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A145v

Abreu, Caio Fernando 1948-1996

A vida gritando nos cantos : crônicas inéditas em livro (1986 – 1996) / Caio Fernando Abreu. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2012.

ISBN 978-85-209-3571-2

1. Crônica brasileira. I. Título.


CDD: 869.98
CDU: 821.134.3(81)-8
Caio Fernando Abreu

A vida gritando
nos cantos
Crônicas inéditas em livro (1986-1996)

Apresentação Italo Moriconi


Pesquisa de originais Lara Souto Santana e Liana Farias
Sumário

Capa
Ficha catalográfica
Folha de Rosto
Nota editorial
Escrita vertiginosa
1986-1988
Pra machucar os corações
Meus amigos são um barato
Meu deus, são estrelas demais!
Ah, bossa-nova, new-bossa…
A vida é uma brasa, mora?
Cola-chata-da-sanguinha
Eu existo! Existo?
Amizade telefônica
Meu amigo Cláudia
Um remédio que dá alegria
Diário de bordo
Por falar em estrelas…
Uma semana-Fassbinder
Em nome dos dragões
Fragmentos de um domingo
Um sonho regado a gim
Lamúrias com chantili
Então vamos continuar dançando
Bye-bye, 10ª mostra
Sexo: mais ou menos?
O movimento do tempo
Palavras ao vento
Caetano, caetanagem
O girassol e a greve
Gente deve ser bom
Dezenas de obrigados
Com afeto e mau humor
São Paulo, 40 graus
Nem só de Aurelião…
Onde andará Lyris Castellani?
Beta, beta, Bethânia
Um prato de lentilhas
Anjos da barra pesada
Suspiros de domingo
No coração do Brasil
Diário de bordo II
Querem acabar comigo
Doris, Antonio e Vera
Nos trilhos do tempo
Pílulas calientes
Cenas na beira de um abismo
Me leva pro céu, Luni!
Verão de julho
A novela da novela
Para embalar John Cheever
Que depois de me ler
Caleidoscópio Rita
Adeus, agosto. Alô, setembro
Cenários em ruínas
Safra de abobrinhas
Felizes para sempre
Se eu quiser falar com Deus
Um cantinho, um violão, uma Narinha
Ninguém merece Jânio Quadros
Vamo comer Caetano?
Ao som de Suzanne Vega
Sem via de acesso
Vamos tirar o rodenir?
Despedida provisória
Nos amávamos tanto
Mas que tempo é esse?
Bancarrota blues
Anotações depois do Carnaval
Em todas as direções
Cine Brasil: sonho e romance
Venha ver os dragões
1993-1996
À nossa mais completa tradução
Reflexões à porta de um canil
Samba-enredo para um Carnaval de horror
Adivinhem quem vem para roubar
Um presente lindaço para São Paulo
Tese de mestrado à holandesa
Na cama por causa de Madonna
Levantando a cortina de papel vegetal
Sugestão para cair na real… e depois sair
1994: um ano para a literatura
Marina Lima enfrenta o Brasil-Barbie
Para Dulcineia, que nunca foi del Toboso
Pra cima com a câmera, moçada!
Viva o império das coroas magníficas!
De laços, seios, sábados e tormentas
Negro amor ao som de Bruce Springsteen
Confissões de um lusófobo enfurecido
Entre a Frau do mal e a “Jente” do bem
Afinal, quem era mesmo Lolita Torres?
Apresentando Álvaro Caldas, escritor
Lolita, Lisboa y otras cositas más
Na trilha dos mistérios de Clarice
Delírio eleitoral à beira do ridículo
Os onze sexos de um anjo terapeuta
Para Rita Lee, com amor e irritação
Ney Matogrosso, muito além do bustiê
Feliz em conhecê-la, Natália Lage
Reza forte para um egum maldespachado
Vamos voltar a falar em poesia?
Betty Crawford, Ph.D. em Najice Comparada
De volta ao avesso do avesso do avesso
Inútil pranto por Santa Teresa
Tentativa de sitiar uma esquisitice
Picadinho para aquecer o inverno
A vaia consagradora de Denise Stoklos
Para mãe Sonia de Oxum Apará
Entrevisão do trem que deve passar
A cara do Brasil em Terra estrangeira
Tirando o pó do velho 1995
Crônicas sem data
Cor-de-rosa, uma ova!
Muito além do bordô
Clarice Lispector ress... (sem título completo e sem data)
Por aquelas escadas subiu feito uma diva
Caio F.
Créditos
Nota editorial
Caio Fernando Abreu é considerado por muitos um dos autores de maior expressão das décadas
de 1970 a 1990. E não é para menos. Embora ele próprio tenha exclamado, em carta ao amigo
José Márcio Penido, “Meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha geração”, o
que escreveu não é absolutamente datado. Seus contos, crônicas, romances, poemas e peças de
teatro transitam por temas altamente atuais, ao mesmo tempo que abordam questões universais,
atemporais. Não é à toa que a cada dia vêm ganhando novos fãs, das mais variadas idades,
seduzidos por suas ideias e ideais.
Pensando nesse público renovado, a Nova Fronteira apresenta agora este A vida gritando
nos cantos, uma coletânea de crônicas inéditas em livro, publicadas no jornal O Estado de S.
Paulo entre 1986 e 1996. Elas gravitam em torno de temas como amor, morte, política,
sexualidade e solidão, segundo a ótica e a dicção inconfundíveis de Caio Fernando Abreu, ou
apenas Caio F. — como ele assinava esses seus textos.
As crônicas que compõem esta antologia foram garimpadas no periódico paulista pelas
pesquisadoras Liana Farias e Lara Souto Santana, a quem agradecemos pela dedicação e pelo
entusiasmo com que colaboraram para a realização deste projeto editorial. A apresentação do
volume ficou a cargo de outro estudioso do escritor gaúcho, o professor Italo Moriconi, que
prontamente aceitou nosso convite e nos brindou com o belo texto de abertura.
Para dar unidade ao livro, só faltava então batizá-lo, dando-lhe um nome forte e impactante
como a literatura de Caio. E eis que em meio às crônicas lá estava, gritando num canto de
parágrafo — no texto intitulado “Querem acabar comigo” —, esse período tão expressivo, tão
revelador de uma angústia das mais contemporâneas (a da falta de tempo), pronto para dar título
a este volume que inaugura a reedição das obras de Caio Fernando Abreu.
Escrita vertiginosa
Caio Fernando Abreu viveu a vida vertiginosa da linguagem do jornal, trabalhada como carta ou
comentário muito pessoal. Cronista da metrópole paulista, poeta da frivolidade encenada, feito
um dia praticara o João do Rio da metrópole carioca, Caio identificou como público eterno o/a
jovem adulto urbano brasileiro antenado. Suas crônicas delimitam um território de sensibilidade
que a cada geração reaparece em nova roupagem, sempre buscando recolher os cacos de alguma
experiência radical vivida no passado. Tirando algumas mudanças nos repertórios de referência,
no interlocutor do Caio cronista de 25, de 20 anos atrás, encontramos as mesmas ética e estética
híbridas de hoje, frutos da assimilação visceral de um misto de cultura literária e entretenimento
pop.
Daí nasce a permanente comunicabilidade de sua literatura. Caio F., o contemporâneo. Da
relação extremamente pessoal que estabelece com o leitor, em qualquer dos gêneros que pratica.
Por mais que reclamasse do tempo precioso roubado pelo trabalho do jornal, a eletricidade
vertiginosa do tom pessoal, assim como as metáforas implícitas e explícitas de seus contos e
romances, sem dúvida originavam-se da energia do cronista. O mesmo se pode dizer de sua
correspondência.
Sabemos porém que Caio tinha perfeita noção da diferença quase abissal entre a escrita da
crônica e a da literatura de ficção, campo no qual foi dos melhores de sua geração. Pelas mãos
dele, a crônica e a carta na verdade cediam completamente lugar ao cuidadoso trabalho da
metáfora. É por ocupar um plano mais detidamente simbólico e poético que a ficção se distancia
da crônica.
Sobra o quê para a crônica? Muito. A delícia, o humor, o misto de amargor, sarcasmo,
ternura, euforia no registro do cotidiano da sensibilidade. Não se trata aqui daquele tipo de
crônica feito da narração de pequenos fatos pitorescos ocorridos pelas ruas. Mas sim do registro
de como os nervos das pessoas estão sendo tocados pelos estímulos da midiasfera. São crônicas
em movimento, para quem está em movimento. Falam mais de celebridades que de anônimos,
dirigindo-se de maneira franca a quem busca o lado faca só lâmina e tenha até mesmo se
aventurado num dark side de vez em quando.
A obra de Caio perdura por seu poder de atração, não por sustentação institucional. Ela não
pode ser estudada na escola, pois apela para o nosso lado extraclasse: o que somos e fazemos
quando estamos fora das molduras, mas ainda sofrendo com elas e por causa delas. Imperdível.

Italo Moriconi
Pra machucar
os corações

Para quem tem mais de trinta, trinta e cinco anos, este disco pode ser uma tortura. Não, não é
que seja um mau disco. Eu explico. Ou tento

É que fatalmente eu/tu/ele/nós vamos lembrar. E não estou certo se essas lembranças serão boas.
Ou se seriam boas, lembradas hoje, você me entende? Porque o tempo passado, filtrado pela
memória e refletido no tempo presente — agora —, parece sempre melhor. E terá mesmo sido?
Apenas, quem sabe, porque não havia fadiga lá. Aquela fadiga que se insinua, persistente,
entre o ruído das buzinas e das descargas abertas nos engarrafamentos de trânsito, todo dia. Ou
essa, de atravessar mais uma vez qualquer avenida às seis da tarde para, de repente, olhar a
multidão também fatigada e perguntar: mas que cidade, afinal, é esta? E que vida? A quase
amável, paciente fadiga de contemplar o grande relógio das repartições e escritórios, quase
imóvel na sua lentidão, a partir das cinco e a caminho das seis da tarde. Para nos despejar,
novamente, nas ruas entupidas de fumaça e desejos bandidos nas esquinas, dentro de carros
apertados entre outros carros ou de ônibus apinhados — até o interior dos apartamentos, com
seus fantasmas emboscados, uns mortos, outros vivos. E então o acúmulo de contas atrasadas,
telefonemas ansiosos, telenovelas chatas, quem sabe algum plano, certas fantasias. Outra cidade,
outro país, outro planeta, outra vida que não esta — uma memória de flores no cabelo e pés
descalços, pouco antes de o ruído do despertador e de o meu/teu/dele/nosso coração serem os
únicos audíveis dentro da escuridão onde afundamos na lama de nossos sonhos mortos.
Mas eu falava — tentava — de um disco. De John Lennon.
Ele foi gravado ao vivo, no Madison Square Garden, em 30 de agosto de 1972. Há quase,
portanto, catorze anos. Você tinha quantos — quinze, vinte, vinte e cinco? E provavelmente
também imaginava que, um dia, pudesse não haver mais guerras, nem países, nem ódio entre as
pessoas. Um mundo novo, não é isso? Depois houve cinco tiros nas costas, e pouco antes,
durante o depois, os muros das cidades pixados com frases como “flower-power is dead”. E
então uma invasão de cabelos muito curtos, quase raspados, roupas negras, couro justo: a
ridicularização de tudo em que você acreditou durante tanto tempo — e largou faculdade, largou
família, caiu em bandos pelas estradas para sonhar com essa coisa que não aconteceu: um mundo
novo. O deboche das suas antigas — e perdidas — ilusões. Patrício Bisso só sobe no palco para
cantar qualquer coisa como “bolsa peruana? Sandália indiana? Hippie! Mata”. Eu rio, você ri, ele
ri — nós rimos todos juntos. E temos um sutil cuidado em evitar, no vocabulário, no vestuário,
qualquer detalhe capaz de nos identificar como sobreviventes daquele tempo. Agora somos mais
do que modernos: demi-darks. Não temos fé, nem esperança, nem caridade. Bebemos vodca
pura, cheiramos umas. Nunca mais compramos uma caixinha de incenso. E a bad-trip pinta sem
química.
Tudo isso dói tanto. Eu nunca mais tinha ouvido John Lennon. O tempo corre, a gente vai
descobrindo jeitos de se proteger. Elis? Nem pensar: põe aí a Paula Toller. Marc (quem lembra?)
Bolan? De jeito nenhum, melhor um Boy George, cara. Let’s Roller. It’s only rock and roll. Só
que eu nem sempre sei se gusto. Mas, por trás das defesas, esse vinco no canto esquerdo da boca
continua avançando, cada vez mais fundo, cada vez mais longo. Você tenta reagir, sem dizer
claramente não, pelo amor de Deus, não me dá esse disco pra ouvir, eu não entendo nada de
música, eu não conheço John Lennon e nunca ouvi falar em Yoko Ono. Eu não tenho tempo.
Não posso parar, nem pensar, nem sentir. Nem lembrar. Eu preciso ganhar dinheiro. Tenho
pressa neste passo alucinado em direção ao buraco negro do futuro.
Mas você acaba aceitando. Agora somos profissionais. Coloca no toca-discos, como quem
não quer nada. Liga a TV, ao mesmo tempo. E, no meio dos sons que vêm também da rua e dos
outros apartamentos, de repente aquela voz tão antiga e conhecida grita:
— Mother!
Aumente o volume. Ou desligue para sempre, você me entende?

O Estado de S. Paulo, 6/4/1986


Meus amigos
são um barato

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência

Se a Nara Leão, naquele velho disco, também achava — por que não poderia eu também achá-
lo? E se o Nirlando Beirão, tão chique, tem um vizinho yuppie — por que não posso ter coisa
semelhante em minha vida de retinas fatigadas? E confessá-lo de público — atente na expressão
—, assim: meus amigos são um barato. Um baratão. Nos dois sentidos: o do insólito e o do
inseto.
Meu amigo Pedro, por exemplo, é um barato no sentido mais tradicional da expressão. Ou
não? Fico um pouco confuso, e pensando bem talvez ele seja mesmo uma curtição. O
passatempo preferido dele é, nos fins de semana, fazer tremendas vivências em Mauá. Fazer
vivência vem a ser o quê? Ora, cara, tá por fora: qualquer coisa pode ser uma vivência: um chá,
um baseado, uma caminhada. Importante é que seja em grupo. E que você vá fundo, entendeu?
Com direito a nirvanas e iluminações.
Meu amigo Pedro é superfeliz. Detesta quem tem problemas: ele diz que é baixo-astral. Ele
está sempre numa ótima. Detalhe: mora num apartamento de andar inteiro de frente para a praia,
no Rio. Com os pais, claro — embora tenha trinta anos. Mas tudo bem: para gozar de inteira
liberdade, ele pode usar uma coberturazinha absolutamente simples. Outro passatempo dele,
embora adore pedir carona, é dirigir o Monza zerinho de manhã. Daqueles que você aperta
botões e acontecem coisas tipo fontes luminosas, faróis de laser, show de mulatas etc. Mas ele,
meu amigo Pedro, é singelo e franciscano: anda sempre de camisetinha zurrapa e sandália
havaiana. Tem certeza de que, um dia, vamos todos viver em paz — na Era de Aquário.
Confirmou isso no último verão, passado na Bahia, com uma pá de gente de cabeça feita.
Já minha amiga Kate, um pouco mais moça, despreza meu amigo Pedro. Comenta: “Ele
acha que Woodstock foi ontem. E ainda nem desarrumou a mochila”. Ele comenta sobre ela:
“Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”. A verdade é que não conheço ninguém
mais moderno (ou pós, nos dois sentidos: o do depois e o das carreiras) que minha amiga Kate.
Coberta de negro, cabelo raspado de um lado, vezenquando uma peruca rosa de náilon.
Naturalmente é performática. E faz cursos sen-sa-cio-nais: o último foi de vídeo-performance —
um arraso. Minha amiga Kate acha tudo meio antigo, mas concede ir ao Satã, ao Rose Bom-
Bom, dá umas bandas pelo Ritz e não pisa nem morta no Pirandello. Acha que tudo é uma
questão de pique-e-pá-e-crã, sabe como? Fico numas que só…
Meu amigo Betinho é radicalmente o oposto. Faz a linha subir-com-esforço-na-vida.
Quanto mais esforço, melhor. Tem visões futuristas com videocassetes, IBMs elétricas,
secretárias eletrônicas louras de olhos azuis, guarda-roupas completos para as quatro estações
comprados na Mr. Kitsch. Embora, no fundo, goste mesmo é de Calvin Klein. Ou — em
momentos de profunda verdade interior — de um sólido Pierre Cardin. Naturalmente, ele veio de
baixo. Muito baixo. Tem um problema sério: quando bebe, tem paixão por ouvir Alcione. E por
tudo isso, se você for a um restaurante com meu amigo Betinho, pode estar certo de que a conta
jamais será dividida em partes iguais. Em alto e bom som, ele sempre dirá: “Mas eu não tomei
cafezinho!”
Minha amiga Joana — ex-atriz, ex-cantora, ex-traficante — há anos largou tudo, pegou uns
panos vermelhos, botou um mala no pescoço, com aquele 3X4 de Rajneesh, e foi embora pra
Floripa (leia-se Florianópolis). É conhecida por lá como Bodhira, que em sânscrito quer dizer
flor de não me lembro o quê. Será — haja — lótus? Quando fui visitá-la, fizemos muita
meditação caótica juntos. Supervivência, se pintar, experimente. É um barato.
Enfim, esses são só alguns. Tem mais, talvez para uma Parte II. Mas, como todo
ficcionista, sempre procuro deixar muito claro que qualquer semelhança com pessoas vivas ou
mortas — bem, você sabe. E eu adoro meus amigos. Simplesmente adoro.

O Estado de S. Paulo, 8/4/1986


Meu deus, são
estrelas demais!

Imagine-se cercado de estrelas. Ali do lado, ao alcance da mão

É fácil enlouquecer durante a semana de cinema brasileiro, em Gramado. Sem falar no choque
cultural com a cidade europeizada, sem nordestinos nem mendigos; sem falar na estranha neblina
que desce de repente do pico das serras, a qualquer hora do dia, para ir embora sem o menor
aviso; sem falar no ar tão limpo e na luz tão clara que chegam a doer nos pulmões e nos olhos
acostumados ao cinza urbano. Mesmo sem considerar isso tudo ajudando no processo de loucura
— há as estrelas.
E estrelas, você sabe, não são de carne e osso. Pelo menos no meu coração de guri criado
no meio dos campos da fronteira com a Argentina, vendo estrelas só no céu — o céu do Rio
Grande é o mais belo do Brasil, sem bairrismos — e nas revistas. As estrelas das revistas mais
intocáveis até do que as do céu, que numa determinada época do verão costumavam desabar aos
montes em direção ao horizonte. Fazíamos pedidos. As outras, as da terra, não víamos nunca. No
máximo, Vicente Celestino e — Jesus, como sou antigo! — Procópio Ferreira. Fiquei não só
extasiado, mas, para usar o adjetivo exato, estarrecido também.
Agora, imagine-se você cercado de estrelas durante uma semana inteira. Ali do lado, ao
alcance da mão. É pirante. Você sai do quarto e dá de cara com a moça do quarto ao lado. E a
moça do quarto ao lado é nada menos que Nicole Puzzi. Você pega o elevador e uma lourinha
simpática faz um comentário rápido sobre o tempo: é Débora Bloch. Aí você vai tomar um café,
e o gatão ao lado pede o açúcar: é Nuno Leal Maia. No corredor, meio estonteado, você esbarra
sem querer em Marieta Severo. Enquanto pede mil desculpas, alguém esbarra em você: é
Arnaldo Jabor. Você resolve ir ao banheiro molhar os pulsos — e quem está fazendo xixi ali do
lado, como se fosse a coisa mais normal do mundo? Chico Buarque de Hollanda. Você pensa,
meu Deus, preciso sair urgente deste hotel, dar uma volta na rua, ver gente comum, banal,
mortal, normal.
Até conseguir chegar à rua, você já tropeçou em Cláudio Marzo, Bruna Lombardi,
Fernanda Torres, Riccelli, Roberto Bonfim, Miriam Rios e — socorro, assim também é demais!
— Tom Jobim. De cabeça baixa, para não ver mais ninguém, porque chega! você corre para o
bar mais fuleiro da esquina. Um bar onde estrelas não entrariam. Mineral com gás, por piedade.
O cara ao lado, um de bonezinho, acha a ideia boa e pede uma também. Você olha para a cara ao
lado. Embaixo do bonezinho está Ney Latorraca. Você desiste da água, sai a mil pra rua. E
choca-se com uma senhora alta, elegantésima: Ilka Soares. Logo a tia Ilka, de quem eu
colecionava fotos recortadas de O Cruzeiro, Vida Doméstica e Cinelândia?
Não, eu não aguento. Não fui feito para essas alturas. Uma vez em que Caetano me sorriu
na praia, baixei os olhos e passei batido com o ar mais remoto que consegui armar na cara.
Tenho medo-pânico de estrelas. Do céu, da terra. Elas devem permanecer no espaço, nas telas,
nos palcos. Não andar se misturando por aí, nos bares, nos balcões, nos elevadores, nos
banheiros — feito fossem seres comuns. Preciso — como o Molina, de O beijo da mulher-
aranha — ter certeza de que as estrelas são todas como a Leni Lamaison, de Sônia Braga,
fumando com gestos largos, cobertas por metros de tule negro, longe do insensato mundo.
Caso contrário, digo ao povo que piro. Não vou admitir de jeito nenhum que as estrelas
tenham um cotidiano assim pobrinho que nem o nosso. Como meu irmão Felipe, quando tinha
uns dez anos, que me perguntou:
— Caio, a Brigitte Bardot também faz cocô?
Até hoje, eu juro que não.

O Estado de S. Paulo, 15/4/1986


Ah, bossa-nova,
new-bossa…

Eliete chegou no meio do speed. No terceiro dia da paixão, virei tiete

Estou apaixonado.
Não se preocupem, não é por uma pessoa. Ou é, sim, por uma pessoa.
Mas só indiretamente. Estou apaixonado pelo trabalho dela, pela voz, pelo clima, pela
delicadeza e pela Arte (assim mesmo, com maiúscula) dela. Deixo de mistério, entrego: Eliete
Negreiros e seu último — segundo, ao que sei — LP, da Copacabana.
E isso que ando difícil, ando torturado. Não tenho tempo, corro o dia todo, acho tudo e
todos barulhentos, exaustivos. Movido por esse horrível sentimento de urgência paulistana que
não me deixa olhar nada lentamente, sentir devagar. Sufocado, ando apressado. Nos segundos
roubados desse estrangulador ganhar-a-vida, me alimento de joias raras: João Gilberto, sempre,
um pouco de Sade, Billie, Bassie, Nana Caymmi, Nara Leão, Schumann. Tudo o mais me parece
atordoante. Ando em busca do silêncio que a cidade não dá. Da paz que a cidade não dá. Da
suavidade zen que esta cidade não dá, nunca deu nem dará nunca. A ninguém.
Foi no meio do speed que chegou Eliete. Eu nunca tinha prestado atenção nela. Mal nos
conhecemos, mais através de um lindo amigo em comum — Milton Hatoum, o Manaus. Mas
tenho preconceitos. É feio, sei, mas tenho. Daí pensava: ai meu Deus, mais esta Arriguete, com
aquelas letras concretistoides geladas & modernésimas… Nunca tive paciência para ouvir Eliete
antes. Embora, nas poucas vezes em que nos cruzamos, ficasse agradecido e contagiado pela paz
dela.
Comecei pela versão de La vie en rose. Deu um clack! na cabeça, não sei explicar. Fui
arriscando outras faixas, uma por uma, medo de estar enganado. Não estava. Primeiro veio uma
letra lindíssima de Zé Miguel Wisnik, com música de Carlos Rennó: Domingo longo (ah,
conheço tantos); veio um samba de Elton Medeiros e Eduardo Gudin, falando “às vezes se
guarda o melhor caminho/ se oculta o desejo pra não sofrer”.
Uns blues doloridos de Itamar Assumpção. O sax de Roberto Sion. No meio da pressa,
como eu ia dizendo, a voz mansa, afinadíssima, de Eliete dizendo sossega, sossega, meu amigo,
tudo é coisa de gente, tem um bonito in aparente por trás, tenta ver.
No terceiro dia da paixão, virei tiete e liguei pra ela. Queria dizer obrigado, menina,
quando você canta, a vida para de girar tão rápido e até parece bonita. Ela foi paciente com
minha invasão. Desliguei agradecido, espantado com minha própria ousadia. Agradecer é difícil.
E a gente precisa aprender, a gente precisa. Aprender a não ser só.
Eliete, new-bossa. Para que vocês compreendam: o primeiro LP que comprei na vida foi de
Sylvinha Telles. Tinha doze anos. Aos trinta e sete, só João Gilberto me sereniza. Ou Astrud. Há
um mês, só tiro para lavar uma camiseta escrita “Bossa-Nova”, que o Pardal, lá da lojinha do
mesmo nome, me deu. “Ah, bossa-nova, new-bossa, olha eu aqui sem viver” — chora minha
rainha Rita Lee. A vida então se adoça. Gosto de mel, de flor, de azul. Não de avenida Paulista
nem de Madame Satã. Preciso manter a ilusão de que tudo pode ser doce. Preciso acreditar que a
vida pode ser como a voz de Eliete. E que em alguma esquina, um dia — por que não? —
encontrarei um amor bonito esperando por mim.
Quando saio, agora, fico impaciente. Quero voltar pra casa, colocar logo o disco para que o
mundo todo se reorganize em doçura. Gostar de ouvir Eliete é cuidar de um certo jeito de olhar o
mundo. Por trás do susto, perdão de olhos molhados, pegar na mão devagarinho e repetir de
verdade, do fundo, sem o menor pudor, sem ânsia alguma:
— Gosto de você. Você existir me ajuda a viver.
Depois, acreditar que tudo vai dar certo. E deixar — como ela canta — que o amor dê o
que falar.

O Estado de S. Paulo, 29/4/1986


A vida é uma brasa, mora?

Uma esquizocrônica para Samuel Beckett


Na forma do caos

Nuvens radioativas, pacotes econômicos: nunca fomos tão felizes! Terroristas líbios, uma
colagem de Vicente Kutka, qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks no metrô, copos de
vinho tinto, um blues de Bessie Smith, sauna japa na Liberdade, trocar lençóis na sexta, Anjelica
Huston de chapéu negro, aquele olhar chiquérrimo sobre o mundo, táxis, táxis, alguém no JB
referindo-se aos “esfuziantes-anos-80” (?), cortes na seleção, leves paranoias, mas eu sei onde
estou metido, gangues juvenis, a frase de Beckett dando voltas na cabeça: nenhuma dor, quase
nenhuma dor — isso é que é maravilhoso, velhinhos tocando Olhos negros no Brahma, cartão-
postal de Paris na cabeceira, tons dourados, folhas mortas, como te amei e não disse, Giovanni
guilhotinado por amor, imperceptivelmente chegar à próxima face depois desta, talvez
desprezível, graves paranoias, o relógio da Paulista marcando trágico, lento & inexorável o
começo do fim de domingo, sinto falta de você, hi-fi com Fanta: astral Bukowski, geladas fotos
sensuais de Pedro Fedrizzi, alguém me chamando de “tiete-bem-pensante” (?), mas não pensem
que não sei onde estou metido, pessoas cirandando em torno de um poste, madrugada de sábado
no Bexiga, engarrafamentos de trânsito, pressa dentro dos táxis, dragão tatuado no braço, muito
busto, muita coxa, Hélio que vai para a Europa, yuppies na Oscar Freire, Bruna Lombardi,
Diadorim, homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma importância, só porque sei onde estou
metido, outra vítima de aids, parem de me testar: sou legal, cara, pizzarias entupidas de
criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina joga-se pela janela, e se eu dissesse de repente e sem
pudor eu-te-amo? Patricia em prantos ao telefone, de pura transgressão beber litros de água
mineral em pleno Madame Satã, quem me seduz? Olhar com medo, olhar com perdão, olhar com
interesse, olhar com náusea e paixão, e de jeito nenhum compreender nada de onde se está
desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar, Rê Bordosa minha amada à beira do
suicídio, não esquecer de comprar gilete G-II, que falta faz Ana C., meu Deus do céu, palavras
lindas na letra M do Aurelião, repetir fascinado metâmero, metasterno, metereoscópio, paranoias
desenfreadas, tudo o que você quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono, amigos solicitando
estranhíssimas cumplicidades, copos e copos de vinho tinto, ninguém dizendo meu-amor,
suspeitas, censura interna outra vez, palavrão não pode, esse filme que já vi e por isso mesmo sei
onde estou metido, uma carta que não chega nunca, nossa, como estou me lixando, vela branca
pro anjo da guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná, candidatura de Gabeira, sen-si-bi-li-
da-de-ex-ces-si-va não, meu caro: honestidade, epidemias, vírus, pestes, dengues, devia vender
mais caro minh’alminha inestimável, Toninho ameaçado pelos skinheads, nenhuma
solidariedade, azia na certa amanhã de manhã, saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer
coisa indefinida, de alguém desconhecido, investigar preço de secretária eletrônica, ter certeza de
que em algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre, querido e
não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui para que eu me esqueça de
onde sei que estou metido, corrompido até o último hímen, já temos um passado, meu amor, me
convida pra jantar na tua casa, bota Billie Holiday baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem
molhado, irrecusável, um sonho com Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino, companheira,
empurrado pela desordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado mísero e adjetivoso a meu
pedaço de madeira flutuante, e agora chega, chega, let it be, let it be, baby, que la vie, em rose ou
em black no duro — é sempre uma brasa, mora: o caos é a forma.
Quanto a vocês, salve-se quem puder. Porque quanto a mim, querida, querido, queridos —
eu? Ah: eu juro por todos os santos que sei muitíssimo bem onde estou metido.

O Estado de S. Paulo, 6/5/1986


Cola-chata-da-sanguinha

Na cidade mais punk do país, Porto Alegre, cola-chata-da-sanguinha é alguém pra lá de vulgar

Toda vez que vou a Porto Alegre, confirmo um negócio um tanto óbvio, mas sempre curioso: a
loucura e a criatividade — de alguma forma não muito misteriosa — estão sempre ligadas à
decadência. Digo isso porque, como todo mundo sabe, o Rio Grande do Sul atualmente é o
estado mais decadente do país. Decadente economicamente, ecologicamente (o mais devastado,
com desertos enormes no interior — para ira minha e do Dagomir Marquezi), politicamente,
moralmente, etcteramente. Não falo por maldade, não. Além de ser verdade, tão gaúcho quanto
eu só a estátua do Laçador ou chimarrão. O que em absoluto impede nem sequer nubla minha
virginiana visão crítica, certo?
Por estar tão decadente, Porto Alegre — ou Portinho, ou Gay Port, para os mais maldosos
— é também a cidade mais punk do país. Baixo Bexiga, Baixo Gávea, Leblon ou outra baixaria
qualquer perdem para o Baixo Bonfim — bairro judeu (?) por tradição (corrompida, lógico),
onde saltitam (ou melhor seria dizer rastejam?) darks, punks, néos, pós e até mesmo prés — ou
uma outra raça que só existe lá: seita. “Fulano é seita” — a gente diz, referindo-se a alguém que
anda coberto de negro, cheio de cruzes e correntes penduradas. No meio disso, acontecem coisas
ótimas: rock como o dos Replicantes, teatro como o do grupo Balaio de Gatos ou bonecos do
Cem Modos, um movimento de cinema nada careta e em expansão. Com o sufoco e a falta de
condições — que mobilizam e estimulam a criatividade? Interrogação, cartas para a Redação.
Entre esse pessoal, rolam certas expressões de gíria que só existem lá. (Pausa: a partir
daqui, passo a dedicar estas maltraçadas a Mônica Figueiredo, meu demônio preferido e, para
quem não sabe, a maior especialista do país nessa — digamos — linguagem-off-Aurelião). E
vamos lá: Mônica, você já ouviu falar em bicão prateado? Pois é coisa muito frequente nesta
Sampa de starlets onde vivemos. Assim: você encontra em público uma pessoa conhecida. E essa
pessoa conhecida faz um bico de pouco-caso, vira a cara sem cumprimentar e — plim! —, se
bater uma luz, o bico brilha de indiferença & superioridade. Ela acabou de fazer bicão prateado
pra você. No próximo encontro, você pode se vingar armando um reluzentésimo bicão dourado.
E zero a zero.
Tem mais: quando uma coisa ou gente não tem graça mesmo, não tem sabor de jeito
nenhum — o que é que ela é? Anote: pera. Pera é comportadinho, limpinho, inofensivo tipo
alface ou chuchu. Pra mim, o máximo da perice é o E.T., do Spielberg. Ou a Zizi Possi. Já
alguém totalmente artificial, produzido, é tang — nome daquele refresco sintético que a Dina
Sfat e as filhinhas dela tanto adoravam antes de darem um tempo em Portugal. Ainda nessa
linha: sabe uma pessoa assim que mal você olha e já viu tudo sobre ela? É uma pessoa carta — e
o “aberta” está implícito: só olhar, e você leu tudo. Fafá de Belém, por exemplo, cartésima. Com
ou sem pombas.
Mas, pro meu gosto, o melhor é esta: quando alguém é vulgar, brega, várzea mesmo — é
cola chata. Se for mais, cola-chata-da-sanguinha (aquela aguazinha barrenta). E, se conseguir
ser absoluta e totalmente vulbrega (atenção, revisão: neologismo), duma bagaceirice
irremediável, aí é cola-chata-da-sanguinha — você faz uma pausa dramática e acrescenta:
depois-dos-trilhos. Gretchen, por exemplo, pode ser mais cola-chata-da-sanguinha-depois-dos-
trilhos? Five hundred miles depois dos trilhos… Tem exemplos menos óbvios, me abstenho por
medo de processo. Não vai sobrar espaço pra explicar o que é lasanha nem figueira, mas
continuo em contato com meus informantes ao Sul, e de repente pinta até uma Part II. Mônica-
demo, saudade & kisses.

O Estado de S. Paulo, 13/5/1986


Eu existo! Existo?

Foi uma luta. Um inferno.


Uma barra. Afe!
Mas consegui: sou cidadão.

Não acredito. Repitam comigo, em coro, todo mundo: a-le-lu-i-a! Juntos, outra vez, bem alto,
com fé & emoção! A-LE-LU-I-A! Pois eis que meus documentos finalmente ficaram prontos
(não completamente, claro, mas tudo encaminhadinho, procot… desculpem: protocolado e tal).
Não serei mais um anônimo transeunte pelas ruas de Sampa. Oh Deus, um RG! Um títuIo de
eleitor! Um certificado de reservista! Não canso de repetir: Aleluia, aleluia aos todo-poderosos
orixás da burocracia brasileira!
O longo inverno da ilegalidade começou numa noite acho que de 1980. Fui roubado,
levaram os documentos. Naquele tempo, eu era jovem, cheio de vigor & energia: mandei
imediatamente fazer segundas vias de tudo. Deu relativamente certo. Menos de um ano depois,
fui roubado outra vez. Levaram — lógico — os documentos. A juventude tinha gasto tanto da
outra vez que falei assim: olha, quer saber? danem-se, não faço mais e pronto. E não fiz. Tinha
um velhíssimo passaporte que quebrou alguns galhos e — naturalmente — serviu de chacota em
vários bancos. Pois imagine que, na foto, meu cabelo passava dos ombros.
Como fiquei sem trabalho fixo desde 1982, tudo bem. Qualquer free da vida levava meu
passaportezinho e rolava. Até que, certo dia deste ano, fui roubado. Levaram os documentos —
quero dizer, meu lindo passaporte. Não restava alternativa. Noites de insônia, dias de desespero,
unhas roídas, suor frio, tremor nas mãos. Faço parte de uma geração que tem palpitações só de
ouvir falar em delegacia. Pois heroicamente fui a uma delegacia ver o RG. Certeza absoluta,
entro lá e os caras não me deixam sair mais, porque rabo preso — vocês sabem —, de uma ou de
outra forma, a gente sempre tem. E polícia adora descobrir.
Filas imensas, manhãs e manhãs. Ouvi coisas como — de uma funcionária para uma
velhinha: “Tem que ter certidão de nascimento, querida. Como é que a senhora vai provar que
nasceu?” Para uma moça: “Ah, minha filha. Esse selo é dificílimo. E, sem ele, nada feito. Ouvi
dizer que, para conseguir, só em Brasília”. Detalhe: estávamos em Pinheiros.
Mas, passo a passo, uma vela pro santo aqui, uma novena ali (minha mãe mandou uma
fortíssima, de Nossa Senhora de Lourdes)… Certificado de reservista tinha mandado fazer
quando daquele primeiro roubo, só que nunca fui pegar. Tinha que ir lá às sete (eu disse SETE)
da manhã e cantar o Hino Nacional. E isso que naquela época a Fafá ainda nem tinha gravado o
Hino. Lógico que não fui. Voltei agora: o certificado — chique — tinha sido incinerado. Mas já
tenho protoc…, digo: pro-to-co-lo, para pegar dia 15 de junho. Imagino que sem Hino. Do título
de eleitor fui poupado, rolou essa história dos títulos novos. Meu santo é forte: a prova de que eu
tinha me apresentado na última eleição (a que deu Jânio) dançou junto com o passaporte, naquele
último roubo.
E carteira de trabalho, que a gente fica sentado numa fila que anda, em cadeiras umas em
frente às outras, com uma senhora comandando? Descolei uma provisória: para a definitiva, só
levando o certificado que, como já disse, só fica pronto etc. Agora, de tudo mesmo, o que ficou
de mais agradável foi a lembrança das moças e rapazes que tratam dessas coisas: tão
prestimosos! E a maneira rápida como tudo acontece… É inacreditável. Talvez no Equador seja
um pouco mais complicado. Eu lembro tanto de ter ouvido falar numa coisa chamada des-bu-ro-
cra-ti-za-ção.
Faz pouco, o que queria mesmo dizer?
Mas, enfim, como Deus é justo — se dançar agora, posso pelo menos provar que existo.
Posso? Bom, isso já é outra história.

