podia ser comer ao ar livre num bonito dia, mas que hoje estava
carregada de significado. Enquanto nem Nelson Primus, nem a sua querida
Lisa, nem mesmo a denúncia obscura anonimamente enviada por Delphine
Roux o tinham convencido de nada, esta cena de pouca importância no
relvado atrás de North Hall revelava-lhe finalmente a face oculta da sua
própria vergonha.
Lisa. Lisa e as suas crianças. A pequenina Carmen. Foi isso que lhe veio
ao pensamento, como um relâmpago, a pequenina Carmen que tinha 6 anos,
mas, segundo Lisa, era como se fosse muito mais nova, "Ela é engraçada",
dizia a filha, "mas como um bebé" E, quando ele a viu, Carmen era de facto
adoravelmente engraçada: pele castanho-clara, cabelo muito preto preso em
duas tranças espetadas, olhos como ele nunca vira iguais noutro ser
humano, dois carvões azulados com um calor e uma luz que vinham de
dentro, corpo infantil ágil e flexível, muito bem arranjada, de jeans e
sapatilhas, meias curtas coloridas e uma T-shírt branca quase tão estreita
como um limpa-cachimbos, uma menina viva e aparentemente atenta a
tudo, em especial a ele. "Este é o meu amigo Coleman", disse-lhe Lisa
quando ela entrou na sala com um sorriso irónico e ligeiramente divertido
no rostinho matinal bem lavado e senhor de si. "Bom dia, Carmen", saudou-
a Coleman. "Ele só queria ver o que nós fazemos", explicou Lisa. "Está
bem", disse a criança com delicadeza, mas observando-o com o mesmo
cuidado com que ele a observava, aparentemente com o sorriso. "Vamos
fazer o que costumamos fazer sempre", continuou Lisa, "Está bem", repetiu
Carmen, mas olhando-o agora com uma versão bastante mais séria do
sorriso. Quando se voltou para as letras de plástico magnetizadas dispostas
no pequeno quadro baixo e Lisa lhe pediu que começasse a deslizá-las para
formar as palavras "mala", "mesa", "mimo" e "moda" — "Digo-te sempre",
explirava Lisa, "que tens de olhar para as primeiras letras. Vamos, lê-nos as
primeiras letras, indica-as com o dedo" -, Carmen começou a virar
intermitentemente a cabeça, e depois o corpo todo, para olhar para Coleman
e permanecer em contacto com ele. "Tudo a distrai", disse Lisa, em voz
baixa, ao pai. -vamos lá, menina Carmen. Vamos lá, minha querida. Ele é
imvisível." "O que é isso" "Invisível", repetiu Lisa. "Não o podes ver".
Carmen riu-se. "Isso é que posso. "Vamos. Volta para mim. As primeiras
letras. Isso. Muito bem. Mas também tens de ler o resto da palavra.
Percebes? A primeira letra ... e agora o resto da palavra. Está bem ...
"Mimo". E esta tu sabes. Tu sabes esta. "Moda". Muito bem" No dia da
visita de Coleman fazia vinte e cinco semanas que começara o programa de
Recuperação da Leitura, e embora Carmen tivesse feito progressos, não
tinham sido muitos. Ele lembrava-se das dificuldades que ela tivera com a
palavra "teu" do livro de histórias ilustrado do qual estava a ler em voz alta.
Esfregara os olhos, torcera e enrolara a frente da camisola, enfiara as pernas
à volta da trave da cadeira em miniatura e, lenta mas decididamente, fora
afastando o rabo para a beira do assento da cadeira -- e continuara incapaz
de reconhecer ou pronunciar "teu". "Estamos em Março, pai. Vinte e cinco
semanas. É tempo de mais para continuar a ter dificuldades com teu". É
tempo de mais para continuar a confundir "sabia" com "subia", embora,
nesta altura do campeonato, eu já me contentasse com "teu". Em princípio,
o programa deve durar vinte semanas e acabar. Ela frequentou a pré-
primária e devia ter aprendido a identificar à vista algumas palavras básicas.
Mas quando lhe mostrei uma lista de palavras em Setembro — e nessa
altura ela ia entrar na primeira classe -, perguntou-me: "O que é isto?" Não
sabia sequer o que eram palavras. E quanto a letras o panorama não era
melhor: não conhecia o h, não conhecía o j, confundia o u com o c. Isso
compreendia-se, em certa medida, pois há uma semelhança visual, mas
passaram vinte e cinco semanas e o problema subsiste, O m e o u, o i e o l,
o g e o d continuam a ser um problema para ela. Tudo é um problema para
ela. "Pareces muito desanimada com a Carmen, Lisa" "Bem, meia hora,
todos os dias? É muito .usíno. É muito trabalho. Ela devia ler em casa, mas
em casa há uma irmã de 16 anos que acaba de ter um bebé e os pais ou se
esquecem ou não estão para se ralar. Os pais são imigrantes, tiveram de
aprender uma segunda língua e não é fácil para eles ler aos filhos em Illglês,
mas Carmen também nunca aprendeu a ler em espanhol. E eu tenho de lidar
com isto dia após dia. Preciso de ver se as crianças sabem manejar um livro,
dou-lhes um, como esse, um livro com uma grande ilustração colorida
debaixo do título, e peço: "Mostrem-me a frente do livro." Algumas sabem,
mas a maioria não sabe. As letras impressas não significam nada para elas.
E", acrescentou com um sorriso exausto e muito, muito menos cativante do
que o de Carmen, "supostamente as minhas crianças não são inaptas para
aprender Carmen não olha para as palavras enquanto eu estou a ler. Não lhe
interessa. E é por isso que chegamos estoirados ao fim do dia. Outros
professores têm tarefas difíceis, bem sei, mas ao fim de um dia de Carmen,
após Carmen, após Carmen, chegamos a casa emocionalmente esgotados.
Nessa altura, eu não consigo ler. Não consigo sequer usar o telefone. Como
qualquer coisa e vou para a cama. Gosto destas crianças. Amo-as. Mas isto
é pior do que esgotante, isto mata-me"
Agora Faunia estava sentada na relva, a beber o resto do refrigerante,
enquanto um dos rapazes — o mais novo, mais magro e com o ar mais
agarotado de todos, com uma barba incongruente no queixo e usando, com
o uniforme castanho, um lenço vermelho aos quadrados e o que pareciam
botas de cowboy de tacão alto — recolhia todos os restos do almoço e os
metia num saco de lixo, e os outros três estavam um pouco afastados, de pé
ao sol, a fumar um último cigarro antes do regresso ao trabalho.
Faunia estava só. E calada, agora. Sentada com ar grave e com a lata
vazia da bebida, a pensar em quê? Nos dois anos passados como criada de
mesa na Florida, quando tinha 16 e 17 anos, nos homens de negócios
reformados que costumavam aparecer para almoçar sem as mulheres e lhe
perguntavam se não gostaria de viver num bonito apartamento, ter roupas
bonitas e um bonito Pinto novo, conta aberta nas lojas de roupa Bal
Harbour, na joalharia e no salão de beleza, tudo isso em troca, apenas, de
ser namorada deles algumas noites por semana e, de vez em quando, aos
fins-de-semana? Recebeu não uma, mas duas, três, quatro propostas desse
género só no primeiro ano. E depois a proposta do cubano. Cem dólares por
cabrito limpos, livres de impostos. Para uma loura magra de mamas
grandes, uma miúda alta e bonita como ela, expedita, ambiciosa e com
garra, encadernada numa mini-saia, num top e botas, seria fácil facturar mil
dólares por noite. Um ano ou dois e, se quisesse, reformava-se, poderia dar-
se a esse luxo. "E não aceitaste?", perguntou Coleman. "Não. Ná! Mas não
julgues que não pensei no assunto. Toda aquela merda do restaurante,
aqueles tipos nojentos, os cozinheiros chalados, um cardápio que eu não
sabia ler, pedidos que não sabia escrever e me obrigavam a fixar tudo na
cabeça... não era nada fácil. Mas o facto de não saber ler não significa que
não saiba contar. Sei somar. Sei subtrair. Não sei ler palavras, mas sei quem
foi Shakespeare. Sei quem foi Einsteín. Sei quem ganhou a Guerra Civil.
Não sou estúpida, sou apenas iletrada. Não é uma grande diferença, mas é
uma diferença. Com números a história é outra. De números, podes crer,
percebo. Não julgues que não pensei que talvez a ideia não fosse nada má.
Mas Coleman não precisava de que ela o esclarecesse a esse respeito. Não
só achava que, com 17 anos, ela pensara que ser prostituta podia ser uma
boa ideia como também que era uma ideia que ela não se limitara a
considerar.
"Que fazemos com as crianças que não sabem ler?", perguntara-lhe Lisa,
no seu desespero. "É a chave para tudo e, por isso, temos de fazer alguma
coisa, mas esse esforço está a consumir-me. Neste campo, diz-se que o
segundo ano é melhor, e o terceiro ainda melhor. Este é o meu quarto ano"
"E não é melhor?", perguntara ele. "É difícil. É tão difícil. Cada ano é mais
difícil. Mas que podemos fazer se ensinar uma criança de cada vez não
resultar" Bem, o que ele fez com a miúda que não conseguia ler foi torná-la
sua amante. O que Farley fez foi torná-la seu saco de porrada. O que o
cubano fez foi torná-la sua puta, ou uma das suas putas — pelo menos era
isso que Coleman pensava a maior parte das vezes. E sua puta durante
quanto tempo? Era nisso que Faunia estava a pensar antes de se levantar
para regressar ao North Hall e acabar a limpeza dos corredores? Estava a
pensar no tempo que tudo ISSO durara? A mãe, o padrasto, a sua fuga do
padrasto, os lugares no Sul, os lugares no Norte, os homens, as tareias, os
empregos, o casamento, a herdade, as vacas, a falência, os filhos, os seus
dois filhos mortos. Não admirava que meia hora ao sol, partilhando uma
piza com os rapazes, lhe parecesse o paraíso.
— Este é o meu amigo Coleman, Faunia. Ele vai só assistir.
— Está bem — responde Faunia. Traz um vestido de bombazina verde,
soquetes brancos muito limpos e sapatos pretos reluzentes, está longe de ter
a desenvoltura de Carmen; éuma menina serena, com boas-maneiras,
sempre um pouco desanimada, uma bonita críança caucasiana da classe
média com cabelo louro comprido preso aos lados por dois ganchos em
forma de borboleta e que, ao contrário de Carmen, não mostra nenhum
interesse, nenhuma curiosidade por ele, depois de lhe ser apresentado.
"Olá", murmura, tímida, e volta a deslocar as letras magnetizadas, juntando
os w's, os t's, os n's os s's e agrupando, noutra parte do quadro, todas as
vogais.
— Serve-te das duas mãos — diz-lhe Lisa, e ela obedece. — Que letras
são estas? Faunia lê-as, sem se enganar em nenhuma.
— Vamos fazer uma coisa que ela sabe — diz Lisa ao pai. — Escreve
"meu", Faunia. Faunia obedece. Faunia junta as letras de "meu".
— Muito bem. Agora uma coisa que ela não sabe. Escreve "teu".
Faunia olha atenta e demoradamente para as letras, mas não acontece
nada. E ela não diz nada. Espera. Espera que aconteça a coisa seguinte.
Toda a sua vida tem esperado que aconteça a coisa seguinte. E acontece
sempre.
— Quero que mudes a primeira parte, Faunia. Vamos lá. Tu sabes. Qual é
a primeira parte de "teu"?
— T — Afasta o m do princípio da palavra e põe o t no seu lugar.
— Muito bem. Agora escreve "seu".
Ela obedece. Seu.
— Está certo. Agora lê com o teu dedo.
Faunia passa o dedo por baixo de cada letra enquanto pronuncia
claramente o respectivo som:
— Esse ... e ... u.
— Ela é rápida — comenta Coleman.
— Sim, mas isto é para ser rápido.
Há três outras crianças com três outros professores noutros lugares da
grande sala, de modo que Coleman ouve, à sua volta, vozes fracas a ler alto,
a subir e descer nos mesmos padrões infantis independentemente do
conteúdo, e ouve os outros professores dizer: "Tu sabes essa ... u, de "uva"
... u, u ... ", e "Tu sabes isso ... er, tu sabes, er", e "Tu sabes, él ... bem,
muito bem", e quando olha em redor vê que todas as outras crianças que
estão a ser ensinadas também são Faunia. Há mapas com o alfabeto por
todo o lado, com imagens de objectos a ilustrar cada letra, e há por todo o
lado letras de plástico, para poderem ser pegadas com a mão, letras de cores
diferentes para ajudarem a formar as palavras foneticamente, uma letra de
cada vez, e há por todo o lado livros simples que contam as histórias mais
simples: " ... na sexta-feira fomos à praia. No sábado fomos ao aeroporto"
"Pai Urso, o bebé Urso está consigo? "Não", respondeu o pai Urso. "De
manhã um cão ladrou a Sara. Ela assustou-se. "Tenta ser uma menina
corajosa, Sara", disse a mãe.. Além de todos estes livros, todas estas
histórias, todas estas Saras, todos estes cães, todos estes ursos e todas estas
praias há quatro professores, quatro professores todos para Faunia, e mesmo
assim não conseguem ensiná-la a ler ao nível correspondente à sua classe.
— Ela está na primeira classe — diz-lhe Lisa. — Esperamos que, se
trabalharmos os quatro juntos com ela todo o dia e todos os dias, no fim do
ano conseguiremos acelerá-la. Mas é difícil conseguir que se motive por si
mesma.
— É uma bonita menina — diz Coleman.
— É? Acha-a bonita? Gosta daquele tipo? É esse o seu tipo, pai, a
menina bonita com dificuldade em aprender a ler; de cabelo louro
comprido, vontade fraca e ganchos com borboletas?
— Eu não disse isso.
— Não precisou de dizer. Observei-o com ela. — Lisa aponta em redor
da sala, para as quatro Faunias sentadas em silêncio diante do quadro, a
formar e a corrigir com letras de plástico coloridas as palavras "meu", "teu"
e "seu". — A primeira vez que ela soletrou "seu" com o dedo, não
conseguiu desviar os olhos da miúda. Bem, se isso o excita, devia ter estado
aqui em Setembro. Em Setembro ela soletrou mal o nome e o primeiro
apelido. Tinha acabado de sair da pré-primária e a única palavra da lista que
reconheceu foi "seu". Não compreendia que as letras contêm uma
mensagem. Não sabia distinguir a página esquerda da página direita. Não
conhecia Caracolinhos Louros e os Três Ursos. "Conheces Caracolinhos
Louros e os Três Ursos, Faunia?" "Não" O que significa que a sua
experiência na pré-primária — pois é isso que aprendem lá, contos de fadas
e canções de embalar — não foi muito boa. Hoje conhece O Capuchinbo
Vermelho, mas naquele tempo ... Esqueça. Oh, se tivesse conhecido Faunía
em Setembro, logo depois de ter falhado na pré-primária, garanto-lhe, pai,
que ela o teria enlouquecido.
Que fazemos com a criança que não sabe ler? A criança que está a chupar
alguém numa pick-up, no caminho para casa, enquanto no primeiro anelar
de um pequeno apartamento em cima de uma garagem os filhos pequenos
estão supostamente a dormir, com um calorífero aceso — duas crianças sem
ninguém a olhar por elas, um aquecedor a petróleo aceso e ela com o tipo
na pick-up dele. A miúda fugitiva desde os 14 anos, a vida inteira na
cavatina da sua inexplicável vida. A miúda que casa pela estabilidade e pela
protecção que lhe dará o marido, um ex-combatente marado da cabeça
pelos combates que lhe salta ao pescoço se ela se vira sequer na cama,
enquanto dorme. A miúda que é falsa, a miúda que se esconde em si mesma
e mente, a miúda que não sabe ler, mas que sabe ler, que finge que não sabe
ler, que assume voluntariamente essa insuficiência para melhor representar
o papel de membro de uma subespécie a que não pertence nem precisa de
pertencer, mas a que, por todas as razões erradas, quer fazê-lo acreditar que
pertence. A miúda cuja existência se tornou uma alucinação aos 7 anos,
uma catástrofe aos 14 e uma calamidade depois disso, cuja vocação não é
ser criada de mesa, nem prostituta, nem trabalhadora rural, nem funcionária
da limpeza, mas sim e para sempre a enteada de um padrasto lascivo e a
filha desprotegída de uma mãe obcecada consigo mesma, a miúda que
desconfia de toda a gente, vê um vigarista em toda a gente e, no entanto,
não está protegida contra coisa nenhuma, a miúda cuja capacidade de
resistir, sem se intimidar, é enorme e, no entanto, tem sobre a vida uma
influência insignificante, a aguerrida filha favorita do infortúnio, a miúda a
quem pode acontecer, e aconteceu, tudo quanto há de execrável e cuja sorte
não mostra qualquer sinal de mudar, mas que o excita e estimula como
ninguém depois de Steena e que, moralmente falando, não é a pessoa mais
e, sim, a menos repugnante que ele conhece, a única por quem se sente
atraído — por ter estado durante tanto tempo apontado na direcção oposta, e
por tudo o que perdeu por ter ido na direcção oposta, e porque o sentimento
subjacente de rectidão que o controlou antes é exactamente o mesmo que o
impele agora -, a inverosímil criatura íntima com quem partilha uma união
que não é menos espiritual do que física, que é tudo menos um brinquedo
sobre o qual arremessa o corpo duas vezes por semana a fim de sustentar a
sua natureza animal, que, mais do que qualquer outra pessoa no mundo, é
para ele como um camarada-de-armas.
E que fazemos com uma criança assim? Procuramos o mais depressa
possível uma cabina telefónica e corrigimos o nosso erro idiota.

Ele julga que ela está a pensar há quanto tempo tudo aquilo acontece, a
mãe, o padrasto, a fuga do padrasto, os lugares no Sul, os lugares no Norte,
os homens, as tareias, os empregos, o casamento, a herdade, as vacas, a
falência, os filhos, os filhos mortos ... e talvez esteja, de facto. Talvez esteja,
mesmo que, sozinha agora na relva enquanto os rapazes fumam e limpam
os restos do almoço, julgue que está a pensar em gralhas. Pensa muitas
vezes em gralhas. Elas estão em todo o lado. Empoleiram-se nos bosques
não longe da cama onde ela dorme, estão no pasto quando lá vai afastar a
cerca para as vacas e, hoje, estão a grasnar em todo o campus e, por isso,
em vez de pensar o que está a pensar do modo que Coleman pensa que ela
está a pensar, pensa na gralha que costumava andar nas imediações do
armazém de SeeIey Falls quando, depois do fogo e antes de se mudar para a
herdade, alugou lá um quarto mobilado para tentar esconder-se de Farley,
pensa na gralha que andava pelo parque de estacionamento entre o posto
dos correios e o armazém, na gralha que alguém transformara em mascote
porque tinha sido abandonada ou porque a sua mãe tinha sido morta — ela
nunca soubera o que a tornara órfã. E agora fora abandonada pela segunda
vez e habituara-se a andar pelo parque de estacionamento por onde quase
toda a gente passava ao longo do dia. Esta gralha causava muitos problemas
em Seely Falls porque começou a mergulhar a pique sobre as pessoas que
entravam nos correios, atraída pelos travessões do cabelo das meninas
pequenas e outros objectos assim — como é próprio das gralhas, visto ser
da sua natureza coleccionar coisas brilhantes, pedaços de vidro, etc. — e,
por isso, a encarregada do posto, depois de consultar algumas pessoas
interessadas da cidade, resolveu levá-la para a Auclubon Society, onde a
meteram numa gaiola, da qual só a deixavam sair de vez em quando, para
voar; não a soltavam porque um pássaro que se habituou a andar por um
parque de estacionamento não pode, pura e simplesmente, adaptar-se à vida
selvagem. A voz daquela gralha. Faunia lembrava-se dela a toda a hora, de
dia ou de noite, acordada, a dormir ou com insônias. Era uma voz estranha.
Não se parecia com a das outras gralhas, provavelmente porque não
crescera entre elas. Logo após o fogo, costumava ir visitá-la à Auduhon
Society, e quando a visita acabava e me voltava para sair; ela chamava-me
com a sua voz. É verdade que se encontrava fechada numa gaiola, mas,
sendo como era, estava melhor assim. Havia outros pássaros em gaiolas que
as pessoas tinham levado para lá porque já não podiam viver em liberdade.
Havia duas pequenas corujas, umas coisinhas sarapintadas que pareciam
brinquedos. Eu também costumava visitá-las. E um gavião que soltava um
grito agudo. Bonitos pássaros. Depois mudei-me para aqui e, sozinha como
estava, como estou, aprendi a conhecer as gralhas como nunca as conhecera
antes. E elas a mim. O seu sentido de humor. Será disso que se trata? Talvez
não seja sentido de humor, mas a mim é o que me parece. O seu andar. A
sua maneira de esconder a cabeça debaixo da asa. O modo como me gritam
se não tenho pão para lhes dar, Faunia, vai buscar o pão! Andam todas
empertigadas. Armam em mandonas com os outros pássaros das
proximidades. No sábado, depois de ter conversado com o falcão de cauda
vermelha na Cumberland, voltei para casa e ouvi duas gralhas no pomar.
Compreendi, pelo seu grasnar assustado, que se passava alguma coisa. E
não me enganava: estavam lá três pássaros, duas gralhas grasnavam e
enxotavam um falcão. Talvez o mesmo com o qual eu estivera a falar
minutos antes. Enxotavam-no. Era evidente que ele estava a tramar alguma
coisa. Mas enfrentar um falcão? Seria boa ideia? Elas podiam marcar
pontos aos olhos das outras gralhas, mas não sei se, no seu lugar, me
atreveria. Mesmo sendo duas, conseguiriam lear a melhor a um falcão? Os
falcões são uns estupores agressivos. Muito hostis. Uma vez vi uma
fotografia de uma gralha a ir direita a uma águia e grasnar-lhe como se
ladrasse. A águia permanecia impávida, nas tintas. Como se nem sequer a
visse. Mas a gralha é um espectáculo. A sua maneira de voar. Não são tão
bonitas como os corvos, quando eles voam e fazem aquelas belas
acobracias maravilhosas. As gralhas têm de levantar do chão uma grande
fuselagem, mas apesar disso não precisam necessariamente de correr para
ganhar impulso, antes de descolarem. Bastam alguns passos. Tenho
observado isso. É mais uma questão de esforço. Fazem um enorme esforço
e levantam voo. Havia milhões delas, quando levava os miúdos para
comermos no Friendly. Há quatro anos. No Friendly da East Main Street de
Blackwell. Ao fim da tarde, antes de escurecer. Milhões delas no parque de
estacionamento. A assembleia das gralhas no Fríendly. Que ligação há entre
gralhas e parques de estacionamento? De que se trata? Nunca saberemos
nada a esse respeito, nem de tudo o mais. Comparados com as gralhas,
outros pássaros parecem um bocado estúpidos, desinteressantes. É verdade
que os galos azuis têm aquele espantoso ressalto. como se andassem num
trampolim. É bonito. Mas as gralhas podem fazer o ressalto e o impulso de
peito. Impressionante. Viram a cabeça da esquerda para a direita, a avaliar o
espaço. Oh, são um espectáculo. São o máximo. O grasnar delas. O grasnar
ruidoso. Escutem só. Oh, adoro. Permanecer em contacto, assim. O grito
frenético, que significa perigo. Adoro isso. Saio a correr, quando o ouço.
Podem ser cinco horas da manhã que não me importo. Soa o grito frenético,
saímos a correr e podemos ter a certeza de que o espectáculo vai começar a
qualquer momento. Quanto aos outros gritos, não posso dizer que sei o que
significam. Talvez nada. Às vezes é um grito breve. Outras é gutural, A não
confundir com o grito do corvo. Gralhas acasalarn com gralhas e corvos
com corvos. É espantoso que nunca se confundam. Pelo menos que eu
saiba. Quem diz que são horrendos pássaros carniiceiros — e não falta
quem diga — não regula bem. Eu acho-os belos. Oh, sim, muito belos. O
seu lustro. Os cambiantes. Tão pretos, tão pretos que é possível distinguir
tons violeta. As suas cabeças. Aquele tufo de pêlos no nascer do bico,
aquela espécie de bigode, aqueles pêlos que saem das penas. Provavelmente
tem um nome, mas o nome não tem importâncía. Nunca tem. O que importa
é que está ali. E ninguém sabe porquê. É como tudo o mais: está
simplesmente ali. Os olhos de todos são pretos. Têm todos olhos pretos. E
garras pretas. Que sensação causará voar? Os corvos sobem muito alto,
planam, enquanto as gralhas parecem ir apenas aonde vão. Tanto quanto me
parece, não se limitam a voar à roda. Os corvos que subam e planem. Os
corvos que galguem quilómetros, batam recordes e conquistem os prémios.
A~ gralhas têm de ir de um lugar para outro. Ouvem que eu tenho pão, por
isso estão aqui. Ouvem que alguém, três quilómetros mais abaixo, tem pão,
por isso estão lá. Quando lhes atiro pão, há sempre uma que está de atalaia e
outra que podemos ouvir, ao longe, e transmitem sinais de um lado para o
outro para que todas saibam o que está a acontecer. Custa a acreditar que
todas estejam atentas para se avisarem umas às outras, mas é isso que
parece. Há uma história maravilhosa que nunca esqueci e me foi contada,
quando era pequena, por uma amiga a quem fora contada pela mãe. É a
respeito de umas gralhas tão espertas que descobriram uma maneira de
levar umas nozes que tinham, e não podiam partir, para a auto-estrada.
Observavam os faróis, as luzes de trânsito, percebiam quando os carros iam
arrancar — eram inteligentes ao ponto de saberem como elas funcionavam
— e colocavam as nozes mesmo à frente dos pneus, para que as partissem,
e assim que a luz mudava desciam. Na altura, acreditei. Nesse tempo
acreditava em tudo. E agora que as conheço e não conheço mais ninguém,
acredito de novo. Eu e as gralhas. A equipa perfeita. Fica com as gralhas e
estás garantida. Ouvi dizer que alisam as penas umas das outras. Mas nunca
vi. Tenho-as visto muito juntas e pergunto-me o que estarão a fazer. No
entanto, nunca as vi, realmente, alisarem as penas umas das outras. Nem
mesmo alisarem as próprias penas. Mas a verdade é que moro ao lado do
ninho e não lá dentro. Embora gostasse de lá morar. Embora preferisse ser
uma delas. Oh, sim, com toda a certeza. Não tenho qualquer dúvida a esse
respeito. Preferia, de longe, ser uma gralha. Elas não precisam de se
preocupar com mudanças para se afastarem de alguém ou de alguma coisa.
Vão-se embora e está o caso arrumado. Não têm de fazer a mala. Vão-se
embora e já está. Quando são atingidas por alguma coisa, é o fim, acabou.
Rasgam uma asa, acabou. Partem uma perna, acabou. É muito mais prático
e melhor do que isto. Talvez eu volte um dia como uma gralha. O que fui
antes de voltar como isto? Fui uma gralha! Sim! Fui uma gralha! E disse:
"Meu Deus, quem me dera ser aquela rapariga de mamas grandes lá de
baixo. O meu desejo foi satisfeito e agora, Jesus, quero voltar ao meu
estatuto de gralha. Bom nome para uma gralha. Estatuto. Bom nome para
qualquer coisa grande e preta. Diz bem com o seu andar empertigado.
Estatuto. Quando era criança reparava em tudo. Gostava de pássaros. Tive
sempre um fraco por gralhas, falcões e corujas. Ainda vejo as corujas à
noite, quando regresso de carro de casa de Coleman. Não resisto, apeio-me
e falo com elas. Não devia. Devia ir direita para casa antes que aquele
sacana me mate. Que pensam as gralhas quando ouvem os outros pássaros
cantar? Acham estúpido. E é. Grasnar. Isso é que está bem. Não combina,
um pássaro que anda empertigado cantar uma terna cançãozinha. Não,
minhas lindas, grasnem, grasnem com todas as ganas. Isso é que está certo,
porra: grasnar com todas as ganas, não ter medo de nada e comer tudo
quanto está morto. Para voar assim, precisam enfardar uma quantidade de
vítimas da estrada por dia. Nem se dão ao trabalho de arrastá-las de lá,
comem-nas mesmo na estrada. Esperam até ao último momento, quando um
carro se aproxima, antes de levantarem voo e se afastarem, mas não para tão
longe que não possam saltar de novo e cravar o bico no petisco, assim que o
carro passa. Comer no meio da estrada. Pergunto a mim mesma o que
acontece quando a carne apodrece. Talvez não apodreça para elas. Talvez
seja esse o significado de ser um pássaro necrófago. Elas e os urubus: é esse
o seu trabalho. Encarregam-se de fazer desaparecer da floresta e da estrada
todas aquelas coisas com as quais não queremos ter nada a ver. Nenhuma
gralha passa fome em todo este mundo. Nunca lhes falta uma refeição. Se a
comida apodrece, não vemos a gralha fugir dela. Se há morte, as gralhas
estão presentes. Se há alguma coisa morta, elas aparecem e encarregam-se
dela. Gosto disso. Gosto muito disso. Vão comer aquele raccoon custe o
que custar. Esperam que a camioneta passe e lhe rache a espinha, depois
voltam e chupam todo o bom recheio necessário para levantar aquela bonita
carcaça preta do solo. É verdade, admito, têm um comportamento estranho,
que lhes é próprio. Como todas as coisas. Já as vi lá em cima, naquelas
árvores, lidas juntas, a falar umas com as outras, e é claro que se passa
alguma coisa. Mas nunca saberei o quê. Existe ali uma estrutura muito
forte. Nem faço a mínima ideia se elas próprias sabem do que se trata.
Talvez seja tão isenta de sentido como tudo o mais. Aposto, no entanto, que
não é esse o caso e que faz um milhão de vezes mais sentido do que
qualquer porra cá em baixo. Ou não? Poderá ser apenas um faz-de-conta
que parece qualquer outra coisa mas não é? Talvez não passe tudo de um
tique genético. Ou de um loque. Imaginem se as gralhas estivessem no
poder. Seria a mesma merda de sempre? O que têm de especial é que nelas
tudo é prático. No voo. No falar. Até na cor. Todo aquele negrume. Nada
senão negrume. Talvez eu tenha sido uma gralha, talvez não tenha sido.
Penso que às vezes tenho a certeza de que já o sou. Sim, há meses que
acredito, ínterrníicntemente, nisso. Por que não? Se há homens que estão
fechados em corpos de mulheres e mulheres que estão fechadas em corpos
de homens, por que não posso eu ser uma gralha fechada neste corpo? Sim,
e onde está o médico que me vai fazer o que eles fazem para me deixar
sair? Onde conseguirei a cirurgia que me permita ser o que sou? Com quem
devo Ltlar? Aonde tenho de ir, o que faço e corno saio, porra?
Sou uma gralha. Sei que sou. Sei que sou!

No edifício da associação de estudantes, que ficava a meio-caminho, a


descer, do North Hall, Coleman encontrou um telefone público no corredor
defronte da cafetaria onde os estudantes do programa para idosos estavam a
almoçar. Distinguiu, pelas portas duplas, as mesas compridas onde os casais
almoçavam numa alegre mistura.
Jeff não estava em casa. Eram cerca das dez da manhã, em Los Angeles,
e quem o atendeu foi o gravador de chamadas. Por isso procurou na agenda
o número do telefone do filho da universidade, esperando que ele não
estivesse jáa dar aulas. O que o pai queria dizer ao filho mais velho tinha de
ser dito imediatamente. A última vez que telefonara a Jeff, num estado
parecido com aquele em que se encontrava agora, tinha sido para lhe dizer
que Iris morrera "Eles mataram-na. Estavam decididos a matar-me a mim e
mataram-na a ela" Disse a mesma coisa a toda a gente, e não apenas nas
primeiras vinte e quatro horas. Foi o princípio da desintegração: tudo ditado
pela raiva. Mas isto agora era o fim. O fim: eis a notícia que tinha para dar
ao filho. E a si mesmo. O fim da expulsão da sua vida anterior. Contentar-se
com uma coisa menos grandiosa do que o desterro auto-infligido e o desafio
arrasador que isso representa para a força de um homem. Viver com o
próprio fracasso de uma maneira modesta, de novo organizado como um ser
racional, e expungir o flagelo e a indignação. Irredutível, mas calmamente.
Pacificamente. Numa contemplação nobre: eis a receita, como Faunia
gostava de dizer. Viver de um modo que não que não traga Filoctetes à
memória. Não tem de viver como uma das personagens trágicas do seu
curso. Que o primitivo pareça uma solução não é novidade: parece sempre.
Tudo muda com o desejo. É a reacção a tudo o que foi destruído. Mas optar
por prolongar o escândalo eternizando o protesto? A omnipresença da
minha estupidez. A omnipresença da minha perturbação. E o
sentimentalismo mais abjecto. Recordar nostalgicamente Steena. Dançar
jocosamente com Nathan Zuckerman. Fazer-lhe confidências. Desfiar
recordações com ele. Deixá-lo ouvir-me. Aguçar o sentido de realidade do
escritor. Alimentar a grande pança aproveitadora que é a mente do
romancista, sempre pronta para transformar qualquer catástrofe em escrita.
A catástrofe é carne de canhão para ele. Mas em que posso eu transformar
isto? Está colado a mim. Tal qual é. Sem linguagem, forma, estrutura,
significado — sem as unidades, a catarse, sem tudo. Mais imprevisto não
transformado. E por que haveria alguém de querer mais? No entanto,
Faunia, a mulher, é o imprevisto. Orgasticamente entrelaçado no
imprevisto. Convenções: intoleráveis. Princípios éticos: intoleráveis.
Contacto com o seu corpo: o único princípio. Não há nada mais importante.
E a força visceral do seu sarcasmo. Extrínseca, estranha até à medula. O
contacto com isso. A obrigação de sujeitar a minha vida à dela e aos
caprichos da sua vida. À inconstância da sua vida. À irresponsabilidade da
sua vida. À singularidade da sua vida. A deleitação deste eros elementar.
Abate o martelo de Faunia sobre tudo o que sobreviveu, todas as exaltadas
justificações, e abre à martelada o caminho para te libertares. Para me
libertar de quê? Da glória estúpida de ter razão. Da ridícula demanda do
significado. Da campanha interminável pela legitimidade. O ataque violento
da liberdade aos 71 anos, a liberdade de deixar uma vida inteira para trás,
fenómeno também conhecido por loucura Aschenbachiana. "E antes do
anoitecer", últimas palavras de Morte em Veneza, "o mundo recebeu,
abalado e respeitoso, a notícia da sua morte. Não, ele não tem de viver
como uma personagem trágica de nenhum curso.
— Jeff, sou eu. O teu pai.
— Viva, como vai isso?
— Jeff, eu sei por que não tenho tido notícias tuas, nem do Michael. Do
Mark não esperava tê-las e a Lisa desligou-me o telefone na cara, a última
vez que lhe liguei.
— Ela telefonou-me. E contou-me.
— Ouve, Jeff, o meu caso com aquela mulher acabou.
— Acabou? Porquê?
Coleman pensa: Porque não há esperança para ela. Porque os homens a
têm espancado desalmadamente. Porque os seus filhos morreram num
incêndio. Porque trabalha como empregada de limpeza. Porque não tem
instrução e diz que não sabe ler. Porque anda em fuga desde os 14 anos.
Porque nem sequer me pergunta: "Que estás a fazer comigo?" Porque sabe
o que todos fazem com ela. Porque já viu tudo e sabe que não há esperança.
Mas a única coisa que diz ao filho é:
— Porque não quero perder os meus filhos.
Jeff respondeu, com o mais meigo dos risos:
— Por muito que tentasse, não conseguiria. A mim não consegue, com
certeza, perderme. E também não acredito que perdesse Mike ou Lisa. Com
Markie o caso muda de figura. Markie anseia por alguma coisa que nenhum
de nós lhe pode dar. Não só o pai, nenhum de nós. É tudo muito triste, o que
se passa com ele. Mas pensar que nós estávamos a perdêlo, a si? Que temos
estado a perdê-lo desde que a mãe morreu e o pai se demitiu da
universidade? Isso é uma coisa com que todos nós temos vivido. Nenhum
de nós tem sabido o que fazer. Não tem sido fácil comunicar consigo desde
que entrou em pé-de-guerra com a Universidade.
— Tenho consciência disso. Eu entendo. — Mas ao fim de dois minutos
de conversa o assunto já se tornara insuportável para ele. O seu razoável,
supercompetente e sereno filho mais velho, o mais equilibrado de todos, a
falar calmamente do problema da família com o pai que era o problema,
acabava por ser tão terrível de suportar como o seu irracional filho mais
novo, a enfurecer-se com ele e a perder a cabeça. Exigira uma compreensão
excessiva da parte dos filhos, dos seus próprios filhos! — Eu entendo —
repetiu, e o facto de entender tornava as coisas ainda mais difíceis.
— Espero que não tenha acontecido com ela nada de muito terrível, pai.
— Com ela? Nao. Achei apenas que bastava. — Não se atreveu a
acrescentar mais nada, com receio de começar a dizer alguma coisa muito
diferente.
— Ainda bem. Sinto-me aliviadíssimo por não ter havido repercussões,
se é isso que está a dizer. É óptimo.
— Repercussões?
— Não estou a perceber-te. Porquê repercussões?
— Está livre, completamente livre? Voltou a ser o que era? Há anos que
não me parece tão bem, a julgar pela sua voz. Mas o que interessa é que
telefonou. Eu estava à espera, tinha esperança de que telefonasse, e agora
telefonou. Não é preciso dizer mais nada. Voltou Era só isso que nos
preocupava.
_ Não estou a perceber, Jeff. Esclarece-me. Não estou a perceber esta
conversa. Repercussões de quê?
Jeff fez uma pausa antes de responder, e quando falou foi com relutância.
— Do aborto. Da tentativa de suicídio.
— De Faunia?
— Sim.
— Ela fez um aborto? Tentou suicidar-se? Quando?
— Pai, em Athena toda a gente sabia. Foi por isso que ficámos a saber.
— Toda a gente? Quem é toda a gente?
— Ouça, pai, se não há repercussões ...
— Isso nunca aconteceu, rapaz, e é por isso que não há "repercussões".
Nunca aconteceu. Não houve nenhum aborto, não houve nenhuma tentativa
de suicídio... que eu saiba. E que ela saiba. Mas a quem te referes, ao certo,
com esse toda a gente? Com os diabos, ouves uma história dessas, uma
história sem pés nem cabeça como essa, e não telefonas, não me perguntas?
Porquê?
— Porque não me compete perguntar-lhe. Não tenho de perguntar a um
homem da sua idade...
— Não tens, pois não? No entanto, acreditas em tudo quanto ouves a
respeito de um homem da minha idade, como dizes, por muito ridículo, por
muito maldoso que seja.
— Se me enganei, lamento sinceramente. Tem razão. Claro que tem
razão. Mas tem sido muito difícil para todos nós. Não tem sido nada fácil
comunicar consigo...
— Quem te contou isso?
— Lisa. Foi ela que ouviu falar nisso primeiro.
— Ouviu a quem?
— Através de várias fontes. Pessoas. Amigos.
— Quero nomes. Quero saber quem é esse toda a gente. Que amigos?
— Velhos amigos. Amigos de Athena.
— Os seus queridos amigos de infância. Os rebentos dos meus colegas.
Gostava de saber quem lhes terá dito a eles...
— Não houve nenhuma tentativa de suicídio?
— Não, Jeffrey, não houve. E também não houve nenhum aborto, que eu
saiba.
— Óptimo. Ainda bem.
— E se tivesse havido? E se eu tivesse engravidado essa mulher, ela
tivesse feito um aborto e a seguir tivesse tentado suicidar-se? Supõe, [eff,
que ela tinha mesmo conseguido suicidar-se. E depois? E depois, Jeff? A
amante do teu pai mata-se. E depois? Voltas-te contra o teu pai? Contra o
criminoso do teu pai? Não, não, não... voltemos atrás, recuemos um passo,
voltemos à tentativa de suicídio. Oh, gosto disso. Pergunto-me quem teve
essa ideia da tentativa de suicídio. É por causa do aborto que ela tenta o tal
suicídio? Vamos esclarecer este melodrama de que Lisa teve conhecimento
pelos seus amigos de Athena. É porque ela não quer fazer o aborto? Porque
o aborto lhe é imposto? Estou a perceber. Estou a perceber a crueldade.
Uma mãe que perdeu dois filhos pequenos num incêndio é engravidada pelo
amante. Êxtase. Uma nova vida. Outra oportunidade. Uma nova criança
para substituir as que morreram. Mas o amante... Não, diz ele, e arrasta-a
pelos cabelos para o abortador E depois — é claro -, depois de lhe ter
imposto a sua vontade, pega no corpo nu e a sangrar...
Nesta altura, jeff já tinha desligado.
Mas, nesta altura, Coleman também já não precisava de Jeff para
continuar lançado.
Bastava-lhe ver os casais do curso para idosos na cafetaría, a acabarem
de tomar o seu café antes de voltarem para as aulas, bastava-lhe ouvi-los ali,
à vontade e bem-dispostos, os idosos apropriados, como devia ser, vestidos
como devia ser e falando como devia ser, para pensar que nem mesmo as
coisas convencionais que tinha feito lhe tinham proporcionado qualquer
lenitivo. De nada servira ter sido professor, de nada servira ter sido reitor,
de nada servira ter permanecido casado, apesar de todas as dificuldades,
com a mesma mulher temível, além de ter constituído uma família, ter tido
filhos inteligentes... de nada lhe valera tudo isso. Se os filhos de outros
podiam compreender isso, não deveriam os seus compreender também?
Toda a preparação pré-escolar Tudo quanto lhes lera. Os conjuntos de
enciclopédias. A preparação antes das provas. Os diálogos ao jantar. A
ínstrução infinita, da parte de Iris e da sua parte, sobre a natureza
multiforme da vida. O aprofundamento minucioso da linguagem. Depois de
termos feito tudo isto, viram-se agora contra mim com este tipo de
mentalidade? Depois de tanta aprendizagem, tantos livros, tantas palavras e
todas as elevadas classificações nos testes de avaliação escolástica, é
insuportável. Depois de os termos tomado tanto a sério. Quando diziam
alguma tolice encarávamo-la e debatíamo-la a sério. Toda a atenção
prestada ao desenvolvimento da razão, da mente e da afinidade criativa. E
do cepticismo. Do cepticismo bem documentado. De pensar pela própria
cabeça. E depois de tudo isso acreditam no primeiro boato que ouvem?
Tanta educação desperdiçada. Nada protege contra o mais baixo nível de
pensamento. Nem sequer se perguntaram: "Mas isto parece próprio do
nosso pai? Posso imaginá-lo a proceder assim? Não, em vez disso, o pai é
um caso óbvio. Proibidos de ver televisão e, afinal, manifestam uma
mentalidade de telenovela barata. Autorizados a ler apenas os Gregos ou o
seu equivalente, e transformam a vida num folhetim vitoriano. Sempre
respondi às vossas perguntas. A todas as vossas perguntas. Nem uma ficou
sem resposta. Perguntaram pelos vossos avós, perguntaram quem eram, e eu
respondi. Morreram, os vossos avós morreram quando eu era novo. O avô
quando eu andava no liceu, a avó quando eu estava na Marinha. Quando
regressei da guerra, há muito tempo que o senhorio tinha posto tudo na rua.
Não restava nada. O senhorio disse-me que não vivia do ar, ninguém
pagava a renda, e eu senti ganas de matar o filho da puta. Álbuns de
fotografias. Cartas. Coisas da minha infância, da infância deles,
desaparecera tudo. "Onde nasceram eles? Onde moravam?" Nasceram em
Jersey. Os primeiros das suas famílias nascidos aqui. Ele era dono de um
bar. Creio que na Rússia o pai dele, o vosso bisavô, já trabalhava no ramo.
Vendia bebidas alcoólicas aos russos. "Temos tios e tias?" O meu pai tinha
um irmão que foi para a Califórnia quando eu era pequeno, e a minha mãe
era filha única, como eu. Não pôde ter mais filhos depois do meu
nascimento, eu nunca soube porquê. O irmão, o irmão mais velho do meu
pai, continuou a ser Silberzweig, que eu saiba nunca mudou o apelido. Jack
Silberzweig. Nasceu no Velho Mundo e por isso manteve o apelido. Antes
de embarcar em San Francisco, consultei todas as listas telefónicas da
Califórnia para tentar localizá-lo. Estava zangado com o meu pai, que o
considerava um preguiçoso sem préstimo e não queria nada com ele, e por
isso ninguém sabia ao certo em que cidade o tio jack vivia. Procurei em
todas as listas telefónicas. Queria dizer-lhe que o irmão tinha morrido.
Queria conhecê-lo. Era o meu único parente vivo desse lado da família,
pouco me importava que fosse um preguiçoso sem préstimo. Queria
conhecer os seus filhos, e meus primos, se os houvesse. Procurei em
Silberzweig. Procurei em Silk. Procurei em Silber. Talvez na Califórnia
tivesse mudado o nome para Silber. Não sabia. E continuo sem saber, sem
fazer a mínima ideia. Depois deixei de procurar. Quando não temos uma
família nossa, preocupamo-nos com essas coisas, mas depois tive-os a
vocês e deixei de me preocupar com o facto de ter ou não ter um tio e
primos... Cada filho ouviu a mesma história. O único a quem ela não
satisfez foi Mark. Os rapazes mais velhos não fizeram muitas perguntas,
mas os gémeos foram insistentes. -Houve outros gémeos na família?"
Suponho — creio que me disseram isso — que houve um bisavô, ou um
trisavô, que era gémeo. Contou a mesma história a Iris. Aliás, inventou-a
toda para Iris. Foi essa a história que lhe contou na Sullivan Street, quando
se conheceram, e que manteve, a matriz original. E Mark foi o único a
quem nunca convenceu. "De onde vieram os seus bisavós" Da Rússia. "Mas
de que cidade?" Eu perguntei aos meus pais, mas eles nunca pareciam ter a
certeza. Uma vez era um lugar, outra vez era outro. Aconteceu o mesmo a
uma geração inteira de judeus. Nunca sabiam, realmente. Os velhos não
falavam muito do assunto e as crianças americanas não tinham grande
curiosidade, estavam muito satisfeitas por serem americanas. Por isso, na
minha família como em muitas outras, havia uma amnésia geográfica
judaica geral. A única coisa que me diziam, quando perguntava, era -
Rússia". Mas Markie insistia, "A Rússia é gigantesca, pai. Na Rússia, ondeo
Markie não se calava. E porquê? Porquê? Não havia resposta. Markie
queria possuir o conhecimento de quem eles eram e de onde tinham vindo:
precisamente o que o pai nunca lhe poderia dizer. Terá sido por isso que se
tornou judeu ortodoxo? Será por isso que escreve os poemas bíblicos de
protesto? Será por isso que Markie o odeia tanto? Impossível. Havia os
Gittelman. Os avós Gittelman, os tios e as tias Gittelman, os pequenos
primos Gittelman espalhados por todos os cantos de Jersey. Não lhe
chegavam? De quantos parentes precisava? Também precisava de Silks e
Silberzweigs? Não tinha lógica nenhuma transformar isso num agravo. Não
podia ser! No entanto, por muito irracional que parecesse associar o
ressentimento persistente de Markie ao seu próprio segredo, não conseguia
deixar de se interrogar a esse respeito. E nunca tão angustiadamente como
desde que Jeff lhe desligara o telefone. Como explicar que os seus filhos,
que traziam nos genes as suas origens e as transmitiriam aos seus próprios
filhos, pudessem suspeitar tão facilmente de que seria capaz do pior tipo de
crueldade para com Faunia? Seria por nunca ter podido falar-lhes da sua
família? Porque lhes devia isso? Porque era errado negar-lhes esse
conhecimento? Não fazia sentido! O castigo não era aplicado tão
inconsciente ou incognoscivelmente. Não havia essa espécie de troca, de
toma lá, dá cá.
Não podia ser. E, no entanto, depois do telefonema — enquanto saía da
associação de estudantes e do campus, e durante todo o tempo que
regressou, em lágrimas, pela encosta acima -, era exactamente essa a
sensação que tinha.
E, enquanto conduzia, também não parou de recordar a ocasião em que
estivera quase a dizer a Iris. Tinha sido depois do nascimento dos gémeos.
A família estava, então, completa. Tinham conseguido — ele tinha
conseguido. Sem um sinal do seu segredo em nenhum dos seus filhos, era
como se tivesse sido libertado desse segredo. A euforia resultante de ter
sido capaz, de ter conseguido, colocou-o à beira de revelar tudo. Sim,
presentearia a mulher com a maior dádiva que possuía: diria à mãe dos seus
quatro filhos quem era, realmente, o pai deles. Contaria a verdade a Iris.
Isso mostrava quanto estava emocionado e aliviado, como sentia a terra
bem firme debaixo dos pés depois de ela ter tido os seus bonitos gémeos, de
ele levar Jeff e Mikey ao hospital para verem o novo irmãozinho e a nova
irmãzinha e de a mais assustadora apreensão a respeito ele todos eles ter
sido erradicada da sua vida.
Mas nunca deu a Iris esse presente. Foi salvo de fazê-lo — ou
amaldiçoado por deixar de fazê-lo — pelo cataclismo que se abateu sobre
uma querida amiga da mulher, a sua colega mais íntima da direcção da
Associação Artística, uma bonita e distinta aguarelista amadora chamada
Claudia McChesney, quando se descobriu que o marido, proprietário da
maior empresa de construção do condado, tinha, também ele, um espantoso
segredo: uma segunda família. Havia cerca de oito anos que Harvey
McChesney mantinha uma mulher anos mais nova do que Claudia, uma
contabilista da fábrica de cadeiras situada perto da Taconic, com a qual
tinha tido dois filhos, de 4 e 6 anos, que vivia numa pequena cidade
próxima do outro lado da fronteira do Massachusetts, no estado de Nova
Iorque, uma segunda família que visitava todas as semanas, mantinha e
parecia amar, e acerca da qual nenhum dos McChesney de Athena sabia
nada até ao dia em que um telefonema anónimo — provavelmente de um
dos concorrentes do ramo da construção civil de Harvey — revelou a
Claudia e aos seus três filhos adolescentes o que ele fazia quando não
estava a trabalhar. Nessa noite Claudia foi-se abaixo, desmoronou-se por
completo e tentou cortar os pulsos, e foi Iris quem, a partir das três da
manhã e com a ajuda de um amigo psiquiatra, organizou a operação de
salvamento que permitiu instalar a amiga, antes do alvorecer, em Austin
Riggs, o hospital psiquiátrico de Stockbridge. E foi Iris quem, apesar de
estar a amamentar dois bebés recém-nascidos e ter de cuidar de outros dois
em idade pré-escolar, a visitou todos os dias no hospital, falou com ela, a
apoiou e tranquilizou e lhe levou plantas envasadas para se ocupar e livros
de arte para ver, além de a pentear e lhe entrançar o cabelo, até que,
decorridas cinco semanas — graças tanto à dedicação de Iris como ao
tratamento psiquiátrico -, Claudia regressou a casa a fim de começar a dar
os passos necessários para se livrar do homem que tanto mal lhe fizera.
Passados poucos dias, Iris informou-se do nome de um advogado de
Píttsfield especializado em divórcios e, com os filhos, incluindo os bebés,
bem seguros na parte de trás da carrinha, levou a amiga ao consultório do
advogado, para ter a certeza absoluta de que os trâmites para o processo de
separação eram iniciados e Claudia ficaria livre de McChesney. No regresso
a casa, nesse dia, fora necessário muito encorajamento, mas encorajar
pessoas era a especialidade de Iris e ela encarregou-se de assegurar que a
determinação da amiga de repor a sua vida nos eixos não seria minada por
temores residuais.
"Que procedimento desprezível para com outra pessoa", comentou Iris.
"Não a questão da amante. Isso é mau, mas acontece. Nem as crianças. Nem
isso, não, nem mesmo o menino e a menina da outra, por muito doloroso e
brutal que seja para qualquer mulher descobrir uma coisa dessas. O segredo,
o pior foi o segredo, Coleman. É por isso que Claudia não quer continuar a
viver. "Onde está a intimidade?" É isso que a faz chorar constantemente.
"Onde está a intimidade", pergunta, "quando existe um tal segredo?" Que
ele pudesse ter-lhe escondido isso, que lho tivesse escondido
continuadamente, é contra isso que se sente indefesa, é por isso que ainda
quer acabar com ela. Diz-me: "É como descobrir um cadáver. Três
cadáveres. Três corpos humanos escondidos debaixo do nosso soalho.""
"Sim", concordou Coleman, "parece uma tragédia grega. Uma passagem de
As Bacantes: "É pior do que isso", afirmou Iris, "porque não é de As
Bacantes. É da vida de Claudia"
Quando, após quase um ano de terapia ambulatória, Claudia se
reaproximou do marido, ele voltou para a casa de Athena e os McChesney
reataram a vida em comm corno urna família, quando Harvey concordou
em deixar a outra mulher, embora não os outros filhos, para os quais
prometeu continuar a ser um pai responsável, Claudia não pareceu mais
empenhada do que Iris em manter viva a amizade de ambas. E depois de
Claudia se demitir ela Associação Artística, as duas mulheres deixaram de
se ver em actividades sociais ou em qualquer das reuniões da organização
geralmente dirigidas por Iris.
E Coleman também não levou avante, como a euforia do triunfo ditara
quando os gémeos nasceram, a ideia de contar à mulher o seu espantoso
segredo. Salvou-se, pensou, da asneira mais infantilmente sentimental que
jamais poderia ter cometido. Ter começado, de súbito, a raciocinar como
um idiota: pensar o melhor de tudo e todos, despojar-se por completo da sua
desconfiança, da sua prudência, da própria desconfiança de si mesmo,
convencer-se de que todas as suas dificuldades tinham chegado ao fim,
todas as complicações se tinham deslindado, esquecer-se não só de onde
estava mas também de como ali chegara, renunciar à diligência, à
disciplina, à avaliação de toda e qualquer situação... como se fosse possível
renunciar, fosse como fosse, ao combate que é o combate singular de cada
pessoa, como se alguém pudesse, por opção e voluntariamente, deixar de
ser a pessoa que é, o ser característico e imutável em cujo nome o combate
é, afinal, travado. O facto de os seus últimos filhos terem nascido
perfeitamente brancos, quase o levara a reduzir a cacos o que havia nele de
mais forte e mais sensato. Salvara-o a sabedoria que diz: "Não faças nada. "
Mas já antes, depois do nascimento do primeiro filho, fizera uma coisa
quase tão estúpida e sentimental. Era então um jovem professor de estudos
clássicos em Adelphi e encontrava-se na Universidade da Pensilvânia para
uma conferência de três dias sobre a Ilíada, apresentara uma comunicação,
estabelecera alguns contactos e fora até discretamente encorajado, por um
classicista de renome, a candidatar-se a uma vaga que ia abrir em Princeton.
No regresso a casa, julgando-se no apogeu da sua existência, em vez de
seguir para norte pela auto-estrada com portagem de jersey, com destino a
Long Island, estivera muito perto de virar para sul e dirigir-se, pelas
estradas secundárias dos condados ele Salem e Cumberland, para
Gouldtown, a cidade ancestral da sua mãe, onde costumavam fazer o
piquenique anual da família, quando era rapaz. Sim, então como agora,
tendo acabado de ser pai, estivera à beira de tentar proporcionar a si mesmo
o prazer simples de um daqueles sentimentos significativos a que as pessoas
aspiram sempre que param de pensar. Mas o facto de ter tido um filho não
lhe exigia que virasse para sul, para Gouldtown, do mesmo modo que, nessa
mesma viagem, ao chegar à parte norte de Newjersey, o facto de ter tido
esse filho também lhe não exigia que fosse pela saída para Newark e
seguisse na direcção de East Orange. Teve de reprimir ainda outro impulso:
o desejo de ver a mãe, contar-lhe o que acontecera e levar-lhe o filho, para
ela o conhecer. O impulso de, dois anos depois de a ter renegado, e apesar
da advertência de Walter, se mostrar, ele, à sua mãe. Não. De modo algum.
Em vez disso, seguiu directamente para casa, para junto da sua mulher
branca e do seu filho branco.

