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Os P a sso s em V olta

H erberto H eld er

a
Herberto Helder

Os passos em volta

azougue editorial
2005
Copyright © 1994 Assírio & Alvim e Herberto Helder
Copyright desta edição © 2004 Azougue Editorial

projeto gráfico
Sergio Cohn

capa
Araci Queiroz e Sergio Cohn
(gracias a Gen Snyder pelo middle way)

fotografias da capa
Eduardo Monteiro (www.fotonauta.com.br)

foto do autor
arquivo pessoal Herberto Helder

revisão
Graziela Marcolin e Sebastião Edson Macedo

logotipo da editora baseado


no poema “asa” de Rodrigo Linares

H412p
Helder, Herberto. 1930-
Os passos em volta —
Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.
ISBN 85-88338-47-5
1. Literatura Portuguesa. I. Título
05-0213 CDD: 869.3
CDU: 821.134.3-3

www.azougue.com.br
Uma investigação singular
por Sérgio Cohn 7

Estilo 11
Holanda 15
Teoria das cores 21
Polícia 23
O grito 29
Os comboios que vão para Antuérpia 39
Lugar lugares 43
O celacanto 49
Escadas e metafísica 55
Doenças de pele 61
Descobrimento 67
Aquele que dá a vida 73
Como se vai a Singapura 87
Teorema 93
Cães, marinheiros 99
Equação 103
O quarto 109
Vida e obra de um poeta 115
Duas pessoas 121
Poeta obscuro 151
Coisas elétricas na Escócia 135
Brandy 139
Trezentos e sessenta graus 145

Sobre o autor 151


Teorema

El-rei D. Pedro, o Cruel, está à janela, sobre a praça


onde sobressai a estátua municipal do marquês de Sá da
Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puse­
ram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das cos­
tas, mas endireito a cabeça, viro o pescoço para o lado
esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu
pobre Senhor. Por baixo da janela aonde assomou há uma
outra, em estilo manuelino, uma relíquia, delicada obra de
pedra que resiste ao tempo. D. Pedro deita a vista distraída
à praça fechada pelos soldados. Contempla um momento
a monstruosa igreja do Seminário, retórica de vidraças e
nichos, as pombas pousadas na cabeça e nos braços do
marquês, e detém-se em mim, em baixo, em mim que me
ajoelhei no meio de um grupo de soldados. O rei olha-me
com simpatia. Fui condenado por assassínio da sua aman­
te favorita, D. Inês. Alguém quis defender-me, alegando
que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da
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influência castelhana. Tolice. Não me interessa o Reino.


Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. Ele diz
um gracejo. Toda a gente ri.
—Preparem-me esse coelho, que tenho fome.
O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é
Coelho.
O que este homem trabalhou pela nossa obra! Fez
transportar o cadáver da amante de uma ponta à outra do
país, às costas do povo, entre tochas e cânticos. Foi um
espetáculo sinistro e exaltante através de cidades, vilas e
lugarejos.
Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu
Senhor. Fico em pé, defronte do edifício. Distingo no rés-
do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigo­
de louro que veio à porta assistir ao meu suplício. Distingo
também a janela manuelina e o rei esmagado entre os blo­
cos dos dois prédios ao lado.
—Senhor —digo eu - agradeço-te a minha morte. E
ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso para que o
teu amor se salvasse.
—Muito bem —responde o rei. ~ Arranquem-lhe o
coração pelas costas, e tragam-mo.
De novo me ajoelho entre os pés dos carrascos que
andam de um lado para outro. Ouço as vozes do povo, a
sua ingênua excitação. Escolhem-me um sítio nas costas
para enterrar o punhal. Estremeço. Foi o punhal que en­
trou na carne e me cortou algumas costelas. Uma pancada
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de alto a baixo, um sulco frio ao longo do corpo —e vejo o


meu coração nas mãos de um carrasco. Um moço do rei
espera com a bandeja de prata batida junto à minha cabe­
ça, e nela depõem o coração fumegante. A multidão grita
e aplaude; só o rosto de D. Pedro está triste, embora nele
brilhe uma súbita luz interior de triunfo. Percebo como
!udo está ligado, como é necessário as coisas se completa­
rem. Não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto eu
ser um assassino e o meu país ser católico. Matei por amor
do amor —e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante
são também criaturas infernais. Só a mulher do rei, D.
Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a
estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.
O moço sobe a escada com a bandeja onde o meu
coração parece um molusco sangrento. D. Pedro volta-se,
a bandeja aparece junto ao parapeito da janela. O rei sorri.
Ergue o coração na mão direita e mostra-o ao povo. O
sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo.
Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é
uma grande responsabilidade encontrar-se alguém à cabe­
ça de um povo assim. Felizmente o rei está à altura do
cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxi­
ma da terra. Somos também um povo cheio de fé. Temos
fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eterni­
dade. Somos todos loucos.
Tombei com a face direita sobre a calçada e, mo­
vendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito
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azul de céu acima dos telhados. Uma pomba passa diante


da janela manuelina. O cláxon de um automóvel expande-
se liricamente no ar. Estamos nos começos de junho. Ain­
da é primavera. A terra está cheia de seiva. A terra é eter­
na. À minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que
me cortem o pênis. Um moço vai pedir autorização ao rei,
mas ele recusa.
— Só o coração —diz. E levanta-o de novo, e depois
trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-
me assassino, cão, encomenda-me a alma ao Diabo. Eu
gostaria de poder agradecer a esta gente bárbara e pura as
suas boas palavras violentas.
Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro,
os maxilares movem-se devagar. O rei come o meu cora­
ção. O barbeiro saiu do estabelecimento e está agora a
meio da praça, com a bata branca, o bigode louro, vendo
D. Pedro comer o meu coração cheio de inteligência do
amor e da eternidade. O marquês de Sá da Bandeira é que
ignora tudo, verde e colonialista no alto do plinto de grani­
to. As pombas voam em redor, pousam-lhe na cabeça e
nos ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, de­
pois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e
justiça. O povo aclama-o mais uma vez, e dispersa. Os
soldados também partem. E eu fico só para enfrentar a
noite que se aproxima. Esta noite foi feita para nós, para o
rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa
dos nossos crimes e do comum amor à eternidade. O rei
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estará insone nos seus aposentos, sabendo que amará para


sempre a minha vítima. Talvez lhe não termine aí a inspi­
ração. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força de fogo inte­
rior, e a paixão há-de alastrar pela sua vida, cada vez mais
funda e mais pura. E eu também irei crescendo na minha
morte, irei crescendo dentro do rei que cometi o meu cora­
ção. D. Inês tomou conta das nossas almas. Liberta-se do
casulo carnal, transforma-se em luz, em labaredas, em nas­
cente viva. Entra nas vozes, nos lugares. Nada é tão
incorruptível como a sua morte. N o crisol do inferno
havemos de ficar os três perenemente límpidos. O povo
só terá de receber-nos como alimento, de geração em gera­
ção. Que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado
para aqui.

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