O Estado de S. Paulo, 20/5/1986


Amizade telefônica

Palavras, sentido e lógica ganham novos sentidos quando se fala sem se ver

Amigos telefônicos são preciosos. E, por isso mesmo, raros. Eu tenho três ou quatro, e bastam.
Amigo telefônico é assim: você só fala com ele por telefone. Ou fala pessoalmente também, mas
é completamente diferente. Quando você encontra muito seguido um amigo telefônico, a
amizade se divide em duas amizades paralelas: a que acontece cara a cara e a que acontece
telefonicamente. Esta, sempre mais funda. Há coisas que só se diz por telefone: telefone elimina
rosto, gesto, movimento: a voz fica absoluta. O que a voz diz, ao telefone, é tudo, porque por trás
dela não acontece nada como um franzir de sobrancelhas, um riso no canto da boca. E, se
acontece, você não vê. O que você não vê praticamente não acontece. Ou acontece tão
vagamente que é como se não.
A gente recorre a amigo telefônico quando alguma coisa não cabe por dentro. Não apenas
dor — assim, tipo CVV —, porque, se fosse isso, virava neurose braba, feia. Depois de um certo
ponto de aluguel, toda vez que você ligasse, então, seu amigo telefônico ia mandar dizer que não
estava. Com toda a razão. A gente recorre a ele também quando alguma coisa boa não cabe
dentro sozinha: tem que ser dita. Você liga pra dizer que está feliz. Teve uma iluminação,
pressentimento, uma fantasia, desejo. As pautas desenvolvidas na amizade telefônica podem ser
muito abstratas, entende? E essa é outra das grandes diferenças entre a amizade telefônica e a
outra: poder falar de coisas que quase aconteceram. Ou que deviam acontecer. Um pouco como
em carta. Antigamente, a carta era o equivalente do telefone. Quando não tinha telefone — há
muitos, muitos anos —, eu tive vários amigos-por-carta. Porque na carta, também, você diz
coisas que, cara a cara, nunca seriam dizíveis.
Amigo telefônico é noturno. A vontade de falar com ele costuma acontecer quando não há
mais nada interessante na TV, quando todos os livros e todos os discos do mundo não matariam a
sede de ouvir uma voz humana dizendo coisas que respondam ou complementem ou rebatam
outras coisas que a sua voz vai dizendo. E vai dizendo sem preocupação de ordem, de lógica, de
senso. Com amigo telefônico, toda a obrigação de parecer lúcido, consciente & equilibrado é
inteiramente desnecessária. Se uma terceira pessoa ouvisse um papo entre dois velhos amigos
telefônicos, provavelmente acharia completamente louco. Na amizade telefônica, a lógica é tão
sutil que parece não existir. Mas existe.
Há também os silêncios. Silêncio de amizade cara a cara quase sempre soa (?)
constrangedor. As pessoas desviam os olhos, acendem cigarros, fazem comentários tipo nada a
ver, só pra quebrar o silêncio. Em amizade telefônica, nunca: um fica ouvindo a respiração do
outro durante muito tempo. E não precisa dizer nada. A respiração do outro fala: Olha, estou
aqui, está tudo bem, seja o que for, vai dar certo, estou atento ao seu coração, você está atento ao
meu, e, por estarmos atentos ao coração um do outro, só por isso — ele fica mais leve, o coração.
Agora são sete horas da manhã, estou pensando em meus amigos telefônicos. Mas não
telefono. Amigo telefônico costuma dormir até tarde, principalmente às segundas-feiras —
porque as noites de domingo — ah, essas, são particularmente telefônicas. E eles são solitários,
esses amigos meio estranhos: ouvem vozes. Por isso mesmo, ponho um disco de João Gilberto
bem baixinho e dou um beijo a distância na testa de cada um deles. Envio pelo espaço a voz de
João para embalá-los nesse sono da manhã feriada e chuvosa. Que nem canção de ninar — me
liga, tá?

O Estado de S. Paulo, 27/5/1986


Meu amigo Cláudia

Maravilha, prodígio, espanto: no palco e na vida, meu amigo Cláudia é bem assim

Meu amigo Cláudia é uma das pessoas mais dignas que conheço. E aqui preciso me deter um
pouco para explicar o que significa, para mim, “digno” ou “dignidade”. Nem é tão complicado:
dignidade acontece quando se é inteiro. Mas que quer dizer ser “inteiro”? Talvez quando se faz
exatamente o que se quer fazer, do jeito que se quer fazer e da melhor maneira possível. A
opinião alheia, então, torna-se detalhe desimportante. O que pode resultar — e geralmente resulta
mesmo — numa enorme solidão. Dignidade é quando a solidão de ter escolhido ser, tão
exatamente quanto possível, aquilo que se é dói muito menos do que ter escolhido a falsa solidão
de ser o que não se é, apenas para não sofrer a rejeição tristíssima dos outros.
Bem, assim é meu amigo Cláudia. Eu não o/a conhecia pessoalmente. Ou melhor: conhecia
do palco, onde Cláudia enlouquece cantando, falando e mostrando-se de uma maneira tão
atrevidamente escancarada que fica linda, lindo. Só conversamos face a face, pela primeira vez,
há três semanas. Parece não ter nada a ver, mas tem tudo: eu adoro Marina, Marina Lima. Há três
anos, no Rio, conheci Sérgio Luz, que atualmente dirige Marina. Éramos amigos de (ah! os
bordados da vida…!) Ana Cristina César, e foi através dela que cruzamos caminhos. Mas isso é
outra história. Ou nem tanto. Há três semanas, Sérgio me convidou para jantar com ele, Marina,
Antônio Cícero e outras pessoas. Lógico que fui. E lá estava também Cláudia, no meio de uma
mesa enorme. Não havia lugar para todo mundo. Sentamos numa mesa próxima. Pouco depois,
Cláudia veio sentar-se conosco, porque havia um senhor na outra mesa — um senhor poderoso
— que não parava de agredir Cláudia. Começamos a conversar. Acabamos no Madame Satã,
onde raramente ou nunca, felizmente, existem senhores como aquele, agredindo pessoas como
Cláudia. Por não existirem interferências assim no mundo particular do Satã foi que Cláudia e
eu, naquela noite, nos tornamos amigos.
Para aquele senhor e para a maioria de todos os outros senhores do mundo, a presença de
Cláudia deve representar a suprema transgressão, a mais perigosa das ameaças. Tanto que andam
matando pessoas como Cláudia, na noite negra e luminosa de Sampa. É que meu amigo Cláudia
incorporou, no cotidiano, a mais desafiadora das ambiguidades: ela (ou ele?) movimentava-se o
tempo todo naquela fronteira sutilíssima entre o “macho” e a “fêmea”. Isso numa sociedade em
que principalmente o genital é que determina o papel que você vai assumir. Porque, se você é
homem, você tem de fazer isso e isso e isso — não aquilo e aquilo e aquilo —, não isso.
Movendo-se entre isso e aquilo, meu amigo Cláudia conquista o direito interno-subjetivo
de fazer isso e também aquilo. Tomamos vodca juntos, na madrugada, falando da solidão, essa
grande amiga em comum de todos nós. Trocamos telefones, nos encontramos outra vez. Gosto
tanto de seus olhos muito abertos, atentos a tudo, contemplando diretamente o mais de dentro de
cada um.
Agora virei seu fã. Hoje, às 23 horas, Cláudia apresenta-se no Teatro do Bexiga. Se você
quiser, também pode conhecer meu amigo Cláudia. A propósito, ela (ou ele — que importa,
afinal, um “e” ou “o” ou “a” no artigo ou pronome que precede o nome de uma pessoa?)
autobatizou-se com o sobrenome Wonder. Que em inglês, você sabe, quer dizer “milagre”, ou
“prodígio”, ou ainda “maravilha”, “surpresa”, “espanto”. Todas essas sensações são justamente
as que meu amigo Cláudia Wonder passa, no palco e na vida. E por tudo isso me sinto muito
orgulhoso!

O Estado de S. Paulo, 17/6/1986


Um remédio
que dá alegria

Nos discos de João Gilberto e Caetano Veloso, uma gota de mel derramada sobre nós

Semana passada, falei assim: “Deus é bom demais! Além de João Gilberto, manda Caetano
junto!” Até ponto de exclamação usei — coisa que, por sobriedade congênita, não costumo.
Esses dias todos, fiquei meio babaca. Fiquei, não: geralmente sou mesmo meio babaca. Porque,
mais que em “Deus” (e as aspas aqui são para que não me imaginem, injustamente, indo à missa
ou rezando terços), acredito é na gota de mel que essa coisa-deus-destino-orixá vezenquando
derrama sobre nossa cabeça. Bem verdade que acontece de ele derramar a gota e enquanto você,
todo melado, espera por mais — ele retira subitamente o pote. Ou, sacanamente, substitui o pote
de mel pelo de sal. Volta, então, a secura nossa de cada dia. Como volta o mel, pra quem tiver
paciência de esperar sem desfraldar a bandeira escandalosa da espera. Que afasta o mel.
Sou também tiete, e não me envergonho. Como trabalho-pra-ganhar-a-vida, pago todas as
minhas contas e — vejam quanta delicadeza — ainda por cima tenho um analista (aliás, ótimo)
para não alugar amigos com tormentos —, por tudo isso, me sinto com todo o direito de deitar e
rolar no ser-tiete. Eu me deixo encher de felicidade e admiração, quando gosto — música, livro,
filme, principalmente pessoa. Chafurdo, chapinho, me encharco naquela gota de mel. O que me
deixa mais forte, ou no mínimo menos áspero, quando vem o sal. E sempre vem. Faz parte: ciclo.
Tão certo quanto o hexagrama A suavidade precede A alegria.
Semana que passou, minha vida navegou em bossa-nova. Primeiro, nas orações de João
Gilberto, alongando as sílabas das palavras até transformá-las em mantras. João é zen, além da
emoção: todo misturado nela, consegue pairar acima. Na dor, João contempla a dor. Sem dor, e
eu também não compreendo isso. Só agradeço, porque João ajuda a sentir minhas mágoas
imensas ou miudinhas assim, sem farpas. Com João, o Havaí foi aqui, a dois passos da Paulista.
Então veio Caetano.
Certa vez, dediquei um livro — Morangos mofados — a Caetano. Só porque ele existe, e
por todas as dicas de comportamento, de ideologia e sei lá mais o quê, por fazer o que faz, ele me
deu sem saber nesses quase vinte anos. Não me lembro de, logo na primeira audição, ter gostado
tanto de um disco dele como deste Totalmente demais. Mais perto de João (e portanto da
perfeição), Caetano reduziu tudo ao essencial: voz e violão. Feito um ator dispensando cenário,
figurino, luz, música. O primeiro arrepio chegou com “Quereres” — uma letra que, por muitas
razões, me lembra Eu sei que vou te amar, de Arnaldo Jabor. No filme de Jabor, e na letra de
Caetano, essa antropologia do amor feito do mel e do sal, que vêm juntos, e, se às vezes pendem
totalmente para o doce ou depois desequilibram totalmente para o amargo, na maior parte do
tempo caminham misturados, intrincadamente fundidos num terceiro elemento/sentimento. Que
rasga quando acaricia, mata quando dá vida, sufoca ao respirar mais fundo, procurando ar. Mas
faz a vida brilhar, incendiada.
Vem então o milagre de fundir tango e bossa-nova, em “Cuesta abajo”, encosta a
portuguesa louca de “Estranha forma de vida” e chega a garantia luminosa de que amanhã,
certamente, será um lindo dia. Na voz de Caetano, habitam Dalva de Oliveira, Orlando Silva,
João Gilberto, Nat King Cole, Carmen Miranda, Tom Jobim, Noel Rosa — e, quando surgem os
versos endemoninhados de Cazuza, com os discos de João e Caetano nas mãos, compreendo
perfeitamente o que significa a expressão “algum remédio que dê alegria”. Enquanto o som deles
enche o apartamento, esse remédio escorre no meu sangue. Me cura de todos os males.
Inclusive a gripe, a derrota do Brasil. E outros, mais secretos. Indizíveis.

O Estado de S. Paulo, 24/6/1986


Diário de bordo

Nos limites de skinhead, na segunda, a Sade Adu no final de domingo. Marte tão perto

Segunda-feira:
Distraído na cadeira do barbeiro, corto o cabelo — ou o que resta dele — até quase os limites do
skinhead. Mais de uma hora atrás de um táxi para mergulhar na violência de O Ano do Dragão,
sub-blade-runner. Do outro lado do balcão do Longchamp, quase meia-noite — quem é você?
Outro dia, talvez, por acaso, quem sabe. Furar o astral pesado da Augusta. Apoiar um segundo a
cabeça no poste do cruzamento com a Paulista. Nenhuma carta por baixo da porta.

Terça-feira:
Insana insônia cheia de poços frios de sono. Longa cama, telefone que toca e toca ao longe. Eu,
mudo. Cidade. SBAT. Um monólogo? Bem, de certa forma. São João, Ipiranga. Certo, nunca foi
Viena. Mas também nunca a vi tão feia, a cidade. Será Mahler, em Prénom Carmen? Baixa outro
capítulo do romance. Passo mal, quase vomito: Pedro se foi para sempre. A sala do apartamento
é o interior de um aquário. Estrelinha vermelha no diário astrológico, ao lado da quadratura Sol
Ascendente.

Quarta-feira:
Ronaldo, manhã bem cedo. Tanta luz. Maçãs na praça da curva perto da Angélica. Sala de
espera, outro capítulo de A separação dos amantes. Decisão súbita: volto a dançar. Ronaldo
localiza o sal, no centro da ilha de Itamaracá. As palmas das mãos ardem. O menino perdido
continua doendo, onde? Três dry-martinis com meu amigo dark (ele, só dois).

Quinta-feira:
Direto na veia. Nana Caymmi e Ricardo Reis: “Rega tuas plantas/ama as tuas rosas”. Rego, amo,
tento — sim. Itália Fausta com Marco Flávio. Não rio tanto quanto pretendia. Ou gostaria.
Precisava? O motoqueiro português não me vê, nem eu me mostro. Comida japa depois, yuppies
rancorosos. Marte bola vermelha de fogo em Capricórnio, muito próximo. E então o astrólogo
gaúcho inesperado e trânsitos de Saturno madrugada adentro. Quem sabe a direção da Lua pela
casa 8, em outubro?

Sexta-feira:
Fechamento exaustivo. Falta doida de Rosa e Luísa. Riso de cristal de Luísa. De repente, não tem
mais. Performances: sustos. Poluição horrível na cidade atrás dos vidros. Casamento do príncipe
Andrew. Despenco a mil para rever Possessão, Antonio Augusto na fila do CineSesc. Isabelle
Adjani se contorce no metrô até quase amanhecer, mais de meia garrafa de conhaque embalando
Pessoa. Tontura, carência, não faz bem.

Sábado
A cabeça estala. Encaro o tanque, pia, chão sujo ao som de Eliete Negreiros. Mãos ásperas de
detergente. À noite, Brahma e Desde L’alma. Saudade bruta do meu pai. Mar de neon, veneno
das ruas. Me afogo pela terceira vez em Era uma vez na América, nunca vi tão lindo. Choro no
sorriso apoiado de Robert De Niro, ao final. Sim, David Noodless: a vida é sonho. Passar reto
pelo Ritz, não ir ao Satã. Escolho goiabas com chantili no Frevinho. Quatro da manhã, Sônia
Braga nua. E dê-lhe Tom Waits pra dor ficar ainda mais rouca.

Domingo
Telefonema de Paris às oito da manhã. Bato o fone. Sono aos trancos. Derretidas, as velas
formam dois quartos minguantes. Ogum, Oxum, axé! Tel me deixa poemas de tardezinha. O
vento corre por dentro do apartamento, janelas abertas. Pizza com manjericão. No meio da rua,
Lua quase cheia. Aflição de não ser outro lugar, outro tempo. Sade Adu na reta final. Picasso
espia apoiado no vaso sem flores. Energia zero indo embora pelas teclas da máquina, livros para
Around. Nenhum remédio que dê alegria: a seco, amanhã continuo. A ausência também. Ou não?
Pode ser.

O Estado de S. Paulo, 22/7/1986


Por falar em estrelas…

Se astrologia fosse idiotice, será que Fernando Pessoa teria sido astrólogo? E Anaïs Nin?

Astrologia é assunto controvertido. Tão controvertido e mal compreendido que já posso imaginar
os risinhos depois de lida esta palavra — astrologia — que dá margem a equívocos do tipo ah,
essa pseudociência, superstição, escapismo, sub-religião. Não vou me esforçar para provar que
não é nada disso. Mas, com mais ou menos quinze anos de estudo, praticamente diário, do
assunto — e sem me considerar um astrólogo —, de repente acho que talvez tenha alguma base
para reafirmar: não é nada disso.
O que seria, então? Bom, se a astrologia fosse pura idiotice, você acha que Fernando
Pessoa teria sido astrólogo? Aliás, a chave — ou uma das — para a compreensão de seus
heterônimos está justamente nos mapas astrais que o danado levantou dos próprios. Para quem
entende do negócio, faz muito sentido saber que Ricardo Reis tinha Mercúrio, Urano, Lua e
Júpiter na casa 8 — a casa das transformações, da transcendência. Ainda nessa linha: Anaïs Nin,
escritora brilhante, também era astróloga (e psicóloga). E Milan Kundera, veja só, é outro.
O problema é que as pessoas confundem astrologia com horóscopo de jornal. E não há
nada mais pessoal que um mapa astral, o retrato do céu no momento em que nascemos. O
horóscopo de jornal considera apenas a posição em que estava o Sol, ou o ascendente (a
constelação do Zodíaco que subia no horizonte no momento do nascimento), e isso é vago
demais. Em certos casos — como no horóscopo do Caderno 2, o de Hollander, na Folha, ou o de
Pedro Tornaghi, no Around — as informações são mais sérias. E, mesmo assim, vagas. Para
fazer uma previsão astrológica, é preciso considerar trânsitos, progressões, revoluções, direções.
Mas, bom lembrar, astrologia serve muito menos como método de predição do que de
autoconhecimento, com toda a sua carga infinita de combinações de significados míticos e
psicológicos. Ou, no mínimo, como jogo poético. Quem sabe por isso mesmo é que escritores e
poetas costumam ser tão chegados aos astros?
O material escrito sobre o assunto, no Brasil, geralmente é miserável. Se você quiser algo
realmente bom, vai ter que batalhar as escassas traduções (ou os originais) de astrólogos como
Stephen Arroyo, Dane Rudhyar, Zipporah Dobyns. Caso contrário, cairá no pequeno círculo
vicioso dos enganadores grosseiros. Por tudo isso, acho muito oportuno um lançamento da
editora Guanabara: Toques astrais, da ex-Frenética Leiloca. Para os mais aprofundados, não vai
ajudar muito: são informações para principiantes, embora honestíssimas e com aquele toque de
sacação que os bons astrólogos têm. Pode-se também achar no mínimo estranha a mistura que
Leiloca faz, no final do livro, com as teorias e práticas de Thomas G. Morton (Rá!). Mas, antes,
tem coisa boa. Quem estiver disposto a conhecer o esboço desse vasto e riquíssimo caminho de
autoconhecimento pode chegar sem susto no livro. Pelo menos, até que os novos astrólogos
brasileiros como Antonio Carlos Harres (o Bola), Graça Medeiros ou Claudia Lisboa comecem a
escrever seus próprios textos. E, para quem quiser ficar atento, deixo de saideira este trecho
(citado de memória) de Doris Lessing, em Shikasta: “Todos nós fazemos parte das estrelas. Elas
nos fazem, nós as fazemos. Somos parte de uma estranha coreografia da qual nunca, de maneira
alguma, podemos pensar em nos separar”. Também vale observar Marte, ponto vermelho no céu,
muito próximo da Terra, em Capricórnio, botando fogo em toda essa loucura social de fim de
século.

O Estado de S. Paulo, 14/8/1986


Uma semana-Fassbinder

Qualquer coisa entre o belo e o horrível. Exatamente ali onde você é o meu raio de sol

Certamente foi meu Ph.D. de cinemaníaco. Não pensei que conseguisse. Mas, na manhã da
segunda-feira seguinte, estou aqui relativamente inteiro depois de uma semana mergulhado nos
tormentos de Franz Biberkopf. Curioso é que não tenho nada nas mãos. Tenho na alma, será?
Mas o que se leva na alma é tão impalpável e tão invisível que é sempre como se não se levasse
nada. De qualquer forma, deve restar alguma sombra nos olhos, qualquer coisa assim, fugidia.
Quando decidi que ia assistir às quinze horas e vinte e um minutos de Berlin
Alexanderplatz, de Rainer Werner Fassbinder, sabia que a semana inteira seria uma semana-
Fassbinder. E uma semana-Fassbinder — meu caro Caio F. —, fui me dizendo devagar, não é
exatamente o mesmo que uma semana-Disney, por exemplo. Lembrei de uma casinha muito
velha onde morei, numa vila da Mello Alves, em que o banheiro era tão úmido e estragado, com
a pintura tão descascada, e por isso mesmo de uma estranha beleza, que Jacqueline e eu o
chamávamos de “Fassbinder”. No meu/nosso repertório estético, Fassbinder ficou assim, essa
coisa entre o sórdido e o lírico, entre o inocente e o corrompido, entre o belo e o horrível.
Até talvez a quarta parte, Um punhado de pessoas sob um profundo silêncio, assisti ao
filme com a razão: queria compreender, refletir, tirar conclusões — vejam que aplicado. Depois
fui escorregando para uma espécie de estado hipnótico. Um pouco provocado pelos poemas
tristíssimos que cortam a narrativa, um pouco pela fotografia, pelo efeito das luzes de neon
sempre piscando na rua e invadindo os interiores (no quarto de Franz, o neon aceso do lado de
fora da janela), pelos movimentos sinuosos da câmera, enquadrando o rosto dos personagens por
trás de grades (encarcerados, todos eles), pelas reverberações e cintilâncias nos objetos de metal,
simulacros de estrelas.
Algumas imagens e falas foram ficando gravadas: o monólogo de Franz sendo levado para
o hospital, depois de ter sido empurrado sob um carro por Reinhold, em O preço do amor é
sempre muito alto. Ele sangra e sangra e fala do tamanho da Terra em relação ao Sol, do
tamanho do Sol em relação ao Universo, e do nosso próprio tamanho em relação ao todo, e da
pequenez absurda das nossas dores humanas. A dor, portanto, não existe — conclui. Cheio de
dor. E é sem um braço que se apaixona por Mieze: “Você fez com que o sol saísse de trás das
nuvens para mim” — ele diz. Como na história que lera para Lina, o velho repetia para o rapaz:
“Você é meu raio de sol”.
No domingo, depois que o realismo explode e o delírio se instaura, eu não sabia mais nada.
Jantando com Andréa, sabia só que tinha visto um filme sobre a inocência e sobre a punição da
inocência. Assassino, aleijado e louco, cheio de fantasmas, sem nenhum amigo, Franz Biberkopf
ainda pode viver. As imagens do matadouro humano ainda pesam na memória: o ser humano é o
pior dos animais. Aos poucos, vão nos arrancando pedaços enquanto vivemos, e, mesmo sem um
braço, ou sem sonhos nem esperanças, ainda assim sobrevivemos? Crucificado na frente de um
enorme painel de O Jardim das Delícias, de Bosch, Franz Biberkopf agoniza. Atrás, uma
explosão nuclear. E rompe a tocar Glenn Miller.
Mas na manhã bem cedo de segunda-feira, esta é uma semana sem Fassbinder. Atrás das
janelas, um pouco menos inocente, o mundo aguarda. Vou tomar banho, fazer a barba. Talvez
compre uma camisa nova. Ou escreva uma carta. Hoje é um bom dia para continuar insistindo.

O Estado de S. Paulo, 3/9/1986


Em nome dos dragões

Eles não sabem de nada:


no outro lado da gorda realidade habitam dragões flamejantes

Nos últimos tempos, dera para dormir e sonhar demais. Mas não conseguia ir adiante nesse
pensamento, porque quando pensava “nos-últimos-tempos” outra parte da cabeça imediatamente
perguntava — quando? Então, um pouco hesitante, respondendo à própria pergunta, dizia-se
assim: desde — ai, que dor! —, desde que a realidade começara a engordar. A realidade ficando
cada vez mais inchada, repleta de copos de plástico transbordantes de refrigerantes, compotas de
figo e pêssegos e goiabas boiando em calda espessa, rubras talhadas de goiabada, carnes
gordurosas em molhos condimentados, doces bombons licorosos.
(Ah, como sentia medo desse obeso real a invadir as tardes, quando a gordura vinda de fora
pesava os movimentos a ponto de dificultar gestos tradicionalmente leves, como levar e tirar o
cigarro da boca, suspirar ou pensar qualquer coisa olhando as ruas da cidade ao longe e embaixo.
Atos e pensamentos eram pedaços de pêssego, goiabada, nacos de carne de porco ou carneiro
boiando no molho informe do cérebro.)
Mas depois que conseguia ir adiante — e era tão penoso, bracejando náufrago exausto na
gordurenta calda-molho das tardes —, completava: nos últimos tempos, como ia dizendo,
costumava dormir e sonhar demais. Talvez porque apenas no sono e no sonho aquela graxa do
cotidiano dissolvia-se pouco a pouco até o completamente, para dar passagem aos dragões.
Porque era com dragões que sonhava, e sonhava muito desde que dera para dormir tanto quando,
nos últimos tempos, a realidade começara a engordar. Com dragões, preservava magreza e
nobreza.
E os dragões — que lindos dragões eles eram — flutuavam em sua mente a noite toda e
durante as manhãs cada vez mais frequentes em que não conseguia sair da cama para enfrentar a
graxenta realidade de dentro e de fora do apartamento — mas ah, que belos dragões eles eram,
dançando em sua mente nas noites e nas manhãs de sono. Alguns alados, línguas bífidas como a
das serpentes, escamas de cristal, caudas reluzentes. Outros de papel, alaranjados, e dragões
noturnos vagamente melancólicos no lusco-fusco fosforescente dos olhos esbraseados no escuro.
Dragões brancos angelicais, dragões negros mansos como panteras novas, dragões roxo-púrpura
(seus preferidos) estranhamente sofisticados, como de neon, semáforos. Dragões de São Jorge
Ogum guerreiro, sem guerra nem lança, dragões raptores de donzelas sem donzelas raptadas,
dragões guardadores de princesas e princesas prisioneiras. Dragões amáveis, dragões serenos,
dragões elegantes e — mas como, como eram delicados — sobretudo dragões magros, esguios,
esbeltos, afilados. Levíssimos e sensuais, movendo-se como que ao som de Laurie Anderson.
Dormia cada vez mais cedo, acordava cada vez mais tarde. A única forma de eliminar a
insustentável gordura do real seria enchê-la de dragões em tempo integral? Era tão perigoso.
Porque aquela outra pane da cabeça, aquela parte cúmplice da gordura, de coque e minissaia,
entre o professoral e o perua, aconselhava: “Meu bem, se você continuar a se distanciar assim do
real-objetivo, você vai mais é se f…” Não dava ouvidos: acordava cada vez mais tarde, e mais
feliz. Embora soubesse — como eu sei e você, suponho, também (eles não, eles não sabem nada)
— que dragões nunca existiram na realidade. Mas que importância tem afinal a realidade — ele
repete todos os dias antes e depois de dormir e sonhar — se o outro lado, o verdadeiro, está
sempre tão habitado por flamejantes dragões movendo-se como que ao som de Laurie Anderson?
P.S. — E por tudo isso, dedico esta ao severo, Ricardo.

O Estado de S. Paulo, 10/9/1986


Fragmentos
de um domingo

Entre poços de sono, colheres de mel e cápsulas de alho, pedaços do sonho e do real

Entre a febre e a gripe, cápsulas de alho e colheres de mel, um domingo quase inteiro na cama.
Nos poços súbitos de sono misturam-se alguns dragões (parecia chorar, o dragão púrpura),
algumas faces, algumas frases. Violette Leduc, na província, trafica alimentos para Paris durante
a Segunda Guerra, enquanto Fernando Pessoa, travestido como o ajudante de guarda-livros
Bernardo Soares, que costuma “baixar” momentos antes do sono, guarda folhas rabiscadas
dentro de um envelope, depois joga o envelope num baú. Um baú negro, como o de um pirata.
Escolho A pastoral, de Beethoven, como Karajan é a Orquestra de Berlim, para
acompanhar o ritmo das teclas. Junto com a pizza, vêm umas panquecas delicadamente
esquisitas, vou provando o recheio, doce de leite vagamente plástico. No allegro ma non troppo
do “despertar dos sentimentos alegres ao chegar ao campo”, os violinos saltam feito cabritinhos.
Chá de menta, quem sabe? Encontro um papelzinho dobrado — uma ideia, uma frase, uma
personagem: “Aos sábados pela manhã, houvesse sol ou não, tudo com que ela sonhava era um
conversível amarelo”.
Semana passada, fez exatamente três anos que vi Ana C. pela última vez. Chovia no alto
do morro de Santa Teresa, no Rio. Era noite de meu aniversário. Ela tocou um por um todos os
objetos de meu quarto, sem dizer nada. Depois se foi, para sempre. Abro ao acaso Inéditos e
dispersos, leio assim: “Alguém disse que é para você que escrevo, hipócrita, fã, cônjuge, craque,
de raça, transvestindo a minha pele, enquanto gozas?” Padeço agora de umas fragilidades de que
não padecia antes, de umas preocupações com o tempo, com os sustos que o tempo prega. De
repente, passaram-se dez anos. Ou vinte.
Célere é o adjetivo, célere. As asas dos pés de Hermes podiam pertencer aos de Cronos, e
seriam de ferro então. Pelas frestas das janelas entram farrapos lá de fora: uma buzina que
dispara durante muito tempo, uma voz de mãe repetindo “Foi o Rodrigo que te bateu? Vai lá e
bate nele”. Pedagógica, ela. E a voz meio aguda, não demais, gemida, com guitarras ao fundo —
serão os Smiths?
Entre dois poços de sono, no apartamento ao lado do Homem Que Vê Dragões, desenha-se
o apartamento da Moça Que Vê Unicórnios. Posso ver as rosas meio abertas, envelhecendo na
sala onde certamente deve haver algum biscuit sobre renda branca. E no quarto, no aparente
silêncio do quarto onde ela dorme, distraída da tarde que já vai virando noite, esvoaçam alvos
unicórnios. E é possível que no apartamento acima do da Moça Que Vê Unicórnios more o
Velho que Vê Sereias, entre o da Mulher Que Vê Harpias e o do Jovem Que Vê Esfinges. Mal se
cumprimentam no elevador, para não dar bandeira. Mas quem prestasse atenção a seus
movimentos veria que acompanham o ritmo de Laurie Anderson, cantando em “Smoke rings”:
“Ah desire! Ah desire! Ah desire! So random, so rare”.
Sonhando com um conversível amarelo nas manhãs de sábado, certamente loura a moça.
Mais dois ou três poços de sono, de sombra fria, de água parada: do fundo dela, o ruído do
telefone. Vou nadando com dificuldade até lá. Não, não eram lágrimas nos olhos do dragão
púrpura. Era só uma distração, feito nuvem que passa no momento exato em que você olha para
cima. Volto à tona em braçadas rápidas, afastando ágil as raízes que prendem os donzelos.
Espalhadas entre os papéis sobre a mesa, asinhas transparentes de insetos. Dessas que, olhadas
contra a luz, guardam reflexos roxos e dourados. Dizem que é um sinal inconfundível de
primavera. Não acredito em tudo o que dizem, mas acredito sempre em sinais.

O Estado de S. Paulo, 17/9/1986


Um sonho regado a gim

Essas garotas acham que podem fazer tudo e ficar impunes?


Nem Zelda Fitzgerald ficou…

Era uma vez o começo deste século. Era uma vez, no começo deste século — que ainda não era
tão pobre nem tão vil —, uma pequena cidade norte-americana, chamada Montgomery, em
Alabama, sul dos Estados Unidos. Era uma vez, no começo do século dessa pequena cidade, a
moça mais interessante do lugar, a rainha da beleza de Montgomery. Loura, sarcástica, cheia de
frases e comportamentos atrevidos demais para aquele tempo e aquele lugar exatos — no
começo do século, na cidade de Montgomery, onde vivia a moça. Nas tardes poeirentas de céu
sem nuvens, ela sonha com uma vida cheia de aventuras, longe dali, daquela detestável
cidadezinha perdida no sul dos Estados Unidos. Rainha de um rei provinciano demais para a sua
realeza, a moça abana-se entediada na janela aberta, pequeno demais esse reino para o excesso de
beleza e ambição da moça de ombros nus, a abanar-se naquela janela da cidadezinha horrível,
numa tarde perdida para sempre lá no começo deste século. Zelda Sayre era o nome da moça.
Foi num baile — e tudo, quase tudo, ou pelo menos essas coisas do amor, acontecia nos
bailes naquele tempo — que o Destino, pela primeira vez, provou que existia. Ela ainda não
tinha dezoito anos. Ele tinha vinte e um, e era lindo também. De certa forma um rei, como ela. E
todos os casais, os pais, as mães e as outras moças que estavam naquela noite no salão de baile
daquela melancólica cidadezinha perceberam isso quando ele a tirou para dançar. Que eram dois
eleitos dos deuses se defrontando, cada um com sua nobreza, com sua coroa invisível, mas
nítida. Ela deve ter sentido assim como um estremecimento premonitório quando, peIa primeira
vez, ele a tomou nos braços e encostou seu rosto de face bem barbeada no rosto bem maquiado
dela. Em ritmo de valsa, o futuro começou a chegar para levá-la embora daquelas tardes
poeirentas e sem emoção da cidadezinha odiosa. Zelda deve tê-lo apertado mais forte, então. Ele
chamava-se Francis Scott.
Ele tinha Fitzgerald no sobrenome que ela adotou quando casaram, em 1920, e passou a ser
Zelda Fitzgerald. Ele transformou-se no escritor mais lido, mais amado, mais mimado de seu
tempo. Festas, muitas festas, champanha, vestidos, joias, sedas, hotéis, viagens. A Grécia, a
Riviera Francesa, uma filha: Scottie. Um sonho regado a gim, embalado a jazz. Até que o
dinheiro começou a ir embora, e os excessos de álcool a fazer efeito. Zelda tinha-se tornado uma
mulher cara. Scott precisou começar a vender sua literatura para sobreviver. Ela ficou estranha,
obcecada pela dança. Fazia aulas o dia todo, até que enlouqueceu e foi internada. Ele afundou no
álcool, vendeu-se a Hollywood.
Foi na clínica, em 1932, em apenas seis semanas, que Zelda escreveu o romance Save me
the waltz (Reserve-me a valsa, ou Esta valsa é minha, na tradução da editora Companhia das
Letras, de Luiz Schwarcz, a ser lançado no final de outubro). É um romance autobiográfico, em
que Zelda se chama Alabama e Scott, David. Alabama-Zelda quase tem de amputar um pé, de
tanto dançar. A juventude vai embora, o talento se perde, as ilusões se gastam. Tudo isso se
concentra, se anuncia, na epígrafe que Zelda escolheu para sua Valsa, retirada do Édipo Rei. Já
cego, Édipo lamenta-se, referindo-se ao céu de Tebas: “Oh, se fosses de novo possível, / Céu
azul, céu azul…”
Pois, como eu ia dizendo, era uma vez uma moça que acabou escrevendo um romance
meio desconjuntado, nervoso e perturbador, em que conseguiu deixar duramente claro que os
deuses costumam cobrar um alto preço de seus favoritos. Na primeira frase do livro, alguém diz:
“Essas garotas acham que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes”. Não podem. A moça
Zelda-Alabama, por exemplo, não ficou. Ninguém fica. Nem nós.

O Estado de S. Paulo, 1/10/1986


Lamúrias com chantili

Só mesmo as mães são felizes.


Ou: caretas de Paris e New York, sem mágoas estamos aí

Recebo muitas cartas de leitores. Nem sempre — ou quase nunca — respondo. Fico contente e
grato, mas não tenho tempo. Também porque a maioria é tão legal que nem pede resposta. Só
dizem coisas boas, dão força. Ter leitores me espanta, não consigo acreditar muito nisso. As
cartas, alguns telefonemas também, desmentem essa sensação. E é aí que sinto medo, porque
vem o peso da responsabilidade sobre o que dizer. Mas, se deixo o medo baixar, eu travo e não
escrevo nada. Então, quando sento para escrever, é como se não tivesse leitor algum em parte
alguma do mundo. Fico só preocupado em dizer alguma coisa em que eu mesmo realmente
acredite. Que seja verdade dentro de mim, e assim será muito amplo: porque eu sou todo mundo,
entende? Quem é da mesma família entende sem muita explicação. Quem não é, fazer o quê?
Dar detalhe cansa.
Mas eis que, semana passada, chegou uma carta irada. Um senhor lá das Minas Gerais
dizia-se cansado das minhas “lamúrias”. Falava coisas como “pessimismo mórbido e doentio”
(oh Deus, estes oito anos de análise e uma alta servem pra quê?) e — medo! — dizia-se temeroso
de que eu “influenciasse os jovens a cometer suicídio”. Nefasto Caio F.: seria eu tão poderoso e
fatal assim? Uma espécie de Jim Jones da crônica?
Isola, rápido. Ô meu senhor, não quero isso não. Queria outro mundo, outra ordem social,
outras relações humanas — e me sinto um tanto idiota tentando explicar o que me parece óbvio.
Mais carinho, mais beleza, mais justiça, mais alegria. Qualquer coisa que qualquer pessoa
razoavelmente normal (mas “de perto ninguém é normal”, lembra?) quer. Mesmo um punk, só
que o jeito de querer do punk é do avesso. E o avesso é um jeito tão bom quanto qualquer outro.
Além disso, não tem só cara e coroa. Tem cara, coroa — e quina também.
E é aí que não entendo certas pessoas. Principalmente essas que chamo de “as trolhas do
Apocalipse”. Sabe aquelas bem-intencionadérrimas? Sabe aquela linha o-que-será-do-futuro-de-
nossas-criancinhas? Sabe aquela linha vamos-valorizar-o-sorriso-de-uma-criança-o-voo-de-uma-
borboleta-e-o-azul-do-firmamento? Viver é barra, meu senhor, Deus é naja e o amor — com
licença de Maria Rita Kehl — é uma droga pesada. E nada tenho contra barras, najas ou drogas
pesadas. Só não acho que fazer aquele cretiníssimo “jogo-do-contente” de Pollyanna seja a
melhor maneira de enfrentar e compreender o real. Todo mundo é médico e monstro. A vida
também. Você deve ficar ao lado do médico, mas encarar o monstro quando ele pinta. Senão,
meu caro, um dia ele te devora.
Acho que todo mundo interessado em situar-se um pouco nestes anos 80 deveria ouvir pelo
menos uma vez “Só as mães são felizes”, de Cazuza. Tá tudo lá. Amargura não existe, quando se
tenta compreender. E pessimismo, pra mim, é palavra sem sentido quando penso em Chernobyl
ou Cubatão. Nem sempre o que é fácil é bom — me dizia um dragão, naquele domingo de chuva
no aeroporto. Autoconhecimento, e por extensão inevitável o conhecimento dos outros e do
mundo, não é exatamente um mar de rosas. Mas nunca tive medo de nada — de dentro ou de
fora — que pudesse ampliar minha consciência. Acho que esse é o único jeito digno de ser. Por
isso mesmo, durmo em paz toda noite. Muitas vezes só, confuso, angustiado, assustado — mas
absolutamente certo de que sou uma pessoa legal. Ainda não nasceu a trolha do Apocalipse
capaz de me provar o contrário.
Metade luz, metade treva. E esse fio de navalha entre os dois, corda bamba afiada onde
você, sombrinha aberta na mão, pé ante pé se equilibra. Ou tenta. Sem rede de segurança, mas
com um sorriso nos lábios e um grande, enorme e sonoro axé! no coração. Pra todos nós.