E, umas quatro décadas depois, enquanto regressava da universidade a


casa, atormentado por recríminaçôes, recordando alguns dos melhores
momentos da sua vida — o nascimento dos filhos, a alegria, a excitação
inocente, o vacilar insensato da sua resolução, o alívio, o imenso alívio que
quase destruiu a sua resolução -, recordava também a pior noite da sua vida,
recordava a sua passagem pela Marinha e a noite em que fora expulso
daquele bordel de Norfolk, o famoso bordel branco chamado Oris. "És um
preto nojento, não és, rapaz", e, segundos depois, os seguranças tinham-no
atirado pela porta fora, empurrado pela escada abaixo para o passeio e para
a rua. A casa que procurava chamava-se Lulu, na WarwickAvenue — Lulu,
gritaram-lhe eles, era esse o lugar para o seu cu preto. Bateu com a testa no
passeio, mas mesmo assim levantou-se, correu até encontrar uma travessa,
saiu por aí da rua e escapou à patrulha do cais da Polícia Militar, que aos
sábados à noite andava por todo o lado, a balançar os bastões. Foi parar ao
lavatório do único bar onde se atrevia a entrar no estado lamentável em que
se encontrava, um bar para gente de cor, a poucas dezenas de metros de
Hampton Road e doferry de Newport News (que transportava os
marinheiros para o Lulu) e a uns dez quarteirões do Oris. Era o seu primeiro
bar para gente de cor desde os tempos de escola em East Orange, quando
ele e um amigo ostumavam fazer as apostas de futebol americano no Billy's
Twilight Club, na linha de Newark. Durante os seus dois primeiros anos de
liceu, além dos combates de boxe às escondidas, fizera umas passagens pelo
Billt's Twilight ao longo do Outono, e fora lá que obtivera os
conhecimentos relacionados com bares que alegava ter adquirido, como
rapaz branco de East Orange, numa taberna de que o seu pai judeu era
proprietário.
Lembrava-se de como se esforçara para estancar a hemorragia do golpe
do rosto e tentara em vão limpar o dólman branco, mas o sangue pingava
sem parar e salpicava tudo. A sanita sem tampa estava coberta de trampa, o
soalho de tábuas alagado de urina, o lavatório, se aquela coisa era um
lavatório, mais parecia uma gamela de lavadura, cheia de expectoração e
vomitado, de tal modo que quando se sentiu agoniado por causa da dor que
tinha no pulso, preferiu vomitar para a parede que tinha à frente do que
baixar o rosto para todo aquele nojo.
Era um antro imundo e barulhento como nunca vira nada que se
parecesse, o mais abominável que poderia imaginar, mas tinha de se
esconder em qualquer lado e, por isso, sentado num banco o mais distante
possível dos destroços humanos amontoados ao balcão, e nas garras de
todos os seus pavores, tentou beber uma cerveja, para ganhar forças,
amortecer a dor e evitar dar nas vistas. Não que alguém se tivesse dado ao
trabalho de olhar na sua direcção depois de ele ter comprado a cerveja e
desaparecido contra a parede que ficava atrás das mesas vazias: como no
bordel branco, ninguém ali o tornava por qualquer outra coisa que não fosse
aquilo que era.
Enquanto bebia a segunda cerveja continuava a saber que se encontrava
onde não deveria estar, mas se a patrulha do cais o apanhasse, se
descobrissem por que motivo fora expulso do Oris, estaria perdido: seria o
conselho de guerra, a condenação, uma longa pena de trabalhos forçados e
uma expulsão desonrosa — tudo por ter mentido à Marinha sobre a sua
raça, tudo por ter cometido a estupidez de transpor uma porta atrás da qual
os únicos negros admitidos eram os que lavavam a roupa ou o chão.
Fim da linha. Cumpriria o seu período de serviço na Marinha, o seu
tempo como branco, e ponto final. Porque não sou capaz de continuar,
pensou. Nem sequer quero. Nunca antes conhecera a verdadeira
humilhação. Nunca antes soubera o que era esconder-se da polícia. Nunca
antes sangrara por ter sido agredido, não perdera uma gota de sangue em
todos aqueles assaltos de boxe amador; nem fora ferido ou maltratado de
qualquer outro modo. Mas agora o dólman da sua farda branca estava
vermelho como um penso cirúrgico, as suas calças estavam empapadas de
sangue coagulado e rasgadas e sujas, de ter caído de joelhos na valeta. E
tinha o pulso ferido, talvez até fracturado, por ter sustido a queda com a
mão: não conseguia mexê-lo nem tocar-lhe. Acabou a cerveja e depois
bebeu mais outra, para amortecer a dor.
Ali estava o resultado de não corresponder aos ideais paternos, de
zombar das ordens paternas, de abandonar por completo o seu falecido pai.
Se tivesse procedido como o pai, se tivesse procedido como Walter, tudo
estaria a passar-se de outro modo. Mas começara por infringir a lei ao
mentir para ser admitido na Marinha e, agora, ao procurar uma mulher
branca para ir para a cama, mergulhara na pior das tragédias. "Deixe-me
chegar ao fim do meu período de serviço. Deixe-me ser licenciado sem
problemas. Depois nunca mais mentirei. Deixe-me só acabar o meu tempo,
mais nada!" Era a primeira vez que falava ao pai desde que ele caíra morto
na carruagem-restaurante.
Se continuasse assim, a sua viela não valeria nada. Como sabia Coleman
isso? Sabia porque o pai lhe respondia. A antiga autoridade admoestadora
voltava a erguer-se, estrondosa, do peito do pai, vibrante como sempre com
a legitimidade inequívoca de um homem íntegro. Se continuasse a proceder
como procedia, acabaria na valeta com a garganta cortada. Bastava ver a
situação em que se encontrava agora. Onde fora esconder-se. E como?
Porquê? Por causa do seu credo, por causa do seu insolente e arrogante
credo: "Eu não sou um dos vossos, não posso suportar-vos, não faço parte
do vosso nós negro." Vejam aonde a grande luta heróica contra o nós deles
o levou, vejam o que ele parece agora! A luta apaixonada pela preciosa
singularidade, a sua revolta individual contra o destino do negro... e vejam
aonde o grande desafiador foi parar! Foi aqui que vieste procurar o
significado profundo da existência, Coleman? Tinhas um mundo de amor e
renunciaste a ele por isto! Que coisa trágica e irresponsável, fizeste! E não
apenas a ti, mas a todos nós. À Ernestine. Ao Walt. À tua mãe. A mim. A
mim, na minha sepultura. Ao meu pai, na dele. Que outro procedimento
grandioso planeias, Coleman Brutus? Quem mais queres desencaminhar e
trair?
No entanto, não podia sair para a rua por causa do medo que tinha da
patrulha do cais, do conselho de guerra, da cela no navio e da exoneração
desonrosa que o perseguiriam para sempre. Tudo nele estava por de mais
transtornado para lhe permitir fazer outra coisa além de continuar a beber
até, claro, lhe ir fazer companhia no banco uma prostituta que era
manifestamente da sua raça.
Quando o encontraram de manhã, os homens da patrulha do cais
atribuíram os seus ferimentos ensanguentados, o seu pulso fracturado e o
uniforme sujo e desalinhado ao facto de ter passado a noite numa zona de
pretos, mais um assanhado cacete branco ávido de rata preta que depois de
depenado, escaldado e chamuscado (assim como devidamente tatuado, para
o serviço ser completo) — fora depositado para recolha pelos varredores do
lixo no terreno cheio de vidro partido atrás da rampa doferry.
"U. S. Navy", dizia apenas a tatuagem, em letras com pouco mais de
meio centímetro de altura, inscritas a tinta azul entre os braços azuis de uma
âncora da mesma cor com uns cinco centímetros de comprimento. Um
espécime muito pouco aparatoso comparado com o que é habitual em
tatuagens militares e, discretamente situado logo abaixo da articulação do
braço direito com o ombro, fácil de ocultar. Mas quando se lembrou de
como a tinha arranjado, considerou-a uma marca evocativa não apenas da
turbulência da pior noite da sua vida mas também de tudo aquilo que estava
subjacente a essa turbulência: era o sinal de toda a sua história, da
indissociabilidade do heroísmo e da vergonha. Embutida naquela tatuagem
azul encontrava-se uma imagem verdadeira e total de si mesmo. Além da
biografia inerradicável, estava ali o protótipo do inerradicável, visto uma
tatuagem ser o próprio emblema do que não pode ser removido. E também
o imenso empreendimento. Estavam ali as forças exteriores. Toda a cadeia
do imprevisto, todos os perigos da revelação e da ocultação: até o absurdo
da vida estava ali, naquela pequena tatuagem azul.
Os seus problemas com Delphine Roux tinham começado no primeiro
semestre do regresso dele ao ensino, quando uma das suas estudantes, que
por coincidência era uma preferida da professora Roux, a procurou, na sua
qualidade de presidente do departamento, a fim de se queixar das peças de
Eurípides do curso de tragédia grega de Coleman. Uma era Hipólito e a
outra era Alcestes. A estudante, Elena Mitnick, achava-as "degradantes para
as mulheres".
— Que devo então fazer para agradar a Miss Mitnick? Retirar Eurípides
da minha lista de leituras?
— De modo algum. É evidente que tudo depende do modo como ensina
Eurípides.
— E qual é o método recomendado, hoje em dia? — perguntou Coleman,
pensando, ao mesmo tempo que falava, não ser aquele um debate para o
qual tivesse a paciência ou a Civilidade adequadas. Além de lhe parecer
mais fácil confundir Delphine Roux sem enveredar pelo debate. Apesar de
transbordar de auto-suficiência intelectual, ela tinha 29 anos e praticamente
nenhuma experiência extra-escolar, era nova no cargo e relativamente nova
tanto na universidade como no país. Ele percebera nas suas conversas
anteriores que a melhor maneira de repelir as tentativas dela para parecer
não apenas sua superior mas também uma superior arrogante — "É
evidente que tudo depende", ete. -, seria mostrar completa indiferença pelas
suas opiniôes. Por muito que não o pudesse suportar, suportava ainda
menos que as credenciais académicas que tanto impressionavam outros
colegas seus da Athena ainda não tivessem esmagado o ex-reitor. Malgrado
seu, não conseguia deixar de se sentir intimidada pelo homem que, cinco
anos antes, a contratara relutantemente, recém-licenciada pela Yale, e
depois nunca negara lamentar tê-lo feito, sobretudo quando aqueles otários
psicológicos do seu departamento tinham escolhido uma jovem mulher tão
profundamente confusa para sua presidente.
Até hoje, a presença de Coleman Silk continuava a perturbá-la ao ponto
de desejar que fosse ele, agora, a sentir-se perturbado com a dela. Havia
nele qualquer coisa que a conduzia sempre à sua infância e ao seu medo de
criança precoce de estarem a vê-la por dentro e por fora. E também ao medo
de criança precoce de não estar a ser suficientemente vista. Receando
expor-se, morta por ser vista: tremendo dilema. Havia no homem qualquer
coisa que a fazia sentir-se, até, hesitante no seu inglês, ela que por norma se
sentia completamente à vontade a esse respeito. Sempre que se
encontravam frente a frente, algo a fazia pensar que o que ele mais queria
era atar-lhe as mãos atrás das costas.
O que era esse qualquer coisa? O modo como a avaliou sexualmente
quando a entrevistou a primeira vez no seu gabinete, ou o facto de não a ter
avaliado sexualmente?
Fora-lhe impossível ler o que ele lera nela, sobretudo numa manhã em
que sabia ter tirado o máximo partido de todas as suas capacidades. Quisera
parecer soberba e parecera, quisera ser fluente e fora, quisera parecer
erudita e tinha a certeza de que conseguira. E, no entanto, ele olhara-a como
se fosse uma colegial. A insignificante filha pequena do casal Irrelevante.
Mas talvez isso tivesse sido por causa do kilt de xadrez — o kilt tipo
mini-saia podia terlhe lembrado um uniforme escolar feminino, sobretudo
porque a pessoa que o usava era uma jovem mulher pequenina e bem
arranjada de cabelo escuro e rosto miúdo, quase só olhos, e que pesava,
com roupa e tudo, escassos quarenta e cinco quilos. Tanto com o kilt como
com a camisola preta de gola virada, os colãs pretos e as botas altas pretas,
não pretendera nem assexualizar-se com o vestuário escolhido (as mulheres
universitárias que elé então conhecera na América pareciam todas esforçar-
se ao máximo para conseguirem precisamente isso), nem dar a impressão de
querer fasciná-lo. Embora constasse que ele andava pelos 65 anos, não
parecia mais velho do que o seu pai, que tinha 50. Lembrava-lhe dé um
sócio minoritário da firma do pai, um dos vários sócios da sociedade de
engenharia que andavam de olho nela desde os seus 12 anos. Quando,
sentada defronte do reitor, cruzara as pernas e a aba do kilt se abrira,
deixara passar um ou dois minutos antes de a fechar — e fizera-o do mesmo
modo negligente com que fecharia uma carteira — apenas porque, por
muito jovem que parecesse, não era uma colegial com os temores e o
decoro de uma colegial e tolhida pelas normas de uma colegial. Não
desejava dar essa impressão, assim como não desejava dar a impressão
contrária, deixando a aba continuar aberta e "ncorajando-o desse modo a
imaginar que pretendia que passasse a entrevista a olhar-lhe para as coxas
esbeltas cobertas pelos colãs pretos. Tanto com a escolha do vestuário como
com a sua atitude, esforçara-se ao máximo para o fazer ter consciência da
complexa interacção de todas as forças que se conjugavam para a tornar tão
interessante aos 24 anos.
Até a sua única jóia, o grande anel que pusera naquela manhã no dedo
médio da mão esquerda, o seu único ornamento decorativo, tinha sido
escolhido pelo contraste que confería à intelectual que ela era, uma pessoa
para quem usufruir abertamente da superfície estética da vida, sem
subterfúgios, sem tentar disfarçar a sua apetência e o seu conhecimento,
fazia no entanto parte de uma vida inteira dedicaria ao labor académico. O
anel, uma cópia do século XVIII de um anel de sinete romano, era de
homem e fora anteriormente usado por um homem. Na ágata oval, disposta
horizontalmente — e era isso que o tornava tão masculinamente volumoso
-, havia uma gravura de Dánae recebendo Zeus na forma de uma chuva de
ouro. Quatro anos antes, em Paris, quando Delphine tinha 20 anos, o anel
fora-lhe dado como prova de amor pelo professor a quem pertencia, o único
a quem fora incapaz de resistir e com o qual tivera um romance apaixonado.
Por coincidência, ele ensinava literatura clássica. No seu primeiro encontro,
no gabinete dele, achara-o tão distante, tão crítico, que se sentira paralisada
de medo até perceber que ele estava a fazer o jogo da sedução a contrapelo.
Seria também esse o esquema do reitor Silk?
Por muito evidente que fosse o tamanho do anel, o reitor não lhe pediu
para ver a chuva de ouro gravada na ágata, e ela achou que ainda bem.
Embora a história de como o anel lhe fora parar à mão demonstrasse, se
demonstrava alguma coisa, uma audácia de mulher adulta, ele tê-la-ia
considerado uma complacência frívola, um sinal defalta de maturidade da
sua parte. Tirando uma leve esperança persistente, Delphine Roux tinha a
certeza de que era desse modo que ele a via desde o momento em que
tinham apertado as mãos. E não se enganava. Na opinião de Coleman, ela
era alguém demasiado jovem para o lugar e ainda com muitas contradições
por resolver, um pouco presunçosa de mais quanto ao seu valor e, ao
mesmo tempo, fazendo o jogo do autoconvencimento como uma criança,
uma criança insuficientemente senhora de si, rápida a reagir ao mais leve
indício de desaprovação, com uma enorme tendência para se sentir
magoada e, simultaneamente como criança e como mulher, impelida para
êxito atrás de êxito, admirador atrás de admirador, conquista atrás de
conquista, levada tanto por falta como por excesso de segurança. Uma
pessoa inteligente para a sua idade, demasiado inteligente, mesmo, mas
emocionalmente deficitária e seriamente subdesenvolvida em quase todos
os outros aspectos.
Pela leitura do seu C.V., e de um texto autobiográfico complementar de
quinze páginas que o acompanhava e descrevia o desenrolar de um trajecto
intelectual iniciado aos 6 anos, Coleman formou uma ideia bastante clara a
seu respeito. As suas credenciais eram, de facto, excelentes, mas tudo nela
(incluindo as credenciais) lhe parecia particularmente inadequado para uma
pequena universidade como Athena. Infância privilegiada na rue de
Longchamp, lôeme arrondissement Monsieur Roux, engenheiro e
proprietário de uma empresa com quarenta empregados; Madame Roux
(née de Walincourt), pertencente a uma antiga família da aristocracia
provinciana, esposa, mãe de três filhos, especializada em literatura
medieval francesa, mestre cravista, especializada em literatura relacionada
com o cravo, historiadora papal, -etc" E que eloquente -etc. aquele! Filha do
meio, com um irmão mais velho e outro mais novo, Delphine fizera o curso
do Lycée Ianson de Sailly, onde estudara filosofia e literatura, inglês e
alemão, latim, literatura francesa... "leu todo o corpo da literatura francesa
de um modo muito canónico". Depois do Lycée Ianson, o Lycée Henri IV: "
... estudo exaustivo e em profundidade de literatura francesa e filosofia,
língua inglesa e história literária. Aos vinte anos, e depois do Lycée Henri
IV, foi a vez da École Normale Supérieure de Fontenay: " ... com o escol da
intelectualidade francesa ... seleccionados apenas trinta por ano". Tese:
"Espírito de Sacrifício em Georges Bataille., Bataille? Mais outra, não!
Todos os licenciados ultra-requintados de Vale estão a traba-lhar em
Mallarmé ou Bataille. Não é difícil compreender o que ela pretende que ele
compreenda, tanto mais que Coleman sabe alguma coisa a respeito de Paris,
em virtude de lá ter passado um ano como jovem professor com família
constituída, graças a uma bolsa do programa Fulbright, e também sabe
alguma coisa a respeito desses miúdos franceses ambiciosos, formados em
liceus de elite. Extremamente bem preparados, intelectualmente bem
relacionados, jovens imaturos muito inteligentes, possuidores da mais
pretensiosa educação francesa e preparando-se vigorosamente para serem
invejados durante a vida inteira, reúnem-se todas as noites de sábado no
restaurante vietnamita barato da Rue 51. [acques onde falam de coisas
Importantes, nunca mencionam trivialidades nem perdem tempo com
conversas banais: apenas ideias, política, filosofia. Até nos seus tempos
livres, quando estão sozinhos, pensam sonente na aceitação de Hegel na
vida intelectual francesa do século XX. O intelectual não deve ser frívolo.
A vida é só pensamento. Quer tenham sido condicionados para serem
veementemente marxistas quer para serem, com igual veemência,
antimarxistas, têm um pavor congénito por tudo o que é americano. É
imbuída de ideias destas, e outras do gênero, que ela chega a Vale. Inscreve-
se para ensinar a língua francesa a estudantes universitários e ser integrada
no programa de doutoramento, e, como faz questão de assinalar no seu
texto autobiográfico, a sua é uma das duas únicas candidaturas de toda a
França que foram aceites. "Cheguei a Yale muito cartesiana e lá era tudo
muito mais pluralis ta e polifónico." Os estudantes surpreendem-na. Onde
está o seu lado intelectual? Sente-se completamente chocada por se
divertirem. Com a sua maneira caótica e sem ideologia de pensar, de viver!
Nunca viram, sequer, um filme de Kurosawa, nem isso sabem. Ela, com a
idade deles, já tinha visto todos os Kurosawa, todos os Tarkovsky, todos os
Fellini, todos os Antonioni, todos os Fassbincler, todos os Wertmüller, todos
os Satyajit Ray, todos os IS René Clair, todos os Wim Wender, todos os
Truffaut, os Goddard, os Chabrol, os Resnais, os Rohmer e os Renoir, ao
passo que tudo quanto estes miúdos tinham visto era A Guerra das Estrelas.
Levando as coisas a sério na Yale, retoma a sua missão intelectual tendo
aulas com os professores mais informados. Mas sente-se um pouco perdida.
Confusa. Sobretudo com os outros estudantes licenciados. Está habituada a
dar-se com pessoas que falam a mesma linguagem intelectual que ela, e
estes americanos... Além de que nem todos a acham tão interessante como
isso. Esperara que, chegada à América, todos dissessem: "Oh, meu Deus,
ela é uma normaiienne" Mas na América ninguém aprecia o trajecto muito
especial, e de enorme prestígio, que ela percorreu em França. Não recebe o
tipo de reconhecimento que foi treinada para receber como membro a
desabrochar da nata intelectual francesa. Tão-pouco recebe o tipo de
ressentimento que foi treinada para receber. Arranja um mentor e redige a
sua tese. Defende-a. É doutorada. Consegue-o com extraordinária rapidez,
em virtude de já ter trabalhado muito para isso em França. Com tanto
estudo e tanto e tão afincado trabalho, está pronta para um lugar importante
numa universidade importante — Princeton, Columbia, Cornell, Chicago -,
e quando não o consegue sente-se arrasada. Um lugar provisório na
universidade de Athena? Onde fica e o que é isso? Torce o nariz. Até que o
mentor lhe diz: -Delphine, neste mercado, conseguimos o lugar Importante
depois de outro que o não é. Professora assistente provisória na
universidade de Athena? Ri podes não ter ouvido falar dela, mas nós
ouvimos. É uma instituição absolutamente digna. Um primeiro emprego
absolutamente dígno., Os seus colegas de estudo estrangeiros dizem-lhe que
é boa de mais para isso, que seria déclassé de mais, mas os seus colegas
americanos, que seriam capazes de matar por um emprego de professor na
casa das caldeiras do Stop & Shop, acham a sua presunção
caracteristicamente delfínica. Contrafeita, candidata-se... e é assim que, de
minikilt e botas, vai parar à cadeira defronte da secretária do reitor Silk.
Para conseguir o segundo emprego, o emprego importante, precisa primeiro
deste lugar na universidade de Athena, mas durante quase uma hora o reitor
Silk ouve-a praticamente desqualífícar-se para o lugar. Estrutura narrativa e
temporalidade. As contradições internas da ohra de arte. Rousseau esconde-
se, mas depois a sua retórica denuncia-o. (Um pouco como ela, pensa o
reitor, naquele texto autobiográfico.) A voz do crítico é tão legítima como a
voz de Heródoto. Narratologia. Diegética. A diferença entre diegesis e
mimesis. A experiência parenrética. A qualidade proléptíca do texto.
Coleman não precisa de perguntar o que tudo aquilo significa. Ele sabe, no
significado original grego, o que todas aquelas palavras da Yale querem
dizer e o que todas as palavras da École Normale Supéricure querem dizer.
E ela, saberá? como anda naquilo há mais de três décadas, Coleman não
tem tempo para toda aquela conversa. E pensa: Por que motivo quererá uma
pessoa tão bonita esconder-se da dimensão humana da sua experiência atrás
destas palavras? Talvez apenas por ser tão bonita. E pensa ainda: Tão
meticulosamente avaliadora de si mesma e tão completamente iludida.
É claro que ela possuía as credenciais. Mas, para ele, personificava o tipo
de prestigiosa treta académíca de que os estudantes de Athena precisavam
tanto como de sarna para se coçarem, mas que seria irresistivel para os
membros medíocres do professorado.
Na altura, achou que estava a dar provas de imparcialidade e abertura de
espírito ao contratá-la. Mas é mais provável que o tenha feito por ela ser tão
sedutora. Tão adorável. Tão atraente. E ainda por cima com aquele ar tão
filial.
Delphine Roux interpretara mal o seu olhar ao pensar, um pouco
melodramaticamente — um dos obstáculos à sua sagacidade, esse pendor
não apenas para tirar apressadas conclusões melodramáticas mas também
para sucumbir eroticamente ao fascínio melodramático -, que o que ele
queria era atar-lhe as mãos atrás das costas: o que ele queria, por todas as
razões possíveis, era não a ter por ali. E por isso a contratara. E foi assim
que começaram seriamente a não se entenderem.
E agora era ela que o chamava ao seu gabinete para o interrogar. Em
1995, o ano em que Coleman deixara de ser reitor para voltar a ensinar, o
atractivo do chique abrangentc da beleza, em estilo petite, de Delphine, com
as suas sugestões agaiatadas de uma sensualidade secreta, juntamente com
as blandícias da sua sofisticação da École Normalc (que Coleman descrevia
como "o seu número permanente de inflação egocentrísta-), parecera-lhe ter
conquistado quase todos os professores patetas, cortejáveis e pingaamores,
e, sem ter atingido ainda os 30 anos — mas porventura de olho no reitorado
que fora dele -, ascendera a presidente do pequeno departamento que, uma
dúzia de anos atrás, dihsorvera, juntamente com outros departamentos de
línguas, o antigo Departamento de Literatura Clássica onde Coleman tinha
iniciado a carreira como professor auxiliar. O novo Departamento de
Línguas e Literatura tinha um quadro de doze professores, um de russo, um
de italiano, um de espanhol, um de alemão, Delphine Roux em francês,
Coleman Silk em línguas clássicas e cinco adjuntos sobrecarregados de
trabalho, auxiliares principiantes e alguns estrangeiros locais que se
encarregavam dos cursos elementares.
— A interpretação errada que Miss Mitnick faz dessas duas peças —
estava ele a dizer-, fumdamenta-se de tal modo em preocupações
ideológicas tacanhas e provincianas que nem se presta a correcção.
— Isso significa que não nega o que ela diz, que não tentou ajudá-la.
— Uma estudante que me diz que lhe falo numa "linguagem assente no
gênero" está além da possibilidade de ser ajudada por mim.
_ Nesse caso, o problema existe, não é verdade? — perguntou Delphine,
em tom ligeiro.
Ele riu-se, espontaneamente e, ao mesmo tempo, com um propósito.
— Existe? O inglês que falo é insuficientemente subtil para uma
mentalidade tão requintada como a de Miss Mitnick?
— Coleman, esteve muito tempo ausente das salas de aula.
— E você nunca esteve fora delas. Minha cara — disse em tom
deliberado, e com um sorriso deliberadamente irritante -, tenho passado a
minha vida a ler e a pensar nestas peças.
— Mas nunca da perspectiva feminista de Elena.
— Nunca, até, da perspectiva judaica de Moisés. Nunca, até, da
perspectiva níetzschíana tão em voga acerca da perspectiva.
— Em todo o planeta, só Coleman Silk não tem qualquer outra
perspectiva que não seja uma perspectiva literária puramente
desinteressada.
— Os nossos estudantes, minha cara — de novo? Por que não? -, são,
quase sem excepção, abíssalmente ignorantes. Receberam uma educação
incrivelmente má. As suas vidas são intelectualmente estéreis. Chegam sem
saber nada e, na sua maioria, saem nada sabendo. E o que menos sabem,
quando aparecem no meu curso, é ler o teatro clássico. IEnsinar em Athena,
sobretudo nesta década de 90, aquela que é, de longe, a geração mais
estúpída ela história da América, é o mesmo que subir a Broadway, em
Manhattan, a falar sozinho, com a diferença de que em vez das dezoito
pessoas que nos ouvem falar sozinhos na rua eles estão todos na sala de
aula. Eles não sabem nada. Depois de quase quarenta anos a lidar com tais
estudantes — e Miss Mitnick não passa de um exemplo típico -, posso
afirrnar-lhe que do que eles menos precisam é de uma perspectiva feminista
sobre Eurípides. Oferecer aos mais cândidos dos leitores uma perspectiva
feminista sobre Eurípides seria Iuma das melhores maneiras de lhes fechar
o pensamento antes mesmo de ele ter tido uma oportunidade de começar a
demolir uma única das suas estúpidas "preferências". Tenho dificuldade em
acreditar que uma mulher culta como você, com antecedentes académicos
franceses como os seus, acredite que possa existir uma perspectiva
feminista sobre Eurípides que não seja pura e simples tolice. Foi, realmente,
doutrinada em tão pouco tempo ou trata-se apenas de carreirismo
ultrapassado, assente agora no medo das colegas feministas? Porque, se é de
facto apenas carreirismo, não me incomoda. É humano e eu compreendo.
Mas se é um compromisso intelectual com essa idiotice, então confesso-me
perplexo, pois você não é idiota. Porque você não vai nisso. Porque em
França não passaria com certeza pela cabeça de ninguém da École Normale
levar esta treta a sério. Ou passaria? Ler duas peças como Hipólito e
Alcestes, depois passar uma semana a ouvir discutir cada uma delas na aula
e, no fim, não ter nada a dizer a respeito de ambas a não ser que são
"degradantes para as mulheres", com os diabos, isso não é uma
"perspectiva", isso é cantiga, isso é somente a cantiga mais em voga.
— Elena é uma estudante. Tem 20 anos. Está a aprender.
— Esse sentimentalismo a respeito dos estudantes não diz bem consigo,
minha cara, Leve-os a sério. Elena não está a aprender: está a papaguear. E
se veio a correr ter consigo foi porque, muito provavelmente, é a si que ela
imita como um papagaio.
— Isso não é verdade, mas se lhe agrada enquadrar-me culturalmente
desse modo, esteja à vontade. Aliás, é inteiramente previsível. Se colocar-
me nessa moldura idiota o faz sentir-se tranquilízadoramente superior,
quem sou eu para o impedir, meu caro — foi a sua vez de usar a expressão,
com um sorriso encantado. — O modo como tratou Elena foi ofensivo para
ela. Foi por isso que veio a correr ter comigo. Você assustou-a. Ela estava
transtornada.
— Bem, sou atreito a maneirismos pessoais irritantes quando me
confronto com as consequências de ter contratado alguém como você.
— E — replicou ela — alguns dos nossos alunos são atreitos a
maneirismos pessoais irritantes quando se confrontam com pedagogia
fossilizada. Se persiste em ensinar literatura do modo enfadonho a que está
habituado, se insiste na dita abordagem humanista da tragédia grega que
tem usado desde os anos 50, pode estar certo de que surgirão continuamente
conflitos como este.
— Óptimo. Pois que surjam — respondeu Coleman, e saiu.
Depois, logo no semestre seguinte, quando Tracy Cummings foi a correr
procurar a professora Roux, à beira das lágrimas, quase incapaz de falar e
desorientada por ter sabido que, nas suas costas, o professor Silk usara um
maldoso epíteto racista para a caracterizar junto dos seus condiscípulos,
Delphine Roux achou que chamar Coleman ao seu gabinete para discutir a
acusação seria uma perda de tempo. Como tinha a certeza de que ele não se
comportaria com mais urbanidade do que da última vez que uma aluna se
queixara, e convencida, pela experiência anterior, de que, se o chamasse, ele
voltaria a tratá-la do mesmo modo condescendente e paternalista — mais
uma arrivista peneirenta que se atrevia a questionar a sua conduta, mais
uma mulher cujas preocupações tinha de banalizar no caso de se dignar,
sequer, a dar-lhes ouvidos -, entregou o assunto ao mais compreensivo
reitor da faculdade que sucedera a Silk. A partir daí, pôde dedicar mais
proveitosamente o seu tempo a Tracy, acalmando-a e confortando-a, quase
como se tomasse a seu cargo a jovem negra órfã A rapariga estava tão
desmoralizada que, nas primeiras semanas após o episódio, para evitar que
ela resolvesse fugir- mas fugir para onde, para quem? -, Delphine obtivera
autorização para a transferir do dormitório para um quarto vago do seu
apartamento e mantê-la temporariamente sob a sua custódia. Apesar de, no
termo do ano académico, Coleman Silk, ao retirar-se voluntariamente da
faculdade, ter, na prática, admitido a sua culpa no caso dos "spooks", o mal
causado a Tracy tinha sido devastador para alguém já de si tão pouco
confiante: incapaz de se concentrar no estudo por causa da investigação, e
com medo de que o professor Silk influenciasse outros professores contra
ela, reprovara em todas as disciplinas. Tracy fez as malas para sair não
apenas da universidade mas também da cidade onde Delphine esperara
arranjar-lhe um emprego e explicadores e olhar por ela até poder voltar à
escola. Um dia, Tracy meteu-se num autocarro para Oklahoma, a fim de
ficar com uma meia-irmã em Tulsa. Mas Delphine nunca mais conseguira
localizá-la, mesmo recorrendo a essa morada em Tulsa.
E depois ouvira falar da relação de Coleman Silk com Faunia Farley,
relação que ele fazia todos os esforços possíveis para ocultar. Custava-lhe a
acreditar: reformado há dois anos, com 71 de idade, o homem não tinha
emenda. Sem alunas que ousassem questionar os seus preconceitos para
intimidar, sem jovens negras necessitadas de amparo para ridiculizar, sem
jovens professoras, como ela própria, para tiranizar e insultar por
ameaçarem a sua hegemonia, conseguira desenterrar das regiões mais
baixas e fundas da universidade uma candidata à sujeição que era o modelo
perfeito do desamparo feminino: uma mulher maltratada em todos os
aspectos. Quando passou pela secção do pessoal para saber o que pudesse a
respeito dos antecedentes de Faunia, quando leu a história do ex-marido e
da morte horrorosa das duas crianças — num incêndio misterioso ateado,
suspeitavam alguns, pelo próprio ex-marido -, quando soube da iliteracia
que limitava Faun ia ao desempenho dos mais subalternos trabalhos de
limpeza, Delphine Roux compreendeu que Coleman Silk conseguira
descobrir nada mais, nada menos, do que o sonho mais cobiçado do
mísógino. encontrara em Faunia Farley alguém ainda mais indefeso do que
Elena ou Tracy, a mulher perfeita para ser esmagada Doravante, Faunia
Farley seria obrigada a pagar por todas quantas, em Athena, tinham ousado
afrontar o seu ridículo sentido de privilégio e superioridade.
E não havia ninguém para o impedir, pensou Delphine. Ninguém para lhe
barrar o caminho.
Ao tomar consciência de que ele se encontrava fora da alçada da
jusrisdição da universidade e, portanto, nada o coibia de se vingar dela —
dela, sim, por tudo quanto fizera para o impedir de aterrorizar
psicologicamente as suas alunas, dela pelo seu papel activo para que fosse
despojado de toda a autoridade e afastado das aulas -, não conseguiu conter
a indignação. Ele usava Faunia Farley como substituto dela. Faunia Farley
servia-lhe de veículo retaliatório contra ela. Que outro rosto, nome e forma
lhe lembra ela senão os meus: imagem especular de mim, não poderia
lembrar-lhe mais ninguém. Ao seduzir uma mulher que trabalha, como eu,
na universidade, que tem, como eu, menos de metade da sua idade — mas
que, no entanto, é o oposto de mim em tudo o mais --, disfarçou habilmente
e, ao mesmo tempo, revelou flagrantemente quem quer destruir. Não é tão
ingénuo que não tenha consciência disso e não lhe falta desumanidade para,
da sua augusta posição, se comprazer. Mas eu também não sou tão estúpida
que não perceba que é a mim, em efígie, que quer atingir.
A compreensão chegara de modo tão rápido, em frases tão
espontaneamente explosivas, que no momento em que assinava, no fim da
segunda página da carta, e escrevia o nome dele num sobrescrito, ao
cuidado da posta-restante, ainda fervia de indignação ao pensar na maldade
que podia transformar aquela mulher tão terrivelmente desfavorecida, que
já perdera tudo, num brinquedo, na crueldade capaz de transformar, ao
sabor do capricho, um ser humano sofredor como Faunia Farley num
joguete, só para se vingar dela. Como era possível que, mesmo ele, fizesse
tal coisa? Não, não modificaria uma sílaba do que escrevera nem se daria ao
trabalho de o dactilografar para lhe facilitar a leitura. Recusava-se a viciar a
mensagem onde era graficamente comprovada pela propulsiva inclinação
compulsiva da sua escrita. Ele que não subestimasse a sua determinação:
nada era agora mais importante para ela do que desmascarar Coleman Silk,
pôr a nu aquilo que de facto era.
Mas vinte minutos depois rasgou a carta. Felizmente. Felizmente.
Quando o idealismo desenfreado a avassalava, nem sempre conseguia vê-lo
como fantasia. É verdade que tinha todos os motivos para repreender um
predador tão censurável. Mas imaginar que salvaria uma mulher tão perdida
como Faunia quando não conseguira salvar Tracy? Imaginar que poderia
levar a melhor sobre um homem que, na sua velhice amargurada, estava
livre não apenas de todos os impedimentos institucionais mas — ele, o
humanista! — também de todas as considerações humanas? Nâo poderia
haver ilusão maior, para ela, do que julgar-se à altura de competir com a
astúcia de Coleman Silk. Até mesmo uma carta tão claramente escrita no
fogo rubro-branco da repulsa moral, uma carta que o informava, sem
margem para qualquer equívoco, de que o seu segredo estava desvendado e
ele desmascarado, exposto, descoberto, até mesmo isso acabaria, nas suas
mãos, por ser deturpado, transformado num libelo que, se a oportunidade
surgisse, a comprometeria, a ela, a destruiria completamente.
Ele era implacável e paranóico. E, quer ela gostasse quer não, havia
assuntos práticos que tinha de tomar em conta, considerações que talvez
não a tivessem detido quando era uma estudante líceal com tendências
marxistas, cuja incapacidade para sancionar a injustiça — não podia deixar
de o admitir — se sobrepunha por vezes ao bom-senso. Mas agora era uma
professora universitária que ascendera cedo à titularidade e já era presidente
do seu departamento, e tudo indicava que um dia ensinaria em Princeton,
Columbia, Cornell, Chicago ou regressaria até, triunfalmente, a Yale. Uma
carta como aquela, com a sua assinatura e passada de mão em mão por
Coleman Silk até ir parar, inevitavelmente, às mãos de alguém que, por
inveja, por ressentimento devido ao facto de ter sido tão bem sucedida ainda
tão nova, poderia desejar arruinála, destruí-la... Sim, arrojada como era, sem
qualquer travão à fúria que a ditara, aquela carta seria utilizada por ele para
a ridicularizar, para argumentar que lhe faltava maturidade e não tinha
direito algum a ser superior de ninguém. Ele tinha relações, ainda conhecia
pessoas ... podia muito bem fazê-lo. Fá-lo-ia, deturparia de tal modo a sua
intenção que...
Rapidamente, rasgou a carta em bocadinhos muito pequenos e, no meio
de uma folha de papel em branco, servindo-se de uma esferográfica
vermelha que nunca teria usado para a:1 sua correspondência, escreveu em
grandes letras de imprensa que ninguém reconheceria como suas:

Toda a gente sabe

Mas só isso. Ficou por aí. Três noites mais tarde, poucos minutos depois
de ter apagado a luz, levantou-se da cama e, recuperada a serenidade,
dirigiu-se à secretária para amarrotar, deitar fora e esquecer para sempre a
folha de papel com as palavras -Toda a gente sabe". Em vez disso, porém,
inclinou-se para a secretária, sem mesmo se sentar — receando perder de
novo a coragem no tempo que levasse a sentar-se -, e escreveu de jacto mais
treze palavras que chegariam para ele ficar a saber que a denúncia estava
iminente. O sobrescrito foi endereçado, estampílhado e, depois de metido lá
dentro o bilhete anónimo, fechado, e a luz da secretária apagada. Aliviada
por ter optado decisivamente pelo procedimento mais eficaz dentro dos
limites práticos da sua situação, voltou para a cama, moralmente preparada
para dormir tranquila.
Mas primeiro teve de dominar tudo quanto a impelia a voltar à secretária,
abrir o sobresc.rito e reler o que tinha escrito, para ver se dissera pouco ou
em tom demasiado fraco- ou, pelo contrário, demasiado estridente. Claro
que aquela não era a sua retórica. Nem podia ser. Por isso mesmo a
empregara, por ser espalhafatosa de mais, vulgar de mais, a puxar de mais
para o slogan para ser relacionada com ela. Mas, precisamente por essa
razão, talvez a mensagem não tivesse sido bem avaliada, talvez fosse
inconvincente. Tinha de se levantar para verificar se se lembrara de
disfarçar a letra, para ver se, inadvertidamente, na cegueira do momento, se
esquecera e, num floreado colérico, assinara o seu nome. Tinha de verificar
se revelara de alguma maneira, impensadamente, quem era. E se tivesse
revelado? Devia assinar o seu nome. Toda a sua vida fora um combate para
não se deixar intimidar pelos Coleman Silk deste mundo, que se aproveitam
dos seus privilégios para oprimirem toda a gente e fazerem o que muito
bem lhes agrada, Falar claro aos homens, Dar-lhes réplica, Até a homens
muito mais velhos, Aprender a não ter medo da sua suposta autoridade ou
das suas sábias pretensões, Capacitar-se de que a inteligência dela contava,
Ousar considerar-se igual a eles, Aprender a vencer o desejo de capitular
quando apresentava um argumento que não funcionava, aprender a recorrer
à lógica, à confiança e à serenidade para continuar a argumentar, ignorando
fosse o que fosse que eles fizessem ou dissessem para a calar. Aprender a
insistir, a perseverar no esforço em vez de se render, de sucumbir, Aprender
a defender o seu ponto de vista sem recuar. Ela não tinha de se submeter a
ele, não tinha de se submeter a ninguém. Ele já não era o reitor que a
contratara. Nem o presidente do departamento. A presidente era ela. Agora
o reitor Silk não era nada. Devia, realmente, abrir aquele sobrescrito e
assinar o seu nome. Ele não era nada. A palavra tinha todo o conforto de um
mantra: nada.
Andou semanas a fio com o sobrescrito fechado na mala de mão,
recapitulando as suas razões não apenas para o enviar mas também para ir
em frente e assinar o que escrevera, Ele decide-se por uma mulher
destroçada que não tem possibilidade de lhe fazer frente, Que não pode, de
modo algum, competir com ele. Que intelectualmente nem sequer existe,
Decide-se por uma mulher que nunca se defendeu, que é incapaz de se
defender, uma mulher tão fraca que não deve haver no mundo outra de
quem seja mais fácil tirar proveito, tão radicalmente inferior a ele em todos
os aspectos possíveis e imaginários, e decide-se por ela pelo mais
transparente dos motivos antitéticos: porque considera todas as mulheres
inferiores e porque tem medo de qualquer mulher que tenha cérebro, Porque
eu penso pela minha cabeça, porque não permito que me intimidem, porque
sou bem-sucedida, porque sou atraente, porque tenho espírito independente,
porque tive uma educação de primeira, porque tenho um diploma de
primeira...
E depois, em Nova Iorque, aonde fora um sábado para ver a exposição de
Pollock, tirou o sobrescrito da mala de mão e quase meteu a carta de
dezassete palavras e sem assinatura numa caixa de correio do edifício da
Administração Portuária, a primeira caixa de correio que viu depois de
descer do autocarro de Bonanza. Ainda a tinha na mão quando chegou ao
metro, mas quando o comboio começou a andar esqueceu-se da carta,
voltou a metê-la na mala e deixou todo o significado do metro apoderar-se
dela. O metro de Nova Iorque continuava a assombrá-la e a excitá-la.
Quando estava no Métro, em Paris, nunca pensava nisso, mas a angústia
melancólica dos passageiros do metropolitano de Nova Iorque nunca
deixava de lhe devolver a certeza de que a sua decisão de vir para a
América fora acertada, O metropolitano de Nova Iorque era o símbolo do
motivo por que viera: a sua recusa de fugir da realidade.
A exposição de Pollock exercera sobre ela um impacte emocional tão
grande que, ao passar de um admirável quadro para o seguinte, sentia algo
semelhante à crescente e clamorosa sensação que é o furor erótico. Quando
o telemóvel de uma mulher tocou, de súbito, no momento em que todo o
caos do quadro íntitulado Number IA, 1948 invadia desvaíradamente o
espaço que antes, nesse dia — antes, nesse ano -, nada mais fora do que o
seu corpo, ficou tão furiosa que se voltou e exclamou: "Minha senhora,
apetecia-me esganá-Ia!"
Depois foi à Biblioteca Pública de Nova Iorque, na 42th Street, Fazia
sempre isso, em Nova Iorque. Ia aos museus, às galerias, a concertos, via os
filmes que jamais chegariam ao único miserável cinema da provinciana
Athena, e, no fim, fossem quais fossem as coisas específicas que a tinham
levado a Nova Iorque, passava cerca de uma hora a ler o livro que trouxera
consigo, sentada na sala de leitura principal da biblioteca.
Lê. Olha em redor. Observa. Tem fugazes paixonetas pelos homens
presentes. Em Paris tinha visto o filme O Homem da Maratona num dos
festivais. (Ninguém sabe que, no cinema, é uma terrível sentimental e chora
com frequência.) Em O Homem da Maratona, a personagem, a falsa
estudante, anda pela Biblioteca Pública de Nova Iorque e é engatada por
Dustin Hoffman, e por isso é a essa luz romântica que sempre pensa na
biblioteca. Até agora, no entanto, ninguém lá a engatou, a não ser um
estudante de medicina demasiado jovem, demasiado ínexperiente e que
disse logo o que não devia dizer. Abriu a boca e disse qualquer coisa a
respeito do seu sotaque, e ela achou-o insuportável. Um rapaz que ainda
não vivera, sequer, e a fez sentir-se uma avó, Com a idade dele, já passara
por tantos casos amorosos tanto pensar e repensar, tantos níveis de
sofrimento — aos 20 anos, bas, tante mais nova do que ele, já tivera a sua
grande história de amor, não uma vez, mas duas. Em parte, fora para a
América para fugir da sua história de amor (e, também, para fazer a sua
saída do papel de figurante do drama há muito tempo em cena — intitulado
Ele. — que era a vida quase criminosamente coroada de êxitos da sua mãe).
Mas agora sente-se só, ah, tão só, na sua difícil busca de um homem a quem
se ligar.
Outros, quando tentam engatá-la, dizem algumas vezes coisas muito
aceitáveis e, outras vezes, coisas tão irónicas ou tão maliciosas que
conseguem ser encantadoras, mas depois — porque de perto ela é mais
bonita do que lhes pareceu e, para uma pessoa tão pequena, um pouco mais
arrogante do que porventura esperavam — sentem-se intimidados e batem
em retirada. Os que estabelecem contacto ocular com ela são, regra geral,
aqueles de quem não gosta. E os que estão perdidos nos seus livros, que
estão encantadoramente absortos e são encantadoramente desejáveis,
esses... bem, esses estão perdidos nos seus livros. Quem procura ela?
Procura o homem que a reconheça. Procura o Grande Reconhecedor.
Hoje está a ler, em francês, um livro de Julia Kristeva, um dos mais
maravilhosos trabalhos sobre melancolia alguma vez escritos, e, na mesa ao
lado, vê um homem a ler — imaginem! — um livro em francês escrito pelo
marido de Julia Kristeva, Philippe Sollers. Sollers é um escritor cuja
jocosidade presentemente se recusa a tomar a sério, apesar do muito que o
tomou a sério numa fase anterior do seu desenvolvimento intelectual; os
escritores franceses divertidos, ao contrário dos escritores leste-europeus
divertidos, como Kundera, deixaram de a satisfazer... mas na Biblioteca
Pública de Nova Iorque a questão não é essa. A questão é a coincidência,
uma coincidência quase sinistra. No seu estado de forte desejo e
desassossego, lança-se em mil especulações acerca do homem que lê
Sollers enquanto ela lê Kristeva e sente a iminência não apenas de um
engate, mas de uma ligação. Sabe que aquele homem de cabelo escuro e 40
ou 42 anos possui o tipo exacto de gravidade que ela não pode encontrar em
ninguém de Athena. O que consegue inferir do modo sereno como está
sentado a ler aumenta-lhe a esperança de que está prestes a acontecer
alguma coisa.
E acontece, de facto: vem ter com ele uma rapariga, sem sombra de
dúvida uma rapariga, mais nova ainda do que ela, e os dois partem juntos. E
Delphíne pega nas suas coisas, sai da biblioteca e, ao ver a primeira caixa
de correio, tira a carta da mala -- a carta que lá trazia há mais de um mês —
e mete-a na caixa com algo semelhante à fúria com que disse à mulher, na
exposição de Pollock, que lhe apetecia esganá-la. Pronto! Foi-se! Enviei-a!
Óptimo!
Passam pelo menos cinco segundos antes de a consciência avassaladora
da magnitude do disparate cometido se apoderar dela. Sente uma fraqueza
nos joelhos. "Oh, meu Deus" Mesmo não a tendo assinado, mesmo tendo
empregue uma retórica vulgar que não era a sua, a origem da carta não
constituiria mistério algum para alguém com uma fixação tão forte por ela
como Coleman Silk.
Agora ele nunca a deixaria em paz.
158
4.
QUE LOUCO A CONCEBEU...?

Depois daquele mês de Julho só voltei a ver Coleman vivo mais uma vez.
Pessoalmente, nunca me falou da visita à universidade nem do telefonema
que fez ao filho, Jeff da Associação de Estudantes. Tive conhecimento de
que esteve no campus, nesse dia, porque foi observado lá — por acaso, da
janela de um gabinete — pelo seu ex-colega Herb Keble, o qual, ao
terminar o discurso no funeral, referiu que tinha visto Coleman escondido,
encostado ao muro de North Hall, ocultando-se aparentemente por razões
sobre as quais ele só podia espccular. Soube do telefonema porque Jeff Silk,
com quem falei depois do funeral, mencionou qualquer coisa a esse
respeito, o bastante para eu perceber que Coleman perdera por completo o
controlo da conversa telefónica. Foi por Nelson Primus, em pessoa, que
fiquei a saber da visita que Coleman fizera ao escritório do advogado nesse
mesmo dia, horas antes de ter telefonado a Jeff e que terminara, como o
telefonema, com Coleman a soltar vitupéríos indignados. Depois disso, nem
Primus nem Jeff Silk voltaram a falar com Coleman, que não respondia às
suas chamadas nem às minhas — vim a saber que não respondia às de
ninguém. Parece que desligou o gravador, pois em breve o telefone tocava
apenas interminavelmente, quando eu tentava comunicar com ele.
Mas estava lá em casa sozinho, não se tinha ido embora. Soube que
estava porque, ao fim de duas semanas a ligar-lhe em vão, num sábado do
princípio de Agosto resolvi meter-me no carro e ir até lá verificar, depois de
escurecer. Estavam apenas algumas lâmpadas acesas, quando estacionei ao
lado dos enormes ramos dos seus velhos bordos, desliguei o motor e fiquei
imóvel no carro, na estrada alcatroada ao fundo do relvado ondulante, e
ouvi o som de música de dança sair pelas janelas abertas da casa de tábuas
brancas e postigos pretos, o programa das noites de sábado, em FM, que o
transportava ao tempo de Steena Palsson e ao quarto na cave de Sullivan
Street, logo depois da guerra. Encontra-se lá agora sozinho com Faunia,
cada um a proteger o outro de todos os outros — cada um abrangendo, para
o outro, todos os outros. Ali dançam, muito provavelmente despidos, ao
abrigo das provações terrenas, num paraíso extramundano de luxúria muito
deste mundo, no qual o seu acasalamento é o drama onde decantam todo o
furioso desencanto das suas vidas. Lembro-me de uma coisa que ele me
contara ter-lhe Faunia dito no resplendor crepuscular de uma das suas
noites, quando tanto parecia estar a passar-se entre eles. Ele dissera-lhe:
"Isto é mais do que sexo", e ela respondera, redondamente: "Não, não é. Tu
é que te esqueceste do que o sexo é. Isto é sexo. Sexo puro. Não lixes tudo
fingindo que é outra coisa."
Quem são eles agora? A versão mais simples possível de si mesmos. A
essência da singularidade. Tudo quanto é doloroso cristalizado em paixão.
Podem até já não lamentar que as coisas não sejam diferentes, Estão por de
mais entrincheirados na indignação para se preocuparem com isso, Saíram
de baixo de tudo quanto jamais se acumulou sobre eles, Nada na vida os
tenta, nada na vida os excita, nada na vida mitiga o seu ódio pela vida como
esta intimidade. Quem são estas pessoas radicalmente desiguais, tão
incongruentemente aliadas ali aos 71 e 34 anos? São a tragédia para a qual
foram intimadas, Ao ritmo da banda de Tommy Dorsay e ao som da voz
doce do jovem Sinatra, caminham, dançando completamente nus, para uma
morte violenta, todos neste mundo encenam um fim diferente, cada qual à
sua maneira, Esta é a maneira deles, Agora já não é possível deterem-se a
tempo, Não há volta; está decidido.
Não sou o único a escutar a música, da estrada,