O Estado de S. Paulo, 9/10/1986


Então vamos
continuar dançando

Alegria não é montanha nem é fogo, não é vento nem trovão.


Lago sobre lago, boca também.

Ia saindo do cinema, meio aflito com a viagem paranoica de Martin Scorsese, em After hours.
Um rapaz desconhecido passou e perguntou se eu era o Caio. Quis responder suponho-que-sim,
ou estou-tentando-ser, ou o-que-é-que-você-quer-dizer-com-isso? Melhor não complicar, falei
que sim. E como vai sua namorada? — ele perguntou. Que namorada? — perguntei de volta,
sem conseguir — ai! — lembrar de nenhuma. São Paulo, ele falou. Não precisei pensar muito
para dizer: “Ela está ótima”.
Saí lembrando de algo que escrevi aqui faz algum tempo, sobre a feiura desta heavy and
lovely Sampa. Pelas escadarias e corredores da Galeria Metrópole, apinhados de darks-culturais,
comecei a pensar nesses dois olhos abstratos e invisíveis que temos, além dos dois reais-
palpáveis. E que são assim: um olho de ver-feio, outro de ver-bonito. No frio inesperado de
quase novembro, de repente estavam certas as ruas sujas de propaganda eleitoral, o eterno
engarrafamento e todas as outras feiuras objetivas que tenho preguiça de enumerar agora. Mas
meu olho de ver-bonito, percebi, tinha voltado.
Comecei a pensar na alegria. Fazia tempo que eu não pensava na alegria. E, porque as
coisas vão sempre se juntando de maneira aparentemente aleatória (atenção: eu disse
aparentemente), lembrei do Mickey de Woody Allen, em Hannah e suas irmãs: Deus e o prazer
começando a existir no escurinho do cinema, num filme dos irmãos Marx. E o canal certo em
que Mickey entra — o do prazer mesmo modesto, mesmo pequenino — depois de gastar-se em
angústias do tipo se-vou-morrer-um-dia-de-que-serve-isso-agora? Lembrei do alucinado Paul, no
filme de Scorsese, que coloca sua última moeda na jukebox e tira uma coroa pra dançar Peggy
Lee: Is that all there is? — “Se a vida é só isso/ então vamos continuar dançando”.
Como as coisas continuam se juntando aparentemente ao acaso, cheguei em casa e fui
ouvir Bebel Gilberto cantar com sua voz limpinha a letra de Cazuza (de onde o Cazuza tira essas
coisas?) para “Mais feliz”: “Como uma pedra que divide o rio/ me diga coisas bonitas”. Me disse
várias, lindas, e saí dançando sozinho pela sala. Lembrei de Oswald de Andrade: “Alegria é a
prova dos nove”. Fui deitar com o I Ching e o hexagrama 58, Tui, Alegria. A alegria não é fogo,
não é vento, não é montanha nem trovão: Alegria é lago sobre lago, Tui é lago e também é boca
— “Quando os homens alegram uns aos outros através de seus sentimentos, isso se manifesta
pela boca”. Não é a euforia descontrolada: lago fundo, mas sereno. Quase nem se move.
Na cozinha tem mel de maçã, trazido de Monte Verde. Flashback: no balcão do
restaurante, esperando mesa, teus olhos encontraram outro dia os meus e ficaram cheios de
lágrimas de pura alegria. Por um segundo, os meus-teus-nossos olhos de ver-bonito não
seguraram as lágrimas, e quase não conseguimos falar, para repetir palavras atordoadas,
engasgadas como sim, sempre, obrigado, que bom, eu também. Para com isso, quero gritar para a
Legião de Amigos Desesperados: tira esse dedo do espinho, cara! Antes de dormir, procuro
aquele poema de Cummings que Michael Caine descobre em Hannah. E porque tudo continua a
se juntar, não encontro aquele, mas encontro este, cujos versos finais fico relendo com o I Ching
aberto em Tui: “…listen: there’s a hell of good universe next door; let’s go”. Na próxima sexta,
vou sair outra vez só pra dançar. Vem comigo, o ano está quase no fim e eu quero é mais.

O Estado de S. Paulo, 29/10/1986


Bye-bye, 10ª mostra

Não, esta semana não tem mais doces encontros, conhaque no Eldorado, sessão no Metrópole

Acabou-se o que era doce. Quem gostou regalou-se. Quem não gostou danou-se. E não sabe o
que perdeu. Quanto a mim, deitei e rolei na Mostra de Cinema. Já comecei a sentir falta. Esta
semana não tem mais conhaque no Eldorado e sessão no Metrópole, nem bloody mary no
Longchamps e sessão no Majestic. Não tem mais as luzes apagadas e aquela adrenalina toda se
soltando na musiquinha dos Claps, de Marc-Henri Wajnberg, o Chaplin performático. Não tem
mais Sérgio, Rosa, Samuca Jagger, Eva, Paulo, Lucienne, Nelson Pujol, Cidinha, Bivar e aquelas
outras caras amigas boas e raras de se ver. Nem aquelas caras desconhecidas aos poucos se
tornando conhecidas, até pintar um cumprimento meio encabulado.
Pausa: como as pessoas não se olham em São Paulo. Se veem, mas não se olham. Como as
pessoas são ariscas em São Paulo, e como tem gente bonita em São Paulo. Atrás do pretexto dos
filmes, a festa aonde a maioria vai para ver e ser visto. Cuidadosa produção: por trás do
marketing dos modelinhos e dos papos, a ansiedade de descobrir o mais novo, o mais in —
marketing também. Metade ridículo, mas tão humano. Jeca e chique: circo total. Uma delícia,
coisa de gente urbana. Nosotros, macaquitos informáticos. Coração, pastiche de neon. Então os
filmes. Não vi tudo. Por falta de tempo, perdi coisas imperdíveis e imperdoáveis. Me escaparam
Tokyo-Ga, de Wim Wenders, todos os escandinavos (será que um dia cruzo Twist & Shout?),
todos os checos, espanhóis e latino-americanos (à exceção daquele brega-gay argentino: Outra
história de amor). Decepções: não consegui achar o menor interesse em Mona Lisa, apesar
daquela negra linda e bandida, a cara de Deise Nunes, Miss Brasil, e quase dormi em My
beautiful Laundrette. Mas, numa noite de domingo, saí trêmulo da bad trip de Sid e Nancy e a
beleza sórdida do casal tão junkie, mas tão junkie que não percebe a fronteira onde o amor
começa a se transformar em morte. Madame Satã, perto, é puro Disneyworld. E teve aquela
gorda maravilhosa de Sugarbaby, do alemão Percy Adlon, o simples com uma câmara pirada, e a
descoberta de Jean-Jacques Beineix, com Betty Blue me deixando uma pergunta inquietante na
cabeça: será que você precisa realmente matar o que ama para poder criar? E Tarkovsky, Fellini
— antes de mais nada e acima de tudo Fellini —, Scorsese, Stelling.
Não, esta semana não tem mais vento esvoaçando os cabelos de Nastassja Kinski, nem os
arrotos de Sid Vicious, não tem mais Fred dizendo no escuro para Ginger: fui parar no
manicômio quando você me deixou, nem a garota doidinha pelos Monkees, não tem mais o rock
and roll da Gorda com o pateta Hüber, nem os olhos vidrados de Video Record, nem aquela seca
e triste cena de sexo de manso horror em O homem da linha, nem o clap se transformando — que
nem nós — em chinês, superman, mágico, palhaço, roqueiro, atleta, mexicano.
Para onde vão os filmes, dentro da gente, depois que você sai do cinema? Ficam
misturados na vida, na emoção, na memória. Te esperei tanto na saída de Sid e Nancy, acho que
foi ali que comecei a perceber que não tinha mesmo jeito, você estava tão diferente na Lua na
sarjeta, perdão não ter te dado aquele abraço que você pediu no fim de Betty Blue, e quem era,
afinal, aquele cara do seu lado na fila do The Pretenders? Ah, meu bem, tudo já rolou. Como eu
ia dizendo, acabou-se o que era doce. E eu, que nem sequer como açúcar, me empapucei tanto
que me sinto no direito, embora não os conheça, de mandar um beijo bem estalado para Iara Lee
e Leon Cakoff. Assim: smack! Quero dizer: clap!

O Estado de S. Paulo, 6/11/1986


Sexo: mais ou menos?

As novas gerações transam menos. Você já parou e pensou sobre essa terrível verdade?

Me telefona uma repórter. Está fazendo uma matéria sobre comportamento-sexual-das-novas-


gerações. Quer minha opinião. Diz: “As novas gerações transam menos. Você, que escreve para
jovens, o que acha disso?” Fico atordoado. Pera lá, digo, não escrevo para jovens. Não ponho um
papel na máquina, determino “isto é para menores de vinte, ou isto é para maiores de quarenta”
— e começo a escrever. Não existe escrever para.
A moça suspira. Eu também. Certo, certo: somos pacientes um com o outro. Esclarecido
esse ponto, voltamos à primeira parte da pergunta. Que não é uma pergunta, mas uma afirmação:
as novas gerações transam menos. Fico me perguntando: as novas gerações transam mesmo
menos? Será que as novas gerações realmente transam menos?Pergunto a ela: quem garante? A
moça fala de pesquisas, es-ta-tís-ti-cas, meu bem. Quem sou eu para duvidar? Certo,
continuamos pacientes, por favor não me enlouqueça. E vamos tomar isso como dado posto,
indiscutível, irrefutável, inabalável. As novas gerações — oh! — transam menos.
Aí eu piro um pouco: o que é que você quer dizer com novas gerações? As novas gerações
da zona sul do Rio, ou dos Jardins de São Paulo, comportam-se da mesma maneira que as novas
gerações de, digamos, Quixeramobim, interior do Ceará? Ah, sim: a aldeia global, os meios de
comunicação, a novela das oito ou das sete, as letras de rock. Então você pega esse monstro sem
face, soma, diminui, divide, faz a média e resulta numa face mais ou menos definida. Essa, a das
novas-gerações. Que, afirma-se — com base em ESTATÍSTICAS — transam menos.
Vamos em frente? Transam — o que é mesmo que você quer dizer com transam? Ah, não
vai me dizer que você não sabe. Bem, suponho que sei, só queria confirmar se o que eu suponho
que sei será exatamente o mesmo que você está supondo que sabe. Transar seria — digamos —
fazer amor, namorar? Isso, isso. Nove semanas e meia de amor, império dos sentidos, o côncavo,
o convexo, último tango no Ritz — por aí? Ah, finalmente vejo que começamos a nos entender:
sexo, falou?
Médio, porque tem o menos. Como assim, menos? O que é mais, o que é menos? Sete
vezes por semana seria mais ou menos? Bom, não sei, tem gente que — imagino — transa até
vinte vezes por semana. Não, isso é exceção. Como, exceção? Se houver alguém disposto a
transar com, porque suponho que sozinho não vale, caso contrário sua matéria seria sobre
masturbação, certo? Certo, certo. Mas menos em relação a quê? A uma média predeterminada de
mais e de menos? Menos em relação às gerações-anteriores? Menos em relação a uma
quantidade considerada “normal & saudável”? Mas não tenho a menor ideia do que seria normal
& saudável, cara senhora. Espera aí, precisa considerar o novo moralismo. Ah, existe um novo
moralismo? Evidente que sim. Basta pensar em Ronald Reagan, no papa e em Margaret
Thatcher, sem falar no vírus da aids. Penso — três da tarde, todas essas máquinas batendo, dez
pessoas em volta falando ao mesmo tempo, meia dúzia de telefones tocando e esta vontade de
viver em Java —, o pânico cada vez menos lento começando a desabar.
Confesso que estou abismado com o fato de que as novas gerações transam menos. Eu
nunca tinha imaginado que as novas gerações ousassem transar menos. Como é que vou
sobreviver agora, depois de ter certeza de que as novas gerações transam menos? Amanhã você
lerá no jornal essa verdade terrível, capaz de modificar todo o rumo da civilização
contemporânea, e, pertença às novas ou às velhas gerações, também passará a transar menos. No
mínimo, para não ficar por fora. Tudo — menos ficar por fora. Leia no jornal como você deve se
comportar. E faça o possível para transar menos: é super-in, cara. Até que eles decidam — já
pensou? — que as novas gerações transam é mais.

O Estado de S. Paulo, 12/11/1986


O movimento do tempo

Jovem, velho: essas palavras perdem o sentido quando ambas se encontram no ponto vivo

Novo, antigo: não sei mais o que é isso. E andava pensando nessas coisas quando de repente,
como se fosse por acaso, me cai nas mãos um artigo do Jornal do Brasil da última sexta-feira,
escrito pelo Paulo César Coutinho, e exatamente sobre o mesmo assunto. (A propósito: foi das
mãos de Paulo César, há quinze anos, que recebi aquele primeiro sonho dourado. De mãos
melhores, impossível.)
Jovem, velho: não, não sei mais o que é isso. Gosto de música, por exemplo, e atualmente,
no hit-parade lá de casa, os dois primeiros colocados (empatados) são “Me chama de Lobão”,
com João Gilberto, e “Luz negra”, de Nelson Cavaquinho, com Cazuza — entendeu? Cazuza, o
“jovem” roqueiro (o melhor deles, e faço questão de repetir uma vez mais: na minha
modestíssima opinião, Cazuza é o que de melhor aconteceu à MPB depois de Caetano) cantando
lindamente o “velho” Nelson Cavaquinho. E o “velho” João Gilberto cantando — mais
lindamente, difícil imaginar — o “jovem” Lobão. Jovem, velho, novo, antigo — deixam de ter
qualquer significado quando ambos se encontram nesse ponto justo. O ponto vital, o ponto belo,
o ponto vivo.
Em seu artigo, falando da passagem (inevitável) do tempo, Paulo César diz: “Mas é
possível fazer essa viagem escolhendo o presente como região ideal de moradia”. Sim: lembrar
do que passou é perfeitamente humano e natural, mas, se você começa a querer que o tempo
volte, e em consequência a fechar-se para o presente, aí começa também a correr o risco de sentir
errado, começa a cair fundo e sem volta no círculo da frustração. Porque o que passou já rolou,
não tem volta. Falo o óbvio tão óbvio que nem todo mundo vê. Ou se recusa a ver — tão mais
confortável manter-se hipoteticamente nesse plano estável onde nada muda — e é então que
começa a envelhecer. Envelhecer do mal, envelhecer na treva, sem esperança nem paciência para
o “novo”. Que existe.
O velho também existe, sim, mas só quando se recusa a ver o novo, porque é se
alimentando do novo que o velho consegue deter a sua esclerose. Como o novo: que precisa
alimentar-se do “velho” para não permanecer eternamente com aquele gosto ácido de maçã
verde. Repuxenta, dizia minha irmã Márcia quando era criança: o novo que se supõe o primeiro
novo sobre a face da Terra e ignora tudo o que veio antes, tem sempre esse sabor repuxento. Eu
mesmo fui muito repuxento.
E eu também tinha tanto medo dos quarenta anos — como aos vinte tinha pânico dos
trinta, e eles chegaram, passaram, e eu resisti, e você e ele resistiram também, e vamos
ultrapassar os quarenta, e quem sabe os cinquenta, e depois os sessenta, e assim por diante. É que
ninguém me/nos preparou para ir envelhecendo, somos educados para a eterna juventude — e, na
eterna juventude dos vinte anos, a velhice é uma coisa que só acontece aos outros. Apenas aos
trinta, na primeira volta de Saturno (cronos), é que vem a primeira percepção de que o tempo
existe.
O tempo existe, sim, e não congela — feito Plano Cruzado. Ou, se você supõe que congela
(sempre há formas artificiais, científicas ou neuróticas, de fingir que sim), corre o risco de ver
tudo desabar de um dia para o outro. Mas dentro do movimento do tempo, e desses pequenos
acidentes meio lamentáveis e totalmente inevitáveis que acontecem no nosso corpo, há qualquer
coisa que resiste sempre, tão novinha e fresca como a pele de um bebê. As almas atentas nunca
deixam de cheirar a talco — como a do Juvenal Pereira, por exemplo, que hoje (segunda) faz
quarenta anos. Ele está sentindo a maior firmeza. Eu também, colega. Agora é que vai começar a
valorizar. Cada vez mais.

O Estado de S. Paulo, 26/11/1986


Palavras ao vento

Segunda esquizocrônica, para ler ao som de Jim Morrison cantando, por exemplo, “The end”

No domingo em que não há nada para dizer ou fazer, ouvindo The Doors às cinco da tarde:
C’mon baby, light my fire. Era uma guia de candomblé que Jim Morrison usava? Pergunto se ele
esteve no Brasil um dia, ninguém sabe responder. Talvez na África, arriscam. Coloco o pêndulo
sobre essa foto em preto e branco — fosse colorida, daria para ver os orixás, há um Oxalá nítido,
quem sabe Oxóssi? — e pergunto se ele está vivo. O pêndulo gira afirmativamente. Haverá
algum corpo naquele cemitério de Paris onde dizem que o sepultaram? Senão, onde andará Jim
Morrison? Como um fantasma da ópera, como um fantasma do rock, com outro rosto, quem
saberá — mas onde? Do outro lado da mesa, Jacqueline come gelatina enquanto conta de seu fim
de semana on the road, em Santos, com a Plebe Rude e Siouxsie and the Banshees. Foi legal? Foi
legal, e você? Fiquei ouvindo The Doors. “Eu também, bem, tenho escrito” — dizia Ana C. Vou
indo assim, pelo escuro. E hoje é aquele domingo em que não há nada para dizer. Tudo muito
pessoal, tudo sempre excessivamente pessoal, desculpe. Posso te contar de Morgana das Fadas,
que desapareceu — serve? Posso reclamar daquela carta boba que chegou terça-feira passada.
Não, não devo. Melhor evitar esses caminhos. Os outros também. E se não de repente, mas
pouco a pouco, você começar a evitar todos os caminhos? Chega o dia, então, em que não há
caminhos. Chegará o dia em que o não caminho será o próprio caminho. Não procurar é
encontrar? Falando francamente, não creio que um forno de micro-ondas ou uma bateria
eletrônica possam resolver o(s) seu(s) problema(s). Jogo as ervas mágicas na água cuja superfície
não se agita quando pergunto, leve ansiedade, se não há mesmo nada que eu possa fazer. Na
véspera da lua nova, perdi a Visão. E quando você caminhar pelas ruas de Berlim, com a negra
capa marroquina, pensará em mim? E quando você correr, de manhã cedo, pela areia branca de
Ubatuba, pensará em mim? E quando, lá no sul, por acaso ouvir Linda Ronstadt cantando
Forgetting, de repente e sem querer, pensará em mim? Ah, c’mon baby, light my fire. Brasília em
chamas, e eu não votei no PMDB. Posso te contar também de Kyotara, a cidade africana onde
50% da população está contaminada com aids. Afinal, hoje é aquele domingo em que não há
nada para dizer, precisamos enchê-lo de palavras. Ao vento, tanto faz. Ou de coisas horríveis,
mas não quero encher o papel de coisas horríveis neste domingo sem nada para dizer. Melhor
espalhar pistas ao acaso — palavras ao vento: era o nome de um filme onde as palavras se
perdiam no ar, assim como estas? Não, você não merece ouvir nem ler coisas horríveis neste
domingo onde não há nada para dizer. Me convida pra ir ao cinema, me traz o JB com Tutty
Vasques, me apresenta uma Coca-Cola bem gelada. Diz que me ama, qualquer bobagem. “É
agora, nesta contramão” — dizia Ana C. Não me reduza, não escreva meu nome no
microcomputador, não me dilua como quem coloca água num café forte demais. Tenho um fraco
por quem bebe café forte, e sem açúcar. A chuva desaba, enquanto acendo a vela: eparrê, Iansã!
Dezembro costuma trazer esses t(r)emores, renúncia, palavra brega, sabor pelmex. This is the
end, beautiful friend, my only friend, the end. Sim, às vezes também me passa pela cabeça:
aquele salto, o outro lado de uma vez por todas. C’mon baby, light my fire: ouvindo sem parar
The Doors às cinco da tarde, no domingo em que não há nada para dizer ou fazer. O que me
consola é que — não, nada me consola hoje. Na véspera da lua nova em que perdi a Visão. Toma
da minha mão e promete baixinho, para me enganar — que importa ? —, assim: amanhã, quem
sabe? “E cante. Puro açúcar branco e blue” — dizia Ana C. É para você, para você que escrevo
— dizia ela também, um instante antes de. Ausência assimilada, tentação contínua.

O Estado de S. Paulo, 3/12/1986


Caetano, caetanagem

O problema de Caetano são as tietes. E as antitietes. Mas eu, tu, ele: todos caetaneiam

Faz tempo que desconfio. Na última sexta-feira, tive certeza: devo mesmo estar enlouquecendo.
Fui ver o filme de Caetano — e gostei. Mais inquietante ainda — não achei chato. Isso que fazia
um calor senegalesco no Cine Metrópole tomado por tietes frenéticas, eu tinha acabado de sair de
um fechamento, estava com fome e sede. Do ponto de vista do conforto físico, não havia clima
para tolerar, por exemplo, dez ou quinze minutos de Hamilton Vaz Pereira recitando páginas e
páginas de Grande sertão: veredas. Mas de repente eu tinha relaxado, e foi ficando gostoso estar
lá, atento à música da palavra de Guimarães, o Rosa, enquanto via a cara boa de Hamilton.
Preciso reler Guimarães, pensei. E achei bom pensar — mais que pensar: querer isso. Por que
não?
Falei em tietes. O problema de Caetano, coitado, são as tietes. As tietes e antitietes.
Caetano faz ou diz uma coisa — qualquer coisa — e imediatamente as tietes caem de joelhos em
adoração profunda, enquanto as antitietes correm em busca dos seus mais fétidos tomates &
pútrefos ovos para jogar no ícone. O que é, também, uma forma de tietagem. Só que às avessas.
Odiar Caetano, adorar Caetano — não há meio-termo. Nesses extremos, perde-se o centro,
perde-se a quina da cara e da coroa, perde-se o ponto exato da junção/fusão entre ying e yang, ou
seja: o próprio Caetano. Sua sensibilidade especialíssima, tudo o que ele tem para dar de toque
ou dica. Preste atenção. Por que não?
Presto sempre atenção no que Caetano diz e faz: ele me interessa. Como prestava atenção
no que Clarice Lispector escrevia, como presto atenção na cabeça de Augusto de Campos, como
presto atenção nos filmes de Arnaldo Jabor (quem reviu O casamento, na Globo, há duas
semanas, sabe que vale a pena), como presto atenção nos desenhos de Mira Schendel. Então,
assistindo a O cinema falado, quando minha cabeção esquizo sobre o corpo cansado queria
escapar pelo lado fácil do “ô, que saco essa falação!”, uma outra coisa se dividia e — sem razão,
além da razão — ia fluindo e se encantando. Por que não?
Se encantando com Rodrigo Veloso dançando Águas de março, deixando um arrepio
correr na pele com Dona Canô cantando Noel Rosa, pensando “que bonito” naquela composição
em preto e branco, um corpo feminino branco, outro masculino negro, com o próprio Caetano e a
igreja de Santo Amaro da Purificação ao fundo, com Mário Peixoto explicando a onda que
quebra, a voz luminosa de Nana Caymmi sobre a cidade do Rio, o pavão-Caetano quase no final,
a criança-Caetano na última cena, tentando fazer direito uma coisa que ele não sabe: cinema. Se
é que existe jeito certo, pois jeito errado é jeito como qualquer outro. Por que não?
Se você for ver com espírito de tiete, vai dar pulinhos de alegria. Se for ver com espírito de
antitiete, vai dar pulinhos de ódio. Mas se você conseguir “pegar” O cinema falado como quem
pega, digamos, um livro de poesia e folheia ao acaso — que bonito este verso, que chato isto
aqui, que fecho criativo, este ritmo não tem nada a ver — e deslizar, só deslizar, com alguns
solavancos inevitáveis, sem a menor preocupação de tirar qualquer conclusão, que bom pode ser.
Quem criticar O cinema falado vai se ferrar. Quem discutir O cinema falado vai se ferrar. O sexo
dos anjos não importa. Mas os anjos em si são tão interessantes com suas asas, percebe? E por
que não?
Saí cheio de ideias. Algumas bobas, outras quem sabe não. Uma baita vontade de viver.
Cheguei em casa, ouvi vários Caetanos, fiquei dançando sozinho. Não, não é pecado apostar na
alegria. Que bom Caetano existir: o leite mau na cara dos caretas. Eu quero mais é caetanear o
que há de bom. Com mil Suzanas Amarais — por que não?

O Estado de S. Paulo, 10/12/1986


O girassol e a greve

A greve geral não aconteceu. Nem o filme francês. Mas há um girassol na avenida Paulista

Vi um girassol na avenida Paulista. Se você quiser conferir, ele ainda deve estar lá, quase na
esquina da Consolação. Venha da Bela Cintra pela calçada ali da livraria Belas Artes, como
quem vai para o cine Belas Artes também. Antes de dobrar a esquina — juro —, você vai
encontrar um girassol. Quero dizer, uma daquelas flores parecidas com as margaridas. Só que
maior, bem maior. Ela é redonda. Quero dizer, o centro é redondo. As pétalas, não. As pétalas
são… bem, são pétalas, né? Uma porção. E aberto, o girassol que eu vi na avenida Paulista
estava todo aberto. Isso que nem sol tinha. E o gira precisa do sol para ser.
Foi na manhã da última sexta-feira, bem cedo. Não muito cedo — ah, os hábitos
vampirescos —, aí pelas 9h30 da manhã. Naquela sexta-feira da greve geral. Saí de casa
animado: ah, enfim vou ver um tanque autêntico na rua, e metralhadoras, chamas, saques, gritos,
linchamentos, estupros. Mais, muito mais sangue & ferocidade que no mais radical dos grupos
de rock de porão. Ao vivo, em cores. Qualquer coisa que me fizesse sentir dentro de um filme, de
preferência francês, um filme ou um livro daqueles do tipo Simone de Beauvoir ou Violette
Leduc contando da resistência francesa. Tanques nazistas invadem Paris. E eu meio Jean-CIaude
Brialy, meio Jean-Pierre Léaud (nos bons tempos), razoavelmente sensível, medianamente pirado
e perdido em meio ao povo enfurecido clamando por justiça social. Levaria no bolso um
exemplar em farrapos de Une saison en enfer (Mallarmé seria mais adequado? De qualquer
forma, Rimbaud estaria no peito — não na camisa, que naquele tempo não havia silk-screen —
no peito por dentro, entende?) e os olhos cheios de inquietação & rebeldia. Oh, sweet
colonialismo lítero-político-cinematográfico!
Na manhã da sexta-feira passada, ia indo assim, nesse delicioso (de certo ponto de vista)
ou preocupante (de outro ponto de vista) humor fútil, subindo a rua da Consolação e me
espantando a cada passo. As padarias? Abertas. As bancas de revistas? Abertas. O Mãe Terra,
entreposto natural? Abertíssimo. A rósea Giovanna Baby? Escancarada. Quem sabe na próxima
esquina, pensava o iludido rapaz, enquanto as alamedas passavam e passavam: Lorena, Tietê,
Franca, Itu, Jaú. Nada. Porteiros bocejantes molhavam aquelas plantas sintéticas da frente dos
edifícios. Domésticas apressadas, com suas sacolas de plástico. A fila do açougue com aquele
simpático ágio explícito. Normal, normalíssimo, normalésimo. Normal demais, suspeitei. Quieto
demais. Limpo demais. Quem sabe na avenida Paulista, então, aqueles estonteantes tanques de
guerra avançariam em lenta fila indiana, com a torre da TV Globo ao fundo, em perspectiva.
Talvez um zoom de aproximação? Devo ter começado a assobiar algo como Grandola, Vila
Morena, enquanto contemplava os cravos vermelhos nas vitrines das lojas de flores.
Foi então que vi um girassol na avenida Paulista. Um girassol recém-nascido, titubeante.
Assim mais para Twiggy do que para Fafá de Belém. Mas, inconfundivelmente, um girassol.
Irrecusavelmente, um girassol. Lembrei de um outro girassol que tive, chamado Desdêmona. De
Augusto, que nunca mais voltou da Noruega. De brotos de girassol que plantei e meu pai
arrancou do jardim, certo de que era maconha. De uma reportagem sobre as propriedades
miraculosas dos girassóis. De um poema de Hilda Hilst: “O girassol no muro /enlouquecendo”.
Só um pouco mais tarde, já atravessando o sub-subway da Consolação, foi que lembrei também
daqueles versos de Drummond sobre a flor que nasceu no asfalto: “É feia, mas é flor”. Nem um
tanque nas ruas. Nem uma metralhadorazinha. Meu delicioso humor fútil fez puf! e foi-se. O
filme francês acabou, sem happy end: fui ao banco conferir meu saldo negativo. Fazer o quê,
neste país? Mas o girassol — ah, esse continua lá. Duvida? É verdade, pelo menos eu vi.

O Estado de S. Paulo, 17/12/1986


Gente deve ser bom

Pouco a pouco, sutilmente, ela foi morganamente enfeitiçando o prédio inteiro

Foi quando, numa tarde de março, entrei pela primeira vez na redação aqui do Caderno 2. Lá
estava ela, quietinha numa mesa. Alta, magra, olhos negros-penetrantes por baixo das
sobrancelhas onde existe (na direita) apenas um fio branco. Mas isso eu só vi depois. No dia
seguinte, nos mandaram fazer juntos uma entrevista com Hector Babenco. Virginianos ambos
(descobri depois), chegamos antes da hora marcada: pontualésimos. Suco de frutas, café e
cigarros no balcão de uma quitanda da Nove de Julho. E revelações, magias, cumplicidades.
Assim: click. Ligou.
Isso que escrevo hoje é uma homenagem. Porque, de todas as pessoas novas que conheci
este ano — e foram muitas, e muito boas, graças a Deus —, tem esta que. Como dizer, cara?
Texto escrito não tem close, não tem zoom-lento-de-aproximação, não tem trilha sonora para
introduzir a revelação com algo ao fundo como “A sagração da primavera” (no caso dela, talvez
um heavy metal fosse mais adequado), não tem spotlight para acender no momento exato, no
centro do palco.
Minha amiga Marion Frank é demais.
A partir daquele click inicial, desgovernou. Telefonando às vezes para casa, ficou
conhecida como “A Deusa”, ou “a estonteante Fanny Ardant”. Porque Marion é a cara de Fanny
Ardant — Edmur Pereira, outro fã ardente, que o diga. Aos poucos, sutil, com todos os seus
planetas na Casa XII, ela foi morganamente enfeitiçando a redação inteira, o jornal inteiro, o
prédio inteiro. Aquela moça alta, magra, quase sempre de preto. Ela finge que nem vê.
Especialista em matérias do tipo brega, arrasou com o concurso de Rambos, da SBT, ou com o
concurso de Miss Brasil, quando lançou nas paradas Deise Nunes, aquela devastadora mulata.
Minha amiga Marion Frank é do Povo das Fadas.
E pós-feminista. Não se dá ao trabalho de lutar-para-impor-seus-direitos-de-mulher,
porque ela não se sente inferiorizada como mulher: está sempre na mesma altura, seja de quem
for. Homem, mulher, patrão, figurão ou figurinha. Não é arrogante: é igual. Aliás, ela acha que
não devia haver sexo nas pessoas. Ou, então, que houvesse pelo menos meia dúzia de sexos. No
que concordo. Rainha insubstituível do Comando Heavy — e entre os súditos (dos quais sou o
mais submisso) incluem-se demônios do quilate de René Decol, Dagomir Marquezi, Ricardo
Soares (com vagas recém-abertas para Maurício Stycer e Ademir Assunção) —, para quem ela
passará a faixa, o cetro e a coroa quando for embora, agora em janeiro, para Berlim?
Minha amiga Marion F. vai visitar nossa prima Christiane.
Também conhecida como Strecker (líder do grupo hardcore Dead Streckers), Marion
Frank vai embora. Eu não consigo imaginar como serão essas futuras tardes sem a velha e boa F.
infernizando o cotidiano. Baixou uma saia-justa por aqui, desde que todos soubemos. E ficamos
contentes, porque somos legais, somos do bem, e queremos que ela seja feliz, aqui ou lá. Mas.
Pois é: más.
Mas — tudo bem, por que os anos e a vida são feitos de perdas. Chega, vem, vai: esse é o
ritmo. Normal. Uns vão e não voltam, outros cruzam na próxima esquina. De Ipanema ou High
Street Kensington. É assim que as coisas são. Ou devem ser: sem pressa nem dor. Por tudo isso
— e por muito mais, Marion F. — hoje me deu esta vontade incontrolável de escrever pra todo
mundo saber, porque todo mundo precisa saber que você existe, escrever assim, agora, em caixa
alta:
MARION FRANK, VOCÊ É DEMAIS.

O Estado de S. Paulo, 24/12/1986


Dezenas de obrigados

A quem empurrou pra frente, e deu vontade de viver: 365 axés, um para cada dia de 87

Fim de ano sem lista de melhores não é fim de ano. Lista de melhores é feito peru de Natal,
champanha de réveillon, confete de carnaval: indispensável. Por essas, por outras, também tenho
meus melhores deste ano. Que — eu mesmo pasmei, outro dia de repente, meio distraído —
apesar de tudo foi. Ia dizer “ótimo”, mas não foi exatamente ótimo. Ia dizer “bom”, mas não foi
precisamente bom. Foi vivo? Foi: vivíssimo. Foi forte? Foi: fortésimo. Empurrou pra frente, deu
vontade de viver. E o que ou quem deu vontade na gente de viver é que são os meus melhores.
Agradeço antes de mais nada a Ronaldo Pamplona, que teve a santa paciência de me ajudar
a manter a cabeça naquele lugarzinho ao sol, quando a mardita queria escorregar pro lado do
sofrer. Falar nisso, obrigado a Woody Allen, que com Hannah e suas irmãs ensinou que a gente
— se quiser, se souber — pode tirar da vida o mel, não o fel. A cor, não a dor. No mesmo tom,
obrigado a Caetano Veloso pelo disco Totalmente demais e pelo filme O cinema falado, com
palavras, sons e agora imagens mostrando a doçura escondida por trás tanto de um velho tango
de Gardel quanto de um texto de Gertrude Stein, tanto num poema de Augusto de Campos
(obrigado pelo Anticrítico) quanto naquela vontade de ter a sorte de um amor tranquilo, do
Cazuza. E obrigado ao Cazuza, pelas letras para Bebel Gilberto e pela “Luz negra”, de Nelson
Cavaquinho. Obrigado, João Gilberto: que este século saiba manter a delicadeza suficiente para
virar o ano 2000 com você cantarolando “O pato” sobre as cinzas radioativas. Deus nos livre.
Das cinzas, não do pato — claro.
Obrigado a Tom Waits pelos roucos blues que acompanharam certas noites molhadas de
vodca, feridas da ausência de alguém que fugiu — que também tenho minhas Tristes Histórias
Inconsoláveis (como diria Sonia Coutinho). E obrigado, então, a Laurie Anderson por tantas
coisas — o disco, o filme, o papo, o autógrafo no meu Mr. Heartbreak —, mas principalmente
por “Forgetting”, letra para Philip Glass. Obrigado, de viés, a Cecília Meireles, esteja onde
estiver, por ter deixado todos esses versos aos quais recorro quando o coração está esturricado da
sede insaciável que ela sacia. De raspão, obrigado a Mário Quintana pelo telefonema, e a quem
prometo sério, compenetrado: “Não, tio Mário, no que depender de mim, juro não perder essa
aflição de que você gosta”.
Obrigado, e tanto, ao Ricardo Severo, que me chegou de repente, falando de estrelas reais e
dragões científicos, e trouxe o som espacial de seus teclados e as palavras cibernéticas de suas
letras para embalar os agudos de Annie Peréc. Obrigado, então, ao Celso Curi, por ter aberto o
seu Espaço Off para pessoas como as Harpias, Marcelo Mansfield, XPTO, Laurinha Finokiaro,
Luni, Cláudia Wonder, Lala Deheinzelin, Denilton Gomes — e a todos os que lá passaram e que
ajudam a cerzir os buracos da camada de ozônio sobre esta cidade. Obrigado às garotas da
cidade: Eliete Negreiros (quero outro disco lindo como este!), Vânia Bastos, Ná Ozzetti e Suzana
Salles. Vocês são lindas.
Obrigado a Patife Band, a Cida Moreira, aos Titãs, ao Wagner pelo Ritz, ao George Freire
pelo sax em Lillith, ao Paulo Francis pelos artigos, na Folha, a Bivar e Rita Lee pelo
Radioamador, a Nelson Pujol Yamamoto e a Cida de Assis pela Around cada vez melhor, a
Márcia Denser (incluindo Isaura, viu?), João Gilberto Noll, Sérgio Sant’Anna, Antonio Torres e
Maria Adelaide Amaral, pela literatura, e ao Luiz Schwarcz pela Companhia das Letras, a
Marildinha Assunção pelos discos da WEA e pelo astral, a Marina, às garotas que fazem o
underground do Divirta-se das sextas no JT, e a Cecília Thompson pela alegria imbatível nas
tardes.
A quem me lê agora: obrigado. Pra mim, pra você, pra todos nós, meus votos de Feliz 87
neste verso meio antigo de Caetano: “Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca”. E 365
axés, um por dia.

O Estado de S. Paulo, 31/12/1986


Com afeto e mau humor

É só de mentirinha. E na boa. Pois como já dizia o Marcelo Paiva: feliz ano velho…

Muito bem, parabéns: você não queria um novo ano? Reclamou tanto do velho, coitado, que
assim não dá, pô, é uma atrás da outra, tomara que mude logo. Então mudou, o champanha
explodiu, inaugurou: taí o tal de 87. Nas bocas, nas portas, nas datas. Tudo pura formalidade e ti-
ti-ti, porque, você sabe, o novo ano só começa mesmo com o Sol a zero grau de Áries, a 22 de
março. Primeiro rápidos, normais enganos, os talões de cheques, as datas das cartas (alguém
ainda escreve cartas?), depois vai virando arroz de festa. É ele, o novo ano: introjetado até o
limite do automatismo.
Seja como for: novo. E sabe o que você vai fazer? Primeiro, você paga o aluguel, que em
fevereiro descongela, e este talvez seja o último. Depois você tenta dar uma ordem nas gavetas, e
cartas, meu Deus, tantas cartas atrasadas. Aí vem o imposto de renda. Vai rolando, passa uma
semana, duas, três. Em fevereiro, você talvez mude de casa, em março pensa em ir até a Bahia,
no Carnaval, quem sabe Olinda? Mas não há voos, nunca há voos. E São Paulo vazia até que
tudo bem. Dói um pouco, mas a gente aguenta. E esse ano, que não acontece?
Em março você toma um porre e incomoda todo mundo, suja um pouco no edifício, falta
ao trabalho. Uma semana paranoica, esperando consequências. Então você emerge, e tudo igual,
meu Deus, tudo, tudo igual. Você pensa em voltar à terapia, fazer musculação, cooper, ioga,
converter-se ao budismo ou usar um daqueles aparelhos nos dentes que mudam totalmente a
personalidade (para melhor, evidente). A crise passa: em abril você se apaixona. Abril não,
melhor maio, poesia fácil. Em abril você, severo, se recolhe. Nada de bares, nada de noites:
entrega-se a uma daquelas Leituras Que Modificam a Vida. Digamos Duna, de Frank Herbert,
digamos A divina comédia, digamos Dom Quixote — qualquer coisa assim: que modifique tudo.
Aí chega maio. E maio é aquele mês em que você se apaixona. Nunca foi assim, nunca
desse jeito, nunca. Os olhos brilham, o coração bate taquicárdico. Desta vez vai dar certo,
embora ninguém saiba exatamente o que seria dar-certo. Mas desta vez — ah, desta vez — vai
dar. Em junho ou julho, alguém te abandona e você quase-quase desmorona. Fazer o que com a
poupança reservada pras passagens (duas, só de ida) para as ilhas gregas? Mas você é duro, José:
redecorar o apartamento, por que não? Aquela orgia de tapetes, quadros (uma Mira Shendel,
enfim!), videocassete, micro-ondas, freezer. Delícia de delírio yuppie.
Em agosto você não aguenta mais. Sempre os agostos. E morre alguém: ai, o tempo, a
morte, o ser, o nada. Você geme e geme, mas consegue se arrastar até setembro. Em setembro,
nasce alguém. E é tão bonitinho e tão vivinho e cheirosinho com aquele jeitinho de quem nunca
viveu picas, o idiota. Quem sabe na mesma época, você começa a se interessar por plantas, ervas,
chás, homeopatias. Em outubro você está tão reciclado que decide mudar de vida — e porque
este país não dá mais, já que vai mudar de vida, muda também de país. Escreve cartas, dá
telefonemas, batalha bolsas. Em novembro, ai, baixa uma preguiça: verão chegando, chope
gelado & mulatas. Além do mais, você acaba de conhecer alguém — e desta vez, ah, desta vez,
desta vez. Então volta aquela tonteira doce dos dezembros, e, pensando bem, lembrando tudo, até
que não foi um mau ano, você reconhece entre vinhos, champanhas e panetones. Falar em
champanha, está chegando a hora de abrir mais um. Você suspira, agita a garrafa, pressiona a
rolha. Muito bem, parabéns: você não queria um ano novinho em folha? Pois aí está.

P.S. — Andei num astral tão bom que hoje me deu esta vontade incontrolável de ser um
pouco ruim. Sorry: foi incontrolável. Isola!

O Estado de S. Paulo, 7/1/1987


São Paulo, 40 graus

Ai, quem me dera uma palmeira, um mico na bananeira. Quem me dera um marzão azul e
besta…

Domingo de sol, céu azul em Sampa, verão explícito no ar. Apartamento-jaula para quem não
saiu da cidade, nem tem piscina ou banheira. Não há disco, nem livro ou papo telefônico que
satisfaça. Não há Tutty Vasques que refresque. Moleza baiana no corpo, janelas escancaradas
para aquela estupidez de saúde lá fora. Inútil chamar aos quatro ventos radicalidades do tipo
“nunca tive um temperamento tropical”. Trópico ardente (Câncer ou — raios! — Capricórnio?)
na cabeça, rua Augusta afora.
Fantasia impossível: por que não desapropriam Santo Amaro, por exemplo, e fazem um
mar? Eu disse: um MAR, que nem Chica da Silva. Vou escrever uma carta para o prefeito,
levantar abaixo-assinado, desaproprie Santo Amaro, a avenida Santo Amaro só vai fazer falta pra
quem mora lá. Brisa fresca de repente numa esquina da Oscar Freire, cheiro ilusório de sal. Os
darks foram varridos das ruas — e agora, (Wilson) José? Passam blusinhas vermelhas, bermudas
amarelas, minissaias verdes, frentes-únicas roxas e laranja. Vontade de a vida ser igual à capa
daquele velho disco de Cat Stevens, lembra? Vontade de estar dentro de um filme de David
Neves, não de Carlos Reichenbach. Vontade de ser uma letra de música de Evandro Mesquita,
não de Itamar Assumpção. Horror supremo: ser um pagode com Beth Carvalho. Mas COM
MAR. A paulistanice adotiva, mas orgulhosa, balança e dança no suspiro: ah, o Rio de Janeiro!
Invocado o Rio de Janeiro, dois amigos meio-cariocas me arrastam para o teatro. E eu
tenho medo: não, por favor, teatro — teatro com texto, com marcação, drama & muita emoção
rolando solta —, pelo amor da sacerdotisa Viviane, ainda por cima neste calor, N-Ã-O. São
irrecusáveis: A síndrome do Super-Homem, puro bobajol. Me deixe seduzir, além do mais, adoro
a Iara Jamra. Táxis sofridos, suarentas corridas, malhados taxímetros: não está mais em cartaz.
Por que, com mil graus Fahrenheit, os grupos teatrais só avisam os jornais quando entram em, e
não quando saem de cartaz? Iara Jamra, preciso ver A síndrome!
Estonteados pelas vielas do Harlem — digo, Bixiga. Voltar pra casa? Nem pensar. Então, a
cilada. Não posso citar nomes, não insistam, de saída já deixo claro que não vou entregar
ninguém. Afinal, fazer teatro aqui é barra pesada, o pessoal tá cheio de boas intenções, mas não
tem grana, Brasil, você sabe, tudo na raça, brava gente. Vamos assistir a uma, digamos,
unanimidade de underground. Ai, como eles gritam. Por que ator brasileiro precisa dar o texto
tão gritado e rápido? Por que, com dez mil fornos micro-ondas, o ator brasileiro fica tão
preocupado em atuar? Meu guia, me manda uma Maria Adelaide Amaral, um Naum Alves de
Souza, uma Marilia Pêra na próxima temporada, porque eu não suporto mais teatro feito como se
nunca tivessem existido os Sex Pistols, o Plano Cruzado, a Laurie Anderson, o Reinaldo Moraes,
o Pod Minoga, a aids ou o Olhar Eletrônico. Cadê o contemporâneo no teatro brasileiro? Me
avisem, que eu não encontro.
Chopes no Longchamps, lua de neon nessa inutilidade de céu limpo estrelando sobre
Sampa. Ai, quem me dera uma palmeira, um palmo de areia. Ai, quem me dera um sagui na
bananeira. Ai, quem me dera um horizonte de marzão besta pra gente deitar olho na linha do
horizonte e não pensar nada. Nada de nádaras, horas a fio. Ai, que preguiça.
Carma de paulistano é imaginar o Rio de Janeiro em janeiro. Fevereiro também. Mas logo
chega março, e ficaremos inteligentes, criativos & vanguardistas outra vez. Questão apenas de
competência, companheiros, como diria o Piva. Resista daí, você que também não tem férias,
que eu resisto daqui. Amanhã de manhã bem cedo passo numa agência de turismo e pego uns
folhetos turísticos do Havaí. Só pra me abanar. E não me exijam profundidades abissais com este
calorão. Este singelo canteirinho de abóboras é o máximo que consigo hoje. Quero meu leque.

O Estado de S. Paulo, 14/1/1987


Nem só de Aurelião…

Nem cheirando. A Darkira dá release o tempo todo. Prefiro fazer meditação ocidental

Sou leitor assíduo e fã confesso da última página do “Divirta-se”, no Jornal da Tarde das sextas.
No último, Cristina Iori organizou um glossário de palavras e expressões de gíria usadas pela
moçada urbana. Como nem só de Aureliões a gente vive, passei o fim de semana fazendo uma
minipesquisa — e aqui vai minha colaboração à lista de Cristina:

Dar muita explicação. Você vai a um lugar onde não conhece ninguém e tem que ficar
Release —
contando se trabalha, se estuda, e onde, e qual o seu signo, e de que filme você gosta: “A festa
tava média. Fiquei dando release o tempo todo”.

Situação meio hippie. Acampar em Mauá é o paroxismo da vivência. Tomar ácido,


Vivência —
fumar maconha e fazer macrobiótica é supervivência.

Saia — Vem de saia-justa, situação constrangedora, que tolhe os movimentos: “Rolou a maior saia
lá em casa”. Quando muito justa, a saia fica egípcia, ou seja: tão justa que só pode ser usada de
perfil.

Clima lésbico. Maria Bethânia cantando junto com Rita Lee, no Chico & Caetano, foi
Sapateado —
um sapateado.

Figueira — Rapaz grande, musculoso, tipo Rambo, que ocupa espaço.

Jacira —Homossexual afetado, afeminado, estridente: é uma Jacira. Tem variações: Darkira (uma
Jacira dark); Japira (uma Jacira japonesa); Yupira (uma Jacira yuppie); Uspira (uma Jacira que
estuda na USP) etc.

Xotele — Garota biscatinha, que só pensa em sexo.

Pessoa antiga, por fora, não necessariamente velha de idade, mas velhíssima de
Dinossaura —
cabeça. Exemplos abundam, mas dá processo.

Pessoa ou coisa devagar, que atrasa os lances. Fazer pós-graduação é carroça. Ver filme
Carroça —
de Lelouch é carroça.

Xuxa — Ficar bonita ou bonito (homem também pode usar), limpo, saudável, gostoso: “Fui à
sauna e saí uma xuxa”; “Jacqueline tá uma xuxa”.

Encosto —Pessoa chata, alugante, que fica andando atrás de você, não desgruda e puxa papo o
tempo todo: é um encosto.

Naja — Pessoa que diz maldades com charme, graça e inteligência. Exemplo máximo: Telmo
Martino, Tutty Vasques, Paulo Francis e Fanny Abramovich são najíssimas. As najas dizem
najices — um exemplo, do Telmo: “Zezé Motta é uma Leci Brandão que foi às compras”.

Relação amorosa passageira. Vem da linguagem jornalística — fazer um título em


Duas de catorze —
duas linhas de no máximo catorze toques: “Nosso amor não passou de duas de catorze”.

Musgo — Relação amorosa neurótica, densa, longa, cheia de discussões, ciúmes, cenas e
cobranças: “Tava indo tão bem, de repente virou musgo”.

Coturno-frente-única — Sandálias femininas de verão, meio punks, fechadas na frente da perna e


abertas atrás.

Inaugurou —Quando termina ou acontece alguma coisa. Tem que dizer rapidinho, três vezes:
“Inaugurou-inaugurou-inaugurou”. Uma coisa ou pessoa estonteantes também podem ser uma
inauguração: “A torta de galinha do Ritz é uma inauguração”; “Lala Deheinzelin é uma
inauguração”.

Karatê boliviano — Cheirar cocaína: “Pedro é faixa-preta em karatê boliviano”.

Meditação ocidental — Ver TV: “Hoje não tô a fim. Vou ficar em casa fazendo meditação ocidental”.

Programa de índio. Não querer fazer alguma coisa de jeito nenhum: “Show do
Nem cheirando —
Beto Guedes? Nem cheirando”.

Metal —Situação ou pessoa barra, mas legal: “Márcia Denser é metal; Cláudia Wonder é metal;
Lobão é metal; acabar a noite no Vai Improviso é metal puro”.

Prova —Pessoa tão linda, mas tão linda que sua existência é uma prova da existência de Deus:
“Mariana de Moraes é uma prova; Christopher Lambert é outra”.

O Estado de S. Paulo, 21/1/1987


Onde andará Lyris Castellani?

Tinha olhos verdes profundos, abissais. E aquelas coxas morenas feitas de mel e mal

Jamais esquecerei Lyris Castellani. Mas eu tinha esquecido que jamais esqueceria Lyris
Castellani. Só há umas duas semanas comecei a lembrar outra vez. Deve ter sido provocado por
uma crônica de Marcos Rey, perguntando por Elvira Pagã, mas certamente continuou com um
encontro casual com Wladir Dupont. Há alguns anos, num jantar, conversando sobre essas
deusas misteriosamente desaparecidas — entre mais de dez pessoas (todas versadas nesse ramo
da cultura inútil), só o velho e bom Wladir lembrava dela. A minha deusa para sempre preferida:
Lyris Castellani.
Não que tivéssemos tocado no assunto, Wladir e eu. Nem uma palavra. Deixei-o na chuva
e saí pensando em Lyris — onde andará? onde andará? — assim, numa voragem vertiginosa. Eu
precisava saber se havia algo no arquivo do jornal sobre ela: ridículo escrever sobre Lyris sem
uma foto. E havia: nem uma linha de texto, mas quatro fotos preciosas [...], embora nenhuma
delas seja daquelas que eu recortava e colecionava, com paixão e estranheza, entre os doze e os
quinze anos. E lá se vão tantos, tantos. De roldão, sem Lyris.
Jamais vou lembrar exatamente da primeira vez que a vi. Mas deve ter sido nas páginas de
O Cruzeiro ou Cinelândia. O que Lyris tinha para me enlouquecer tanto? Eu conto, embora doa:
tinha olhos verdes profundos-abissais. Tinha lábios carnudos de pecado, tinha a cintura fina de
vespa e — acima de tudo, antes de nada — Lyris tinha COXAS. Ah, que coxas! Tão grossas e
sólidas que merecem este detestável ponto de exclamação que acabo de usar. As coxas de Lyris
eram tão monumentais que, aos poucos, consegui iniciar e seduzir meu irmão Gringo e meu
primo Beco nos mistérios de Lyris. E Lyris deixou de ser nome próprio para se tornar
substantivo, sinônimo de: coxas. Quando a gente espiava um par especial delas, nos
comunicávamos em código: “Que Lyris, hein?”
Aos poucos, descobri tudo sobre ela: Lyris era bailarina de O Beco, em São Paulo (e eu lá,
nos cafundós da fronteira com a Argentina!), depois foi lançada por Walter Hugo Khouri como
atriz séria em A ilha, ao lado de Eva Vilma e Luigi Picchi, filmado em Bertioga. Andei à cata do
filme durante anos. E valeu o encontro: guardo gravada a fogo na memória a imagem de Lyris
encostada numa rocha áspera. Com as coxas à mostra. Aquelas coxas. Lembro dela num pequeno
papel, em Fronteiras do inferno, tropical e demoníaca, e de uma cena forte de estupro num filme
de cangaço (seria A morte comanda o cangaço?). Em todos eles: olhos verdes fundos como o
mar, cintura que se podia fechar numa mão. E coxas. Coxas de coluna grega, coxas morenas de
mel e mal, coxas alucinantes onde qualquer um, fácil, poderia perder-se para sempre. Como
Ulisses perdeu-se entre as sereias. Como eu me perdi até hoje.
Nunca mais soube dela. Nem Abelardo ou Laurinha Figueiredo souberam informar. Posso
imaginá-la casada com um conde austríaco, morando em Viena. Ou numa casinha com quintal,
quem sabe em Vila Mariana, entre roseiras. Se quero me doer, penso nela empapuçando-se de
gim pelas bocas da vida, com um recorte amarelado de jornal na bolsa, entre vidros de Dienpax.
Que morta não estará, pois Lyris é imortal. Mas prefiro imaginá-la feliz: as coxas de Lyris eram a
garantia mais segura de um futuro daqueles do tipo feliz para sempre. Que certamente ela teve.
Mas eu a quero de volta. De alguma forma irracional, como se quer o tempo que se foi. Por
favor — como Drummond procurava Luísa Porto, eu procuro Lyris Castellani. Procurem,
procurem. Até achar. Só não me digam nada se, porventura, ela teve um destino infeliz. Então
prefiro não saber. Melhor guardá-la até o momento de minha morte para sempre assim como a
tive, tantas vergonhosas vezes, na minha adolescência. Me escrevam, me telefonem, me deem
notícias de Lyris Castellani. Se por acaso cruzarem com ela na feira, no elevador, no bar da
esquina ou no Gallery, digam a Lyris que mando meu mais carinhoso beijo. E que jamais a
esquecerei. Domingo último, enlouquecido, casei com ela no altar criado por Mira Haar, em A
trama do gosto. Casei três vezes. Casaria dez, casaria cem, casaria mil.

O Estado de S. Paulo, 28/1/1987


Beta, beta, Bethânia

Então ela chega e diz: “Dá licença, rock and roll, que a tia vai cantar o amor”

Os muito darks que me perdoem, mas Maria Bethânia é fundamental. Sei, vocês vão dizer que
ela é brega, careta, exagerada, melodramática. Pode ser. Mas essa coisa chamada vida, onde
estamos metidos até o pescoço, às vezes também não é brega, careta, melodramática? A vida é
mais Nelson Rodrigues ou mais Clarice Lispector? Mais Augusto dos Anjos ou Emily
Dickinson? Fassbinder ou Jacques Demy? Philip Glass ou Dead Kennedys? Mais Sex Pistols ou
mais Cecília Meireles? Bukowski ou Bergman?
Tudo isso, sim, e muito mais. O engarrafamento às seis da tarde de uma sexta-feira de
chuva, na marginal do Tietê, pode ser uma emoção-Titãs (tipo “Bichos escrotos”). Transar com a
garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e correntinha no tornozelo, pode ser uma
emoção-Dalton Trevisan. Dar um espirro bem na hora de dizer eu-te-amo pode ser uma emoção-
Woody Allen. Assim por diante, cada coisa sendo uma coisa diferente. Porque o que vai sendo
vivido e sentido por cada um é tão particular que, mesmo lugar-comum ou já cantado em prosa e
verso, é para sempre também único. Infinitiva e indivizivelmente subjetivo.
Nossa, como estou me dispersando… o que quero dizer é muito simples — adoro Maria
Bethânia. Por um tempo, aposentei Eurythmics, The Cure, Talking Heads, Legião Urbana, Sting,
Paul Simon — só consigo Bethânia.
Ando tomado por emoções-Bethânia. Essas, que estão morrendo à míngua, porque não é
moderno ter emoções. Não é in sentir amor, envolver-se. Ficou out dizer coisas como “quero
ficar com você/ e é tão fundo que eu posso dizer/ que o fim do mundo não vai chegar mais” ou
“quando os caminhos se separam/ não tem razão que dê mais jeito” ou “é tão difícil ficar sem
você/ o teu amor é gostoso demais”. É burro cantar coisas que eu, tu, ele, nós sentimos? É brega
ter desejos e carências e dores e suspiros assim, de gente?
Sentir não é brega: ao contrário, não existe nada mais chique. Emocione-se, e seja rei da
sua insensatez. Seja nobre, seja divino, no desconcerto das emoções. Maria Bethânia é muito
chique, e quase ninguém está vendo isso. Em “Dezembros”, sem querer fazer nenhuma
revolução, ela chega e diz “Dá licença, rock and roll, que a tia vai cantar o amor”. E eu peço:
Crianças, cessem as guitarras, os teclados, os sintetizadores — um minuto só — e prestem
atenção na voz quente dessa mulher linda do jeito inverso da beleza, cantando (que ousadia!)
amor.
Sei: a aids está solta, e o que era possibilidade de amor agora é possibilidade de morte.
Nem por isso é possível parar de amar. Você consegue? Eu não. E não tenho medo. Sem
platonismos, nem zen-budismos: quero que pinte o amor-Bethânia, dançar de rosto colado, pegar
na mão, à meia-luz, desenhar com a ponta dos dedos cada um dos teus traços, ficar de olho
molhado só de te ver, de repente, e, se for preciso, também virar a mesa, dar tapa na cara,
escândalo na esquina, encher a cara de gim, te expulsar de casa e te pedir pra voltar.
Darks, pós-modernos, minimalistas, glitters, apocalípticos, concretistas, skinheads, me
perdoem. Na noite de sábado, caminhando sozinho pela avenida Paulista, o quarto-crescente
brilhando sobre a torre da TV Globo, uma vontade desesperada de ter alguém — as únicas
canções que me vieram à mente para cantar baixinho foram canções de Bethânia. Doía fundo
estar perdido na grande cidade, era completamente sem remédio ser só uma pessoazinha
machucada. Mas brotou então um orgulho tão grande de ser ainda capaz de sentir o coração
cheio de emoções-Bethânia que era quase como uma felicidade. Sagrada, do avesso — que
importa? Era real, era vivo. Isso é muito, e Bethânia canta.

O Estado de S. Paulo, 11/2/1987


Um prato de lentilhas

Queremos nossos direitos, nossos futuros, nossos sonhos. Nosso ridículo votinho…

Parem o mundo que eu quero descer. Só um pouquinho, não vai atrapalhar ninguém. Deixa eu
descer do mundo, que tá duro demais. Ou pelo menos descer do Brasil, que, se o mundo tá duro
assim, este país então tá insuportável. Ministro Celso Furtado, me arruma uma bolsa de estudos.
Pode ser pra Assumpción, Paraguai — estudar culinária, por exemplo, ou botânica. Não me
importo com o curso, nem com o país. Não precisa ser chique, não, nem do primeiro mundo:
África, Oriente Médio, América Lat(r)ina, qualquer coisa serve. Desde que eu saia daqui. E
quando digo aqui, digo São Paulo, digo Brasil, digo fevereiro de 1987. Digo agora, digo já. Para,
por favor, que eu quero descer.
Seu Zé Sarney, senhores poderosos — sempre tive nojo de política, de poder, de economia.
Até hoje, não tenho a menor ideia do que raios seja uma OTN, e me sentiria muito mais à
vontade dentro de um OVNI (hmmmm, tentação!) do que diante de um formulário de imposto de
renda. Mas senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e suja que nem sei mais se
posso chamar “Brasil”, vossas excelências sabem o que anda acontecendo nesta terra? Parece
que não. Os senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas? Senhores donos do
poder dos nossos míseros destinos: apenas parem um pouquinho numa esquina qualquer, de
qualquer cidade, e olhem a cara da gente que passa. Por uns cinco minutos, e basta: vai ser mais
eficiente que um Ph.D. em Sociologia.
Vai doer, se é que alguma coisa dói nos senhores (nem sequer a consciência?). Está escrito
na cara dessas pessoas brasileiras que elas não têm um futuro, não têm onde morar. (A propósito,
semana passada fui a uma imobiliária, tentar arranjar meu aluguel — não sou dado a rogar
pragas, porque elas pegam, mas um dos senhores bem merecia passar uma tarde como a que eu
passei.) Em qualquer país decente (eu disse: decente), um ser humano já nasce com sua
segurança garantida, é só viver. Aqui, a gente tem que arrancar — no braço, no dia a dia — o
mínimo essencial para não morrer. Depois te roubam na esquina, no restaurante, no
supermercado. E a gente ainda querendo ser feliz…
Nunca fui fiscal de Sarney, jamais acreditei naquela versão em economês de Pollyanna
chamada Plano Cruzado, como também não acredito nesta ou em qualquer outra que venha dos
senhores. Mas suponho que alguém (alguns) deve ser responsável pelo que acontece na vida
prática do povo, na vida objetiva material. São os senhores? Então eu tô cobrando meus direitos:
porque não tá dando nem pra comer, nem pra vestir, nem pra morar, e muito menos pra sonhar.
Aí fica mais grave, porque os senhores não têm o direito de matar sonhos. E não venham nos
pedir mais paciência. Estamos muito machucados, muito explorados e enganados para ter essa
coisa mansa chamada paciência. Era Brecht que dizia: “Trazei primeiro um prato de lentilhas/
porque moral, somente após comer”. Era, sim. Pois é.
Tem mais: QUERO escolher meu presidente. Exijo. Não fui eu nem ninguém quem
escolheu esses senhores que estão aí em cima arrebentando a vida da gente. Estamos zerados no
banco, despejados, assaltados, e precisamos comer amanhã. E falo no plural porque sou só um
brasileirozinho igual a milhões de outros, certamente — eu sei — com muito mais privilégios do
que a desgraçada maioria. Com ou sem privilégios, quero os meus direitos. Quero meu futuro.
Quero meus sonhos. Quero pelo menos meu ridículo votinho. Quero, não; queremos. Quem me
dá? Pra quem — desde que roubaram a minha juventude, em 1964 — eu posso reclamar?
Fico com ódio, e no meio do ódio me voltam à cabeça aqueles versos de Mário Quintana:
“Eu nada entendo da questão social/ eu faço parte dela, simplesmente…” Que bom que a gente
ainda pode lembrar de versos. Até querer trocá-los por uma metralhadora?

O Estado de S. Paulo, 18/2/1987


Anjos da barra pesada

Uma viagem, um show, um amigo, um filme: aqui e lá, perguntas e respostas ainda são as
mesmas

Semana passada, fui ao Rio. Estava exausto, sem energia. Tempos atrás, quando você andava
assim (exausto; sem energia), ia ao Rio. Costumava dar certo. Desta vez, não deu. Chovia, não
tinha sol. Pior, e mais insidioso que isso, havia pelo ar esse mesmo tipo de medo e desamparo
que deixam ainda mais cinza o ar de São Paulo. O que está havendo com este país? — continuei
a perguntar lá, como pergunto aqui. E todos respondiam, lá, o mesmo que respondem aqui:
dengue, meningite, aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro.
Mas insisti. Umas noites, uns bares. Fora o belo e incompreensível Electra com Creta, de
Gerald Thomas, o melhor — ou pelo menos o mais vital, o mais cheio de pique — vinha de São
Paulo mesmo: Cláudia Wonder e a banda Jardim das Delícias. Não consigo compreender como
uma gravadora ainda não contratou Cláudia para gravar um álbum chamado Vem pra barra
pesada, meu, título da versão que ela canta de “Take a walk on the wild side”, de Lou Reed.
Assistindo Cláudia, de repente: Cazuza. Que vem aí, de disco novo pela Polygram, chama-se Só
se for a dois. Mas tem de esperar até março. A gente espera.
De volta a Sampa, o Rio veio atrás: primeiro, com Pedro Paulo de Sena Madureira,
atualmente editor da Guanabara (que vai publicar aquela biografia de Virginia Woolf, escrita por
Quentin Bell). Pedro Paulo é a mais completa tradução de Vem pra barra pesada, meu — versão
chique. Não conheço quem resista a ele, à conversa brilhante e ao agito: drinques, jantar, dançar,
varar a noite, cafés da manhã e, se você facilitar, almoço e drinques e jantar — tudo de novo.
Fiquei de cama um dia inteiro. Liguei a secretária eletrônica e deixei dançar trabalho, terapia,
matérias, telefonemas. As pessoas perguntavam: que-que houve com você ontem? Como pra
bom entendedor, meia palavra — você sabe —, respondia cheio de culpa, mas com um
argumento imbatível: Pedro Paulo.
Quando saí da cama, querendo me recuperar do Rio, o Rio chegou novamente. Desta vez,
pelo correio, na forma de Paissandu Hotel, livro de Armando Freitas Filho. Armando é poeta, e
do mesmo nível de Rubens Rodrigues Torres Filho, e Antonio Fernando de Franceschi. Folheio
ao acaso o livro de Armando, encontro os versos que apunhalam: “Um verão passa atrás do
outro/ no corredor — ninguém/ está de férias no espelho:/ somos só sentinelas/ até a morte”.
Fora do poema, o verão continua passando. Para exorcizar o Rio, resolvo ver Anjos do
arrabalde, filme de Carlos Reichenbach. O primeiro filme de Carlão que vi foi Filme demência,
no último festival de Gramado. Não gostei, escrevi falando mal. Ele chegou e perguntou: “Por
que você detesta a vanguarda?” (eu também tinha falado mal de Brás Cubas, de Júlio Bressane).
Falei qualquer coisa como: “Não detesto a vanguarda. Detesto o que é chato”. Era o que eu
achava do filme: chatíssimo.
Mas Anjos do arrabalde me ganhou. Por trás do perfil de três professoras de subúrbio (com
uma Betty Faria sensacional: se Elza Soares é a nossa Tina Turner, Betty Faria é a nossa Jane
Fonda), rola um dos retratos do Brasil mais atuais e cruéis que vi nos últimos tempos. Cruel e
realista: cheio de violência, miséria, machismo, preconceito. Saí abalado. Na noite abafada de
Sampa, aqueles anjos estavam soltos em cada esquina, em cada cara que passava atrás das
vidraças dos ônibus em direção aos arrabaldes. Nenhuma alegria, neles ou em mim. E em você?
Na noite abafada de Sampa, de volta a Sampa, depois de uma semana tentando negá-la, os
jornais exibindo manchete sobre a moratória, continuei a me perguntar: O que está havendo com
este país? E todos respondem, com esse desinteresse trágico que também ando sentindo: Ora,
dengue, meningite, aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro. Se
alguém acrescentar “normal”, eu grito.

O Estado de S. Paulo, 25/2/1987


Suspiros de domingo

Por trás das palavras gordas, às vezes tem coisas bonitas acontecendo bem devagarinho

Minha amiga Márcia Denser vezenquando suspira baixinho e diz: “Ah, o amor — essa palavra
tão esbelta…” Pois meu último fim de semana começou, na sexta à noite, com uma rajada de
palavras gordas. Honra, Pátria, Família, Dever, Sociedade, Justiça, Verdade, Moral, Ética.
Estética não, nem espírito, afeto ou carinho. Nem qualquer outra palavra assim, esbelta como la
Denser garante que o amor é, e eu acredito.
Intoxicado da gordura açucarada daquelas palavras (e eu não como açúcar desde que li
Sugar blues, há quase dez anos), volto para casa e encontro a primeira carta de Marion Frank, de
Berlim. Ela escreve enquanto ouve rádio: “Estou certa de que cheguei ao inferno” — conta.
Heavy como é, logo acrescenta: “Em sua melhor tradução, claro”. Lá na Schwerinstrasse, Marion
gira o botão do rádio e — creiam — encontra a voz de Maysa. Aqui, na mesa do Ritz, peço outro
conhaque (os primeiros desta temporada outono-inverno) enquanto me pergunto se a moça que
olha ostensiva do balcão quer me namorar ou me bater. Não descobri.
Meu fim de semana continua com a reprise de O beijo da mulher-aranha. Viajo nos
mínimos movimentos de William Hurt e o discretíssimo processo de desveadização de seu
personagem Molina. Desde sua primeira aparição — enrolando uma toalha nos cabelos e
jogando a cabeça para trás, num simulacro de Rita Hayworth, em Gilda — à medida que vai
tomando consciência da realidade, sua afetação vai desaparecendo. O Molina assassinado por
Aninha Braga na Praça da Sé deixou de ser apenas uma bicha cheia de esgares e trejeitos: tornou-
se uma pessoa triste, quase solene na maneira como escolhe a solidariedade — mesmo mortal —
para destino. O amor — essa palavra tão esbelta — humaniza? E Molina aceita morrer pela
palavra esbelta, não pelas palavras gordas.
Saio do Cinesesc atrapalhado com o trottoir tipo família da rua Augusta, no sábado à noite.
Acabo no Espaço Off, assistindo a Tangos & tragédias, com Nico Nicolaiewsky, Hique Gomez e
Dilmar Messias. A seriedade gorda das palavras e dos sentimentos aqui é pulverizada pela sátira
brilhante, na recriação das canções melodramáticas de Vicente Celestino e outros. Resta um riso
ainda solto no ar, quando entra Sandra Pêra — e acerta em cheio no blues dilacerado de “Medo
de voar”. Mas a plateia não reage à lembrança de Dancin’ days, das Frenéticas (saudade dos
tempos de Julia Matos!). Caia na gandaia, entre nessa festa: não há mais festa no ar e, se você
cair de boca na gandaia, corre o risco de cruzar aquele vírus. Ela canta “há uma crise lá fora/ mas
meu caminho é feliz”. E enche o pequeno espaço de energia, enquanto se transforma em
espanhola, sambista, rumbeira, travesti, mulher da vida, Cyndi Lauper, roqueira à beira da
overdose. Faz pensar. Sandra Pêra é uma atriz-cantora-bailarina poderosa. Só está procurando
um caminho, e, quando encontrar, senhores e senhoras, saiam da frente.
O sábado vira domingo, Cida Moreira embala a madrugada cantando “Mais que a lei da
gravidade”, de Paulinho da Viola. Antes de dormir me empapuço das najices requintadas de
Gore Vidal. E a Telesp informa — são seis horas e cinquenta e nove minutos. Enquanto os
governadores tomam posse pelas capitais, meu fim de semana vai terminando com Marco Breda
à minha frente, na mesa do almoço. Ele espia a tarde Blade Runner derramada no playground do
edifício ao lado. Depois diz: “O domingo é um suspiro”. Sim, e amanhã é segunda-feira.
Fico olhando a fotografia colorida de um enorme girassol amarelo contra um muro branco,
que Gina Oliveira me mandou. Tem coisas bonitas que às vezes acontecem devagarinho por trás
das palavras gordas, não tem? Ou, como diria Tutty Vasques, “Wim wenders e aprenders”…

O Estado de S. Paulo, 18/3/1987


No coração do Brasil

Lá, onde a vida é mágica. E Estocolmo pode ficar bem ao lado da ilha do Bananal

Há uns três meses me convidaram para ir a Uberaba, conversar com os alunos de Comunicação.
Na confusão de fechamento do jornal, no telefone não ouvi sequer o nome da cidade. Quis dizer
não, mas, porque a vida é mágica e eu tinha esquecido, sem saber por que disse sim. Não guardei
o nome do rapaz que telefonava, e voltou a telefonar. Quem, de onde? Nélson Bertoni, de
Uberaba, você vem? Sim, eu vou.
Semana passada, nesta Antena, falei em Markito. Que não conheci, nunca soube onde
nasceu. Um dia depois da Antena, um dia antes de ir para Uberaba, recebi um bilhete. Patrícia
Zaidan me falava que conhecera Markito na adolescência, na cidade deles. Como se fosse a coisa
mais natural do mundo, porque a vida é mágica: a cidade chamava-se Uberaba. Tonto de saudade
súbita, sem a menor lógica, ligo para Sandra Laporta, em Niterói. Ao som de Jim Morrison, um
dia ela me levou para a Suécia. Sandra me lembra que, embora a gente esqueça, a vida é mágica.
Desço em Uberaba quase às oito horas da noite de sexta. No aeroporto, alguém acena de
longe: Nélson. Entramos no carro e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, ele coloca
uma fita. De repente, lá estamos nós, perto do selvagem coração do Brasil, falando de Clarice
Lispector ao som de Jim Morrison, que canta “The ending”.
Corta. Estou parado no corredor da universidade em greve quando se aproxima um rapaz,
louro como um viking, com um exemplar de O ovo apunhalado. Seu nome, pergunto. Christer
Nilsson, ele diz. Alemão? Como se fosse a coisa mais natural do mundo, ele responde: sou
sueco. De repente, ali estou ao lado de Christer, de volta a Estocolmo — aquela cidade onde
comecei a aprender que a vida pode ser mágica —, lembrando das fogueiras do Midsummer, dos
bosques de Kungshrambra. Longe como numa vida que não fosse mais a minha, dentro e vivo
como nesta vida que é exatamente a minha, divido memórias até agora indivisíveis, no coração
do Brasil. Com Christer, que aos nove anos veio da Suécia para o Rio Grande do Sul, justamente
no ano em que saí: do Rio Grande para a Suécia.
Presto atenção nos olhos puxadinhos de Ivonete (que adora Lou Reed, Velvet Underground
e Bukowski), pergunto se tem sangue índio. Sim: sua mãe, na ilha do Bananal, onde nasceu.
Como se fosse a coisa mais natural do mundo, me convida para ir até lá, em julho, quando a ilha
é mais bonita. De repente, aqui estou eu, sozinho num quarto de motel que é puro Sam Shepard,
em plena estrada para Araxá, Sertãozinho e Xororó no rádio, misturando na insônia as aves em
extinção da ilha do Bananal, Goiás, Brasil com as águas geladas do fiorde de Freskati,
Estocolmo, Sverige. Não, nunca compreendi o que quer dizer “colonização cultural”.
Sincretismo, repito morto de sono. Sim-cretismo: Xangô e Thor.
Na tarde de sábado, sem saber por quê, no meio de uma praça, começo a falar
compulsivamente sobre Alex Vallauri. Abraço uma árvore (angico, diz Ivonete; castanheiro, diz
Nélson; jacarandá, penso eu), encosto a cabeça em seu tronco espesso e, pela terra onde se
cruzam todas as raízes, envio meu pensamento mais forte e mais bonito para Alex. Na hora de
voltar, tem um céu muito azul em Uberaba. Nélson fala em James Joyce. No avião, anoto assim:
Eu retribuo o sorriso. Eu correspondo ao abraço. Eu digo sim. Eu quero sim. Eu sinto sins. Só
porque estou vivo. E tudo isso, que parece mágico, é a coisa mais natural do mundo.
Depois o sangue de Sampa. Na noite da véspera do eclipse em Áries — entre o susto da
morte outra vez batendo à porta ao lado e o espanto dos encontros com as pessoas do mundo
(elas estão por aí: lindas) — volta a certeza ilógica e inabalável de que, aqui ou lá, longe ou perto
do coração do Brasil, a vida é mesmo mágica. Isso é simples. Feito uma velha canção dos
Mutantes, eu me sinto enfeitiçado. Ô yeah, digo, yeah e axé.

O Estado de S. Paulo, 1/4/1987


Diário de bordo II

Alex rasgou o céu, encheu de estrelas. Mas chove sem parar além do Monte Olimpo

Segunda:
Muito tempo olhando a capa da nova edição de Morangos mofados. Antes de morrer, Alex
rasgou o céu. Por trás há outro céu, cheio de estrelas. E um duende solto no espaço. Na esquina
da Augusta com a Paulista, um cruzamento prenuncia o fim de semana. Só percebo vagamente.
Até de madrugada vendo a festa do Oscar, é sempre muito engraçado. Quase não consigo dormir
de medo, pensando qualquer coisa assim “Como será que a gente se sente quando chega aonde
Bette Davis chegou?”

Terça:
Sol na quadratura de Netuno — e Mercúrio. Não, não me drogo nem bebo. Tento controlar as
palavras. Elas quase não saem, ou saem ásperas demais. O dia inteiro de verão extemporâneo,
como se houvesse uma bolha à minha volta. Ninguém se aproxima muito. Nem permito.
Debruço na máquina de escrever, olho as colinas ao longe. Parecem as do morro da TV, em
Porto Alegre. Só parecem.