Ao verificar que os meus telefonemas não obtinham resposta, presumi


que Coleman não queria mais nada comigo, Alguma coisa correra mal, e eu
supus, como é costume quando uma amizade termina abruptamente —
sobretudo tratando-se de uma amizade recente -, que a culpa era minha, se
não por alguma palavra ou acto irreflectido que o irritara ou ofendera
profundamente, então por ser quem sou e o que sou, Não esqueçamos que
Coleman me procurara pela primeira vez porque esperava, de modo
irrealista, persuadir-me a escrever o livro que explicasse como a
universidade matara a sua mulher. Permitir que este mesmo escritor metesse
agora o nariz na sua vida privada era provavelmente a última coisa que
desejava, Quanto a mim, não sabia que conclusões tirar, a nnão ser que
ocultar-me os pormenores da sua vida com Faunia passara a parecer-lhe,
por qualquer motivo, muito mais sensato do que continuar a fazer-me
confidências.
Claro que, nessa altura, eu não sabia nada acerca da sua verdadeira
origem — essa foi outra coisa que fiquei a saber conclusivamente no
funeral-, e por isso não podia imaginar sequer, que o motivo por que nunca
nos conhecêramos nos anos anteriores à morte de Iris, a razão por que ele
não quisera que nos conhecêssemos, decorria do facto de eu próprio ter
crescido a poucos quilómetros, apenas, de East Orange e, tendo um
conhecimento mais do que superficial da região, poderia ser demasiado
entendido, ou demasiado curioso, para não aprofundar as suas raízes em
New Jersey, E se eu tivesse sido um dos rapazes judeus de Newark a
frequentar as lições de boxe de Doc Chizner, depois das aulas? Na verdade
fui um deles, mas só em 1946 e 1947, altura em que Silky já não ajudava o
Doc a ensinar miúdos como eu como se deviam posicionar, movimentar ou
dar um soco, pois encontrava-se a estudar na NYU ao abrigo de uma bolsa
do GI Bill.
O facto é que, ao tornar-se meu amigo durante o tempo em que escreveu
o rascunho de Spooks, correu realmente o risco, e ainda por cima um risco
estúpido, de ser desmascarado, quase seis décadas depois, como o melhor
finalista negro do liceu de East Orange, o rapaz de cor do Morton Street
Box Club que participara em combates de boxe amador. em Jersey, antes de
entrar para a Marinha como branco, Afinal, abandonar-me no meio daquele
Verão fazia todo o sentido, embora eu não fosse capaz de imaginar porquê
Bem, voltemos à última vez que o vi. Num sábado de Agosto, levado
pela solidão, meti-me no carro e segui para Ianglewood, a fim de ouvir o
ensaio público do concerto do dia seguinte. Uma semana depois de ter
estacionado um pouco abaixo da casa dele, continuava a sentir a falta de
Coleman, assim como a falta da experiência de ter um amigo íntimo, e por
isso resolvi fazer parte do pequeno público que, aos sábados de manhã,
enche cerca de um quarto do Alpendre da Música para assistir aos ensaios,
um público constituído por veraneantes melómanos e estudantes de música
de visita à localidade, mas principalmente por turistas idosos, pessoas com
aparelhos auditivos, pessoas com binóculos e pessoas que folheiam o New
York Times, vindas de autocarro para passarem o dia nos Berkshire.
Talvez fosse por causa do insólito de me encontrar fora de casa, da breve
experiência de ser uma criatura sociável (ou uma criatura que fingia ser
sociável), ou talvez devido à fugaz sensação que tive de que os idosos que
se encontravam entre o público eram embarcados, deportados à espera de
serem conduzidos, flutuando na vivacidade leve da música, para fora da
clausura demasiado tangível da velhice, mas naquele sábado cheio de sol,
tocado por uma pequena brisa, do último Verão da vida de Coleman Silk o
Alpendre da Música não parava de me recordar os molhes de lados abertos
que em tempos avançavam cavernosamente pelo Hudson, como se um
desses espaçosos molhes travejados de aço do tempo em que os
transatlânticos atracavam em Manhattan tivesse sido erguido da água em
toda a sua enormidade, arremessado duzentos quilómetros para norte e
pousado, intacto, no espaçoso relvado ele Tanglewood, numa aterragem
perfeita entre as árvores altas e as paisagens arrebatadoras da montanhosa
Nova Inglaterra.
Quando me dirigia para um lugar vago e isolado que descobrira, um dos
poucos lugares vagos próximos do palco que ninguém reservara ainda
atirando-lhe para cima uma camisola ou um casaco, não parava de pensar
que íamos todos juntos para qualquer lado, que de facto já partíramos e
chegáramos, deixando tudo para trás — quando afinal estávamos a
prepararmo-nos para ouvir a Orquestra Sinfónica de Boston ensaiar
Rachmaninoff, Prokofiev e rinsky-Korsakov, O chão do Alpendre da
Música é de terra batida castanha, o que não podia tornar mais claro que a
nossa cadeira estava encalhada em terra firme, Empoleirados no topo da
construção, encontram-se os pássaros cujo piar ouvimos no silêncio pesado
entre os movimentos orquestrais, as andorinhas e as carriças que chegam,
num voo rápido das matas que descem pela encosta e depois partem de
novo, velozes, como pássaro algum teria precisado fazer para abandonar a
Arca flutuante de Noé. Estávamos a cerca de três horas de automóvel a
oeste do Atlântico, mas eu não conseguia libertar-me daquela dupla
impressão de me encontrar onde estava e, ao mesmo tempo, ter partido com
os restantes cidadãos idosos para uma misteriosa e desconhecida região
aquática inexplorada.
Seria apenas a morte que ocupava o meu espírito enquanto pensava nesse
desembarque? A morte e eu próprio? A morte e Coleman? Ou era a morte e
um conjunto de pessoas ainda capazes de sentir prazer em serem
transportadas de autocarro de um lado para o outro como um grupo de
campistas numa excursão estival, e contudo, como multitude humana
palpável, como entidade de carne sensitiva e sangue quente e vermelho,
separada do esquecimento pela mais delgada e mais frágil camada de vida?
O programa que precedera o ensaio estava a terminar quando cheguei.
Um apresentador animado, de camisa desportiva e calças de caqui,
encontrava-se diante das cadeiras vazias da orquestra a dar a conhecer ao
público a última das peças que ouviriam, tocando excertos de Rachmaninoff
num gravador e falando-lhes animadamente da "sombria qualidade rítmica"
das Danças Sinfónicas. Só quando ele acabou e o público irrompeu em
aplausos, alguém saiu dos bastidores para tirar as coberturas dos tímbales e
colocar as partituras nas estantes. Ao fundo do palco, apareceram dois
maquinistas com as harpas e a seguir entraram os músicos, conversando
entre si, todos eles, como o apresentador, vesti·dos informalmente para o
ensaio: um oboísta de camisola de treino cinzenta com capuz, dois
contrabaixistas ele Levi's debotadas e depois os violinistas, homens e
mulheres vestidos do mesmo modo, segundo me pareceu pela Banana
Republic. Enquanto o maestro punha os óculos — um maestro convidado,
Sergiu Commissiona, um romeno idoso, de camisola de gola alta, cabeleira
branca e sapatos de lona azuis — e o público infantilmente cortês
recomeçava a aplaudir, vi Coleman e Faunia descerem a coxia à procura de
lugares perto da frente.
Os músicos, aquele grupo de veraneantes aparentemente despreocupados
prestes a metamorfosear-se numa lubrificada e potente máquina de música,
já se tinham instalado nos seus lugares e estavam a afinar os instrumentos
quando o casal — a mulher loura, alta e de rosto descarnado e o bonito e
esbelto homem grisalho, menos alto e muito mais velho do que ela, apesar
do andar ainda atlético e leve — se dirigiu para os dois lugares vagos, três
filas à minha frente e uns cinco metros à minha direita.
A peça de Rimsky-Korsakov era um melodioso conto de fadas de oboés e
flautas cuja suavidade o público achou irresistível, e quando a orquestra
chegou ao fim da primeira parte soaram de novo aplausos entusiásticos,
como se uma vaga de inocência jorrasse da multidâu de idosos. Os músicos
tinham de facto posto a nu as mais jovens e inocentes das nossas ideias de
vida, o indestrutível desejo ardente daquilo que as coisas não são nem
nunca podem ser. Pelo menos foi isso que eu pensei quando desviei o olhar
para o meu ex-amigo e a sua amante e vi que não pareciam de modo algum
tão invulgares ou humanamente isolados como passara a imaginá-los desde
que Coleman desaparecera da vista. Não tinham nada o ar de pessoas
ímoderadas, sobretudo Faunia, cujas cinzeladas feições ianques me
lembravam um quarto estreito com janelas, mas sem porta. Nada nos dois
parecia em conflito com a vida ou ao ataque — e na defensiva também não.
Se estivesse sozinha neste meio que não lhe era familiar, talvez Faunía não
se sentisse tão à vontade como parecia, mas, com Coleman a seu lado, a sua
afinidade com o ambiente não parecia menos natural do que a sua afinidade
com ele.
Não tinham nada o aspecto de um par de malfeitores, ali sentados juntos,
mas antes de um casal que atingira um grau supremo de serenidade,
absolutamente alheio a quaisquer dos sentimentos e fantasias que a sua
presença pudesse suscitar em qualquer parte do mundo, e muito menos no
condado de Berksbire.
Perguntei a mim mesmo se Coleman a teria instruído de antemão quanto
à maneira como queria que se comportasse. E se ela lhe teria dado ouvidos,
se ele o fizesse. E se teria sido necessário instruí-la. E por que razão a teria
ele levado a Ianglewood. Simplesmente porque queria ouvir a música?
Porque queria que ela a ouvisse e visse os músicos ao vivo? Com os
auspícios de Afrodite, disfarçado de Pigmalião e nas imediações de
Tanglewood, estaria agora o professor reformado de literatura clássica a dar
vida à transgressiva e recalcitrante Faunia na pele de uma Galateia
requintadamente civilizada? Teria Coleman empreendido a tarefa de a
educar, de a influenciar — teria ele chamado a si a missão de a libertar da
tragédia da sua singularidade? Seria Tanglewood um primeiro grande passo
no sentido de tornar o desregramento de ambos em algo menos heterodoxo?
Porquê tão cedo? Porquê, simplesmente? Porquê, se tudo quanto tinham e
eram juntos nascera do oculto e do clandestinamente primitivo? Porquê dar-
se ao trabalho de normalizar ou regularizar esta doença, porquê tentar,
sequer, fazê-lo mostrando-se como um "casal"? Sendo que dar carácter
público a uma coisa tende apenas a corroer a sua intensidade, é isso que, de
facto, querem? O que quer ele? Domesticar tornara-se, agora, essencial às
suas vidas, ou o facto de estarem aqui não tem semelhante significado?
Tratar-se-ia de alguma partida da parte deles, de uma atitude pensada para
agitar, de uma provocação deliberada? Estavam a sorrir intímamente,
aqueles animais lascivos, ou encontravam-se ali apenas para ouvir música?
Como não se levantaram para desentorpecer as pernas ou darem uma
volta enquanto a orquestra fazia um intervalo e um piano era empurrado
para o palco — para o 2.º concerto para Piano de Prokofiev -, permaneci
também no meu lugar. A temperatura dentro do Alpendre estava um pouco
fresca, de uma frescura que parecia mais outonal do que estival, embora o
sol brilhante que inundava o grande relvado aquecesse aqueles que
preferiam ouvir a música e passar um bom bocado no exterior, um público
maioritariamente jovem constituído por casais de vinte e poucos anos, mães
com filhos pequenos ao colo e familias que tinham vindo fazer piqueniques
e começavam a tirar os almoços dos cestos. Três filas à minha frente,
Coleman, com a cabeça ligeiramente inclinada para ela, falava de modo
tranquilo e sério com Faunia, mas, claro, eu não sabia a respeito de quê.
Porque nós não sabemos, pois não? Toda a gente sabe. O que faz as
coisas acontecerem da maneira que acontecem? O que está subjacente à
anarquia da sequência dos acontecímentos, às incertezas, às contrariedades,
à desunião, às irregularidades chocantes que definem os assuntos humanos?
Ninguém sabe, professora Roux. — Toda a gente sabe", a invocação do
lugar-comum e o início da banalização da experiência, e o que se torna
insuportável é a solenidade e a noção de autoridade que as pessoas sentem
quando exprimem o lugar-comum.
O que nós sabemos é que, de um modo que não tem nada de lugar-
comum, ninguém sabe coisa nenhuma. Não podemos saber nada. Mesmo as
coisas que sabemos, não as sabemos. Intenção? Motivo? Consequência?
Significado? É espantosa a quantidade de coisas que não sabemos. E mais
espantoso ainda é o que passa por saber.
À medida que o público voltava, comecei a imaginar, caricaturalmente, a
doença fatal que, sem ninguém dar por isso, estava a instalar-se dentro de
nós, dentro de todos e cada um de nós: a visualizar os vasos sanguíneos a
entupir-se debaixo dos bonés de basebol, ~ tumores malignos a proliferar
debaixo das permanentes dos cabelos brancos, os órgãos que funcionavam
mal, se atrofiavam e paravam, as centenas de milhares de milhões de
células assassinas que conduziam sub-repticiamente todo aquele público
para a catástrofe imprevisível que o esperava. Não pude travar a
imaginação. A espantosa razia da morte a arrebatar-nos a todos, a dizimar-
nos. Orquestra, público, maestro, técnicos, andorinhas, carríças. imaginem
os números fabulosos só em Tanglewood, entre este momento e o ano 4000.
Depois multipliquem isso por tudo. A extinção incessante. Que ideia! Que
louco a concebeu? E, no entanto, que belo dia o de hoje, um dia que é uma
verdadeira dádiva, um dia perfeito a que não falta nada do que é próprio de
um lugar de veraneio do Massachusetts, ele próprio tão inofensivo e bonito
como qualquer outro no mundo.
Depois aparece Bronfman. Bronfman, o brontossauro! O Sr. Rortissimoí
Entra Bronfman para tocar Prokofiev a tal ritmo e com tal arrebatamento
que põe a minha morbidez completamente fora de combate. Tem a parte
superior do tronco extraordinariamente maciça, uma força da natureza
camuflada por uma camisola de treino, dír-se-ia alguém que entrou no
Alpendre da Música vindo de um circo onde é o colosso e que considera o
piano um desafio ridículo à força gargantuesca com que se delicia. Yefim
Bronfman parece menos a pessoa que vai tocar piano do que o indivíduo
que devia transportá-lo. Eu nunca tinha visto ninguém atirar-se a um piano
como este judeu russo robusto, baixo e de barba crescida. Quando ele
acabar, pensei, têm de deitar aquilo fora. Ele esmaga-o. Não deixa aquele
piano esconder nada. Seja o que for que exista lá dentro, vai sair, e sair de
mãos no ar. E quando isso acontece, quando está tudo cá fora até à
derradeira pulsação, ele levanta-se e sai deixando atrás de si a nossa
redenção. Desaparece subitamente com um desenvolto aceno de mão, e
embora leve consigo todo o seu fogo, com uma força que não fica a dever
nada a Prometeu, as nossas próprias vidas parecem agora inextinguíveis.
Ninguém vai morrer — ninguém — não se depender de Bronfman.
Houve outro intervalo no ensaio e quando, desta vez, Faunia e Coleman
se levantaram para sair do recinto, eu fiz o mesmo. Esperei que me
precedessem, sem saber como dirigir-me a Coleman ou — visto parecer que
já não tinha mais interesse por mim do que por qualquer outro dos presentes
— se devia sequer dirigir-me a ele. No entanto, sentia falta da sua
companhia. E que mal lhe fizera? Este desejo forte de um amigo veio à
superfície exactamente como na primeira vez que nos encontráramos e, de
novo, por causa de um magnetismo que existia em Coleman, de uma
atracção que nunca soube definir, não descobri nenhuma maneira eficaz de
o conter.
Observei-os de cerca de três metros de distância, enquanto seguiam
devagar, no meio dum grupo de pessoas que arrastavam os pés, peja coxia
que levava ao relvado cheio de sol. Coleman novamente a falar em voz
baixa com Faunia, com a palma da mão entre as suas omoplatas,
conduzindo-a ao mesmo tempo que lhe explicava o que quer que estava a
explicar-lhe a respeito fosse do que fosse que ela não sabia. Uma vez no
exterior, começaram a atravessar o relvado, presumivelmente a caminho do
portão principal e do campo de terra batida que servia de parque de
estacionamento, e eu não fiz qualquer tentativa para os seguir. Quando olhei
por acaso para trás, na direcção do Alpendre, reparei que os oito belos
contrabaixos se encontravam muito bem alinhados, sob as luzes do palco,
onde os músicos tinham deixado, a descansar de lado, antes de saírem para
o intervalo. Mais uma vez, não consegui fazer a mínima ideia do motivo por
que também esse pormenor me trouxe ao pensamento a morte de todos nós.
Um cemitério de instrumentos musicais na horizontal? Não poderiam ter
evocado a imagem mais alegre de um grupo de baleias?
Estava no relvado, a endireitar o corpo e a receber o calor do Sol nas
costas durante mais alguns segundos, antes de voltar para o meu lugar para
ouvir Rachmaninoff, quando os vi regressar — aparentemente, tinham-se
afastado apenas para dar uma volta pelo terreno, talvez para Coleman
mostrar a Faunia as paisagens da parte sul -, agora para ouvirem a
orquesstra concluir o ensaio livre com as Danças Sinfónicas. Na esperança
de conseguir mais alguma coisa, resolvi ir directamente ao encontro deles,
apesar de continuarem com o ar de duas pessoas cuja vida não era da conta
de ninguém, a não ser da sua. Acenei a Cpleman, acenei-lhe e disse:
— Olá, viva. Olá, Coleman — e barrei-lhes o caminho.
— Pareceu-me vê-lo — respondeu ele, e eu, embora não acreditasse nas
suas palavras, pensei: Que melhor maneira de a pôr à vontade? De me pôr à
vontade. De se pôr à vontade. Com uma expressão onde havia apenas o
encanto próprio do reitor complacente e obstínado, e pelo menos na
aparência nada aborrecido com o meu súbito aparecimento, Coleman
comentou:
— Mr. Bronfman é espantoso. Estava a dizer a Faunia que ele tirou pelo
menos dez anos àquele piano.
— Eu pensei mais ou menos o mesmo.
— Faunia Farley, Nathan Zuckerman — acrescentou, apresentando-nos
um ao outro. Vocês viram-se na herdade.
Mais próxima da minha altura do que da dele. Magra e austera. Olhos
que pouco ou nada diziam. Um rosto que não era, decididamente,
expressivo. Sensualidade? Zero. Não a vi em parte alguma. Fora da sala de
ordenha apagava-se tudo quanto havia de sedutor. Seguia até tornar-se
mimética, como se nem sequer ali estivesse para ser vista. A faculdade de
um animal, seja predador ou presa.
Estava de jeans debotados e mocassins — como Coleman — e camisa
velha aos quadrados, com as pontas do colarinho presas por botões e as
mangas arregaçadas, que reconheci como sendo dele.
— Tenho sentido a sua falta — disse a Coleman. — Talvez os convide
para jantar em qualquer lado, uma noite destas.
— Boa ideia. Pois sim, façamos isso.
Faunia deixara de prestar atenção. Olhava para as copas das árvores. O
vento fazia-as oscilar, mas ela olhava-as como se estivessem a falar. Percebi
então que tinha qualquer coisa a menos, e não se tratava da capacidade de
acompanhar uma conversa banal. Gostava de saber dar um nome àquilo a
que me referia. Não era inteligência. Não era compostura. Não era decoro
ou decência — ela seria capaz de imitar isso com facilidade. Não era
profundidade — o problema não era a superficialidade. Não era
introspecção — via-se que, introspectivamente, estava a braços com muita
coisa. Não era sanidade mental — era mentalmente sã,, de um modo tímido,
dir-se-ia até altiva, senhora de uma superioridade outorgada pelo
sofrimento. Apesar disso, uma parte dela não estava, decididamente, ali.
Reparei no anel que usava no dedo médio da mão direita. A pedra era de
um branco leitoso. Uma opala. Tive a certeza de que fora ele quem lho dera.
Em contraste com Faunia, Coleman era muito mais consistente. De um
modo enganoso.
Não tinha a mínima intenção de ir com Faunia jantar comigo. Ou fosse
com quem fosse, -- Na Estalagem de Madarnaska — sugeri. — Jantávamos
ao ar livre. Que tal?
Nunca tinha visto Coleman tão afável como quando me disse, mentindo:
— Na estalagem, muito bem. Temos de ir. Mas permita que sejamos nós
a convidá-lo, Depois falamos — disse, subitamente cheio de pressa e
agarrando a mão de Faunia. Inclinou a cabeça na direcção do Alpendre da
Música e acrescentou: — Quero que Faunia ouça o Rachmaninoff.
E partiram, os amantes, "desapareceram", como no poema de Keats, "na
tempestade. Acontecera tanta coisa num escasso par de minutos — ou
parecia que tinha acontecido, pois de facto nada importante se passara —
que em vez de voltar para o meu lugar comecei a vaguear por ali ao acaso,
quase como um sonâmbulo, atravessando sem destino o relvado sarapintado
de gente a fazer piqueniques, percorrendo meio caminho até ao Alpendre da
Música, voltando para trás até onde a vista dos Berkshire, no pino do Verão,
é praticamente tão boa como as melhores que é possível desfrutar a leste
das Rochosas. Ouvia, ao longe, o som das danças de Rachmaninoff que
vinha do Alpendre, mas tirando isso era como se estivesse ali sozinho,
profundamente embrenhado nas dobras daqueles montes verdes. Sentei-me
na relva, estupefacto, incapaz de explicar o que estava a pensar: ele tem um
segredo. Este homem idealizado de acordo com os mais convincentes e
credíveis traços emocionais, esta força com uma história como tal, este
homem benignamente as tu cioso, suavemente encantador e aparentemente
viril em todos os aspectos, tem, no entanto, um segredo imenso. Como
chego a esta conclusão? Porquê um segredo? Porque está ali, sente-se,
quando ele está com ela. E também quando não está com ela. É no segredo
que vejo o magnetismo dele. O que fascina é qualquer coisa que não está
ali, e é isso que me tem1 atraído desde o princípio, o enigmático não sei quê
que ele mantém à parte, que reserva como seu e de mais ninguém.
Organizou-se como a Lua, para ser só metade visível. E eu não posso torná-
lo totalmente visível. Há um espaço em branco. É só isso que vejo. Eles
são, juntos, um par de espaços em branco. Há um espaço em branco nela e,
apesar do seu ar de homem firmemente estável e até, sendo preciso, um
adversário obstinado e decidido o colérico gigante da universidade que
preferiu demitir-se a aceitar os humildes disparates dos seus pares -, há
também, algures, um espaço em branco nele, uma rasura, uma excisão,
embora eu não faça a mínima ideia do quê... não saiba sequer se existe,
realmente, alguma lógica nesta intuição ou se estarei apenas a fantasiar,
com especulações extravagantes, a minha ignorância a respeito de outro ser
humano.
Somente cerca de três semanas depois, quando tomei conhecimento do
segredo e comeceí a escrever este livro — o livro que, afinal, ele começara
por me pedir que escrevesse, mas não necessariamente como ele desejava -,
só então compreendi o sustentáculo do pacto existente entre ambos: ele
contara-lhe toda a sua história. Só Faunia sabia como Coleman Silk se
tornara aquilo que era. Como sei que ela sabia? Não sei. Também não podia
saber isso. Não posso saber. Agora que eles morreram, ninguém pode saber.
Para o melhor ou para o pior, só posso fazer o que fazem todos aqueles que
pensam que sabem. Imagino. Sou obrigado a imaginar. Acontece que é
assim que ganho a vida. É o meu ofício. É tudo quanto faço agora.

Depois de Les sair do hospital dos ex-combatentes e se juntar ao seu


grupo de apoio além de não voltar a beber nem dar em louco, o grande
objectivo de Louie Borrero para ele era uma peregrinação ao Muro — se
não ao verdadeiro, ao monumento em memória dos soldados mortos no
Vietname, em Washington, pelo menos ao Muro Itinerante, quando em
Novembro chegasse a Pittsfield. Washington D.C. era uma cidade onde Les
jurara jamais pôr os pés, em virtude do ódio que tinha ao governo e, desde
1992, ao seu desprezo pelo manhoso que fugira ao recrutamento e dormia
na Casa Branca. De qualquer modo, fazê-lo viajar do Massachusetts para
Washington seria pedir de mais: para alguém acabado de sair do hospital,
isso representaria um excesso de emoção ao longo de demasiadas horas de
viagem de ida e volta, de autocarro.
A fim de preparar Les para o Muro Itinerante, Louie recorreu ao mesmo
método que usava para todos os outros: começou por levá-lo a um
restaurante chinês, fazer Les ir com os outros quatro ou cinco tipos comer
um jantar chinês, levá-lo tantas vezes quantas fossem necessárias — duas,
três, sete, doze, até mesmo quinze, se fosse preciso — até ele aguentar uma
refeição completa, comer todos os pratos desde a sopa à sobremesa, sem
ficar com a camisa encharcada em suor, sem tremer tanto que não conseguia
levar a colher da sopa à boca, sem correr para a rua de cinco em cinco
minutos para respirar, sem acabar a vomitar na casa de banho e escondido
na retrete fechada à chave, sem, evidentemente, perder por completo a
tramontana e querer disparar contra o empregado de mesa chinês.
Louie Borrero estava cem por cento ligado ao serviço, deixara as drogas
e tomava os seus medicamentos havia já doze anos, e costumava dizer que
ajudar ex-combatentes era a sua terapia. Trinta e tal anos volvidos, ainda
havia muitos veteranos do Vietname a sofrer e por isso ele passava quase
todos os seus dias a percorrer o estado na sua carrinha, dirigindo grupos de
apoio a veteranos e às suas famílias, arranjando-lhes médicos, levando-os a
reuniões dos AA, ouvindo toda a espécie de problemas domésticos,
psiquiátricos, financeiros, dando conselhos sobre complicações com a
Associação de Veteranos e tentando levar os homens a Washington, para
verem o Muro.
O Muro era a menina-dos-olhos de Louie. Organizava tudo: alugava os
autocarros tratava da parte relacionada com as refeições e, com a sua afável
camaradagem, cuidava pessoalmente dos homens a quem aterrava o medo
de chorarem demasiado alto, ou vomitarem, ou terem um ataque cardíaco e
morrerem. Eles começavam todos por se esquivar, dizendo mais ou menos a
mesma coisa: "Nem pensar. Não sou capaz de ir ver o Muro. Não sou capaz
de ir e ver lá o nome de Fulano e Cicrano. Não, nem pensar. Não sou capaz"
Les, por exemplo, dissera-lhe: "Ouvi falar da tua última viagem. Contaram-
me que correu tudo mal. Vinte e cinco dólares por cabeça para o autocarro
alugado. Devia incluir almoço, mas os rapazes disseram todos que o almoço
era uma merda, não valia nem dois dólares. E aquele gajo de Nova Iorque
não quis esperar, o motorista. Não é verdade, Lou. Queria voltar cedo, para
ir a Atlantic City. Atlantic City! Não me lixem com merdas dessas, pá. A
apressar tudo e todos e depois ainda queria uma gorjeta choruda? Não vou
nisso, Louie Nem pensar, porra. Se tivesse de ver dois gajos de camuflados
cair nos braços um do outro a soluçar, vomitava as tripas"
Mas Lou sabia o que uma visita podia significar. "Les, estamos em 1998.
No fim do século XX, Lester Já é tempo de começares a encarar esta coisa.
Eu sei que não podes fazer tudo de uma vez e ninguém to vai pedir. Mas
chegou a altura de organizares o teu programa, amigo. Chegou a altura. Não
vamos começar pelo Muro. Vamos começar com calma.. Vamos começar
por um restaurante chinês"
Mas para Les isso não era começar com calma. Les só ia à loja de pronto-
a-comer; em Athena, se ficasse à espera na caninha enquanto Faunia ia
buscar a comida. Se entrasse tinha vontade de matar os amarelos todos mal
os visse. "Mas eles são chineses", dizia-lhe Faunia "não são vietnamítas.,
"Uma merda! Não quero saber que porra eles são! Para mim contam como
amarelos! Um amarelo é um amarelo"
Como se não chegasse andar a dormir mal nos últimos vinte e seis anos,
na semana que antecedeu a ida ao restaurante chinês não dormiu nada. Deve
ter telefonado a Louie umas cinquenta vezes, para lhe dizer que não podia
ir, e uma boa metade desses telefonemas foram feitos depois das três horas
da manhã. Mas Louie atendia fossem que horas fossem, deixava-o dizer
tudo quanto lhe passava pela cabeça, concordava até com ele e murmurava
pacientemente "Sim, sim ... sim, sim ... sim, sim", mas no fim calava-o
sempre da mesma maneíra: "Vais ficar lá sentado, Les, o melhor que
puderes. É só isso que tens de fazer. seja o que for que sintas, seja tristeza,
seja cólera, seja o que for — o ódio, a raiva -, vamos lá todos contigo e tu
vais fazer um esforço para ficares sentado sem fugir ou fazer qualllalquer
asneira." "Mas o criado", protestava Les, "como raio vou lidar com o sacana
do criado? Não posso, Lou. , . Vou perder a puta da cabeça" "Eu encarrego-
me do criado. A única coisa que tens de fazer é ficar sentado. A qualquer
outra objecção que Les fizesse, incluindo o perigo de matar o criado, Louie
respondia que ele só tinha de ficar sentado. Como se isso chegasse, ficar
sentado, para impedir um homem de matar o seu pior inimigo.
Iam cinco na carrinha de Louie quando, uma noite, foram a Blackwell,
duas semanas apenas depois de Les ter alta do hospital. Louie, o mãe-pai-
irmão-chefe, um indivíduo calvo, de carara rapada, vestido a preceito com
roupas bem engomadas, com o boné preto de veterano do Vietname e
bengala, que, com a sua baixa estatura, os seus ombros descaídos e a sua
barriga lembrava um pouco um pinguim, por causa das pernas doentes que
lhe tornavam o andar hirto. Dois calmeirões que nunca falavam muito:
Chet, o pintor da construção civil três vezes divorciado que fora marine —
três mulheres diferentes, mortas de medo daquele brutamontes obtuso e
com rabo de cavalo, que nunca tinha o mínimo desejo de trabalhar -, e
Lince, um ex-fuzileiro a quem uma mina terrestre levara um pé e que
trabalhava agora para Midas Muffler. Por fim, um indivíduo excêntrico e
subnutrido, um asmático escatifrado e cheio de tiques a quem faltavam
quase todos os molares e que dizia chamar-se Swift, pois mudara
legalmente de nome depois de desmobilizado, como se o facto de o nome
ser Ioe Brown ou BiIl Green, ou lá quem fora quando o tinham recrutado, o
fizesse saltar todas as manhãs da cama cheio de alegria desde que voltara
para casa. Depois do Vietname, a saúde de Swift quase fora destruída por
toda a espécie de doenças dermatológicas, respiratórias e neurológicas, e
agora estava a ser devorado por um antagonismo contra os ex-combatentes
da Guerra do Golfo que conseguia exceder, até, o desprezo de Les iurante
todo o trajecto para Blackwell, com Les já a começar a tremer e a sentir-se
indisposto. Swift compensou largamente o silêncio dos calmeirões. A sua
voz de asmático não parava. "O maior problema deles é não poderem ir
para a praia? Sentem-se mal na praia qando vêem a areia? Merda. Soldados
de fim-de-semana que, de repente, têm de ver um pouco de guerra a sério. É
por isso que estão chateados: todos na reserva, sem nunca lhes passar pela
cabeça que iam se chamados, até que foram mesmo chamados. E não
fizeram puto.Não sabem o que é a guerra. Chamam guerra àquilo? Uma
guerra de quatro dias, no chão? Quantos amarelos mataram? Estão todos
traumatizados porque não apanharam o Saddam Hussein. Tinham um
inimigo: Saddam Hussein. Não me lixem. Esses gajos não têm nenhum
problema. O que eles querem é facturar sem terem dado ao coco. Uma
fogagem.
Sabem quantas fogagens eu tive por causa do Agente Laranja? Não vou
chegar aos sessenta e esses gajos estão preocupados por causa de uma
fogagem!"
O restaurante chinês ficava no lado norte de Blackwell, na auto-estrada,
logo a seguir à fábrica de papel de janelas entaipadas e de costas para o rio.
O edifício de blocos de cimento era baixo, comprido e cor-de-rosa, com
uma montra de chapa de vidro à frente e metade pintado, para parecer que
era feito de tijolo — de tijolo cor-de-rosa. Anos atrás, fora um recinto para
jogar boliche. Na grande montra, tremeluzentes letras de néon, traçadas de
maneira a darem a impressão de serem caracteres chineses, anunciavam:
Palácio da Harmonia.
Bastou aquele letreiro para apagar em Les o mínimo vislumbre de
esperança. Não podia fazer aquilo. Jamais conseguiria fazer aquilo. Ia
soçobrar por completo.
A monotonia de repetir aquelas palavras e, apesar disso, a força de que
precisava para vencer o terror. O rio de sangue que tinha de atravessar para
chegar ao amarelo sorridente que se encontrava à porta e sentar-se à mesa.
E o horror, um horror de enlouquecer contra o qual não existia protecção,
do amarelo sorridente que lhe estendeu o cardápio. O grotesco absoluto do
amarelo que lhe deitou um copo de água. Servir-lhe água, a ele! A fonte de
todo o seu sofrimento podia ter sido aquela água. O que demonstra até que
ponto tudo aquilo o enlouquecia.
— Calma, Les, estás a sair-te bem. Muito bem, mesmo — tranquilizou-o
Louie. — Tens de escolher um prato de cada vez. Por enquanto, vai tudo
muito bem. Agora quero que te entendas com o cardápio. É só isso. O
cardápio, mais nada. Abre-o, anda, e concentra-te nas sopas. A única coisa
que tens de fazer agora é pedir a tua sopa. Só isso. Se não conseguires
decidir, nós decidimos por ti. Eles têm uma óptima sopa wan tan.
— Sacana de criado — resmungou Les.
— Ele não é o criado, Les. Chama-se Henry e é o patrão. Temos de nos
concentrar na sopa, Les, Henry está aqui para dirigir o seu estabelecimento.
Para ter a certeza de que corre tudo como deve ser. Nem mais, nem menos.
Não sabe nada a respeito de tudo o resto. Não sabe nem quer saber. E então,
quanto à tua sopa?
— O que vão vocês comer? — Ele tinha dito aquilo. Les. No meio do seu
drama desesperado, ele, Les, tinha conseguido desligar-se de toda a
confusão e tormento e perguntado o que eles iam comer.
— Wan tan — responderam todos.
— Está bem. Wan tan.
— Está decidido — disse Louie. — Agora vamos ter de pedir o resto.
Repartimos? Seria de mais, Les, ou queres pedir uma coisa só para ti? O
que queres, Les? Frango, legumes, carne de porco? Queres lo mein? Com
noodles?
Ele tentou recorrer ao estratagema anterior, para ver se pegava:
— O que é que vocês vão pedir?
— Bem, Les, uns vão querer carne de porco, outros carne de vaca ...
— Tanto me faz! — E tanto lhe fazia porque tudo aquilo estava a
acontecer noutro planeta, aquele fingimento de que estavam a pedir comida
chinesa. Não era isso que estava realmente a acontecer.
— Carne de porco salteada? Carne de porco salteada para Les. Está
decidido. Agora só precísas de te concentrar e deixar Chet servir-te chá.
Está bem?
— Mantém o sacana do criado longe daqui — pediu Les, pois detectara
um movimento pelo canto do olho.
— Por favor, por favor — disse Louie, dirigindo-se ao empregado de
mesa. — Se ficar onde está, nós levamos-lhe o nosso pedido. Espero que
não se importe. Nós levamos-lhe o pedido ... mantenha-se onde está.
Mas o homem pareceu não compreender e, quando ele recomeçou a
aproximar-se, Louie levantou-se, atrapalhada mas rapidamente, apesar das
pernas doentes.
— Por favor! Nós levamos-lhe o pedido. Aí. Está bem? — Louie voltou a
sentar-se.
— Muito bem — disse, acenando com a cabeça ao homem, que se
imobilizara a uns três metros de distância. — Está muito bem assim. Está
perfeito.
O Palácio da Harmonia era um lugar escuro, com plantas artificiais ao
longo das paredes e umas cinquenta mesas dispostas em filas a todo o
comprimento da extensa sala de jantar. Só algumas estavam ocupadas e
todas elas suficientemente afastadas, de modo que nenhum dos outros
clientes pareceu reparar na breve agitação ocorrida no lado onde os cinco
homens estavam a comer. Como medida de precaução, Louie certificava-se
sempre, ao entrar, de que Henry instalava o seu grupo numa mesa afastada
de toda a gente. Ele e o proprietário do restaurante já tinham passado por
aquilo antes.
— Ora bem, Les, a situação está controlada. Já podes largar o cardápio.
Les, larga o cardápio, Tira primeiro a mão direita. E agora a esquerda. Isso.
O Chet dobra-o.
Os calmeírões, Chet e Lince, tinham-se sentado um de cada lado de Les.
Louie nomeara-os "polícias militares" da noite e eles sabiam como agir se
Les fizesse alguma coisa errada. Swift estava na outra extremidade da mesa
redonda ao lado de Louie, que se encontrava defronte de Les. Naquele
momento, no tom de voz prestatívo que um pai usaria para ensinar um filho
a andar de bicicleta, Swift disse a Les:
— Lembro-me da primeira vez que vim aqui. Julguei que não
conseguiria chegar ao fim. Tu estás a safar-te muito bem. Na minha
primeira vez, não fui sequer capaz de ler o cardápio, As letras pareciam
nadar direitas a mim. Pensei que ia atirar-me contra a montra. Tive de ser
levado lá para fora por dois tipos, pois não conseguia estar quieto. Tu estás
a ir muito bem, Les.
Se Les tivesse sido capaz de reparar em alguma coisa além do muito que
as suas próprias mãos tremiam, ter-se-ia lembrado de que nunca vira Swift
sem os seus tiques. Sem os seus tiques e sem remar. Fora por isso que Les o
levara: porque ajudar alguém durante a refeição chinesa parecia ser a coisa
que Swift sabia fazer melhor. Ali, no Palácio da Harmonia, como em
nenhum outro lugar, Swift parecia reencontrar momentaneamente a
realidade, Ali, a impressão que costumava transmitir de ser alguém que
rastejava de gatas pela vida tornava-se muito ténue. Ali, naquele azedo e
achacado destroço humano, vislumbrava-se um resquício minúsculo e
esfrangalhado do que em tempos fora coragem.
— Estás a ir muito bem, Les — repetiu. — Precisas apenas de um pouco
de chá. Deixa o Chet servir-to.
— Respira — disse Louie. — Isso mesmo. Respira. Se não conseguires
continuar depois da sopa, vamo-nos embora. Mas tens de te aguentar
durante o primeiro prato. Se não puderes ir até ao fim com a carne de porco
salteada, paciência, fica para outra vez. Mas tens de ir até ao fim com a
sopa. Vamos combinar uma palavra de código, para o caso de te quereres ir
embora. Uma palavra de código que me dirás quando só houver uma saída,
Que tal "folha de chá"? Bastará dizeres isso e vamo-nos embora. Folha de
chá. Se precisares, dizes isso. Mas só se precisares.
O empregado de mesa estava parado a pouca distância, a segurar um
tabuleiro com cinco taças de sopa. Chet e Lince levantaram-se ao mesmo
tempo, foram buscar a sopa e levaram-na para a mesa.
Agora Les só quer uma coisa: dizer "folha de chá" e cavar dali para fora.
Por que não o faz? Tenho de cavar daqui. Tenho de cavar daqui.
Repetindo mentalmente a frase "tenho de cavar daqui", consegue
mergulhar numa espécie de transe e, mesmo sem nenhum apetite, começar a
comer a sopa. Engolir um pouco de caldo. "lenho de cavar daqui" apaga o
empregado de mesa e apaga o proprietário, mas não apaga as duas mulheres
que, numa mesa junto da parede, descascam ervi-lhas e deitam os bagos
numa panela. Apesar de estarem a dez metros de distância, Les capta o
cheiro da água-ele-colónia barata que puseram atrás das quatro orelhas de
amarelas, um cheiro que é tão pungente para ele como o de terra húmida.
Com a mesma força fenomenal de sobrevivência que lhe permitiu detectar o
pivete de corpo sujo de um atirador silencioso na densidade negra de uma
selva vietnamíta, sente o cheiro das mulheres e começa a descontrolar-se.
Ninguém lhe disse que estariam ali mulheres a fazer aquilo. Quanto tempo
vão continuar a fazer aquilo? Duas mulheres jovens. Amarelas. Por que
estão ali sentadas a fazer aquilo? "Tenho de cavar daqui" Mas não pode
mexer-se, porque não consegue desviar a sua atenção das duas mulheres.
— Por que estão aquelas mulheres a fazer aquilo? — pergunta a Louie.
— Por que não param de fazer aquilo? Têm de continuar a fazer aquilo?
Vão passar a noite inteira a fazer aquilo? Vão continuar a fazer aquilo,
interminavelmente? Há alguma razão para isso? Alguém me sabe dizer qual
é a razão? Manda-as parar com aquilo.
— Acalma-te — aconselha Louie.
— Eu estou calmo. Quero apenas saber se vão continuar a fazer aquilo.
Alguém as pode parar? Ninguém se lembra de uma maneira de as fazer
parar?
O tom da sua voz elevou-se e não é mais fácil evitar que isso aconteça do
que fazer parar aquelas mulheres.
— Les, estamos num restaurante. Num restaurante descascam-se
ervilhas.
— Ervilhas — repete Les. — Aquilo são ervilhas!
— Les, tens a tua sopa e o teu prato seguinte está a chegar. O prato
seguinte: neste momento, isso é tudo o que importa, é o mundo inteiro. A
única coisa que tens de fazer é corner um pouco de carne de porco salteada,
e acabou-se.
— Não quero mais sopa.
_ Não? — pergunta Lince. — Não vais comer isso? Não queres mais?
Cercado por todos os lados pela catástrofe iminente — durante quanto
tempo pode a angústia transformar-se em comer? -, Les consegue
responder, entredentes. "Podes comê-la.
E é então que o empregado de mesa se mexe, com a intenção de ir buscar
os pratos vazios.
— Não! — berra Les, e Louie levanta-se de novo e, com o ar de um
domador de leões do circo — e Les tenso e pronto para o ataque do
empregado -, aponta a bengala ao homem, fazendo-lhe sinal para recuar.
— Fique ali — diz ao empregado. — Fique ali. Nós levamos-lhe os
pratos vazios. Não se aproxime de nós.
As mulheres que descascavam ervilhas pararam, sem ser preciso Les
levantar-se e ir dizer-lhes que parassem.
E agora é evidente que Henry já percebeu o que se passa. Aquele homem
alto, magro e sorridente, o jovem dejeans, camisa berrante e ténis de corrida
que serviu a água e é o propríerárío, olha fixamente para Les, da porta.
Sorri, mas olha fixamente. Aquele homem é uma ameaça. Está a bloquear a
saída. Henry tem de se afastar.
— Está tudo bem — grita Louie a Henry. — A comida está muito boa.
Excelente. É por ISSO que nós voltamos. — E acrescenta, dirigindo-se ao
empregado de mesa: — Faça o que eu disser. — Baixa a bengala e senta-se.
Chet e Lince recolhem os pratos vazios e vão empílhá-los no tabuleiro do
empregado.
— Mais alguém? — pergunta Louíe. — Mais alguém tem uma história
acerca da sua primeira vez?
— Não — responde Chet, enquanto Lince se entrega à agradável tarefa
de comer a sopa de Les.
Desta vez, assim que o empregado sai da cozinha com o resto do pedido,
Chet e Lince levantam-se de imediato e vão ao encontro do idiota do
amarelo, antes que o sacana tenha tempo de se esquecer e comece a dirigir-
se de novo para a mesa.
E agora está ali à sua frente. A comida. O tormento que é a comida.
Carne de vaca com camarões lo mein. Caçarola de moo goo gai. Carne de
vaca com pimentos. Carne de porco salteada. Costeletas. Arroz. O tormento
do arroz. O tormento do vapor. O tormento dos aromas. Tudo quanto está
ali à sua frente se destina supostamente a salvá-lo da morte. A ligá-lo de
novo a Les, o rapaz. É esse o sonho recorrente: o rapaz intacto da quinta.
— Tem bom aspecto!
— Sabe ainda melhor!
— Queres que Chet te ponha um pouco no prato ou preferes servir-te tu,
Les?
— Não tenho fome.
— Não faz mal- diz Louie, enquanto Chet começa a pôr coisas no prato
de Les. — Não és obrigado a ter fome. Não faz parte do combinado.
— Falta muito para acabar? Tenho de sair daqui para fora. Estou a falar a
sério. Preciso, realmente, de sair daqui para fora. Já tenho a minha conta.
Não aguento mais. Tenho a impressão de que vou descontrolar-me. Já tenho
a minha conta. Disseste que eu podia ir-me embora. Tenho de sair daqui.
— Não ouvi o código, Les — responde Louie. Por isso, vamos continuar.
Agora os tremores instalaram-se com toda a violência. Não consegue
entender-se com o arroz. Treme tanto que lhe cai do garfo.
E, Deus lhe valha, vem aí um empregado com a água. Dando a volta e
aproximando-se dele pelas costas, como se tivesse surgido da porra do
nada, outro empregado, Reagem todos simultaneamente, apenas uma
fracção de segundo antes de lhes berrar - Yahhh", atirar-se ao pescoço do
homem e o jarro de água cair e estilhaçar-se a seus pés.
— Pare! — grita Louie. — Para trás!
As mulheres que estavam a descascar as ervilhas desatam aos gritos. —
Ele não precisa de água nenhuma!
Vendo-o aos gritos, de pé e aos gritos com a bengala erguida acima da
cabeça, as mulheres julgam que o maluco é Louie. Mas elas não sabem o
que é ser maluco, se pensam que o maluco ali é Louie. Não fazem a mínima
ideia.
Algumas pessoas levantam-se, noutras mesas, e Henry acorre, apressado,
e fala com dali calmamente, até voltarem a sentar-se. Explica-lhes que
aqueles são antigos combatentes do Vietname e, sempre que aparecem, ele
considera um dever patriótico ser hospitaleiro com eles e suportar os seus
problemas durante uma ou duas horas.
A partir daí, reina um silêncio absoluto no restaurante. Les debica um
pouco de comida e os outros comem tudo, até só restar na mesa o que ainda
está no prato de Les.
— Acabaste? — pergunta-lhe Lince. — Não comes isso?
Desta vez, ele não consegue nem dizer "Come tu". Bastar-lhe-ia
pronunciar essas duas palavras e todos os que estavam sepultados debaixo
daquele restaurante erguer-se-iam para se vingar. Uma só palavra, e quem
não tivesse estado lá na primeira vez para ver como era com certeza
absoluta veria agora.
Lá vêm os bolinhos da sorte. Geralmente eles adoram isso. Ler o que o
futuro reserva, rir, beber o chá, quem não gosta disso? Mas Les grita:
"Folha de chá!", levanta-se e abala, e Louie diz a Swift:
— Vai com ele. Agarra-o, Swiftie. Não o percas de vista. Nós vamos
pagar.
No regresso, reina o silêncio: da parte de Lince, porque está
empanturrado de comida; da parte de Chet, porque aprendeu há muito
tempo, pelo castigo repetido de demasiadas brigas, que para um homem tão
lixado como ele o silêncio é a única maneira de parecer amistoso, e da parte
de Swift, também, um silêncio mal-humorado e amargo, porque quando
deixaram para trás as tremeluzentes luzes de néon ficou com elas a
recordação dele mesmo que parecia ter recuperado no Palácio da Harmonia.
Swift está, agora, atarefado a alimentar a dor.
Les está silencioso porque adormeceu. Depois dos dez dias de teimosa
insónia que conduzíram a este encontro, apagou-se, finalmente.
Quando todos os outros saíram e Les e Louie ficaram sozinhos na
carrinha, Louie ouve-o) acordar e diz:
— Les? Les? Saíste-te bem, Lester. Quando te vi suar, pensei: hum-hum-
hum ... nada feito, ele não vai conseguir. Só queria que visses a tua cor. Eu
nem queria acreditar. Pensei que o empregado estava liquidado.
Louie, que passara as suas primeiras noites em casa preso por algemas a
um radiador da garagem da irmã, para ter a certeza de que não mataria o
cunhado que tivera a bondade de o acolher quarenta e oito horas, apenas,
depois de ter saído da selva; Louie, cujas horas de vigília estão organizadas
à volta das necessidades de todos os outros de modo a impedir que qualquer
impulso demoníaco encontre a mínima brecha e se infiltre de novo; Louie,
que está sóbrio e limpo há mais de doze anos, cumpre os Doze Passos dos
AA e toma religiosamente os seus medicamentos — o seu Klonopin para a
ansiedade, o seu Zoloft para a depressâo, e, para o ardor nos tornozelos, a
mordedura insistente nos joelhos e as dores inexoráveis e constantes nos
quadris, o seu Salsalate, um anti-inflamatório que metade das vezes pouco
mais faz do que causar-lhe azia, gases e diarreia -, conseguiu libertar-se de
resíduos suficientes para ser capaz de falar de novo aos outros com
civilidade e sentir-se mais à vontade, menos demencialmente ressentido por
ter de se movimentar com dificuldade até ao fim dos seus dias, apoiado
naquelas pernas minadas pelas dores, por ter de tenar manter-se de pé sobre
alicerces de areia, Louie, o despreocupado Louie, ri-se.
Pensei que o tipo estava arrumado. Mas, homem, tu não só venceste a
barreira da sopa, como até chegaste ao sacana do bolinho da sorte. Sabes
quantas vezes eu tive de tentar para\ chegar ao bolinho da sorte? Quatro.
Quatro vezes, Les. Na primeira vez fui direito à casa de banho e eles
precisaram de quinze minutos para me tirarem de lá. Sabes o que vou dizer
à minha mulher? Vou dizer-lhe: -Les saiu-se bem. Les saiu-se muito bem:
Mas quando chegou a altura de repetirem, Les recusou-se.
— Não basta eu ter-me sentado lá?
— Quero que comas — respondeu Louie. — Quero que comas a
refeição. Quero que percorras o caminho, que fales o que for preciso falar,
que comas a refeição. Agora temos uma nova meta, Les.
— Não quero saber de mais metas. Fiz o que tinha de fazer. Não matei
ninguém. Isso não chega?
Mas uma semana depois voltaram ao Palácio da Harmonia: o mesmo
elenco de personagens, o mesmo copo de água, os mesmos cardápios e, até,
a fragrância da mesma água-de-colónia barata que impregnava a carne
asiática das mulheres do restaurante e percorria, pairando, o seu perfumado
caminho galvâníco até Les, a fragrância reveladora que lhe permite seguir a
pista da presa. Na segunda vez ele come, na terceira vez ele come e faz o
pedido — embora eles continuem a não deixar o empregado aproximar-se
da mesae na quarta vez deixam o empregado servi-los e Les come como um
louco, come quase até rebentar, come como se não visse comida há um ano.
Fora do Palácio da Harmonia levantam os cinco os braços e batem nas
palmas uns dos outros. Até Chet está alegre. Chet fala, Chet grita: Semper
f!
— Na próxima vez — diz Les, quando regressam de carro e a sensação
de ter ressuscitado dos mortos o inebria -, na próxima vez, Louie, irás longe
de mais. Na próxima vez, vais querer que eu goste!
Mas o que se segue é encarar o Muro. Tem de ir olhar para o nome de
Kenny. E isso ele não é capaz de fazer. Bastou ter de olhar, uma vez, para o
nome de Kenny escrito no livro que têm na Administração dos Veteranos.
Depois disso, esteve uma semana doente. Não conseguia pensar noutra
coisa. Aliás, é só nisso que consegue pensar. Kenny ali, a seu lado, sem
cabeça. Pensa, dia e noite: Porquê Kenny, porquê Chip, porquê Buddy,
porquê eles e não eu? Às vezes pensa que foram eles quem teve sorte. Para
eles acabou. Não, de maneira nenhuma, não vai ao Muro. Àquele Muro.
Definitivamente, não. Não pode. Não quer. Está decidido.
Dança para mim.
Estão juntos há cerca de três meses e, por isso, uma noite ele diz, no
quarto, "Dança para mim, anda", e põe a tocar um CD, o arranjo de Artie
Shaw de "The Man I Love", com Roy Eldridge no trompete. Dança para
mim, diz, soltando os braços que a apertam com força e apontando para o
chão aos pés da cama. E, sem se fazer rogada, ela levanta-se de onde esteve
a inalar aquele cheiro, o cheiro de Coleman nu, o cheiro de pele queimada
pelo sol, levanta-se de onde esteve profundamente aninhada, com o rosto
deitado no flanco nu dele, os dentes e a língua revestidos com o esperma
dele, a mão no seu baixo-ventre, aberta no emaranhado untuoso daqueles
pêlos crespos, e, seguida pelo seu olhar de águia — o seu firme olhar verde
entre as orlas escuras das pestanas compridas, um olhar que não se parece
nada com o de um velho esgotado prestes a desfalecer, antes lembra o rosto
de alguém comprimido contra uma vidraça -, ela levanta-se e dança, não
provocadoramente, não como Sleena fez em 1948, não por ser uma rapariga
meiga, uma jovem meiga a dançar pelo prazer de lhe dar prazer, uma jovem
meiga que não sabe muito a respeito do que está a fazer e diz a si mesma:
"Posso dar-lhe isto; ele quer isto e eu posso fazê-lo; portanto, aqui está.
Não, não se trata realmente da cena ingénua e inocente do botão a tornar-se
flor, da potra a tornar-se égua. Faunia é, sem dúvida, capaz de o fazer, mas
fá-lo sem a maturidade a desabhrochar, sem a idealização juvenil e vaga
dela e dele e de toda a gente viva e morta. Ele diz: -Dança para mim, anda",
e ela responde, com o seu riso fácil: "Por que não? Sou generosa nessas
coisas", e começa a mover-se, a alisar a pele como se fosse um vestido
amarrotado, a certificar-se de que está tudo onde deve estar, tenso, ossudo
ou arredondado como deve ser, um sopro de si mesma, o excitante odor
vegetal que se desprende familiarmente dos seus dedos quando os faz
deslizar para cima, do pescoço até às orelhas quentes, e daí, devagar, pelas
faces até aos lábios e aos cabelos, aos seus cabelos louros a encanecer,
húmidos e despenteados do esforço, com os quais brinca como se fossem
algas, afirmando a si própria que são algas, que sempre foram algas, uma
grande extensão gotejante de algas saturadas de água salgada, e, no fim de
contas o que é que isso lhe custa? Onde está a grande dificuldade?
Mergulha. Jorra. Se é isso que ele quer, rapta o homem, apanha-o na
armadilha. Não será o primeiro.
Tem consciência de quando começa a acontecer aquela coisa, aquela
ligação. Move-se no chão que é agora o seu palco aos pés da cama, move-
se, sedutoramente despenteada e um pouco viscosa das horas anteriores,
manchada e ungida do desempenho anterior, loura, pele branca onde o sol
da herdade não a bronzeou, com cicatrizes em meia dúzia de lugares, um
joelho esfolado como o de uma criança de ter escorregado na vacaria,
arranhões muito finos, semicicatrizados, tanto nos braços como nas pernas,
feitos pela cerca do pasto, mãos ásperas, avermelhadas e doridas das
pequenas esquírolas de fibra de vidro que se cravam nelas quando faz girar
a cerca, de retirar e repor as estacas todas as semanas, uma equimose
avermelhada em forma de pétala, que tanto pode ter sido arranjada na sala
de oirdenha como feita por ele, precisamente na junção da base do seu
pescoço com o seu tronco, outra equimose, esta negra-azulada, no dobrar da
coxa não musculosa, marcas onde foi mordida e picada, um cabelo dele, um
cabelo dele com o formato de um & e e que parece lima graciosa verruga
acíinzentada colada à face dela, a sua boca aberta apenas o suficiente para
lhe revelar a curva dos dentes, a sua total falta de pressa para ir seja aonde
for, porque é no chegar que está o prazer. Ela move-se, e agora ele está a vê-
la, está a ver aquele corpo alongado mover-se cadenciadamente, aquele
corpo esguio que é muito mais forte do que parece e dotado de seios
surpreendentemente pesados, descendo, descendo, descendo cada vez mais,
suportado pelos cabos compridos e direitos das suas pernas, inclinando-se
para Coleman como uma concha transbordante do líquido dele. Submisso,
está estendido sobre as pequenas ondas dos lençóis, um torvelinho de
almofadas, umas sobre as outras, a sustentar-lhe a cabeça que descansa ao
nível da envergadura das ancas dela, do ventre dela, do ventre dela em
movimento, e vê-a, vê cada partícula sua; ele vê-a e ela sabe que ele a vê.
Estão ligados. Ela sabe que ele quer que lhe exija alguma coisa. Quer que
fique aqui a mover-me, pensa, e lhe exija o que é meu. E o que é meu? Ele.
Ele. Está a oferecer-se a mim. Seja, isto é alta-tensão, mas vamos lá. E,
olhando-o de cima para baixo com uma expressão de subtileza, ela move-
se, move-se, e inicia-se a transferência formal de energia. É muito agradável
para ela, mover-se assim, ao ritmo daquela música e com a energia a
transferir-se, sabendo que à sua mínima ordem, com o estalar de dedos com
que se chama um empregado de mesa, ele rastejará para fora daquela cama
para lhe lamber os pés. A dança ainda mal começou e já poderia descascá-
lo e comê-lo como uma peça de fruta. Não se trata apenas de ser uma
mulher espancada, de ser empregada de limpeza, de limpar a merda dos
outros na universidade, de limpar a merda dos outros nos correios e de
como é terrivelmente duro limpar a porcaria de toda a gente. Se queres
saber a verdade, é lixado, e não me venhas dizer que não há empregos
melhores ... mas foi o que me calhou e é o que eu faço; tenho três empregos
porque a este carro resta para aí uma semana de vida e preciso de comprar
um que seja barato e ande. Por isso tenho três empregos e não é a primeira
vez que tal acontece, e, a propósito, a vacaria dá uma trabalheira do caraças,
a ti pode parecer-te formidável, Faunia e as vacas e essa treta, mas junto
com tudo o mais, porra, dá-me cabo do canastro ... Agora, porém, estou nua
num quarto com um homem, a vê-lo aí deitado com a sua pila e a sua
tatuagem da Marinha; o ambiente é calmo e ele está calmo, está muito
calmo apesar de se ter vindo por me ver dançar, e também acabou de passar
um mau bocado. Perdeu a mulher, perdeu o emprego, foi humilhado
publicamente, acusado de ser um professor racista, e afinal o que é um
professor racista? Não se trata de ter acabado de se tornar um. O problema é
ter sido descoberto, o que significa que foi racista a vida inteira. Não se
trata de fazer uma coisa errada, uma vez. Quem é racista, foi sempre racista.
De repente, foi-se racista a vida inteira. O estigma é esse, e nem sequer é
verdade. No entanto, ele agora está calmo. Posso fazer isso por ele. Posso
torná-lo calmo assim, ele pode tornar-me calma assim. Tudo quanto tenho
de fazer é continuar a mover-me. Ele diz dança para mim e eu penso: Por
que não? Por que não, de facto ... só que isso pode levá-lo a pensar que eu
alinho e finjo com ele que se trata de outra coisa. Ele vai fingir que o
mundo é nosso, eu vou deixá-lo fingir e depois acabo por fazer o mesmo.
Mas, mesmo assim, por que não! Eu posso dançar ... mas ele tem de se
lembrar. Não pode esquecer que isto é apenas o que é, apesar de eu não ter
nada em cima além do anel de opala, nada além do anel que ele me deu.
Isto resume-se a estar nua na frente do meu amante, nua, com as luzes
acesas e a mover-me. Muito bem, tu és um homem, já deixaste a juventude
para trás, tens uma vicia tua e eu não faço parte dela, mas sei o que está em
jogo. Procuras-me como homem e como tal te aceito. É muito. Mas é só
isso e mais nada. Eu danço nua para ti com as luzes acesas e tu também
estás nu, mas tudo o mais não conta. É a coisa mais simples que jamais
fizemos. É mesmo. Não lixes tudo pensando que é mais do que isso. Tu não
pensas e eu não quero. Não tem de ser mais do que isso. Sabes uma coisa?
Eu topo-te, Coleman.
Depois diz-lho em voz alta:
— Sabes uma coisa? Eu topo-te.
— Sério? Então o inferno vai começar.
— Perguntamo-nos — se nos interessa saber — se haverá Deus.
Queremos saber por que estamos neste mundo. Para quê? Para isto. Para
estares aqui e eu fazer isto para ti. Não é para pensares que és outra pessoa
qualquer noutro lugar qualquer. Se és uma mulher e estás na cama com o
teu marido, não fodes por foder, não fodes para te vires, fodes porque estás
na cama com o teu marido e essa é a coisa certa. Se és um homem, estás
com a tua mulher e estás a fodê-la, mas ao mesmo tempo pensas que queres
foder a mulher da limpeza dos correios. Muito bem, sabes uma coisa? Estás
com a mulher da limpeza.
Ele diz em voz baixa, a rir:
— E isso prova a existência de Deus.
— Se isso não prova, nada prova.
— Continua a dançar.
— Quando morremos, que importância pode ter o facto de não termos
casado com a pessoa certa?
— Nenhuma. Nem mesmo quando estamos vivos tem importância.
Continua a dançar.
— Então o que é que tem importância, Coleman?
— Isto.
— Agora sim! Agora estás a aprender.
— É disso que se trata ... estás a ensinar-me?
— Já era altura de alguém o fazer. Sim, estou a ensinar-te. Mas agora não
olhes para mim como se eu servisse para qualquer outra coisa além disto.
Para alguma coisa mais do que isto. Não faças isso. Fica aqui comigo. Não
te vás embora. Concentra-te nisto. Não penses em mais nada. Fica aqui
comigo. Farei o que quiseres. Quantas vezes tiveste uma mulher que te
dissesse isto e falasse a sério? Farei tudo o que tu quiseres. Não o percas.
Não procures noutro lugar, Coleman. É para isto, só para isto, que estam os
aqui. Não penses em amanhã. Fecha todas as portas, antes e depois. Ignora
todas as maneiras sociais de pensar. O que a maravilhosa sociedade pode
pensar? A nossa posição social? "Eu devia, eu devia, eu devia"? Que se lixe
tudo isso. Como deves ser, como deves proceder, essa merda só serve para
matar tudo. Posso continuar a dançar, se é isso que interessa. O pequeno
momento secreto ... se é só isso que conta. Essa fatia que nos cabe. Essa
fatia do tempo. Não é mais do que isso, e espero que o saibas.
— Continua a dançar.
— Isto é o importante. Se eu deixasse de pensar que ...
— De pensar o quê?
— Que fui uma pequena putéfía desde pequena.
— Foste?
— Ele disse sempre que não era ele, mas eu.
— O padrasto.
— Sim. Era isso o que dizia a si mesmo. Talvez até tivesse razão. Mas eu
não tinha alternativa, aos 8, 9 e 10 anos. O que estava errado era a
brutalidade. — Como era, quando tinhas 10 anos?
— Era como pedirem-me que levantasse a casa inteira em peso e a trans-
portasse às costas.
— O que sentias, quando a porta se abria, à noite, e ele entrava no teu
quarto?
— Era como ser criança numa guerra. Alguma vez viste, nos jornais,
aquelas fotografias de crianças, depois de terem bombardeado as suas
cidades? Era assim. Tão grande como uma bomba. Mas por muito que fosse
bombardeada, eu continuava de pé. Essa foi a minha desgraça: continuar de
pé. Depois fiz 12, 13 anos, e comecei a ter mamas. Comecei a ter o período.
De repente, passei a ser apenas um corpo que cercava a minha cara ... Mas
fica-te pela dança. Fecha todas as portas, de antes e depois, Coleman. Eu
estou a topar-te, Coleman. Não estás a fechar as portas. Ainda conservas as
fantasias do amor. Sabes uma coisa? Preciso, realmente, de um tipo mais
velho do que tu. Que tenha perdido por completo todas essas tretas de
merda do amor. És novo de mais para mim, Coleman. Olha para ti. Não
passas de um rapazinho apaixonado pela professora de piano. Estás a
prender-te a mim, Coleman, e és demasiado novo para uma mulher do meu
género. Eu preciso de um homem muito mais velho. Creio que preciso de
um homem com 100 anos, pelo menos. Não tens nenhum amigo de cadeira
de rodas que possas apresentar-me? As cadeiras de rodas agradam-me:
posso dançar e empurrar. Talvez tenhas um irmão mais velho. Repara em ti,
Coleman. A olhar-me com esses olhos de colegial. Por favor, telefona ao
teu amigo mais velho, peço-te. Eu continuo a dançar, basta que lhe ligues.
Quero falar com ele.
Mas, enquanto diz estas coisas, sabe que são elas e a dança que estão a
fazê-lo apaixonar-se por ela. E é tão fácil. Tenho atraído uma quantidade de
homens, uma quantidade de garanhões, os garanhões descobrem-me e vêm
ao meu encontro, não apenas qualquer homem com uma coisa entre as
pernas, não os que não compreendem, que são uns noventa por cento, mas
homens, rapazes novos, os que são machos a valer, como o Smoky, que
compreendem realmente do que se trata. Podemos desesperar por causa das
coisas que não temos, mas isso eu tenho, até completamente vestida, e
alguns tipos sabem-no, sabem do que se trata, e é por isso que me
encontram, e é por isso que vêm ao meu encontro, mas isto, isto, oh, isto é
como tirar guloseimas da boca de um bebé. É claro que ele se lembra.
Como poderia não se lembrar? Quando se prova, nunca mais se esquece.
Ai, ai. Depois de duzentos e sessenta broches, quatrocentas quecas normais
e cento e seis no cu, começa o namoro. Mas é assim que as coisas são.
Quantas pessoas no mundo amaram antes de foder? Quantas vezes eu amei
depois de foder? Ou será isto a coisa a valer, a grande inovação?
— Queres saber como me sinto? — perguntou a Coleman.
— Quero.
— Sinto-me muito bem.
— Nesse caso, quem pode sair vivo disto?
— Estou contigo a esse respeito. Tens razão, Coleman. Isto vai conduzir
a uma tragédia.
Nisto aos 71 anos? Excitado por isto aos 71 anos? Acho melhor
voltarmos ao trivial.
— Continua a dançar — diz ele, e prime um botão do Sony da mesa-de-
cabeceira e a faixa de -The Man I Love arranca de novo.
— Não. Não. Suplico-te. Preciso de pensar na minha carreira de mulher
da limpeza.
— Não pares.
-- Não pares — repete ela. — Já ouvi essas palavras em qualquer lado. —
Na verdade, raramente ouvira essa forma verbal sem ser antecedida por um
"não". Não de um homem. Não muitas vezes de si mesma. — Sempre
pensei que "não pares" era uma palavra só.
— E é. Continua a dançar.
— Então não a percas. Um homem e uma mulher num quarto. Nus.
Temos tudo, não precisamos de mais nada. Não precisamos de amor. Não te
rebaixes, não te tornes num idiota sentimental. Estás mortinho por isso, mas
não o faças. Não percamos isto. Imagina, Coleman, imagina mantermos as
coisas deste modo. Ele nunca me viu dançar assim, nunca me ouviu falar
assim. Há tanto tempo que eu não falava assim que julgava ter-me
esquecido de como era. Tanto tempo escondida. Ninguém me ouviu falar
assim. Os falcões e os corvos algumas vezes, nos bosques, mas tirando isso,
ninguém. Não é deste modo que costumo entreter os homens. Nunca fui tão
ousada, nunca. Imagina, — Imagina — diz -, vir todos os dias ... e isto. A
mulher que não quer ter tudo. A mulher que não quer ter nada.
Mas nunca quisera tanto ter alguma coisa.
— A maior parte das mulheres querem ter tudo — continua. -- Querem
ser donas do teu correio. Querem ser donas do teu futuro. Querem ser donas
das tuas fantasias. "Como te atreves a querer ir para a cama com outra a não
ser comigo? Eu devia ser a tua fantasia. Por que estás a ver fitas
pornográficas se me tens em casa?" Querem ser donas daquilo que tu és,
Coleman. Mas o prazer não é ser dono da pessoa. O prazer é isto. Ter outro
contendor no quarto contigo. Oh, eu vejo-te, Coleman. Eu podia entregar-te
a minha vida inteira e mesmo assim ter-te. Dançando, apenas. Não é
verdade? Estou enganada? Gostas disto, Coleman?
— Que sorte — diz ele, a olhá-la, a olhá-la. — Que sorte incrível. A vida
devia-me isto.
— Devia?
— Não há ninguém como tu. Helena de Tróia.
— Helena de Lado Nenhum. Helena de Nada.
— Continua a dançar.
— Eu vejo-te, Coleman. Eu vejo-te. Queres saber o que vejo?
— Com certeza.
— Queres saber se vejo um velho, não queres? Tens medo de que veja
um velho e fuja.
Tens medo de me perderes se eu vir todas as diferenças entre ti e um
homem jovem, se vir todas as coisas que se tornaram frouxas e as que
desapareceram. Por seres demasiado velho. Mas sabes o que eu vejo?
— O que vês?
— Vejo um miúdo. Vejo-te a ficar apaixonado como um miúdo. E não
deves, não deves fazer isso. Queres saber o que mais vejo? -Quero.
— Sim, agora vejo ... agora vejo um velho. Vejo um velho a morrer.
— Conta-me.
— Perdeste tudo.
— Vês isso?
— Vejo. Tudo, menos eu a dançar. Queres saber o que eu vejo?
— o que vês?
— Não merecias essa mão, Coleman. É isso que eu vejo. Vejo que estás
furioso. E é assim que vais acabar. Como um velho furioso. E não devia ser
assim. É isso que eu vejo: a tua fúria. Vejo a cólera e a tua vergonha. Sei
que, como velho, compreendes o que o tempo é. Só compreendemos isso
perto do fim. Mas agora tu compreendes. E é assustador. Porque não podes
recomeçar. Não podes ter de novo 20 anos. Esse tempo não volta. E foi
assim que acabou. E pior ainda do que a morte, pior ainda do que estar
morto, pior do que isso, são os sacanas de rnerda que te fizeram isso. Que te
tiraram tudo. Vejo isso em ti, Coleman. Vejo-o porque se trata de uma coisa
que eu conheço. Os sacanas de merda que mudaram tudo num abrir e fechar
de olhos. Tiraram-te a vida e deitaram-na fora. Eles tiraram-te a tua vida e
eles decidiram deitá-la fora. Encontraste a dançarina certa. São eles que
decidem o que é lixo, e foram eles que decidiram que tu és lixo.
Humilharam, enxovalharam e destruíram um homem por causa de uma
coisa que todos sabiam ser um absurdo. Uma porra de uma palavrinha de
merda que não significava nada para eles, absolutamente nada. E isso é
enfurecedor.
— Não tinha percebido que estavas a prestar atenção.
Ela solta o seu riso fácil. E dança. Sem o idealismo, sem a exaltação, sem
toda a utopia da jovem ingénua, e apesar de tudo o que ela sabe ser a
realidade, apesar da inutilidade irreversível que sabe ser a sua vida, apesar
de todo o caos e da indiferença, ela dança! E fala como nunca falou a um
homem. Não se espera das mulheres que fodem como ela que falem assim;
pelo menos é isso que gostam de pensar os homens que não fodem
mulheres como ela. É isso que gostam de pensar as mulheres que não
fodem como ela. É isso que toda a gente gosta de pensar: a estúpida da
Faunia. Pois que pensem. Não se coíbam, estejam à vontade.
— Sim, a estúpida da Faunia tem estado a prestar atenção — responde.
— De que outro modo poderia a estúpida da Faunia safar-se? Ser a estúpida
da Faunia é a minha grande proeza, Coleman, sou eu no meu melhor, no
meu aspecto mais sensato. Acontece, Coleman, que tenho estado a ver-te
dançar, a ti. como é que eu sei? Sei porque estás comigo. Porque caraças
estarias tu comigo se não estivesses tão furioso? Porque caraças estaria eu
contigo se não estivesse tão furiosa? É isso que torna possível as grandes
todas, Coleman. Essa fúria que nivela tudo. Por isso, não a percas.
— Continua a dançar.
— Até cair?
— Até caíres. Até ao último alento.
— Como queiras.
— Onde é que eu te encontrei, Voluptas? Como é que te encontrei? Quem
és? — pergunta de, e prime de novo o botão que faz tocar -The Man I
Love". — Sou o que tu quiseres.
Coleman estava apenas a ler-lhe uma passagem do jornal de domingo
acerca do presidente e de Monica Lewinsky quando Faunia se levantou e
gritou: "Não podes evitar a porra da lição? Basta de lição! Eu não sei
aprender! Eu não aprendo! Eu não quero aprender! Pára de me ensinar,
porra, não vale a pena!" E, no meio do pequeno-almoço, foi-se embora.
O erro foi ter ficado lá. Não foi para casa e agora detesta-o. O que detesta
mais do que tudo? Que ele pense, realmente, que o seu sofrimento é o fim
do mundo. Sim, porque ele pensa, realmente, que o que todos pensam, o
que todos dizem a seu respeito na universidade de Athena, é tão arrasador
que lhe destrói a vida. Tudo se resume a uma cambada de bardamerdas que
não gosta dele, e isso não é o fim do mundo. Como é possível que considere
isso a pior coisa que jamais aconteceu? Não é o fim do mundo. Duas
crianças a sufocarem e a morrerem, isso, sim, é o fim do mundo. Ter um
padrasto que nos enfia os dedos na cona, isso é o fim do mundo. Perder o
emprego a pouco tempo da reforma não é o fim do mundo. É isso que
detesta nele, o estatuto privilegiado do seu sofrimento. Ele pensa que nunca
teve uma oportunidade? Há dor a sério, da verdadeira, nesta terra e ele
pensa que nunca teve uma oportunidade? Saberá quando é que uma pessoa
não tem uma oportunidade? É quando, depois da ordenha da manhã, o
marido pega num tubo de ferro e lhe bate com ele na cabeça. Porra, eu nem
sequer vi o que ia acontecer! E ele não teve uma oportunidade! E a vida
deve-lhe alguma coisa!
Tudo se resume ao facto de, ao pequeno-almoço, ela não querer ouvir
lições. A Monica, coitadinha, talvez não arranjasse um bom emprego na
cidade de Nova Iorque? Sabes que mais? Estou-me nas tintas. Julgas que a
Monica se importa que eu fique com dores nas costas por ordenhar as putas
daquelas vacas depois do meu dia de trabalho na universidade? Que eu
tenha de varrer a merda que as pessoas deixam no posto dos correios porque
elas não estão para se incomodar a deitá-la para a porra do latão do lixo?
Julgas que a Monica quer saber disso para alguma coisa? Ela farta-se de
ligar para a Casa Branca e deve ser horrível não responderem às suas
chamadas. E acabou tudo para ti? Isso também é horrível? Para mim nunca
começou. Acabou antes de começar. Experimenta levar com um tubo de
ferro na cabeça, para saberes como é. A noite passada? Aconteceu. Foi
agradável. Foi maravilhoso. Eu também estava a precisar. Mas continuo a
ter três empregos. Não mudou nada. É por isso que temos de aceitar as
coisas quando elas acontecem, porque não mudam nada. Dizer à mãezinha
que o marido dela mete os dedos em mim, quando vai ao meu quarto à
noite, não muda nada. Talvez agora que sabe ela me ajude. Mas não, nada
muda nada. Tivemos esta noite de dança. Mas não mudou nada. Leste-me
acerca daquelas coisas em Washington. Mas o que é que isso muda, o quê?
Leste-me a respeito das escapadelas em Washington, da outra chupar a gaita
de Bill Clinton. Em que pode isso ajudar-me quando o meu carro der o
berro? Pensas na verdade que essas são as coisas importantes do mundo?
Não são. Não têm importância nenhuma. Eu tive dois filhos. Morreram. Se
esta manhã não tenho energia para ter pena da Monica e do Bill, coitados,
leva-o à conta dos meus dois filhos, está bem? Se é um defeito meu, que
seja, paciência. Não resta nada em mim que me permita preocupar-me com
as grandes adversidades do mundo.
O erro foi ter ficado lá. O erro foi deixar-se enredar tão completamente
pelo encantamento. Até durante a mais violenta tempestade se metia no
carro e ia para casa. Até quando morria de medo de que Farley a seguisse e
a obrigasse a sair da estrada para cair ao rio, se metia no carro e ia para
casa. Mas desta vez ficou. Ficou por causa da dança e de manhã está
furiosa. Furiosa com ele. Está um belo novo dia. Vejamos o que diz o
jornal. Depois da noite passada, ele quer ver o que diz o jornal? Se não
tivessem falado, se tivessem tomado o pequeno-almoço e depois ela saísse,
talvez ter ficado tivesse sido bom. Mas começar com as lições ... Isso era
praticamente a pior coisa que ele podia ter feito. O que é que ele devia ter
feito? Dar-lhe qualquer coisa para comer e deixá-la ir para casa. Mas a
dança fez os seus estragos. Eu fiquei. Fiquei, estupidamente. Vir-se embora
à noite: não há nada mais importante para uma rapariga como eu. Não tenho
ideias claras a respeito de uma quantidade de coisas, mas uma sei: ficar na
manhã seguinte significa alguma coisa. A fantasia de Coleman-e-Faunía. É
o começo do abandono à fantasiado para sempre, a mais estafada fantasia
do mundo. Tenho um lugar onde ficar, não tenho? Não será grande coisa,
mas é o meu lugar. É para lá que tenho de ir! Posso foder até altas horas,
mas depois, ala! Houve aquela tempestade no Memorial Day, uma
tempestade que parecia capaz de rasgar os céus e arrasar o mundo, que
troava entre os montes como se tivesse rebentado uma guerra. O ataque de
surpresa aos Berkshire. Mas eu levantei-me às três da manhã, vesti-me e
voltei para casa. Os relâmpagos regavam, as faíscas rachavam as árvores, os
ramos caíam ruidosamente, o granizo metralhavame a cabeça, mas eu voltei
para casa. Fustigada por toda aquela ventania, voltei para casa. A montanha
explodia, mas mesmo assim voltei para casa. No curto espaço entre a casa e
o carro podia ter sido morta, atingida por uma faísca, fulminada e morta,
mas não fiquei: voltei para casa. Ficar na cama com ele toda a noite? A Lua
enorme, a Terra inteira silenciosa, Lua e luar em todo o lado, e eu fiquei.
Até um cego saberia encontrar o caminho para casa numa noite daqueias,
mas eu não voltei para a minha. Não fui capaz. Passei a noite acordada.
Receosa de me mexer e aproximar-me do tipo. Não queria tocar naquele
homem. Não sabia porquê, pois andava a lamber-lhe o olho do cu havia
meses. Permaneci como uma leprosa na beira da cama, a ver as sombras das
suas árvores alongarem-se na sua relva. Ele tinha dito: "Devias ficar", mas
não queria que ficasse, e eu respondi: "Acho que vou aceitar", e fiquei.
Seria de esperar que pelo menos um de nós continuasse firme. Mas não.
Cedemos ambos à pior de todas as ideias. As prostitutas tinham-lhe dito,
com a grande sabedoria das putas: "Os homens não te pagam para dormires
com eles. Pagam-te para ires para casa."
Mas, embora sabendo tudo o que detesta, também sabe aquilo de que
gosta. Gosta da generosidade dele. É tão raro para ela estar perto da
generosidade de alguém. E a força que ndvém de ser um homem que não
lhe bate com um tubo de ferro na cabeça. Se ele insistisse, teria até de lhe
confessar que sou inteligente. Não foi praticamente isso que fiz a noite
passada? Ele ouviu-me e, por isso, eu fui inteligente. Ele ouve-me. Ele é
leal comigo. Ele não me censura nada. Ele não conspira contra mim em
sentido nenhum. Será isso razão para estar tão furiosa? Ele leva-me a sério.
Isso é sinceridade. Foi o que pretendeu mostrar ao dar-me o anel. Eles
despiram-no e ele veio para mim nu. No seu momento mais vulnerável. Os
meus dlias não têm sido preenchidos com homens como este. Ele ajudar-
me-ia a com prar o carro, se eu o deixasse. Ajudar-me-ia a comprar tudo, se
eu o deixasse. Não há dor, com este homem. Basta o subir e descer da sua
voz, basta ouvi-lo, para me tranquilizar.
E é destas coisas que foges? É por isso que provocas uma briga, como
uma criança? Foi pelo mais puro acaso que o conheceste, o teu primeiro
acaso feliz — o teu último acaso felíz -, e enfureces-te e foges como uma
miúda? Queres realmente provocar o fim? Voltar .10 que era antes dele?
Mas ela fugiu, fugiu da casa dele, tirou o carro do barracão e conduziu
através da montanha para visitar a gralha da Audubon Society. Cerca de
oito quilómetros à frente, saiu da estrada para o estreito caminho de terra
batida que ziguezagueava ao longo de uns quinhentos metros, até à casa de
telhas de madeira cinzentas e dois pisos aninhada entre as árvores, que fora
há muito tempo habitada por pessoas e era agora a sede local da sociedade,
da orla dos bosques e dos trilhos naturais. Meteu pelo carreiro ensaibrado,
aos solavancos, até à barreira de troncos, e estacionou defronte do vidoeiro
em cujo tronco estava pregado um sinal que apontava para o jardim de
ervas medicinais. O seu era o único carro à vista. Comseguira chegar. Mas
poderia com igual facilidade ter-se despenhado pela encosta abaixo.
Móbiles de vento suspensos perto da entrada tiniam cristalina e
misteriosamente na brisa, como se uma ordem religiosa convidasse sem
palavras os visitantes a demorarem-se e meditarem, além de olharem em
redor, como se alguma coisa pequena, mas comovente, fosse ali venerada.
Mas a bandeira não fora içada e um aviso, na porta, informava que a
abertura aos domingos era às treze horas. No entanto, quando a empurrou, a
porta cedeu e ela ultrapassou a esbatida sombra matinal dos cornizos
despidos de folhagem e entrou no corredor onde estavam empilhados
grandes sacos cheios de misturas de comida para pássaros, prontos para os
compradores do Inverno, e, defronte dos sacos, até à altura da janela e ao
longo da parede oposta, caixas contendo os vários tipos de comedouros para
pássaros. Nas lojas de prendas, onde vendiam os comedouros juntamente
com livros sobre a natureza, mapas, gravações áudío de cantos de pássaros
e uma variedade de prendas inspiradas em animais, as luzes estavam
apagadas, mas quando ela se virou para a outra direcção, onde ficava a sala
de exposição maior, abrigo de uma reduzida colecção de animais
empalhados e um pequeno sortido de espécimes vivos — cágados,
serpentes, alguns pássaros engaiolados -, viu uma empregada, uma rapariga
gorducha de 18 ou 19 anos, que a saudou com um olá e não lhe lembrou
que ainda não eram horas de abrir. Tão longe no coração da montanha e
uma vez caídas as folhas outonais, os visitantes eram raros no dia primeiro
de Novembro e ela não ia mandar embora uma pessoa que aparecesse ali às
nove e meia da manhã, nem mesmo tratando-se desta mulher que não estava
vestida para andar fora de casa em pleno Outono nos Berkshire, com o que
parecia a parte superior de um pijama masculino às riscas por cima das
calças de treino cinzentas, e calçava apenas uns chinelos de trazer por casa,
sem calcanhares. Os seus compridos cabelos louros também não tinham
sido escovados, nem sequer penteados. Mas como, no conjunto, parecia
mais desalinhada do que desavergonhada, a rapariga, que estava a dar
ratinhos a comer a uma serpente metida numa caixa a seus pés —
estendendo cada ratinho suspenso de uma pinça até a serpente alçar a
cabeça, o abocanhar e iniciar o lento processo de ingestão -, limitou-se a
dizer "olá" e continuou com as suas ocupações das manhãs de domingo.
A gralha — um macho — estava na gaiola do meio, um espaço mais ou
menos do tamanho de um roupeiro, entre a gaiola das duas corujinhas e a do
gavião. Lá estava ela. Faunia sentiu-se logo melhor.
— Príncipe. Eh, calmeirão. — Estalou a língua contra o céu da boca:
clac, clac, clac. Voltou-se para a rapariga que dava de comer à serpente.
Não a vira lá no passado, quando fora ver a gralha, e era muito provável que
fosse nova ali. Ou relativamente nova. A própria Faunia não visitava o
pássaro há meses e depois de começar a encontrar-se com Coleman nunca
mais viera. Tinha decorrido algum tempo desde que procurara maneiras de
se afastar da espécie humana. Deixara de ser uma visita regular desde a
morte dos filhos, embora antes che-gasse a passar por ali quatro ou cinco
vezes por semana.
— Ele pode sair, não pode? Só um minuto?
— Com certeza — concordou a rapariga.
_ Gostava de o pôr no meu ombro — disse Faunia, e baixou-se para
levantar o fecho da porta de vidro da gaiola. — Olá, Príncipe. Oh, Príncipe,
como estás bonito.
Quando a gaiola se abriu, a gralha saltou do poleiro para o cimo da porta,
onde ficou a inclinar a cabeça de um lado para o outro.
Faunia riu-se docemente.
— Que deliciosa expressão! Está a passar-me em revista — disse à
empregada. — Olha — continuou, dirigindo-se agora à ave e mostrando-lhe
o anel de opala, presente de Coleman. o anel que ele lhe dera no carro,
naquela manhã de sábado de Agosto, quando tinham ido a Tanglewood. —
Olha, vem, vem — murmurou, inclinando o ombro num convite.
Mas a gralha declinou o convite e saltou de novo para a gaiola e para o
poleiro. — O Príncipe não está com disposição — comentou a rapariga.
— Jóia? — chamou Faunia, num arrulho. — Vem. Vem cá. É a Faunia, a
tua amiga. Vem, sê um lindo menino. — Mas a ave não se moveu.
— Se percebe que quer pegar-lhe, não desce dali — disse a rapariga e,
servindo-se da pinça, tirou outro ratinho de uma travessa onde estava um
monte de outros ratinhos e ofereceu-o à serpente que tinha, enfim, puxado
para dentro da boca, milímetro a milímetro, o corpo inteiro do último que
lhe fora estendido. — Quando percebe que estamos a tentar pegar-lhe,
costuma manter-se fora do alcance, mas se pensa que estamos a ignorá-lo,
desce do poleiro.
Riram-se as duas daquele comportamento de laivos tão humanos.
— Está bem, vou deixá-lo uns momentos em paz — disse Faunia, e
dirigiu-se para junto da rapariga. — Adoro gralhas. São a minha ave
preferida. E corvos, também. Morei em Seeley Falls, por isso sei a história
toda do Príncipe. Conheci-o quando andava por lá, nas imediações do
armazém Higginson. Costumava roubar os ganchos de cabelo das meninas
pequenas. Descia a pique para tudo o que era brilhante ou colorido. Era
famoso por isso. Dantes havia recortes de notícias do jornal a seu respeito.
A seu respeito e das pessoas que o tinham criado depois de o ninho ter sido
destruído, e do modo como se exibia, como pessoa importante, perto do
armazém. Estavam pregados ali — acrescentou, apontando para um quadro
de afixação de boletins, junto da entrada da sala. — Onde estão?
— Ele arrancou-os.
Faunia desatou a rir, desta vez muito mais alto do que antes.
— Ele arrancou-os?
— Com o bico. Rasgou-os.
_ Não queria que ninguém conhecesse os seus antecedentes! Tinha
vergonha do seu próprio passado. Maroto! — exclamou, virando-se para a
gaiola cuja porta continuava toda aberta. — Tens vergonha do teu
escandaloso passado? Oh, és um bom pássaro.
Reparou num dos diversos animais empalhados dispostos em plintos à
volta da sala. — Aquilo ali é um lince?
— É — respondeu a empregada, enquanto esperava pacientemente que a
língua da serpente se estendesse para o novo ratinho morto e o agarrasse. —
É destas paragens?
— Não sei.
— Tenho-os visto por aí, nos montes. Um deles parecia exactamente este.
Provavelmente, é ele.
Riu-se de novo. Não estava bêbeda — nem sequer engolira metade do
café quando fugira de casa, quanto mais uma bebida alcoólica -, mas o seu
riso parecia o de alguém que já bebera uns copos. Sentia-se simplesmente
bem por estar ali com a serpente, a gralha e o lince empalhado, nenhum dos
quais fazia questão ele lhe ensinar fosse o que fosse. Nenhum deles ia ler-
lhe passagens elo New York Times. Nenhum deles ia tentar pô-la em dia
acerca da história da espécie humana nos últimos três mil anos. Ela sabia
tudo quanto precisava de saber da história da espécie humana: os
implacáveis e os indefesos. Não precisava para nada das datas e dos nomes.
Os implacáveis e os indefesos, era a isso que toda essa porra se resumia. Ali
ninguém ia tentar incentivá-la a ler, porque ali ninguém sabia ler, com
excepção da rapariga. Aquela serpente com certeza não sabia ler; sabia
apenas comer ratinhos. Devagar e nas calmas. O que não lhe faltava era
tempo.
— Que tipo de serpente é essa?
— É uma serpente-rateira negra.
— Engole-os inteiros.
— É verdade.
— Digere-os nas tripas.
— Sim.
— Quantos come?
— Este é o sétimo, mas engoliu-o ainda mais devagar do que é costume.
Talvez seja o último.
— Sete por dia?
— Não. Por semana ou por quinzena.
— E pode sair para algum lado ou vive só ali? — perguntou Faunia,
apontando para a gaiola de vidro de onde a serpente fora transferida para a
caixa de plástico onde estava a ser alimentada.
— Não. Só ali.
— Felizarda — comentou Faunia, e voltou a olhar para o outro lado da
sala, onde a gralha continuava empoleirada dentro da gaiola. — Bem,
Príncipe, eu estou aqui, tu estás aí e eu não tenho o mínimo interesse em ti.
Se não queres aterrar no meu ombro, para mim é igual ao litro. — Apontou
para outro animal empalhado. — O que é aquilo, ali?
— Uma águia-pesqueira.
Faunia avaliou-a, lançou um olhar duro às garras aguçadas e, de novo
com uma gargalhada ruidosa, recomendou:
— Cuidado com a águia-pesqueira.
A serpente estava a considerar se comia ou não um oitavo ratinho.
— Se eu conseguisse que os meus miúdos comessem sete ratinhos, seria
a mãe mais feliz do mundo — disse Faunia.
A rapariga sorriu.
— No domingo passado, o Príncipe saiu e voou por aí. De todas as aves
que temos, só ele voa. E é muito veloz.
— Oh, eu sei.
— Eu fui deitar água fora e ele foi direito à porta e saiu para as árvores.
Passados minutos, tinham chegado três ou quatro gralhas que o cercaram na
árvore. Pareciam doidas. Perseguiam-no. Batiam-lhe nas costas.
Guinchavam. Atiravam-se a ele, eu sei lá. Chegaram em poucos minutos.
Ele não tem a voz adequada. Não conhece a linguagem das gralhas. Lá fora
não gostam dele. Acabou por descer e vir ter comigo, porque eu me
encontrava lá. Se não fosse isso, tê-lo-iam morto.
— É o resultado de ter sido criado entre nós — disse Faunia. — É o
resultado de passar uma vida com pessoas como nós. A mancha humana —
acrescentou, mas sem repulsa, desprezo ou condenação. Nem sequer com
tristeza. As coisas são como são — à sua maneira seca e concisa, era só isso
que ela estava a dizer à rapariga que dava de comer à serpente:
Nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca.
Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra
maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com
graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente.
Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que
está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A
mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e
confunde toda e qualquer explícação e compreensão. É por isso que toda a
purificação é uma anedota. E uma anedota bárbara, ainda por cima. A
fantasia da pureza é aterradora. É demencial. O que é a ânsia de purificar
senão impureza? Tudo quanto estava a dizer acerca da mancha era que ela é
inelutável. Essa era, naturalmente, a visão de Faunia a esse respeito: as
criaturas inevitavelmente manchadas que nós somos. Resignada com a
horrível imperfeição elementar. Ela é como os Gregos, como os Gregos de
Coleman. Como os seus deuses. Eles são mesquinhos. Brigam. Lutam.
Odeiam. Assassinam. Fodem. Zeus não quer fazer outra coisa senão foder
— deusas, mortais, bezerras, ursas -, e não apenas na sua própria forma,
mas também, ainda mais excitantemente, assumindo a forma visível de
animal. Para montar colossalmente uma mulher como um touro. Para a
penetrar excentricamente como um cisne branco de asas agitadas. Nunca há
carne suficiente para o rei dos deuses, nem carne nem perversidade.
Toda a loucura que o desejo gera. A devassidão. A depravação. Os
prazeres mais grosseiros. E a fúria da esposa que tudo vê. Não o deus
hebraico, infinitamente só, infinitamente obscuro, monomaniacamente o
único deus que existe, existiu e jamais existirá, sem nada melhor para fazer
do que preocupar-se com os judeus. Nem o perfeitamente dessexuado
homem-deus cristão, e a sua mãe imaculada, e toda a culpa e vergonha que
uma espiritualidade sublime inspira. Antes, o Zeus grego, enredado em
aventuras, vivamente expressivo, caprichoso, sensual, exuberantemente
ligado à sua própria existência opulenta, tudo menos só e tudo menos
oculto. Antes a mancha divina. Uma grande religião reflectora da realidade
para Faunia Farley se, por intermédio de Coleman, ela tivesse aprendido
alguma coisa a esse respeito. Pelos padrões da fantasia hubrística, feita à
imagem de Deus, sem dúvida, mas não do nosso: do deles. Deus devasso.
Deus corrupto. Um deus da vida, se algum houve. Deus à imagem do
homem.
— Sim, acho que é essa a tragédia de seres humanos criarem gralhas —
respondeu a rapariga, sem compreender inteiramente o significado das
palavras de Faunia, mas também sem que lhe passasse completamente
despercebido. — Elas não reconhecem a sua própria espécie. Ele, o
Príncipe. não reconhece. E devia reconhecer. Chama-se marca. Ele é na
realidade uma gralha que não sabe ser uma gralha.
De súbito, a ave começou a grasnar, não como uma gralha verdadeira
mas com um grasnido que aprendera ao acaso e que enfurecia as outras
gralhas. Empoleirara-se no cimo da porta e estava praticamente a gritar.
Faunia voltou-se para ela com um sorriso cativante, e disse:
— Considero isso um cumprimento, Príncipe.
— Ele imita os miúdos da escola que vêm cá e o imitam — explicou a
rapariga. -
Os miúdos que vêm em grupo, em excursão escolar, e imitam as gralhas,
percebe? É com essa marca que ele fica. Elas fazem isso. Foi assim que ele
inventou a sua língua, imitando os miúdos.
Numa estranha voz própria, Faunia respondeu:
— Adoro aquela estranha voz que ele inventou. — Entretanto, foi-se
aproximando da gaiola e parou a poucos centímetros da porta. Levantou a
mão, a mão do anel, e disse ao pássaro: — Olha, vê o que te trouxe, para
brincares. — Tirou o anel e estendeu-lho, para que o examinasse de perto.
— Ele gosta do meu anel de opala.
— Costumamos dar-lhe chaves, para brincar.
— Bem, ele subiu na vida. Não subimos todos? Toma. Trezentos dólares.
Brinca com ele, anda. Não reconheces um anel caro quando alguém to
oferece?
— Ele vai tirar-lho — avisou a rapariga. — Vai tirar-lho e levá-lo para
dentro. Guarda tudo. Leva comida para dentro, mete-a nas fendas da parede
da gaiola e empurra-a com o bico, A gralha tinha prendido fortemente o
anel com o bico e abanava a cabeça de um lado para o outro. Depois o anel
caiu no chão. Largara-o.
Faunia baixou-se, apanhou-o e ofereceu-lho de novo.
— Se voltas a deixá-lo cair, não to dou. Fica sabendo. Trezentos dólares.
Estou a dar-te este anel de trezentos dólares. Afinal, o que é que tu és, um
chulo? Se o queres, tens de mo tirar. Entendido?
A gralha voltou a tirar-lho dos dedos com o bico e segurou-o com
firmeza.
_ Muito obrigada — disse Faunia, e depois murmurou, de modo que a
rapariga não a pudesse ouvir: — Leva-o para dentro. Vá, leva-o para a
gaiola. É para ti.
Mas a gralha voltou a deixá-lo cair.
_ É muito esperto — disse a rapariga a Faunia. Quando brincamos com
ele, metemos um ratinho numa caixa e fechamo-la. E ele descobre uma
maneira de a abrir. É espantoso.
Faunia apanhou uma vez mais o anel e ofereceu-o à gralha, que voltou a
pegar-lhe e a deixá-lo cair.
— Oh, Príncipe ... isso foi de propósito. É uma brincadeira, é?
— Cau. Cau. Cau. Cau — gritou-lhe o pássaro na cara, com o seu ruído
especial.
Faunia levantou a mão e começou a afagar-lhe a cabeça e depois, muito
devagar, a afagarlhe o corpo, da cabeça para baixo, e ele deixou-a fazer
isso.
— Oh, Príncipe. Oh, que penas tão bonitas e brilhantes. Está a trautear
para mim — disse, exrasiada, como se tivesse finalmente descoberto o
significado de tudo. — Está a trautear. — E começou a responder-lhe do
mesmo modo: — iuuuu ... iuuuu ... ummmmm -, imitando um pássaro que
estava, de facto, a emitir uma espécie de mugido sob a pressão da mão que
lhe alisava as penas negras. De súbito, clic clic. Estalou o bico. — Oh, que
bom — murmurou Faunia e, voltando a cabeça para a rapariga, acrescentou,
com uma calorosa gargalhada: Fle está para venda? Aquele estalar de bico
decidiu-me. Fico com ele. — Entretanto, aproximou cada vez mais os
lábios do bico em movimento e murmurou: — Sim, vou ficar contigo, vou
comprar-te ...
— Cuidado com os olhos, ele morde — avisou a empregada.
— Oh, eu sei que morde. Já me mordeu umas duas vezes. A primeira vez
que nos vimos, mordeu-me, Mas também estala o bico. Oh, ouçam-no
estalar o bico, meus filhos.
Estava a lembrar-se de quanto se esforçara para morrer. Duas vezes. No
quarto em Seely Falls. No mês seguinte às crianças morrerem, por duas
vezes tentei matar-me naquele quarto. Para todos os efeitos, a primeira vez
morri. Fiquei a sabê-lo pelas histórias que a enfermeira me contou. Aqueles
riscos no monitor que definem o batimento cardíaco nem sequer se viam.
Isso costuma ser fatal, disse ela. Mas há raparigas cheias de sorte. E eu
tinha-me esforçado tanto. Lembro-me de ter tomado duche, rapado as
pernas, vestido a minha melhor saia, a comprida, de ganga, de traçar. E a
blusa de Brattleboro, daquela vez, daquele Verão, a blusa bordada. Lembro-
me do gim e do Valium e, vagamente, do pó. Esqueci-me do nome. Um pó
para matar ratos qualquer, amargo, que misturei no pudim de caramelo.
Terei ligado o forno? Ter-me-ei esquecido de o ligar? Fiquei azul? Quanto
tempo dormi?
Quando é que resolveram arrombar a porta? Ainda não sei quem a
arrombou. Preparei-me como se estivesse em êxtase. Há momentos na vida
que merecem ser celebrados. Momentos triunfantes. As ocasiões para as
quais o vestir a preceito foi inventado. Oh, como me arranjei! Entrancei o
cabelo. Pintei os olhos. A minha própria mãe ter-se-ia sentido orgulhosa, se
me visse, e isso não era fácil. Tinha-lhe telefonado na semana anterior, para
dizer que os meus filhos tinham morrido. O primeiro telefonema em vinte
anos. "É a Faunia, mãe" "Não coo nheço ninguém com esse nome. Com
licença", e desligou. A cabra. Depois de eu fugir, disse a toda a gente: "O
meu marido é severo e a Faunia não soube respeitar as regras. Nunca soube
viver de acordo com as regras. O encobrimento clássico. Alguma vez uma
rapariguinha privilegiada fugiu por um padrasto ser severo? Ela fugiu,
minha cabra, porque o padrasto não era severo, porque, pelo contrário, era
indecente e não a deixava em paz. Bem, seja como for, vesti o melhor que
tinha. Nada menos do que isso chegaria. Na segunda vez, não me vesti a
preceito. E o facto de não o ter feito é eloquente. O facto de ter falhado
antes tirara-me o entusiasmo. A segunda vez foi um acto repentino,
impulsivo e triste. A primeira tentativa levara tanto tempo a chegar, dias e
noites, tanta expectativa. As misturas. A compra do pó. A obtenção das
receitas. Mas a segunda foi apressada. Sem inspiração. Creio que parei
porque não pude suportar a asfixia. A minha garganta a sufocar; a ficar
realmente estrangulada, não entrava ar nenhum e apressei-me a desatar o fio
da extensão. Na primeira vez não houve essa pressa. Eu estava calma e em
paz. As crianças estavam mortas, não tinha ninguém com quem me
preocupar e dispunha de todo o tempo do mundo. Se ao menos tivesse feito
as coisas como devia ser. O prazer com que fiz tudo. No fim, quando não há
nada, chega aquele jubiloso momento em que a morte tem de obedecer às
nossas próprias iradas condições, mas não nos sentimos irados e sim
exultantes, apenas exultantes. Não consigo deixar de pensar nisso. Pensei
nisso a semana inteira. Ele lê-me o que diz o New Yórk Times a respeito de
Clinton e eu só consigo pensar no Dr. Kevorkian e na sua máquina de
monóxido de caro bono. Basta inalar profundamente. Basta inspirar até não
haver mais para inalar.
"Eram umas crianças tão bonitas", disse ele. "Nunca esperamos que nos
aconteça uma coisa destas, a nós ou aos nossos amigos. Pelo menos Faunia
tem o consolo de que os seus filhos estão agora com Deus"
Um idiota qualquer disse aos jornais: DUAS CRIANÇAS MORREM
ASFIXIADAS NUM INCÊNDIO DE UMA CASA LOCAL. "Com base na
investigação inicial", comunicou o sargento Donaldson, "os indícios
apontam para o facto de um aquecedor..." "Pessoas residentes na estrada
local disseram que tiveram consciência do fogo quando a mãe.. ."
Quando a mãe das crianças se soltou da picha que estava a chupar.
"O pai das crianças, Lester Farley, írrompeu do corredor momentos
depois, disseram alguns vizinhos"
Pronto para me matar de uma vez por todas. Não matou. E depois eu não
me matei. É inacreditável. É inacreditável que ninguém tenha ainda feito
isso à mãe das crianças mortas.
— Não, Príncipe, eu não o fiz. Também não consegui fazer esse serviço.
E por isso — segredou ao pássaro, cujo negrume lustroso sob a mão dela
era macio e quente como nada que alguma vez tivesse acariciado — aqui
estamos nós. Uma gralha que não sabe realmente ser uma gralha e uma
mulher que não sabe realmente ser uma mulher. Fomos feitos um para o
outro. Casa comigo. Tu és o meu destino, pássaro ridículo. — Recuou,
inclinou-se e despedíu-se: — Adeus, meu Príncipe.
E o pássaro respondeu. Com um ruído esganiçado tão parecido com -
Cool. Cool. Cool" Ilue ela desatou de novo a rir. Quando se virou para
acenar um adeus à empregada, disse-lhe: _ Bem, isto sempre foi melhor do
que costumo ouvir dos tipos na rua.
E tinha deixado o anel. O presente de Coleman. Escondera-o na gaiola,
quando a rapariga não estava a prestar atenção. Estava noiva de uma gralha.
Isso é que valia a pena. — Obrigada — agradeceu, ao sair.
— Não tem de quê. Bom dia — respondeu a rapariga.
Faunia meteu-se no carro e regressou a casa de Coleman, para acabar de
tomar o pequeno-almoço e ver como corriam as coisas com ele, a seguir. O
anel na gaiola. Príncipe ficou com o anel. Ficou com um anel de trezentos
dólares.