Quarta:
A irritação persiste. Atravesso o dia me debatendo como uma baleia encalhada. Quem me salva é
Antônio Bivar: rolo de rir, à noite: Alice. Que delícia! Saio com a música de Rita Lee e Roberto
de Carvalho na cabeça. Voltando a pé para casa, muito tarde da noite, lembro de Luiz Carlos
Góes, há muitos anos, dizendo “Bivar é um bálsamo”. Na época, não compreendi. Agora,
perfeitamente. Na frente do Longchamps, Hugo Prata acelera a moto, Giovanna Gold na garupa.
Depois Maurício Villaça conta histórias duras no balcão. Eu compreendo.

Quinta:
Querendo desesperadamente escrever uma história, antes que fuja para sempre. Corro de um lado
para outro — trabalho, correio, telefones, bancos. Consigo anotar algumas frases no caderninho.
(A mãe não mostra surpresa. Fuma muito. Paredes descascadas. Um sorriso para o espelho, as
manchas nas costas.) Preciso de tempo, preciso parar com o jornal, senão as histórias
continuarão sendo devoradas. Sem elas não vivo. Ou vivo assim, a seco, sempre esta coisa
atravessada na garganta.
Sexta:
Fumo demais, das onze da manhã às nove da noite, acorrentado no jornal. Fujo correndo, ao
menor sinal de liberdade. Menos uma sessão maldita. Na batalha dos táxis, lembro que há mais
de mês não vou ao cinema. Enumero todos os filmes na cabeça. Nem sequer Rumble fish. Assim
não dá, assim não dá mesmo. Gil me apanha e saímos para o Réquiem das harpias. No banquete
do Olimpo, divido uvas com Teté Darkinha. E se tivesse mesmo sido ator? As garotas brilham. E
Marisa Orth continua sendo A Melhor: é um Zeus nos acuda. Chove sem parar além do Monte
Olimpo.

Sábado:
Gil treme de febre, não consegue ir embora. Nem eu permito. Um mar de chuva lá fora, um mar
de Novalgina em gotas aqui dentro: impossível sair. E todos aqueles filmes… Alex Flemming
me chama para ver os quadros novos, só segunda. Ainda são dragões? — esqueço de perguntar.
Viro o botão da TV, não acredito no concurso de Miss Brasil. A cor foge dos músculos de
Schwarzenegger. De noite, na cama, eu fico pensando — lembra? Imaginava que nunca mais.
Prazer misturado com susto.

Domingo:
Guilherme Almeida Prado inventa histórias sem parar. Alberto Veiga, LiIian Lara. Onde andará?
Com Jacqueline, Hugo e Giovanna, procuramos pizzas pelos jardins. Penso em Gil, sozinho em
seu apartamento de Santa Cecília. Copio um verso de Wallace Stevens, que Luiz Schwarcz
mandou: “E no entanto nada mudou além do que é irreal”. O sono, então, é um poço.

O Estado de S. Paulo, 8/4/1987


Querem acabar comigo

A gente corre. Para ganhar ou perder a vida? Resta cantar aquele velho Roberto Carlos

São nove horas da manhã de segunda-feira. Estou sentado aqui na escrivaninha, mas hoje não
tenho nada a dizer. Quase nada. Ou o que teria a dizer são as coisas que só interessam a mim,
não a quem lê. Então, hoje vocês vão ter paciência comigo. Hoje tem sessão queixa.
Andei fazendo contas: há treze meses escrevo aqui, uma vez por semana. São pelo menos
cinquenta e duas semanas, pelo menos cinquenta e duas crônicas como esta. Eu acho muito. É
que nem sempre consigo escrever sem sofrer um pouco. Mesmo quando até me divirto, sempre é
necessário remexer um pouco mais fundo, e remexer mais fundo cansa. Ando cansado. Porque
não é muito simples escrever, não é assim: você senta, põe papel na máquina e escreve. Às vezes
não vem nada. Outras, vem confusamente. Só depois de escrever três ou quatro laudas aparece
uma frase — e essa frase é a coisa, o resto não interessa.
Escrevo geralmente aos domingos, ou às segundas de manhã. Mas desde a quinta ou sexta-
feira começo a sofrer vagamente. Nos últimos tempos tem sido mais grave. Porque ando muito
— digamos — espantado com o mundo, daquele jeito que só dá vontade de olhar para ele (às
vezes nem isso), sem nenhum comentário a fazer. Escrevo lento demais, preciso de tempo para
pensar, reler, reescrever. Um domingo inteiro nem sempre basta. Há treze meses não tenho
domingos — aquele dia em que os outros vão ao cinema, namoram, visitam amigos. Os outros,
não eu. Eu fico em casa, escrevendo. O mais complicado é que, para escrever, é preciso ver o
mundo. Aos domingos ou nos outros dias. Ir ao cinema, namorar, visitar amigos — essas coisas.
Não se arrancam palavras do nada: as palavras brotam de coisas e seres viventes. Há cinquenta e
duas semanas, vivo muito pouco. Porque, além desta crônica, fico no mínimo seis horas diárias
dentro do jornal. E jornal — quem não sabia fique sabendo — acaba com a cabeça (e o corpo) de
qualquer um.
Essa escassez de tempo está clara agora, pouco mais de nove horas da manhã de segunda-
feira, na desordem absoluta sobre a escrivaninha. Pilhas de cartas não respondidas, livros que só
comecei a ler e não consigo terminar (uma Susan Sontag aqui, um Edmund Wilson ali), se olhar
para o lado, há também pilhas de discos não ouvidos (conseguisse alguns segundos para aquele
U2, aquele Raul Seixas…). E a vida gritando nos cantos.
Os amigos se queixam: você não telefona, não aparece. Tem gente que pede release,
reportagens, textos os mais diversos, apresentações para exposições, ler originais, e os que
exigem coisas do tipo: você não vem ver minha peça? Como bom ascendente Libra, não sei dizer
não. Digo sempre sim, depois não consigo cumprir. Cobram, cobram. Ultimamente, toda vez que
o telefone toca, já sei: é alguém pedindo alguma coisa. Têm me pedido muito, ultimamente. E
dado pouco. Normal: gente é assim mesmo.
Agora você me pergunta: bom, e daí? Daí que ando cansado. Hoje estou me permitindo
escrever sobre este cansaço indivisível, sobre minha falta de tempo, sobre a desordem que se
instaurou em minha vida. Por trás disso tudo, o mais perigoso espreita: a grande traição que estou
cometendo, todo dia, comigo mesmo. Porque escrevendo assim, para sobreviver, não escrevo o
que me mantém vivo — outras coisas que não estas.
O relógio avançou. Já cheguei às minhas cinquenta linhas semanais. Amanhã vamos
embrulhar peixe na feira. Tomo um café, acendo um cigarro. Durante um minuto, fico pensando
em parar.
Parar como param os monges budistas. Parar e olhar. Só um minuto. Pronto: agora tenho
que sair correndo outra vez para ganhar a vida. Ganhar ou perder? Eu sei a resposta. Mas posso
cantar baixinho um velho Roberto Carlos, aquele assim: “Querem acabar comigo/ isso eu não
vou deixar”. Juro que não.

O Estado de S. Paulo, 29/4/1987


Doris, Antonio e Vera

Na janela do 21° andar, ela parecia dizer: “Sim, você pode conquistar seu destino”

Concordo — sim, às vezes, no meio da cidade, a vida apronta algumas coisas bonitas. Semana
passada, aconteceram pelo menos três. Em plena segunda-feira, de repente eu estava naquele
elevador do Maksoud Plaza, ao lado de uma senhora de aparência extremamente simples e claros
olhos serenos, desses que mudam de cor conforme a luz. Ela espiou a imensidão do hotel pela
parede de vidro, olhou para mim atenta, curiosa, sorriu e comentou: “Mas este hotel é uma
cidade. Se eu morasse aqui, acho que não saía nunca”. A senhora de 68 anos chamava-se Doris
Lessing.
Conversando com ela, depois, talvez pela primeira vez na vida senti vontade de ser velho.
Um velho igual a Doris Lessing, com todas aquelas características (conquistadas, você sente) e
que são assim, com maiúsculas mesmo (como na canção de Philip Glass e Laurie Anderson):
Honestidade, Decência, Sabedoria, Dignidade, Integridade, Inteligência. Quando saí, ela ficou
parada na janela do 21o andar, muito quieta em seu vestido meio amassado, olhando a cidade.
Alguma coisa — nela, no ar ou em mim mesmo? — parecia dizer: “Você pode. Se quiser, você
pode conquistar o seu destino, inventar a sua verdadeira vida. Sim, você pode”.
A semana continuou com um livro, entregue na portaria de meu edifício. Que peguei
correndo e fui abrindo na rua mesmo. Uma capa linda: toda branca e, no alto, o desenho de um
navio sobre o recorte de um texto antigo manuscrito. Você percebe que o texto é antigo pela
caligrafia, daquele tempo em que a escrita manual era quase arte. Claro, Caminho das águas é
um livro de poesia, de Antonio Fernando de Franceschi. Este é só o segundo livro dele (o
primeiro chama-se Tarde revelada), mas, sempre quando pergunto a mim mesmo qualquer coisa
como “O que existe na poesia brasileira mais recente depois que Ana Cristina se foi?”, respondo:
“Ora, existem Rubens Rodrigues Torres, Armando Freitas Filho e Antonio Fernando”. O poeta
da exatidão, da emoção tão medida pela justeza da palavra que, num primeiro momento, pode até
parecer frio. Não é — como ele mesmo diz, “todo poema verdadeiro tem algo oculto/
entrelinhas”. Os poemas de Antonio Fernando têm esse oculto, cheio de riquezas.
A terceira coisa linda da semana teve nome de moça: Vera. Embora, se eu a chamasse
assim, ela provavelmente reagiria e diria, arrumando a gravata: “Meu nome é Bauer, cara”. Estou
falando do filme de Sérgio Toledo, que acho decididamente um dos melhores filmes nacionais
dos últimos tempos. Mesmo quando, ao dizer isso, lembro de dois fracos que tenho: Arnaldo
Jabor e Hector Babenco. Antes de mais nada, Vera é um filme muito bem acabado, e quem
conhece um pouco do cinema brasileiro sabe como isso é raro. Desde as sequências iniciais, você
percebe que o diretor está tendo um profundo amor pelo que faz. Esse amor aparece na fotografia
(iluminada, de Rodolfo Sanchez), na música (pequenas facadas, de Arrigo Barnabé), na
cenografia (desesperadamente vazia, de Naum Alves de Souza), no trabalho dos atores (sim, Ana
Beatriz Nogueira é espantosa e comovente na sua contensão). O olhar de Sérgio Toledo sobre o
moderno vai além do folclore modernoso, da mitificação gratuita do urbano — está cheio de uma
desolação árida, como a de Wim Wenders. A contraposição de vídeos, armas e foguetes sugere
um paradoxo inquietante: no meio da tecnologia mais desenvolvida, o humano mais primário
ainda não foi resolvido. O olhar de medo de Vera/Bauer/Ana Beatriz/Sérgio no final — dói.
Porque ninguém pode ajudar o humano que deu errado quando o social está errado, e para
resolver o de dentro seria necessário corrigir o de fora. E então quem somos nós, tão impotentes
e arrogantes?
Loucos, diz Doris Lessing. Enclausurados, diz Antonio Fernando. “Sou outra coisa”, diz a
Vera de Sérgio. Somos todos Veras, eu mesmo digo. Mas você pode — dizia também Mrs.
Lessing. Sim, você pode.

O Estado de S. Paulo, 6/5/1987


Nos trilhos do tempo

Além dos enganos, pairam os poetas que não querem faca nem queijo. Preferem a fome

Outro dia, uma amiga se queixou ao telefone: “Tenho vinte e sete anos e descobri que, até agora,
tenho me alimentado de migalhas”. Falei qualquer coisa banal & consoladora, como “a vida é
assim mesmo, paciência” — e desliguei. Só não desliguei a cabeça: a frase ficou dias dando
voltas dentro dela. Até que, não lembro bem como, de algum lugar de dentro de mim veio a
resposta que não cheguei a dar à minha amiga: “Mas será que isso que você chama de migalhas
não será, afinal, o próprio pão?”
Fiquei todo enredado num pensamento mais ou menos assim: aos quinze anos, você espera
um bolo coberto de chocolate, recheado de frutas; aos vinte e cinco, você até dispensa o recheio
de frutas, mas ainda espera a cobertura de chocolate; aos trinta e cinco — ah, um pão doce
mesmo serve; aos quarenta e cinco, pode ser pão comum, desses de água e sal, desde que
fresquinho; aos cinquenta e cinco, o mesmo pão, só que não tem muita importância se for
amanhecido — e assim por diante, até chegarmos às migalhas. Que, se você tiver uma boa
cabeça, pode receber como se fosse uma daquelas tortas Martha Rocha (uma fatia para quem
lembrar das tortas Martha Rocha, famosas nos anos 50).
A passagem do tempo traz humildade e reduz o apetite? Não afirmo nada, só pergunto,
porque não tenho certezas. Talvez por ter andado lendo os dois romances que Doris Lessing
escreveu sob o pseudônimo de Jane Somers (O diário de uma boa vizinha e Se os velhos
pudessem) andei pensando também na velhice. Neste jornal não se pode escrever palavrão —
mas você já percebeu que muitos jovens dizem velha como se dissessem, desculpem, mulher de
vida airada ou ladra? Como se a velhice fosse um crime e uma vergonha.
Os dias passaram, eu pensei em Rita Lee. Não ouvi o disco novo de Rita, não tenho nada a
dizer sobre ele. Mas Rita ficou furiosa com uma crítica escrita sobre o disco e, ao que parece,
especialmente com uma maldadezinha sobre sua suposta “menopausa criativa”. Fica assim:
quem acusa coloca-se na posição de “jovem-por-dentro-de-tudo”, e coloca o acusado na posição
de “velho-por-fora-de-tudo”. Acaba virando um joguinho meio lamentável de bom & mau,
mocinho & bandido, inocente & culpado. Por trás de tudo, a suprema ofensa: ser chamado de
VELHO.
Então morre Rita Hayworth (maravilhosa Rita, sem a qual Marilyn Monroe talvez não
tivesse existido), há anos esquecida. Em todos os arquivos rebuscam-se fotos e trechos de filmes
da flamejante Gilda — e fotos da mulher esplêndida de vinte, vinte e cinco anos, são colocadas
lado a lado de fotos da velha horrenda de sessenta, doente e decadente. O subtexto é: o jovem é
belo, o velho é feio. O jovem está perto da vida, o velho está perto da morte. E a velhice, como a
morte, é feia e suja. Será?
Enquanto isso, a vida de cada um corre sobre os trilhos do tempo, separadamente mas em
direção a um destino igual para todos, e no mesmo ritmo implacável daquele poema de Manuel
Bandeira: café-com-pão, café-com-pão. Penso nos velhinhos como Mário Quintana, cheios do
poder discreto de conseguir contemplar de longe a juvenil palhaçada nossa de cada dia, à espera
desses resplandecentes bolos cobertos de chocolate, recheados de frutas. E que só existem no
sonho. No real, são as migalhas.
Rita, a Hayworth, gira no ar sua luva negra e canta: “Put the blame on mame, boy” —
porque ela não preparou você para a velhice, eu acrescento. Seguro devagar o novo livro de
Adélia Prado, O pelicano, leio e releio um poema chamado “Objeto de amor” (que não posso
transcrever aqui: este jornal não publica palavrão), e acho que compreendo quando ela diz:
“Quanto a mim dou graças/ pelo que agora sei/ e, mais que perdoo, eu amo”. Foi Adélia, mulher
do povo, quem afirmou também num poema mais antigo: “Quarenta anos: não quero a faca nem
o queijo/ quero a fome”. Eu também: bem-vindas as migalhas que, se Deus quiser, virão.

O Estado de S. Paulo, 20/5/1987


Pílulas calientes

Hoje, de despedida, deixo estas pílulas tipo crônica (anti)social avançadinha

Acontece que ganhei (?) férias: f-é-r-i-a-s, phérias, FÉRIAS. Ótimo para todos nós, senão vocês
iam ter de acabar me internando. Ou eu terminaria estrangulando alguém na repartição. Minhas
férias, jecamente, são juninas. Não vou a Nova York nem a Paris, nem sequer a Cuba ou mesmo
à Bahia. Não vou fazer nada. Nada de nádaras, nem escrever esta coluna. Para alegria geral, será
pelo menos um mês sem lamúrias com chantili. Digo pelo menos porque, se pintar algum ET no
meu quintal, vou direto pra Canopus e não volto mais. Enquanto isso, de despedida deixo estas
pílulas assim tipo crônica (anti)ssocial avançadinha.
› Prepare-se para o dia 11 de junho. Além de ser aniversário de meu pai, Zaél Abreu, e da
buliçosa Maria Ester Teté Darkinha Martinho (queremos fest a!) — é dia principalmente da
vernissage de Alex Flemming, na Montesanti Galeria. Você pode achar impossível, mas, depois
dos dragões do ano passado, o medievo e perturbador germânico Flemming está ainda melhor.
Anote na agenda: imperdível.
› Sônia Goldfeder, a sensível crítica teatral da Isto É, foi ver Prepare seus pés para o verão
(de Martha Góes, no Espaço Off) e revela para o Brasil: a atriz Grace Giannoukas é gênio.
Confira: a pequena grande Grace é assim tipo uma neo-Regina Casé. Com sotaque gaúcho, anos
80.
› Falar na peça da Martha: Marisa Orth, sua marvada, você me roubou o sono desde que te
vi fazendo a garota da Cosmopolitan.
› Mudei de canal. De TV. Tirei da Globo: viciei em Helena, na Manchete, a adaptação de
Machado de Assis feita pelo brejeiro Mário Prata, pelo junk-machadiano Reinaldo Moraes e pelo
ecológico Dagô Marquezi. Texto, direção, iluminação, atuação, figurino, cenografia: bom gosto
total.
› Geraldão está solto na cidade. Glauco lançou ontem a Revista do Geraldão; Teve um
tempo em que eu era a Rebordosa, do Angeli. Agora virei Geraldão: só penso em sexo.
Dia 1o de junho, chega ali na Brasiliense da Oscar Freire. Você vai conhecer uma poeta
encantadora: Flora Figueiredo. Ela lança seu primeiro livro — Florescência. Lindo, delicado e
simples.
› Hoje à noite? Vai lá no Espaço Off ver a eletrizante Laurinha Finokiaro. Com os quadris
preparados para o rock rolando quente.
› Tem nova versão do Madame Satã dos velhos bons tempos na city: o Espaço Mambembe,
na rua do Paraíso. Um lugar onde acontecem Coisas. Por exemplo, Estúdio Nagasaki, que saiu
de cartaz domingo. Hamilton Vaz Pereira, volte logo: eu preciso de pessoas animadas.
› Descobri por que gosto do Ritz. Além de ter os garçons e garçonetes mais educados e
bonitos de Sampa, de repente toca João Gilberto, Astrud e o sax de Stan Getz. Até os skinheads
relaxam.
› Se você prefere ficar em casa, fique com Linguaviagem. Poemas de Mallarmé, Valéry,
Keats, Yeats e Blok traduzidos por Augusto de Campos. Tanto Augusto como a Companhia das
Letras são garantia de qualidade.
› Rita Lee, ouvi seu disco: não consigo tirar da vitrola. Você é melhor que o Tutty
Vasques. Você atiça minha vontade de viver, amar e ser feliz. Acordo com “Para com isso”, pra
pegar um pique. Depois fico cantando “Picola Marina” (já aprendi a letra do Bivar). E sabe que
conheço o próprio “Músico problema”? A Annie Peréc, que faz o backing, também…
› Joyce Pascowitch, Nelson Pujol Yamamoto e Cida de Assis: parabéns. A Around com o
Bisso na capa está tão gostosa quanto a Marisa Orth.
› Marildinha Assunção, da WEA, pelo amor de Deus, me manda o disco da Patife Band.
Tenho um mês de FÉRIAS inteirinho pra ouvir e gostar.
› Avenida Paulista, meu amor: please, não incendeie mais. Ô Jânio, ô Quércia: deem verba
pros bombeiros, pô. Cuidem melhor da nossa cidade, senão a ratoeira pega fogo. E a gente quer é
viver (não é, Cláudia Wonder?). Ainda mais em FÉRIAS. Sete vezes Axé. E bye-bye. Tô por aí.
› Lobão, você é o máximo.

O Estado de S. Paulo, 27/5/1987


Cenas na beira de um abismo

Na manhã do Rio, crescia o tumulto. Era o povo ferido exigindo seus direitos

Rio de Janeiro. Onze horas da manhã de terça-feira, 30 de junho de 1987. Manhã de


Exterior/Dia:
céu alucinadamente carioca. Azul, azul. Névoa transparente sobre a baía, o mar e os morros, que
se vai diluindo aos poucos. A névoa vira nuvem, a nuvem vira azul. Ar tão limpo que quase dói
nos pulmões paulistanos. Na janela do carro, pelo aterro, uma velha letra de Caetano volta como
trilha sonora: “Olhos abertos em verde/ sobre o espaço do aterro/ sobre o espaço, sobre o mar/ o
mar vai longe do Flamengo/ o céu vai longe e suspenso”.

Quase meio-dia. Biblioteca Nacional, Cinelândia. Cheiro gostoso de livro, paz.


Interior/Dia:
Estudantes, professoras. Tudo quieto, organizado. Estou debruçado com Lúcia Villares sobre
microfilmes de jornais do século passado. Dezesseis de julho de 1889: o dia em que tentaram
matar dom Pedro II. Um ruído — buzinas, gritos —, vindo de fora, entra pelas janelas abertas,
misturado ao azul, e começa a crescer. Comento: “Eta, Brasil. Biblioteca precisa de silêncio, e
toda essa zona aí fora…” Algumas pessoas começam a levantar das mesas, espiam pelas janelas.
Deixo de lado os microfilmes, resolvo também dar a minha espiadinha. Me debruço numa janela.
E vejo.

Cinelândia, avenida Rio Branco, Teatro Municipal. Cerca de dez pessoas estão
Exterior/Dia:
paradas em frente a um ônibus. Gritam coisas tipo “Abaixo o aumento!”. O ônibus não pode
seguir em frente. Os ônibus e carros que estão atrás, também não. O engarrafamento aumenta.
Lembro de ter lido nos jornais que o preço das passagens de ônibus foi aumentado. É que pensei
assim — ué, não estava tudo congelado? O tumulto cresce.

Começa a juntar mais povo. Povo-povo: trabalhadores do Brasil — eu, você, nós. Estão
furiosos. De longe, pode-se ler no rosto deles que estão cansados, com fome, sem dinheiro. O
grupo duplica, quadriplica.

No grande salão da Biblioteca, não há mais ninguém nas mesas. Todos na janela olham
Interior/Dia:
o povo, que aumenta e grita e aumenta e grita mais. Impossível concentrar-se. O barulho de coisa
viva, tensa, prestes a explodir, impede qualquer concentração.

O povo que estava dentro dos ônibus engarrafados desceu para a rua, juntou-se ao
Exterior/Dia:
outro povo. Agora sacodem violentamente os ônibus. Chegam alguns carros de polícia. Sirenes
uivam. O povo joga pedras e vaia. Saia-justa: a polícia tira o time. Ou finge que tira: pela janela
de um carro, o policial joga no ar algo parecido com um foguete de São João. Quando o foguete
bate no asfalto, ouve-se um ruído igual ao de um tiro. Fumaça, gente com as mãos nos olhos: gás
lacrimogêneo. Da janela, dá quase para ouvir, por trás dos gritos, o coração das pessoas batendo
forte. Inclusive o meu. E o coração do povo, mais forte ainda. Exausto, humilhado, atrevido,
corajoso.

As moças da Biblioteca resolvem fechar o prédio. Estão apavoradas. As pessoas se


Interior/Dia:
entreolham: medo. Com as janelas fechadas, entre os livros, o rugido do povo que chega lá de
fora fica ainda mais assustador. Um funcionário nos leva pelos corredores até uma saída lateral.
Saída discreta pelos fundos.

Zona na rua. Praça de guerra. Gente caminha apressada. Polícia chegando. Bancos e
Exterior/Dia:
lojas fecham. Convido Lúcia: “Vamos dar o fora já daqui?” Vamos para o Largo do Machado:
Marrocos perde. O povo brasileiro nunca esteve tão pobre, tão feio, tão triste. E com tanto ódio,
com toda a razão. Congela e corta num mendigo.

São Paulo, três dias depois. Meu quarto. Não consigo dormir. Penso no que vi, penso
Interior/Noite:
no Brasil. Abro o Caderno Ideias do JB. Uma pequena entrevista de Mário Quintana me alivia a
alma. Ele diz: “O Brasil não pode cair no abismo porque ele é maior do que o abismo”. Amém,
velho, bom e sábio tio Mário. Deus te ouça.

O Estado de S. Paulo, 8/7/1987


Me leva pro céu, Luni!

Oito pessoas lindas, com um som irresistível: é o Luni, a melhor banda desta cidade

Assumi, definitivo. Venci minha monolítica timidez: sou tiete do grupo Luni. Aquele que está
em todos os shows, na primeira fila, grita bis, grita bravô! (com acento francês, em homenagem
aos dois saxofonistas), dança, sua, aplaude em pé, depois vai aos camarins dar beijinhos arfantes
de prazer. Cada nova vez, confirmo: o Luni é o melhor grupo da cidade, do estado, do país.
Calma, Caio F., vamos por partes.
No último sábado, a lua cheia, e naquele lugar cada vez melhor que é o Espaço
Mambembe, o show do Luni deixou claro que todo esse deslumbramento é mais que justificado.
Por exemplo: o Luni, graças a Deus, não é (mais) um grupo de rock. A gastíssima expressão pós-
tudo nunca se encaixou tão bem quanto aqui. O Luni incorpora blues, ritmos afros, caribenhos,
new age, samba e tudo o mais que você lembrar, passa por dentro e por cima do túnel das
influências para desembocar num trabalho que, por lembrar tudo, não lembra nada parecido. São
originalíssimos e cheios de clichês sarcásticos, bem-humorados.
Não, o Luni não gravou nem tem gravadora. Sem citar nomes, um dos integrantes contou
que um famoso produtor disse que o som deles era “eclético demais”. Pode? Outro argumentou
que tinha medo de que o Luni virasse uma cult-band. Sem sacar que o Luni já é uma cult-band
— ou seja, uma banda para os adoradores dispostos a persegui-los pelo circuito alternativo da
cidade (Off, Satã, Mambembe, o bem-vindo Bodega Bay). Eles não apareceram na Globo, não
estão programados para o Canecão nem à venda na Hi-Fi. Porque este país é burro, mas isso é
outra história.
O Luni não tem estrelas, é uma banda comunitária, aquariana. Eles são oito: os franceses
Gilles Eduar e Lloyd Bonnemaison (que, acreditem, nasceu em Java, viveu na Etiópia e estudou
em Berkeley), o artista plástico Theo Werneck (capaz de receber James Brown ou Louis
Armstrong, em vocalizes arrepiantes de soul e negritude), a guitarrista Lelena, o trio fundador
Fernando, André e Natália, a bela (que faz parte do grupo de bonecos XPTO, também o melhor
da cidade) — mais uma special guest star, a mulher maravilha Marisa Orth (quem a viu atuando
em Criança enterrada, de Sam Sheppard, ou Prepare seus pés para o verão, de Martha Góes,
sabe do que ela é capaz). Se Marisona, a deusa, enlouquece a plateia cantando “A melhor” (“eu
sou a melhor/ eu sempre fui a melhor”) ou gemendo os versos de Boris Vian na pele de uma
francesa sadomasô (“me machuca, Johnny, me leva pro céu/ eu gosto do amor que dói”), de
repente pode dividir um backing com Natália e tocar modestamente sua maraca, enquanto chega
a vez de Fernando ou Theo ou qualquer outro brilhar. E como brilham!
O Luni é elegante sem ser afetado, culto sem ser pedante, engraçado sem ser bobo, bonito
sem ser vaidoso, ensaiado à perfeição, sem ser mecânico, chique sem ser esnobe, brega sem ser
cafona. E principalmente música, naturalmente música. Porque é um som que você pode dançar,
o ritmo é irresistível, cantar (seja em iorubá, espanhol, português, inglês, francês) (Pour quoi,
monsieur? é uma miniobra-prima) e também ver: eles são teatrais, performáticos. Marinheiros,
prostitutas, mariachis, astronautas, brazilianistas, robôs, crianças: fazem número. Passam alegria
(que raro), saúde (oba!), vontade de viver (wow!). Quer maior luxo?
Por tudo isso, repito: o Luni é o melhor grupo da cidade, do estado, do país. Dou o toque às
WEA, Polygrams, CBSs, RCAs da vida: ô, gravadoras, cêis tão de bobeira, gente! Por falar
nisso, prestem atenção também em Os Mulheres Negras e no Nouvelle Cuisine: depois disso,
quem disser que a música brasileira tá em crise, eu grito. Como vou gritar neste fim de semana,
no Circo Voador, quando o Luni, as Harpias, Marcelo Manifeld, o Mazzipan e outras gentes vão
mostrar aos cariocas o que é que São Paulo tem. Muito além de Jânio ou Quércia, tenho dito.

O Estado de S. Paulo, 15/7/1987


Verão de julho

Permitido se apaixonar, pular corda, votar para presidente, dançar valsa e rock and roll

Você já ouviu falar em “verão de maio”? Claro que sim. Até eu, lá pelos meus treze anos, fiquei
tão fascinado por essa poesia fácil que cheguei a cometer uma novela com esse título. Escrita na
fronteira da Argentina, passava-se não ali, mas na Suíça. Que nada para mim, naquele tempo,
capaz de ser “artístico” ou “literário” podia passar em outro lugar que não a Europa. Burrices e
frescuras à parte, a novela era péssima. Graças a Deus, perdeu-se. A expressão ficou. E voltou
com força nestes dias paulistanos bêbados de luz.
Como o tempo desta cidade é louco, e escrevo isto na sexta, para sair na quarta, pode ser
que tudo tenha mudado e hoje esteja cinza como só São Paulo sabe ser. Sabe ser azul também, e,
galopando na crista descabelada destas duas últimas semanas de cores e de cheiros, me peguei
pensando no verão de julho, não de maio. Como um presente que alguém mandou pra gente.
Seguinte, ó, a barra tá tão pesada lá embaixo, vamos providenciar rápido um veranico pra essa
gente, antes que venha agosto.
Sopro de energia, dose de guaraná em pó, beijo na boca — de agora em diante, a partir
deste ano (sem) graça de 87, fica decretado que todo mês de julho (mas pode ser junho, agosto,
pode ser sempre, quando as almas andarem escuras e as pessoas não se amarem mais) haverá dez
ou quinze dias de sol (dependendo do peso da barra a ser aliviado) e luz para que todos
enlouqueçam um pouco de prazer. Se possível que esses dias coincidam com a lua cheia, e, se
possível ainda, em trânsito por signos doces como Câncer, musicais como Libra, afetuosos como
Touro ou divertidos como Sagitário. Nesse período, ficam intimados os humanos a interromper
as dores, a esquecer as mágoas, a adiar as dívidas, a perdoar os outros. Ficam intimados os
humanos a se tornar cancerianamente suaves, a cantarolar quaisquer canções, mesmo as tolas,
mesmo desafinadas, como librianos. A se apaixonar feito taurinos e a falar abobrinhas
hilariantes, feito sagitarianos.
Fica autorizado aos humanos, principalmente aos paulistanos, relaxar um pouco nas suas
obrigações (é permitido faltar um dia ou pelo menos uma tarde ao serviço). A ser mais
complacente com os outros e consigo próprio. A deixar pelo menos um dia a barba e a cama por
fazer. Certa preguiça fica autorizada. Mas não a ponto de o sono ultrapassar as manhãs, porque
grandes energias estarão concentradas no primeiro raio de sol, no primeiro canto de pássaro.
Abusar um pouco da cerveja e do vinho branco gelados, é permitido. E dos sorvetes, dos
morangos com chantilli, das peras d’agua. Aconselhável ver e rever qualquer filme de Woody
Allen, preferir Branca de Neve a O declínio do império americano, Rita Lee a Nana Caymmi,
Fred Astaire a Tom Waits, a telenovela Helena a O outro, Fellini a Bergman — e tudo, tudo o
que for mais dia que noite, mais açúcar que sal, mais azul-clarinho que roxo ou preto.
O vírus da aids será enjaulado: permitidas as paixões devastadoras, os suspiros amorosos,
permitidos os amassos, as cantadas, as paqueras e todas as suas consequências — desde que
gostosas. Aconselhável vadiar pelas praças, respirar o cheiro de pipoca das esquinas, olhar
vitrinas, acreditar em Deus, sorrir para desconhecidos, acender todas as luzes da casa à noite, dar
interurbanos repentinos (as tarifas serão mais baixas) para Nova York, Berlim ou Júpiter. Dançar
valsa e rock. Dançar valsa e rock and roll, andar de bicicleta, pular corda, girar o bambolê,
procurar óvnis no céu, alimentar cachorros vagabundos. Tudo isso e muito mais será permitido e
recomendável nesses dias em que palavras como crise, inflação e recessão serão sumariamente
riscadas dos dicionários, bem como demitidos seus proferidores. Votar para presidente é
permitido.
Serão assim os verões de julho, de agora em diante. Que fique registrado em ata. Que se
cumpra, que dure fora e dentro de cada um. Amém.

O Estado de S. Paulo, 22/7/1987


A novela da novela

Ou como, depois de quase seis meses, uma história não chegou nem mesmo a nascer

Esta crônica poderia se chamar qualquer coisa do tipo “De como não escrevi uma novela para a
televisão”. Começou em junho último, quando Mário Prata, velho e fiel amigo, me chamou.
Trabalhando para a TV Manchete, ele, Reinaldo Moraes e Dagomir Marquezi estavam
escrevendo a novela Helena, adaptação de Machado de Assis. Prata queria formar uma nova
equipe, para preparar uma nova novela, que substituiria Helena, no horário das 19h30. Topei na
hora. Conosco, começou a trabalhar Lúcia Villares — mais boa gente impossível. Nessa
companhia deliciosa — Prata, Rei, Dagô e Lu —, com a chefia de José Wilker, do Departamento
de Telenovelas da Manchete, a coisa foi andando. Saí do jornal, disposto a mergulhar no
trabalho, aprender essa outra linguagem.
Primeiro, a Manchete queria uma novela de época, sobre a libertação dos escravos.
Reunimos um material precioso: Lu descobriu um atentado ao imperador D. Pedro II, em 1889,
feito por um jovem estudante chamado Adriano do Valle. Lemos pilhas de livros sobre o assunto
(aproveito para recomendar Retrato em branco e negro, de Lilia Moritz Schwarcz, publicado este
ano pela Companhia das Letras), fizemos pesquisas em bibliotecas, jornais da época. Lilia,
Haroldo Maranhão e Antonio Candido nos deram umas boas aulas de História do Brasil. Através
de Antonio Candido, chegamos a um romance de Bernardo Guimarães (o mesmo autor de A
escrava Isaura), com o título inacreditável de Rosaura, a enjeitada.
Aos poucos, definiu. Rosaura, mais toda a pesquisa histórica, mais o atentado ao
imperador, resultou numa sinopse chamada Anos 80: uma novela que se passaria em São Paulo,
na década de 80 do século passado. Ambição: remexer no passado deste pobre país quem sabe
ajudaria a compreender melhor seu presente e também seu futuro (existe, nas mãos de Zé
Sarney?). A Manchete aprovou, alguns nomes começaram a ser pensados para o elenco. Pra cima
com a viga, moçada.
Então os planos mudaram. Anos 80 era considerada “boa” demais para o horário. Foi
adiada, para talvez substituir Carmem. Devíamos escrever, para o horário das 19h30, uma
comédia contemporânea, cuja ação transcorresse em São Paulo. Mãos à obra: deixa Rosaura
dormir um tempo. Outra vez Lu se lembrou de uma história absurda sobre uma herança enorme
deixada por um milionário paulistano. A coisa foi crescendo, algumas personagens foram
nascendo espontaneamente, muito vivas. Então nos avisaram de que o horário devia ser mudado
para vinte e duas e trinta (oba, a censura é mais branda) e a estreia adiada para janeiro.
Começamos a escrever. O tom da novela apareceu: era ao mesmo tempo muito engraçado
e muito bandido. As personagens foram ganhando voz própria. O elenco já estava quase todo
definido. Às vésperas de uma viagem ao Rio para uma reunião sobre cenografia e figurinos, o
aviso de “parem as máquinas!” Em seguida, a bomba que saiu nos jornais a semana passada: a
Manchete decidia cancelar suas telenovelas. Ou, mais suavemente, adiar ou suspender os
projetos em curso. Sensações misturadas: primeiro a frustração de ver quase seis meses de
trabalho desperdiçados. Aquela melancolia de pensar: pô, mas essas criaturas não vão nascer?
Nada mais triste do que personagens que não chegam a nascer. Tudo isso misturado à revolta
com a situação social do país: falência total.
Terceiro, menos doloroso mas infelizmente mais grave: aquela palavrinha bem brasileira
chamada desemprego. As mãos abanando, sem contrato, um grupo de escritores não me atrevo a
dizer que talentosos, mas pelo menos competentes, disciplinados, esforçados. E, agora, o que se
faz? Ninguém faz nada. Fica assim mesmo.
Estou escrevendo sobre isso porque minha cabeça está ocupada com isso e porque outros
jornais estão dando versões confusas sobre toda a história. O que aconteceu foi exatamente o que
contei. Estou escrevendo também para pedir emprego publicamente. Porque não vivo de brisa
nem de poesia. Não tenho mesada, pago aluguel, moro sozinho. Como na velha música de
Caetano, “Quem me dá sou eu”. Resulta que estou em pânico e até peço desculpas por, tão
despudoramente, encerrar pedindo assim: Socorro.