A excursão para ver o Muro Ambulante em Pittsfield realizou-se no Dia


dos ExCombatentes, quando a bandeira é posta a meia-haste, muitas
cidades fazem paradas — e os1 armazéns saldos — e ex-combatentes que
se sentem como Les se sentia ficam mais interlígnados com os seus
compatriotas, o seu país e o seu governo do que em qualquer outro dia do
ano. Agora esperavam que participasse numa parada farsola e marchasse
enquanto uma banda tocava e toda a gente agitava bandeiras? Agora iam
todos sentir-se bem, por momentos, por mostrarem reconhecimento aos
seus veteranos do Vietname? Se estavam tão ansiosos por o verem ali agora,
por que lhe tinham cuspido quando voltara? Como se explicava que
houvesse veteranos a dormir na rua enquanto aquele gajo que fugira do
recrutamento dormia na Casa Branca? Aquele Willie manhoso e
escorregadio, o comandante-chefe. Filho da puta. A apalpar as mamas
gordas daquela rapariga judia enquanto o orçamento para os antigos
combatentes ia pelo cano. A mentir a respeito de sexo? Ora merda. O
maldito governo mente a respeito de tudo. Não, o governo dos EUA já
pregara más partidas suficientes a Lester Farley sem precisar, agora,
daquela anedota do Dia dos Ex-ombatentes.
E no entanto ele estava ali, logo naquele dia, a caminho de Pittsfield na
carrinha de Louie. Iam ver a réplica a meia escala do verdadeiro Muro que
há cerca de quinze anos percorria o país. De 10 a 16 de Novembro, estaria
em exposição no parque de estacionamento do Ramada Inn, sob o
patrocínio dos Veteranos de Guerras no Estrangeiro de Pittsfield.
Acompanhava-o o mesmo grupo que o ajudara a vencer a provação da
refeição chinesa. Não o deixariam só, tinham-no tranquilizado a esse
respeito desde o princípio: estaremos lá contigo, apoiar-te-emos dia e noite
se for necessário. Louie fora mesmo ao ponto de diz que, depois, Les podia
ficar com ele e a mulher em casa deles e que olhariam por ele o tempo que
fosse preciso. "Não terás de ir para casa sozinho se não quiseres, Les. Acho
mesmo que nem devias tentar. Fica comigo e com Tess. Tessie já viu tudo
isso, ela com preende. Não tens de te preocupar com ela. Quando eu voltei,
Tessíe tornou-se a minha motivação. A minha perspectiva era: como pode
alguém dizer-me o que devo fazer? Enfurecia-me descontroladamente sem
qualquer provocação. Tu sabes tudo isso, Les. Mas graças a Deus, Tessie
não me abandonou, ficou firmemente a meu lado. Se quiseres, faz o mesmo
por ti"
Louie era um irmão para ele, o melhor irmão com que um homem
poderia sonhar, mas como não lhe dava tréguas com aquela ideia de ir ver o
Muro, como era tão fanático com a teimosia a respeito da porra do Muro,
Les tinha de fazer um esforço danado para não lhe saltar ao pescoço e
esganá-lo. Coxelas latino do camândrio, deixa-me em paz! Pára de me dizer
que levaste dez anos para ir ver o Muro. Pára de me dizer Como essa porra
mudou a tua vida. Pára de me dizer como fizeste as pazes com Mikey. Pára
de me dizer o que Mikey te disse no Muro. Eu não quero saber!
E no entanto ali vão, ali vão a caminho, e Louie repete-lhe de novo:
""Não te preocupes Louie", foi isto que o Mikey me disse, e é isto que o
Kenny te vai dizer. O que ele me queria dizer, Les, é que estava tudo bem,
que eu podia continuar com a minha vida"
— Não aguento, Lou... volta para trás.
— Acalma-te, rapaz. Já estamos a meio do caminho.
— Volta a porra do carro para trás!
— Les, tu só poderás saber se fores. Tens de ir — respondeu Lou,
brandamente — e tens de ver.
— Eu não quero ver!
— E se tomasses um pouco mais dos teus medicamentos? Um pouco de
Ativan, um pouco de Valium... Um pouco mais não te fará mal. Chet, dá-lha
água.
Quando chegaram a Pittsfield e Louie estacionou defronte do Ramada
Inn, não foi fácilt tirar Les da carrinha. "Não vou", disse, e os outros
ficaram cá fora a fumar, a dar-lhe um pouco mais de tempo para a dose
extra de Ativan e o Valium produzir efeito. Louie continuava a observá-lo>
da rua. Havia por ali muitos carros da polícia e muitos autocarros. Estava a
decorrer uma cerimónia junto do Muro, ouvia-se alguém falar ao
microfone, algum político local, provavelmente o décimo quinto a botar
discurso naquela manhã. "As pessoas cujos nomes estão inscritos neste
muro, aqui atrás de mim, são vossos parentes, amigos e vizinhos São
cristãos, judeus, muçulmanos, negros, brancos, índios: americanos, todos.
Juraram defender e proteger, e deram a vida para cumprir essa promessa.
Não há honraria, não há cerimónia capaz de exprimir plenamente a nossa
gratidão e admiração. Gostaria de partilhar convosco o seguinte poema,
deixado há algumas semanas no Ohio:
.194

"Recordamos-te sorrindo, orgulhoso e forte / Disseste-nos que não nos


preocupássemos / Recordamos aqueles últimos abraços e beijos ... ""
Quando esse discurso acabou, seguiu-se outro: " ... mas com este muro de
nomes atrás de mim, e quando olho para a multidão e vejo os rostos de
homens de meia-idade como eu, alguns deles usando medalhas e outros
peças de um uniforme militar, quando vejo uma leve tristeza nos seus olhos
— talvez o que resta do longo olhar que todos nós adquirimos quando
éramos apenas caçanhos irmãos, homens da infantaria, a mais de quinze mil
quilómetros de casa -, quando vejo tudo isso, sinto-me transportado a trinta
anos atrás. O monumento permanente que deu o nome a este monumento
ambulante foi inaugurado no Mall de Washington em 13 de Novembro de
1982. Precisei de cerca de dois anos e meio para lá ir. Ao recordar agora
todo esse tempo, sei, como muitos veteranos do Vietname, que me mantive
afastado de propósito, por causa das dolorosas recordações que tinha a
certeza de que me despertaria. Por isso, num anoitecer em Washington,
quando o crepúsculo descia, fui ao Muro sozinho. Deixei a mulher e os
filhos no hotel — tínhamos ido à Disneylândia e estávamos de regresso — e
fui lá, parei sozinho no ápice, perto de onde estou neste momento. E as
emoções vieram, um turbilhão de emoções. Lembrei-me de pessoas com
quem cresci, com quem joguei à bola, cujos nomes estão neste Muro,
pessoas daqui mesmo, de Pittsfield. Lembrei-me de Sal, o meu operador de
rádio. Conhecemo-nos no Vietname. Jogámos ao donde-és-tu. De
Massachusetts. Massachusetts. De que parte de Massachusetts? Era de
Springfield. Eu disse-lhe que era de Pittsfield. E Sal morreu um mês depois
de eu partir. Voltei para casa em Abril, peguei num jornal local e fiquei a
saber que Sal não se encontraria comigo em Pittsfield ou Springfield para
tomarmos umas bebidas juntos, Lembrei-me de outros homens com quem
servi... "
Depois uma banda — uma banda da infantaria, muito provavelmente —
tocou o "Hino de Combate dos Bóinas Verdes", o que levou Louie a decidir
que era melhor esperar que a cerimónia terminasse completamente antes de
tirar Les da carrinha. Ele programara a sua chegada de modo a não terem de
assistir aos discursos ou à música emocional, mas era muito possível que o
programa tivesse começado atrasado e, por isso, ainda não terminara. Olhou
para o relógio, viu que era quase meio-dia e calculou que devia estar quase
a acabar. E, de facto, pouco depois acabou, quase subitamente. O toque de
silêncio do clarim solitário. Melhor assím. Já era difícil escutar o toque de
silêncio parado na rua entre todos aqueles autocarros vazios e os carros da
polícia, quanto mais estar lá, no meio de todas as pessoas em pranto, e ter
de se haver com o clarim e com o Muro. Ouviu o toque de silêncio, o longo
e angustiante toque de silêncio, até à última terrível nota, e a seguir a banda
tocou "God Bless America". Louie ouviu as pessoas que estavam junto do
Muro cantando em coro -,"Das montanhas, das pradarias, aos oceanos
brancos de espuma" — e, um momento depois, terminou.
Les continuava a tremer dentro- da carrinha, mas como não parecia olhar
constantemente para trás e só de vez em quando olhava por cima da sua
cabeça para "as coisas",
Louie voltou a subir, com dificuldade, para o veículo e sentou-se ao lado
dele, conscíent de que toda a vida de Les se resumia agora ao pavor do que
estava prestes a descobrir por isso, o que havia a fazer era conduzi-lo lá e
acabar com aquilo.
— Vamos mandar o Swift à frente, Les, para ele encontrar o Kenny para
ti. É um muro muito grande. Será melhor do que teres de percorrer todos
aqueles nomes; o Swift e os rapazes vão à frente e localizam-no primeiro.
Os nomes estão inscritos em painéis por ordem cronológica. Estão por
ordem cronológica do primeiro ao último indivíduo. Tu deste-nos.a data do
Kenny e, por isso, não será preciso muito tempo para o encontrar. -Eu não
vou.
Quando voltou à carrinha, Swíft entreabriu a porta e disse a Louie. — Já
está. Encontrámos o Kenny.
— Pronto, Lester, é agora. Respira fundo. Vais dirigir-te ao Muro. Fica
atrás do Inn. Estarão lá outros tipos, a fazer o mesmo que nós. Houve uma
pequena cerimónia oficial, mas ísso já acabou e não tens de te preocupar a
esse respeito. Não haverá discursos nem conversa fiada. Estarão lá apenas
filhos, pais e avós, todos a fazer a mesma coisa. A depositar coroas de
flores. A rezar. E sobretudo a procurar nomes. Estarão a falar uns com os
outros, como é costume as pessoas fazerem, Les. Alguns estarão a chorar.
Será só isso. Sabes, portanto, o que te espera. Levarás o teu tempo, mas irás
connosco.
Estava um calor pouco habitual para Novembro e, ao aproximarem-se do
Muro, repararam que muitos homens se encontravam em mangas de camisa
e algumas mulheres de calções. Pessoas com óculos de sol em meados de
Novembro, mas, tirando isso, as flores, as pessoas, os miúdos, os avós, era
tudo exactamente como Louie dissera. E o Muro Itinerante não foi nenhuma
surpresa: vira-o em revistas, em T-shirts e, uma vez, vislumbrara na
televisão o verdadeiro, em tamanho natural, o de Washington, antes de ter
tempo para desligar rapidamente o aparelho. Ali, ocupando todo o
comprimento do macadame do parque de estacionamento, encontravam-se
os familiares painéis articulados, um cemitério perpendicular de lajes
verticais escuras, em declive gradual do centro para os lados, nos quais
todos os nomes estavam compactamente gravados em letras brancas. O
nome de cada um dos mortos tinha mais ou menos um quarto do
comprimento do dedo mindinho de um homem. Só assim fora possível pôr
todos ali, os 58 209 homens que já não passeavam nem iam ao cinema, mas
que conseguiam existir, valesse isso o que valesse, como inscrições num
muro portátil de alumínio preto, sustentado, por trás, por uma armação de
pranchas, num parque de estacionamento na retaguarda de um Ramada Inn.
A primeira vez que Swift fora ver o Muro, não conseguira sair do
autocarro e os outros tinham tido de o arrastar de lá para fora e de continuar
a arrastá-lo até ficar frente a frent com ele. Depois, Swift dissera: "Ouvimos
o Muro chorar" A primeira vez que Chet fora ver o Muro, começara a bater-
lhe com os punhos e a gritar: "Não era o nome de Billy — não, o Billy, não!
— que devia estar ali, devia ser o meu! A primeira vez que Lince fora ver o
Muro, tinha estendido apenas a mão para lhe tocar e depois, como se ela se
tivesse petrificado, não conseguira afastá-la — tivera aquilo a que o médico
dos ex-combatentes chamara uma espécie de ataque qualquer. A primeira
vez que Louie fora ver o Muro, não tinha precisado de muito tempo para
perceber tudo. "Pronto, Mikey", tinha dito em voz alta, "aqui estou. E
Mikey, falando na sua própria voz, respondera-lhe logo: "Está bem, Lou.
Está tudo bem. Não te preocupes."
Les sabia todas essas histórias do que podia acontecer na primeira vez, e
agora é ele quem ali está pela primeira vez e não sente nada. Não acontece
nada. Todos lhe dizem que vai ser melhor, vais habituar-te à realidade, cada
vez que voltares será mais fácil, até te levarmos a Washington e procurares
o nome de Kenny no Grande Muro, e isso, isso sim, será a verdadeira cura
espiritual. Toda aquela enorme preparação e agora não acontecia nada.
Nada. Swift ouviu o Muro chorar; Les não ouve nada. Não sente nada, não
ouve nada, não se lembra sequer de nada. É como quando viu os dois filhos
mortos. Aquele imenso ensaio, e nada. Ele com tanto medo de ir sentir de
mais e afinal não sente nada, e isso é pior. Prova que, apesar de tudo, apesar
de Louie e das idas ao restaurante chinês, apesar dos medicamentos e de ter
deixado de beber, tivera razão desde o início ao acreditar que estava morto.
No restaurante chinês sentira alguma coisa e isso induzira-o
temporariamente em erro. Mas agora sabe, tem a certeza, de que está morto,
porque não consegue sequer evocar a memória de Kenny. A memória
costumava torturá-lo, mas agora não consegue estabelecer nenhuma relação
com ela, em sentido nenhum.
Como é a sua primeira vez, os outros mantêm-se mais ou menos por ali.
Afastam-se momentaneamente, um de cada vez, a fim de prestarem
homenagem a amigos especiais, mas há sempre um que fica com ele, para
não o perder de vista, e quando cada um dos outros volta abraça Les. Estão
todos convencidos de que, naquele momento, estão mais unidos entre si do
que nunca e acreditam todos, porque Les tem o ar atordoado conveniente,
que está a passar pela experiência por que todos desejavam que passasse.
Não fazem a mínima Ideia de que, quando desvia o olhar para uma das três
bandeiras americanas a meia haste que, juntamente com a bandeira negra
dos Prisioneiros de Guerra. Desaparecidos em Combate, flutuam sobre o
parque de estacionamento, ele não está a pensar em Kenny nem sequer no
Dia dos Antigos Combatentes, mas sim que todas as bandeiras flutuam a
meia haste em Pittsfield porque ficou finalmente provado que Les Farley
morreu. É oficial: está completamente morto, e não apenas por dentro. Não
diz isso aos outros. Para quê? A verdade é a verdade. "Estou orgulhoso de
ti", murmura-lhe Louie. "Sabia que eras capaz. Sabia que isto aconteceria."
E Swift diz-lhe: "Se alguma vez quiseres falar do assunto... "
Apoderou-se dele uma serenidade que todos confundem erradamente
com êxito terapêutico. O Muro que Cura, diz o letreiro defronte do hotel, e
é isso que acontece. Quando deixam de estar parados diante do nome de
Kenny, começam a andar de um lado para o outro com Les, percorrem toda
a extensão do Muro em ambos os sentidos, todos eles a observar as pessoas
que procuram nomes, a deixar Lester absorver tudo isso, ter consciência de
que está onde está a fazer o que está a fazer. "Este muro não é para subires,
querido", diz calmamente uma mulher a um rapazinho, afastando-o da parte
baixa por cima da qual ele estava a espreitar. "Qual é o apelido dele? Qual é
o último apelido do Steve?", pergunta um homem idoso à sua mulher,
enquanto passa cuidadosamente um dedo por um painel abaixo, linha por
linha. "É aqui", ouvem uma mulher dizer a uma criança pequena que ainda
mal sabe andar, enquanto toca com um dedo num nome gravado no Muro.
"É aqui, meu amor. É o tio Johnny" E benze-se. "Tens a certeza de que é a
linha vinte e oíto", pergunta uma mulher ao marido. "Tenho, sim" "Bem, ele
tem de estar aí. Painel quatro, linha vinte e oito. Encontrei-o em
Washington" "Mas eu não o vejo. Deixa-me contar de novo" "É o meu
primo", diz uma mulher. "Abriu uma garrafa de Coca, quando lá estava, e
ela explodiu. Estava armadilhada, Dezanove anos. Atrás das linhas. Queira
Deus que esteja em paz" De joelhos junto de um dos painéis, um veterano
com um boné da Legião Americana ajuda duas senhoras negras, vestidas
com a sua roupa de ver a Deus. "Qual é o apelido dele", pergunta à mais
nova das duas. "Bates. James" "Cá está ele", diz o veterano. "Está aqui,
mãe", diz a mais nova à outra senhora. Como o Muro tem metade do
tamanho do de Washington, muita gente tem de se ajoelhar para procurar os
nomes, o que torna a localização particularmente difícil para os mais
velhos. Há flores envoltas em celofane encostadas ao Muro. Alguém colou
no fundo do Muro, com fita gomada, um poema escrito à mão num pedaço
de papel. Louie inclina-se para ler as palavras: "Luz de estrelas, brilho de
estrelas / A primeira estrela que vejo esta noite ... " Há pessoas com os
olhos vermelhos de chorar. Há veteranos com bonés de Veteranos do
Vietname como o de Louie, alguns com fitas de condecorações pregadas no
tecido. Um rapaz bochechudo, de cerca de 10 anos, está de costas
teimosamente voltadas para o Muro e diz a uma mulher: "Não quero ler-Um
indivíduo cheio de tatuagens, com uma T-shirt da Primeira Divisão de
Infantaria — "A Grande Vermelha", lê-se na camisola -, abraça-se a si
mesmo vagueia por ali, desorientado, presa de terríveis pensamentos. Louie
pára, agarra-o e abraça-o. Abraçam-no todos. Conseguem que até Les o
abrace. "Dois dos meus amigos do liceu estão ali, mortos com quarenta e
oito horas de intervalo um do outro", diz um indivíduo, perto deles. "E
foram velados na mesma agência funerária. Foi um dia triste para o Liceu
de Kirigs. ton" "Ele foi o primeiro a partir para o Vietname-, diz outra
pessoa, "e o único de nós que não regressou. E sabem o que ele gostaria de
ter debaixo do seu nome, ali no Muro? A mesma coisa que queria no
Vietname. Eu vou dizer exactamente o quê: uma garrafa de Jack Daniels,
um bom par de botas e um brownie recheado de pêlos de passarínha"
Um grupo de quatro indivíduos está parado a conversar, e quando Louie
os ouve recordar, pára a ouvir e os outros esperam com ele. Os quatro
desconhecidos são todos homens de cabelo grisalho ralo, ou cabelo
ondulado grisalho, ou, num caso, um rabo-de-cavalo grisalho a espreitar de
um boné de veterano do Vietname.
— Estavas motorizado, quando lá estiveste?
— Estava. Fartávamo-nos de andar aos solavancos, mas sabíamos que
mais cedo ou mais tarde voltávamos ao camião.
— Andámos muito. Calcorreámos todo o sacana do Planalto Central.
Todas as malditas montanhas.
— Outra coisa que acontecia com a unidade motorizada é que nunca
estava na retaguarda. Penso que durante o tempo todo que lá passei, e foram
quase onze meses, estive no acampamento da base quando cheguei e
quando fiquei em Descanso & Recuperação, mais nada.
— Quando ouviam as lagartas, sabiam que nos aproximávamos e quando
íamos chegar, de modo que o foguete B-40 estava à nossa espera. Tinham
muito tempo para afinar a pontaria e inscrever o nosso nome nele.
De repente, Louie meteu-se na conversa.
— Nós estamos aqui — disse, de chofre, aos quatro desconhecidos. —
Estamos aqui, não é verdade? Estamos todos aqui. Deixem-me anotar os
nomes de vocês. Deixem-me anotar os nomes e as moradas. — Tirou a
agenda da algibeira de trás das calças e, apoiado na bengala, escreveu todas
as informações que eles lhe deram, para poder mandar-lhes o boletim
informativo que ele e Tessie publicam e enviam, a expensas suas, duas
vezes por ano.
Depois passam pelas cadeiras vazias. Não as tinham visto à vinda, tão
concentrados estavam em conduzir Les ao Muro sem que ele caísse ou
fugisse. No fim do parque de estacionamento encontram-se quarenta e uma
velhas cadeiras metálicas cinzento-acastanhadas, provavelmente retiradas
da cave de alguma igreja e dispostas em fileiras ligeiramente arqueadas,
como numa cerimónia de licenciatura ou entrega de prémios: três fileiras de
dez e uma de onze. Tinham sido dispostas assim com grande cuidado.
Colado no espaldar de cada cadeira estava o nome de alguém: acima do
assento vazio, um nome, um nome de homem impresso num cartão branco.
Todo um conjunto isolado de cadeiras e, para haver a certeza de que
ninguém se sentaria ali, um cordão bambo, de tecido preto e carmesim
entrelaçado, estendido ao longo de cada um dos quatro lados.
Há também uma coroa, uma grande coroa de cravos, e quando Louie, a
quem não escapa nada, pára para os contar, verifica que, como suspeitava,
os cravos também são quarenta e um.
— O que é isto? — pergunta Swift.
— São os rapazes de Pittsfield que morreram. São as suas cadeiras vazias
— responde Louíe.
— Grande porra — pragueja Swift. — Foi uma chacina do caraças. Ou se
combate para vencer, ou não se combate. Grandíssima porra.
Mas a tarde ainda não acabou para eles. No passeio, defronte do Ramada
Inn, encontra-se um tipo magro, de óculos e casaco demasiado grosso para
o tempo que faz, que está com um problema sério: grita aos desconhecidos
que passam, aponta para eles e cospe, por causa da força com que grita, e já
se vêem polícias sair dos carros-patrulha para tentarem acalmá-lo antes que
agrida alguém ou, se tem alguma arma escondida, a puxe e dispare. Segura
uma garrafa de uísque — essa parece ser a única coisa que tem consigo.
"Olhem para mim:", grita. "Sou uma merda, e quem olhar para mim sabe
que sou uma merda. Nixonl Nixon! Foi ele quem me transformou nisto! Foi
ele quem fez de mim uma merda! Foi Nixon quem me mandou para o
Vietname!"
Apesar do ar solene com que se metem na carrinha, cada um vergado
pelo peso das próprias recordações, é com algum alívio que vêem Les, ao
contrário do tipo que berra na rua, evidenciando uma calma que nunca lhe
viram antes. Embora não sejam homens dados a exprimir sentimentos
transcendentes, sentem, na presença de Les, as emoções susceptíveis de
inspirar essa espécie de anseio. Durante a viagem de regresso, cada um
deles, com excepção de Les, tem consciência, no mais alto grau de que é
capaz, do mistério de estar vivo e activo.

Parecia sereno, mas isso era impostura. Tomou a sua decisão. Usaria o
carro. Acabaria com todos, incluindo ele próprio. Ao longo do rio, iria
direito a eles, na mesma faixa de rodagem, na faixa deles, na curva onde o
rio vira.
Tomou a sua decisão. Não tem nada a perder e tem tudo a ganhar. Não se
trata de uma questão de se: se aquilo acontecer, ou se eu vir isto, ou se eu
pensar isto, faço-o; caso contrário, não faço. Tomou a sua decisão tão
definitivamente que já nem pensa. Está numa missão suicida e,
interiormente, numa agitação incontrolável. Não há palavras. Não há
pensamentos. É só ver, ouvir, saborear, cheirar: é fúria, é adrenalina e é
resignação. Não estamos no Vietname. Estamos para além do Vietname.
(Internado de novo na ADMINISTRAÇÃO DOS VETERANOS um ano
depois, tenta explicar à psicóloga, em inglês simples, este puro estado de
alguma coisa que é nada. De qualquer modo, é tudo confidencial. Ela é
médica. Há a ética clínica. Fica tudo rigorosamente entre os dois. "Em que
estava a pensar?" "Não pensava" "Tinha de estar a pensar em alguma
coisa." "Em nada. "Em que altura entrou na sua camioneta?" "Depois de
escurecer" "Tinha jantado?" "Não tinha jantado" "Por que pensou que ia
meter-se na camioneta. "Eu sabia porquê" "Sabia aonde ia. -Apanhã-lo., -
Apanhar quem?" "O judeu. O professor judeu" "Por que ia fazer isso?"
"Para o apanhar" "Porque tinha de o fazer?" "Porque tinha de o fazer"
"Tinha de o fazer porquê?" - Kenny. "Ia matá-lo" -Oh, sim. Ia matar-nos a
todos" "Nesse caso, foi planeado" "Não houve planeamento" "Sabia o que
estava a fazer" "Sabia .• "Mas não o planeou" "Não." "Pensou que estava de
novo no Vietname?" "Não havia Vietname" "Teve uma retrospecção?"
"Não, nenhuma" "Pensou que estava na selva?"Não" "Pensou que se
sentiria melhor?" "Não senti nada" "Estava a pensar nas crianças? Tratava-
se de retaliação?" "Não era retaliação" "Tem a certeza?" "Não era
retaliação" -Disse -me que essa mulher matou os seus filhos, "um broche",
disse-me, "matou os meus filhos".
Não estava a tentar vingar-se disso?" "Não foi vingança" "Estava
deprimido?" "Não, não estava deprimido. "Saiu para matar duas pessoas, e
a si mesmo, e não estava furioso?" "Não, a fúria passara. "você meteu-se na
sua camioneta, sabia onde eles estavam e lançou-se contra os faróis
dianteiros do carro deles. E pretende dizer-me que não estava a tentar matá-
los" ,Eu não os matei" "Quem os matou?" "Eles mataram-se."
Conduz, apenas. É só isso que faz. Planeia e não planeia. Sabe e não
sabe. Os outros faróis vêm na sua direcção e depois desaparecem. Não
houve colisão? Pronto, não houve colisâo. Depois de eles guinarem para
fora da estrada, muda de faixa e continua a conduzir. L.imita-se a conduzir.
Na manhã seguinte, quando espera com a brigada da estrada para Iniciar o
trabalho, ouve falar do que aconteceu na garagem municipal. Os outros
trabalhadores já sabem.
Como não houve colisão, ele, apesar de ter uma vaga ideia do sucedido,
não conhece os pormenores e, quando chega a casa e sai da camioneta, não
tem a certeza do que acconteceu. Um grande dia para ele. 11 de Novembro.
Dia dos Ex-Combatentes. Nessa manhã sai com Louie, nessa manhã vai ver
o Muro; nessa tarde regressa a casa depois de ver o Muro; nessa noite sai
para matar toda a gente. Matou? Não pode saber, em virtude de não ter
havido colisão, mas não deixa de ser um grande dia do ponto de vista
terapêutico, a segunda metade mais terapêutica do que a primeira. Agora
alcançou uma serenidade genuína. Agora Kenny pode falar com ele. Estava
a disparar ao lado de Kenny, ambos em rogo automático total, quando
Hector, o chefe da equipa, ordena: "Peguem nas vossas coisas e toca a andar
daqui para fora!" E, de súbito, Kenny está morto. Assim, de repente. Num
monte qualquer. Sob ataque, batendo em retirada ... e Kenny está morto.
Não pode ser. O seu parceiro, um rapaz do campo como ele, com os
mesmos antecedentes, exceptuando o Missouri, iam explorar juntos uma
herdade leiteira. Um tipo que aos 6 anos vira o pai morrer, vira a mãe
morrer aos 9 e, depois disso, fora criado por um tio que amava e de quem
estava sempre a falar, um industrial leiteiro bem-sucedido, com uma
exploração de bom tamanho — cento e oitenta vacas leiteiras, doze
máquinas que ordenhavam seis vacas de cada vez ... E de repente a cabeça
de Kenny desapareceu e ele está morto.
Agora Les tem a impressão de que está a comunicar com o amigo.
Mostrou a Kenny que ele não tinha sido esquecido. Kenny queria que ele
fizesse aquilo, e ele fez. Agora sabe que aquilo que fez — embora não
tenha a certeza do que foi — o fez por Kenny. Mesmo que tenha morto
alguém e seja preso, não tem importância — não pode ter importância,
porque ele está morto. Aquilo foi apenas uma última coisa que tinha de
fazer por Kenny. Acertou as contas com ele. Sabe que agora está tudo bem
com Kenny.
"Fui ao Muro, o nome dele estava lá e fez-se silêncio. Esperei, esperei,
esperei. Olhei para ele e ele olhou para mim. Não ouvi nada, não senti nada,
e foi assim que soube que não estava tudo bem com ele. Faltava fazer
alguma coisa. Não sabia o que era. Mas ele não me deixaria assim, sem
mais nada. Era por isso que não havia nenhuma mensagem para mim.
Porque eu ainda tinha de fazer mais por Kenny. Agora? Agora Kenny está
bem. Agora pode descansar, "E você ainda está morto?" "É parva ou quê?
Não vale a pena falar consigo, sua parva! Eu fiz aquilo porque estou
morto".
A primeira coisa que ouve na manhã seguinte, na garagem, é que ela
estava com o judeu quando houve um desastre de automóvel. Toda a gente
imagina que ela estava a chupá-lo, ele perdeu o controlo do carro, saíram da
estrada, rebentaram a barreira de protecção estamparam-se por ali abaixo,
de frente, na água pouco funda do rio. O judeu perdeu o controlo do carro.
Não, ele não associa isso ao que aconteceu a noite passada. Tinha saído
na camionete num estado de espírito completamente diferente.
— O que foi? — pergunta. — O que aconteceu. Quem a matou?
— O judeu. Saiu da estrada.
— Provavelmente ela estava a chupá-lo.
— É isso que dizem.
E ficou por aí. Também não sente nada a esse respeito. Ainda não sente
nada. A não ser o seu sofrimento. Por que sofre ele tanto com o que lhe
aconteceu quando ela podia continuar a chupar judeus velhos? Quem sofre
é ele, e agora ela sai de campo e livra-se tudo.
Pelo menos é isso que lhe parece, enquanto bebe o seu café matinal na
garagem da câmara.
Quando todos se levantam para se dirigirem para as camionetas, Les diz:
— Suponho que aquela música não voltará a sair daquela casa, nas noites
de sábado.
Embora, como às vezes acontece, ninguém perceba do que está ele a
falar, os colegas riem-se e o dia de trabalho começa.
Se ela se situasse na parte ocidental do Massachusetts, o anúncio poderia
ser relacionado com ela pelos seus colegas assinantes da New }6rk Review
of Books, sobretudo se descrevesse o seu aspecto físico e enumerasse os
seus títulos. Por outro lado, se não especificasse onde residia poderia acabar
sem uma única resposta de ninguém num raio de duzentos, trezentos ou,
até, quinhentos quilómetros. E considerando que, em todos os anúncios que
estudara na New York Review, a idade mencionada pelas mulheres
ultrapassava a sua ent quinze a trinta anos, como poderia revelar a sua idade
verdadeira — revelar-se inteira e correctamente — sem despertar a suspeita
de que devia estar a ocultar alguma coisa importante, ou alguma coisa
errada: o quê, uma mulher que alegava ser tão jovem, tão atraente, tão
dotada, achava necessário recorrer a um anúncio para arranjar um homem.
Se dissesse que era -ardente-, isso poderia ser imediatamente interpretado
pelos possuidores de mentalidade lasciva como uma provocação deliberada,
como significando que era "dissoluta" ou pior, e iriam chover na sua caixa
de correio da NYRB cartas de homens com os quais não queria ter nada.
Mas se transmitisse a impressão de que era uma sabichona para quem o
sexo tinha, decididamente, menos importância do que as suas actividades
académicas, eruditas e intelectuais, podia ter a certeza de que inspiraria
respostas de um tipo de homem pudico de mais para alguém tão apaixonado
quanto ela podia ser com um parceiro erótico no qual pudesse confiar. Se se
apresentasse como "bonita", estaria a associar- se a uma vaga categoria
abrangente de mulheres, mas se optasse por descrever-se, sem evasivas,
como "bela", se ousasse ser suficientemente franca para empregar a palavra
que nunca parecia extravagante aos seus amantes — que lhe tinham
chamado éblouissante como em "Éblouissante! Tu as un visage de chat"),
deslumbrante, entontecedora — ou se, por uma questão de precisão num
texto de apenas trinta, trinta e poucas palavras, referisse a semelhança,
referida por pessoas mais velhas do que ela, com Leslie Caron, que o seu
pai gostava sempre muito de alardear, então todos, a não ser algum
megalómano, poderiam sentir-se demasiado intimidados para a abordar ou
recusar-se a tomá-la a sério como intelectual. Se escrevesse "Uma
fotografia a acompanhar a carta será bem-vinda" ou, simplesmente,
"Fotografia, por favor", poderia arriscar-se a ser mal interpretada e a
deduzirem que apreciava o bom aspecto acima da inteligência, da erudição
e do requinte cultural. Além de que quaisquer fotografias que recebesse
podiam ter sido retocadas, terem sido tiradas há anos ou mesmo
completamente falsas. Pedir uma fotografia talvez desencorajasse, até, uma
resposta precisamente dos homens cujo interesse ela esperava despertar. No
entanto, se não pedisse uma fotografia arriscar-se-ia a viajar até Boston,
Nova Iorque ou ainda mais longe e dar consigo a jantar na companhia de
alguém inteiramente inadequado ou mesmo indesejável. E indesejável não
necessariamente apenas por causa do aspecto. E se fosse um mentiroso? E
se fosse um charlatão? E se fosse um psicopata? E se tivesse SIDA? E se
fosse violento, depravado, casado ou vivesse de um subsídio social? E se
fosse um excêntrico, alguém de quem não se conseguisse livrar? E se ela
indicasse o seu nome e o seu lugar de trabalho a um perseguidor furtivo?
No entanto, como poderia ocultar o seu nome num primeiro encontro?
Como poderia uma pessoa franca e honesta, em busca de um caso amoroso
apaixonado e sério que conduzisse ao casamento e à constituição de uma
família, Cono poderia alguém assim começar por mentir a respeito de uma
coisa tão fundamental como o seu nome? E quanto à raça? Não deveria
incluir também a amável declaração "A raça é indiferente"? Mas não era
indiferente; deveria ser, teria de ser, poderia ser não fora o fiasco em Paris,
quando tinha 17 anos, tê-la convencido de que um homem de outra raça era
um parceiro inexequível, porque irreconhecível.
Era jovem e temerária, não queria ser cautelosa, e ele pertencia a uma
boa família de Brazaville, era filho de um juiz do Supremo Tribunal- pelo
menos era o que dizia -, estava em Paris ao abrigo de um programa de
permuta, para estudar um ano em Nanterre.
Chamava-se Dominique e ela considerava-o colega espiritual no amor
pela literatura.
Conhecera-o numa das conferências de Milan Kundera. Ele conquistara-a
aí. Depois, cá fora continuaram encantados com as observações do escritor
sobre Madame Bovary contagiados, ambos, por aquilo que Delphine
considerava excitadamente "a doença Kundera-. Na opinião deles, o facto
de Kundera ser perseguido como escritor checo, de 5, alguém que perdera a
grande batalha histórica da Checoslováquia para se tornar li legitimava-o. A
sua jovialidade não lhes parecia frívola, de modo algum. Adoravam O Livro
Riso e do Esquecimento. Havia nele alguma coisa que inspirava confiança.
O s europeísmo oriental. A natureza inquieta do intelectual. O facto de tudo
parecer difícil par ele. Sentiam-se ambos conquistados pela modéstia de
Kundera, que era o oposto absoluto da atitude de superstar, e acreditavam
ambos no seu etos do pensamento e do sofrimento Todas aquelas
atribulações intelectuais. E havia também o seu aspecto. Delphine
sentiamuito fascinada com o físico poeticamente pugilístico do escritor, que
para ela era um sin exterior de tudo quanto colidia no interior dele.
Depois da conquista na conferência de Kundera, o caso tornou-se uma
experiência i teiramente física para Dominique, coisa que ela nunca
conhecera antes. Era inteiramen a respeito do seu corpo. Sintonizara-se de
mais com a conferência de Kundera, confundi essa sintonização com a que
tinha com Dominique e acontecera tudo muito depressa. Não havia nada
além do seu corpo. Dominique não compreendia que ela não queria apenas
isso. Ela desejava ser alguma coisa mais do que um pedaço de carne num
espeto, que se vira e regava. Era isso que ele fazia, eram até essas as
palavras que ele usava: virá-la e regá-la. Não estava interessado em mais
nada, e muito menos em literatura. Solta-te e cala-te, era a sua atitude para
com ela, uma atitude na qual ela se deixara de certo modo aprisionar, até á
terrível noite em que chega ao quarto dele e o encontra à sua espera com um
amigo. Não se trata, agora, de ter preconceitos, mas apenas de se ter dado
conta de que não se teria enganado tanto com um homem da sua raça. Esse
foi o seu pior fracasso e nunca conseguiu esquecê-lo. A redenção só
chegara com o professor que lhe tinha dado o seu anel romano. Sexo, sim,
sexo maravilhoso, mas sexo com metafísica. Sexo com metafísica com um
homem com gravidade e sem vaidade. Alguém como Kundera. O plano é
esse.
O problema com que se defrontava, ali sentada sozinha ao computador
muito depois de ter escurecido — a única pessoa que ainda se encontrava
em Barton Hall -, incapaz de sair do seu gabinete e, também, de suportar
mais uma noite, que fosse, no seu apartamento sem ter sequer um gato por
companhia, o problema era como incluir no seu anúncio, aínda que do
modo mais subtilmente codificado possível, alguma coisa que,
essencialmente, significasse: "Só devem responder brancos." Se em Athena
descobrissem que fora ela que especificara essa exclusão ... não, isso seria
impensável numa pessoa que subira tão depressa na hierarquia académica
da universidade. Não podia, no entanto, deixar de pedir uma fotografia,
embora soubesse — graças ao esforço constante para tentar o mais possível
pensar em tudo e não ser ingénua a respeito de nada, para, apesar da sua
breve vida de mulher entregue a si mesma, ter sempre em conta o modo
como os homens podiam comportarse — que nada impediria alguém
suficientemente sádico ou perverso de enviar uma fotografia
especificamente destinada a enganar na questão da raça.
Não, em definitivo, era arriscado de mais — além de indigno dela — pôr
um anúncio para .a ajudar a conhecer um homem de um calibre que jamais
encontrara entre os membros da faculdade de um lugar tão atrozmente
provinciano como Athena. Não podia nem devia fazê-lo, e contudo, ao
mesmo tempo que pensava nas incertezas, nos verdadeiros perigos de se
anunciar a desconhecidos como uma mulher em busca de um companheiro
adequado, pensava também na imprudência de, como presidente do
Departamento de Línguas e Literatura, correr o risco de revelar aos colegas
outra faceta que não a de professora, da intelectual séria, de se expor como
alguém com necessidades e desejos que, embora absolutamente humanos,
poderiam ser deliberadamente deturpados com o intuito de a banalizar.
Depois de enviar por correio electrónico, a cada um dos membros do seu
departamento, as suas últimas ideias a respeito das teses dos estudantes do
último ano, estava a tentar compor um anúncio conforme com a fórmula
linguística banal do padrão de anúncios pessoais daNew York Review, mas
que permitisse também fazer uma avaliação real do valor dela. Há mais de
uma hora que tentava, mas continuava incapaz de encontrar um modelo que
não fosse humilhante, mesmo enviado por correio electrónico e sob
pseudónimo.

Mass. Ocid. Prof. parisiense, delicada, ardente, 29 anos, tão à vontade a


ensinar Mollíere como

Prof. universitária inteligente e bela do Berkshire, tão à vontade a


preparar médaillons de veau como a presidir a um departamento de
literatura clássica, procura

Intelectual solt. branca, séria, procura

Prof. universitária solt. branca, doutorada Yale, nascida em Paris.


Delicada, morena, intelectual, amante da literatura, com gosto pela moda
procura

Prof. universitária atraente, séria, procura


Doutorada solt. branca, francesa, resido Mass., procura

Procura o quê? Qualquer coisa, tudo menos estes homens de Athena —


os rapazolas espirituosos, os velhos amaricados, os tímidos e enfadonhos
viciados na família, os papás profissionais, todos, todos eles tão zelosos e
emasculados. Revolta-a o facto de se orguIharem de fazerem metade do
trabalho doméstico.
Acha intolerável. "Sim, tenho de ir, preciso de render a minha mulher.
Tenho de mudar tantas fraldas como ela, percebe." Arrepia-se quando se
vangloriam da sua prestabilidade. Que façam essas coisas, muito bem, mas
poupem-lhe a vulgaridade de o mencionarem. Para quê o espectáculo de se
proclamarem cinquenta por cento maridos? Sejam-no, mas calem-se. Nesta
repugnância é muito diferente das suas colegas, que valorizam esses
homens pela sua "sensibilidade". Elogiar excessivamente as respectivas
mulheres é isso, é "sensibilidade"? "Oh, Sara Lee é uma extraordinária isto-
e-aquilo. Já publicou quatro artigos e meio ... " O Sr. Sensibilidade está
sempre a mencionar a glória da sua mulher. O Sr. Sensibilidade não é capaz
de falar de alguma grande exposição no Metropolitan sem acrescentar um
prefácio: "Sara Lee diz..." Ou elogiam excessivamente as suas mulheres ou
remetem-se a um silêncio total. O marido mergulha no silêncio e fica cada
vez mais deprimido. Ela nunca viu uma coisa assim em nenhum outro país.
Se Sara Lee é professora universitária e não consegue arranjar emprego
enquanto ele, por exemplo, está por um fio no seu, o marido preferiria
perdê-lo a deixá-la pensar que está em situação de inferioridade. Sentiria até
um certo orgulho se a situação se invertesse e fosse ele a ter de ficar em
casa enquanto ela saía para trabalhar. Uma francesa, até mesmo uma
feminista francesa, acharia um homem desses insuportável. A mulher
francesa é inteligente, é sensual, é verdadeiramente independente, e se o
homem fala mais do que ela que mal há nisso, qual é o problema? A que
vem a feroz contenda? Não a ouvimos dizer: "Oh, reparaste como ela é
dominada pelo grosseiro marido sedento de poder?" Não, quanto mais
mulher é mais a mulher francesa quer que o homem projecte o poder dele.
Oh, como ela desejou, ao chegar a Athena cinco anos atrás, conhecer um
homem maravilhoso que projectasse o seu poder! Em vez disso, o grosso do
corpo docente masculino mais jovem é constituído por aqueles domésticos
emasculados, intelectualmente nada estimulantes, prosaicos, em suma, os
maridos incensadores das Saras Lee a que ela chama deliciosamente,
quando escreve aos seus amigos de Paris, "Os Fraldas".
E há também "Os Chapéus". Os Chapéus são os "escritores residentes",
os incrivelment presumidos escritores residentes da América. É provável
que, na pequena Athena, não tenha visto os piores espécimes dessa fauna,
mas estes dois chegam-lhe e sobram-lhe. Apa recem para dar aulas uma vez
por semana, são casados, atiram-se a ela e são impossíveis, Quando
podemos almoçar juntos, Delphine? Lamento, pensa ela, mas não me
impressiona, O que lhe agradara em Kundera, nas suas conferências, fora o
facto de ele ser sempre um pouco vago, às vezes até ligeiramente
desleixado, um grande escritor malgré lui. Pelo menos era essa a sensação
que lhe causava, e era disso que ela gostava nele. Mas tem a certeza de que
não gosta, de que não suporta, o tipo americano de eu-sou-o-escritor que,
quando olha, ela sabe que pensa: com a tua confiança francesa, o teu estilo
francês e a tua educação elitista francesa és, de facto, muito francesa, mas
isso não impede que sejas a professora universitária e eu o escritor. Não
somos iguais.
Tanto quanto lhe parece, estes escritores residentes passam tempos
infinitos a preocupar-se com o que usam na cabeça. Sim, o chapéu é um
fetiche extraordinário, tanto para o poeta como para o prosador, e por isso
ela classifica-os, nas suas cartas, como Os Chapéus. Um deles anda sempre
vestido como Charles Lindbergh, com o seu antigo equipamento de piloto, e
ela não consegue compreender que relação pode existir entre um
equipamento de piloto e escrever, sobretudo escrever na qualidade
residente. Divaga a este respeito na correspondência divertida que troca
com os amigos de Paris. O outro é do tipo chapéu mole, do tipo
despretensioso — na realidade muito recherché — que passa oito horas ao
espelho para se vestir despreocupadamente. Vaidoso, ilegível como escritor,
casado umas cento e oitenta e seis vezes e incrivelmente convencido. Este
causa-lhe menos antipatia do que desprezo. No entanto, perdida nos
Berkshire e faminta de romance, experimenta por vezes um sentimento
ambivalente a respeito d'Os Chapéus e pergunta a si mesma se não deveria
tomá-los a sério, pelo menos como candidatos eróticos. Não, não poderia
fazê-lo, sobretudo depois do que escreveu para Paris. Tem de lhes resistir,
nem que seja apenas pelo facto de tentarem falar-lhe com o próprio
vocabulário dela. Porque um deles, o mais novo e minimamente menos
convencido, leu Bataille, porque adquiriu uns rudimentos de Bataille e uns
rudimentos de Hegel, saiu com ele algumas vezes e o resultado foi que
jamais homem algum perdeu tão rapidamente qualquer interesse erótico
diante dos seus olhos: a cada palavra que dizia — usando, como usava,
aquela linguagem dela, a respeito da qual ela própria começava agora a
sentir alguma incerteza -, saía definitivamente da sua vida.
Enquanto que os indivíduos mais velhos, que são pouco sofisticados e
usam fatos de tweed, "Os Humanístas"... bem, embora deva ser amável em
conferências e publicações e screver e falar como a profissão requer, o
humanista é a parte de si mesma que às vezes se surpreende a atraiçoar, e
por isso sente-se atraída por eles: porque são o que são e sempre foram e
porque sabe que a consideram uma traidora. As aulas dela têm público, mas
eles encaram-no com desdém, como um fenómeno de moda. Esses homens
mais velhos, Os Humanistas, esses humanistas tradicionais antiquados que
leram tudo, os conservadores (como ela os considera), fazem-na às vezes
sentir-se superficial. Riem-se do seu público e desprezam os seus
conhecimentos. Nas reuniões da faculdade não têm medo de dizer o que
pensam, quando seria de esperar que tivessem; nas aulas não têm medo de
dizer o que sentem e, mais uma vez, seria natural que tivessem. Em
consequência disso, desmoronase na presença deles. Como ela própria não
tem muita convicção quanto ao pretenso discurso que adquiriu em Paris e
New Haven, desmorona-se interiormente. Acontece, no entanto, que precisa
desse discurso para ter êxito. Entregue a si mesma na América, precisa de
tanto para ter êxito! Mas tudo quanto é necessário para alcançar isso é de
algum modo comprometedor e fá-Ia sentir-se cada vez menos autêntica. E
dramatizar a sua embaraçosa situação dando-lhe foros de "dilema faustiano"
pouco ajuda.
Há momentos em que chega mesmo a ter a sensação de estar a trair
Milan Kundera, e por isso, em silêncio, quando está só, vê-o mentalmente,
fala com ele e pede-lhe perdão. O objectivo de Kundera, nas suas
conferências, era libertar a inteligência da sofisticação francesa, falar do
romance como tendo alguma coisa a ver com seres humanos e com a
comédie humaine, o seu objectivo era libertar os seus estudantes das
armadilhas tentadoras do estruturalismo e do formalismo, da obsessão com
a modernidade, expurgá-los da teoria francesa com que tinham sido
alimentados, e para ela tinha sido um enorme alívio ouvi-lo, pois, apesar
das suas publicações e de uma crescente reputação intelectual e académica,
tinha sempre dificuldade em lidar com a literatura do ponto de vista da
teoria literária. Podia haver uma brecha tão gigantesca entre aquilo de que
gostava e aquilo que esperavam que admirasse — entre o modo como
esperavam que falasse do que esperavam que admirasse e o modo como
falava a si mesma dos escritores que reverenciava — que a sua sensação de
atraiçoar Kundera, não sendo embora o problema mais grave da sua vida, se
assemelhava por vezes à vergonha de trair um amável e confiante amante
ausente.
O único homem com quem tem saído com frequência é, curiosamente, a
pessoa mais conservadora do campus, um divorciado de 65 anos, Arthur
Sussman, o economista da Universidade de Boston que esteve para ser
secretário do Tesouro na segunda administração de Ford. É um bocado
corpulento, um bocado rígido, usa sempre fato completo, detesta a
discriminação positiva, detesta Clinton, vem de Boston uma vez por
semana, recebe uma fortuna e espera-se que, em troca, ponha o lugar, a
pequena Athena, no mapa académico. As mulheres, sobretudo, têm a
certeza de que ela dormiu com ele, só porque em tempos foi poderoso.
Vêem-nos de vez em quando a almoçar juntos na cafetaria. Ele entra e
parece horrivelmente enfadado enquanto não vê Delphine, e depois, quando
lhe pergunta se lhe pode fazer companhia, ela responde: "Como é generoso
da sua parte honrar-nos com a sua presença", ou qualquer coisa parecida.
Ele gosta que zombe dele, até certo ponto. Durante o almoço, travam aquilo
a que ela chama "uma conversa a sério". Com um excedente orçamental de
trinta e nove mil milhões de dólares, diz-lhe ele, o governo não está a dar
nada em troca aos contribuintes. Foram eles que o ganharam e deviam ser
eles a gastá-lo, em vez de permitirem que sejam os burocratas a decidir o
que devem fazer com o seu dinheiro. Enquanto almoçam, explica-lhe em
pormenor por que motivo a Segurança Social devia ser entregue a analistas
de investimento privados. Toda a gente devia investir no seu próprio futuro,
diz-lhe. Por que haveria alguém de confiar ao governo o encargo de cuidar
do seu futuro se a Segurança Social lhes tem estado a dar um rendimento x
enquanto alguém que tivesse investido na bolsa de valores durante o mesmo
período de tempo receberia o dobro, se não mais? A trave mestra da sua
argumentação é sempre a soberania individual, a liberdade individual, mas
aquilo que nunca compreende, ousa Delphine dizer ao secretário do Tesouro
que nunca chegou a sê-lo, é que a maioria das pessoas não tem dinheiro que
chegue para escolher, nem instrução que chegue para fazer opções
acertadas; falta-lhes o conhecimento adequado do mercado. O modelo
defendido por ele, explica-lhe, baseia-se numa noção de liberdade
individual radical que, na maneira de pensar dele, se reduz a uma soberania
radical no mercado. O excedente e a Segurança Social são as duas questões
que o incomodam, e falam constantemente a esse respeito. Sussman parece
detestar Clinton sobretudo por propor a versão democrática de tudo o que
ele próprio queria. "Felizmente", diz a Delphine, "aquele aldrabão do Bob
Reich não está lá. Teria feito Clinton gastar milhares de milhões de dólares
na reciclagem de pessoas para lugares que nunca poderiam ocupar.
Felizmente ele saiu do governo. Pelo menos têm lá o Bob Rubin, um tipo
com a cabeça no seu lugar que conhece todos os segredos. Pelo menos ele e
o Alan mantêm as taxas de juro onde devem estar. Pelo menos ele e o Alan
mantêm a recuperação em andamento ... "
, A única coisa que lhe agrada nele é o facto de, além da sua visão azeda
de quem está por dentro das questões económicas, também se dá a
coincidência de saber tudo a respeito de Engels e Marx, e ainda por cima de
o saber realmente bem. O mais impressionante é que conhece por dentro e
por fora A Ideologia Alemã da autoria de ambos, um texto que ela sempre
achou fascinante e adora. Quando a leva a jantar em Great Barríngton, as
coisas tornam-se mais românticas e mais intelectuais do que nos almoços na
cafetaria. Ao jantar ele gosta de falar francês com ela. Uma das suas antigas
conquistas era parisiense e não se cansa de falar dessa mulher. No entanto,
Delphine não o escuta boquiaberta enquanto ele fala da sua ligação
parisiense ou dos seus variados casos sentimentais anteriores e posteriores.
Vangloria-se constantemente dos seus êxitos com mulheres, de um modo
muito suave que, passado pouco tempo, ela não acha nada suave. Irrita-a
que pense que a impressiona com todas as suas conquistas, mas suporta-o,
apenas ligeiramente enfadada, porque, tirando isso, lhe agrada jantar com
um homem do mundo inteligente, seguro de si e muito lido. Quando,
durante o jantar, ele lhe pega na mão, Delphine diz qualquer coisa a
lembrar-lhe, embora subtilmente, que está doido se pensa que vai dormir
com ela. Às vezes, no parque de estacionamento, puxa-a para si, pondo-lhe
as mãos no rabo e apertando-a. E diz: "Não posso estar consigo umas vezes
atrás de outras sem alguma paixão. Não posso sair com uma mulher tão
bonita como você, falar, falar e falar com ela, e depois ficar por aí" "Em
França temos um ditado que diz... ", responde ela. "Que diz o quê?",
pergunta ele, pensando que talvez aprenda um novo bon mot, além do mais.
"Esqueci-me" Talvez me lembre daqui a pouco", replica, a sorrir, e solta-se
com brandura dos seus braços surpreendentemente fortes. É branda com ele
porque isso dá resultado, é branda com ele porque sabe que ele pensa que se
trata de uma questão de idade, quando de facto, como lhe explica enquanto
regressam no carro dele, não é nada tão banal omo isso: é uma questão de
"estado de espírito". "Tem a ver com quem eu sou", acrescenta c, se nada
mais teve o efeito desejado, isso consegue afastá-lo durante dois ou três
meses, até voltar a aparecer na cafetaria para ver se ela lá está. Às vezes
telefona-lhe, a altas horas da noite e às primeiras horas da manhã. Na sua
cama em Back Bay, quer falar com ela de sexo. Ela diz que prefere falar de
Marx, e não é preciso mais do que isso para aquele economista conservador
mudar de assunto. No entanto, as mulheres que não gostam de Delphine
Roux têm todas a certeza de que dormiu com ele porque é um homem
poderoso. É incompreensível para elas que, apesar da sua vida desolada e
solitária, não tenha qualquer interesse em tornar-se a amante de Arthur
Sussman e ser exibida por ele como um emblema. Também lhe chegou aos
ouvidos o comentário de uma delas, que a considerava "muito passée, uma
imitação barata de Simone de Beauvoir", querendo com isso dizer que, na
sua opinião, Beauvoir se vendeu a Sartre: uma mulher muito inteligente,
mas afinal escrava dele. Para aquelas mulheres, que a observam a almoçar
com Arthur Sussman e não percebem nada do que se passa, é tudo uma
questão, é tudo uma atitude ideológica, é tudo uma traição: é tudo uma
venda. Beauvoir vendeu-se, Delphine vendeu-se, etc., ete. Há em Delphine
qualquer coisa que as deixa verdes de inveja.
Esse é outro dos seus problemas. Não quer alienar aquelas mulheres, mas
não está filosoficamente menos isolada delas do que dos homens. Embora
não fosse prudente para si dizer-lhes isso, as mulheres são muito mais
feministas, no sentido americano, do que ela. Não seria prudente porque
elas já se mostram suficientemente indiferentes e, de qualquer modo,
parecem saber sempre qual é a sua posição e presumir sempre quais são os
seus motivos e objectivos: ela é atraente, jovem, magra, naturalmente
elegante, subiu tanto e tão depressa que a sua fama começa já a ultrapassar
os limites da universidade, e, como as suas amigas de Paris, não usa, nem
precisa de usar, todos os lugares-comuns delas (os mesmos lugares-comuns
por meio dos quais Os Fraldas são tão avidamente emasculados). Só no
bilhete anónimo para Coleman Silk adoptou a retórica delas, e isso não foi
meramente acidental, consequência do estado de extrema agitação em que
se encontrava, mas, em última análise, deliberado, para ocultar a sua
identidade. Na verdade, não é menos emancipada do que aquelas feministas
da Athena, talvez seja até mais: saiu do seu próprio país, deixou
ousadamente a França, desempenha com afinco o seu cargo, trabalha com
afinco nas suas publicações e quer vencer. Entregue a si mesma, tem de
vencer. Está absolutamente só, sem apoio, sem lar, desterrada: dépaysée.
Num país livre, mas muitas vezes tão desoladamente dépaysée. Ambiciosa?
Por sinal, é mais ambiciosa do que todas aquelas feministas decididas, do
tipo encara-tu do-sozinha, juntas, mas porque os homens se sentem atraídos
por ela, e entre eles se conta um tão eminente como Arthur Sussman, e
porque acha divertido usar um casaco Chanel clássico com unsjeans justos,
ou um vestido de alças no Verão, e porque gosta de casimira e cabedal, as
mulheres ficam ressentidas. Se faz questão de não ligar ao horroroso
vestuário delas, com que direito perdem tempo a criticar o que há de
recidivista no seu? Sabe tudo o que dizem movidas pela irritação que lhes
inspira, Dizem o mesmo que os homens que, contrariadamente, ela respeita
— que é uma impostora e não tem legitimidade -, e é isso que mais lhe dói.
Dizem: "Anda a enganar os estudantes" E: "Como é possível que os
estudantes se deixem enganar por esta mulher?" E: "Não percebem que é
um daqueles chauvinistas franceses travestidos?"
Dizem que chegou a presidente do departamento faute de mieux. E
troçam da sua linguagem. "Bem, claro que deve o público que tem ao seu
encanto intertextual. Ao seu relacionamento com a fenomenologia. É uma
grande fenomenologista, ah, ah, ahl" Sabe o que elas dizem para a
ridicularizarem, e no entanto lembra-se de ter estado em França e na Yale e
ter vivido para conseguir este vocabulário; está convencida de que, para ser
uma boa crítica literária,precisa de ter este vocabulário. Precisa de ter
conhecimentos de intertextualidade. Significa isso que é uma impostora?
Não! Significa que é inclassificável. Em certos círculos isso poderia ser
considerado como a sua aura! Mas basta ser um nadinha inclassificável num
fim do mundo atrasado como aquele para toda a gente se sentir
incomodada. Até o próprio Arthur Sussman. Por que diabo não aceita, ao
menos, sexo pelo telefone? Ser inclassificável ali, ser uma coisa que não
sabem entender e aceitar, é candidatar-se a ser atormentada por causa disso.
Que ser inclassificável faz parte do seu bildungsroman e que ela sempre
prosperou por ser inclassificável, é coisa que ninguém compreende na
Athena.
Há uma camarilha de três mulheres — uma professora de Filosofia, uma
professora de Sociologia e uma professora de História — que tem o condão
especial de a enfurecer. Destilam animosidade contra ela apenas porque não
tem de mourejar penosamente como elas. Porque tem um ar chique, acham
que não leu revistas eruditas suficientes. Porque os conceitos americanos de
independência delas diferem dos conceitos franceses de independência dela,
marginalizam-na como aduladora de machos poderosos. Mas que fez ela, de
facto, para suscitar a sua desconfiança a não ser, talvez, saber lidar bem
com os homens da faculdade? Sim, jantou em Great Barríngton com Arthur
Sussman. Mas significará isso que não se considera intelectualmente igual a
ele? No seu espírito não existe a mínima dúvida a esse respeito. Não se
sente lisonjeada por sair com ele: quer ouvir o que ele tem a dizer acerca de
A Ideologia Alemã. E não tentou primeiro almoçar com as três, que não
poderiam ter sido mais condescendentes? É claro que não se dão ao
trabalho de ler os seus escritos académicos. Nenhuma delas lê nada do que
ela escreveu. Trata-se apenas de percepção. A única coisa que vêem é
Delphine usar aquilo a que, consta-lhe, chamam sarcasticamente a sua
aurazinha francesa" com todos os professores titulares. No entanto, sente-se
muito tentada a cortejar a camarilha, a dizer claramente às três mulheres
que não gosta da aura francesa; se gostasse, estaria a viver em França! E
não é dona dos professores titulares, não é dona de ninguém. Caso
contrário, porque estaria sozinha, porque seria a única pessoa sentada à
secretária num dos gabinetes de Barton Hall às dez horas da noite? Quase
não passa uma semana sem que tente, e falhe, entender-se com as três
professoras que dão com ela em doida, que mais a intrigam, mas que não
consegue cativar, manobrar ou atrair de maneira nenhuma. "Les Trois
Grasses",, como lhes chama nas suas cartas para Paris, parodiando
maliciosamente "As Três Graças". Há certas reuniões — nas quais Delphine
não deseja, realmente, participar — em que Les Trois Grasses estão
invariavelmente presentes.
Quando alguma grande intelectual feminista aparece, ela gostaria de ser
pelo menos convidada, mas nunca é. Pode assistir à palestra, mas nunca a
convidam para o jantar. No entanto, o trio infernal que põe e dispõe em tudo
nunca falha.
Numa revolta imperfeita contra a sua especificidade francesa (ao mesmo
tempo que se sentia obcecada com ela), voluntariamente desenraizada do
seu país (mas não de si própria), acossada pela desaprovação de Les Trois
Grasses ao ponto de procurar incessantemente a resposta capaz de lhe
granjear a estima delas sem confundir ainda mais a ideia que tinha de si
mesma e deturpar por completo as inclinações da mulher que outrora foi
naturalmente, por vezes desestabilizada ao extremo de se envergonhar da
discrepância entre o modo como deve lidar com a literatura para ser
profissionalmente bem-sucedida e o motivo que inicialmente a conduziu à
literatura, Delphine, para seu espanto, está a bem dizer isolada na América.
Desterrada, isolada, hostilizada, confusa a respeito de tudo quanto é
essencial à vida, num estado desesperado de incerto anseio e cercada por
todos os lados por forças reprovadoras que a definem como a inimiga. E
tudo porque partiu fervorosamente em busca de uma existência própria.
Tudo porque foi corajosa e se recusou a aceitar a imagem predeterminada
para si mesma. Tinha a sensação de que se subvertera no esforço a todos os
títulos admirável de se fazer. Tinha de haver alguma coisa de muito
desprezível na vida para lhe ter pregado semelhante partida. Alguma coisa
de muito desprezível e vingativo no seu coração para ditar um destino não
de acordo com as leis da lógica, mas sim com o capricho antagónico da
perversidade. Ousar entregar-se à sua própria vitalidade pode equivaler a
abandonar-se às mãos de um criminoso inveterado. Irei para a América e
serei a autora da minha vida, pensou. Construir-me-ei fora da ortodoxia
ingénita da minha família, bater-me-ei contra o ingénito com uma
subjectividade apaixonada levada até ao limite, um individualismo no seu
melhor... E em vez disso acabou enredada num drama que transcende o seu
controlo. Sem ser autora de nada. Ter o ímpeto para dominar as coisas e
acabar por ser a coisa dominada.
Por que terá de ser tão impossível saber o que fazer?
Delphine estaria completamente isolada se não fosse a secretária do
departamento, Margo Luzzi, uma divorciada desenxabida de trinta e tal
anos, também solitária, de uma competência maravilhosa, o mais tímida que
se possa imaginar; capaz de fazer tudo por Delphine, em cujo gabinete
come, às vezes, a sua sanduíche do almoço e que se tornou a única mulher
adulta da Athena amiga da presidente. Há também os escritores-residentes,
que parecem apreciar nela precisamente aquilo que os outros detestam. Mas
ela não os suporta. Como foi parar ali, no meio de nada? E como sair de lá?
Do mesmo modo que dramatizar as suas complicações dando-lhes foros de
"dilema faustíano lhe não proporciona alívio algum, também a não ajuda
nada imaginar essa situação, embora tente fazê-lo, como um "exílio interior
kunderiano".
Procura. Pois bem,procura. Faz como os estudantes dizem: Vai buscar!
Prof. universitária solt., branca, jovem, delicada, feminil, atraente, nascida
em França, antecedentes parisienses, doutorada Yale, academicamente bem-
sucedida, resido Mass. Procura ... ? E agora diz o que queres. Não te
escondas da verdade daquilo que és nem da verdade daquilo que procuras.
Mulher espectacular, brilhante, hiperorgástica procura ... procura ... procura
específica e intransigentemente o quê?
Agora escreve muito depressa.
Homem maduro e com carácter. Livre. Independente. Inteligente.
Desafiador. Franco. Bem-educado. Espírito irónico. Com encanto.
Conhecedor e amante de grandes livros. Que fale bem e claro. Esbelto. Um
metro e setenta ou setenta e cinco. Tez mediterrânica. Pref. olhos verdes.
Idade indiferente. Mas tem de ser intelectual. Cabelo grisalho aceitável,
desejável mesmo...
E então, e só então, o homem mítico que com tanto fervor estava a ser
chamado ao ecrã se condensou num retrato de alguém que ela já conhecia.
parou abruptamente de escrever. Empreendera aquele exercício apenas
como uma experiência, para tentar afrouxar um pouco a inibição antes de
repetir o esforço de redigir um anúncio não muito diluído pela
circunspecção. Mesmo assim, ficou estupefacta com o que lhe saíra, com
quem lhe saíra, e o que mais desejou, na sua aflição, foi apagar aquelas
quarenta e tal palavras o mais depressa possível. E pensando, também, nas
muitas razões, incluindo a vergonha, para aceitar a derrota como uma
bênção e abandonar a esperança de resolver aquele estar no meio de nada a
participar num esquema tão terrivelmente comprometedor... Pensando que
se tivesse ficado em França não precisaria de semelhante anúncio, não
precisaria de um anúncio para nada, e muito menos para arranjar um
homem... Pensando que vir para a América era a coisa mais corajosa que
alguma vez fizera, embora na altura não pudesse imaginar até que extremo
iria essa coragem. Fê-lo apenas por ser o passo seguinte para alcançar a sua
ambição, uma ambição que aliás não tinha nada de vulgar, era uma ambição
digna, a ambição de ser independente, mas com cujas consequências se via
agora confrontada. Ambição. Aventura. Glamour. O glamour de ir para a
América. A superioridade. A superioridade de partir. Parti pelo prazer de
um dia regressar vencedora, regressar triunfante. Parti porque queria
regressar um dia e ouvi-los dizer... o que é que eu queria ouvi-los dizer?
"Ela conseguiu. Ela fez isso. E se fez isso pode fazer tudo. Uma rapariga
que pesa quarenta e sete quilos, tem um escasso metro e cinquenta e cinco
de altura e 20 anos,. entregue a si própria, foi para lá entregue a si própria
com um nome que não significava nada para ninguém, e conseguiu. Fez-se
a si mesma. Ninguém a conhecia. Fez-se a si mesma, sozinha" E a quem
queria ouvir dizer essas palavras? E que diferença teria feito se as tivessem
dito? "A nossa filha na América... " Queria que eles dissessem, tivessem de
dizer: "Ela venceu sozinha na América" Porque não podia vencer em
França, vencer realmente, com a minha mãe e a sua sombra a projectar-se
em tudo: a sombra dos seus dotes e das suas realizações, sim, mas, pior
ainda do que isso, da sua família, a sombra dos Walincourt, que deviam o
nome ao lugar que lhes foi dado no século XIII pelo rei S. Luís e fiéis ainda
aos ideais da família tal como foram determinados no século XIII. Como
Delphine detestava todas aquelas famílias, a pura e antiga aristocracia das
províncias, pensando todas da mesma maneira, todas parecidas umas com
as outras, partilhando os mesmos valores asfixiantes e a mesma asfixiante
obediência religiosa. Por muito grande que seja a sua ambição e por muito
que instiguem os seus filhos, educam-nos sempre nos moldes da mesma
litania de caridade, abnegação, disciplina, fé e respeito — respeito não pelo
indivíduo (abaixo o indivíduo!), mas pelas tradições da família. Acima da
inteligência, da criatividade, de um profundo desenvolvimento pessoal
independente do deles, acima e mais fortes do que tudo estavam as
tradições dos estúpidos Walincourt! Na sua família era a mãe de Delphine
quem encarnava esses valores, quem os impunha no lar, quem teria
acorrentado a própria filha a eles do nascimento à sepultura se, a partir da
adolescência, ela não tivesse tido a força de fugir para o mais longe possível
da mãe. Aos Walincourt da geração de Delphine só restava um
conformismo absoluto ou uma rebelião tão abominável que se tornavam
incompreensíveis, e o êxito de Delphine residia no facto de não ter feito
uma coisa nem outra. Vinda de um meio de que poucos conseguiam
começar, sequer, a refazer-se, ela conseguira uma evasão ímpar. Ao vir para
a América, para Yale, para Athena, ultrapassara, na realidade, a mãe, que
jamais seria capaz de sonhar sair de França — sem o pai de Delphine e o
dinheiro dele, Catherine de Walincourt dificilmente teria sonhado, sequer,
trocar a Picardia por Paris, aos 22 anos. Pois quem seria ela se deixasse a
Picardia e a fortaleza da sua família? O que significaria o seu nome? Eu
parti porque queria realizar um feito que ninguém pudesse, nunca,
interpretar erradamente, que não tivesse nada a ver com eles, que fosse só
meu ... Pensando que a razão por que não consegue arranjar um homem
americano não reside na sua impossibilidade de arranjar um homem
americano, mas sim na impossibilidade de alguma vez conseguir
compreender estes homens, e que a razão por que não consegue
compreendê-los se deve ao facto de não ser fluente. Apesar de todo o seu
orgulho na sua fluência, apesar de toda a sua fluência, não é fluente! Penso
que os compreendo, e com. preendo-os. O que não compreendo não é o que
eles dizem, mas sim tudo o que não dizem, tudo o que não estão a dizer.
Aqui, a sua inteligência funciona a cinquenta por cento, ao passo que em
Paris compreendia todos os cambiantes. De que me serve ser inteligente
aqui se, em virtude de não ser de cá, sou, de facto, estúpida ... Pensando que
o único inglês que realmente compreende — não, o único americano que
compreende — é o americano académico, que dificilmente se pode
considerar americano, e que é por isso que nunca estará in; que nunca
conseguirá estar in, é por isso que nunca haverá um homem, é por isso que
esta nunca será a sua terra, é por isso que as suas intuições estão e sempre
estarão erradas, é por isso que nunca mais voltará a ter a confortável vida
intelectual que teve em Paris, quando estudante, é por isso que durante o
resto da sua vida vai compreender onze por cento deste país e zero por
cento destes homens ... Pensando que todas as suas vantagens intelectuais
foram abafadas pelo facto de ser dépaysée... Pensando que perdeu a sua
visão periférica, que vê coisas que estão à sua frente, mas não vê nada pelos
cantos dos olhos, que não tem aqui a visão de uma mulher com a sua
inteligência, mas a visão plana e totalmente frontal de uma imigrante ou de
uma pessoa deslocada, de uma pessoa mal colocada ... Pensando: Por que
parti? Por causa da sombra da minha mãe? Foi por isto que abandonei tudo
o que era meu, tudo o que me era familiar, tudo o que fizera de mim um ser
subtil e não esta trapalhada de incerteza em que me tornei. Abandonei tudo
o que amava. As pessoas fazem isso quando se tornou impossível viver nos
seus países porque os fascistas tomaram o poder, mas não por causa da
sombra da sua mãe ... Pensando: Por que parti, que fiz eu, isto é impossível.
Os meus amigos, as nossas conversas, a minha cidade, os homens, todos
aqueles homens inteligentes. Homens confiantes, com quem podia
conversar. Homens maduros que sabiam compreender. Homens estáveis,
apaixonados, viris. Homens fortes que não se deixam intimidar. Homens
legítima e inequivocamente homens ... Pensando: Por que foi que ninguém
me deteve, por que foi que ninguém me disse alguma coisa? Fora da minha
terra há menos de dez anos e é como se já tivessem passado duas vidas ....
Pensando que ainda é a filha pequena de Catherine de Walincourt Roux,
que não modificou minimamente isso ... Pensando que ser francesa em
Athena pode tê-la tornado exótica para as pessoas de lá, mas não a tornou,
nem nunca tornará, nada mais extraordinário para a sua mãe ... Pensando
que sim, que foi por isso que partiu, para fugir à eterna sombra
assombradora da sua mãe, e é isso que impede o seu regresso, e agora não
está exactamente em lado nenhum, está no meio de nada, nem lá nem cá ...
Pensando que sob a capa da sua exótica especificiade de francesa é para si
mesma quem sempre foi, que tudo quanto a exótica especificidade de
francesa lhe proporcionou na América foi transformá-la na perfeita
estrangeira infeliz e incompreendida ... Pensando que está ainda pior do que
no meio de nada, que está no exílio e, ainda por cima, num embrutecedor,
auto-imposto e angustiante exílio da sua mãe — pensando em tudo isto,
Delphine não repara que antes, no início, em vez de endereçar o anúncio à
New York Review ofBooks, o ende. reçara automaticamente aos
destinatários da sua comunicação anterior, aos destinatários da maioria das
suas comunicações: aos dez membros do pessoal do Departamento de
Línguas e Literatura de Athena. Primeiro não reparou nesse erro e depois,
devido ao seu perturbado, tumultuoso e emocionalmente esgotante estado
de espírito, também não repara que, em vez de clicar no botão de eliminar,
acrescenta um pequeno erro bastante comum a outro pequeno erro bastante
comum clicando no botão de enviar. E, assim, lá vai, Irrecuperavelmente, o
anúncio em busca de um duplicado ou facsímile de Coleman Silk, , não
para a secção de anúncios classificados da New York Review of Books, mas
sim para todos os membros do seu departamento.
Passava da uma da manhã quando o telefone tocou. Há muito tempo que
ela saíra do seu gabinete — fugira de lá pensando apenas em pegar no
passaporte e deixar o país — e já tinham passado várias horas desde a sua
hora habitual de se deitar quando o telefone tocou para lhe dar a notícia.
Sentia-se tão angustiada com o envio inadvertido do anúncio pelo correio
electrónico que ainda estava acordada e a vaguear pelo apartamento,
arrancando os cabelos, fazendo caretas escarninhas ao seu rosto reflectido
no espelho, inclinando a cabeça para a mesa da cozinha e chorando para as
mãos e, como se acordasse de repente num sobressalto — como se
acordasse do sono de uma vida adulta até aí meticulosamente defendida -,
levantando-se e gritando: "Não aconteceu! Eu não fiz aquilo" Mas quem o
fizera, então? No passado parecera haver sempre pessoas que faziam tudo
quanto podiam para a espezinhar, para, de algum modo, se desembaraçarem
do aborrecimento que ela era para elas, gente insensível da qual aprendera à
sua custa a proteger-se. Mas esta noite não podia acusar ninguém: fora a sua
própria mão que desferira o golpe desastroso.
Desvairada, furiosa, tentava descobrir uma maneira, fosse ela qual fosse,
de impedir que acontecesse o pior, mas no seu estado de incrédulo
desespero só conseguia imaginar a inevitabilidade da trajectória mais
catastrófica: o passar das horas, o nascer do dia, as portas do Barton Hall a
abrirem-se, os seus colegas do departamento a entrarem um por um nos
respectivos gabinetes, a ligarem os computadores e a encontrarem lá, para
saborearem com o café da manhã, o anúncio chegado por correio
electrónico pedindo um duplicado de Coleman Silk e que ela não tivera
intenção alguma de enviar. Para ser lido uma, duas, três vezes por todos os
membros do seu departamento e depois reenviado pela mesma via para
todos os encarregados de curso, professores, pessoal administrativo,
escriturários e estudantes.
Todos os frequentadores das suas aulas o leriam. A sua secretária lê-lo-ia.
Antes de findar o dia, o presidente da universidade lê-lo-ia, assim como os
administradores da universidade. E mesmo que alegasse que o anúncio
tinha sido uma brincadeira, nada mais do que uma brincadeira para
consumo interno, por que haveriam os administradores de permitir que a
autora da brincadeira continuasse na Athena? Sobretudo depois de a sua
brincadeira ter sido reproduzida no jornal dos estudantes, como não deixaria
de acontecer? E no jornal local. Depois de ter sido aproveitada pelos
jornaisfranceses.
A sua mãe! A humilhação que seria para a sua mãe! E o seu pai! A
decepção que seria para ele! O prazer que todos os conformistas primos
Walincourt teriam com a sua derrota! Todos os tios ridiculamente
conservadores e todas as tias ridiculamente beatas que, juntos, mantinham
intacta toda a mesquinhez de espírito do passado. Que gozo isso lhes daria
quando estivessem pedantemente sentados ao lado uns dos outros na igreja!
E se explicasse que estivera apenas a fazer uma experiência com o anúncio
como forma literária, sozinha no seu gabinete, a entreter-se
desinteressadamente com o anúncio pessoal como ... como um aiku
utilitário? Não ajudaria nada. Demasiado ridículo. Nada ajudaria. A sua
mãe, o seu pai, os seus irmãos, os seus amigos, os seus professores ... Yale.
tale! A notícia do escândalo chegaria a todas as pessoas que jamais
conhecera e a vergonha persegui-ia-ia implacavelmente para sempre. Para
onde podia, sequer, fugir com o seu passaporte? Montreal? Martinica? E
como ganharia a vida? Não, nem no mais longínquo reduto da francofonia
lhe seria permitido ensinar quando tomassem conhecimento do anúncio. A
pura e prestigiosa vida profissional para a qual fizera tantos planos, todo o
trabalho esgotante, a imaculada e irrepreensível vida da mente ... Pensou em
telefonar a Arthur Sussman. Arthur descobriria uma maneira de a salvar.
Ele pode pegar no telefone e falar com quem quiser. É duro, é astuto, é o
americano mais inteligente e influente nas manobras do mundo que ela
conhece. Pessoas poderosas como Arthur, por muito íntegras que sejam, não
são espartilhadas pela necessidade de dizer sempre a verdade. Ele
encontrará uma maneira de explicar tudo. Ele saberá exactamente o que
deve fazer. Mas por que há-de querer ajudá-la depois de ela lhe dizer o que
aconteceu? A única coisa que pensará é que gostava mais de Coleman Silk
do que dele. A vaidade pensará por ele e conduzi-lo-á à mais estúpida das
conclusões. Pensará o que todos pensarão: que está apaixonada por
Coleman Silk, que não sonha com Arthur Sussman, e muito menos com Os
Fraldas ou Os Chapéus, mas com Coleman Silk. Imaginando-a apaixonada
por Coleman Silk, vai desligar-lhe o telefone na cara e nunca mais lhe
falará.
Precisa de recapitular. De reconstituir o que aconteceu. De tentar
conseguir perspectiva suficiente para actuar de modo racional. Não queria
enviar o anúncio. Escreveu-o, é verdade, mas embaraçava-a enviá-lo, não
queria enviá-lo e não o enviou. E, no entanto, ele seguiu. Como aconteceu
com a carta anónima: não queria enviá-la, levou-a para Nova Iorque sem
nenhuma intenção de a enviar, e ela seguiu. Mas o que seguiu desta vez é
muito, muito pior. Desta vez está tão desesperada que à uma hora e vinte
minutos da manhã o que lhe parece racional é ligar para Arthur Sussman,
sem se importar com o que ele possa pensar. Arthur tem de a ajudar. Tem de
lhe dizer o que pode fazer para desfazer o que fez. E é então que,
exactamente à uma hora e vinte minutos, o telefone que tem na mão para
ligar a Arthur Sussman começa subitamente a tocar. É Arthur Sussman que
lhe está a ligar!
Mas não, é a sua secretária. "Ele morreu", diz Margo, a chorar tanto que
Delphine não tem bem a certeza do que está a ouvir. -Margo, sente-se
bern?" "Ele morreu" "Ele quem?" "Acabo de saber. É terrível, Delphine.
Estou a ligar-lhe, não pude deixar de o fazer. Tenho de lhe dizer uma coisa
terrível. Oh, Delphine, é tarde, eu sei que é tarde ... " "Não! O Arthur não",
grita Delphine. "O reitor Silk", diz Margo. "Ele morreu?" "Um terrível
acidente de automóvel. É horrível de mais" "Que acidente? O que
aconteceu, Margo? Onde? Fale devagar. Comece do princípio. O que me
está a dizer?" "No rio. Com uma mulher. No carro dele. Um desastre"
Margo ficou, entretanto, incapaz de ser minimamente coerente, ao mesmo
tempo que Delphine está tão atordoada que, mais tarde, não se lembrará de
ter desligado o telefone, nem de correr lavada em lágrimas para a cama,
nem de ficar lá deitada a uivar o nome dele.
Pousou o auscultador e passou as piores horas da sua vida.
Pensarão, por causa do anúncio, que gostava dele? Pensarão que o
amava, por causa do anúncio? E o que pensariam se a vissem agora, a
comportar-se como se fosse a sua viúva? Não pode fechar os olhos, porque
quando os fecha vê os olhos dele, aqueles olhos verdes fIXOS, explodindo.
Vê o carro saltar da estrada, mergulhar, a cabeça dele projectar-se para a
frente e, no instante do embate, os seus olhos explodirem. "Não! Nãol" Mas
quando abre os dela para deixar de ver os dele, a única coisa que vê é aquilo
que fez e a zombaria que se seguirá. Vê a sua vergonha com os olhos
abertos e a desintegração dele com os olhos fechados, e ao longo da noite
inteira o pêndulo do sofrimento balança-a de uma situação para a outra.
Acorda no mesmo estado de caótica perturbação em que se encontrava
quando adormeceu. Treme, mas não se lembra porquê. Pensa que está a
tremer por causa de um pesadelo. O pesadelo dos olhos dele a explodir. Mas
não, aconteceu, ele está morto. E o anúncio ... também aconteceu.
Aconteceu tudo, é tudo real, e nada pode ser feito. Eu queria que eles
dissessem ... e agora dirão. <Â nossa filha da América? Não falamos nela.
Deixou de existir para nós" Quando tenta controlar-se e traçar um plano de
acção, não lhe é possível pensar: a única coisa possível é a perturbação, a
espiral de embotamento que se chama terror. Passa pouco das cinco horas
da manhã. Fecha os olhos para tentar dormir e apagar tudo, mas maios
fecha vê os dele. Fitam-na e depois explodem.
Veste-se. Grita. Sai de casa e ainda mal alvoreceu. Sem maquilhagem.
Sem jóias. Apenas o rosto horrorizado. Coleman Silk morreu.
Não está ninguém no campus quando lá chega. Só gralhas. É tão cedo
que a bandeira ainda não foi içada. Olha para ela todas as manhãs, no cimo
do North Hall, e todas as manhãs, ao vê-Ia lá, sente um momento de
satisfação. Saiu de casa, ousou fazê-lo: está na América! Sente-se contente
com a sua própria coragem e com o conhecimento de que não foi fácil. Mas
hoje a bandeira americana não está lá e ela nem vê que não está. Não vê
nada, a não ser o que tem de fazer.
Tem uma chave de Barton Hall, usa-a e entra. Vai para o seu gabinete.
Conseguiu fazer isso. Está a aguentar-se. Agora consegue pensar. Muito
bem. Mas como vai entrar nos gabinetes dos outros para aceder aos seus
computadores? Era isso que devia ter feito a noite passada, em vez de fugir
em pânico. Para recuperar a presença de espírito, para salvar o seu nome,
para evitar a tragédia de arruinar a sua careira, tem de continuar a pensar.
Pensar tem sido toda a sua vida. Que outra coisa lhe ensinaram a fazer
desde que entrou para a escola? Sai do seu gabinete e mete pelo corredor. O
seu objectivo é agora claro, o seu modo de pensar decidido. Basta-lhe entrar
e apagar a mensagem. Tem o direito de a apagar: foi ela que a enviou. E
nem sequer isso fez. Não foi intencional. Não é responsável por isso. Ela
seguiu, simplesmente. Mas quando tenta girar a maçaneta de cada uma das
portas verifica que estão todas fechadas à chave. Depois experimenta
introduzir as suas chaves nas fechaduras, primeiro a do edifício e depois a
do seu gabinete, mas nenhuma serve. O que é natural. Não teriam servido a
noite passada e não servem agora. Quanto a pensar, mesmo que fosse capaz
de o fazer como Einstein, o pensamento não abriria aquelas portas.
De novo no seu gabinete, abre os seus ficheiros. À procura de quê? Do
seu c.v. Mas porquê? É o fim do seu C.V. É o fim da nossa filha da
América. E como é o fim, puxa todos os dossiês arrumados na gaveta e
atira-os para o chão. Despeja a gaveta toda. "Não temos nenhuma filha na
América. Não temos nenhuma filha. Só temos filhos" Já não tenta pensar
que devia pensar. Em vez disso, começa a arremessar coisas.
Tudo quanto está em cima da sua secretária, tudo quanto decora as
paredes ... Que importância tem que algumas coisas se partam? Tentou e
falhou. É o fim do currículo impecável e da veneração do currículo. "A
nossa filha da América fracassou"
Soluça quando pega no telefone para ligar a Arthur. Ele saltará da cama e
virá logo de Boston. Em menos de três horas estará em Athena. Arthur
estará aqui cerca das nove horas! Mas o número que marca é o número de
emergência colado no aparelho. E ela tinha tanta intenção de llgar para esse
número como de enviar as duas cartas. Tudo quanto tinha era a necessidade
muito humana de ser salva.
Não consegue falar.
— Está? — pergunta o homem do outro lado do fio. — Está? Quem fala?
É com extrema dificuldade que diz as duas palavras. As duas palavras
mais irredutíveis de qualquer língua. O nome. Irredutíveis e insubstituíveis.
Tudo o que ela é. Era. E, agora, as duas palavras mais ridículas do mundo.
— Quem? Professora quem? Não compreendi, professora.
— Segurança?
— Fale mais alto, professora. Sim, sim, é da Segurança do campus.
— Venha cá — pede, em tom suplicante, e de novo em lágrimas. —
Imediatamente. Aconteceu uma coisa terrível.
— Professora? Onde está? O que aconteceu?
— Barton. — E repete, para ele poder compreender: — Barton 121.
Professora Roux.
— O que se passa, professora?
— Uma coisa terrível.
— Está bem? O que aconteceu? Está alguém aí?
— Estou eu.
— Está tudo bem?
— Alguém forçou a entrada.
— Forçou a entrada onde?
— No meu gabinete.
— Quando? Quando, professora?
— Não sei. De noite, Não sei.
— Mas está bem? Professora? Professora Roux? Está aí? Em Barton
Hall? Tem a certeza? A hesitação. O esforço para pensar. Tenho a certeza?
Tenho?
— Absoluta — responde, agora a soluçar descontroladamente. — Venha
depressa, por favor! Venha imediatamente, por favor! Alguém entrou no
meu gabinete! Está tudo numa desordem! É horrível! As minhas coisas!
Alguém entrou no meu computador! Despache-se! — Uma entrada
forçada? Sabe quem foi? Sabe quem entrou? Foi um estudante?
— Foi o reitor Silk. Despache-se!
— Professora ... está, professora? O reitor Silk morreu, professora Roux.
— Já me disseram. Eu sei, é horrível- e desatou a gritar, a gritar de horror
por tudo quanto acontecera, a gritar ao pensar na derradeira coisa que ele
fizera, e a ela, a ela ... e depois disso o dia ele Delphine foi um caos.
A notícia surpreendente da morte do reitor Silk num acidente de
automóvel, juntamente com uma empregada de limpeza da universidade,
mal chegara à última sala de aula quando começou a espalhar-se o boato da
pilhagem do gabinete de Delphine Roux e da partida electrónica que o
reitor Silk tentara cometer horas, apenas, antes do acidente fatal. As pessoas
já estavam com dificuldade em acreditar em tudo aquilo quando outra
história, esta acerca das circunstâncias do desastre, alastrou da cidade até ao
colégio, confundindo ainda mais quase toda a gente. Apesar de todos os
seus abomináveis pormenores, constava que a história provinha de uma
fonte digna de confiança: o irmão do polícia estadual que encontrara os
corpos. Segundo ele, a razão de o reitor ter perdido o domínio do veículo
residia no facto de, do lugar a seu lado, a empregada da limpeza da Athena
o estar a satisfazer enquanto ele conduzia. A polícia deduzira isso em
função do estado do vestuário dele e da posição do corpo dela e a sua
localização no veículo, quando os destroços foram descobertos e retirados
do rio.
Ao princípio, a maioria dos membros da faculdade, e em especial os
professores mais velhos que tinham conhecido pessoalmente Coleman Silk
durante muitos anos, recusaram-se a acreditar na história e sentiram-se
indignados com a credulidade com que estava a ser aceite como verdade
incontroversa. A crueldade do insulto aterrava-os. No entanto, à medida que
o dia foi passando e surgiram novos factos a respeito da invasão do
gabinete, e mais ainda a respeito do caso de Silk com a mulher — relatos de
numerosas pessoas que os tinham visto andar furtivamente juntos -, tornou-
se cada vez mais difícil aos professores mais antigos "persistirem" — como
o jornal local escreveu no seu apontamento de interesse humano do dia
seguinte — "na comovedora negação".
E quando as pessoas começaram a lembrar-se de que, dois anos antes,
ninguém quisera acreditar que ele chamara "spooks" a duas das suas
estudantes negras; quando se lembraram de que, depois da sua demissão em
desgraça, ele se isolara dos seus antigos colegas e de como, nas raras
ocasiões em que era visto na cidade, se mostrava de uma brusquidão que
roçava a grosseria com quem se cruzava por acaso com ele; quando se
lembraram de que, no seu ódio clamoroso a tudo e todos que tinham alguma
coisa a ver com a universidade, constava que conseguira incompatibilizar-se
com os próprios filhos... bem, até aqueles que tinham começado o dia
recusando qualquer sugestão de que a vida de Coleman Silk podia ter
terminado de uma maneira tão hedionda, os antigos para quem era
insuportável pensar que um homem da sua estatura intelectual, um
professor carismático, um reitor dinâmico e influente, um homem
encantador e vigoroso, ainda saudável e cheio de vida depois dos 70 anos e
pai de quatro encantadores filhos adultos, renunciara a tudo quanto outrora
prezara e se deixara arrastar tão desastrosamente para a morte escandalosa
de um marginal excêntrico e alienado, todas essas pessoas tiveram de
encarar a realidade da completa transformação que se seguira ao incidente
dos "spooks" e não só conduzira Coleman Silk ao seu humilhante fim como
também levara, imperdoavelmente, à terrível morte de Faunia Farley, a
infortunada analfabeta de 34 anos que, como era agora do conhecimento
geral, tomara como amante na sua velhice...
5.
O RITUAL DE PURIFICAÇÃO

Dois funerais.