O Estado de S. Paulo, 29/7/1987


Para embalar
John Cheever

Pode ser o som do Nouvelle Cuisine, no meio da noite, repetindo palavras douradas

Mais ou menos um ano atrás, me apaixonei por um disco. Ou melhor: por uma música de um
disco: “Forgetting”, letra de Laurie Anderson para uma melodia de Philip Glass, em Songs from
liquid days. Uma letra muito simples: com o som da chuva, um homem acorda de repente, no
meio da noite, depois de ter sonhado com antigos amores. Ele não consegue voltar a dormir.
Sozinho no escuro de seu quarto, lembrando aqueles velhos amores, repete muitas vezes palavras
como: Bravura, Gentileza, Claridade, Honestidade, Compaixão, Generosidade, Dignidade.
Um ano depois, agora, me apaixonei por um livro. Fazia tempo que não acontecia. Noutros
tempos, já me apaixonei por um dos livros de J.D. Salinger, me apaixonei por Clarice, por Fome,
de Knut Hamsum, Pergunte ao pó, de John Fante, por Adélia Prado, pela Metamorfose, de
Kafka, por A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, Belos e malditos, de Scott Fitzgerald, ou Los
Premios, de Cortázar. São livros (mas podem ser canções, filmes, quadros, peças e, antigamente,
até pessoas) que você ama tanto que quer ficar mofando dentro deles, delas. Quer ver toda hora.
Absorve o jeito do outro, e esse jeito absorvido da coisa pela qual você está apaixonado, você
fica aplicando no cotidiano, feito você fosse aquela própria coisa apaixonante. Que nos tira de
nós, alarga.
Estou perdido de paixão por O mundo das maçãs, de John Cheever, uma seleção de contos
que Sérgio Augusto fez, Paulo Henrique Britto traduziu e a Companhia das Letras editou. Leio
em algum lugar que Cheever, morto em 82, era alcoólatra, drogado e, além do mais, tinha um
caso com um de seus assistentes. O que mais justifica e incendeia minha paixão: felizmente, ele
não era “normal”. Não era médio, não tinha medo. Esse não medo de Cheever transparece no que
escreve: tudo tem uma grande piedade pelo humano. Seja esse humano bêbado, drogado,
homossexual, ou apenas mediamente suburbano, como a maioria de suas personagens, inclusive
nós (eu, pelo menos, sou tão suburbano neste cosmopolitismo brega). Você lê e sofre. Você lê e
ri. Você lê e engasga. Você lê e tem arrepios. Você lê, e a sua vida vai-se misturando no que está
sendo lido.
Ler Cheever desse jeito, tão tomado de paixão, durante uma semana que comportou umas
barras de morte, umas barras de medo, tão pesadas, trouxe também uma força assim: não, Caio
F., você vai segurar, porque esse tal de Cheever aí não só segurou como criou sobre. E vamos lá.
Então, lendo Uma visão do mundo, um dos contos do livro, ao chegar ao fim encontrei —
adivinhem — nada menos que aquela letra de Laurie Anderson para Philip Glass. No conto,
depois de pensar em seus amores passados, ouvindo a chuva um homem acorda no meio da noite
— “então me sento na cama e exclamo bem alto, para mim mesmo: — Bravura! Amor! Virtude!
Compaixão! Esplendor! Bondade! Sabedoria! Beleza!” No disco brasileiro Laurie não dá o
crédito “inspirado em John Cheever”. No original, quem sabe. Mas a canção está lá, para quem
quiser conferir, mais que mera coincidência.
Tudo isso só me prova que minhas paixões são semelhantes. Amo tudo que afunda a cara
na lama da vida crua e consegue arrancar o belo desse mergulho. Todo temeroso, machucado,
denso por dentro e cético por fora, saio de casa no sábado à noite para assistir ao Nouvelle
Cuisine, no Espaço Off. E o som absolutamente cool desses cinco meninos de repente é
justamente o som que eu escolheria para embalar as histórias de John Cheever. Tudo fecha,
então, porque tudo é fechado, não deve haver espanto. Enquanto eles tocam “My funny
Valentine”, eu penso que continua chovendo. Acordo no meio da noite, assombrado por sonhos
com velhos amores, e fico repetindo no escuro palavras como: Gentileza, Perdão, Sabedoria,
Bondade, Paciência. O dia começa a amanhecer, quando sento aqui e começo a escrever todas
estas coisas que também amanhecem.
Depois abro Adélia Prado e leio: “a vida é tão bonita/ basta um beijo/ e a delicada
engrenagem movimenta-se/ uma necessidade cósmica nos protege”. Depois durmo, certo de que
ainda há muitas histórias para serem lidas, para serem escritas, para serem lembradas. Até para
serem vividas, quem sabe?

O Estado de S. Paulo, 5/8/1987


Que depois de me ler

Você fique feliz, compre uma metralhadora, embarque para Paris, boceje. E me perdoe

Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois de ler, você sinta
como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma urgência inadiável de ser feliz. Ser feliz
agora, já, imediatamente. E saia correndo para dar aquele telefonema, marcar um encontro, armar
um jantar, quem sabe um beijo; para comprar aquela passagem de avião, embarcar hoje mesmo
para Nova York, Paris, Honolulu. Tão revigorado e seguro — depois de me ler — que nada,
absolutamente nada, dará errado: ela (ou ele) atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu
chamado, haverá saldo no banco para a passagem e muitos dólares. Tudo se organizará rápida e
meio magicamente, como se todos os astros e todos os deuses só esperassem por um movimento
seu para derramar sobre sua cabeça, digamos, uma cornucópia de bem-aventuranças.
Só não sei bem que palavras usaria. Por não sabê-las, penso: se não conseguir escrever
nada tão desvairadamente feliz, talvez consiga o contrário. Um texto terrivelmente melancólico,
então. Que, depois de ler, você chore lágrimas sentidas (chorar é bom, libera energia escura,
expulsa venenos que não sairiam do corpo de outra forma). Que você rememore todas as perdas,
uma por uma, e pense também na dor física, na solidão sem remédio, na morte inevitável. Para
piorar tudo, pense também nisso que chamam de “os destinos do país”.
Por falar em “destinos do país”, posso tentar, quem sabe, uma coisa mais social.
Totalmente social, tão social quanto comício com a Lucélia Santos. Descrever com minúcias
odiosas famílias inteiras morando embaixo das marquises do Conjunto Nacional. Falar naquele
mendigo com quem cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da
calçada, enfiando as mãos de unhas imundas em restos de arroz azedo. Seria esse um texto cheio
de piedade e ira, de náusea e revolta. Que, depois de ler, você ficasse tanto com os olhos
marejados de lágrimas quanto com o coração fervilhante de ódio. E saísse correndo para fazer
alguma coisa (tão abstrato “fazer alguma coisa”). Pegar em armas, por exemplo. Dar seu dinheiro
(você tem algum? parabéns) para A Causa do Povo.
Talvez não consiga. Não, decididamente não vou conseguir: quem sabe tento o
hermetismo? Com palavras sonoras, milimetradas. Que você ao lê-las tenha vontade de escandi-
las (nunca pensei que fosse capaz desta sintaxe janista…), batendo os dedos no tampo da mesa.
Palavras frementes de climas, a mata amazônica ao lado de um deserto marciano e, logo a seguir,
um coração em chamas junto de uma frígida reflexão cibernética. Não haveria emoção: só ritmo.
Não haveria sentido: só forma.
Dá vontade de escrever carta, dizendo coisas que as pessoas não dizem mais, porque
seriam coisas que só se dizem por carta, não por telefone, e ninguém escreve mais carta, só
telefona, e portanto há coisas que não são mais ditas entre as pessoas. Que coisas, não sei ao
certo. Que hoje não consigo quase nada, além de pensar vadio. Isso, aquilo: perdoe.

Como você consegue, como você consegue?, perguntariam. Acontece que também não
consigo. É que hoje estou suspenso. O dia deu em chuvoso, como no poema de Fernando Pessoa.
Meio-dia em ponto, a mala para arrumar (viver é sempre meio Pessoa) e visitar o baú (meu
terapeuta descobriu que Porto Alegre para mim é um baú), sentado em frente à janela, a cabeça
fica borboleta. Lembro de coisas inesperadas como os pés de meu pai, de repente sou tomado por
louca compaixão pelos pés de meu pai, pés cansados de homem de quase setenta anos, pés que
devem sentir muito frio em agosto. Quando começo a considerar a possibilidade de dar um par
de meias a ele (nunca fui muito bom em presentes) no Dia dos Pais, a cabeça dispara e lembro
que preciso encontrar urgente aquela Nana Caymmi cantando “Copacabana”, se não morro. E
prometi levar o Bukowsky em quadrinhos para meu irmão Felipe (o mais bukowskiano de todos
os irmãos), e preciso dar uns dez telefonemas, inclusive para Silvia Simas, que me abandonou,
então não ligo. Pronto, acabou: não preciso ligar para ninguém, já que ninguém liga para mim.
Então vem na memória Maria Julieta Drummond de Andrade, vem uma dor fininha junto. Linda,
ela.

O Estado de S. Paulo, 12/8/1987


Caleidoscópio Rita

Que linda e vária que você é, Rita Lee, roqueira brasileira cada vez mais doida varrida

De cara, foi mágico. Sonhei com minha velha amiga Cecília Assef, que não via havia muito
tempo. Toda de branco, linda. À tarde, toca o telefone. Era Cecília. Se eu queria, além de matar
saudades, assistir no sábado ao ensaio geral do novo show de Rita Lee (Cecília é produtora de
Rita). Coração disparado, boca seca, palmas das mãos molhadas: ô yeah!
Acontece que adoro Rita. Quando saiu meu livro O ovo apunhalado, num depoimento que
dei à revista Escrita (alô, bravo Wladyr Nader!) falei que considerava Rita Lee uma influência
tão ou mais importante que Dostoievsky. Escândalo. Isso foi lá por 1976, no auge daquela latino-
americanidade babaca. A revista recebeu várias cartas iradas: eu era um “burguês alienado”, e
Rita, que entrou na história como Pilatos, uma “gringa colonizada”. A esquerda de Neanderthal
sempre achou que o prazer é de direita…
Fui ver o show. Lindo: Rita canta, dança, voa pelo palco vestida de duende, com asinhas
nos pés, toca castanholas, flauta transversa, rebola ao ritmo de “La bamba”, ironiza a si própria
com “Orra, meu”. E deixa claro para público e crítica (hum… como diria Paulo Francis) que é
uma das artistas mais completas deste país. Este mesmo, que maltrata suas pessoas mais
talentosas (vide Caetano, Elis, Hilda Hilst, Hélio Oiticica) e incensa cretinos que o decoro me
impede de citar. Rita tem uma obra tão importante quanto a de Caetano, Chico ou Gil. Com um
detalhe invisível para os xenófobos do pagode: ela é roqueira. A mais completa do país, a mais
íntegra, a mais coerente. Ninguém percebeu ainda: nada mais brasileiro que o rock-rumba, rock-
frevo, rock-marchinha-de-carnaval de seu trabalho. Rock, esse ritmo de gringos. E do povo de
Alfa-Centauro…
Não conheço Rita fora do palco. Infelizmente, não estou escrevendo sobre uma amiga, mas
sobre uma artista que admiro profundamente. Que mexe com meus quadris, meu coração, minha
cabeça. Mais de uma vez, com sua música, Rita me salvou de pirações brabas. Eu é que sei de
que barra desencarnei ao ouvir “Saúde” pela primeira vez; da caída fora salvadora que dei de um
lance ao ouvir “Música problema”; do quanto me entendi e me gostei mais ouvindo “Ovelha
negra”; de como me apaixonei e namorei ao som de “Caso sério”. Rita me ajuda a viver: sua
música pontua a minha própria história. Feito um contraponto de alegria, jogando para cima e
para a frente.
Em meio à emoção de reencontrar outros ritólogos como eu (Telmo Martino, Antônio
Bivar, Denise Barroso, Joyce Pascowitch, Regina Echeverría), saí do show com aquele tipo de
sensação que Marília Pêra me dá: não há frustração quando o artista é absolutamente
profissional, ama aquilo que faz e nunca para de se aperfeiçoar. Rita é assim. E são muitas Ritas.
O erotismo de Rita tem aquele sabor sacaninha da adolescência, pura pureza. O humor de
Rita inclui meninas sapecas, duendes, moleques, fadas e, também, peruas, solteironas, darks
metidos. O rock de Rita cheira a asfalto e a lança-perfume. Ela é densa, sem ser nunca pesada.
Pode ser dolorida e colorida (“Glória Frankenstein”), najamente cáustica (“Noviças do vício”),
cronista urbana (“Vítima”), atrevida, desacatando feministas (“Bwana”), romântica descabelada
(“Molambo souvenir”). Tanta coisa mais. Vê-la é girar um caleidoscópio vertiginoso. Muitas
Ritas, uma só: a única.
Não que seja perfeita. Pode falhar, errar, voltar atrás, fazer besteira, dançar, entrar noutra,
dar mancada, explodir, pirar. Só que, do alto dos altíssimos saltos de seus lindos quarenta anos,
conquistou o direito de. Isso: o direito de. Sua obra riquíssima (pensem: de Mutantes, lá por 67,
até este Flerte fatal de 87, são pelo menos vinte anos de e na batalha). Então, muito respeito: a
batalha de Rita já foi ganha com o garbo da própria Greta. Rita mulher com filhos, Rita locutora
de rádio, Rita garotona, alegria nossa de cada dia, Rita mulher madura, militante ecológica, Rita
bossa-nova, gatona, heavy-metal, trovadora, saltimbanca: que linha que você é, sopro doce de
vida rolando sempre viva.
Canto junto com você: “Eu to ficando velho/ cada vez mais doido varrido/ roqueiro
brasileiro/ sempre teve cara de bandido”. E pra estreia do show,ontem em Vitória no Espírito
Santo, queria mandar para todos os ritomaníacos do Brasil meu (nosso) mais sonoro Ô YEAH!

O Estado de S. Paulo, 19/8/1987


Adeus, agosto.
Alô, setembro

Mesmo aqui no País Bandido, agosto sempre vai embora. E setembro sempre volta, sim

Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este: que nos deixou à meia-noite de ontem e pareceu
durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Levou Drummond, levou John Huston. Gilberto
Freyre. O mais patético: levou Pixote. Ao saber do assassinato (é as-sassi-na-to mesmo que eu
quero dizer) dele, além de sentir uma vergonha viscosa de ser brasileiro, fiquei pensando assim
— Deus, o que é que está acontecendo com este país? Imagino a praça de guerra (Líbano perde)
em que se transformou o Rio de Janeiro e, na trilha sonora, fico ouvindo Lobão berrar “vida,
vida, vida bandida”. Em 1987, Lobão tornou-se a mais perfeita tradução de Brasil. Um país
invadido pela corrupção, pela barbárie, pela violência policial, pela bandidagem. Você vai até a
esquina comprar cigarros e não sabe se volta vivo.
Falei disso a um motorista de táxi. Sobre Pixote, ele disse: “Pau que nasce torto, não tem
jeito, morre torto”. Sobre a guerra da polícia com os traficantes, no Rio: “Bandido tem mais é
que morrer”. Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha bandido? Se tivesse comida, tinha
bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um
mínimo de alguma coisa levemente parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça”? Quem
inventou essa violência desenfreada que tomou conta do país não foram os marginais — foram
os poderosos. Se eu desculpo bandido? Desculpo, sim. Não desculpo é marajá. Não desculpo Zé
Sarney, no comando desta barca da Medusa, navegando em mar de sangue — em direção a que
abismo? Ninguém sabe, temos medo.
Passadas as águas de agosto, ontem inaugurou setembro. E por não apostar no país, aposto
em setembro (“se o mundo é um lixo, eu não sou”). De saída, tem uma coisa linda, que eu vou
contar pra vocês. É assim: tenho quatro irmãos de sangue em Porto Alegre, e — graças a Deus
— talvez uns vinte irmãos de alma soltos pelo mundo. Esta semana, dois deles estão aqui, vindos
de Porto Alegre para apresentar no Madame Satã (dias 3, 4, 5 e 6 de setembro) um trabalho
chamado Lenta valsa de morrer.
Eles se chamam Ivan Mattos e Eliane Steinmetz (Eliane é “a Gorda” — emagreceu, mas o
apelido ficou), atualmente também conhecidos como “os loiros”, porque, como diz o Bivar,
oxigenaram um pouco. Ivan e Gorda são das pessoas mais engraçadas que conheço, e mais
talentosas. Não estão mais cabendo em Porto Alegre, a cidade-carroça, e vieram mostrar esse
trabalho para quem quiser ver. São textos de Clarice Lispector, do alemão Heiner Müller, do
gaúcho Renato Campão — e também meus. Tudo isso embalado pela voz de Adriana
Calcanhoto, uma supercantora (quem perdeu o show dela no Off, semana passada, dançou), com
participação de Adriane Mottola, uma moça muito chique, e figurinos de Zé Adão Barbosa, um
moço também muito chique. Na direção, outro irmão de alma: Luciano Alabarse. Pinta lá pra
ver. Eles vão gostar, você também.
Se estou fazendo propaganda dos meus amigos? Lógico, meu bem, você acha que eu ia
fazer propaganda dos meus inimigos? Sinto/sei que, de cada vez que o horror arreganha os
dentes — assassinam Pixote, o Rio vira Líbano —, se a gente estiver atento, no minuto seguinte
a velha Dona Vida, essa senhora imprevisível e nem sempre respeitável, faz uma pirueta no
trapézio para mostrar a outra face. Não a de megera medonha, sanguinária, mas seu avesso: a
fada suave, revelando o talento de gente moça. Ivan, Eliane, Adriana, moçada que já nasceu com
os militares no poder, sem esperança nem fé, rolando de rir de tudo, com um jeito insólito de
captar o sério das coisas. Não o sério clichê, o sério careta — mas um olho novo de pegar o
mundo. Esse jeito existe, eu já vi. Cada vez que olho para Ivan e Gorda, cada vez que ouço
Adriana, ele está lá.
Como setembro. Mesmo aqui, no País Bandido, agosto vai sempre embora, e setembro
sempre chega. Se você quiser, claro. Porque, como aquele motorista de táxi, você também pode
achar que bandido é bandido, tem que ser morto. Quanto a mim, acho que todo mundo tem mais
é que viver. Ser feliz. Agora, dá licença, vou escancarar a janela, tomar um banho e me preparar
para este setembro que ninguém vai sujar. Em mim, não mesmo.

O Estado de S. Paulo, 2/9/1987


Cenários em ruínas

Mais que um livro: eu, você, ele. Espelho cúmplice, entre as sombras e a desolação

Um homem acorda no meio da tarde de domingo, seus passos de pés nus não fazem ruído algum
no carpete do quarto. O quarto cheira a uísque, a cigarro, a cerveja, a maconha. Ainda restam
copos vazios pelos cantos, líquidos derramados, mas já secos, fundidos na cor neutra do tapete.
Há um espelho na mesinha de cabeceira da direita. Vidro baço, manchado de branco, alguns
grãos, uma gilete. Ele lambe a gilete. Enquanto lambe a gilete, em pé e nu em frente à janela, que
por enquanto não se atreve a abrir, ele lembra sem querer de um filme de Carlos Reichenbach. A
memória dormente não traz o nome do filme, só a cara de Ênio Gonçalves em dose, uma gilete
na boca. Lentamente. Tudo lentamente, assim ao despertar, nessas tardes de domingo. E, no pisar
forte do chão, anota mentalmente — a imagem de Jane Fonda bêbada interrompendo a corrida,
as duas mãos na cabeça. Tanta dor na cabeça, the morning after.
Ele tem muitos filmes na cabeça. Ele tem muitos livros na cabeça. Há pistas pelo quarto,
que não recolhe. Ele não é um detetive, embora às vezes possa deliberadamente compor um
visual assim, tipo Humphrey Bogart, capa de gabardine, barba de dois dias, cigarro sem filtro no
canto da boca. Mas isso também é filme, livro. Imagens, palavras: ilusão. Netuno. As pistas do
real-acontecido de uma suposta noite anterior a essa tarde de domingo em que ele desperta —
não interessam. Ele é aquele que busca o que se perdeu. Para sempre.
Nenhuma câmera o acompanha, em plano médio ou geral, enquanto ele se encaminha para
o banheiro. Mas caminha — lento, nu, para que a cabeça não doa — colocado (emocionalmente
equalizado), ombros retos. Certa nobreza nesse porte de homem à beira dos quarenta anos.
Absolutamente solitário, senhor do espaço que ocupa: um apartamento cravado no meio da
cidade de sombras e desolação. Igual a um alfinete no centro carnudo de uma borboleta viva. De
asas negras? Não há nenhum sax gemendo quando ele para em frente ao espelho do banheiro.
Hesita entre acender um cigarro, assim em jejum, para compor melhor o noir no meio da tarde —
fazer a barba, tomar um copo de leite e vestir-se todo de branco, ou deixar a barba, vestir-se todo
de preto e beber um Jack Daniel’s em jejum? Números, ah.
Dentro do filme que não acontece no meio da tarde — este também é um homem sem
identidade nem lugar. Tudo está mergulhado na obscuridade cinza do apartamento cravado no
meio da cidade viva, numa tarde de domingo. Até o telefone tocar, mesmo sendo engano, não
será inteiramente uma pessoa com identidade real neste espaço. Apenas ficção, sombra. Cabeça
pesada de álcool, cigarros e drogas. Algumas fantasias, farrapos da noite anterior, desbotados
como papel crepom na chuva. Que talvez tenha ousado toques, palavras — mansos? sensuais? —
nesse anterior agora mergulhado em sombras. Para que a vida, de repente, se tornasse carne viva.
Não apenas reflexo de filme, livro. Mesmo assim, e há tanto tempo, nesta manhã, como nas
outras, entre os vestígios da noite não há nenhuma mancha roxa de beijo apaixonado em seu
pescoço de homem só. Todas as mulheres o traíram, e o amor entre homens é torturado, você
sabe. Finalmente, porque a paixão que ele sonha é a paixão de Ana Karenina, de Adele H., de
Werther ou Tristão. Livro, filme, lenda: a vida não supre, amigo. Um homem caminha por um
apartamento escuro, desolado. Sozinho, vulnerável. Não há nenhuma armadilha pelos cantos. A
não ser as que ele mesmo armou, e foram muitas. Anda atrás de um sonho, um homem de quase
quarenta anos. Mas um sonho que ele — maduro ou idiota? — sabe que não existe. O sonho de
amor (assim mesmo, nome de bombom) de livros, em filmes. O mundo se tornou complexo
demais, corrido demais, tenso demais. Doente demais, confere, olhando os jornais do dia com
notícias do assassinato de Peter Tosh, de Henfil e seus irmãos com aids. Lembra de Elis — ele
pensa no amor, ele pensa na morte, ele pensa no mundo. Não acredita. Por não acreditar, acredita
ainda mais: essa fantasia é que o empurra para a frente.
Por tudo isso, por nada disso, sem fazer nada do que pretendia, ele abre Cenários em
Ruínas, de Nelson Brissac Peixoto. E começa a ler. Não é leitura: eu, você, ele. Espelho lindo,
cúmplice. Agora: now.

O Estado de S. Paulo, 16/9/1987


Safra de abobrinhas

Não me magoa com papo franco que eu faço a etrusca, fico frontal e digo ahuahuah já

De malas prontas (com uma boa meia dúzia de saias justas), pronto a embarcar para Beirute —
digo, Rio de Janeiro. Como groupie ou tiete assumido, vou atrás do Luni, que vai invadir aquela
praia com duas apresentações no teatro Cândido Mendes. Escrevo na sexta, a invasão se dará (se
deu) na segunda e terça. Se voltar vivo — pois resistir quem há de aos olhinhos brejeiros de
Natália Barros, ao soul cada vez mais rouco de Theo Werneck e ao gingado olímpico da deusa
Marisa Orth? —, depois eu conto.
Deixo para vocês mais uma safra de abobrinhas. Daquelas, estilo pós-Aurelião. É que
recebi visita de Ivan Mattos e Eliane Steinmetz — dois Ph.D.s nesse assunto. Claro, com a
convivência outras nasceram. Lá vão, em forma de verbete para parecerem — digamos — mais
sérias.

Peruca — Pessoa famosa ou, pelo menos, que está em todos os lugares da moda. Pessoa peruca é
supervisível, logo que você entra dá de cara com ela, nos lugares mais inesperados. Não é
pejorativo, portanto posso dar exemplos: Bronie, Mário Mendes, Bruna Lombardi, pessoal do
vídeo.

Frontal — Pessoa (pode ser também estado de espirito) que diz, franca e abertamente, o que
realmente pensa dos outros e da vida. Está, assim, digamos, frontal com o mundo. Exemplo:
Vânia Toledo.

Papo franco — Uma pessoa frontal sempre tem papos francos. Mas alguém não muito frontal
pode resolver ter um, também. É assim: você está jantando no restaurante e o casal ao lado não
para de discutir. Lá pelas tantas, você se vira subitamente e diz: “Escuta, vocês já se deram conta
de como vocês são chatos?” Etc. & etc. Parabéns, você estará tendo um bom e saudável papo
franco, bem frontal.

Telma — Aquele rapaz que todo mundo sabe que é gay, menos ele. Exemplo não posso dar, mas
tem tanto por aí. Olhe pro lado: lá vai uma Telma.

Juarez — Aquela moça que todo mundo sabe que é sapato, menos ela. Vale o exemplo anterior.

Irmã — Mulher distinta, discreta, geralmente com mais de trinta anos. Mas que num detalhe
entrega que está louca pra transar com quem pintar — pode ser uma fenda na saia, uma
pulseirona dourada, coisas assim. Exemplo: e eu sou louco de falar?

Platinar — Não quer dizer necessariamente descolorir os cabelos. Significa mais uma súbita e
radical mudança no visual. Digamos, colocar um brinco (para rapazes), cortar o cabelo só de um
lado, fazer uma mecha verde. “Ah, tava tudo um bode mesmo. Daí platinei”.

Gestos — Essa é ótima. Tem vários gestos. Quando alguém convida você pra ir ao cinema, no
sábado, e você diz: “Ah, não sei. Tá tão frio. Acho que vou ficar em casa vendo TV” — cuidado,
você está tendo gestos de velha. Beber gim todas as noites da semana? Cuidado: você está tendo
gestos de alcoólatra. Os gestos podem ser resumidos a siglas: GV (gestos de velha), GT (gestos
de tarado), GF (gestos de freira), GN (gestos de naja).

Etrusca — Diz-se de pessoa meio misteriosa, da qual ninguém nunca soube de um caso ou
paixão mais forte. Pessoa que não dá bandeira de seus amores. Ex.: Teté Martinho, George
Freire. Eu mesmo faço a etrusca.

Ahuahuah — Tem que ser pronunciado com a boca bem solta, voz rouca e um tanto arfante.
Dizem que, no Havaí, quer dizer “que tesão”. Você pode dizer logo ao cumprimentar alguém.
Existem pessoas ahuahuah (Fernanda Abujamra, Patrícia Casé, Alan Salles), situações
ahuahuah, lances ahuahuah. Podia ter mais: ahuahuah é a solução do bode brasileiro.

Não me magoa! — É o que você exclama (a exclamação é fundamental) quando algo ou alguém
está se tornando extremamente chato. Música de Milton Nascimento (qualquer uma) é super-
não-me-magoa. Comer em restaurante natural não pode ser mais. Você pode dizer, também,
antes de começar um bom papo franco. Mas, antes, você tem que estar frontal.

É isso aí. Para aterrissar o mais macio possível deste setembro hard-core. Para adentrar
suavemente pelas doçuras do signo de Libra, que começa hoje a ascender com o Sol. Para rir um
pouco, falar bobagem, passar o tempo. Relaxa, baby, que daqui a pouco chega o ano 2000 e,
como diziam Jacqueline Cantore e Marcos Breda: “Ahuahuah já!”

O Estado de S. Paulo, 23/9/1987


Felizes para sempre

Uma mulher está à beira do inferno. A seu lado, um homem escreve uma carta de amor

Andar sozinho, sem apoio, transformou-se numa prova difícil demais. Há dois meses você anda
cada vez com mais dificuldade, você se agarra aos móveis, a mim. Os efeitos do álcool se tornam
visíveis, terríveis.
Essas frases acima — e as demais, em negrito, intercalando este texto — pertencem a
M.D., livro de Yann Andréa que a editora Marco Zero acaba de publicar. Quem ou o que
significa essa sigla, esse M, esse D? Quem é esse Yann Andréa? O livro não dá pistas. Uma capa
inteiramente branca, com aquelas iniciais, discretas, em azul-claro. Nenhuma foto, nenhuma
informação na contracapa. Um pequeno mistério: M.D.
Nas lágrimas, Trouville, o verão, a primeira garrafa de vinho comprada por sua ordem, a
obediência a tudo, até as lágrimas também, e eu diante de você, olhos fechados, suplico que você
me ame.
M.D., a orelha ou um folhear rápido no livro revela, são as iniciais da escritora e cineasta
francesa Marguerite Duras. Yann Andréa, o nome de seu companheiro, também cineasta, que de
agosto a novembro de 1982 registrou num caderninho, em forma de diário, o processo de
desintoxicação alcoólica de sua amiga? amada? cúmplice? Depois de ler o livro (curtinho, 105
páginas), fica difícil encontrar uma palavra para definir a relação de Yann com Marguerite.
Enfermeiro? amante? biógrafo? Todas essas tentativas, e mais algumas. O que Yann sente por
Marguerite é imenso. Respeito, fascinação, carinho (o carinho que se tem por algo que é frágil
como nós, não por uma coisa boba), piedade (a piedade que se tem pelo que é humano e carente
como nós, não por alguém incapaz) e, quem sabe?, isso que chamam de amor? Nunca em minha
vida li uma carta de amor tão linda quanto a que Yann Andréa escreveu para Marguerite Duras.
Ponho a colcha branca sobre seus joelhos, recubro as pernas, não deixo nenhum espaço
exposto ao frescor do ar, abraço você, guardo você, você não sabe, você dorme.
Internada em Neuilly, Hospital Americano de Paris, por vontade própria, Marguerite Duras
— aquela Duras, que inicia O amante, um dos livros mais belos deste século, descrevendo a
devastação do álcool e do tempo no próprio rosto — tenta emergir de um inferno de álcool e
ansiolíticos. Dienpax, Mogadon, Valium, Aldactone. Ela quer terminar seu livro, A doença da
morte. Deitada na cama do hospital, num raro momento de lucidez, entre visões e tremores,
Marguerite diz: “A única coisa que importa é a loucura, não ter medo de se perder de si mesmo”.
Mas ela mesma não quer se perder de si. E, todos os dias, Yann está a seu lado. Até a noite.
Depois ele volta para o apartamento onde ela não está mais.
O carro avança, as lágrimas vêm. Não quero chorar. O motorista se cala, põe um cassete:
Billie Holiday canta “My man”.
Ele esquece todo o resto. Ele está voltado apenas para ela, que, numa cama de hospital, luta
contra si mesma. Ele não se importa de não ter mais uma vida, desde que possa ficar ao lado
dela. Por algumas horas, todo dia. Ela o acusa de coisas que ele não fez, ela fala coisas duras. Ele
faz que não ouve. Ele a ajuda a lavar-se, ele a tranquiliza. Ele observa cada movimento dela em
direção à luz ou à treva. Então se alegra, ou se entristece. Porque ele também tem problemas.
Estou diante do telefone, sem poder falar. E depois, finalmente, as lágrimas. Esta vontade
de álcool não passa.
Mas ela acaba por vencer. Os escritores são mestres em criar seus próprios infernos, só
para descobrir formas de se ver livres deles. Em todas as esquinas desse labirinto infernal, Yann
permanece ao lado de Marguerite, mão a mão. Continuam juntos?, me pergunto na noite tardia
de sábado, ouvindo Thelonious Monk. De alguma forma, certamente sim, me respondo. Porque
aprendi que esses amores capazes de superar o primeiro impulso que determina o próprio amor
— a atração física — ah, esses amores não terminam nunca. (E nós aqui, vivendo essa coisa tão
assustada e média…)
Não ouço nada, você deve estar no seu quarto à sua mesa, você deve estar não olhando,
através da cortina branca, como de hábito.
Yann e Marguerite foram felizes para sempre, eu invento. Preciso.

O Estado de S. Paulo, 30/9/1987


Se eu quiser
falar com Deus

Tenho que aceitar a dor. E contemplar a miséria de fora fundida à miséria de dentro

1 Tarde de chuva nesta primavera que chegou de saia justa. Caminho pela cidade, bancos,
contas. Entro num bar. Parada no balcão, uma velhinha. Uma velhinha muito velha, talvez a
velha mais velha que já vi. Pequenina, molhada de chuva, coberta de trapos. Limpinhos, mas
trapos. Ela olha para mim através daquela névoa azulada que os velhos têm nos olhos. Voz
sumida, pede: “Moço, me ajuda. Eu tenho muita fome”. Dou dinheiro a ela. Ela diz: “Moço, eu
sou tão velha, eu sou tão pobre, eu tenho tanta fome”. Acrescenta: “Deus que lhe guarde um
lugarzinho no céu”. Sai caminhando miudinha pela chuva. Tanta lama. Peço uma Coca-Cola, não
consigo engolir.

2 Madrugada alta. Depois de uma grande confusão — digamos — afetiva, saio de um bar.
Deprimido: detesto esses climas tipo declínio-do-império-americano. Pego um táxi, fusquinha.
Suspiro, peço licença para acender um cigarro. Ruas molhadas, neon nas poças. Digo: “Viver é
tão complicado, o senhor não acha?”. O motorista ri, amargo: “Acho. Cada vez mais. Eu mesmo
não tenho dinheiro pra pagar o aluguel, estou morando no táxi”. Fico chocado, ele torna a rir: “E
isso que ainda tô legal. Tem um colega meu que faz duas semanas tá morando debaixo de um
viaduto”.

3 Converso com Adélia Prado, seu ar iluminado, uma Jeanne Moreau mais jovem, mais bonita.
Falamos do país, tudo muito pobre, feio, triste. Adélia diz: “É preciso preservar o território
interior”. Eu digo sim, mas penso: como? Adélia conta: “Sabe que no tempo do Plano Cruzado,
lá em Divinópolis, notei que diminuiu muito aquele monte de gente batendo na porta, pedindo
comida. Agora é toda hora, muita gente. Eu sempre ajudo. Mas adianta?”. Não digo nada, ela é
tão linda.

4 Meio-dia de trânsito infernal num cruzamento da Paulista. No táxi trancado, distraio-me lendo
qualquer indiscrição de Paulo Francis sobre E. M. Forster. De repente, na janela aberta a meu
lado, a cara de um rapaz. Tão súbita que, primeiro, acho que deve ser algum amigo. Ou um
ladrão. Mas a cara é boa, jovem, forte, limpa. Ele pede uma esmola. Percebo que usa muletas,
tem as duas pernas completamente atrofiadas. Procuro a carteira, o motorista pergunta, duro:
“Por que você não trabalha?”. O rapaz responde mais duro ainda (e tão triste): “Você acha que
alguém neste país dá emprego pra aleijado?”. O sinal abre.
5 Cruzo com um rapaz que circulava aqui pela vizinhança. For volta de 25 anos, pinta de surfista.
Fazia uns servicinhos no prédio, volta e meia pedia cigarro, bebia cerveja na padaria da esquina.
Quase não o reconheço. A barba bate no peito, cabelos nos ombros. Coberto de trapos imundos,
saco de papéis nas costas. Remexe na lata de lixo. Faz frio, ele está descalço. Não me reconhece,
procura comida no lixo, aquele antigo rapaz com pinta de surfista: virou mendigo. E segue o
baile.

6 Saudade. Ligo para Rosa Webster, que sempre me manda recortes sobre quasars, pulsars, anãs
brancas, buracos negros. Rosa conta: soube no hospital que as mães muito pobres, na hora do
parto, precisam tomar uma injeção de glicose. São subalimentadas, sem forças para parir.

7 Ando pelas ruas, todo dia. Quilômetros: Jardins, Consolação, Paulista, Augusta, Angélica,
Centro, Bela Vista, Santa Cecília, Higienópolis. Olho, olho. Pelo menos nisso, igual a Fernando
Pessoa: vejo como um danado. E quase não acredito na danação que vejo. Biafra (lembra?),
Etiópia, Moçambique, Índia, Alagados: é São Paulo, Brasil 87, Nova República, José Sarney,
Plano Bresser. Regiões ricas da cidade mais rica do país: pura miséria. Vida infra-humana, fome.
Dor.

8 Sábado. Não saio de casa, não sonho mais. Cuido das plantas, lavo pratos, falo sozinho, penso
em Gastão, que morreu. Ouço Nana Caymmi: “Eu não gosto de quem me arruína em pedaços”.
Bebo um conhaque, tenho medo, sinto pena, estou à margem, bebo outro conhaque. Habito uma
bolha. Você não toca na minha mão. Nem eu na sua. Olhamos horrorizados. Não dividimos nem
mesmo esse olhar: the horror, the horror. Me sinto tão mal, my little wild thing, tão mal que vou
ouvir Elis até de manhã.

9 Lembro um poema de Mário Quintana: “Eu nada entendo da questão social/ eu faço parte dela
simplesmente”. Oxalá nos guarde: axé, axé.