O de Faunia primeiro, no cemitério de Battle Mountain, um lugar que


sempre me deprime quando por lá passo de carro, arrepiante mesmo em
pleno dia, com os seus mistérios de silêncio tumular antigo e tempo parado,
ainda mais sinistro devido à reserva florestal estadual confinante com o que
foi outrora um cemitério índio, uma vasta extensão densamente arborizada e
coberta de pedregulhos, sulcada por cursos de água cristalina que se
despenham de parapeito rochoso para parapeito rochoso e habitada por
coiotes, linces e até ursos pardos e por manadas devastadoras de cervos que
consta serem tão numerosos como em tempos pré-coloníais. As mulheres da
herdade leiteira tinham comprado o terreno para a sepultura de Faunia
mesmo na orla das matas sombrias e organizado a singela cerimónia à beira
da cova ainda vazia. A mais expansiva das duas, que se identificou como
Sally e se encarregou do primeiro elogio fúnebre, apresentou a sua sócia e
os filhos de ambas e depois disse: "Vivemos todos com Faunia na herdade e
estamos aqui esta manhã pelo mesmo motivo que vocês. para homenagear
uma vida"
Falava em voz clara e sonora e era uma mulher baixa e vigorosa, de rosto
redondo e vestido comprido, solto, e parecia firmemente decidida a manter
uma perspectiva que causasse o mínimo desgosto possível entre as seis
crianças criadas na herdade, cada uma delas com as suas roupas de domingo
e um punhado de flores para espalhar sobre o caixão antes de ser descido à
terra.
— Algum de nós — perguntou Sally — poderá alguma vez esquecer o
seu grande riso caloroso? Faunia conseguia fazer-nos rir a todos, tanto com
a sua gargalhada contagiosa como com algumas das coisas com que às
vezes se saía. E também era, como sabem, uma pessoa profundamente
espiritual. Uma pessoa espiritual — repetiu -, uma pessoa em busca da
espiritualidade. A palavra que melhor descreve as suas crenças é panteísmo.
O seu deus era a natureza, e o seu culto pela natureza estendia-se ao seu
amor pela nossa pequena manada de vacas, por todas as vacas, na verdade,
por essa benévola criatura que é a ama de leite da espécie humana. Faunia
tinha um enorme respeito pela instituição da herdade leiteira familiar.
Juntamente com Peg, comigo e com as crianças, ajudou a manter viva a
herdade leiteira familiar na Nova Inglaterra, como parte viável da nossa
herança cultural. O seu deus era tudo quanto vemos à nossa volta na nossa
herdade e tudo quanto vemos à nossa volta na Battle Mountain. Escolhemos
este lugar de repouso para Faunia porque é sagrado desde que os povos
aborígenes disseram aqui adeus aos seus entes queridos. As histórias
maravilhosas que ela contava aos nossos filhos — acerca das andorínhas no
celeiro e das gralhas nos campos, acerca dos falcões de cauda vermelha que
planam no céu muito acima dos nossos campos — pertenciam ao mesmo
género de histórias que poderiam ter sido ouvidas aqui, no cume desta
montanha, antes de o equilíbrio ecológico dos Berkshire ter sido perturbado
pela chegada de...
A chegada vocês sabem de quem. O rousseauismo ambientalista do resto
do elogio fúnebre quase me impossibilitou de permanecer concentrado.
O segundo orador foi Smoky Hollenbeck, antiga estrela de atletismo de
Athena que tinha a seu cargo a manutenção do espaço físico da
universidade, chefe de Faunia e — como eu soubera por Coleman, que o
contratara -, durante um certo tempo, algo mais do que isso. Tinha sido para
o harém de Smoky na Athena que Faunia fora recrutada, a bem dizer desde
o seu primeiro dia de trabalho sob as ordens dele, e tinha sido do seu harém
que fora abruptamente mandada embora quando Les Farley descobrira, não
se sabe como, o que Smoky andava a fazer com ela.
Ao contrário de Sally, Smoky não falou da pureza panteísta de Faunia
como ser natural; na qualidade de representante da universidade, realçou a
sua competência como doméstica, a começar pela influência que exercia
nos estudantes cujos dormitórios limpava.
— O que mudou para os estudantes, com a presença dela — declarou -,
foi o facto de terem uma pessoa que sempre que os via os saudava com um
sorriso, um Olá ou um Como está, e lhes perguntava, Está melhor da
constipação e Como vão as aulas. Passava sempre um momento a conversar
e a travar conhecimento com eles antes de começar o trabalho. Com o
tempo, deixou de ser invisível para eles, deixou de ser uma simples
empregada doméstica e tornou-se uma pessoa que aprenderam a respeitar.
Tornaram-se mais arrumados, graças a ela, e passaram a ter o cuidado de
não deixarem tudo desarrumado, para não a sobrecarregarem. Em contraste
com ela, pode haver empregadas domésticas que nunca estabelecem
contacto ocular com os estudantes, mantêm uma certa distância deles e não
se importam, realmente, com o que eles fazem, nem lhes interessa saber.
Bem, Faunia não era assim, nunca. Aprendi que existe uma relação directa
entre o estado dos dormitórios dos estudantes e o relacionamento deles com
a sua empregada. O número de janelas partidas que temos de consertar, o
número de buracos nas paredes que temos de reparar, resultantes dos
pontapés e dos murros que eles lhes dão para aliviarem as suas frustrações
... enfim seja o que for. Grafitos nas paredes, tudo e mais alguma coisa. O
que quero dizer é que num edifício ao cuidado de Faunia não havia nada
desse género. Havia, isso sim, um edifício que contribuía para a boa
produtividade, para o estudo, para uma vida melhor e para um sentimento
de pertença à comunidade universitária de Athena ...
Brilhantíssimo desempenho o deste jovem chefe de família, alto, bem-
parecido e de cabelo encaracolado, que precedera Coleman como amante de
Faunia. Ouvindo-o falar, o contacto carnal com a empregada doméstica
perfeita descrita por Smoky era tão inimaginável como com a contadora de
histórias panteísta descrita por Sally.
— De manhã — continuou Smoky -, encarregava-se do North Hall e dos
serviços administrativos lá instalados. Embora a sua rotina mudasse um
pouco conforme os dias, havia coisas essenciais que tinham de ser feitas
todas as manhãs, e ela fazia-as impecavelmente. Despejava os cestos dos
papéis e arrumava e limpava os lavatórios, que são três nesse edifício.
Passava a esfregona sempre que necessário. Usava todos os dias o aspirador
nas áreas de maior trânsito e uma vez por semana nas de menor. O pó era
geralmente limpo numa base semanal. As vidraças das portas da frente e
das traseiras eram limpas quase todos os dias, dependendo do movimento.
Faunia foi sempre muito eficiente e prestava muita atenção aos pormenores.
Há ocasiões em que se pode utilizar um aspirador e outras em que não se
pode, e a esse respeito nunca houve uma queixa, uma só que fosse, quanto
ao procedimento de Faunia Farley. Avaliava muito rapidamente qual era a
melhor altura para fazer cada tarefa com um mínimo de incómodo para os
diversos trabalhadores.
Das catorze pessoas, além das crianças, que contei à volta da sepultura, o
contingente da universidade parecia composto apenas por Smoky e a alguns
colegas de Faunia, quatro homens do serviço de manutenção, de casaco e
gravata, que escutaram em silêncio os elogios ao trabalho dela. Pelo que
pude deduzir, os outros presentes eram ou amigas de Peg e Sally ou pessoas
locais que compravam leite na herdade e lá tinham conhecido Faunia. A
única pessoa da terra que reconheci foi Cyril Foster, chefe do posto dos
correios e comandante da brigada de bombeiros voluntários. Cyril
conhecia-a do pequeno posto dos correios da pequena aldeia onde ela ia
fazer a limpeza duas vezes por semana e onde Coleman a vira pela primeira
vez.
Também lá se encontrava o pai de Faunia, um homem idoso e corpulento,
a cuja presença Sally aludira no seu elogio fúnebre. Estava sentado numa
cadeira de rodas a pouca distância do caixão, ajudado por uma mulher ainda
nova, uma enfermeira ou acompanhante filipina, parada logo atrás dele e
cujo rosto se manteve inexpressivo durante toda a cerimónia, embora ele
apoiasse de vez em quando a fronte nas mãos e sucumbisse algumas vezes
às lágrimas.
Não vi ninguém que pudesse identificar como o autor do elogio fúnebre
on tine a Faunia, que descobrira na véspera à noite no grupo de discussão da
universidade. No espaço de endereço lia-se:

De: c1ytemnestra@houseofatreus.com
Para: díscussão.fac
Assunto: morte de uma faunia
Data: quinta-feira, 12 Nov. 1998

Encontrara-o por acaso quando, levado pela curiosidade, consultava o


calendário do grupo de discussão da faculdade para ver se o funeral do
reitor Silk constava da lista dos próximos acontecimentos. Porquê aquele
endereço insolente? Pretenderia ser uma piada, uma brincadeira? Não
significaria mais (nem menos) do que o abandono perverso a um capricho
sádico ou tratar-se-ia de um deliberado acto de traição? Teria sido enviado
por Delphine Roux? Seria outra das suas acusações inimputáveis? Não me
parecia. Não teria nada a ganhar se levasse mais longe a engenhosa história
do arrombamento e invasão do seu gabinete, mas teria muito a perder se
viesse a descobrir-se que clytemnestra@houseofatreus.com era invenção
sua. Além disso, a fazer fé nos indícios disponíveis, não havia nada de
especialmente astucioso ou maquinado numa intriga delphiniana típica; as
dela cheiravam à distância à improvisação apressada, à mesquinhez
histérica e à irreflexão sobreexcitada do amador que pratica o tipo de acto
irracional que depois parece improvável até ao próprio perpetrador: ao
contra-ataque a que faltam o estímulo e o meticuloso calculismo refinado
do mestre virulento, por muito desagradáveis que as consequências possam
ser.
Não, o mais provável era tratar-se de velhacaria induzida pela velhacaria
de Delphine, mas, de longe, mais astuta, mais confiante, mais
profissionalmente demoníaca: uma enorme potenciação do veneno. E o que
iria, por sua vez, inspirar? Onde terminaria aquela lapidação pública? Onde
acabaria a credibilidade? Como podem estas pessoas repetir umas às outras
esta história contada por Delphine Roux à Segurança, como pode alguma
delas acreditar nesta impostura tão transparente, tão obviamente mentirosa?
E como podem provar alguma relação com Coleman? Não podem. Mas
mesmo assim acreditam. Por muito disparatada que seja — imaginar que
ele forçou a entrada no gabinete, acedeu aos dossiês dela, entrou no seu
computador, enviou a mensagem aos colegas dela -, acreditam que é
verdade, querem acreditar que é verdade, estão ansiosas por repeti-la a
outros. Uma história sem sentido, implausível, e no entanto ninguém
manifesta a mínima dúvida — pelo menos publicamente ou faz a mais
simples pergunta. Por que diabo poria ele o gabinete de pernas para o ar e
chamaria a atenção para o facto de ter forçado a entrada se pretendia pregar
uma partida? Por que redigiria aquele anúncio, em especial, se noventa por
cento das pessoas que o lessem provavelmente não poderiam estabelecer
qualquer relação com ele? Quem, a não ser Delphine Roux, leria aquele
anúncio e pensaria nele? Coleman teria de estar doido para fazer o que ela
alegava que ele fizera. Mas onde estava a prova de que estava doido? Onde
estava a história de um comportamento insano da sua parte? Doido,
Coleman Silk, que fora capaz de virar, sozinho, a universidade do avesso?
Amargurado, irritado, isolado, sim. Mas louco? As pessoas da universidade
sabem perfeitamente que não era esse o caso, mas mesmo assim, como no
incidente dos -spooks-, estão dispostas a proceder como se não soubessem.
O simples facto de fazer a acusação equivale a prová-la. Ouvir a alegação é
acreditar nela. Não é necessário que o perpetrador tenha algum móbil, não é
precisa nenhuma lógica, nenhuma fundamentação racional. Basta um
rótulo. O rótulo é o móbil. Por que fez Coleman Silk isto? Porque ele é um
este, porque ele é um aquele, porque ele é ambas as coisas. Primeiro um
racista e agora um misógino. O século vai já demasiado longo para lhe
chamarem comunista, embora noutros tempos o rótulo tivesse sido esse.
Um acto misógino cometido por um homem que já mostrou ser capaz de
fazer um abjecto comentário racista a expensas de uma estudante
vulnerável. Isso explica tudo. Isso e a loucura.
O demónio dos lugares pequenos: a mexeriquice, a inveja, o azedume, o
tédio, as mentiras.
Não, os venenos provincianos não ajudam. Aqui as pessoas aborrecem-
se, são invejosas, a sua vida é o que é e será sempre, e por isso, sem
questionarem seriamente a história, repetem-na: ao telefone, na rua, na
cafetaria, na sala de aulas. Repetem-na em casa aos maridos e às mulheres.
Não se trata apenas do facto de, por causa do acidente, não haver tempo
para provar que se trata de uma mentira ridícula; para começo de conversa,
se não tivesse havido o acidente ela não teria podido contar a mentira. Mas
a morte dele é a sorte dela. A morte dele é a salvação dela. A morte
intervém para simplificar tudo. Todas as dúvidas, todas as desconfianças,
todas as incertezas são afastadas pelo maior de todos os redutores, que é a
morte.
Ao dirigir-me sozinho para o meu carro depois do funeral de Faunia,
continuava sem saber quem, na universidade, teria tido a astúcia de
congeminar a ideia da circular de clitemnestra — a mais diabólica das
formas de arte, a forma de arte on tine, graças ao seu anonimato -, assim
como também não sabia o que alguém, fosse quem fosse, poderia inventar
em seguida para difundir anonimamente. A única coisa de que tinha a
certeza era de que os germes da maldade estavam à solta e, no que
respeitava à conduta de Coleman, não haveria absurdo do qual alguém não
tentasse extrair a mais infame lógica. Acabava de eclodir uma epidemia em
Athena — era este o rumo do meu pensamento na sequência imediata da
morte dele — e o que seria possível fazer para evitar a sua disseminação?
Ela estava ali. Os elementos patogénicos andavam por ali. No éter. No disco
rígido universal, eternos e inapagáveis, símbolo da malignidade da criatura
humana.
Agora toda a gente estava a escrever Spooks — toda a gente excepto, por
enquanto, eu.

Vou pedir-lhes que pensem [começava a circular do grupo de discussão


da universidade] em coisas em que não é agradável pensar. Não apenas na
morte violenta de uma mulher inocente de 34 anos, o que só por si já é
horrível, mas também nas circunstâncias inerentes a esse horror e ao
homem que, quase artisticamente, congeminou essas circunstâncias para
fechar o seu círculo de vingança contra a universidade de Athena e os seus
ex-colegas.
Talvez alguns de vocês saibam que horas antes de encenar este
assassínio-suicídio — pois foi isso que fez naquela noite, na auto-estrada,
ao sair da faixa de rodagem, galgar. o parapeito e precipitar-se no rio —
Coleman Silk tinha forçado a entrada num gabinete de Barton Hall,
remexido nos papéis e enviado por correio electrónico uma comunicação
supostamente escrita por uma professora e destinada a pôr em perigo a sua
posição na universidade. O mal que lhe causou, e à universidade, foi
insignificante. Mas por trás desse infantil e despeitado acto de
arrombamento e falsificação estavam a mesma determinação e a mesma
animosidade que, horas depois, monstruosamente potenciadas, o levaram a
matar-se e, ao mesmo tempo, a assassinar a sangue-frio uma funcionária
dos serviços de limpeza da universidade a quem alguns meses antes
convencera cinicamente a prestar-lhe favores sexuais.
Imaginem, por favor, a cruel situação desta mulher, que fugiu de casa aos
14 anos, abandonou os estudos no segundo ano da escola secundária e foi
durante o resto da sua curta vida funcionalmente analfabeta. Imaginem-na a
ter de fazer frente às artimanhas de um professor universitário reformado
que, nos dezasseis anos em que foi o mais autocrático dos reitores, teve
mais poder na universidade do que o seu próprio presidente. Que
possibilidades tinha ela de resistir à sua força superior? E, depois de se lhe
ter rendido, de se descobrir escravizada por uma perversa força viril que
excedia em muito a sua, que possibilidades tinha de fazer a mais vaga ideia
dos fins vingativos para que o seu corpo moído de trabalho seria utilizado
por ele, primeiroem vida e depois na morte?
De todos os homens implacáveis que sucessivamente a tinham tiranizado,
de todos os homens violentos, cruéis, implacáveis e insaciáveis que a
tinham atormentado, seviciado e destroçado, não havia nenhum cujo
objectivo pudesse estar tão inquinado pela hostilidade do rancor como
aquele que tinha contas a ajustar com a universidade de Athena e, por isso,
elegeu uma das suas funcionárias para cevar nela a sua vingança do modo
mais palpável que pôde imaginar. Na sua carne. Nos seus membros. Nos
seus órgãos sexuais. No seu útero. O aborto degradante a que fora forçada
por ele no princípio deste ano — e que desencadeou a sua tentativa de
suicídio — é apenas uma de sabe-se lá quantas agressões perpetradas no
terreno devastado do seu ser físico. Temos agora conhecimento do quadro
horroroso encontrado no local do crime, da posição pornográfica por ele
imaginada para Faunia encontrar a morte e melhor transmitir, com uma
única e indelével imagem, a sua escravidão, a sua subserviência (e, por
extensão, a escravidão e a subserviência da comunidade universitária) ao
furioso desprezo dele. Começamos também a saber, à medida que vão
chegando ao exterior os horrendos factos apurados pela investigação
policial, que nem todas as contusões encontradas no corpo mutilado de
Faunia se devem ao fatal acidente, por muito catastrófico que tenha sido. O
médico legista descobriu nas suas nádegas e coxas manchas de
descoloração que não podem ser atribuídas ao impacte da queda, contusões
que foram provocadas, algum tempo antes do acidente, por meios muito
diferentes: um instrumento rombo ou um punho humano.
Porquê? Uma palavra tão pequena, mas suficiente para nos enlouquecer.
Mas a verdade é que uma mente tão patologicamente sinistra como a do
assassino de Faunia não é fácil de sondar. Na origem dos desejos que
moviam este homem existia uma escuridão impenetrável que aqueles que
não são violentos por natureza ou vingativos por determinação — aqueles
que se conciliaram com as restrições impostas pela civilização ao que há de
primitivo e incontrolado em nós — jamais poderão conhecer. O coração das
trevas humanas é inexplicável. Mas eu sei que aquele acidente de
automóvel não foi de modo algum um acidente, sei isso com tanta certeza
como sei que compartilho a dor de todos quantos choram a morte de Faunia
Farley da universidade de Athena, cuja opressão começou nos primeiros
dias da sua inocência e durou até ao momento da sua morte. Aquele
acidente não foi um acidente: foi o que Coleman Silk ansiava fazer com o
seu poder. Porquê? Sei responder; e responderei, a este porquê. Para
aniquilar não apenas ambos, mas, juntamente com eles, todos os vestígios
da sua história como derradeiro algoz dela. Foi para impedir Faunia de o
denunciar e mostrar como aquilo que era que Coleman Silk a levou consigo
para o fundo do rio.
Não podemos deixar de conjecturar até que ponto eram hediondos os
crimes que estava decidido a esconder.

No dia seguinte, Coleman foi sepultado ao lado da mulher, no tranquilo


cemitério ajardinado defronte do raso mar verde dos campos de atletismo da
universidade, na base do carvalhal atrás de North Hall e do ponto de
referência representado pela sua torre do relógio hexagonal. Na noite
anterior não tinha conseguido dormir, e quando me levantei, de manhã,
ainda estava tão agitado com o modo como o acidente e o seu significado
estavam a ser sistematicamente deturpados e transmitidos ao mundo que
nem fui capaz de estar parado tempo suficiente para tomar o café. Como
desmascarar todas aquelas mentiras? Mesmo que consigamos demonstrar
que uma coisa é mentira, num lugar como Athena, uma vez espalhada, ela
permanece. Em vez de ficar em casa a andar impacientemente de um lado
para o outro até serem horas de ir para o cemitério, pus a gravata e vesti o
casaco e desci para a Town Street, a fim de esperar por ali e alimentar a
ilusão de que poderia fazer alguma coisa com o meu desgosto.
E com o meu abalo. Não estava preparado para o considerar morto,
quanto mais para vê-lo ser sepultado. Mesmo pondo de parte tudo o mais, a
morte, num estúpido acidente, de um homem forte e saudável, já
septuagenário, tinha uma pungência terrível. Teria havido, pelo menos, um
grau de racionalidade mais alto se ele tivesse sido levado por um ataque
cardíaco, um cancro ou uma trombose. E, para mais, eu nessa altura já
estava convencido — convenci-me disso assim que ouvi a notícia — de que
era impossível o acidente ter acontecido sem a presença, algures nas
imediações, de Les Farleye da sua pick-up. Claro que nada do que acontece
a alguém é alguma vez demasiado absurdo para ter acontecido; no entanto,
com Les Farley presente, com Les Farley como a causa principal, não
haveria mais do que apenas um fiapo de explicação para o aniquilamento
violento, numa única e oportuna catástrofe, da sua execrada ex-mulher e do
enfurecedor amante que ele tão obsessivamente espiava?
O facto de chegar a esta conclusão não me pareceu de modo algum
motivado pela minha repugnância em aceitar o inexplicável como tal-
embora tenha parecido precisamente isso à polícia estadual quando, na
manhã seguinte ao funeral de Coleman, fui falar com os dois agentes que
tinham sido os primeiros a chegar ao local do acidente e encontrado os
corpos. O exame que tinham feito ao veículo acidentado não revelara nada
que pudesse corroborar em aspecto algum o que eu estava a imaginar. A
informação que lhes dei — a respeito de Farley seguir Faunia, a respeito de
ele espiar Coleman, a respeito do quase confronto violento do lado de fora
da porta da cozinha, quando Farley irrompera da escuridão a vociferar
contra os dois — foi pacientemente registada, assim como o meu nome,
morada e número de telefone. Depois agradeceram-me a cooperação,
garantiram-me que guardariam o mais rigoroso sigilo e prometeram que, se
parecesse necessário, voltariam a comunicar comigo.
Nunca o fizeram.
À saída, voltei-me para indagar:
— Posso fazer uma pergunta? Posso perguntar qual era a disposição dos
corpos no carro?
— O que deseja o senhor saber? — inquiriu o agente Balich, o mais
graduado dos dois jovens, um indivíduo de rosto impassível e atitude
serenamente solícita, cuja família croata, lembrei-me, fora proprietária do
Madamaska Inn.
— O que viram, realmente, quando os encontraram? Os lugares que
ocupavam. A sua posição. Corre em Athena o boato ...
— Não, senhor — disse Balich, abanando a cabeça -, não foi isso. Nada
do que se diz é verdade.
— Sabe a que me estou a referir?
— Sei, sim, senhor. Tratou-se claramente de uma questão de excesso de
velocidade. Não é possível fazer aquela curva a semelhante velocidade.
Nem o Jeff Gordon o conseguiria, quanto mais um tipo de idade, com dois
copos de vinho a toldarem-lhe as ideias, a tentar fazer aquela curva como
um ás do volante...
— Não creio que Coleman Silk tenha, alguma vez na sua vida, conduzido
um carro como um ás do volante, senhor agente.
— Bem ... — disse Balich, levantando as mãos com as palmas viradas
para mim, como se quisesse dizer, com o devido respeito, que nem ele nem
eu podíamos ter a certeza disso. — Era o professor quem ia ao volante.
Chegara o momento em que o agente Balich esperava que não me
intrometesse tolamente, armado em detective amador, e em vez de insistir
nos meus argumentos tivesse a delicadeza de sair. Ele tratara-me por senhor
vezes mais do que suficientes para eu não acalentar quaisquer ilusões sobre
quem dirigia as operações, e por isso saí e, como disse, as coisas ficaram
por ali.
O dia em que Coleman devia ser sepultado foi mais um daqueles dias de
Novembro demasiado quentes e luminosos para a estação do ano. As
últimas folhas tinham caído das árvores na semana anterior, de modo que os
contornos do duro leito rochoso da paisagem da montanha se expunham,
nus, ao sol, com as juntas e os estriamentos gravados como as finas linhas
sombreadas de uma gravura antiga, e nessa manhã, ao dirigir-me para
Athena a fim de assistir ao funeral, a rugosidade iluminada de uma
paisagem distante, obscurecida por folhagem desde a última Primavera,
despertou ilogicamente em mim uma sensação de reemergência, de
possibilidade renovada. A estruturação prática e lógica da superfície da
terra, oferecida agora, pela primeira vez em meses, à admiração e
deferência dos olhos, dír-se-ía querer recordar a tremenda força abrasiva da
devastação glaciar que flagelou estas montanhas no limite extremo do seu
atroador deslizamento para sul. Passando apenas a quilómetros da casa de
Coleman, cuspira rochedos do tamanho de frigoríficos de restaurante do
mesmo modo e à mesma velocidade que uma máquina lançadora de basebol
ejecta bolas rápidas, e quando ultrapassei a íngreme vertente arborizada
conhecida localmente por "jardim de rochas" e vi, austeros, despidos do
sarapintado das folhas estivais e das suas sombras deslizantes, aqueles
rochedos gigantescos todos caídos de lado como um Stonehenge devastado,
esmagados numa amálgama e, contudo, descomunalmente intactos, senti-
me de novo horrorizado com o pensamento do instante do impacte que
desligara Coleman e Faunia das suas vidas no tempo e os catapultara para o
passado da terra. Eram agora tão remotos como os glaciares. Como a
criação do planeta. Como a própria Criação.
Foi então que decidi ir à polícia estadual: Só não o fiz nesse dia, nessa
mesma manhã, antes mesmo do funeral, em parte porque, enquanto
estacionava o meu carro do outro lado do largo da cidade, vi na montra do
Pauline's Place, a tomar o pequeno-almoço, o pai de Faunia. Estava sentado
a uma mesa com a mulher que, na véspera, lhe empurrara a cadeira de rodas
no cemitério da montanha. Entrei imediatamente, instalei-me na mesa ao
lado da sua, fiz o pedido e, enquanto fingia ler o Madamaska Weekly
Gazette que alguém deixara junto da minha cadeira, tentei escutar tudo o
que pudesse da conversa deles.
Falavam de um diário. Entre as coisas de Faunia que Sallye Peg tinham
entregue ao pai dela encontrava-se um diário.
— Não tens necessidade de o ler, Harry. Não tens.
— Tenho de o ler.
— Não tens — insistiu a mulher. — Acredita, não tens.
— Não pode ser mais horrível do que tudo o mais.
— Não tens necessidade de o ler.
A maior parte das pessoas incham de vaidade e mentem a respeito de
talentos que apenas sonham ter; Faunia mentira a respeito da sua
incapacidade de adquirir uma aptidão tão fundamental que quase todas as
crianças das escolas primárias do mundo adquirem, pelo menos
rudimentarmente, num ano ou dois.
Fiquei a saber disso antes mesmo de terminar o meu sumo. O seu
analfabetismo tinha sido um fingimento, uma coisa que ela achara
conveniente para a sua situação. Mas porquê? Uma fonte de poder? A sua
única fonte de poder? Mas um poder adquirido a que preço? Era caso para
pensar. Acrescentou o analfabetismo aos seus outros tormentos.
Voluntariamente. Mas não para se infantilizar, não para passar por uma
criança dependente; precisamente pelo contrário: para realçar a
personalidade primitiva adequada ao mundo. Não pelo repúdio da instrução
como uma forma asfixiante de correcção, mas sobrepondo-lhe um saber que
é mais forte e prévio. Não tem nada contra ler, em si; acha simplesmente
apropriado fingir que não sabe. Apimenta um pouco as coisas. Não
consegue saciar-se de toxinas, de tudo aquilo que uma pessoa não deve ser,
mostrar, dizer e pensar, mas que é, mostra, diz e pensa quer lhe agrade quer
não.
— Não o posso queimar — disse o pai de Faunia. — É dela. Não posso
deitá-lo para o lixo.
— Bem, eu posso — respondeu a mulher.
— Não é certo.
— Passaste a vida inteira a caminhar nesse campo de minas. Não precisas
de mais.
— É tudo o que resta dela.
— Há o revólver. Isso resta dela. Há as balas, Harry. Ela deixou isso.
— A maneira como viveu ... — Parecia, de súbito, à beira das lágrimas.
— A maneira como viveu corresponde à maneira como morreu. Foi por
isso que ela morreu.
— Tens de me dar o diário.
— Não. Já basta termos vindo aqui.
— Queres destruí-lo, e eu nem sei do que se trata.
— Limito-me a fazer o que é melhor para ti.
— O que é que ela diz?
— Coisas impossíveis de repetir.
— Oh, meu Deus!
— Come. Precisas de comer alguma coisa. Aqueles crepes têm bom
aspecto.
— A minha filha.
— Fizeste o que pudeste.
— Devia ter ficado com ela quando tinha 6 anos.
— Não sabias. Como podias saber o que ia acontecer?
— Não devia tê-la deixado, nunca, com aquela mulher.
— E nós nunca devíamos aqui ter vindo. Só falta adoeceres cá. Então a
desgraça será completa.
— Quero as cinzas.
— Deviam ter sepultado as cinzas. Lá. Com ela. Não sei por que não o
fizeram.
— Eu quero as cinzas, Syl. São dos meus netos. É tudo quanto me resta
do que se passou.
— Eu encarreguei-me das cinzas.
— Não!
— Não precisavas delas para nada. Já passaste por muito, agora chega.
Não quero que te aconteça nada. Aquelas cinzas não vão connosco no
avião. — O que lhes fizeste?
— Encarreguei-me delas. Fui respeitosa. Mas já não existem.
— Oh, meu Deus.
— Acabou-se — disse ela. — Acabou tudo. Fizeste o teu dever. Fizeste
mais do que o teu dever. Não precisas de fazer mais nada. Agora come
alguma coisa. Já fiz as malas. Já paguei a conta. Agora só temos de voltar
para casa.
— Ah, és a melhor, Sylvia, não há melhor do que tu.
— Não quero que sofras mais. Não permitirei que te façam sofrer.
-És a melhor.
— Tenta comer. Parecem muito bons.
— Também queres?
— Não. Quero que tu comas.
— Não posso comer todos.
— Põe calda. Espera, eu ponho. Eu deito a calda.
Esperei por eles cá fora, no largo, e quando vi a cadeira de rodas sair do
restaurante atravessei a rua e, enquanto ela empurrava a cadeira, apresentei-
me e caminhei ao lado dele. — Vivo aqui. Conheci a sua filha.
Superficialmente, apenas, mas encontrei-a várias vezes.
Ontem fui ao funeral e vi-o lá. Queira aceitar as minhas condolências.
Era um homem corpulento e de forte constituição, muito maior do que
parecera no funeral, afundado na cadeira de rodas. Provavelmente tinha
bastante mais do que um metro e oitenta de altura, mas tinha o ar (o rosto
inexpressivo de Faunia, exactamente o rosto dela: os lábios finos, o queixo
anguloso, o pontiagudo nariz aquilino, os mesmos olhos azuis afundados
nas órbitas e, por cima deles, emoldurando as pestanas claras, a mesma
protuberância de carne, a mesma opulência, o mesmo inflar de carne que na
herdade leiteira me parecera a sua única característica exótica, o único
símbolo de sedução do seu rosto) de um homem condenado não apenas ao
aprisionamento naquela cadeira mas também a alguma outra angústia ainda
maior para o resto dos seus dias. Corpulento como era, ou tinha sido, não
restava nada dele além do seu medo. Vi esse medo no fundo do seu olhar no
instante em que levantou a cabeça para me agradecer.
— É muito amável- disse-me.
Devia ter mais ou menos a minha idade, mas havia na sua maneira de
falar indícios de uma infância privilegiada própria da Nova Inglaterra, que
remontava a muito antes de qualquer de nós ter nascido. Apercebera-me
disso ainda no restaurante: estava preso só por essa maneira de falar, pelos
padrões de uma fala quase anglicizada de gente endinheirada, às
convenções decorosas de uma América completamente diferente.
— É a madrasta de Faunia? — A pergunta pareceu-me um modo tão bom
como qualquer outro de obter a atenção da mulher e conseguir, porventura,
que fosse um pouco mais devagar. Presumia que regressavam ao College
Arms, ao virar da esquina do largo.
— Apresento-lhe Sylvia — disse ele.
— Poderia parar um pouco, para eu poder conversar com o senhor? —
perguntei a Sylvia.
— Vamos apanhar um avião — respondeu-me.
Como estava claramente decidida a livrá-lo de mim sem demora nem
rodeios, informei, acompanhando a velocidade da cadeira de rodas:
— Coleman Silk era meu amigo. Ele não atirou o carro para fora da
estrada. Não faria isso, não daquela maneira. O seu carro foi obrigado a sair
da estrada. Sei quem é o culpado da morte da sua filha. Não foi Coleman
Silk.
— Pára de empurrar a cadeira, Sylvia, pára um momento.
— Não — replicou ela. — Isto é de loucos. Basta.
— Foi o ex-marido dela — continuei, dirigindo-me a ele. — Foi Farley.
— Não — murmurou ele, debilmente, como se lhe tivesse dado um tiro.
— Não ... não.
— Senhor! — Ela tinha, enfim, parado, mas a mão que deixara de apertar
com força a cadeira de rodas estendera-se para me agarrar pela lapela. Era
baixa e frágil, uma jovem filipina com um implacável pequeno rosto
acastanhado pálido, e eu percebi pela sombria determinação dos seus olhos
intrépidos que não permitiria que o tumulto dos assuntos humanos se
aproximasse sequer daquilo que lhe competia proteger.
— Não pode parar um momento, apenas? — perguntei-lhe. — Não
podemos sentar-nos no largo e conversar?
— Ele não se encontra bem. O senhor está a abusar das forças de um
homem gravemente doente.
— Mas vocês têm um diário que pertenceu a Faunia.
— Não temos.
— Têm um revólver que pertenceu a Faunia.
— Vá-se embora. Deixe-o em paz, estou a avisá-lo! — E empurrou-me,
empurrou-me com a mão que estivera a agarrar a lapela do meu casaco.
— Ela arranjou essa arma para se proteger de Farley — expliquei.
— Coitada — respondeu, ríspida.
Sem saber o que fazer, dobrei a esquina atrás deles e segui-os até
chegarem ao alpendre do hotel. O pai de Faunia chorava agora abertamente.
Quando se virou e me viu ainda ali, a mulher disse-me:
— Já causou estragos suficientes. Vá-se embora ou chamo a polícia. —
Havia uma grande ferocidade naquela minúscula pessoa. Compreendi:
mantê-lo vivo não exigia menos do que isso. — Não destrua o diário —
insisti. .; Há nele um registo ...
— De porcarias! Há nele um registo de porcarias!
— Syl, Sylvía ...
— Todos eles, ela, o irmão, a mãe, o padrasto ... toda essa corja
espezinhou este homem durante a sua vida inteira. Roubaram-no.
Enganaram-no. Humilharam-no. A filha dele era umaa criminosa.
Engravidou e teve uma criança aos 16 anos ... uma criança que abandonou
num orfanato. Uma criança que o pai dela teria criado. Era uma reles puta.
Armas, homens, drogas, porcarias e sexo. O dinheiro que ele lhe deu ... que
fez ela com esse dinheiro?
— Não sei. Não sei nada a respeito do orfanato. Não sei nada a respeito
de dinheiro nenhum.
— Drogas! Ela roubou-o para comprar drogas!
— Não sei nada a esse respeito.
— Toda aquela família ... uns imundos! Tenha alguma compaixão, por
favor!
Voltei-me para ele.
— Quero que a pessoa culpada destas mortes seja legalmente
responsabilizada. Coleman Silk não lhe fez mal nenhum, não a matou.
Peço-lhe que me deixe falar consigo apenas um minuto.
— Deixa-o, Sylvia ...
— Não! Não deixo mais ninguém fazer nada! Deixaste-os fazer o que
queriam tempo mais do que suficiente!
Tinham-se juntado pessoas no alpendre do hotel, a observar-nos, e outras
observavam das janelas de cima. Talvez fossem os últimos apreciadores das
cores das folhas, vindas para admirar o pouco que restava do esplendor
outonal. Talvez fossem antigos alunos da universidade. Havia sempre um
punhado deles de visita à cidade, licenciados de meia-idade e idosos que
vinham ver o que desaparecera e o que permanecia, pessoas que guardavam
boas recordações, as melhores recordações, de tudo, absolutamente tudo, o
que lhes acontecera nestas ruas em mil novecentos e não sei quantos. Talvez
fossem pessoas que tinham vindo para ver as casas coloniais restauradas,
erguidas numa extensão de mais de um quilómetro ao longo de ambos os
lados de Ward Street e que a Sociedade Histórica de Athena considerava, se
não tão grandiosas como as de Salém, pelo menos tão importantes como
quaisquer outras do estado a oeste da Casa das Sete Empenas. Estas pessoas
não tinham vindo dormir nos quartos de época cuidadosamente decorados
do College Arms para acordarem ao som de um desafio de berraria por
baixo das suas janelas. Num lugar tão pitoresco como a South Ward Street e
num dia tão bonito como este, o rebentar de semelhante alarido — um
homem paralisado a chorar numa cadeira de rodas, uma minúscula mulher
asiática a gritar e um homem que, pela sua aparência, podia muito bem ser
um professor universitário e que, aparentemente, estava a aterrorizar ambos
com o que dizia — por certo se lhes afiguraria, ao mesmo tempo, mais
espantoso e desagradável do que se tivesse por palco um cruzamento de
uma grande cidade.
— Se eu pudesse ver o diário ...
— Não há diário nenhum! — gritou ela, e não tive outro remédio senão
ficar a vê-la empurrar a cadeira de rodas pela rampa ao lado dos degraus de
entrada e transpor a porta principal do hotel.
Voltei ao Pauline's, pedi uma chávena de café e, servindo-me do papel de
carta que a empregada tinha ido buscar a uma gaveta por baixo da caixa
registadora, escrevi a seguinte carta:

Sou o homem que o abordou perto do restaurante de Town Street, em


Athena, na manhã depois do funeral de Faunia. Vivo numa estrada rural nos
arredores de Athena, a alguns quilómetros da casa do falecido Coleman
Silk, o qual, como expliquei, era meu amigo. Por intermédio de Coleman
encontrei a sua filha em diversas ocasiões. Também o ouvi falar dela
algumas vezes. A relação deles era apaixonada, mas sem crueldade. Ele
representava sobretudo o papel de amante dela, mas também sabia ser
amigo e professor. Se ela lhe pediu ajuda, não acredito que lha tenha
alguma vez negado. Seja qual for a parte do carácter de Coleman que ela
tenha absorvido, jamais lhe poderá ter envenenado a vida.
Não sei se lhe terão chegado aos ouvidos os boatos maldosos a respeito
deles e do acidente que circulam em Athena. Espero que não. Há, no
entanto, uma questão de justiça a resolver, e isso sobrepõe-se a toda essa
estupidez. Foram assassinadas duas pessoas. Eu sei quem as assassinou.
Não fui testemunha do assassínio, mas sei que foi cometido. Tenho a
certeza absoluta. Mas preciso de ter provas, se quero ser tomado a sério pela
polícia ou por um advogado. Se o senhor está de posse de alguma coisa que
revele o estado de espírito de Faunia nos últimos meses, ou mesmo
remontando ao casamento dela com Farley, peço-lhe que não a destrua.
Estou a referir-me a cartas que tenha recebido da sua filha ao longo dos
anos, assim como a objectos pessoais encontrados no seu quarto após a sua
morte e que lhe tenham sido entregues por Sally e Pego.
O número do meu telefone e a minha morada são ...

Não fui além disto. A minha intenção era esperar que eles partissem,
ligar para o College Arms e extrair do recepcionista, mediante um pretexto
qualquer, o nome e a morada do homem, a fim de lhe enviar a minha carta
pelo correio. Se não conseguisse obter o endereço no hotel, pedi-lo-ia a
Sally e Peg. Mas, na realidade, acabaria por não fazer uma coisa nem outra.
O que quer que Faunia tivesse deixado no seu quarto já fora deitado fora ou
destruído por Sylvia — do mesmo modo que a minha carta seria destruída
quando chegasse ao destino. Aquela criatura franzina, cujo objectivo era
impedir o passado de atormentar mais o pai de Faunia, nunca deixaria entrar
em casa dele o que não permitira quando se defrontara comigo cara a cara.
Além disso, eu não podia contestar a sua atitude. Se naquela família o
sofrimento se transmitia como uma doença, não havia nada a fazer se não
colocar um aviso do género do que costumavam pendurar nas portas dos
doentes contagiosos quando eu era pequeno, um aviso onde se lia a palavra
QUARENTENA ou que mostrava aos olhos dos não infectados um simples,
grande e negro Q maiúsculo. A franzina Sylvia era esse sinistro Q e não
havia qualquer possibilidade de eu conseguir ultrapassá-lo.
Rasguei o que escrevera e atravessei a cidade a pé para assistir ao
funeral.

O serviço fúnebre de Coleman fora organizado pelos seus filhos, que se


encontravam, os quatro, à porta da Rishanger Chapel para receberem as
pessoas à medida que iam chegando. A ideia de o sepultarem no exterior da
Rishanger, a capela da universidade, fora uma decisão da família, o
elemento-chave do que percebi tratar-se de um plano bem gizado, uma
tentativa de anular o auto-imposto banimento do pai e reintegrá-lo na morte,
visto não ser possível fazê-lo em vida, na comunidade onde construíra a sua
notável carreira.
Assim que me apresentei, Lisa, a filha de Coleman, afastou-se um pouco
comigo, abraçou-me e murmurou, numa voz chorosa:
— O senhor era amigo dele. O único amigo que lhe restava. Foi
provavelmente o último a vê-lo.
-- Fomos amigos durante algum tempo — respondi, mas não disse nada a
respeito de o ter visto a última vez alguns meses atrás, naquela manhã de
sábado de Agosto em Tanglewood, nem que, nessa altura, ele já deixara
deliberadamente morrer a nossa breve amizade.
— Perdemo-lo.
— Eu sei.
— Perdemo-lo — repetiu Lisa, e depois chorou sem tentar dizer mais
nada.
Passados momentos, disse-lhe:
— Eu gostava da sua companhia e admirava-o. Gostava de ter podido
conhecê-lo durante mais tempo.
— Por que aconteceu isto?
— Não sei.
— Ele endoideceu? Estava louco?
— Não. De modo algum.
— Então como pôde acontecer tudo isto?
Como eu não respondesse (e como poderia fazê-lo, a não ser começando
a escrever este livro?), deixou pender devagar os braços que me envolviam
e, nos poucos segundos mais que estivemos juntos, reparei como era forte a
sua semelhança com o pai, tão forte como a de Faunia com o pai dela. As
mesmas feições esculpidas, de marioneta, os mesmos olhos verdes, a
mesma pele acastanhada e até, dir-se-ia, uma versão menos espadaúda da
esbelta compleição atlética de Coleman. O legado genético visível da mãe,
Iris Silk, parecia residir unicamente no prodigioso e denso emaranhado de
cabelo escuro e crespo. Nas muitas fotografias de Iris — que vira em álbuns
de família que Coleman me tinha mostrado — dir-se-ia que as feições
faciais pouco ou nada significavam, de tal modo e com tal força a sua
importância como pessoa, se não todo o seu conteúdo, parecia concentrado
naquele enfático e teatral atributo capilar. No caso de Lisa, o cabelo parecia
mais destinado a. estabelecer contraste com o seu carácter do que — ao
contrário do que acontecia com o da mãe — emanar dele.
Nos poucos momentos que estivemos juntos tive a impressão clara de
que o laço, agora quebrado, entre Lisa e o pai não sairia do seu pensamento
durante um único dia do resto da sua vida. De uma maneira ou de outra, a
recordação dele fundir-se-ia em todas as coisas, por mínimas que fossem,
que ela pensasse, fizesse ou deixasse de fazer. As consequências de o ter
amado tão plenamente como filha muito querida, e de estar zangada com
ele no momento da sua morte, nunca deixariam aquela mulher em paz.
Os três Silk homens — Mark, o irmão gémeo de Lisa, e os dois irmãos
mais velhos, Jeffrey e Michael- não foram tão emotivos no modo como me
cumprimentaram. Não vi em Mark nenhum sinal da veemência irritada de
filho ofendido, e quando, cerca de uma hora depois, a sua atitude sóbria se
desmoronou à beira da sepultura, foi com a intensidade de alguém
inconsolavelmente enlutado. Jeff e Michael eram sem dúvida os irmãos Silk
mais resistentes e, neles, via-se claramente a marca física da sua robusta
mãe: se não no cabelo (eram ambos calvos), com certeza na altura, no
sólido núcleo de confiança, na franca autoridade que tinham sido apanágio
dela. Não eram pessoas que se atrapalhassem. Bastaram o modo como me
cumprimentaram e as poucas palavras que disseram para tornar isso
evidente. Quando conhecíamos Jeff e Michael, sobretudo se estavam ao
lado um do outro, conhecíamos alguém à nossa altura. Tempos antes de ter
conhecido Coleman — no seu auge, antes de ter começado a descontrolar-
se no interior da prisão cada vez mais estreita da fúria, antes dos êxitos que
outrora o tinham notabilizado, que eram ele, desaparecerem da sua vida -,
com certeza também se encontrava nele uma pessoa à altura, o que talvez
explique o motivo por que se gerou tão facilmente uma tendência
generalizada para comprometer o reitor quando foi acusado de dizer em voz
alta uma coisa racialmente condenável.
Apesar de todos os boatos que corriam na cidade, a afluência ao funeral
de Coleman excedeu muito o que eu imaginara — excedeu, com certeza, o
que o próprio Coleman poderia ter imaginado. As primeiras seis ou sete
filas de bancos já estavam cheias e continuava a chegar gente atrás de mim,
quando encontrei um lugar vago a meia distância do altar e ao lado de um
homem que reconheci — por tê-lo visto pela primeira vez na véspera -
como Smoky Hollenbeck. Teria Smoky consciência de quanto ele próprio
podia ter estado perto, apenas há um ano, de ter sido objecto de um serviço
fúnebre, ali, na Rishanger Chapel? Talvez tivesse vindo, agora, mais por
gratidão pela sua sorte do que por respeito pelo homem que lhe sucedera
nos favores sexuais de Faunia.
Do outro lado de Smoky encontrava-se uma mulher que supus ser a dele,
uma loura bonita de cerca de quarenta anos que, se a memória não me
atraiçoava, fora sua condiscípula em Athena, com quem casara nos anos 70
e que era agora mãe dos seus cinco filhos. Não contando com os filhos de
Coleman, os Hollenbeck encontravam-se entre as pessoas mais novas que vi
na capela quando comecei a olhar à minha volta. A assistência era
maioritariamente composta pelas pessoas mais idosas da universidade, entre
professores e pessoal, que Coleman conhecera durante cerca de quarenta
anos antes da morte de Iris e da sua demissão. Que pensaria ele da presença
daquela velha-guarda na Rishanger, para o seu funeral, se pudesse observá-
los sentados diante do seu caixão? Provavelmente alguma coisa do género:
"Que maravilhosa ocasião para se sentirem satisfeitos consigo mesmos.
Como todos eles se devem sentir virtuosos por não sentirem por mim o
desprezo que senti por eles.
Como era estranho pensar, enquanto ali estava sentado com todos os seus
colegas, que pessoas tão instruídas e profissionalmente corteses tivessem
cedido com tanta facilidade ao ancestral sonho humano de uma situação em
que um homem pode personificar o mal. Mas a verdade é que, além de
existir, essa necessidade é imperecível e profunda.
Quando a porta exterior foi fechada e os Silk ocuparam os seus lugares
na fila da frente, reparei que a capela estava quase dois terços cheia:
trezentas pessoas, ou talvez mais, esperando que aquele antigo e natural
acontecimento humano absorvesse o terror que o fim da vida lhes causava.
Reparei também que Mark Silk era o único dos três irmãos a usar quipa.
Eu esperava, provavelmente como a maioria dos presentes, que um dos
filhos de Coleman fosse o primeiro a subir ao púlpito para falar. Mas nessa
manhã houve apenas um orador, que foi Herb Keble, o cientista político
contratado pelo reitor Silk como primeiro professor negro de Athena. Era
óbvio que Keble fora escolhido pela família pela mesma razão que a levara
a escolher Rishanger para as exéquias: reabilitar o nome do pai, atrasar o
calendário da universidade de Athena e restituir a Coleman o seu estatuto e
o seu prestígio anteriores. Quando recordei a solenidade com que Jeff e
Michael tinham pegado na minha mão, reconhecido o meu nome e dito,
"Obrigado por ter vindo; a sua presença é importantíssima para a família", e
quando imaginei que deviam ter repetido qualquer coisa do mesmo género a
cada um dos presentes, entre os quais havia muitas pessoas que conheciam
desde a infância, pensei: Não tencionam descansar enquanto o edifício da
administração não for rebaptizado como Coleman Silk Hall.
Não era decerto por acaso que a capela estava quase cheia. Eles não
deviam ter largado o telefone desde o acidente, a aliciar presenças no
funeral do mesmo modo que costumavam ser aliciados eleitores para
votarem quando o velho mayor Daley governava Chicago. E como deviam
ter-se esforçado com Keble, a quem Coleman dedicara um desprezo
especial, para o induzirem a oferecer-se voluntariamente para bode
expiatório dos pecados da Athena. Quanto mais imaginava os filhos de Silk
a encostar Keble à parede, a intimidá-lo, a gritar-lhe, a denunciá-lo,
porventura, até, a ameaçá-lo sem rodeios por causa do modo como traíra o
pai deles dois anos atrás, mais gostava deles — e mais gostava de Coleman
por ter gerado dois homens fortes, firmes e inteligentes que não hesitavam
em fazer o que tinha de ser feito para lhe restituir a reputação. Aqueles dois
iam ajudar a meter Les Farley na cadeia para o resto dos seus dias.
Pelo menos foi isso que pensei até à tarde seguinte, quando, pouco antes
de partirem da cidade e não menos bruscamente persuasivos comigo do que
eu supunha terem sido com Keble, me fizeram saber que devia desistir
disso: devia esquecer Les Farley e as circunstâncias do acidente e não
insistir em mais investigações policiais. Não poderiam ter tornado mais
claro que o seu desagrado não teria limites se o caso do pai com Faunia
Farley se tornasse no fulcro de um julgamento em tribunal instigado pela
minha insistência. Faunia Farley era um nome que nunca mais queriam
ouvir, sobretudo num julgamento escandaloso que seria relatado com
sensacionalismo nos jornais locais e ficaria indelevelmente gravado na
memória das pessoas da cidade, o que faria com que o Coleman Silk Hall
permanecesse para sempre, e apenas, um sonho.
"Ela não é a mulher ideal para ser relacionada com o legado do nosso
pai", disse-me Jeffrey. "A nossa mãe, sim, é", afirmou Michael. "Essa gaja
ordinária não tem nada a ver com coisa nenhuma" "Nada", reiterou Jeffrey.
Perante tamanha veemência e decisão, custava a acreditar que fossem
professores universitários de ciência na Califórnia. Pelo contrário, dir-se-ia
que dirigiam a Twentieth Century Fox.
Herb Keble era um homem esguio e muito escuro, já idoso e com um
andar um pouco hirto, mas sem qualquer sinal do caminhar curvado ou
arrastado devido a doença ou velhice e com algo da exaltação fervorosa do
pregador negro, tanto no porte austero como na voz ameaçadora do juiz
implacável. Bastou-lhe dizer: "Chamo-me Herbert Keble" para impor O seu
fascínio; bastou-lhe fitar silenciosamente, de trás do pódio, o caixão de
Coleman e depois voltar-se para a assistência e anunciar quem era, para
inspirar a atmosfera de emoção associada à recitação dos salmos sagrados.
Era austero da mesma maneira que uma lâmina é austera: uma ameaça se
não a manejamos com o máximo cuidado. Impressionava em tudo, tanto em
atitude como em aparência, e compreendia-se que Coleman pudesse tê-lo
contratado, para quebrar a barreira da cor na Athena, por razões mais ou
menos semelhantes às que tinham levado Branch Rickey a contratar ]ackie
Robinson como o primeiro jogador negro de basebol profissional. Imaginar
os filhos de Silk a intimidarem Herb Keble para que fizesse o que lhe
mandassem não era, à primeira vista, fácil, pelo menos até levarmos em
conta a atracção que a dramatização pessoal pode exercer sobre uma
personalidade tão claramente marcada pela vaidade dos autorizados a
administrar os sacramentos. Ele fazia muito alarde da autoridade daquele
que, em poder, se encontra abaixo apenas do soberano.
— O meu nome é Herbert Keble — começou. — Sou presidente do
Departamento de Ciência Política. Em 1996 contei-me entre aqueles que
não consideraram adequado pronunciar-se em defesa de Coleman quando
foi acusado de racismo — eu, que entrara na universidade de Athena
dezasseis anos antes, no próprio ano em que Coleman Silk foi nomeado
reitor; eu, que fui o primeiro académico contratado pelo reitor Silk.
Tardiamente, muito tardiamente, apresento-me perante vós para me
censurar de não ter valido ao meu amigo e protector e para fazer o que
puder — uma vez mais muito tardiamente — no sentido de reparar a
injustiça, a atroz, a ignóbil injustiça cometida contra ele pela universidade
de Athena.
"Na altura do alegado incidente racista, eu disse a Coleman: "Não posso
estar consigo nisto." Disse-lho com firmeza, embora talvez não totalmente
pelas razões oportunistas, carreiristas ou cobardes que ele se apressou a
atribuir-me. Pensei então que podia fazer mais pela causa de Coleman
trabalhando nos bastidores para enfraquecer a oposição do que aliando-me
aberta e publicamente a ele e sendo reduzido à impotência, como com
certeza teria acontecido, por aquela arma estúpida e para todos os fins que é
a alcunha de "Pai Tomás". Pensei que podia ser a voz da razão vinda do
interior — em vez do exterior — das fileiras daqueles cuja indignação com
o alegado comentário racista de Coleman os levou a difamá-lo
injustamente, e também à universidade, pela negligência de duas
estudantes. Pensei que se fosse suficientemente astuto e paciente poderia
arrefecer a ira exacerbada, se não dos seus adversários mais irredutíveis,
pelo menos dos membros mais ponderados e serenos da nossa comunidade
afro-americana local e dos seus simpatizantes brancos, cujo antagonismo
não foi nunca, realmente, mais do que reflexo e efémero. Pensei que, com o
tempo — e esperava que esse tempo não fosse longo -, conseguiria
proporcionar entre Coleman e os seus adversários um diálogo do qual
pudesse resultar uma declaração que identificasse a natureza do mal-
entendido que estivera na raiz do conflito e, desse modo, conduzir o
lamentável incidente a uma conclusão justa.
"Estava enganado. Nunca devia ter dito ao meu amigo "Não posso estar
consigo nisto", mas, sim, "Tenho de estar consigo". Devia ter-me esforçado
para contrariar os seus inimigos, não insidiosa e insensatamente do interior,
mas franca e honestamente do exterior, para que ele pudesse encontrar
ânimo na manifestação de apoio em vez de ficar a alimentar o esmagador
sentimento de abandono que alastrou e se transformou na ferida infectada
que conduziu ao seu afastamento dos colegas, à sua demissão da
universidade e, a partir daí, ao isolamento autodestrutivo que, estou
convencido — por muito horrível que seja para mim essa convicção -,
levou, por um caminho não muito indirecto, à imensa perda que foi a sua
morte trágica e desnecessária naquele automóvel, na outra noite. Devia ter
erguido a voz para dizer o que quero dizer agora na presença dos seus
excolegas, colaboradores e pessoal da universidade, o que quero dizer
especialmente na presença dos seus filhos,Jeff e Mike que estão aqui vindos
da Califórnia, e Mark e Lisa, que. vieram de Nova Iorque, e para o dizer
como o mais antigo membro afro-americano do corpo docente da
universidade de Athena:
"Coleman Silk jamais se afastou, em aspecto algum, de uma conduta
absolutamente justa no seu trato com todos e cada um dos seus alunos
enquanto esteve ao serviço da universidade de Athena. Nunca.
"A alegada conduta condenável nunca existiu. Nunca.
"O que ele foi obrigado a suportar — as acusações, os interrogatórios, a
investigação continua a ser até hoje, e hoje mais do que nunca, uma mancha
na integridade desta instituição. Aqui, em Nova Inglaterra, historicamente
tão identificada com a resistência individualista americana às coacções de
uma comunidade repressiva — vêm-me ao pensamento Hawthorne,
Melville e Thoreau -, um individualista americano que não considerava as
regras a coisa mais importante da vida, um individualista americano que se
recusava a deixar por examinar as ortodoxias do usual e da verdade
estabelecida, um individualista americano que nem sempre viveu de acordo
com os padrões maioritários do decoro e do bom gosto: um individualista
par excellence foi uma vez mais tão brutalmente traído por amigos e
vizinhos que viveu desavindo com eles até à morte, esbulhado da sua
autoridade moral pela estupidez moral deles. Sim, fomos nós, a comunidade
censória moralmente estúpida, que nos desprestigiámos ao mancharmos tão
vergonhosamente o bom nome de Coleman Silk. Falo sobretudo daqueles
que, como eu, conheciam, graças ao estreito contacto com ele, a
profundidade da sua entrega à universidade e a pureza da sua dedicação
como educador e que, movidos por um qualquer motivo enganoso, apesar
disso o traímos. Repito: nós traímo-lo. Traímos Coleman Silk e traímos lris.
"A morte de Iris, a morte de Iris Silk, ocorrida no meio de ...
Duas cadeiras à minha esquerda, a mulher de Smoky Hollenbeck
chorava, assim como várias outras ali perto. O próprio Smoky estava
inclinado para diante, com a testa levemente apoiada nas mãos entrelaçadas
na trave superior do espaldar da cadeira da frente, numa posição vagamente
eclesiástica. Pretendia, supus, que eu, a sua mulher ou quem quer que
porventura o visse assim acreditasse que lhe era insuportável pensar na
injustiça feita a Coleman Silk. Supus que queria parecer dominado pela
compaixão, mas sabendo o que sabia a respeito de tudo aquilo que ele
ocultava sob a capa de chefe de família exemplar, conhecendo como
conhecia os substractos dionisíacos da sua vida, tratava-se de uma ilação
difícil de engolir.
Mas, Smoky à parte, a atenção, a concentração, a acuidade da
concentração centrada em cada palavra de Herb Keble pareciam-me
suficientemente genuínas para poder imaginar que um bom número das
pessoas presentes teria dificuldade em não lamentar o que Coleman Silk
injustamente suportara. Perguntava-me, é claro, se a racionalização usada
por Kebler para justificar o motivo por que não ficara ao lado de Coleman
na altura do incidente dos -spooks era da sua própria autoria ou lhe fora
indicada pelos irmãos Silk para que pudesse fazer o que lhe mandavam e,
ao mesmo tempo, salvar a face. Perguntava-me se a racionalização poderia
ser uma descrição exacta dos motivos dele quando dissera as palavras que
Coleman me repetira amargamente tantas vezes: "Não posso estar consigo
nisto"
Por que relutava em acreditar naquele homem? Porque, quando
chegamos a uma certa idade, a nossa desconfiança se torna tão
intensamente refinada que relutamos em acreditar seja em quem for? Com
certeza que, dois anos antes, quando ele ficou calado e não se ergueu em
defesa de Coleman, foi pela razão que leva sempre as pessoas a calarem-se:
porque é do seu interesse. A conveniência não tem de ser um motivo
sinistro. Herb Keble era apenas mais um empenhado em tentar limpar o
cadastro, ainda que de um modo ousado e até interessante, chamando a si a
culpa, mas a verdade é que não fora capaz de agir quando era preciso, e por
isso pensei, em nome de Coleman: Vai-te foder.
Quando Keble desceu do pódio e, antes de voltar para o seu lugar, parou
a apertar a mão a cada um dos filhos de Coleman, esse simples gesto só
serviu para intensificar a emoção quase violenta ateada pelo seu discurso.
Que iria acontecer a seguir? Durante um momento, foi como se não
houvesse nada além do silêncio, do caixão e da embriaguez emocional da
multidão. Depois Lisa levantou-se, subiu os poucos degraus e disse, da
estante do couro:
— O último movimento da Terceira Sinfonia de Mahler.
E pronto. Valeu tudo. Tocaram Mahler em toda a sua imponência.
Bem, há ocasiões em que não podemos ouvir Mahlet Quando ele nos
agarra para nos sacudir, não pára. No fim, estávamos todos a chorar.
Falando apenas por mim, não creio que alguma coisa pudesse dilacerar-
me tanto, a não ser ouvir a interpretação de Steena Palsson de "The Man I
Love" , tal como ela a cantou dos pés da cama de Coleman na Sullivan
Street, em 1948.
O percurso a pé para o cemitério, a três quarteirões de distância, foi em
grande parte memorável pelo facto de, aparentemente, não ter acontecido.
Num momento estávamos paralisados pela infinita vulnerabilidade do
adágio de Mahler; por aquela simplicidade que não é artifício, que não é
uma estratégia, que quase parece desenrolar-se com O ritmo acumulado da
vida e com toda a relutância da vida em terminar... num momento
estávamos paralisados por aquela rara justaposição de grandiosidade e
intimidade que começa na serena, cantante e contida intensidade das cordas
e depois sobe, em vagas, pelo pesado falso final que conduz ao verdadeiro,
ao prolongado, ao magnífico final... num momento estávamos paralisados
pelo crescendo, pela subida, pela culminância e pela acalmia de uma orgia
elegíaca que se espraia, espraia, a um ritmo determinado que nunca muda,
recuando para logo voltar como uma dor ou um anseio que não
desaparecem ... num momento estávamos, levados pela insistência
crescente de Mahler, dentro do caixão com Coleman, sincronizados com
todo o terror da infinitude e com o desejo veemente de escapar à morte, e
no seguinte, sem sabermos como, sessenta ou setenta de nós encontrávamo-
nos no cemitério para assistirmos à sua descida à terra, um ritual muito
simples, uma solução tão razoável para o problema como qualquer outra
jamais imaginada, mas nunca totalmente compreensível. Temos de ver para
crer, todas as vezes.
Duvidava que a maior parte das pessoas tivesse planeado acompanhar o
corpo durante todo o caminho até à sepultura. Mas os filhos de Silk
possuíam um talento especial para despertar e prolongar o sentimento e
presumi que era por isso que tantos de nós ali estávamos apertados uns
contra os outros e o mais perto possível da cova que iria ser a morada eterna
de Coleman, quase como se estivéssemos ansiosos para rastejarmos para lá
e tomarmos o seu lugar, para nos oferecermos como suplentes, substitutos,
oferendas sacrificiais, se, como por magia, isso permitisse o reatamento da
vida exemplar que, como O próprio Herb Keble admitira, lhe fora
praticamente roubada dois anos antes ..
Coleman seria sepultado ao lado de Iris, em cuja lápide tumular se liam
as datas 1932- 1996. Na dele ler-se-ia 1926-1998. Como estas datas são
claras! E que pouco desvendam do que aconteceu.
Ouvi o kaddish começar antes mesmo de ter consciência de que alguém
estava a entoá-lo. No primeiro momento imaginei que o som da oração
chegava até ali vindo de outra parte do cemitério, quando na realidade vinha
do outro lado da sepultura, onde Mark Silk, o filho mais novo, o filho
revoltado, o filho que, como a sua irmã gémea, mais se parecia com O pai,
se encontrava sozinho, com o livro na mão e o yarmulhe" na cabeça, a
entoar em voz suave e repassada de lágrimas a familiar oração judaica.
Yisgadal, veyiskadash ...
A maioria dos americanos, incluindo eu próprio e provavelmente os
irmãos de Mark, não sabe o que estas palavras significam, mas quase toda a
gente reconhece a mensagem de serenidade que elas transmitem: morreu
um judeu. Morreu mais um judeu. Como se a morte não fosse uma
consequência da vida, mas sim uma consequência de se ter sido judeu.
Quando terminou, Mark fechou o livro e, depois de ter incutido uma
serenidade grave em toda a gente, foi ele próprio vencido pela histeria. Foi
assim que o funeral de Coleman terminou: com todos nós paralisados, desta
vez por vermos Mark ir-se abaixo, agitando desamparadamente os braços
no ar e chorando de boca escancarada. Aquele lamento desvairado, mais
antigo ainda do que a oração que entoara, foi subindo de intensidade até ao
momento em que, vendo a irmã correr para ele de braços estendidos, virou
para ela o desfigurado rosto dos Silk e, num puro espanto infantil, gritou.
"Nunca mais voltaremos a vê-lo"
O pensamento que me veio à mente não primou pela generosidade.
Naquele dia, era difícil ter pensamentos generosos. Pensei: Que diferença
faz isso? Não tinhas muito empenho em vê-lo quando ele cá estava.
Aparentemente, Mark Silk imaginara que ia ter o pai à mão para o odiar
eternamente.
Para o odiar, para o odiar sem descanso, e depois, talvez, quando muito
bem lhe apetecesse e tivessem as cenas de acusação atingido o auge e ele
tivesse flagelado Coleman quase até à morte com o látego dos seus agravos
filiais, lhe perdoar. Pensava que Coleman ia permanecer por cá até ao final
da peça, como se ele e o pai tivessem sido colocados não na vida, mas na
encosta meridional da acrópole ateniense, num teatro ao ar livre consagrado
a Dioniso onde, perante os olhos de dez mil espectadores, as unidades
dramáticas eram outrora rigorosamente observadas e o grande ciclo
catártico anualmente representado. O desejo humano de um começo, um
meio e um fim — e um fim apropriado em magnitude a esse começo e a
esse meio — nunca foi tão completamente realizado, em lado algum, como
nas peças que Coleman ensinava na universidade de Athena. Mas, fora da
tragédia clássica do século V a.c., a expectativa de completude, quanto mais
a de justa e perfeita consumação, é, num adulto, uma ilusão tola.
As pessoas começaram a afastar-se. Vi os Hollenbeck seguirem pelo
carreiro entre as sepulturas a caminho da rua próxima, o marido com o
braço sobre os ombros da mulher, a guiá-Ia num gesto protector. Vi o jovem
advogado Nelson Primus, que representara Coleman no incidente dos -
spooks-, acompanhado de uma mulher jovem, grávida, que chorava e devia
ser a sua mulher. Vi Mark com a irmã, ainda a ser consolado por ela, e vi
]eff e Michael, que com tanta habilidade tinham orquestrado toda aquela
operação, a falarem calmamente com Herb Keble a poucos metros de mim.
Eu não conseguia ir-me embora, por causa de Les Farley. Longe do
cemitério, ele forçava tranquilamente o seu caminho, sem ser acusado de
qualquer crime, construindo aquela rude realidade que era só sua, um ser
brutal colidindo com quem queria e como queria por todas as secretas
razões que justificavam tudo quanto lhe apetecia fazer.
Eu sei, é verdade, que não existe completude nem justa e perfeita
consumação, mas isso não significa que, parado apenas a alguns passos de
onde o caixão repousava na sua cova recém-cavada, não pensasse
obstinadamente que aquele fim, mesmo congeminado para restituir para
sempre a Coleman o seu lugar de figura prestigiada da história da
universidade, não bastaria. Havia demasiada verdade ainda oculta.
Referia-me à verdade acerca da sua morte e não à verdade que viria a
lume dali a momentos. Há verdade e verdade. Por muito que o mundo esteja
cheio de pessoas convencidas de que nos conhecem, ou a qualquer outro,
por dentro e por fora, na realidade é incomensurável o que não se conhece.
A verdade a nosso respeito é infinita. Assim como as mentiras. Apanhado
entre as duas, pensei. Denunciado pelos íntegros, injuriado pelos virtuosos e
depois exterminado pelo louco criminoso. Excomungado pelos puros, pelos
eleitos, pelos omnipresentes evangelistas dos costumes do momento, e
depois despachado por um demónio impiedoso. Ambas as exigências
humanas confluíam nele. O puro e o impuro em toda a sua intensidade, em
movimento, irmanados na necessidade comum do inimigo. Dilacerado,
pensei. Dilacerado pelos dentes antagónicos deste mundo. Pelo
antagonismo que o mundo é.
Uma mulher, sozinha, permanecera tão perto da cova aberta como eu.
Estava em silêncio e não parecia chorar. Não parecia, sequer, estar
inteiramente ali, ou seja, num cemitério, a assistir a um funeral. Era como
se estivesse na esquina de uma rua, pacientemente à espera do próximo
autocarro. Foi o modo empertigado como segurava a mala de mão à sua
frente que me levou a imaginá-la como alguém que já estava pronta para
pagar o seu bilhete e ser depois transportada para qualquer que fosse o seu
destino. Só percebi que não era branca pela projecção do queixo e pelo
desenho da boca — um certo ar prógnato nos traços da parte inferior do
rosto -, e também pela textura rígida do penteado. A sua pele não era mais
escura do que a de um grego ou de um marroquino, e talvez eu não tivesse
juntado estes indícios para a classificar maquinalmente como negra se Herb
Keble não se encontrasse entre os muito poucos que ainda não se tinham
ido embora. Devido à idade dela — 65, talvez 70 anos -, pensei que fosse a
mulher dele. Não admirava, pois, que parecesse tão estranhamente
petrificada. Não devia ter sido fácil ouvir O marido assumir publicamente
— fosse qual fosse o motivo que a talo movera — o papel de bode
expiatório da universidade de Athena. Compreendia que ela tivesse muito
em que pensar e que, para assimilar tudo aquilo, precisasse de mais tempo
do que o funeral lhe concedera. Era natural que os seus pensamentos ainda
estivessem concentrados no que ele dissera na Rishanger Chapel. Era aí que
ela estava.
Enganava-me.
Quando me voltei para me ir embora, quis o acaso que ela fizesse o
mesmo e, apenas com um ou dois passos de permeio, ficámos de frente um
para o outro.
— Chamo-me Nathan Zuckerman — apresentei-me. — Fui amigo de
Coleman quase até ao fim da sua vida. — Muito prazer.
— Creio que o seu marido mudou tudo, hoje.
Não olhou para mim como se quisesse dizer-me que estava enganado,
embora eu estivesse. Também não me ignorou, resolveu livrar-se de mim e
seguiu o seu caminho. Nem deu a impressão de não saber o que fazer,
embora, se estivesse perplexa, devesse ter dado. Um amigo de Coleman no
fim da vida dele? Dada a sua verdadeira identidade, como poderia ter dito
apenas "Não sou Mrs. Keble" e ir-se embora?
Mas não fez mais do que ficar ali parada à minha frente, impassível e tão
profundamente emudecida pelos acontecimentos do dia e pelas suas
revelações que não compreender, naquele momento, quem ela era para
Coleman teria sido impossível. Não foi de uma semelhança com Coleman
que tive consciência, e uma consciência quase imediata, em avanços
rápidos, como se se tratasse de uma estrela distante vista através de uma
lente que ajustámos com segurança até à intensidade certa. O que vi —
quando finalmente vi, quando vi em toda a plenitude e clareza até à
revelação do segredo de Coleman — foi a semelhança facial com Lisa, que
era ainda mais sobrinha da sua tia do que fora filha do seu pai.
Foi por Ernestine, em minha casa, nas horas que se seguiram ao funeral,
foi por ela que soube a maior parte do que sei a respeito de Coleman no
tempo em que cresceu em East Orange: a tentativa do Dr. Fensterman de
convencer Coleman a ficar para trás nos exames finais, para permitir que
Bert Fensterman o ultrapassasse como melhor aluno; como Mr. Silk
encontrou a casa de East Orange em 1926, a pequena casa de madeira onde
Ernestine ainda morava e que tinha sido vendida ao pai "por um casal que",
como ela me explicou, "estava furioso com os vizinhos do lado e, por isso,
decidido a vendê-la a pessoas de cor, para os aborrecer". ("Está a ver, pode
perceber a que geração pertenço", observou um pouco mais tarde. "Digo
"de cor" e "negro"".) Contou-me como o pai perdeu a loja de oculista
durante a Depressão e o tempo que levou a refazer-se da perda — "Não
tenho sequer a certeza de que se tenha, de facto, refeito", acrescentou -, e
como arranjou emprego como criado de mesa de carruagem-restaurante e
trabalhou para os caminhos-de-ferro até ao fim da vida. Contou que Mr.
Silk chamava inglês "<1 língua de Chaucer, Shakespeare e Dickens" e se
empenhou em que os âlhos aprendessem não apenas a falar como devia ser
mas também a pensar com lógica, a classificar, a analisar, a descrever, a
enumerar; e que aprendessem não apenas inglês mas também latim e grego;
que os levava aos museus de Nova Iorque e a ver peças de teatro na
Broadwaye que, quando descobriu a carreira secreta de Coleman como
pugilista amador do Newark Boys Club, lhe disse, naquela voz que
respirava autoridade sem nunca precisar de a elevar: "Se eu fosse teu pai,
dir-te-ia: "Ganhaste a noite passada? Óptimo. Agora podes retirar-te sem ter
conhecido a derrota."" Fiquei a saber por Ernestine que Doc Chizner, que
também foi meu instrutor de boxe durante o ano em que frequentei a sua
escola em Newark depois das aulas, tinha anteriormente, em East Orange,
reivindicado o talento de Coleman depois de ele sair do Boys Club, que
Doc quisera que ele combatesse pela Universidade de Pittsburgh e lhe
poderia ter arranjado uma bolsa de estudo para lá, como pugilista branco,
mas Coleman se matriculara em Howard por ser esse o plano do pai. Que,
uma noite, o pai morrera subitamente, quando servia o jantar no comboio, e
Coleman saíra logo de Howard para se alistar na Marinha, como branco.
Que, depois da Marinha, se mudara para Greenwich Village, a fim de ir
para a NYU. Que, um domingo, levara a rapariga branca a casa, a rapariga
bonita do Minnesota. Que, nesse dia, os biscoitos se tinham queimado, por
estarem todos concentrados em não dizer nada errado. Que, felizmente para
todos, Walt, que tinha começado a ensinar em Asbury Park, não pudera ir
almoçar a casa como de costume, e as coisas tinham corrido tão
maravilhosamente que Coleman não tivera qualquer razão de queixa.
Ernestine disse-me que a mãe tinha sido muito atenciosa com a rapariga,
Steena. Tinham sido muito atenciosas e amáveis com Steena, e ela com
elas. Que a mãe sempre trabalhara muito e, depois da morte do pai, fora
promovida, exclusivamente por mérito, e se tornara a primeira enfermeira-
chefe de cor do serviço cirúrgico de um hospital de Newark. Que ela
adorara o seu Coleman, que nada que ele fizesse poderia destruir o amor da
sua mãe. Nem mesmo a decisão de passar o resto da vida fmgindo que a
mãe fora outra pessoa, uma mãe que ele nunca tivera e nunca existira, nem
isso a libertara dele. Nem mesmo depois de Coleman ter ido a casa para a
informar de que ia casar com Iris Gittelman e ela jamais seria sogra da sua
nora nem avó dos seus netos, e de Walt ter proibido Coleman de voltar a
contactar com a família e ter tornado claro à mãe — usando a mesma
autoridade férrea com que o pai os dominara — que ela também não devia
contactar com Coleman.
— Sei que as intenções dele eram as melhores — disse Ernestine. —
Walt achava que essa era a única maneira de proteger a nossa mãe e evitar
que fosse magoada. Magoada por Coleman cada vez que houvesse um
aniversário, cada vez que houvesse uma festa, cada vez que fosse Natal.
Estava convencido de que, se a linha de comunicação permanecesse aberta,
Coleman despedaçaria o coração da mãe mil vezes mais, exactamente como
fizera naquele día. Walt estava furioso com Coleman por ele ter ido a East
Orange sem ter preparado ninguém, sem ter avisado nenhum de nós, e ter
dito a uma mulher idosa, e para mais viúva, como as coisas iam ser.
Fletcher, o meu marido, encontrou sempre um motivo psicológico para Walt
ter feito o que fez. Mas eu não acho que ele tivesse razão. Não acredito que
Walt alguma vez tenha tido ciúme do lugar de Coleman no coração da mãe.
Não aceito isso. Penso que se sentiu insultado e explodiu, não apenas por
causa da mãe mas por causa de nós todos. Walt era o membro político da
família; claro que tinha de se enfurecer. Eu não fiquei furiosa daquela
maneira, nem então nem nunca, mas compreendo o Walter. Todos os anos,
no aniversário de Coleman, telefonava para Athena e falava com ele. Até há
três dias. Era o dia do seu aniversário. Fazia 72 anos. Suponho que morreu
quando regressava a casa, do seu jantar de anos. Liguei para lhe para
desejar feliz aniversário. Como ninguém atendeu, voltei a ligar no dia
seguinte. E foi assim que soube que tinha morrido. Alguém atendeu o
telefone, lá em casa, e me disse. Compreendo agora que foi um dos meus
sobrinhos. Só comecei a telefonar-lhe para casa depois de a mulher de
Coleman ter morrido e ele ter deixado a universidade e estar a viver
sozinho. Antes disso, telefonava para o seu gabinete. Nunca disse nada a
ninguém a esse respeito. Não via motivo nenhum para isso. Ielefonava nos
seus anos. Telefonei quando a mãe morreu. Telefonei quando casei.
Telefonei quando tive o meu filho. Telefonei quando o meu marido morreu.
Tínhamos sempre uma boa conversa, os dois. Ele queria saber as notícias,
mesmo a respeito de Walter e das suas promoções. E cada vez que Iris deu à
luz, ]effrey, Michael e depois os gémeos, recebi um telefonema dele.
Ligava-me para a escola. Era sempre um momento muito difícil para ele.
Estava a desafiar o destino, com tantos filhos. Em virtude de estarem
geneticamente ligados ao passado que repudiara, havia sempre a
possibilidade de uma reversão de algum modo notório. Isso preocupava-o
muito. Podia ter acontecido ... algumas vezes acontece. Mas, apesar disso,
continuava a tê-los. Isso também fazia parte do plano. Do plano de levar
uma vida plena, regular e produtiva. Estou, no entanto, convencida de que,
principalmente nos primeiros anos e, com certeza, sempre que esperava um
filho, Coleman sofria com a decisão que tomara. Nada escapava, nunca, à
sua atenção e isso aplicava-se também aos seus próprios sentimentos. Pôde
separar-se de nós, mas não podia separar-se dos seus sentimentos. E isso
tornava-se ainda mais verdadeiro no que tocava aos filhos. Creio que ele
próprio acabou por acreditar que havia algo de horrível em ocultar uma
coisa tão crucial para o que uma pessoa é como o direito inato de conhecer
a sua genealogia. E também alguma coisa de perigoso. Imagine a tragédia
que podia causar nas suas vidas se os filhos nascessem reconhecivelmente
negros. Até agora teve sorte, e isso aplica-se também aos dois netos que tem
na Califórnia. Mas pense na filha, que ainda não casou. Suponha que um
dia tem um marido branco, como é mais que provável que aconteça, e dá à
luz uma criança negróide, como é possível que dê. Como explica ela isso? E
o que pensará o marido? Pensará que é filho de outro homem. E, ainda por
cima, de um negro. Foi tremendamente cruel da parte de Coleman não ter
dito aos filhos, Mr. Zuckerman. E esta não é a opinião de Walter, é a minha.
Se estava decidido a guardar segredo da sua raça, o preço a pagar era não
ter filhos. E ele sabia-o. Tinha de saber. Em vez disso, colocou uma bomba
por explodir. E essa bomba pareceu-me sempre atrás dos seus pensamentos,
quando me falava dos filhos. Sobretudo quando falava não da filha gémea,
mas do filho gémeo, de Mark, o rapaz com quem tinha tantos problemas.
Dizia-me que provavelmente Markie tinha as suas próprias razões para o
detestar, mas era como se tivesse imaginado a verdade. "Colhi ali o que
semeei", disse-me, "ainda que pelos motivos errados. Markie não se dá
sequer ao luxo de detestar o pai pelo motivo real. Roubei-o também dessa
parte do seu direito inato" E eu respondi: "Mas ele podia nem sequer te
detestar por causa disso." "Não estás a compreender-me. Não quis dizer que
ele me detestaria por ser negro. Não é a isso que chamo o motivo real. O
que quero dizer é que me teria detestado por nunca lho ter dito e porque
tinha o direito de saber" E depois, como havia ali tanta matéria para mal-
entendidos, mudámos simplesmente de assunto. Mas é claro que ele nunca
podia esquecer que a sua relação com os filhos assentava numa mentira,
numa mentira terrível, e que Markie intuíra isso, compreendera, sabe-se lá
como, que os filhos, que transportam a identidade do pai nos seus genes e
por sua vez a passarão aos seus próprios filhos, pelo menos geneticamente,
e talvez até fisicamente, tangivelmente, nunca têm um conhecimento
completo de quem são e de quem foram. Sei que isto pode ser considerado
mais ou menos especulativo, mas às vezes penso que Coleman via Markie
como o castigo pelo que ele fizera à própria mãe. Embora — acrescentou
Ernestine, escrupulosamente — isso seja uma coisa que ele nunca disse.
Quanto a Walter, aonde eu queria chegar a seu respeito era que ele estava a
tentar pôr-se no lugar do nosso pai apenas para ter a certeza de que o
coração da nossa mãe não seria repetidamente despedaçado.
— E conseguiu?
— Mr. Zuckerman, não havia conserto possível para o coração dela.
Quando morreu no hospital, quando estava delirante, sabe o que dizia? Não
parava de chamar a enfermeira, como os seus pacientes costumavam
chamá-la, a ela. "Oh, senhora enfermeira, oh, senhora enfermeira ... leve-me
para o comboio. Tenho um bebé doente em casa" Vezes sem conta, "tenho
um bebé doente emcasa-. Sentada à sua cabeceira, segurando-lhe a mão e
vendoa morrer, eu sabia quem esse bebé doente era. E Walter também. Era
Coleman. Ainda hoje não sei se teria sido melhor para ela se Walter não
tivesse interferido como interferiu, banindo Coleman para sempre daquela
maneira ... Mas o talento especial de Walter como homem é a sua
capacidade de decisão. E o de Coleman também. Os homens da nossa
família são decididos. O pai era, como antes dele o fora o seu pai, que foi
pastor metodista na Geórgia. São homens que tomam as suas decisões e,
uma vez tomadas, não voltam atrás. Mas isso tem um preço. Uma coisa é,
no entanto, clara, e eu compreendi isso hoje. E como gostaria que os meus
pais pudessem sabê-lo ... Somos uma família de educadores. A começar
pela minha avó paterna. Quando jovem escrava, a sua dona ensinou-a a ler.
Depois, após a Emancipação, frequentou aquilo a que então chamavam
Escola Normal e Industrial do Estado da Geórgia para Pessoas de Cor. Foi
assim que começou e foi assim que nos tornámos o que somos. E foi isso
que compreendi quando vi os filhos de Coleman. Todos professores, menos
um. E todos nós — Walt, Coleman, eu — também professores. Quanto ao
meu filho, a história é outra. Não terminou a faculdade. Tivemos alguns
desentendimentos e agora ele tem outra pessoa importante e temos os
nossos desentendimentos também a esse respeito. Devo dizer-lhe que não
havia professores de cor no sistema escolar para brancos de Asbury Park
quando Walter para lá foi em 1947. Ele foi o primeiro, não esqueça. E,
posteriormente, o seu primeiro director negro. E, posteriormente, o seu
primeiro inspector escolar negro. Isso diz alguma coisa acerca de Walt.]á
havia uma comunidade negra bem fixada, mas as coisas só começaram a
mudar quando Walter chegou, em 1947. E a sua capacidade de decisão teve
muito a ver com isso. Mesmo que seja um produto de Newark, não sei se
sabe que até 1947 a educação separada, segregada, era legal e
constitucionalmente reconhecida em New]ersey. Havia, em muitas
comunidades, escolas para crianças de cor e escolas para crianças brancas.
No Sul de ]ersey existia uma separação distinta de raças na instrução
primária. De Trenton e New Brunswick para baixo, havia escolas separadas.
E em Princeton. E em Asbury Park. Quando Walter chegou a Asbury Park,
havia uma escola chamada Bangs Avenue, leste ou oeste: um lado para
crianças de cor que moravam nesse bairro da Bangs Avenue e outro para
crianças brancas que moravam nesse bairro. Era apenas um edifício, mas
dividido em duas partes. Havia uma cerca entre os dois lados do edifício e
num lado estavam crianças de cor e no outro crianças brancas. Do mesmo
modo, os professores de um lado eram brancos e os do outro eram de cor. O
director era branco. Em Trenton e Princeton — e Princeton não era
considerado com fazendo parte do Sul de ]ersey — houve escolas separadas
até 1948. Não em East Orange nem em Newark, embora em certa altura até
em Newark tenha havido uma escola primária para crianças de cor, mas isso
foi no início do século. Mas em 1947 ... e agora vou situar Walter em toda
esta história, porque quero que compreenda o meu irmão, quero que veja o
seu relacionamento com Coleman no quadro mais amplo do que estava a
passar-se nesse tempo. Isto foi anos antes do movimento em prol dos
direitos cívicos. Nem o que Coleman fez, a decisão que tomou de, apesar da
sua ancestralidade negra, viver como membro de outro grupo racial, nem
isso foi, de modo algum, uma decisão rara antes do movimento em prol dos
direitos cívicos. Fizeram-se filmes a esse respeito. Um chamava-se Pinky, e
havia outro com Mel Ferrer, de cujo nome não me lembro, mas que também
foi popular. Mudar de grupo racial, quando não havia direitos cívicos
dignos desse nome nem igualdade, era uma coisa que estava no pensamento
das pessoas, tanto brancas como de cor. Talvez estivesse mais nos seus
pensamentos do que nos seus actos, mas mesmo assim fascinava as pessoas
do mesmo modo que as fascina um conto de fadas. Bem, em 1947 o
governador convocou uma convenção constitucional para rever a
constituição do estado de New]ersey. E isso foi o princípio de alguma coisa.
Uma das revisões constitucionais estabeleceu que deixaria de haver
unidades separadas ou segregadas de Guarda Nacional em New]ersey. A
segunda parte, a segunda mudança na nova constituição, dizia que as
crianças deixavam de ser obrigadas a passarem por uma escola para
chegarem a outra no seu bairro. As palavras eram mais ou menos estas.
Walter saberia repetir-lhas textualmente. Estas emendas eliminaram a
segregação nas escolas públicas e na Guarda Nacional. O governador e os
conselhos directivos de educação receberam instruções para porem isso em
prática. O departamento de educação estadual recomendou a todos os
conselhos directivos locais que aplicassem os planos de integração das
escolas. Sugeriu que se começasse pela integração dos corpos docentes das
escolas e depois, gradualmente, ao nível dos alunos. Ora, antes mesmo de ir
para Asbury Park, ainda era estudante na Montclair State depois de
regressar da guerra, já Walt se contava entre os que tinham consciência
política, já era um dos ex-GI que lutavam activamente pela integração das
escolas em NewJersey. Antes mesmo da revisão constitucional, e depois
dela, evidentemente, Walter foi dos mais activos na luta pela integração das
escolas.
O que ela queria demonstrar era que Coleman não fora um dos ex-GI que
tinham lutado pela integração e pela igualdade dos direitos cívicos; na
opinião de Walt, ele nunca lutara por nada a não ser por si mesmo. Silky
Silk. Fora como Silky Silk que lutara e por quem lutara, e era por isso que
Walt nunca suportara o irmão, nem mesmo quando ele era rapaz. Só
pensava nele, costumava Walt dizer Sempre nele e só nele. A única coisa
que Coleman sempre quisera fora safar-se.
Acabáramos de almoçar em minha casa algumas horas antes, mas a
energia de Ernestine não dava sinais de esmorecimento. Tudo quanto
turbilhonava dentro do seu cérebro — e não apenas como consequência da
morte de Coleman, mas de tudo quanto se relacionava com o mistério que
ele representava e que ela tentara decifrar nos últimos cinquenta anos — a
impelia a falar numa precipitação que por certo não era característica da
séria professora primária de cidade provinciana que fora a vida inteira. Era
uma mulher com um aspecto muito digno, aparentemente saudável, embora
com um rosto um pouco cansado, cujos apetites ninguém imaginaria
pudessem ser de alguma forma excessivos. Pelo modo como vestia e pela
sua postura, pelas suas meticulosas maneiras à mesa, enquanto almoçava, e
até pelo modo como ocupava a cadeira, tornava-se evidente ser possuidora
de uma personalidade que se submetia sem dificuldade às convenções
sociais, assim como que a sua reacção mais funda, em qualquer conflito,
devia ser a de agir automaticamente como mediadora: com uma habilidade
perfeita para encontrar a solução mais sensata e mais disposta, por opção, a
escutar do que a discursar, apesar de a aura tumultuosa que rodeava a morte
do irmão que se autodeclarara branco, o significado especial do fim de uma
vida que parecera à sua família uma longa, perversa e intencionalmente
arrogante deserção, ser muito difícil de explicar por meios normais.
— A minha mãe foi para a sepultura sem saber por que Coleman fez
aquilo. "Perdeu-se para a sua própria família", costumava dizer. Ele não
tinha sido o primeiro na família dela. Houvera outros. Mas aí é que estava a
diferença, esses tinham sido outros. Não eram Coleman. Coleman nunca na
sua vida se aborreceu por ser negro. Pelo menos enquanto o conhecemos.
Ser negro nunca foi um problema para ele. Víamos a mãe sentada na sua
cadeira, à noite, imóvel e silenciosa, e sabíamos o que estava a perguntar a
si mesma: terá sido por isto, terá sido por aquilo? Terá sido para se afastar
do pai? Mas quando ele o fez o nosso pai já tinha morrido. A minha mãe
sugeria razões, mas nenhuma era, nunca, adequada. Teria sido por ele
pensar que os brancos eram melhores do que nós? Eram sem dúvida mais
ricos do que nós ... mas melhores? Seria isso que ele pensava? Nunca vimos
o mínimo sinal de que fosse. Bem, há pessoas que crescem, se afastam e
nunca mais querem ter nada a ver com as suas famílias, mas não precisam
de ser de cor para agirem dessa maneira. Acontece todos os dias, em todo o
mundo. Odeiam tanto tudo, que desaparecem, simplesmente. Mas quando
era rapaz Coleman não era rancoroso. Era a criança mais jovial e optimista
que se possa Imaginar Enquanto crescia, eu era mais infeliz do que ele. O
próprio Walt era mais infeliz do que ele. Com todos os seus sucessos, com a
atenção que as pessoas lhe dispensavam ... não, a minha mãe nunca
conseguiu entender. A sua mágoa nunca se apaziguou. As fotografias dele.
As cadernetas das suas notas. As medalhas que conquistou no atletismo. O
anuário da escola. O certificado de melhor finalista que recebeu ... Havia
até brinquedos, brinquedos de que ele tinha gostado quando era pequeno,
ela guardava todas essas coisas e fitava-as como uma vidente fita uma bola
de cristal, como se esperasse que lhe fossem desvendar tudo. Ele alguma
vez terá contado a alguém o que fez? Acha que contou, Mr. Zuckerman?
Alguma vez terá contado à mulher? Aos filhos?
— Não creio. Tenho a certeza que não.
— Nesse caso, foi Coleman até ao fim. Tomou a sua decisão e cumpriu-a.
Desde pequeno que teve essa característica extraordinária: a fidelidade total
a um plano. Empenhava-se obstinadamente em levar até ao fim todas as
decisões que tomava. Tantas mentiras que foram necessárias para a grande
mentira, mentiras à sua família, aos seus colegas, mas mesmo assim
persistiu até ao fim. Até foi enterrado como judeu. Oh, Coleman — disse,
com tristeza -, tão determinado, a determinação em pessoa — neste
momento, Ernestine estava mais perto do riso do que das lágrimas.
Enterrado como judeu, pensei, e, se as minhas deduções estavam certas,
morto como judeu. Este era mais um dos problemas da personificação.
— Se contou a alguém, talvez tenha sido à mulher com quem morreu. A
Faunia Farley. Era claro que ela não queria ouvir falar dessa mulher. O seu
bom senso obrigou-a, no entanto, a perguntar:
— Como sabe?
— Não sei. Não sei nada. É uma ideia minha. Ter-lhe dito estaria de
acordo com o pacto que eu pressentia existir entre eles. — Por "pacto entre
eles" referia-me ao reconhecimento mútuo de que não havia nenhuma saída
airosa, mas não quis explicar isso, pelo menos a Ernestine. — Olhe, depois
de a ouvir dizer todas essas coisas, não há nada acerca de Coleman que não
tenha de repensar. Já não sei o que pensar a respeito de tudo.
— Bem, acaba de se tornar membro honorário da família Silk. Em
questões relacionadas com Coleman, nenhum de nós, com excepção de
Walt, soube alguma vez o que pensar. Porque fez o que fez, porque persistiu
nisso, porque teve a nossa mãe de morrer como morreu. Se Walt não tivesse
ditado a lei, quem sabe como as coisas teriam evoluído? Quem sabe se
Coleman não teria dito à mulher, à medida que os anos foram passando e o
afastaram do momento em que tomou a decisão? Talvez tivesse até dito aos
filhos, um dia. Talvez tivesse dito a toda a gente. Mas Walt imobilizou tudo
no tempo, e isso nunca foi uma boa ideia. Coleman fez o que fez quando
ainda não tinha 30 anos. Era um jovem temperamental de 27 anos. Mas não
teria 27 anos a vida inteira. Não estaríamos sempre em 1953. As pessoas
envelhecem. As nações envelhecem. Os problemas envelhecem. Às vezes
envelhecem tanto que deixam de existir. Mas Walt imobilizou tudo no
tempo. É claro que, se virmos as coisas estreitamente, apenas do ponto de
vista da vantagem social, era sem dúvida proveitoso para a classe média
negra instruída fazer as coisas à maneira de Coleman, do mesmo modo que
hoje é vantajoso não sonhar, sequer, fazê-las assim. Hoje, a uma pessoa
negra inteligente da classe média que pretenda que os filhos frequentem as
melhores escolas, e com bolsa de estudo completa, se necessitar, não passa
pela cabeça dizer que não é de cor. Isso seria a última coisa a fazer. Por
muito branca que a nossa pele seja, o vantajoso agora é não o fazer, do
mesmo modo que, naquele tempo, era vantajoso fazê-lo. Qual é, afinal, a
diferença? Mas posso dizer isso a Walter? Posso perguntar-lhe: "Qual é,
realmente, a diferença?" Primeiro, por causa do que Coleman fez à nossa
mãe, e segundo porque, aos olhos de Walter, naquele tempo havia uma luta
a travar e Coleman não quis travá-la. Só estas razões são suficientes para
não poder. Mas não pense que não tenho tentado, ao longo dos anos.
Porque, no fundo, Walter não é um homem severo. Quer que lhe fale do
meu irmão Walter? Em 1944 era fuzileiro numa companhia de soldados de
infantaria de cor. Quando ele e outro soldado da sua companhia se
encontravam no cimo de uma encosta belga sobranceira a um vale
atravessado por uma via-férrea, viram um soldado alemão a caminhar para
leste, ao longo dos carris. Levava um pequeno saco suspenso do ombro e ia
a assobiar. o soldado que estava com o meu irmão fez pontaria. "Que diabo
estás a fazer?", perguntou-lhe Walter. "Nou matá-lo. "Mas porquê?! Pára!
Que mal está ele a fazer? o tipo vai a andar, provavelmente para casa. Teve
de tirar à força a arma das mãos do colega, um miúdo da Carolina do Sul.
Desceram a encosta, mandaram parar o alemão e fizeram-no prisioneiro. E
era verdade, ele ia mesmo para casa. Tinha tido uma licença e o único
caminho que conhecia para regressar à Alemanha era seguindo a via-férrea
para leste. Walter salvou-lhe a vida. Quantos soldados alguma vez fizeram
isso? O meu irmão Walter é um homem determinado, capaz de ser duro
quando é necessário, mas também é humano. E é por ser humano que está
convencido de que aquilo que fazemos o fazemos para aperfeiçoar a raça.
Por isso tentei demovê-lo, tentei várias vezes, dizendo-lhe coisas em que eu
própria não acreditava inteiramente. Coleman fazia parte do seu tempo,
dizia-lhe. Coleman não podia esperar pelos direitos cívicos para alcançar os
seus direitos humanos e, por isso, queimou uma etapa. "Vê-o da perspectiva
histórica", dizia-lhe. "És professor de História, vê-o como parte de um todo
mais vasto. Nenhum de vocês se submeteu ao que lhes foi conferido. São
ambos lutadores e lutaram ambos. Tu lutaste à sua maneira e Coleman lutou
à dele. Mas este é um tipo de raciocínio que nunca resultou com Walter.
Nada resultou, nunca. Digo-lhe que esta foi a maneira de Coleman se tornar
um homem, mas ele não concorda. Para Walt, foi a maneira de Coleman
não se tornar um homem. "Está bem", responde-me, "está bem. O teu irmão
é mais ou menos o que teria sido, excepto que teria sido negro. Excepto?
Excepto? Esse excepto teria mudado tudo. Walt não consegue ver Coleman
de maneira diferente da que sempre viu. E que posso eu fazer quanto a isso,
Mr. Zuckerman? Odiar o meu irmão Walt pelo que ele fez a Coleman ao
imobilizar a nossa família no tempo, como imobilizou? Odiar o meu irmão
Coleman pelo que ele fez à nossa mãe, pelo muito que ele fez a pobre
mulher sofrer até ao derradeiro dia da sua vida? Se vou odiar os meus dois
irmãos, por que hei-de ficar por aí? Por que não odeio o meu pai por todas
as coisas erradas que ele fez? Por que não odeio o meu falecido marido?
Sim, porque eu não casei com um santo, garanto-lhe. Amava o meu marido,
mas não sou cega. E o meu filho? Esse então é um rapaz que não seria nada
difícil odiar. Faz tudo, mas tudo, para me tornar essa tarefa fácil. Mas o
perigo do ódio é que, quando vamos por aí, o resultado é cem vezes pior do
que prevíamos. Se começamos, nunca mais conseguimos parar. Não
conheço nada mais difícil de controlar do que o ódio. É mais fácil deixar de
beber do que dominar o ódio. Tem muito que se lhe diga.
_ Sabia, antes de hoje, por que motivo Coleman se demitiu da
universidade?
— Não sabia. Pensava que tinha atingido a idade da reforma.
— Ele nunca lhe disse.
— Não.
— Por isso não pôde compreender do que falava Keble.
— Inteiramente, não.
Falei-lhe então do caso dos "spooks", contei-lhe essa história toda, e
quando acabei ela abanou a cabeça e disse, sem hesitar:
— Creio que nunca tive conhecimento de nada mais idiota que tenha sido
cometido por uma instituição de ensino superior. Parece-me mais próprio de
um viveiro de ignorância do que de uma universidade. Perseguir um
professor universitário, seja ele quem for e seja qual for a sua cor, insultá-
lo, desonrá-lo, esbulhá-lo da sua autoridade, da sua dignidade e do seu
prestígio por uma coisa tão estúpida e banal como essa. Sou filha do meu
pai, Mr. Zuckerman, filha de um pai que era rigoroso com as palavras, e a
cada dia que passa as palavras que ouço dizer parecem corresponder cada
vez menos à descrição do que as coisas realmente são. Pelo que acaba de
me dizer, dir-se-ia que tudo é possível numa universidade, nos tempos que
correm. Dir-se-ia que as pessoas que lá trabalham esqueceram o que é
ensinar. Dir-se-ia que aquilo que fazem está mais perto da palhaçada. Todas
as épocas têm as suas autoridades reaccionárias, e aqui na Athena parece
que estão na crista da onda. Precisaremos de ter um medo tão terrível de
todas as palavras que empregamos? Afinal, o que aconteceu à Primeira
Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América? Na minha
infância, como na sua, recomendava-se que cada estudante que completasse
o curso do liceu em New Iersey recebesse duas coisas: um diploma e um
exemplar da Constituição. Lembra-se disso? Era obrigatório um ano de
História da América e um semestre de Economia — coisa que,
evidentemente, já não se aplica: "obrigatório" é termo que desapareceu do
currículo. Naquele tempo, em muitas das nossas escolas, era da tradição, na
cerimónia do fim do curso, o director entregar-nos o diploma e outra pessoa
o exemplar da Constituição dos Estados Unidos. Hoje em dia, são muito
poucas as pessoas que possuem uma noção razoavelmente clara da nossa
Constituição. Por outro lado, tanto quanto me é permitido perceber, as
pessoas estão a tornar-se mais tolas de hora para hora. Todas essas
universidades a organizarem programas de emergência para ensinarem aos
alunos o que eles deviam ter aprendido no nono ano. No liceu de East
Orange há muito tempo que deixaram de ler os clássicos antigos. Nunca
ouviram sequer falar de Moby Dick, quanto mais lê-lo. No ano em que me
reformei, vieram ter comigo miúdos que no Mês de História dos Negros só
leriam uma biografia de um negro se fosse escrita por outro negro. Eu
perguntava-lhes que diferença fazia se fosse um autor negro ou um autor
branco. Confesso que não tenho a mínima paciência para esse Mês de
História dos Negros. Comparo um Mês de História dos Negros em
Fevereiro com leite que está quase a azedar: ainda se pode beber, mas já não
sabe bem. Se vamos estudar e descobrir coisas a respeito de Matthew
Henson, quanto a mim isso deve ser feito quando estudarmos outros
exploradores.
— Não sei quem é Matthew Henson — disse a Ernestine, perguntando-
me se Coleman soubera, se não quisera saber e se não querer saber tinha
sido uma das razões que o levaram a tomar a sua decisão.
— Mr. Zuckerman ... — disse em tom brando, mas ao mesmo tempo
reprovador.
— Mr. Zuckerman não esteve sujeito ao Mês de História dos Negros,
quando era jovem.
— Quem descobriu o pólo Norte? — perguntou-me.
De súbito, gostei muitíssimo dela, e quanto mais pedantemente
professoral se tornava, mais gostava. Embora por razões diferentes,
começava a gostar tanto dela como gostara do irmão. E compreendi que, se
os puséssemos ao lado um do outro, não teria sido nada difícil perceber o
que Coleman era. Toda a gente sabe ... Oh, estúpida, estúpida, mil vezes
estúpida Delphine Roux! Ninguém sabe a verdade de uma pessoa, e com
muita frequência — como no caso da própria Delphine — a própria pessoa
menos do que as outras.
— Não me lembro se foi Peary ou Cook — respondi. — Esqueci qual
deles chegou primeiro.
— Bem, Henson chegou antes. Quando a notícia saiu no New York
Times, foi-lhe reconhecido todo o mérito. Mas agora, quando escrevem a
história, só falam de Peary. Aconteceria o mesmo se dissessem que Sir
Edmund Hillary chegara ao cume do monte Evereste e não ouvíssemos uma
palavra a respeito de Tenzing Norkay. Aonde quero chegar — continuou
Ernestine, agora no seu elemento, a respirar correcção profissional e
pedagogia, e, ao contrário de Coleman, tudo quanto o seu pai sempre
quisera que ela fosse — é ao seguinte: se fazemos um curso de saúde e tudo
o mais, estudamos o Dr. Charles Drew. Já ouviu falar dele?
— Não.
— Que vergonha, Mr. Zuckerman. Eu já lhe explico. Mas falamos do Dr.
Drew quando estudamos saúde. Não o pomos no mês de Fevereiro.
Compreende o que quero dizer? — Compreendo.
— Aprendemos quem foram quando estudamos exploradores, pessoas
ligadas à saúde e todas as outras pessoas. Mas agora é tudo negro isto e
negro aquilo. Tentei desligar-me disso o melhor possível, mas não foi fácil.
Há anos, o liceu de East Orange era excelente. Os alunos que de lá saíam,
sobretudo os que passavam com distinção, podiam escolher as
universidades. Oh, mas não me faça falar deste assunto ... O que aconteceu
a Coleman com a palavra -spooks- faz parte do mesmo enorme fracasso. No
tempo dos meus pais, e até em boa parte no seu e no meu, costumava ser a
pessoa que ficava aquém. Agora é a disciplina. É muito difícil ler os
clássicos; logo, a culpa é dos clássicos. Hoje o estudante faz valer a sua
incapacidade como um privilégio. Eu não consigo aprender isto, portanto
alguma coisa está errada nisto. E há especialmente alguma coisa errada no
mau professor que quer ensinar tal matéria. Deixou de haver critérios, Mr.
Zuckerman, para só haver opiniões. Debato-me muitas vezes com esta
questão de como era dantes. Como era a educação. Como era o liceu de
East Orange. Como era East Orange. A renovação urbana destruiu East
Orange, disso não tenho a mínima dúvida. Eles — os vereadores municipais
— falaram muito de todas as óptimas coisas que iam acontecer em
consequência da tal renovação urbana. Os comerciantes encheram-se de
medo e foram-se embora, e quantos mais se iam embora menos negócio se
fazia. Depois a Estrada 280 e a alameda retalharam a nossa pequena cidade
em quatro partes. A alameda eliminou a Ienes Street, o centro da nossa
comunidade de cor foi inteiramente eliminado por ela. Depois foi a 280.
Uma intrusão devastadora. Os estragos que causou àquela comunidade!
Como a auto-estrada tinha de passar por lá, o estado comprou as bonitas
casas ao longo de Oraton Parkway, Elmwood Avenue e Maple Avenue e
elas desapareceram da noite para o dia. Eu costumava fazer todas as minhas
compras de Natal na Main Street. Bem, na Main Street e na Central Avenue.
Nesse tempo, chamavam à Central Avenue a s.a Avenida dos Orange. Sabe
o que temos hoje? Temos uma ShopRite e uma Dunkin' Donuts. Havia uma
Domino's Pizza, mas fecharam-na. Agora há outra casa de comida. E uma
lavandaria. Mas a qualidade não tem comparação. Não é a mesma coisa.
Para falar com toda a sinceridade, meto-me no carro e subo a encosta para
fazer as compras em West Orange. Mas dantes não fazia isso. Não era
preciso. Todas as noites saíamos para passear o cão, a não ser que o tempo
estivesse realmente muito mau, íamos até à Central Avenue, uma distância
de dois quarteirões, depois descíamos quatro quarteirões da Central,
atravessávamos, víamos as montras e voltávamos para casa. Havia uma B.
Altman e uma A. Russek. Havia uma Black, Starr & Gorham. Havia uma
loja de fotografia Bachrach. Uma loja muito agradável de roupa de homem,
a Minks, que pertencia a judeus e ficava na Main Street. Havia dois
cinemas. O Hollywood Theater, na Central Avenue, e o Palace Theater, na
Main Street. Não faltava nada, havia toda a animação ali, no pequeno East
Orange ...
Toda a animação, ali, em East Orange. E quando? Antes. Antes da
renovação urbana.
Antes de os clássicos serem abandonados. Antes de deixarem de oferecer
a Constituição aos finalistas do liceu. Antes de haver cursos de emergência
nas universidades, para ensinar aos alunos o que deviam ter aprendido no
nono ano. Antes do Mês de História dos Negros. Antes de construírem a
alameda e fazerem passar por lá a 280. Antes de perseguirem um professor
universitário por ter dito a palavra -spooks" na aula. Antes de ela ter de
subir a encosta para West Orange a fim de fazer compras. Antes de tudo ter
mudado, incluindo Coleman Silk. Nesse tempo tudo era diferente: antes. E,
lamentou-se, nunca mais voltaria a ser o mesmo nem em East Orange nem
em qualquer outro lugar da América.
Às quatro horas, quando saí do meu caminho de acesso para a levar ao
College Arms, onde estava hospedada, a luz vesperal esmorecia
rapidamente e o dia, carregado agora de nuvens ameaçadoras, era de agreste
Novembro. Naquela manhã tinham sepultado Coleman, e na anterior
Faunia, num tempo que parecia de Primavera, mas agora dir-se-ia que tudo
estava empenhado em anunciar o Inverno, e o Inverno a quatrocentos
metros de altitude. Vinha aí a toda a velocidade.
A vontade que tive, então, de falar a Ernestine do dia de Verão, uns
meros quatro meses antes, em que Coleman me levara à herdade leiteira
para observar Faunia a fazer a ordenha das cinco horas sob o calor do fim
da tarde — ou melhor, para o observar a vê-la a fazer ordenha — não exigiu
muita sensatez para ser reprimida. Ela não parecia interessada na
informação que porventura lhe faltava sobre a vida de Coleman. Inteligente
como era, não tinha feito uma única pergunta acerca do modo como ele
vivera os seus últimos meses, quanto mais acerca do que poderia tê-lo
levado a morrer nas circunstâncias em que morrera. Boa e virtuosa, preferia
não encarar os pormenores específicos da sua destruição. Também não
desejava indagar sobre qualquer relação biográfica entre o apelo à revolta
que o levara a cortar os laços com a família, antes dos 30 anos, e a
determinação violenta com que, cerca de quarenta anos depois, se desligara
da universidade de Athena como seu pária e renegado. Não que eu tivesse a
certeza de que existia alguma relação, alguma circuitagem a ligar uma
decisão à outra, mas podíamos tentar olhar e ver, não podíamos? O que
levara à existência de um homem como Coleman? O que é que ele era? A
ideia que tinha de si mesmo valia menos ou mais do que a ideia de qualquer
outra pessoa a seu respeito? É, sequer, possível saber tais coisas? Mas o
conceito de vida como algo cujo objectivo é oculto, de costume como algo
que pode não permitir o pensamento, de sociedade como consagrada a uma
imagem de si mesma que pode ser gravemente imperfeita, do indivíduo
como real independentemente e para além das de terminantes sociais que o
definem e podem, na verdade, ser o que a ele parece mais irreal- resumindo,
todas as perplexidades que estimulam a imaginação humana pareciam um
tanto ou quanto extrínsecas à sua inabalável fidelidade a um cânone de
regras tradicionais.
— Não li nenhum dos seus livros — disse-me no carro. — Hoje em dia,
inclino-me para os policiais. Policiais ingleses. Mas quando chegar a casa
tenciono ler alguma coisa sua.
— Não me disse quem foi o Dr. Charles Drew.
— O Dr. Charles Drew descobriu uma maneira de impedir o sangue de
coagular, permitindo assim que pudesse ser armazenado. Depois ficou
ferido num acidente de automóvel e, como o hospital mais próximo não
aceitava pessoas de cor, esvaiu-se em sangue até morrer.
Resumiu-se a isto toda a nossa conversa nos vinte minutos que durou a
descida da montanha até à cidade. A torrente de revelações acabara.
Ernestine dissera tudo quanto tinha a dizer. Com o resultado de que o
destino cruelmente irónico do Dr. Drew adquiriu um significado — uma
aplicabilidade aparentemente especial a Coleman e ao seu destino
cruelmente irónico — que o facto de ser imponderável não tornava menos
perturbador.
Não conseguia imaginar nada que pudesse ter tornado Coleman mais
misterioso para mim do que este desmascaramento. Agora que sabia tudo
era como se não soubesse nada, e as revelações de Ernestine, ao invés de
aglutinarem a minha ideia dele, tinham-no tornado não apenas uma pessoa
desconhecida, mas também incoerente. Em que proporção, até que ponto,
determinara o segredo dele a sua vida quotidiana e permeara o pensamento
do seu dia-a-dia? Teria passado sucessivamente, com o correr dos anos, de
um segredo escaldante para um segredo morno, um segredo esquecido e
sem importância, uma coisa que tinha a ver com um desafio, uma aposta
que fizera consigo mesmo no tempo em que.. .? Encontrara, graças à sua
decisão, a aventura que procurava ou a decisão fora, em si mesma, a
aventura? O que lhe proporcionara prazer fora o embuste, o gozo de realizar
a proeza, o viajar incógnito pela vida, ou quisera simplesmente fechar a
porta a um passado, a pessoas, a uma raça inteira com os quais não queria
ter nada de íntimo ou oficial? Quisera cortar as voltas aos obstáculos
sociais? Portara-se simplesmente como um americano como outro qualquer
que, seguindo a grande tradição da fronteira, aceitara o convite democrático
para atirar as origens pela borda fora se tal contribuísse para alcançar a
felicidade? Ou tinha sido mais do que isso? Ou menos? Em que medida
foram os seus motivos mesquinhos? Em que medida foram patológicos? E,
supondo que foram ambas as coisas, que importância tem isso? E, supondo
que não foram, que importa? Quando o conheci, o segredo era apenas a
solução diluída que mal tingia a coloração do ser total do homem, ou a
totalidade do seu ser não era mais do que uma solução diluída no mar sem
limites de um segredo davida inteira? Abrandava alguma vez a vigilância
ou vivia sempre como um eterno fugitivo? Alguma vez deixou de
surpreendê-lo o facto de não conseguir deixar de surpreender-se com o
facto de estar a sair-se bem, de poder enfrentar o mundo com a sua força
intacta depois de fazer o que fez, de poder parecer a toda a gente, como de
facto parecia, tão perfeitamente à vontade na sua própria pele? Admitamos
que, sim, a certa altura o equilíbrio pendeu para a nova vida e a outra ficou
para trás, mas terá alguma vez vencido o medo do escândalo e a sensação
de que ia ser descoberto? A primeira vez que me procurou, dementado pela
perda súbita da mulher — pelo seu assassínio, pois estava convencido de
que disso se tratara _, da espantosa mulher com quem sempre lutara, mas
pela qual a sua devoção voltou a ser profunda no momento da sua morte,
quando entrou de rompante pela minha porta, prisioneiro da ideia louca de
que, por causa da morte dela, eu devia escrever, por ele, o seu livro, não
seria essa loucura uma espécie de confissão codificada? "Spooks-l Ser
destruído por uma palavra que já ninguém sequer emprega. Enforcarem-no
nessa corda foi, para Coleman, banalizar tudo: a minuciosa precisão da sua
mentira, a calibragem perfeita da sua fraude, tudo. "Spooks-l A ridícula
banalização do magistral desempenho que fora a sua vida aparentemente
convencional e singularmente subtil, uma vida com pouco ou nada de
excessivo à superfície, porque todo o excesso se concentrava no segredo.
Não admirava que a acusação de racismo o tivesse posto fora de si. Como
se a raiz do seu sucesso fosse a ignomínia, apenas a ignomínia. Não
admirava que todas as acusações o pusessem fora de si. O seu crime
excedia tudo aquilo de que quisessem acusá-lo. Tinha dito a palavra -
spooks-, tinha uma namorada com metade da sua idade: tudo isso eram
ninharias, brincadeira de crianças. Delitos tão patéticos, tão irrisórios, tão
ridículos, lamechices de miúdo de liceu para um homem que, na sua
trajectória para fora, tinha, entre outras coisas, feito o que fizera à mãe,
tinha ido ter com ela e, em nome da heróica concepção que traçara para a
sua vida, dissera-lhe: "Acabou. Este caso de amor acabou. Já não é e nunca
foi a minha mãe" Quem tem a audácia de fazer isto não quer apenas ser
branco. Quer ser capaz de fazer isso. É algo que tem a ver com mais do que
ser apenas ditosamente livre. É como a selvajaria da Ilíada, o livro preferido
de Coleman acerca do espírito voraz do homem. Nele, cada assassínio tem a
sua especificidade, cada um é uma chacina mais brutal do que a anterior.
E, no entanto, depois disso, dominou o sistema. Depois disso, alcançou o
seu objectivo: nunca mais viveu fora da cidade murada que é o
convencionalismo. Ou antes, viveu, no mesmo momento, inteiramente
dentro e, de modo sub-reptício, inteiramente para além, inteiramente
excluído: esta era a plenitude da sua vida especial como personalidade
criada por medida. Sim, dominou o sistema durante muito, muito tempo, até
todos os filhos terem nascido brancos. E depois deixou de dominar.
Antolhado pela natureza incontrolável de alguma coisa completamente
outra. O homem que decide forjar um destino histórico diferente, que
resolve arrombar o ferrolho histórico e o arromba, que consegue modificar
brilhantemente a sua sorte pessoal para, afinal, ser apanhado na armadilha
de uma história com a qual não havia de modo algum contado: a história
que ainda não é história, a história que os movimentos do relógio estão
agora a desenrolar, a história que prolifera enquanto escrevo, que cresce
com a sucessão de um minuto após outro e será mais bem apreendida pelo
futuro do que jamais o será por nós. O nós que é inevitável: o momento
presente, o destino comum, o estado de espírito corrente, a mentalidade do
nosso país, o garrote da história que é o nosso próprio tempo. Antolhado
pela natureza aterradoramente transitória de tudo.