O Estado de S. Paulo, 7/10/1987


Um cantinho, um violão,
uma Narinha

Me abraça, vem mais pra perto, desliga a TV, põe o disco da Nara Leão, me olha nos olhos

É verdade, andei pesado. Pesado de olhar para fora, pesado de olhar social sem poesia, você
sabe. Aí falei assim, Caio F., você precisa se dar um presente. Quando penso em presente, penso
em coisa gostosa, quando penso em coisa gostosa, na maioria das vezes penso em música. Então
fui até a Wop-Bop, a lojinha de discos mais agradável da cidade, entrei e não precisei olhar
muito em volta. Tinha um disco de capa meio dourada, com a foto de uma moça de maiô. Era
ela. Trouxe para casa.
Há uma semana, estou encantado. Tomo banho de doçura de duas em duas horas. Fico
deitado no sofá, olhando pela janela, esquecido até de fumar. Completamente apaixonado. Não
sei direito se por essa moça, se pelo tempo e o clima que ela consegue criar, não sei se por
qualquer outra pessoa, que não seria qualquer, ao contrário, mas isso é outra história. Eu fico
bobo, o disco rodando, suspiros, molezas, preguiças, saudades — aquelas coisas, você sabe.
Você sabe, sim. Não minta para mim: se você acha que não sabe do que estou falando, ouça esse
disco, essa moça.
É a Nara Leão, Meus sonhos dourados. E o meus é pura modéstia dela, narices, porque
esses sonhos são teus, nossos, do país inteiro, quem sabe do mundo? Nara pegou aquelas canções
americanas tipo “Moonlight serenade”, “Over the rainbow”, “Tea for two”, “As time goes by” —
todas aquelas que você já ouviu em algum lugar, num piano, num fim de noite, nem sabe onde,
nem sabe quando — e regravou, em português, algumas versões dela, outras de outras pessoas.
Regravou com produção de Menescal, em ritmo de pura bossa-nova. O cantinho, o violão, o jeito
manso de olhar o mundo, sem rancor nenhum, achando tudo bonito. Sem se importar em
classificar como brega ou chique, antiquado ou moderno. Um barquinho a deslizar, no macio
azul do mar. E a vontade de cantar — tão simples: ternura, palavra ousada. Fiquei lembrando,
fiquei viajando. Quando vi Nara pela primeira vez, em 1967, num negócio chamado
Arquisamba, em Porto Alegre, economizei um mês para comprar a entrada. Valeu: vestido de
lamê prateado, trazido por Danuza de Paris (deu no jornal), os joelhos (ah, os joelhos!) de fora,
ela cantou “Funeral de um lavrador”.
Ela estava meio comunista, na época. Eu também, você sabe. Faculdade de filosofia, AI-5,
grupos de trabalho, aquelas coisas. Deu tudo certo: fiquei apaixonado. E nos anos seguintes
viajei em todas as viagens dela, pelo samba do morro, pelas músicas de Roberto Carlos, até
mesmo pela dispersão meio nordestina. Mas a Nara que reencontro e amo é a Nara que eu
mesmo sou: inteiramente bossa-nova, sem ruído. Voz baixa, por favor, me diga coisas bonitas, te
digo coisas bonitas. Me faz sonhar, te faço sonhar. Me conta coisas com gosto de mel e girassóis.
Eu, você, nós dois, sozinhos nesse bar, à meia-luz. Nara voltou à bossa, isso ajuda tanto a viver,
céu azul. Por favor, ponha na eletrola (Nara e eu somos do tempo da eletrola, imagina), deite no
sofá. Acredite que lá, além do arco-íris, existe um lugar. Lembre de um outro corpo no seu, faça
de conta que você é Judy Garland ou Fred Astaire, e dance dance dance. Rosto colado, bebendo
uísque on the rocks, Copacabana é aqui — todas essas coisas que o Tom já cantou e a voz macia
do João Gilberto não cansa de repetir. Viver é tão bonito, creia. E toque na primeira mão que
estiver a seu alcance. Diga assim, que bom te encontrar, aqui no mesmo bar, quero saber de você
depois do que se passou. Suspire: ah, é tão bom te ver outra vez. Alô, chega mais perto de mim.
Memória dos beijos teus, eu não esqueci.
Viver é tão bonito quando a gente aprendeu a ouvir Nara Leão. Essa moça de maiô,
sentada na areia, agora mãe de filhos, formada em psicologia, mais de quarenta anos, saída de
uma batalha com a morte — e inteiramente fiel à cor dourada dos seus sonhos. Sem amargura,
nem rancor ou saudosismo. Porque nada mais político lembrar o que foi bom e ameaça se perder
neste tempo presente. Recuperar o som da tua voz ao telefone, pensar com carinho nos bons
momentos que você me deu. Não querer possuir, não querer compreender nem dar nome: rodar
sobre uma nuvem branca suspensa sobre tudo, ao som de Nara Leão. Se não bastar, assistir ao
show de Caetano. Meu mel: vai ser tão lindo. Me peça a lua, te dou. Eu juro.

O Estado de S. Paulo, 14/10/1987


Ninguém merece
Jânio Quadros

Tanta coisa boa: Down By Law, Fanny, Cazuza, família Boyle, Hilda Hilst, Mulheres Negras,
A-Z, Paula Dip…

Semana passada, me deu uma vergonha tão grande de morar numa cidade que tem como prefeito
essa figura lamentável do sr. Jânio Quadros, que até pensei: bom, no domingo sento e escrevo
sobre isso. Uma crônica/carta irada, reclamando da sujeira das ruas, da violência solta, do
barulho, da poluição, do lixo. Uma carta raivosa, cheia de cobranças. Lamentando a burrice deste
povo que elegeu o sr. Jânio como prefeito e é bem capaz de, nas próximas (cadê?) eleições
diretas para presidente, votar naquele outro senhor — o João Baptista Figueiredo. Uma carta
sugerindo o internamento imediato do sr. Jânio (como ele fez com a própria filha) para uma boa
— digamos — faxina mental. Com muito detergente.
Mas o domingo chegou, a chuva passou, o ar restou tão limpo e leve. Aconteceram coisas
boas, até enumero: aquele filme irresistível chamado Down by law; os trabalhos da família
Boyle, na Bienal; o show de Os Mulheres Negras (que seria ainda melhor se eles parassem com
as abobrinhas pueris e investissem na música mesmo); um bilhete de Nara Leão; a A-Z com
Paulinha Toller na capa e um artigo de Bivar sobre Dadá; certa tarde no Ritz quase vazio, com a
voz de Gal Costa de repente cantando “Todo amor que houver nessa vida”, de Cazuza (axé!);
esse livro atrevido chamado Maria Ruth, de Ruth Escobar; um telefonema de Hilda Hilst; Paula
Dip voltando de Londres; Nelson Brissac Peixoto me trazendo uma maquetezinha de papelão de
Nova York, com King Kong e tudo; um sonho com Fanny Abramovich; um chá com Jacqueline
Cantore e Hugo Prata. Tanta coisa boa, bonita, gostosa, que pensei: não, o leitor não merece
Jânio Quadros.
Pensando no leitor, lembrei das cartas, Ai, as cartas… Então vou falar delas. Recebo
muitas cartas aqui no jornal. Tem nada que eu goste mais do que receber cartas. São lindas,
sempre. Algumas pessoas dizem coisas como “você me ajuda a viver” ou “você alegra as minhas
quartas-feiras”. Me desejam coisas boas. Leio, releio, agradeço mentalmente, penso “vocês me
ajudam a viver”. E guardo, guardo tudo. Quando vem telefone junto, telefono, é mais fácil. Mas
não posso responder, queria que vocês compreendessem: falta tempo. Mesmo que pudesse sentar
e escrever umas linhas, cadê o tempo para esperar no mínimo uma hora nas filas do Correio, com
todos aqueles office boys e seus três quilos de mala-direta? Não dá. Não é arrogância: é que eu
teria que viver só para isso.
Então fica combinado assim: respondo por aqui. Muita gente quer saber se tenho livros
publicados. Tenho seis. Os dois primeiros — Inventário do ir-remediável (contos, editora
Movimento) e Limite branco (romance, editora Expressão & Cultura) — estão esgotados, não
adianta procurar. Depois tem O ovo apunhalado, de contos também, uma terceira edição da
editora Salamandra, que faliu (não por minha causa, suponho), e o livro continua a ser
distribuído pela Globo. Mais fáceis de encontrar são os dois últimos: Morangos mofados (contos,
editora Brasiliense) e Triângulo das águas (novelas, Editora Nova Fronteira).
Publicados, esses. Vem mais por aí (e essa é outra das razões por que não tenho tempo para
quase mais nada). No final deste ano ou começo do próximo, a Globo publica As frangas, novela
infantil com belas ilustrações de Rui de Oliveira. E estou dando a última versão em Os dragões
não conhecem o paraíso — uma espécie assim de romance-móbile (?) — que deve sair lá por
abril-maio de 1988. Tudo isso mais a telenovela Salada paulista, que escrevo com Mário Prata e
Lúcia Villares, para estrear na Manchete em janeiro. E um longa-metragem dirigido por
Guilherme Almeida Prato, Onde andará Dulce Veiga?
Resulta, amigos, que tenho escrito cerca de doze horas por dia. Aí penso: se os leitores me
escrevem porque gostam do que escrevo, então tenho é que escrever mais. Apesar dos Jânios da
vida. Para fazer isso, tenho deixado de ver amigos, certos filmes, peças, shows — de escrever
cartas, também. Mas gostaria que, apesar desse aparente silêncio ou indiferença, não parassem de
me escrever cartas. Alimenta tanto, faz bem, situa. Você compreende e perdoa? Então fica
combinado assim: vai ser legal. Porque você — nem eu, nem ninguém — não merece Jânio.
Merece mais.

O Estado de S. Paulo, 28/10/1987


Vamo comer Caetano?

Umbigo do Brasil, cravado no centro da barriga da miséria. Vamo comer, vamo comer poesia

“Animal arisco!”— eu caminhava pela rua quando ouvi o grito. No meio do barulho, do torpor
desse calor viscoso que andou fazendo. Claro, agudo, relâmpago no meio da lua da tarde, aquele
gemido. Parei, sem entender. O grito foi sendo levado para longe — “me senti sozinho/
tropeçando em meu caminho/ à procura de abrigo, uma ajuda, um lugar, um amigo” —, enquanto
eu compreendia. Era Caetano Veloso cantando “Fera ferida”, de Roberto e Erasmo Carlos,
provavelmente num rádio de carro que se afastava.
O gemido rasgou a tarde em duas. Fiquei ali parado no meio da dor, assim (deus, quem
disse isso uma vez?) “ferido de mortal beleza”. Provavelmente com aquela “expressão amarga”
— como diz o Osmar Freitas Jr. — de quem “tivesse acabado de chupar (?) uma crônica do Caio
Fernando Abreu”. Olhei em volta: ninguém mais tinha ouvido. Estavam todos com uma
expressão de… — bom, deixa pra lá. Não consigo entender essa pressa em rotular, carimbar,
colocar em prateleira: é assim, doce, amargo, leve, pesado. Ideias feitas, congeladas, mortas.
Safári no cemitério, preconceito. Fiquei ali parado, o grito vivo de Caetano na cabeça.
Então pensei: Caetano não dá mais entrevista. Tá certo. Não há nada a dizer, não há nada
para explicar. Ou você entende, através da música e até do silêncio, e estamos conversados (e
enriquecidos). Ou você não entende nada, porque seu repertório é outro. Então, numa gestalt,
também estamos conversados. Ninguém enche o saco de ninguém, você me deixa em paz, eu te
deixo em paz — certo? Fica combinado assim: se não te atrapalho, você me dá licença de ser
assim do jeito que eu sou? Fui pra casa ouvir mais Caetano. Deitei, aquele calor paulistano, de
cimento. Peguei o release de Maria Clara Jorge — ela diz “Caetano é o umbigo do Brasil”. Sim,
em vários sentidos. Aí li o que diz Renato Costa, coordenador do departamento internacional da
Polygram: “Há anos Caetano dá todos os toques sem cobrar nada e o Brasil não saca. Azar do
Brasil”. Azarésimo. E azar o seu, se não ouvir.
Pega o disco, tá tudo lá. O Brasil negro, já na foto (linda) de Flávio Colker (sobre
concepção de Luiz Zerbini), na capa, no candomblé que passeia seus axés por “Depois que o ilê
passar” e “Ia omin bum”, ou em “Eu sou neguinha?” Tá lá o discurso político em “Vamo
comer”: “Quem vai equacionar as pressões/ do PT, da UDR/ e fazer dessa vergonha uma nação?”
Tem o cinema falado de “Giulietta Masina” — “ah, minha vida sozinha/ ah, tela de uma outra
luz” —, tem a solidão das estradas em “Noite de hotel”: “Estou a zero, sempre o grande otário”.
E aquela que deve ser uma das mais belas letras (e músicas) feitas nos últimos anos neste país,
“O ciúme”. Numa tarde cheia de luz, no rio São Francisco, sobre toda a paisagem “paira,
monstruosa, a sombra do ciúme”. O humano torturado projeta sua imagem interior sobre a
paisagem indiferente, alheia à dor individual. Mas de dentro dessa tortura, que nada alivia e
ninguém pode perceber, é que o ser olha e suspeita: “Tudo é perda, tudo quer buscar — cadê?”
Porque tem luz e sombra. Uma engendra a outra, uma nasce de dentro da outra. Tem amor
e ódio, tem encontro e perda, tem identificação e indiferença. Tem dias em que tudo se encaixa,
como no momento das peças finais dos quebra-cabeças, e tem aqueles em que tudo se desencaixa
numa aflição tonta de não haver sentido nem paz, amor, futuro ou coisa alguma. Tem dias que
nenhum beijo mata a fome enorme de outra coisa que seria mais (e sempre menos) que um beijo.
Mas tem aqueles outros, quando um vento súbito e simples entrando pela janela aberta do carro
para bater nos teus cabelos parece melhor que o mais demorado e sincero dos beijos. Precisamos
dos beijos, precisamos dos ventos. Tem dias de abençoar, dias de amaldiçoar. E cada um é tantos
dentro do um só que vê e adjetiva o de fora que escapa, tão completamente só no seu jeito
intransferível de ver: “E eu sou só eu só eu só eu”.
A voz e a poesia de Caetano passeiam nesse limiar — Limiar é tão bonito, parece limite,
parece ar, um limite no ar? — entre os opostos. Umbigo do Brasil, como diz Maria Clara/Cacaia.
Cravado no centro, origem, raiz, verdade. Vamo comer, vamo comer Caetano: bom apetite.

O Estado de S. Paulo, 4/11/1987


Ao som de
Suzanne Vega

Meu nome é Caio F. Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você nas escadas

Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências,
pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim
que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia — eu, patético detrito
pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy
metal —, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.
Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que
tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio
desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a
libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver.
Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do
outro lado e sentir uma resposta como — eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano
que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas
porque te estendo a minha mão.
No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto — preciso
de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem
verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade
enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista
e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio — tão cansado, tão causado — qualquer
coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o
de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar
num outro humano o mais humilde de nós. Então direi de boca luminosa de ilusão: te amo tanto.
E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios — que importa?
(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis.
Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio — viria? virá? — e minto
não, já não preciso.) Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados
quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu
ciclo etílico bukowskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a
penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como: eu sou o
outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na
minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de
solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e
as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e
misturar coxas e espírito no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-
solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para
continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu
não conheço.
Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para
me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza de que inventar nosso encontro
sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de
sede, preciso de você agora, antes de estas palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos
ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do
jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse
possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.

O Estado de S. Paulo, 11/11/1987


Sem via de acesso

Zero grau. Porque hoje, como dizem os motoristas de táxi, hoje não tem mesmo condição

Você sabe, não seria justo culpá-los. O problema — ou não “o problema”, porque não há
problema, digamos então assim: “O conflito”. Repetir: o conflito é que também não seria justo
culpar-se. Duvido que você me entenda, e hoje não vou fazer esforço algum. Tudo isso deveria
vir entre parênteses. Ou com alguma espécie de sinalização gráfica que permitisse — digamos —
o acesso? Sem via de acesso, tão bom dizer digamos. Digamos é quando você mesmo não diria
desse jeito. Quando esse jeito é só uma tentativa de aproximação que, a priori, você mesmo
reconhece falha. Digamos então, digamos que, que sim, que não, que pode ser. Ou não.
Paciência, você tem? Hoje vamos ficar por aqui mesmo — assim, nas palavras, nos
espaços entre elas, nos por trás delas, nos digamos que elas significam. Porque hoje, como dizem
os motoristas de táxi, não tem condição. Tão radical quanto acabar o conhaque e você tomar uma
vodca: radical-Faulkner, porque sempre procuramos os melhores parâmetros, claro. Somos muito
chiques. Hoje você não vai entender nada, porque eu também não estou entendendo nada, e vou
te levar comigo. Ah (por favor, revisão: não põe vírgula depois do meu ah nem ponto de
exclamação — meu ah é seco assim deliberado, sem expectativa nem admiração). Repito. Ah
que poder inútil esse de levar você comigo. Que poder gelado. Que poder que tem me dolorido
porque não suporto me sentir responsável por quem não conheço. Assim, tão rapidinho. No
banheiro, ônibus, sala de espera. Assim, bem assim, alimento urbano descartável. Eu, às quartas.
Se pelo menos você estivesse aqui comigo ouvindo esta Billie Holiday, às três horas da
manhã. E eu visse a tua barra na tua cara. Mas tá tudo bem assim. Podeixar (revisão, uma palavra
só: podeixar), eu seguro. Claro. Sim. Naturalmente. Também acho. É isso mesmo! O quê? Ah. É
como o quê? Não tenho usado tantas negativas — é como nada. Só que não seria justo culpá-los,
nem seria justo culpar-se.
Aquele pântano de negações e tentativas de formas de onde brotam os textos obrigatórios como
este. Tudo isto está me fazendo muito mal — but I’m very glad to be unhappy, it’s a pleasure to
be sad. Me traz um sal de frutas?
Muito simples: quero tirar o time. Fiquei olhando, do outro lado da mesa. O resto todo não
importava muito, mas tinha mãos de criança. Só que era tudo tão arrumado. Eu não podia dizer:
escuta, quero tirar o time. Para o rosto que segurava — sem muita convicção, mas segurava — a
bola do outro lado da rede, eu não podia dizer uma coisa drástica feito “quero tirar o time”.
Tenho ascendente Libra, compreende? Para as mãos de criança eu podia dizer. Mas mãos de
criança estão proibidas de se manifestar em jantares sociais, formais, chatamente gentis. Então
fica tudo assim: educadésimo. Zero grau, solidão medonha.
Escuta, não tá dando. E eu que tinha pensado em escrever sobre o zero grau de Sagitário.
Nem com gelo ou açúcar consegui levantar o cabinho da rosa murcha. Eu tentei, você não sabe.
Ninguém sabe. Será esse o problema — ninguém sabe? Como a necessidade neurótica de uma
câmera — um pouco por trás, um pouco por cima, um pouco por baixo, enquadradando assim,
quem sabe? Te queria de ouro. E eu queria dizer: me interna. Eu queria dizer: me tira daqui.
Queria dizer: não tenho nada a ver com isso. Dizer: não faço parte de nenhuma turma. Sou
cúmplice de ninguém, me deixa ir pra casa ler Marguerite Duras, depois de conferir se a luzinha
vermelha da secretária eletrônica está piscando. Dormir muito, eu queria.
Nem culpá-los, nem culpar-se. Antena louca, disparando sinais em código indecifrável
para todas as direções. Adele H escrevendo seu diário, louca de hospício, numa língua que até
hoje ninguém decifrou. Onde foi o enguiço? Não, hoje não estou para jantar-nos-Jardins. Hoje
não estou pra boate-gay. Hoje não estou pra free-lance-in. Hoje não estou pra vídeo-pós na casa
de fulaninho. Hoje, não estou. Fui atropelado na esquina como Roland Barthes (sempre os
melhores parâmetros). Yann Andréa me internou para uma desintoxicação de infelicidade
generalizada. Hoje — digamos — não tá dando. Hoje eu vou bater a última frase e encerrar
assim: ah. Como num suspiro, como num pedido. Você tem paciência? Eu, não.

O Estado de S. Paulo, 25/11/1987


Vamos tirar o rodenir?

Cai fora, coisa cinza. E deixa entrar a alegria, o ar puro e o sol da manhã

Mais de uma vez, aqui mesmo, falei naqueles meus amigos gaúchos — Ivan e Gorda — que
adoram inventar ou/e recolher novas expressões. É o comando pós-Aurelião. De um grupinho
pequeno, essas palavras novas vão se espalhando, de repente estão soltas pelo Brasil. Todo
mundo querendo saber o-que-é-o-que-é? A papisa do pós-Aurelião, Mônica Figueiredo (foi ela
quem inventou ou pelo menos divulgou os hoje consagrados perua, saia-justa, modelão), foi dar
um tempo em Portugal. Mas não nos deixou ao desamparo. Lá na revista A-Z, o Nelson Pujol
Yamamoto criou uma seção chamada “O que É, O que É” justamente para botar na vida essas
novidades: já saiu O que é naja, por Nadja de Lemos; O que é lhama, por Sérgio Keuchgerian; e,
na última (com o Riccelli na capa), a deliciosa O que é periquita, do Antônio Bivar. Como tenho
boas fontes, sei que já estão programados O que é nigrinha, O que é lasanha e O que é jacira —
tudo escrito por gente que entende do assunto.
Hoje eu vou furar a Mônica — que infelizmente está longe, e o Nelson, que felizmente está
perto — para entregar a vocês, em primeiríssima mão: o que é rodenir. A primeira vez que ouvi,
claro, foi nas bocas irreverentes de Ivan e Gorda. A primeira vez que repeti, as pessoas
perguntaram: quem é esse cara? Porque parece nome de gente, tipo jogador de futebol — e na
meia-direita: Rodenir. Nada disso. Rodenir não é gente (até pode ser) nem tem maiúscula.
Rodenir é mais feeling, clima, astral. Só que não é bom. Rodenir é assim uma coisa chata, meio
azeda, viscosinha, que fica rondando e não sai de cima. Não é desesperado, ao contrário: o
desespero é vermelho, o rodenir é cinzentinho, cinza-ratazana. Rodenir não tem humor, rodenir
não tem vontade, rodenir é atrolhante, pra baixo. Um tédio sem charme nenhum. Exemplos?
Vamos lá.
Você trabalhou o dia inteiro e tem que sair direto do trabalho para, suponhamos, um
aniversário. Aí você arma um jeito de dar uma passadinha em casa ou ficar pelo menos meia
hora no banheiro para — para quê? Para tirar o rodenir, ora. Entendeu? Caso de amor daqueles
que já caíram de maduros e descambaram para a obrigação monótona — virou o quê? virou
rodenir. Deve-se combater com férias na Bahia, acessórios pornôs, separação provisória para —
para tirar o rodenir. Porque rodenir se tira, sim. Isso se a pessoa tem jogo de cintura, se não
entranha até a alma. Sarney, por exemplo, é a encarnação do rodenir. Talvez nem fosse tanto,
mas foi rodenirzando, rodenirzando até que ninguém aguentou mais (nem ele, acho) e vêm aí
(enfim!) diretas para — tirar o rodenir. Oba!
Porque um dos maiores prazeres desta vida é justamente esse: tirar o rodenir. Tipo faxina.
Exige janela e esforço, porque a tendência é chafurdar. Por natureza, rodenir é pantanoso,
estagnado, repetitivo. A repetição (de gestos, hábitos, papos, comportamentos) vai criando
aquela camada grossa — e perigosa — que, se a pessoa não acender a periquita a tempo, dança.
Para tirar o rodenir, às vezes tem que ser drástico como em quadratura de Plutão: se curativo não
der jeito, precisa amputar. Dói, mas é saudabilíssimo: evita a morte. E o rodenir insidioso se
parece muito a uma mortezinha que não chega a matar, mas aporrinha.
Rodenir vem muito de dentro pra fora, mas também pode vir de fora pra dentro. Quem
contesta que a situação do Brasil atualmente virou rodenir do grosso? E engarrafamento na
Marginal? E agência bancária em véspera de feriadão? Puro rodenir urbano. Claro que, se souber
lidar zen com as coisas, você pode manipular, atenuar e até se divertir com o rodenir-social-
objetivo. Cada um descobre os próprios jeitos de tirar o seu.
Comecei a dedicar dezembro para tirar o meu. Vale tudo: trocar Billie Holiday por Little
Richard, dançar horas sozinho, comprar uma camiseta Mr. Wonderful em vez de pagar a conta
de luz, dar presentes inesperados. Coisas assim, sem medo. Como amar sem mentir, não é?
Achar graça é importante. Não era Oswald de Andrade que dizia que alegria é a prova dos nove?
O cara sabia das coisas, gente. Rodenir detesta prazer. Odeia felicidade. Você também? Não
acredito: tira o rodenir e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã. Com muito axé.

O Estado de S. Paulo, 2/12/1987


Despedida provisória

Dentro da manhã branca. Para dar um tempo, aterrissar de um livro e de alguns sonhos

Escrevendo na manhã de segunda-feira. Céu muito azul. As moças da loja de bicicleta lavam as
vitrinas. Eu bebo café, abro janelas. Como uma carta para vários remetentes, para nenhum
remetente. Despedida rápida, provisória: vou ficar algum tempo sem escrever aqui, pelo menos
até dia 6 de janeiro. Um pouco porque vou viajar, tenho um trabalho a fazer no Rio de Janeiro.
Mas principalmente porque preciso de tempo — me dar um tempo, sabe como? Ando meio
esvaziado. Nos últimos tempos, investi todas as energias para terminar um livro — chama-se Os
dragões não conhecem o paraíso. Não me sinto capaz de falar sobre ele. Está pronto, entregue.
Foi demorado, foi difícil, talvez mais difícil que qualquer outro dos anteriores. Às vezes,
escreve-se um livro como se fosse para não morrer. Eu disse às vezes, mas me pergunto se não
será quase sempre assim. De qualquer forma, este foi. E não que seja um livro “triste”. Ao
contrário: acho que é cheio de vida. Também não sei se tudo que é assim, cheio de vida, não será
sempre também um pouco triste. Em abril, estará nas livrarias. Então conversamos.
Quando penso abril parece tão longe. Meu pensamento não alcança até lá. Tanto tempo
pela frente, e o que acontecerá? Ando achando muito difícil sobreviver — essa coisa
aparentemente simples, você dorme hoje, acorda amanhã, come, trabalha, faz coisas, depois
dorme amanhã, acorda depois de amanhã, assim por diante. Esse encadeamento tão natural que
deveria ser quase automático, e portanto sem emoção nem sustos, eu ando achando cheio de
solavancos, derrapagens e, sim, cheio de sustos. Por isso preciso de tempo, dizem que tempo
resolve.
Está sendo difícil escrever hoje. Escrever de manhã é difícil. As manhãs são brancas,
parecem feitas mais para se olhar as coisas do que para se dizer algo sobre elas. Além disso,
preciso ter cuidado. Um amigo me avisou que exponho demais fragilidades, fiquei preocupado.
Talvez expor fragilidades seja o único jeito de ser que eu tenho, então não sei se isso tem
solução.
Andei sonhando um pouco, também. Ainda não é proibido, mas tem um preço. Depois
andei tentando não sonhar, mas isso também tem um preço. Não tenha expectativas, me
disseram. Fiquei tentando não ter expectativas — essa coisa que amolda e desenha o futuro? Me
pareceu tão seco. Estou tentando me mexer, agora, dentro desta manhã branca, no meio desse
branco que não dá forma nem cor ao futuro. Tive vontade de deixar na secretária eletrônica um
recado mais ou menos assim: “Fui viajar. Não vou voltar”. Só para preocupar um pouco os
outros. Melhor não. Não estou fazendo nada preocupante: só vou dar um tempo.
Nos últimos dias, não vi nenhum filme, não ouvi nenhuma música. Foi um tempo branco,
também. Mas recebi um poema de Renata Pallottini, e dois versos dele ficaram dando voltas na
minha cabeça: “Olha garoto fica combinado assim: / perdemos só esta batalha, e não a guerra”.
Às vezes fico parado repetindo: “Perdemos só esta batalha, e não a guerra”.
Acho que com o ano terminando e tudo isto aqui com este sabor de despedida, mesmo
provisória, eu deveria dizer uma porção de coisas pelo menos um pouco animadoras, essas coisas
que se dizem nos finais de ano. Desculpa, não estou conseguindo. Depois de terminado o livro,
depois de ter sonhado um pouco e estar tentando não ter expectativa, resulta que fiquei meio
esvaziado. Vou viajar, dar um tempo. O tempo resolve, dizem. Preciso que esse tempo passe e
me leve dentro dele, porque até lá, honestamente e sem nenhuma espécie de modéstia, estou
mesmo meio burro.
E tão assustado no meio desta manhã branca. As moças continuam lavando as vitrines da
loja. Todo desocupado, depois de bater o ponto final aqui, preciso arrumar qualquer coisa para
fazer que seja assim como lavar vitrines ao sol. Pode ser que consiga repetir os versos de Renata:
“olha garoto fica combinado assim: perdemos só esta batalha, e não a guerra”. E esse ficará
sendo o recado final, nesta despedida provisória. Fique feliz, eu também vou tentar. Prometo.

O Estado de S. Paulo, 16/12/1987


Nos amávamos tanto

Luiz Antônio Martinez Corrêa, Cacaso, Henfil: para onde foram aqueles sonhos dourados?

Entre minhas muitas obsessões, existe um poema. Curtinho, absolutamente simples, chama-se
“Idade madura” e tem apenas estes quatro versos: “Meu coração anda inquieto e sufocado/ como
na infância, nas noites de tempestade. / É risonho o meu futuro?/ Minha solidão é indescritível”.
Seu autor: Cacaso. Final do ano passado, aparentemente por razão nenhuma, como acontece com
as obsessões grandes ou pequenas, poéticas ou não, o poema voltou com toda a força. Eu passava
os dias a recitá-lo, debruçado sobre o microcomputador do astrólogo Pedro Tornaghi, no Rio de
Janeiro, conscientemente me recusando a ler jornais, ver televisão ou entrar em contato com
qualquer meio de comunicação capaz de tornar mais presente esta coisa difícil — o mundo real.
Até que não aguentei, arrumei um rádio.
A primeira notícia que o rádio trouxe foi: o diretor teatral Luiz Antônio Martinez Corrêa
(era ótimo, dele vi Theatro Musical Brasileiro 1914-1945, talvez o melhor espetáculo em cartaz
atualmente no Rio), 37 anos, tinha sido assassinado com oitenta facadas. Desliguei o rádio. E só
saí de casa no dia 30 de dezembro, para uma manifestação na praça Nossa Senhora da Paz, em
Ipanema. Além da missa de sétimo dia em memória de Luiz Antônio, artistas, intelectuais e nem
artistas nem intelectuais, mas apenas pessoas preocupadas com a justiça, pediam providências à
polícia contra o assassinato, entre 1984 e 1987, de cerca de 300 homossexuais no país. Sob o sol
de quase quarenta graus, muita gente chorava.
O mais irônico naquela pracinha de Ipanema era lembrar de quinze ou vinte anos atrás,
com aquele espaço tomado por centenas de pessoas (algumas delas estavam lá) coloridas e cheias
de vida, acreditando nos novos tempos de paz e amor. Cabeça baixa, a gente lembrava. E nem
Chico e Caetano cantando, nem Fernanda Montenegro recitando linduras de Adélia Prado, nem a
dignidade de Marieta Severo, nem mesmo o sol, o céu azul de verão, nem mesmo a enorme
ciranda da multidão cantando de mãos dadas “Aquarela do Brasil” ou a chuva de papel picado
dos edifícios na Visconde de Pirajá eram capazes de esconder que o horror está solto na cidade
do Rio de Janeiro e no Brasil. Aos gritos ou em silêncio, pediam-se providências para todos esses
crimes com características semelhantes (cordas, facadas e asfixia) demais para serem mera
coincidência.
Voltei para o microcomputador de Pedro disposto a manter o mundo real a distância, pelo
menos até terminar nosso trabalho. E consegui. Caminhar de tardezinha na praia, ao mesmo
tempo em que trazia de volta aqueles versos assustados de Cacaso, trazia também os de Adélia,
que Fernanda Montenegro disse na praça: “A vida é tão bonita/ basta um beijo/ e o universo se
recompõe/ uma necessidade cósmica nos protege”. Pois — eu repetia olhando o horizonte do
mar — o Senhor não há de abandonar quem, nestes tempos, ainda ousar o beijo e quiser beber
dessa beleza da vida. A necessidade é cósmica e nos protege. Mas, entre as iluminações de fé,
voltavam também, obsessivos, aqueles quatro versos de Cacaso e seu clima de desamparo. E
agora, o que vai acontecer?
Dia de voltar, no aeroporto, comprei uma revista. Lá estava: dias antes, Cacaso tinha
morrido de um enfarte fulminante, e eu nem sabia. Então retomar São Paulo, dura Sampa
estranhamente deserta, as chuvas de verão, certos dias como estar dentro de um oco cheio de
espinhos, depois a morte de Henfil, com todo o horror voltando à tona. No caderno “Ideias” do
Jornal do Brasil, no último sábado, numa matéria chamada “Nós que nos amávamos tanto”,
Wilson Coutinho, Zuenir Ventura e Tárik de Souza fazem um balanço melancólico da geração
que viveu aqueles anos dourados de 68. E agora tenta seguir em frente, entre aids, assassinatos,
suicídios, mortes precoces, secas desilusões e escassas esperanças.
Não sei dizer nada cegantemente luminoso para encerrar. Perdoe eu não voltar como quem
traz um sorriso nos lábios e flores e frutas nas mãos. Mas imagino que você sinta algo
semelhante àquele susto manso do poema de Cacaso e acho que sempre podemos nos olhar nos
olhos ao perguntar: “É risonho o nosso futuro?” Então, mesmo sem convicção nem certeza,
responder que sim, que sim, que sim. Porque não há de ser inútil, mente.

O Estado de S. Paulo, 13/1/1988


Mas que tempo é esse?

É preciso continuar atento e forte: a neocaretice está morando na casa ali do lado

Fui ver Atração fatal, filme de Adrian Lyne (o mesmo daquele idiotíssimo Nove semanas e meia
de amor). Saí aterrorizado. Não com os sustos de thriller, que sou daqueles adoradores do Brian
de Palma dos bons tempos: abro bem os olhos na hora do medo e raramente me choco. Desta
vez, meu susto foi porque poucas vezes vi um filme com uma ideologia tão canalha. Não sou
aquele desmancha-prazeres que conta o filme para quem não viu, mas a moral (?) da história
pode ser resumida em qualquer coisa como: “Para salvar a família, vale qualquer atitude, mesmo
o assassinato”. Ou: “Quem vive um amor ilícito merece os piores castigos”. Ou ainda: “A
salvação é daqueles que aceitarem a mediocridade bem-comportada”.
O filme é tão canalha, mas tão canalha que é também eficientíssimo. Tem um pique
irresistível, envolve, quase impede o distanciamento crítico. Em nome dos “bons sentimentos”,
do “equilíbrio”, da “decência”, da “saúde”, o espectador também começa a desejar que a pobre
Alex (Glenn Close), a louca apaixonada, também se ferre. Não há aqui aquela ironia com as
ridículas moralidades e normalidades estabelecidas, de Veludo azul, de David Lynch, nem a
delicada investigação dessa zona-limite entre a paixão e a loucura, de A história de Adele H, de
François Truffaut — dois filmes decentes. Atração fatal é indecente e grosseiro. Não ficam
claras as razões da psicose de Alex, é como se o diretor afirmasse que todas as mulheres
independentes, que não escolheram casar para serem mães e esposas amantíssimas, fossem
monstros de ressentimento, amargura, frustração e — como se não bastasse — assassinas em
potencial. Perigosíssimas à sagrada família, essas mulheres liberadas e apaixonadas que matam
coelhinhos, sequestram menininhas inocentes e, completamente piradas, saem armadas de faca
pelas ruas. Tubarão perde.
Saí do cinema pensando: é preciso estar atento e forte, colega, a Idade Média está de volta.
Discretamente, todo dia, de muitas formas estamos sendo bombardeados por mensagens tipo:
não saia da linha, não cometa nenhuma transgressão, não se apaixone. Caso contrário, você será
punido por isso. O vírus da aids materializou nas cabeças burras aquela velha suspeita de que
toda nudez, um dia, seria inevitavelmente castigada. O que confirma a culposa lenga-lenga
judaico-cristã de que este planeta não passa mesmo de um sofrido vale de lágrimas, onde todo
prazer é sinônimo de pecado. Para quem acompanhou a luta das minorias nos anos 60 e 70, resta
um espanto no ar: o que está acontecendo? É um retrocesso? Foi tudo inútil? Como se
entrássemos coletivamente numa máquina do tempo moral e mental, para negar a História e
ignorar todos aqueles vislumbres de felicidade individual conquistados nas últimas décadas.
Tentar ser feliz agora, saindo fora do esquema, é crime. Homossexuais, mulheres independentes,
homens descasados, rebeldes de todo tipo, artistas, loucos mansos e varridos: a nova moral está
no seu encalço.
A neocaretice está solta pelas ruas. Ela mora no apartamento ao lado, na casa da esquina e
anda muito preocupada com a possibilidade de Jocasta e Édipo consumarem seu colorido incesto
às oito da noite. Ela quer que o sexo que não se destina exclusivamente à procriação seja varrido
da face da Terra. Ela sorri amável no elevador, dá bons-dias, boas-tardes, boas-noites, depois fica
prestando atenção na sua vida para ver se você está andando direitinho dentro da linha. E, se não
estiver, tome cuidado, porque de alguma forma você pode ser punido. Despejo, desemprego —
você sabe, essas pequenas tragédias que acontecem com quem ainda é capaz de não só acreditar
em um pouco de prazer, mas até de lutar por isso. Embora, concordo, ninguém saiba mais direito
o que seria “o prazer” a estas alturas da década de 80.
Quanto a nós — meio gauches, meio bandidos, dinossauros sobreviventes daquele tempo
em que tudo parecia que ia mudar —, não resta muito mais a fazer senão resistir. Movidos, no
mínimo, pela curiosidade de onde vai dar tudo isso. E sempre se pode cantarolar baixinho aquele
velho blues (“Milagres”) de Cazuza, que diz assim: “Mas que tempo mais vagabundo é esse/ que
escolheram pra gente viver?”

O Estado de S. Paulo, 20/1/1988


Bancarrota blues

Será que as ruínas dos cenários foram transpostas para a alma das pessoas?