Quando chegámos à South Ward Street e estacionei o carro à porta do


College Arms, disse a Ernestine:
— Gostava de conhecer Walter, qualquer dia. Gostava de falar com ele a
respeito de Coleman.
— Walter não pronuncia o nome de Coleman desde 1956. Não falará a
seu respeito.
Coleman fez a sua carreira na universidade mais branca que havia em
Nova Inglaterra. Coleman decidiu ensinar a matéria mais branca do
currículo. Para Walter, Coleman é mais branco do que os brancos. Não tem
mais nada para dizer além disso.
— Vai dizer-lhe que Coleman morreu? Vai dizer-lhe onde esteve?
— Não. A não ser que ele pergunte.
— Tenciona entrar em contacto com os filhos de Coleman?
— Por que faria isso? Era a Coleman que competia dizer-lhes. Não me
compete a mim.
— Nesse caso, por que me disse a mim?
— Eu não lhe disse. Você apresentou-se no cemitério. Disse-me: "É a
irmã de Coleman."
Eu respondi que sim. Limitei-me a dizer a verdade. Não sou eu que tenho
alguma coisa a esconder. — Não tinha sido tão severa comigo durante toda
a tarde. Nem com Coleman. Até àquele momento mantivera-se
escrupulosamente entre a destruição da mãe e a afronta do irmão.
Tirou uma carteira da mala, abriu-a e mostrou-me um dos retratos
instantâneos alinhados num compartimento de plástico.
— Os meus pais — informou. — Depois da Primeira Guerra Mundial.
Ele acabava de regressar de França.
Duas pessoas jovens defronte de um alpendre de tijolo, uma mulher
pequena, de grande chapéu e vestido de Verão comprido, e um homem alto,
com uniforme militar completo: boné de pala, bandoleira de cabedal, luvas
de cabedal e botas altas de pele macia. Tinham a pele clara, mas eram
negros. Como se podia dizer que eram negros? Por pouco mais do que o
facto de não terem nada a esconder.
— Belo jovem. Sobretudo assim fardado. Parece um uniforme de
cavalaria.
— Infantaria pura e simples.
— Não consigo ver tão bem a sua mãe. O chapéu oculta-lhe um pouco a
cara.
— Só podemos controlar a nossa vida até certo ponto — disse Ernestine,
e com essas palavras, uma declaração sumária filosoficamente tão vigorosa
como qualquer outra que se dignasse fazer, meteu a carteira na mala,
agradeceu-me o almoço e, regressando quase visivelmente à existência
serena e normal que se distanciava rigorosamente de pensamentos
falaciosos, quer brancos, quer negros, quer intermédios, saiu do carro.
Em vez de regressar a casa, atravessei a cidade na direcção do cemitério
e, depois de estacionar na rua, transpus o portão e, sem saber bem o que
estava a fazer, parei sob o crepúsculo que descia ao lado do tosco montículo
de terra que cobria o caixão de Coleman. Estava completamente dominado
pela história dele, pelo fim e pelo princípio dessa história, e comecei ali
mesmo este livro.
Perguntei-me, primeiro, o que se passara quando Coleman contara a
Faunia a verdade sobre esse princípio — presumindo que alguma vez lha
contara, ou melhor; presumindo que ele tinha tido de lha contar.
Presumindo que aquilo que não tinha podido dizer-me imediatamente, no
dia em que entrou de rompante em minha casa, quase a gritar, "Escreva a
minha história, com os diabos", e aquilo que não tinha podido dizer-me
quando teve de desistir (por causa do segredo, compreendia-o agora) de a
escrever ele próprio, acabara por não resistir a confessar-lho a ela, à
empregada da limpeza da universidade que se tornara sua camarada de
armas, a primeira e última pessoa desde Ellie Magee diante de quem pudera
despir-se, voltar-se e expor, projectada do seu dorso nu, a chave mecânica
por meio da qual dera corda a si mesmo para se lançar na sua grande
evasão. Ellie, antes dela Steena e, finalmente, Faunia. A única que nunca
soube o seu segredo foi aquela com quem passou a vida, a sua mulher.
Porquê Faunia? Assim como é humano ter um segredo, também é humano
revelá-lo, mais cedo ou mais tarde. Até, como neste caso, a uma mulher que
não faz perguntas e que, por isso mesmo, deveria ser uma grande dádiva
para um homem na posse de tal segredo. Mas até a ela, sobretudo a ela ...
Porque o facto de não fazer perguntas não era consequência de ela ser
estúpida ou não querer enfrentar as coisas; o facto de não lhe fazer
perguntas está; aos olhos de Coleman, em harmonia com a sua dignidade
destroçada.
— Admito que possa não ter sido assim — disse ao meu completamente
transformado amigo. — Admito que nada tenha sido assim. Mas de
qualquer maneira, cá vai: quando você andava a tentar descobrir se ela tinha
sido prostituta... quando andava a tentar descobrir o segredo dela ... — Ali,
junto da sua sepultura, onde poderia parecer que tudo quanto ele sempre foi
tinha sido anulado, quanto mais não fosse pelo peso e pela massa de toda
aquela terra, esperei que ele falasse, esperei um bom bocado até que,
finalmente, o ouvi perguntar a Faunia qual fora o pior trabalho que ela
tivera. Depois esperei de novo e, passados momentos, pouco a pouco, as
vibrações atrevidas da maneira de falar sem papas na língua dela. E foi
assim que tudo isto começou, comigo parado, sozinho, num cemitério onde
a escuridão começava a alastrar, a concorrer profissionalmente com a
morte.
— Depois dos miúdos, depois do fogo — ouvi-a dizer-lhe -, aceitava
qualquer trabalho que aparecesse. Nesse tempo, nem sabia o que fazia.
Estava num nevoeiro, era tudo confuso. Bem, houve um suicídio ... Foi na
mata depois de Blackwell. Com uma caçadeira. Chumbo de caçar pássaros.
Uma mulher minha conhecida, uma borrachona chamada Sissie, chamou-
me para a ajudar. Ia lá limpar a casa. "Sei que te vai parecer estranho",
disse-me ela, "mas tu tens um estômago forte e podes aguentar. Então,
ajudas-me nisto?" Moravam lá uma mulher e um homem, com os seus
filhos, eles discutiram e ele foi para a outra sala e estoirou os miolos. "Eu
vou lá fazer a limpeza", disse-me Sissie e, por isso, fui com ela. Precisava
do dinheiro e, de qualquer maneira, não sabia o que andava a fazer, e por
isso fui. O cheiro a morte. É disso que me lembro. Metálico. A sangue. O
cheiro. Só notámos quando começámos a limpar. Só sentimos o efeito total
quando a água quente entrou em contacto com o sangue. Tratava-se de uma
cabana de troncos. Havia sangue nas paredes, por todo o lado. Buuummm, e
ele ficou espalhado pelas paredes, por tudo. Quando a água quente e o
desinfectante lhe caíram em cima ... chiça, que pivete! Eu tinha levado
luvas de borracha, mas tive de pôr também uma máscara, pois nem eu já
conseguia aguentar aquilo. Havia também lascas de osso na parede,
misturadas com o sangue. O tipo tinha metido o cano na boca. Buuummm!
Por isso era natural haver bocados de osso e dentes. E havia. Ali, à vista.
Lembro-me de olhar para Sissie. Olhei para ela e vi-a abanar a cabeça. "Por
que porra estamos a fazer isto por dinheiro, se não há dinheiro que pague
uma coisa destas?" Acabámos o trabalho o melhor que pudemos. Cem
dólares por hora. Continuo a pensar que foi mal pago.
— Qual teria sido o preço certo? — ouvi Coleman perguntar a Faunia.
— Mil. Queimar a puta da barraca. Era impossível haver um preço justo.
Sissie saiu de lá. Não aguentava mais. Mas eu, com os meus dois miúdos
mortos e o marado do Lester a seguir-me por todo o lado, e espiar-me dia e
noite... que se lixasse, para que havia de estar com esquisitices? Comecei a
bisbilhotar. Sou capaz de proceder assim. Queria saber por que raio o tipo
tinha feito aquilo. Foi uma coisa que sempre me fascinou, o que leva as
pessoas a matarem-se. Por que há serial killers. A morte em geral. É
simplesmente fascinante. Olhei para as fotografias. Olhei para tentar
descobrir se havia ali alguma felicidade. Vi a casa toda. Até chegar ao
armário dos medicamentos. Os remédios. Os frascos. Ali não havia
felicidade nenhuma. O tipo tinha a sua pequena farmácia pessoal. Suponho
que eram medicamentos psiquiátricos. Coisas que devia ter tomado e não
tomou. Via-se que tinha tentado obter ajuda, mas não foi capaz. Não foi
capaz de tomar os remédios.
— Como sabes isso? — perguntou Coleman .
— Suponho. Não sei. Esta é a minha própria história. A minha versão da
história.
— Talvez ele tenha tomado os remédios e isso não o impedisse de se
matar.
— É possível. O sangue. O sangue pega-se. Não conseguíamos tirá-lo do
chão. Panos e mais panos, e continuava da mesma cor. Por fim foi-se
tornando cor de salmão, cada vez mais cor de salmão, mas mesmo assim
continuava a não sair. Como se fosse uma coisa ainda viva. Usámos
desinfectante industrial, mas não serviu de nada. Metálico. Adocicado.
Enjoativo. Eu não sou atreita a vómitos. Penso noutra coisa. Mas desta vez
estive quase.
— Quanto tempo levaram?
— Estivemos lá cerca de cinco horas. Eu armada em detective amadora.
Ele devia ter à volta de 35 anos. Não sei o que fazia. Caixeiro-viajante ou
coisa parecida. Tinha ar de homem habituado à floresta. Homem da
montanha. Barba grande. Cabelo basto. Ela era baixa e delicada. Rosto
meigo. Pele clara. Cabelo escuro. Olhos escuros. Muito apagada.
Intimidada. Esta é apenas a impressão com que fiquei, das fotografias. Ele
era o homem forte da montanha, ela uma críaturínha acanhada. Não sei.
Mas quero saber. Eu fui uma menor emancipada. Abandonei a escola. Não
era capaz de ir para a escola. Além de tudo o mais, era uma chatice. Tantas
coisas reais a acontecer nas casas das pessoas. E na minha, então, nem te
conto! Como podia eu aprender qual era a capital do Nebraska? Eu queria
saber. Queria ir-me embora e olhar à minha volta. Foi por isso que fui para
a Florida. Foi por isso que andei por todo O lado e foi por isso que
bisbilhotei naquela casa. Só para ver. Queria conhecer o pior. O que é o
pior? Tu sabes? Ela encontrava-se lá quando ele fez aquilo. Quando nós
chegámos, estava a receber assistência psiquiátrica.
— Essa foi a pior coisa que alguma vez tiveste de fazer? O pior trabalho
que tiveste de fazer?
— Monstruoso. Sim. Tenho visto muitas coisas, mas aquilo ... não se
tratava apenas de ser monstruoso. Também era fascinante. Eu queria saber
porquê.
Ela queria saber o que é o pior. Não o melhor: o pior. Isso, para ela,
significava a verdade.
O que é verdade? Por isso ele contou-lhe. Ela foi a primeira mulher
depois de Ellie a descobrir. A primeira pessoa depois de Ellie. Porque
naquele momento ele amou-a, ao imaginá-la a limpar o sangue. Nunca se
sentira tão próximo dela. Seria possível? Coleman nunca se sentira tão
próximo de ninguém! Porque é em momentos assim que amamos as
pessoas, quando as vemos decididas a enfrentar o pior. Não corajosas. Não
heróicas. Simplesmente decididas. Ele não tinha qualquer reserva em
relação a ela. Nenhuma. O que o moveu ultrapassava qualquer reflexão,
qualquer cálculo. Foi instintivo. Dali a algumas horas talvez achasse que a
ideia fora muito má, mas naquele momento, não. Naquele momento confia
nela, é apenas isso. Confia nela: ela raspou o sangue do chão.
Sejam quais forem as perversões que a desfigurem, não é religiosa, não é
hipócrita, não a deforma o conto de fadas da pureza. Não lhe interessa
julgar; já viu muito para perder tempo com todas essas merdas. Não vai
fugir como Steena, diga, eu o que disser. "O que pensarias", perguntou-lhe,
"se te dissesse que não sou branco?"
Ao princípio limitou-se a olhar para ele, como se estivesse estupefacta.
Estupefacta uma fracção de segundo, não mais. Depois desatou a rir, soltou
aquela gargalhada que era a sua marca pessoal. "O que pensaria? Pensaria
que estavas a dizer-me uma coisa que eu já tinha percebido há muito
tempo"
— Não é verdade.
— Ah, não? Sei o que és. Vivi no Sul. Conheci-os a todos. Claro que sei.
Por que outro motivo poderia gostar tanto de ti? Por seres professor
universitário? Dava em maluca se fosses isso.
— Não acredito em ti, Faunia.
— Isso é contigo. Acabaste o interrogatório?
— Que interrogatório?
— Acerca do pior trabalho que já fiz.
— Ah, com certeza.
E depois Coleman esperou que ela o interrogasse a respeito do facto de
não ser branco. Mas não interrogou. Não parecia, realmente, importar-se
com isso. E não se foi embora. Quando ele lhe contou a história toda,
escutou-o, sem dúvida, mas não por a achar inconcebível, ou inacreditável,
ou sequer estranha e muito menos repreensível. Não. Aquilo a ela parecia-
lhe apenas vida.
Em Fevereiro recebi um telefonema de Ernestine, talvez por ser o Mês da
História dos Negros e ela se ter lembrado de que precisara de me explicar
quem tinham sido Matthew Henson e o Dr. Charles Drew. Talvez pensasse
que era altura de reatar a minha instrução sobre a questão da raça,
abordando em especial tudo aquilo de que Coleman se desligara, aquele
mundo tão transbordante e pronto-a-usar de East Orange, aqueles dez
quilómetros quadrados tão ricos nas mais caras particularidades humanas, a
sólida e lírica base de uma infância e adolescência bem-sucedidas, onde
todas as salvaguardas, as fidelidades, as lutas e a legitimidade eram pura e
simplesmente dados adquiridos, sem nada de teórico, sem nada de
especioso ou ilusório — toda a ditosa substância de um começo feliz,
palpitante de excitação e bom senso, que o seu irmão Coleman destruíra.
Para minha surpresa, depois de me comunicar que Walter Silk e a mulher
chegariam de Asbury Park no domingo, disse-me que, se não me importasse
de viajar até New Jersey, seria bem-vindo para o almoço dominical.
— Sei que queria conhecer Walt e pensei que talvez gostasse de conhecer
a casa. Há álbuns de fotografias. Há o quarto de Coleman, onde ele e Walter
dormiam. As duas camas ainda lá estão. Foi o quarto do meu filho depois
de ser o deles, mas as armações de madeira de bordo ainda são as mesmas.
Estava a ser convidado para ver a abastança da família Silk que Coleman
ejectara, como se fosse a sua escravidão, para viver numa esfera
proporcional à noção que tinha da sua escala, para, em suma, se tornar
alguém diferente, alguém condizente consigo mesmo, e construir o seu
destino subjugado a outra coisa diversa. Ejectara tudo, toda aquela
ramificada negridade, pensando que não poderia removê-la de qualquer
outro modo. Tanta ânsia, tanta trama e paixão, tanta subtileza e simulação,
tudo para saciar a sede de sair de casa e transformar-se.
Tornar-se um novo ser. Bifurcar-se. O drama subjacente à história da
América, o drama intenso que é levantar-se e partir — e a energia e a
crueldade que esse impulso arrebatador impõe.
— Gostaria de ir — respondi.
— Não posso garantir nada — avisou ela. — Mas, você é um homem
adulto, sabe cuidar de si.
— O que está a querer dizer-me? — perguntei, a rir.
— Walter pode estar a caminho dos 80 anos, mas ainda é uma grande e
atroadora fornalha. Não vai gostar do que ele diz.
— A respeito dos brancos?
— A respeito de Coleman. A respeito do mentiroso calculista. A respeito
do filho desnaturado. A respeito do traidor da sua raça. — Você disse-lhe
que ele morreu.
— Resolvi dizer. Sim, disse-lhe. Somos uma família. Disse-lhe tudo.
Poucos dias depois, chegou pelo correio uma fotografia com um bilhete
de Ernestine. "Encontrei isto por acaso e pensei na sua visita. Guarde-a, por
favor, se quiser, como recordação do seu amigo Coleman Sílk. Era uma
desbotada fotografia a preto e branco, com uns dez por doze centímetros,
um instantâneo ampliado, muito provavelmente tirado no quintal de alguém
com um antigo "caixote" Brownie, e mostrava Coleman como a máquina
lutadora que o adversário encontraria à sua frente, no ringue, quando o
gongo soasse. Não devia ter mais de 15 anos, mas com as feições correctas
e cinzeladas que, no homem, tinham parecido tão agarotadamente
cativantes a parecerem, no rapaz, masculinamente adultas. Arvora, como
um profissional, a ameaçadora expressão feroz, o olhar fixo do carnívoro
em busca de presa, num rosto de onde tudo foi apagado excepto o apetite
pela vitória e o talento apurado e astucioso para destruir. Um olhar frio, que
emana dele como uma ordem, apesar de o pequeno queixo pontiagudo estar
encostado, íngreme, ao ombro magro. As luvas estão na posição clássica,
prontas — bem à sua frente, como se não contivessem apenas punhos mas
também todo o ímpeto da sua década e meia -, e a circunferência de cada
uma delas é maior do que a do seu rosto. Temos a sensação subliminar de
estarmos diante de um miúdo com três cabeças. Sou um pugilista, anuncia
atrevidamente a pose ameaçadora, eu não os ponho KO, eu humilho-os
tanto com a minha superioridade que eles deixam de combater. Era,
inequivocamente, o irmão a que ela chamara "Sr. Decidido"; aliás, nas
costas da fotografia, estava escrito precisamente isso, "Sr. Decidido", a tinta
azul muito diluída e numa caligrafia que devia ter sido a da pequena
Ernestine.
Ela também é especial, pensei. Arranjei uma moldura de plástico claro
para a fotografia do juvenil pugilista e coloquei-a em cima da minha
secretária. A audácia daquela família não era exclusivo de Coleman. É um
presente atrevido, pensei, de uma mulher enganosamente atrevida. O que
teria ela em mente ao convidar-me para ir a sua casa? O que teria eu em
mente ao aceitar o convite? Era estranho pensar que a irmã de Coleman e eu
tínhamos apreciado tanto a companhia um do outro — embora fosse
estranho, apenas, se nos lembrarmos de que tudo em Coleman era dez,
vinte, cem mil vezes mais estranho.
O convite de Ernestine, a fotografia de Coleman — foi movido por estas
coisas que me pus a caminho de East Orange no primeiro domingo de
Fevereiro, depois de o Senado não ter votado a favor da impugnação de Bill
Clinton, e foi por isso que me encontrei numa remota estrada da montanha
que geralmente nunca utilizo nas minhas idas e vindas locais de carro, mas
que é um atalho da minha casa para a Route 7. E foi por isso que reparei,
estacionada na berma de um grande campo a que de outro modo não teria
prestado nenhuma atenção, na velha pick-up cinzenta com o autocolante
Prisioneiros de Guerra / Desaparecidos em Combate no pára-choques, que
tive a certeza de só poder ser a de Les Farley. Vi o veículo, soube, não sei
como, que era dele, e, incapaz de seguir simplesmente o meu caminho,
incapaz de registar a sua presença e continuar, travei. Recuei até o meu
carro ficar à frente do dele e estacionei ao lado da estrada.
Creio que nunca me convenci inteiramente de que estava a fazer aquilo
— caso contrário, como poderia tê-lo feito? -, mas já tinham decorrido
quase três meses durante os quais a vida de Coleman Silk esteve mais
próxima de mim do que a minha própria vida, de modo que seria
impensável que eu pudesse estar noutro lugar qualquer a não ser ali ao frio,
no cimo da montanha, parado com a mão enluvada na capota do veículo
que viera velozmente pela faixa errada da estrada e forçara Coleman a
guinar, derrubar o gradeamento de segurança e despenhar-se no rio, com
Faunia a seu lado, na noite anterior ao dia do seu septuagésimo segundo
aniversário. Se aquela era a arma do crime, o assassino não podia estar
muito longe.
Quando compreendi para onde me dirigia — e pensei de novo como era
surpreendente ter notícias de Ernestine, ser convidado para conhecer Walter,
pensar o dia inteiro, e muitas vezes pela noite dentro, em alguém que
conhecera durante menos de um ano e nunca como o mais íntimo dos
amigos -, o curso dos acontecimentos pareceu-me bastante lógico. Isto é o
que acontece quando escrevemos livros. Não se trata apenas de uma coisa
que nos impele a descobrir tudo: há alguma coisa que começa a pôr tudo no
nosso caminho. De súbito, não existe estrada ou travessa que não conduza
directa e abruptamente à nossa obsessão.
E então fazemos o que eu estava a fazer. Coleman, Coleman, Coleman,
você que já não é ninguém rege agora a minha existência. Claro que não
podia ter escrito aquele livro. Já o tinha escrito, o livro era a sua vida.
Escrever pessoalmente é revelar e esconder ao mesmo tempo, mas no seu
caso só podia ser esconder e, por isso, nunca daria resultado. O seu livro era
a sua vida, mas ... e a sua arte? Quando desencadeou as coisas, a sua arte
era ser branco. Ser, segundo as palavras do seu irmão, "mais branco do que
os brancos". Esse foi o seu acto de invenção sem paralelo: acordava todos
os dias para ser aquilo que fizera de si mesmo.
Já quase não havia neve no solo, apenas algumas manchas dispersas, num
rendilhado de teia de aranha, sobre o restolho do extenso campo, sem
nenhum carreiro por onde seguir. Por isso comecei a atravessar, decidido,
para o outro lado, onde havia uma rala fileira de árvores através das quais
entrevia outro campo. Continuei a andar até chegar ao segundo campo,
atravessei-o, e depois atravessei outra fíleira de árvores, desta vez perenes
altas e densas. Do outro lado brilhava o olho reluzente de um lago gelado,
oval e afilado em ambas as extremidades, com colinas acastanhadas e
sarapintadas de neve a toda a volta e as montanhas, de curvas suaves como
se convidassem a carícias, a esbater-se ao longe. Depois de percorrer uns
quinhentos metros a partir da estrada, tinha entrado — ou melhor, invadido,
pois a sensação que tive foi quase a de quem estava a cometer um acto
ilícito _, tinha invadido uma paisagem tão prístina, eu diria até tão pura, tão
serenamente intacta, como a que envolve qualquer extensão de água interior
da Nova Inglaterra. Como esses lugares, que tanto apreciamos por isso
mesmo, dá uma ideia do que o mundo era antes do advento do homem. A
força da natureza é às vezes muito apaziguadora, e este era um lugar
apaziguador, que inspirava uma pausa aos nossos pensamentos habituais,
sem, no entanto, nos atemorizar com a exiguidade da duração de uma vida e
a imensidade da extinção. Era tudo numa escala tranquilizadoramente
situada aquém do sublime. Um homem podia absorver a beleza no seu ser
sem se sentir diminuído ou invadido pelo medo.
Quase no meio da extensão gelada distinguia-se um vulto solitário, de
fato-macaco castanho e boné preto, sentado num balde amarelo baixo e
inclinado para um buraco no gelo, com uma cana de pesca curta nas mãos
enluvadas. Só pisei o gelo quando o vi levantar a cabeça e dar pela minha
presença. Não queria aproximar-me de surpresa, ou dar de algum modo a
impressão de que pretendia fazê-lo, sobretudo se o pescador era, de facto,
Les Farley. Pois se era, não se tratava de alguém que conviesse apanhar de
surpresa.
É claro que pensei voltar para trás. Pensei regressar à estrada, meter-me
no carro, seguir para a Route 7 South, atravessar a Connecticut para a 684 e
daí para a Garden State Parkway. Pensei dar uma vista de olhos ao quarto
de Coleman. Pensei ver o irmão de Coleman, que, pelo que este fez, nem
depois da sua morte conseguia deixar de odiá-lo. Pensei nisso, e só nisso,
enquanto atravessava a extensão de gelo para ver o assassino de Coleman.
Até ao momento em que disse, "Viva, como vai ísso", pensei: Apanhá-lo de
surpresa ou não o apanhar de surpresa, não faz a mínima diferença. De uma
maneira ou de outra; sou o inimigo. O único inimigo neste palco
embranquecido pelo gelo.
— O peixe está a morder? — perguntei.
— Assim-assim, nem muito nem pouco.
Lançou-me apenas um olhar rápido, antes de concentrar de novo a
atenção no buraco, um dos doze ou quinze buracos idênticos abertos no
gelo duro como rocha e espalhados ao acaso pelos cerca de quinze metros
quadrados do lago. Muito provavelmente tinham sido abertos pelo
instrumento que se encontrava caído a poucos passos do balde amarelo, que
na realidade era uma embalagem de detergente de trinta litros. A engenhoca
perfuradora consistia num tubo metálico com cerca de um metro e vinte de
comprimento que terminava numa lâmina cilíndrica larga, em espiral, uma
ferramenta perfurante forte, cuja broca assustadora, que funcionava
accionando uma manivela, na parte de cima, cintilava como nova ao sol.
Um trado.
— Tem a sua utilidade — resmungou. — Ajuda a passar o tempo.
Dir-se-ia que eu não era a primeira pessoa, mas mais provavelmente a
quinquagésima, que aparecia ali no gelo, a meio de um lago situado a cerca
de quinhentos metros de uma estrada interior da região montanhosa rural,
para lhe perguntar como ia a pesca. Como tinha na cabeça um boné de lã
preto muito puxado para baixo, para a testa, e a cobrir-lhe as orelhas, e
usava pêra escura, grisalha, e bigode basto, apenas uma faixa estreita do seu
rosto estava à vista. Se havia alguma coisa especial naquele rosto devia-se à
sua largura: no eixo horizontal, era uma planície oblonga. As sobrancelhas
escuras eram longas e densas, os olhos azuis e muito afastados um do outro
e, centrado acima do bigode, ficava o nariz achatado e não desenvolvido de
um miúdo. Esta estreita faixa de si mesmo que Farley mostrava, entre o
focinho peludo e o boné de lã, bastava para revelar, em actividade, toda a
espécie de princípios, tanto geométricos como psicológicos, e nenhum deles
parecia congruente com os outros.
— Bonito lugar — comentei.
— É por isso que estou aqui.
— Tranquilo.
— Perto de Deus.
— Sim? Sente isso?
Tinha despido a camada exterior, o revestimento da sua ínteríorídade,
parte da disposição em que o surpreendera, e parecia preparado para falar
comigo como se eu fosse mais do que uma mera distracção sem significado.
A sua postura não mudou — continuava a parecer mais concentrado na
pesca do que na conversa -, mas pelo menos um pouco da aura anti-social
foi esbatida pela sua voz, de tom mais rico e meditativo do que eu poderia
ter esperado. Quase se poderia considerar atenciosa, embora de um modo
absolutamente impessoal.
— Estamos muito alto, no cimo de uma montanha. Não há casas em lado
algum. Nenhuma habitação. Não há chalés no lago. — Depois de cada
declaração, uma pausa pensativa: declarações categóricas, silêncio pesado.
Não era possível saber, no fim de cada frase, se ele encerrara ou não a
conversa. — Não há muita actividade por aqui. Não há muito ruído. Quinze
hectares de lago, mais ou menos. Nenhum daqueles tipos com as suas
perfuradoras eléctricas. Nenhum do seu barulho nem do fedor da sua
gasolina. Uns trezentos hectares de boa terra descampada e matas. É uma
bela área. paz e sossego, mais nada. E limpa. É um lugar limpo. Longe de
toda a luía-lufa e loucura que vai por aí. — Finalmente, um erguer de olhos
para me avaliar. Para me medir. Um olhar rápido, noventa por cento opaco e
ilegível e dez por cento de uma transparência alarmante. Não pude discernir
a mais pequena sombra de humor neste homem.
— Enquanto eu puder guardar o segredo — continuou -, permanecerá
como está.
— Tem razão.
— Eles vivem em cidades. Vivem na lufa-lufa da rotina do trabalho. A
loucura de ir para o trabalho. A loucura de estar no trabalho. A loucura de
regressar do trabalho a casa. O trânsito. Os engarrafamentos. Eles estão
presos nisso. Eu estou livre disso.
Não precisei de perguntar quem eram "eles". Eu podia viver longe de
qualquer cidade, podia não ter um trado eléctrico, mas era "eles", todos nós
éramos "eles" — todos menos o homem inclinado naquele lago, a agitar a
curta cana de pesca e a falar para um buraco aberto no gelo, comunicando,
por opção, menos comigo — enquanto "eles" — do que com a água glacial
que se encontrava por baixo de nós.
-De vez em quando pode passar por aqui um caminhante, ou um
esquiador a corta-
-mato, ou alguém como você. Vêem o meu veículo, de uma maneira ou
outra descobrem-
-me aqui e, por isso, vêm na minha direcção, e parece que quando estão
no gelo — pessoas como você, que não pescam ... — levantou de novo os
olhos para avaliar, para adivinhar, gnosticamente, a minha imperdoável
qualidade de "eles". — Suponho que não pesca.
— Não, não pesco. Vi a sua camioneta. Saí para dar uma volta de carro, o
dia está bonito.
— Bem, eles são como você — disse-me, como se não tivesse tido a
mínima dúvida a meu respeito desde o momento em que aparecera na
margem do lago. — Eles aproximam-se sempre quando vêem um pescador,
são curiosos e perguntam-lhe o que pescou. O que eu faço então ...
Mas neste momento a sua mente pareceu hesitar, detida pelo que lhe veio
ao pensamento: Que estou eu a fazer? De que diabo estou eu a falar?
Quando recomeçou, o meu coração partiu de repente à desfilada, esporeado
pelo medo. Agora que lhe estraguei a pescaria, pensei, resolveu divertir-se
comigo. Agora está a representar o seu número. Abandonou a pesca e
passou a ser Les e todas as muitas coisas que ser isso é e não é.
— Como ia dizendo — continuou -, se tenho peixe espalhado no gelo,
faço o que fiz quando o vi. Apanho todos os peixes que pesquei, meto-os
num saco de plástico e meto o saco de plástico no meu balde, neste em que
estou sentado. Assim o peixe fica escondido. E quando as pessoas se
aproximam e perguntam se "o peixe está a morder", eu respondo:
"Não. Acho que não há nada aqui. Posso já ter pescado uns trinta peixes.
Pode ter sido um dia excelente. Mas respondo-lhes: "Não, estou a preparar-
me para me ir embora. Estou aqui há duas horas e nem um mordeu ainda"
E, todas as vezes, eles viram as costas e vão-se embora. Para outro lugar
qualquer. E fazem constar que aquele lago, lá em cima, não presta. Por isso
continua tão secreto. Talvez eu acabe por ser um pouco desonesto ... Mas
este lugar deve ser o segredo mais bem guardado do mundo inteiro.
— E agora eu sei. — Compreendi que não havia maneira possível de o
fazer rir, com cumplicidade, do modo como ludibriava os intrusos como eu,
nenhuma maneira possível de o fazer descontraír-se e sorrir do que dissera,
e por isso não tentei. Compreendi que, embora nada de natureza
verdadeiramente pessoal se tivesse passado entre nós, por decisão sua, se
não minha, ultrapassáramos ambos a fase em que sorrir podia ajudar. Estava
a participar numa conversa que, naquele lugar longínquo, isolado e gelado,
parecia de súbito revesti da da maior importância. — E também sei que está
sentado num mar de peixe — acrescentei. — Nesse balde. Quantos são,
hoje?
— Bem, você parece um homem capaz de guardar um segredo. São
trinta, trinta e cinco.
Sim, você parece um homem fixe. Aliás, creio que o conheço. Não é o
escritor? -Sou, sim.
— Claro. Sei onde mora. Do outro lado do pântano, onde está a garça-
real. Em casa de Dumouchel. No chalé que ele lá tem.
— Comprei-o a Dumouchel. Já que sou um homem capaz de guardar um
segredo, explique-me por que motivo está sentado aqui, neste lugar, e não
ali, naquele? Por que escolhe este lugar, em especial, para pescar em todo
este grande lago gelado? — Embora ele não estivesse, realmente, a fazer
tudo quanto podia para me reter ali, eu, pela minha parte, parecia estar a
fazer tudo quanto podia para não me ir embora.
— Bem, nunca sabemos. Começamos onde os apanhámos a última vez.
Se pescámos peixes na última vez, na seguinte começamos sempre nesse
lugar.
— Então está explicado. Sempre tive vontade de saber isso. — Põe-te a
andar agora, pensei. Já conversaste o que era necessário. Mais do que o
necessário.
Mas a ideia de quem ele era impelia-me a continuar. O facto de ser ele
retinha-me. Isto não era especulação. Isto não era meditação. Isto não era
aquele modo de pensar que é escrever ficção. Isto era a própria coisa. As
leis da prudência que, fora do meu trabalho, tinham regido tão
rigorosamente a minha vida nos últimos cinco anos ficaram, de súbito,
suspensas. Não conseguira voltar para trás enquanto atravessava o gelo e
agora também não podia virar as costas e fugir. Não tinha nada a ver com
coragem. Não tinha nada a ver com razão ou lógica. Ele está aqui: só tinha a
ver com isso. Com isso e com o meu medo. Com o seu pesado fato-macaco
castanho, o seu boné preto, as suas botas de borracha pretas de solas grossas
e as suas duas grandes mãos metidas numas mitenes de caçador (ou de
soldado) de tecido camuflado, está aqui o homem que assassinou Coleman
e Faunia. Tenho a cer-
Tenho a certeza disso. Eles não saíram da estrada e mergulharam no rio
por sua iniciativa. O assassino está aqui. É este. Como posso ir-me embora?
— Encontra sempre peixe? — perguntei-lhe. — Quando regressa ao seu
lugar da vez anterior?
— Não. O peixe desloca-se em cardumes. Por baixo do gelo. Um dia
podem estar no lado norte do lago, no dia seguinte no lado sul.
Ocasionalmente, podem estar no mesmo lugar duas vezes seguidas. Podem
estar ainda no mesmo lugar. A tendência deles, dos peixes, é formar
cardumes e não se mexerem muito, porque a água está muito fria. Têm
capacidade para se adaptarem à temperatura da água e, estando ela tão fria,
não se mexem muito e não precisam de muita comida. Mas se encontramos
uma área onde o peixe está agrupado em cardume, pescamos uma boa
quantidade deles. No entanto, há dias em que voltamos ao mesmo lugar —
nunca é possível cobrir o lago todo -, tentamos em cinco ou seis sítios
diferentes, abrimos buracos, e não pescamos nada. Nem um peixe para
amostra. Não conseguimos, simplesmente, localizar o cardume. Por isso,
limitamo-nos a ficar lá sentados.
— Perto de Deus.
— Exactamente.
Por ser a última coisa que esperava, a sua fluência fascinava-me, assim
como a minúcia com que estava disposto a explicar a vida numa lagoa
quando a água está muito fria. Como soubera que eu era "o escritor"?
Saberia também que tinha sido amigo de Coleman? Saberia também que
tinha ido ao funeral de Faunia? Imaginei que devia haver agora tantas
perguntas na sua cabeça a meu respeito — e da minha missão ali — como
havia na minha a respeito dele. Aquele grande e luminoso espaço arqueado,
a fria cripta acima do solo, no alto de uma montanha cujo cume servia de
berço a uma extensão oval, de bom tamanho, de água doce que, de tão
gelada, se tornara dura como rocha, a actividade imemorial que é a vida de
um lago, que é a formação de gelo, que é o metabolismo dos peixes, todas
as forças silenciosas e eternas inexoravelmente activas ... Era como se nos
tivéssemos encontrado no tecto do mundo, dois cérebros ocultos a trabalhar
desconfiadamente, o ódio e a paranóia mútuos a única introspecção
existente em qualquer lugar.
— E então em que pensa, se não apanha um peixe? — perguntei. — Em
que pensa quando o peixe não morde?
— Eu digo-lhe no que estava a pensar, há pouco. Pensava numa
quantidade de coisas.
Pensava no Willie Manhoso. No nosso presidente e na puta da sua sorte.
Pensava nesse gajo que se safa de tudo e nos gajos que não se safaram de
nada. Que não fintaram o recrutamento e não se safaram. Não me parece
justo.
— O Vietname.
— Sim. Subíamos no caraças dos helicópteros — no meu segundo
período de serviço, fui artilheiro -, e eu estava a pensar naquela vez em que
entrámos no Vietname do Norte para recolher dois pilotos. Estava aqui
sentado a pensar nesse tempo. Willie Manhoso.
Aquele filho da puta. Pensei nesse monte de merda desse filho da puta a
ser lambido na gaita . no Salão Oval, à conta do dinheiro dos contribuintes,
e depois pensei naqueles dois pilotos. Participavam num ataque aéreo ao
porto de Hanói, foram gravemente atingidos e nós recebemos o sinal pelo
rádio. O nosso helicóptero não era sequer um aparelho de salvamento, mas
estávamos nas imediações e eles transmitiram um SOS a dizer que iam
saltar, porque na altitude em que se encontravam se despenhariam se não
saltassem. O nosso aparelho não era sequer de salvamento, era um
helicóptero metralhador, e estávamos apenas a aproveitar uma oportunidade
para tentar salvar duas vidas. Não pedimos sequer permissão para lá ir,
limitámo-nos a ir. Agimos por instinto, em situações destas. Estávamos
todos de acordo, os dois metralhadores, o piloto e o co-piloto, apesar de as
probabilidades não serem muito grandes, em virtude de não termos
cobertura. Mas mesmo assim fomos, para tentar recolhê-los.
Está a contar-me uma história de guerra, pensei. E sabe que está a fazê-
lo. Pretende demonstrar qualquer coisa. Qualquer coisa que quer que eu
leve comigo para a margem, para o meu carro, para a casa cuja localização
conhece e deseja que eu saiba que conhece. Que leve comigo como "o
escritor"? Ou como qualquer outra pessoa — como alguém que conhece um
segredo dele ainda maior do que o segredo desta lagoa? Quer que eu saiba
que não são muitas as pessoas que viram o que ele viu, estiveram onde ele
esteve, fizeram o que ele fez e, se for preciso, voltará a fazer. Assassinou no
Vietname e trouxe o assassino com ele para os Berkshire, trouxe-o consigo
do país da guerra, do país do horror, para este outro lugar completamente
desprovido de compreensão.
O trado ali, no gelo. A franqueza do trado. Não podia haver
materialização mais sólida do nosso ódio do que o implacável aspecto
acerado daquele trado, ali, no meio de nenhures.
_ Pensámos, pronto, vamos morrer, vamos morrer. Por isso descolámos,
fomos direitos aos seus sinais, vimos um pára-quedas, descemos na clareira
e recolhemos o tipo sem o mínimo problema. Ele saltou para dentro,
puxámo-lo e levantámos voo, sem nenhuma oposição. Perguntámos-lhe:
"Fazes alguma ideia?" E o tipo respondeu: "Bem, o vento levou-o naquela
direcção" Por isso ganhámos altitude, mas entretanto eles já sabiam que
estávamos ali. Subimos um pouco mais, à procura do outro pára-quedas, e
então rebentou um pandemónio dos diabos. Inacreditável. Não recuperámos
o outro tipo. O helicóptero ficou sob fogo de todos os lados. Metralhadoras.
Fogo do solo. Tivemos de dar a volta e fugir dali o mais depressa que
pudemos. E lembro-me de o tipo que recuperáramos ter começado a chorar.
É aqui que quero chegar. Ele era piloto da Marinha. Tinham vindo os dois
do Forrestal. E ele sabia que o outro tinha sido morto ou capturado e
começou a berrar. Era horrível para ele. O seu parceiro. Mas nós não
podíamos voltar para trás. Não podíamos pôr o helicóptero e cinco gajos em
perigo. Fora uma sorte termos salvo um. Por isso regressámos à nossa base,
desembarcámos e contámos cento e cinquenta e um buracos de bala no
aparelho. Cento e cinquenta e um buracos e nem uma linha hidráulica, nem
uma linha de combustível atingidas. Mas os rotores estavam todos crivados,
cheios de furos. Um pouco torcidos. Se tivessem atingido o rotor da
retaguarda tínhamos caído, mas não atingiram. Sabia que abateram cinco
mil helicópteros durante aquela guerra? Perdemos dois mil e oitocentos
bombardeiros a jacto. Duzentos e cinquenta B-52 em bombardeamentos a
grande altitude sobre o Vietname do Norte. Mas o governo nunca lhe dirá
isso. Isso, não. Dir-lhe-á apenas o que lhe convier. Nunca é o Willie
Manhoso quem é apanhado. Quem é apanhado é o tipo que vai combater.
Sempre, sempre. Não me parece justo. Sabe o que estava a pensar? Estava a
pensar que se tivesse um filho ele estaria agora aqui comigo. A pescar no
gelo. Era isso que estava a pensar quando você chegou. Levantei os olhos,
vi alguém aproximar-se e, como estava a modo que a sonhar acordado,
pensei: Podia ser o meu filho. Não você, não um homem como você, mas o
meu filho.
— Não tem um filho?
— Não.
— Nunca casou?
Desta vez não me respondeu logo. Olhou para mim como se eu tivesse
um sinal que dispararia como o dos dois pilotos que saltaram de pára-
quedas, mas não respondeu. Porque ele sabe, pensei. Sabe que estive no
funeral de Faunia. Alguém lhe disse que "o escritor" esteve lá. Que espécie
de escritor pensa que sou? Um escritor que escreve livros acerca de crimes
como o dele? Um escritor que escreve livros acerca de assassinos e
assassínios?
— Condenado — disse por fim, a olhar de novo para o buraco no gelo e a
sacudir a cana de pesca, a sacudi-la com um movimento do pulso cerca de
uma dúzia de vezes. — O casamento estava condenado. Regressei do
Vietname muito cheio de raiva e ressentimento. Tinha PSPT. Tinha aquilo a
que chamam Perturbação de Stresse Pós-Traumático. Foi o que me
disseram. Quando voltei, não queria conhecer ninguém. Voltei incapaz de
me relacionar fosse com o que fosse que se passava aqui, no que dizia
respeito a vida civilizada. Uma coisa completamente louca. Como se lá
tivesse ficado tempo de mais. Roupas limpas, pessoas que
cumprimentavam, pessoas que sorriam, pessoas que iam a festas e pessoas
que conduziam carros, tudo isso eram coisas estranhas, com as quais
deixara de saber lidar. Não sabia falar com ninguém, não sabia
cumprimentar ninguém. Isolei-me durante muito tempo. Costumava meter-
me no carro, guiar por aí, ir para as matas, caminhar por lá ... Era
estranhíssimo. Afastei-me de mim mesmo. Não fazia a mínima ideia do que
me estava a acontecer. Os meus amigos telefonavam-me e eu não respondia.
Eles tinham medo de que eu morresse num acidente de viação, tinham
medo de que eu ...
Interrompi-o:
— Tinham medo de que morresse num acidente de viação porquê?
— Eu andava a beber. Bebia e conduzia.
— Alguma vez esteve envolvido num acidente de viação?
Sorriu. Não fez nenhuma pausa para me observar. Não me lançou
nenhum olhar particularmente ameaçador. Não se levantou num repente
para me deitar as mãos ao pescoço. Sorriu apenas um pouco, com um
sorriso em que havia mais cordialidade do que imaginava poder existir nele.
Encolheu os ombros, num gesto deliberadamente despreocupado, e disse:
_ Essa é difícil. Eu não sabia o que me estava a acontecer, compreende?
Acidente?
Envolvido num acidente? Creio que, se tivesse estado, nem teria dado por
isso. Suponho que não. Quando sofremos daquilo a que chamam
Perturbação de Stresse Pós-Traumático, vem-nos com frequência ao
subconsciente a ideia de que estamos de novo no Vietname, de que estamos
de novo na guerra. Eu não sou um homem instruído. Nem sequer sabia isso.
As pessoas chateavam-se muito comigo por isto e por aquilo, mas também
não sabiam pelo que eu estava a passar, assim como eu próprio também não
sabia, compreende? Não tenho amigos instruídos que sabem essas coisas.
Os amigos que tenho são uns idiotas. Meu Deus, aposto o que quiser que
são garantidamente cem por cento idiotas, e se não forem pago-lhe a dobrar.
— De novo o encolher de ombros. Divertido? Com a intenção de parecer
divertido? Não, tratava-se mais de uma tendência despreocupada para o
humor negro. Que posso eu fazer? — perguntou, em tom de impotência.
A enganar-me. A gozar comigo. Porque sabe que eu sei. Os dois ali
sozinhos, naquele ermo, e eu sei e ele sabe que eu sei. E o trado sabe. Tudo
o que sabes e tudo o que precisas de saber, tudo inscrito na espiral da sua
lâmina de aço em saca-rolhas.
— Como descobriu que sofria de PSPT?
_ Uma rapariga de cor da Administração dos Veteranos. Desculpe, uma
afro-americana.
Uma afro-americana muito inteligente, com um mestrado. Você tem um
mestrado? -Não.
_ Bem, ela tem e foi assim que eu fiquei a saber o que tinha. Se não fosse
isso, continuaria sem saber. Foi assim que comecei a aprender coisas a meu
respeito, aquilo por que estava a passar. Eles disseram-me. E não apenas eu.
Não pense que era só eu. Milhares e milhares de tipos a passar pelo mesmo
que eu. Milhares e milhares de tipos a acordar no meio da noite como se
estivessem de novo no Vietname. Milhares e milhares de tipos a quem
pessoas telefonam e eles não respondem. Milhares e milhares de tipos com
estes sonhos horríveis. Eu disse isso à tal afro-americana e ela compreendeu
o que era. Como possuía o tal mestrado, soube explicar-me que isso estava
a passar-se no meu subconsciente e que acontecia o mesmo a milhares e
milhares de outros tipos. O subconsciente. Não o podemos controlar. É
como o governo. É o governo. É o governo escrito e escarrado. Leva-nos a
fazer o que não queremos. Milhares e milhares de tipos a casarem e os seus
casamentos condenados, porque têm essa raiva e esse ressentimento no
subconsciente. Ela explicou-me tudo isso. No Vietname meteram-me num
jacto C-41 da Força Aérea para as Filipinas e aí num jacto da World
Airways para a Base da Força Aérea de Travis, e depois deram-me duzentos
dólares para voltar para casa. Desse modo, levei, digamos, uns três dias do
Vietname para casa. Regressamos assim à civilização. E estamos
condenados. E a nossa mulher, mesmo que tenham passado dez anos, está
condenada. E que raio fez ela para estar condenada? Nada.
— Ainda sofre de PSPT?
— Bem, ainda tenho tendência para me isolar, não tenho? O que lhe
parece que estou aqui a fazer?
— Mas já não bebe e conduz — ouvi-me dizer. — Acabaram-se os
acidentes.
— Nunca houve acidentes. Não me ouviu? Já lhe disse isso. Pelo menos
que eu saiba.
— E o casamento estava condenado.
— Oh, sim. Por minha culpa. Cem por cento por minha culpa. Ela era
uma mulher adorável. Absolutamente irrepreensível. A culpa foi minha. Só
minha. Ela merecia alguém melhor, muito melhor do que eu.
— Que lhe aconteceu?
Abanou a cabeça. Um encolher de ombros triste, um suspiro: farsa
absoluta, farsa deliberadamente transparente.
— Não faço ideia. Fugiu, eu assustava-a tanto que fugiu. Morta de medo.
O meu coração está com ela, onde quer que se encontre. Ela não teve culpa
nenhuma, era uma pessoa absolutamente irrepreensível.
— Não teve filhos.
— Não, não tive filhos. E você?
— Não.
— Casado?
— Fui.
— Então estamos os dois no mesmo barco. Livres como o vento. Que
género de livros escreve? Policiais?
— Eu não diria isso.
— Histórias verdadeiras?
-Às vezes.
— O quê? Romances? — perguntou, sorrindo. — Espero que não sejam
pornográficos. -
Fingiu que a ideia lhe desagradava tanto que só imaginá-la o
incomodava. — Espero sinceramente que o nosso escritor local não esteja
lá em cima, na casa de Mike Dumouchel, a escrever e publicar pornografia.
— Escrevo a respeito de pessoas como você.
— A sério?
— Sim. De pessoas como você. Dos problemas delas.
— Diga-me o nome de um dos seus livros.
— A Mancha Humana.
— Sim? Posso arranjá-lo?
— Ainda não saiu. Ainda não o acabei.
— Vou comprá-lo.
— Eu envio-lhe um. Como se chama?
_ Les Farley. Pois sim, envie-mo. Quando o acabar, envie-o ao cuidado
da garagem municipal. Garagem Municipal, Route 6. Les Farley. — Estava
outra vez a espicaçar-me, a provocar-me, de certo modo a provocar toda a
gente, a si mesmo e aos seus amigos. O nosso escritor local- disse, ao
mesmo tempo que começava a rir da ideia. — Eu e os meus amigos
havemos de lê-lo. — Não se podia dizer, verdadeiramente, que risse alto,
era mais um mordiscar na isca de uma sonora e franca gargalhada, um
tactear à volta dela, do que cravar-lhe deveras os dentes. Perto do anzol da
hilaridade perigosa, mas não O suficiente para o engolir.
— Espero bem que sim.
Não podia, pura e simplesmente, virar as costas e afastar-me. Não
naquela atmosfera, não com ele a libertar-se, ainda que muito tenuemente,
de um pouco mais do anonimato emocional, não com a possibilidade
acenada de espreitar um pouco mais no interior da sua mente.
— Como era você antes de ir para a guerra? — perguntei-lhe.
— É para o seu livro?
_ Sim, sim. — Eu ri-me alto. Sem mesmo o querer, com uma ridícula e
vigorosa explosão de desafio, disse estupidamente: — É tudo para o meu
livro.
E desta vez ele riu-se também, com mais abandono. Naquele lago
transformado em manicómio.
— Era um tipo sociável, Les?
— Sim, era.
— Com pessoas?
— Sim.
— Gostava de passar um bom bocado com elas?
_ Sim. Tinha montes de amigos. Gostava de carros velozes. Você sabe,
esse tipo de coisas. Trabalhava como um louco, mas quando não estava a
trabalhar, sim. — E todos vocês, veteranos do Vietname, pescam no gelo?
— Não sei.
De novo o mordiscar do riso. É mais fácil para ele matar alguém, pensei,
do que soltar-
-se, abandonar-se a um divertimento verdadeiro.
_ Não comecei há muito tempo a pescar no gelo — explicou. — Foi
depois de a minha mulher fugir. Aluguei uma pequena cabana no meio da
mata, em Dragonfly. Mesmo à beira da água, na lagoa de Dragonfly. Toda a
minha vida pesquei no Verão, mas nunca me interessei muito por pescar no
gelo. Sempre achei que era demasiado frio, compreende? Por isso, no
primeiro Inverno que vivi na lagoa — e nesse Inverno eu não estava em
mim, por causa da maldita PSPT -, observei um pescador no gelo, a andar
por ali a pescar. Observei-o umas duas vezes e, um dia, vesti a minha roupa
de pesca, fui até lá e vi que o tipo estava a apanhar uma quantidade de
peixe, percas amarelas, trutas, tudo. E disse para comigo, esta pesca é tão
boa como a de Verão, se não ainda melhor. Basta vestir a quantidade de
roupa adequada e arranjar o equipamento certo. Meu dito, meu feito. Fui à
cidade e comprei um trado, um belo trado — apontou-o -, canas de pesca,
engodos. Há centenas de tipos de engodos. Centenas de fabricantes e
marcas diferentes. De todos os tamanhos. Abrimos um buraco no gelo e
descemos o nosso engodo preferido, com a isca ... é apenas um movimento
da mão, basta fazer a cana subir e descer. Porque, como sabe é escuro lá em
baixo, sob o gelo. Oh, é mesmo muito escuro — disse-me e, pela primeira
vez durante a nossa conversa, olhou-me não com muita, mas com muito
pouca opacidade no rosto, muito pouca dissimulação, muito pouca
duplicidade. Na sua voz havia uma surpreendente ressonância arrepiante,
quando frisou: — Realmente escuro. — Uma arrepiante e surpreendente
ressonância que tornou claro tudo quanto se relacionava com o acidente de
Coleman. — Por isso, os peixes são atraídos por qualquer espécie de brilho
— acrescentou. — Suponho que se adaptam àquele ambiente escuro.
Não, ele não é estúpido. É um bruto, um assassino, mas não tão idiota
como eu pensava. Não é um cérebro que lhe falta. Aliás, seja sob que
disfarce for, raramente é um cérebro que falta.
— Porque precisam de comer — explicava-me, cientificamente. —
Encontram comida lá em baixo. E os seus corpos conseguem adaptar-se
àquela água glacial e os seus olhos àquela escuridão. São sensíveis ao
movimento. Se vêem qualquer espécie de clarão ou, talvez, sentem as
vibrações do movimento do engodo, são atraídos para ele. Sabem que se
trata de alguma coisa viva e pode ser comestível. Mas se não o sacudimos,
não apanhamos nada. Sabe, se eu tivesse um filho, como lhe disse que
estava a pensar, ensinava-lhe esse movimento do pulso. Ensinava-o a
colocar o engodo. Há diferentes tipos de engodo, na sua maioria larvas de
moscas ou abelhas criadas para pesca no gelo. Iríamos ao armazém, eu eLes
[úníor, e comprávamo-las na secção de artigos de pesca no gelo. Vêm numa
pequena taça. Se eu o tivesse agora, se tivesse o meu pequeno Les, em vez
de estar condenado a sofrer a vida inteira desta puta desta PSPT, estaria aqui
com ele, a ensinar-lhe todas essas coisas. A ensinar-lhe a usar o trado. —
Apontou para a ferramenta, que continuava no gelo, atrás dele, um nadinha,
apenas, fora do seu alcance. — Uso um trado de doze centímetros e meio.
Fabricam-nos de dez a vinte centímetros. Eu prefiro um buraco de doze
centímetros e meio. É perfeito. Nunca tive nenhum problema para tirar um
peixe de um buraco desse tamanho. Quinze centímetros é um pouco grande
de mais. As lâminas são dois centímetros e meio mais largas, o que pode
não parecer muito, mas se olhar para o trado de doze centímetros e meio ...
espere, eu mostro-lhe. — Levantou-se e foi buscar o trado. Apesar do fato-
macaco acolchoado e das botas que aumentavam a sua estatura de homem
relativamente baixo e entroncado, movimentou-se com agilidade no gelo,
levantou o trado com uma das mãos, como se levantasse o bastão do campo
enquanto corria para o banco depois de desviar uma bola alta. Aproximou-
se de mim e levantou a comprida e brilhante broca do trado à altura do meu
rosto. — Olhe. Aqui está.
Ali estava. Ali estava a origem. Ali estava a essência. Ali estava.
— Se comparar um trado de doze centímetros e meio com outro de
quinze centímetros — continuou -, verifica que há uma grande diferença.
Quando se fura gelo com uma espessura de trinta a quarenta e cinco
centímetros à mão, requer muito mais esforço usar um trado de quinze
centímetros do que um de doze centímetros e meio. Com este posso furar
quarenta e cinco centímetros de gelo em cerca de vinte segundos. Se as
lâminas estão em bom estado e afiadas. O mais importante é ter as lâminas
bem afiadas. Devemos mantê-las sempre bem afiadas.
Acenei com a cabeça.
— Está frio, aqui no gelo.
— Não tenha dúvida.
— Só agora dei por isso. Começo a ter frio. Tenho a cara gelada. Estou a
ficar gelado.
Acho melhor ir andando.
Dei o primeiro passo para trás, a afastar-me da faixa estreita de gelo
enlameado que o cercava e ao buraco onde estava a pescar.
— Acho bem. Agora já sabe como se pesca no gelo, não é verdade?
Talvez resolva escrever um livro a esse respeito, em vez de um policial.
Recuando, meio passo arrastado de cada vez, afastei-me cerca de um
metro, metro e meio, na direcção da margem, mas ele continuou a segurar o
trado com uma mão, de broca ainda levantada à altura onde os meus olhos
tinham estado. Completamente dominado, ia-me afastando.
— E agora também conhece o meu lugar secreto. Sabe tudo. Mas não vai
dizer a ninguém, pois não? É agradável termos um lugar secreto. Não
falamos dele a ninguém. Aprendemos a não dizer nada.
— Comigo o segredo fica bem guardado — afirmei.
— Há um regato que desce da montanha e corre sobre ressaltos. Falei-lhe
nisso? Nunca localizei a sua nascente. É um curso de água constante, que
desce de lá para aqui, para o lago. Há um desaguadouro no lado sul do lago,
por onde a água se escoa. — Apontou com o trado, que continuava a apertar
com força com a mitene que lhe cobria parcialmente a grande mão. — E
depois há numerosas nascentes sob o lago. A água sobe lá de baixo, de
modo que está sempre a circular. Renova-se e limpa-se assim. Os peixes
precisam de água limpa para sobreviverem e tornarem-se grandes e
saudáveis, e este lugar possui todos esses ingredientes. E todos eles obra de
Deus. O homem não teve nada a ver com o assunto. É por isso que isto aqui
é limpo e eu venho para cá. Afasta-te daquilo em que o homem pôs a mão,
é o meu lema. O lema de um tipo cujo subconsciente está atulhado de PSPT.
Longe do homem, perto de Deus. Por isso, não se esqueça de guardar
segredo deste meu lugar secreto. Um segredo só se torna conhecido se o
contamos, Mr. Zuckerman.
— Percebi.
— Ah, Mr. Zuckerman ... o livro.
— Que livro?
— O seu livro. Mande-mo.
— Faça de conta que já o tem, está no correio — respondi, e comecei a
andar pelo gelo fora. Ele continuava atrás de mim, ainda com o trado na
mão, enquanto eu me afastava devagar. Era uma longa distância. Mesmo
que conseguisse percorrê-la, sabia que os meus cinco anos, passados
sozinho em minha casa, tinham chegado ao fim. Sabia que, se e quando
acabasse o livro, teria de ir viver para outro lado.
Uma vez alcançada a margem em segurança, voltei-me para olhar para
trás e ver se, afinal, ele ia seguir-me até ao interior da mata e acabar comigo
antes de eu ter a minha oportunidade de entrar na casa da infância de
Coleman Silk e, como Steena Palsson antes de mim, sentar-me com a sua
família de East Orange como seu convidado branco para o almoço
dominical. Bastou-me estar voltado para ele para sentir de novo O terror
daquele trado — mesmo com Les Farley novamente sentado no seu balde: o
branco gelado do lago cercando um ponto minúsculo que era um homem, o
único indicador humano de toda a natureza, como o X da assinatura de um
analfabeto numa folha de papel. Ali estava, se não a história toda, pelo
menos o quadro inteiro. Só raramente, no fim do nosso século, a vida
oferece uma visão tão pura e pacífica como esta: um homem solitário
sentado num balde, a pescar através de quarenta e cinco centímetros de
espessura de gelo num lago cuja água se renova constantemente no cume de
uma montanha arcadiana, na América.
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NOTAS
(1)Okie era o nome dado na época, em geral depreciativamente, aos
trabalhadores agrícolas migrantes, sobretudo de Okhlaoma. Dust Bowl é
uma região que os ventos, as tempestades de areia e a seca tornam árida. (N.
T.)
(2)Palavra que, além de "fantasma", "espectro", é também termo de calão

depreciativo para designar "preto", e ainda, embora já menos usado, "agente


secreto", "espião", sobretudo referindo-se a agentes da CIA. (N. T.)
(3)Parte de um poema de John Keats, intitulado La Belle Darne sans

Merci: "Vi pálidos reis e príncípes também, / Pálidos guerreiros,


mortalmente pálidos, todos; / Gritavam: "La Belle Dame sans Merci / Tem-
vos escravizado," (N. T.)
(4)Há um jogo de palavras que se perde. A expressão usada pelo autor —

Old Smoky — é termo de calão para "pénis" (montada no velho Smoky) e


também para "cadeira eléctrica", e daí a referência ao "choque", (N. T.)
(5)Sigla de United Service Organizations. (N. T.)
(6)Abreviatura de Certified Documents Examiner. (N. T.)
(7)Lily-white: além do sentido literal de pessoa impecável, pura, aplica-se

também a quem é a favor da exclusão ou segregação dos negros. Há, ou


houve, restaurantes, bairros, etc. lily-white, assim como uma facção sulista
do Partido Republicano favorável à exclusão dos negros da vida política. (N
T)
(8)Silk, significa seda e silky, o adjectivo, sedoso, macio como seda,

insinuante, etc, (N. T.)


(9)Actor e dramaturgo, autor da canção "Yankee Doodle Dandy", (N. T.)
(10)U de unconventional: não convencional, sem convencionalismos. (N.

T)
11. As Três Gordas. (N. T.)
12. É um solidéu, como a quipá, mas usado sobretudo pelos judeus
ortodoxos, homens ou rapazes. (N. T.)

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