Eu tinha jurado: vou ficar neste sofá, me abanando com aquele leque japonês que o Mário Prata
me trouxe da Disneyworld, até o verão acabar. Verão, vocês sabem, é uma forma amena de se
chamar este implacável desequilíbrio ecológico que se abateu sobre nós, e faz pensar em rombos
na camada de ozônio, aumento do nível das águas dos mares, degelo das calotas polares… Sete
pragas, fim dos tempos — melhor não pensar nisso. Melhor ficar mesmo jogado neste sofá, o
telefone ao lado, ouvindo Nana Caymmi cantar “Bancarrota blues”, Dorothy Parker, Edmund
Wilson e Peter Handke bem ao alcance da mão, esperando o verão passar.
Esse era o meu plano. Aí o telefone tocava, vamos aqui, vamos ali, pô, você não sai mais
de casa, vamos dançar, vamos jantar, vamos passear, ver as pessoas. Tá bom, vamos. Um pouco
em honra da firma (afinal, não é possível permitir que cada janeiro ou fevereiro façam a gente
sentir-se com no mínimo noventa anos), um pouco para reapresentar “a noite paulistana” (aspas
indispensáveis) à trepidante Marion Frank, que veio de Berlim para dar uma olhadinha na taba
— quebrei o juramento. Desliguei o gravador, contei os trocados, esqueci o medo do goleiro
diante do pênalti e fui à luta. Antes não fosse.
A pergunta é banal e previsível, mas também inevitável: o que é que está acontecendo?
Primeiro, a cidade. Que eu lembre, nunca esteve tão suja, feia e destruída. Parece o título (só o
título) daquele lindo livro de Nelson Brissac Peixoto: Cenários em ruínas. Calçadas em pedaços,
lixo nas ruas, um certo ar assim de Sudoeste Asiático. Não vou falar nos preços: a esta altura,
você já deve ter lido as manchetes de primeira página do jornal. Mas — os preços e feira urbana
à parte — e as pessoas? Aqueles cenários arruinados de que fala o Nelson parecem transpostos
para o interior das pessoas. Um ano fora, Marion F. se espanta: mas todo mundo só pixa o Brasil
e fala em ir embora. Ninguém tem esperanças, ninguém tem amor, ninguém tem saco. Pior:
ninguém se fala, ou fala apenas para trocar queixas e desânimos. Fui emergindo daquela
anestesia de verão, olhando em volta até ficar quase aterrorizado.
Porque o mais doloroso nisso tudo não é sequer a crise social, mas a crise na alma das
pessoas. Fui até a uma festa. Festa agora é esquisito. Antigamente, festa ou dar uma saidinha no
fim de semana era sinônimo de namorar um pouco, fazer umas caras, uns charmes. Agora, em
plena era da aids, sexo acabou — mas isso não é o mais terrível. O mais terrível é que acabou
também o impulso do olho, do toque. O desejo está bloqueado. Com o bloqueio do desejo, vem
junto o bloqueio do sonho, da fantasia, da mera curiosidade. Os impulsos vitais mais básicos
estão lesados — Eros algemado —, e o que sobrou no rosto das pessoas pelos bares, pelas festas,
pelas ruas é uma inacreditável tristeza.
Recolho notícias aqui e ali: a atriz (talentosíssima) que abriu uma lanchonete, o bailarino
que agora trabalha numa confecção, o jornalista que vai embora pro interior, o músico que virou
caixa de banco, a cantora que vai embora pra Portugal (não faz isso, Rita Lee!). Com meu
terapeuta em férias, fico meio confuso — será que assim, sem assistência técnica, pirei além da
conta e é só meu olhar, sozinho e pirado, que está vendo tudo desse jeito? Aí chega uma carta do
Ignácio de Loyola Brandão, me tranquiliza: “… a caretice vem dominando tudo, do jovem ao
velhusco, ninguém está escapando. E de que forma reagir, protestar contra tudo isso? Ou o tempo
das contestações saiu de moda? (…) ausência de planos, vazio, tédio, abandono, falta de
projetos. Não é isso o que eu quero, nem para mim — que tenho cinquenta e um anos — nem
para meus filhos adolescentes”.
Nem eu, Ignácio, que tenho trinta e nove anos e nem sequer filhos. Mas também não quero
este país destroçado nem para as pessoas que amo, nem para as outras que nem sequer conheço,
e nunca estiveram tão tristes. Suspiro. Sete da noite, desaba uma chuva de Sudoeste Asiático.
Volto para meu sofá, ligo o gravador, Nana repete “uma fazenda, um casarão, imensa
varanda…”. Ah, é preciso ficar mais feliz, urgente. Vou rezar pra chuva passar e sair um arco-
íris bem luminoso pra gente fazer três pedidos.

O Estado de S. Paulo, 3/2/1988


Anotações depois
do Carnaval

A vida está solta, certos poemas ferem como setas. Rosas vermelhas brilham no escuro

Venho vindo pela rua, quase noite. Começa a chover, levanto a gola do paletó. Os neons
começam a acender, brilham refletidos nas poças d’água das calçadas. Ninguém pensa em mim,
penso. Na portaria, o zelador me entrega um cartão de Nova York. Espio o remetente: Marlui
Miranda, que está lá como bolsista, fazendo um trabalho sobre música do Xingu (metáfora
irônica de Brasil: uma cantora/compositora como Marlui tem que ir a NY para fazer seu trabalho
sobre música brasileira). Abro o envelope. Dentro dum enorme sobretudo negro, cigarro
molhado no canto da boca, mãos nos bolsos, James Dean caminha por uma rua deserta.

Ligo para amigos no Rio de Janeiro. Tudo bem aí? Deslizamentos, desabamentos, mortes,
temporais. Jacqueline Cantore diz: “Até aqui, tudo bem. Por enquanto estou trancada no quarto
andar, à espera da grande onda. Aí então viro anfíbia”. Vocês já ouviram falar na grande onda?
Não? Então deixa para lá, melhor parar por aqui: here comes the sun.

E falar com aquela pessoa inteiramente desconhecida, sentada ao lado no balcão do


Longchamps — você já falou? Experimente. Mas não fique só naquele papinho sobre tempo,
crise, inflação. Vá mais fundo, não dói. Pergunte e responda atrevimentos como: você anda feliz?
Saiam juntos, tomem uma saideira em outro bar. Contem coisas, troquem queixas e fés, recitem
o primeiro poema de Drummond (que tal: “Por que amou/ por que amou?/ proibido passear
sentimentos desesperados”?) ou Adélia Prado (que tal: “Quarenta anos/ não quero a faca nem o
queijo/ quero a fome”?) que vier à cabeça. Redescubra o óbvio: pessoas existem.

Redescobrindo o óbvio, caminhe pela avenida Paulista quase deserta, quase de madrugada,
solado grosso do sapato meio punk batendo forte no asfalto, ponta de cigarro meio apagada no
canto da boca, formule assim, mais óbvio que nunca: a vida está solta. Por trás da crise, da falta
de amor e consolo, alheia a tudo, mais que alheia, alienada dos que tentam prendê-la — ela, a
vida, continua solta. Na esquina. Vai até lá, baby.

Sublinhar com tinta vermelha esta frase de Machado de Assis: “Bem-aventurados os que se
possuem, porque eles possuirão a terra”.

Agudo e súbito como uma seta, cravado na memória este poema: “Eu sou um homem
sozinho/ a vida me tornou egoísta e mau/ e a minha poesia é um vício triste/ que eu faço tudo por
evitar”. Deus, que medo, quem teria dito isso? Depois de minutos, espantado: foi Mário
Quintana. Que os anjos velhinhos, lindos, também têm seus momentos de amargura.

De repente uma garota vira com estrondo a cadeira e sai do bar. Um rapaz sai atrás. Outra
garota fica na mesa. Chora, diz palavrões. Todos olham. Resta um cheeseburger abandonado, um
copo com dois dedos de chope. Todos olham. Você continua a falar do diário dos últimos dias de
Joe Orton, eu respondo com Peter Handke. De que planeta chegamos?
Juliana Carneiro da Cunha me ensina a rezar Salve Rainha. Não consigo aprender. Profano,
fico pensando o tempo todo: rainha é ela, com esse ar trágico e esse porte nobre de princesa
moura. Ave, Juliana!
Ouvir muitas vezes “Berlim, Bonfim”, de Nei Lisboa e Hique Gomez. Dançar sozinho no
apartamento, prestar atenção nos toques, recados, chamados. Um dia quem sabe, numa esquina
de Friedbergstrasse, naquela padaria de Seelingstrasse, “digitando em frente ao Metropol”.
Saudade do que nunca vi, de quem ainda não amei: os caminhos são muitos e nós estamos vivos.
Se os caminhos estiverem fechados, abrimos no braço. Se quiserem nos matar, não morreremos.
Em riste, em guarda, a lança de Ogum arrebenta o baixo-astral. Aumento o som: quero ver
Christiane F.

*
Um dragão vermelho, dourado e rosa risca o céu e treme a terra.

Tardes de domingo são pedras jogadas nágua. Não gosto de jogar, mas depois que a pedra
cai e afunda os círculos concêntricos vão se ampliando, até chegarem à margem onde você está.
Ruído algum: o telefone toca como se estivesse também dentro dágua.

Na fita da secretária eletrônica, deixar só um recado. Ouvir de novo, acreditar. Nem precisa
ser verdade. Rosas vermelhas brilham no escuro da sala quase toda branca. Quando teu
pensamento me chamou foi bonito.

O Estado de S. Paulo, 24/2/1988


Em todas as direções

Batalhar um rock na FM, tomar banho gelado de manhã cedo, domar as feras. Feridas ou não

Hoje não tem tema. Mais grave: hoje quase não tem crônica. Hoje tem janela aberta de domingo
sobre a rua morna — pra fora, pra dentro. Tem rádio ligado com locutor afirmando entusiástico
“março-taí-a-semana-que-vem-vai-ficar-tudo-melhor”. (Hmmm … como diz o Paulo Francis.)
Tem fresta de sol batendo naquele cinzeiro roubado do Albamar, no Rio de Janeiro, tem ruído de
skate, aquelas travadas bruscas, no jardim quase todo de pedra aqui de baixo, tem bicicletas
verdes, azuis e amarelas (acho que vermelhas também, mas não consigo ver) na vitrine da loja
em frente. Isso pra fora. E pra dentro — o que tem?
Marcelo liga espantado com a morte, a morte dos outros, não a dele. Eu digo mas acontece
a todos nós, é praticamente a única coisa certa com que você pode contar. Praticamente não: é
mesmo a única coisa certa. Eu digo não se espante, ele continua espantado. E diz que eu pareço
tão equilibrado, mas tão equilibrado que estou até seco demais. Assim, uma lixa? Não, assim não
quero. Tanto assim? Não pergunto nada.
Agora tem Coca-Cola gelada e em lata na geladeira. Pequena bênção, as pequenas bênçãos
dos domingos. A tampinha faz clack sensual, a lata eu acho linda, sempre tenho dificuldade de
jogar fora. Agora tem também Chico Buarque no rádio. “Eu gosto um pouco de chorar”, ele diz.
Eu também. Agora tem duas moças lá fora descendo a ladeira, as duas de ray-bans bem pretos.
Para onde vão as moças de ray-bans tão pretos, nas tardes de domingo desta cidade? E esses
rapazes de barba por fazer, que descem e sobem a rua Augusta, com jornais embaixo do braço e
jeans desbotados? Agora tem telefone calado e eu sentado em frente à janela.
Marion volta para Berlim — e como viver numa cidade sem Marion F.? Trocaremos
cartas, sim, te mando O homem do castelo alto, de Philip K. Dick, você me manda o brinco
punk? Combinado, mas não é a mesma coisa. Fernanda vai para Portugal — e como viver numa
cidade sem Fernanda Abu? Não te encontrarei mais por mero acaso na Oscar Freire, de
tardezinha, para olharmos as liquidações e comermos salada de frutas no Frevinho? Marcelo
continua espantado com as perdas e as mortes. E reage quando tento dizer que, sendo bem mais
velho, é lógico que, digamos assim, eu fatalmente também tenha mais experiência desse tipo de
coisa. Mortes e perdas aconteceram muito mais para homens de quase quarenta anos do que para
rapazes de pouco mais de vinte, por uma questão de tempo mesmo.
Escrever uma novela tão curta e densa quanto Olhos azuis, cabelos pretos, de Marguerite
Duras. Batalhar uma bolsa pra qualquer lugar. Procurar o centro do furacão. E conseguir
sobreviver a noites de solidão como aquela nos bosques de Kungshambra, em Estocolmo, o
crepúsculo interminável do midsummer e ninguém num raio de cinco quilômetros para falar uma
palavra sequer em português. Evitar viajar nos vincos ao lado da boca, na frente do espelho. Não
pensar se você disser x, respondo y, mas se você fizer w aí então eu faço k. Procurar Deus no céu
de starfix do teto do quarto. Aumentar o rádio quando tocar The Cure, tocará? Procurar qualquer
motivo além da janela aberta, mas encontrar só esse ar parado e morno de pré-tempestade.
Lembrar aquela linha do I Ching: “Uma jarra de vinho, uma tigela de arroz,/ louça de barro,
simplesmente entregues pela janela./ Isso por certo não implica em culpa”.
O casal de moto desce a rua, fotografo. Será de John Donne aquele poema de Nunca te vi,
sempre te amei? Aquele, você sabe qual, aquele que diz mais ou menos assim: “Toma cuidado ao
pisares, porque pisas sobre os meus sonhos”. Controlar os sonhos. Deixar exposta na sala a capa
da The Face, com Isabella Rossellini em Blue Velvet, pontinha do incisivo quebrado. Limitar,
limitar. Domar as feras, feridas ou não. Evitar o drama, deixar fluir — meio lhama, mas que se
há de fazer? — e não perguntar: até quando. Acordar cedo, tomar banho gelado, usar shampoo
de alecrim, vestir a camiseta com a cara de Woody Allen (muito a propósito).
Fechar a janela, mesmo sem chuva. Palavras em todas as direções, polvo espástico. Reagir
quase violentamente quando você perguntar mas você não anda meio triste demais? Batalhar um
rock na FM, deixa pra lá.

O Estado de S. Paulo, 2/3/1988


Cine Brasil:
sonho e romance

Nos filmes de Ana Carolina e de Sérgio Bianchi, dois retratos do Brasil de hoje

No Brasil, artista costuma se queixar muito. Atores dizem: “Queria fazer Shakespeare, mas faço
comercial de chicletes”. Escritores dizem: “Queria escrever algo como Os Buddenbrooks, mas
tenho que fazer reportagem policial”. Cantores dizem: “Queria gravar Kurt Weill, mas a
gravadora quer rock ou brega pra tocar na FM”. Por aí vai. Os mais queixosos — com toda a
razão — são os cineastas. Fazer um filme, além de ser caríssimo, envolve muita gente, tem
pouco público, não encontra salas etc. etc. Por tudo isso, filme nacional é sempre uma vitória —
contra a crise econômica, as tempestades emocionais e ego trips, o preconceito do público, o
baixo-astral da Embrafilme (ou INC). Semana passada, assisti a duas belas vitórias.
A primeira chama-se Sonho de valsa, de Ana Carolina, que completa a trilogia composta
de Mar de rosas e Das tripas coração. Pode-se dizer da moça que ela é excessivamente pessoal,
obsessiva, hermética, discursiva, até mesmo um pouco pedante. E tudo isso — perfeitamente
assumido em seus filmes e entrevistas — na verdade só serve para reforçar algo que eu já
suspeitava: de todos os cineastas brasileiros pós-Cinema Novo, Ana Carolina é a que tem o estilo
mais inconfundível. Ou simplesmente: ela, coisa muito rara, tem estilo.
Sonho de valsa radicaliza todos esses detalhes que, para alguns, seriam os “defeitos” de
Ana Carolina, mas para mim são apenas características. Uma delas, atrevida: ela rompe
completamente com o realismo. Durante os dez primeiros minutos do filme pode ser um tanto
difícil para o espectador compreender o que está rolando. Soa artificial porque, embora seja uma
história comum, não está sendo narrada de uma maneira comum. Realidade, delírio, simbolismo,
fantasia são uma coisa só na cabeça da personagem Teresa (que maravilha de atriz é Xuxa
Lopes) e na concepção da diretora. Literalmente, Carolina dá forma concreta a expressões
populares: Teresa mergulha de cabeça, entra pelo cano, engole sapos, dá nome aos bois, carrega
a sua cruz e cai no fundo do poço. São lugares-comuns na vida de uma mulher à procura do amor
(mas o filme não é restritamente feminino, qualquer um pode se identificar com essa viagem), a
que (com delicadeza, bom humor e muito, muito talento) Ana Carolina vai dando forma. Pela
beleza plástica que molda um mar de projeções, carências, desejos, alguns diálogos geniais e o
pulso firme da diretora, Sonho de valsa é um dos filmes brasileiros mais ricos e inquietantes dos
últimos anos.
O outro filme — a outra vitória — é quase o reverso de Sonho de valsa: Romance, de
Sérgio Bianchi, do qual sou um tanto suspeito para falar porque participei do roteiro. Enquanto,
de certa forma, Sonho de valsa traça um retrato da corrupção interior do emocional deste país
movido a absurdas fantasias, Romance parte para o retrato exterior dessa mesma corrupção. A de
fora, a dos podres poderes. Na forma, são completamente distintos: Ana Carolina procura — e
consegue — a harmonia (mesmo nos momentos mais duros, seu filme é belo); Sérgio Bianchi, a
desarmonia. Romance é irregular, sujo, cínico, saturado. Na tentativa de recompor a memória e a
obra de um intelectual misteriosamente morto (Rodrigo Santiago), cruzam-se outras pessoas
ligadas a ele — e nenhuma tem saída. Ao lado do poder safado, o ex-amante (Hugo Della Santa)
tem aids, a amiga (uma comovente Isa Kopelman) afunda na loucura e no suicídio, a repórter
(Imara Reis), à procura da “verdade”, da “decência” e da “justiça”, acaba cooptada pelo poder
que pretendia denunciar. Todos dançam.
Os problemas técnicos se diluem no vigor do filme, assustadoramente atual pela carga quase
histérica de denúncia e desespero. Romance é um filme incômodo que, nesse sentido, também se
parece a Sonho de valsa; se este deixa de saia justa os amáveis temerosos de mergulhar na
viagem interior para quebrar o próprio espelho, aquele assusta os que não estão vendo o
desabamento, em todos os níveis, do país. Sonho de valsa está em cartaz, Romance só entra em
abril. Para os dois, e para o Brasil, a música-tema bem podia ser “José”, de Caetano: “Estou no
fundo do poço/ meu grito lixa o céu seco/ (…) enquanto espero/ só comigo e mal comigo/ no
umbigo do universo”.

O Estado de S. Paulo, 9/3/1988


Venha ver os dragões

Eles não conhecem o paraíso. Desprezam o poder. Têm asas, querem voar. Como os anjos

Os escritores brasileiros andam meio em transe. Há um mês, em entrevista amarga ao JB, Ignácio
de Loyola Brandão anunciava que está parando de escrever e acusava a nova geração literária de
não contestar as anteriores. De Campinas, Hilda Hilst também avisa que, após a publicação do
novo livro (O caderno rosa de Lori Lamb), também para de escrever: está desiludida. A decisão
de Hilda, ela garante — pena pra nós —, não é provisória. Parênteses: Ignácio e Hilda são dois
de nossos melhores escritores. Tem mais: em entrevista a Norma Couri, também do JB, Marilene
Felinto (autora do ótimo As mulheres de Tijucopapo) abriu a boca e falou mal de todo mundo. A
história rendeu: leitores escrevendo ao jornal para rebater as iconoclastias de La Felinto, e a
própria moça desmentindo tudo na Folha. Segundo ela, a repórter distorceu suas palavras, com a
intenção de criar polêmica (eufemismo brega, mas metido a chique, para a velha lavação-de-
roupa). Enfim, no meio da paradeza geral, uma verdadeira coleção de saias-justas para todas as
ocasiões. Dramas, mágoas, renúncias e denúncias.
Outro dia, falando em cinema, eu dizia aqui mesmo que cada filme brasileiro representa
uma vitória. Contra o baixo-astral, a incompetência, a piração não criativa, a dureza, esse
terceiro-mundismo que nos enleia. Literatura, não menos. Escrever (e publicar) também é uma
vitória. Às vezes, de Pirro. Porque não acontece nada, ou vêm os críticos — essa raça em
extinção, cada vez mais dedicada ao culto da najice pela najice (mais vale uma frase mordaz que
o possível talento de alguém) — e descem a lenha, os coleguinhas de profissão arrastam seu
nome na l(h)ama. Todos insatisfeitos, cobrando a produção de uma grande obra. Como se fosse
possível, neste país onde, para (sobre)viver, o escritor precisa também ser jornalista, tradutor,
bancário, roteirista, revisor, publicitário, e arrancar de míseros feriados, fins de semana e noites
escassas algo “do porte”, digamos, de Os Buddenbrooks ou Crime e castigo. Pode?
Não, escritor brasileiro não existe. Ele é um personagem inventado por si próprio, ao qual,
fora ele mesmo, e ainda assim nem sempre, pouca gente dá crédito. Apesar disso, escritores
escrevem e publicam. Estou dizendo tudo isso para, do fundo da minha não existência, anunciar
que: escrevi um livro. Um, não: este é o sétimo, escrito como os outros. Assim: você trabalha uns
dois anos, pede pra ser demitido, levanta uma grana, mergulha no livro, escreve reescreve
treescreve, fica duro, apronta o livro, arruma trabalho, o livro sai, você já tá com outro na cabeça,
mas precisa trabalhar mais uns dois anos, então pede pra ser demitido etc. Ad infinitum. Comigo
sempre foi assim. E deve continuar sendo.
Sim, porque não adianta virem com najices: não vou parar de escrever. É o que mantém o
homem vivo, compreende? Mesmo que não seja “de porte”, foi tão denso escrever Os dragões
não conhecem o paraíso (Companhia das Letras, capa de Guto Lacaz) que, se não escrevesse,
acho que morria. De muitas formas, amigos ajudaram: Nelson Brissac Peixoto, Jacqueline
Cantore, Marco Antônio de Lacerda, Fanny Abramovich, Luiz Schwarcz, Silvia Simas,
Guilherme de Almeida Prado, Ronaldo Pamplona, Marcos Breda. Consegui, estou feliz. O livro
fala de dragões, claro. Dragões, você sabe, são animais mitológicos. Dragões não existem. Como
escritores, músicos, pintores, filósofos, ou todas essas pessoas que — loucas — querem sentir
num mundo em que é ridículo sentir. Você tem é que ganhar, conquistar poder e glória. Os
dragões desprezam esse paraíso. Têm asas, querem voar. Como os anjos.
Daí vou sentar e autografar. Com aquela mesma paranoia de Lygia Fagundes Telles: ela
sempre imagina que, em dia de lançamento, vai ficar plantada numa mesa durante horas,
completamente só, feito Godot à espera de um leitor que nunca chega. Como não sou in-te-lec-
tu-al, o lançamento não será numa livraria, mas no Ritz, aquele bar com ar inglês, ali na alameda
Franca (quase esquina com a Augusta), a partir das cinco da tarde de amanhã, sábado, dia 26. O
Wagner Serra promete tocar blues, rocks, funks, bossa-nova, vai ter bebidinhas e tudo. Tenho
medo, então estou te convidando pra dar uma força. Se você não aparecer, vou ter certeza
absoluta de que não existo mesmo. E aí não sei como é que fica. Vai lá? Jura? Então tá, tô
esperando.

O Estado de S. Paulo, 25/3/1988


À nossa mais
completa tradução

Partir é bom, voltar é melhor. Partir é de avião, mesmo não sendo. Você louco pra ver pelas
costas o que fica: mulher, amigo, trabalho, cidade, picuinha cotidiana. Voltar é de trem, mesmo
não sendo também. E você louco pra crescer devagar, na curva do monte, a cara desse pão nosso
de cada dia. Pela frente. Voltar é de frente, partir de costas. Ficar eu não sei. Talvez perfil, assim
um tanto egípcio?
Mesmo de avião, voltei de trem. Cinco anos longe deste Caderno 2, dez meses fora de
Sampa. Até posso, mas não quero viver sem. Voltando ressabiado, reticente e escaldado, dei de
cara com Ela — de quem Caetano uma vez disse, e a tudo o que ele diz eu fico atento, sei a nossa
mais perfeita tradução. Bracejando no mar de adrenalina da Paulista, comprei o disco de Rita
Lee. E meu velho sangue roqueiro de dinossauro pop tornou a ferver. A velha senhora indigna,
dessa geração que descobriu um poço de desejos debaixo do travesseiro no Reino das Águas
Claras, continua com seu humor diabolicamente inteligente. Wow!
Não posso viver sem Sampa, não posso viver sem Rita. Nem sequer, najas queridas e já a
postos, nos conhecemos direito. Fora do palco-plateia só nos vimos uma vez, na casa de Vânia
Toledo, logo depois que eu a defendera aqui mesmo de certo, digamos, Notório Jovem Crítico de
Maus Bofes. Ele a acusara de estar na “menopausa (sic!) criativa”. Estavas, perguntaram? Rita já
rolou (e eu? e eu?) por todo o tobogã do baixo-astral tupiniquim — um dia deusa, noutro cadela
— e sempre foi melhor que tudo o que disseram, inclusive elogios.
Rita é São Paulo. Pauleira, barulheira, gritaria: high-speed. E sem que ninguém espere, um
interior bossa-nova, de luz baixa e som mansinho. Oh paulistanos de nervos repuxados como a
cara das atrizes que se recusam a envelhecer, ouçam Rita Lee. Ela nos ensina o jeito de lidar com
esta cidade onde você às vezes vegeta, às vezes é canibal. Audaciosa, perniciosa, tinhosa e
hórrorosa como a Drag Queen de Antônio Bivar; necessitada de mais tempo, dinheiro e amor
para matar o dragão; erótica e violentamente zen na sabedoria que só pterodáctilos feitos ela (e
eu? e eu?) estão cansados de saber que “nada tem fim, as coisas só se transformam”; mãe de
família, filósofa desbundada sobrevivente mutante: preciso de Rita como preciso desta cidade.
Espelhos, paradisíaco inferno refletindo meu avesso.
Tenho razões, ora se não. Sozinho feito uma Laika, já ouvi Rita no walkman, dezessete
abaixo de zero, neve batendo na cara, entre os junkies de Camden Town. Já ouvi Rita num TGV
a mil por hora — eu ia ser feliz, não tinha tempo a perder. Já ouvi Rita de porre, fazendo amor,
picando cenoura, pedindo carona, de saia-justa, deprê e piradão. Todas as vezes, me senti até o
resto dos cabelos que me resta metido nesta “coisa” paulistana: metrópole Gremlim distendendo
seus tentáculos de neon e cólera em direção ao Terceiro Milênio. Identidade, Rita nos dá.
Me arrepio quando a ouço receber a Brigitte Bardot anos 60, quando o Brasil era chique,
cantando “Maria Ninguém”. Me arrepio mais quando a ouço berrar feito doida homenageando
“Todas as mulheres do mundo”. E ainda mais quando cita Lonita Renaux (Denise Barroso) —
aquela que, segundo Telmo Martino, interceptava todos os drinques. Nos tempos da gang 90…
Todos morreram, menos nós. Pós-absurdetes sobreviventes, Bebetes Indartes da esquina, segurai
bem alto nosso nobre facho (já) histórico.
Quando penso que voltei e isso é bom, penso em Rita Lee. Quero cantar São Paulo, quero
cantar nosso tempo. Mais fundo e mais simples, quero cantar e mais nada. Cinquentões
adolescentes ganhando no braço do baixo-astral do Brasil, se nossa “menopausa (sic!) criativa”
for assim, welcome seja! Para sempre teu, eternamente F.

O Estado de S. Paulo, 22/8/1993


Reflexões à porta
de um canil

Nos tempos da revista A-Z, de saudosa memória, o editor Nelson Pujol Yamamoto, de saudosa
memória (de certa forma, tudo neste país parece de-saudosa-memória, mas isso é outra história),
inventou uma seção. Inspirada pela coleção da Brasiliense Primeiros Passos, criada por Caio
Graco (de saudosa etc.), chamava-se “O Que É, O Que É”. Cada mês, alguém dissecava alguma
forma ainda não catalogada — e contemporânea — de comportamento. Alguns exemplos: o que
é naja (Dorothy Parker), lhama (Lucélia Santos) ou gentalha (Collor & Rosane). Sacou?
A A-Z passou, o Nelson passou, o Caio Graco também. Mas a piração continua. Hoje tento
explicar “O Que É, O Que É Cadela”. Não, não se trata apenas da fêmea do cão, meu bem.
Cadelas são gente que sofre muito. Amores não correspondidos, cheques sem fundo, desvio na
coluna — a cadelice é sobretudo falta de. Inclusive de algo chamado enfrentatividade, mas “O
Que É, O Que É Enfrentativa” fica pra outra, prometo.
Exemplos famosos de cadelas: Marilyn Monroe, um ícone de cadela; Adele H., a filha de
Victor Hugo que enlouqueceu por amor, era cadelérrima; Camille Claudel idem, o que me faz
supor — e quem a conhece confirma — que Isabelle Adjani também é. Janis Joplin, outro ícone,
Elis Regina, Jean Seberg. Aliás, todos os que morreram de overdose: Fassbinder, Jim Morrison,
Jimi Hendrix, Raul Seixas. Porque não pensem, machistamente, que só mulheres têm a grandeza
de ser cadelas. Pensem no Werther, de Goethe, ganindo seu impossível amor; em Cazuza,
rasgando o coração em público; em Fernando Pessoa, solitário e bêbado, tropeçando em
heterônimos pelos becos de Lisboa. Em Reinaldo Arenas, Rimbaud e Lupicínio.
Imagino que a expressão tenha relação com a Laika, lembra? Aquela cadelinha
viralatíssima que, lá pelo fim dos anos 50, os russos jogaram dentro de uma cápsula espacial.
Depois não conseguiram trazer de volta, numa cadelice literal e cósmica, e Laika ficou girando
no espaço, completamente só. Até — até hoje, será? Gosto de pensar que Laika, a verdadeira, foi
parar num planeta habitado somente por cadelas perdidas feito ela. Mas isso também é outra
história, outro dia eu conto.
Existem três tipos básicos de cadela. O primeiro, mais trágico e um tanto metafísico, é
justamente a pobre Laika, uivando para o infinito sem que ninguém possa socorrê-la. Estou certo
de que Nietzsche foi uma laikona. Katherine Mansfield, outra. Como Clarice Lispector, e
Hölderlin, e Ana Cristina César, e Jesus Cristo, amém.
Mas há um segundo tipo, bem mais soft — a Fifi. Fifis sofrem tanto quanto as laikas, mas
geralmente têm mais dinheiro, ou são salvas (em termos, porque cadelice autêntica é a cármica)
pela divina futilidade. Fifis viajam muito, adoram perfumes franceses, frequentam. A Dama das
Camélias é a fifi arquetípica, mas Truman Capote, Tennessee Williams e Scott Fitzgerald
também foram (Zelda começou fifi, terminou laika). Sinéad O’Connor, no seu retiro em Dublin,
anda me parecendo fifizíssima. E Lady Di? Mas, ao lado de Miguel Falabella, Stella Miranda,
Déa Martins e Liz Taylor, minha fifi preferida é Danuza Leão.
Um terceiro e último tipo, sem tanta dor, talvez, é a Lassie. Esta tenta aplicar nos esportes e
hábitos saudáveis sua rematada cadelice. Não fuma, não bebe: transpira. Exemplos, Magic
Johnson, Jane Fonda, Luiz Fernando Guimarães, J. C. Viola. E a Xuxa, nossa lassie-mor.
Nos dias que correm, ser cadela é fundamental. Laika, Fifi ou Lassie, ela conhece o seu
lugar: sabe que do canil veio e ao canil tornará. Tudo o que uma cadela sensata e inteligente
espera da vida é um bom osso. Às vezes cravejado de brilhantes, mas no fundo puro osso. Duro
de roer. E, se vocês estão achando tudo isso um tanto ofensivo, quero deixar bem claro que,
desde criança, eu mesmo nunca passei de uma laika.

O Estado de S. Paulo, 29/8/1993


Samba-enredo para
um Carnaval de horror

Carandiru, Candelária, Haximu. Sonoro, hein? Até parece refrão de samba-enredo triunfalista…
Quem dera: esse é o trágico refrão de um país onde a palavra chacina se tornou a mais in. E nem
vou me dar ao trabalho de somar os mortos todos. Matemática nunca foi meu forte, e além do
mais até hoje ninguém sabe ao certo quantos assassinatos foram. Quem se importa? Eram
homens e crianças quase todos pretos, e ianomâmis, todos índios. Para onde galopa célere todo
esse horror nacional? Sarajevo, Mogadíscio, qualquer coisa assim, muito além do Haiti.
Minha primeira impressão de São Paulo foi que uma bomba explodira e todos corriam sem
saber pra onde. Suspirei fundo, fui espiar Porto Alegre, Rio de Janeiro. Porto Alegre, vá lá, ainda
guarda certo ar de segundo mundo, graças a um prefeito decente. Mas o Rio — ai como dói
aquela cidade em quem a conheceu nos anos 60 ou antes… Papo ouvido entre camareiras de um
hotel no Leme: “Hoje quando saí tinha um presunto na porta de casa. Com a garganta cortada”.
A outra, superior: “Só um, meu bem? Ah, isso não é nada. Outro dia lá em casa tinha três”.
Acendo incenso, disponho cristais. E sei, nem todos axés e ebós do Gantois a Calcutá
seriam suficientes para exorcizar o horror que desabou sobre o Brasil. Sonia de Oxum Apará,
ialorixá amiga minha há doze anos, avisa: “Não tem orixá que dê jeito neste país, meu filho.
Vem aí revolução com muito sangue derramado e até golpe militar”. De novo? Meio zumbi,
recito Carandiru-Candelária-Haximu, mantra sinistro, e o mais remoto horror fica possível aqui,
onde não deveria ser o Haiti, Sarajevo ou Mogadíscio. Em que espécie de inferno eles querem
nos jogar, hein?
Voam boatos, internacionalizar a Amazônia. Tem ouro, urânio, tem bauxita por lá. Bueno,
isso seria apenas oficializar o já feito. Se não, responda: para onde foi o ouro de Serra Pelada?
Presto atenção nos jornais: há um milico todo assanhadinho para um replay de 64… Observo a
televisão: tudo e todos completamente histéricos. Ninguém fala nada sério — o sério é “baixo-
astral”. O “alto-astral” brasileiro do momento é todos gritarem e rirem feito hienas com
trocadilhos infames sobre uma realidade social ainda mais infame. Fico repetindo a reza fúnebre:
Carandiru-Candelária-Haximu, o que será que vem mais por aí? Não é só isso. E esse IPMF
anticonstitucional. E esses candidatos sem nenhuma credibilidade às próximas eleições
presidenciais. E o saldo da falta de ética, moral, honestidade e bota etc. nisso deixado por
psicopatas como Collor. E nós, e nós? Teus filhos que não podem sair de tênis; a gangue de
adolescentes que vi na Paulista, armados de navalha, em plena noite de sábado; essas revistas
sórdidas vendendo intimidades sexuais da gentalha supostamente chique; inflação demente e
aquele apresentador naja do mal na TV. Tudo medonho. Chacina neles? Carandiru-Candelária-
Haximu, versejo. Desde que voltei, sinto náusea. Desde que voltei não me saem da cabeça os
versos de Brecht e Kurt Weill, em A ópera dos três vinténs: “Oh vós que nos dizeis e às vossas
filhas/ que é feio abrir as pernas pra viver,/ trazei primeiro um prato de lentilhas/ porque moral,
somente após comer”.
Durmo às vinte e três horas, acordo às sete. Todo atento, todo dia. Fico confuso, e também
pondero se não serei eu o louco furioso, não o Brasil. Treze anos de psicanálise mais Sol e Lua
em terra me serenizam: o que vejo está fora, não dentro. O problema é que o de--fora acaba
sempre por transformar-se no de-dentro (e vice-versa, espero). Oxum Apará insiste: “Estou
avisando meus filhos para avisarem seus amigos. Saia daqui”. Mas quero ficar, quero que
Carandiru-Candelária-Haximu não se repitam nunca mais. Nem aqui, nem na Venezuela, nem
em Togo.

P.S. — E eu já tinha dado este texto por pronto quando vejo na TV a matança de Vigário
Geral…

O Estado de S. Paulo, 5/9/1993


Adivinhem quem
vem para roubar

Fiquem atentos, ele quer voltar. Nas últimas semanas, aqui e ali pelos jornais, encontro notas
sobre a mudança para São Paulo, sobre o livro que está escrevendo e até mesmo algum artigo
estofado de palavras gordas tipo justiça, pátria, dignidade. Em fotos recentes, continua com
aquele ar entre o pinguim de geladeira e ator canastrão de melodrama chicano, agora acrescido
de certa aura estudadamente humilde. Como se quisesse deixar bem claro que sofreu-e-aprendeu-
com-o-sofrimento. Atenção, a cilada está se armando. Como antes, tão lenta que mal se percebe.
Porque ele é espertíssimo. E não digo que volte direto por cima (embora seja essa a meta),
mas passo a passo. Deputado, senador. No começo, não recusará os mais insignificantes espaços
da mídia — e esta, o que é horrível, lhe dará espaços cada vez maiores, mais nobres. (Se é que se
pode usar a pobre palavra “nobre” em situações desse tipo.) Também porque virá o livro, e
haverá o pretexto de divulgá-lo e naturalmente vendê-lo. Aos quilos, lógico. Tudo é business,
aqui e no Haiti.
Até que, num final de semana, você vai tropeçar na cara dele na capa das principais
revistas do país. Humílimo, sofridérrimo, luzes acentuando certas rugas amargas, certas sombras,
quase santo. E enquanto rolarem inimagináveis conchavos políticos por trás, a imagem começará
a nos bombardear de novo. Já imagino os sentimentos coletivos a serem utilizados em slogans
autopunitivos e maquiavélicos: erramos, fomos injustos, nunca é tarde para corrigir um erro. Ele
vai declarar que tinha certeza de que não o deixariam só, como pedira, que o povo brasileiro,
minha gente, não o trairia, que agora sim vamos retomar o crescimento e a arrancada em direção
ao século XXI e patati-patatá, lembra?
Quando chegar o momento, virão votos em pencas das regiões mais medonhas do país.
Como da outra vez. Haverá fraudes, acidentes providenciais em caminhões que conduziriam
eleitores do outro candidato — e isso, y otras cositas, jamais será esclarecido. Em seguida
estonteantes viagens internacionais, superjatos, transatlânticos, jet skis, talvez um novo
casamento (o anterior, convenhamos, é difícil reabilitar). Sugiro: lady Di, após o divórcio, ou
Madonna (já que ela vem aí, não custa tentar). No caso de elas não toparem, quem sabe Sula
Miranda (aquela porção sertaneja)? E por que não Xuxa, tão solitária e combalida sob o peso
insuportável daquela estressante montanha de dólares?
Calma, também não precisa delirar… mas que ele quer voltar, do fundo mais lodoso de
minha paranoia congênita — acho claríssimo. Ele sabe que, das muitas doenças graves que
afligem o Brasil, a mais grave é talvez não suportar a própria cara. Como da outra vez, quando
em vez da rude cara operária do outro preferiram a empoada dele, simulacro estúpido dos galãs
de TV. Como se votando nele se tornassem ele.
E os caras-pintadas, meus Deus, vão ficar com as caras no chão! Aprenderão na carne
aquilo que sempre ouviram dizer: o Brasil, meus filhos, é um país sem memória. Tanto que, até
hoje, ainda não percebeu que este horror onde estamos atolados não passa do saldo legado por
ele. A impunidade para ele e seus capangas nos deixou uma inversão moral nojenta: se você é
honesto, você é trouxa. Não viram ele? Se ainda não, arregalem bem os fatigados olhos:
exatamente um ano depois de ter sido corrido, armando todas para voltar.
Não digo nem escrevo o nome dele. Como aquela palavra, o contrário de sorte, cuja carga
negativa desaba sobre quem a pronuncia. Pois isso é o que vai acontecer a quem se deixar
enganar outra vez. Não digam que não avisei. Só vai ser difícil me achar para dizer qualquer
coisa. Porque se isso acontecer mesmo — além da imaginação — peço aos amigos que me
joguem num hospício e me deixem lá. Incomunicável.

O Estado de S. Paulo, 3/10/1993


Um presente lindaço
para São Paulo

Cinema e felicidade são parentes próximos

Presente que se preza deve ter forma e conteúdo. Embrulho bonito, crac-crac de celofane ou
seda, laço de fita, papel coloridésimo pra gente espatifar suavemente, de pura expectativa. E
coisa bonita por dentro também, nem precisa ser cara. Pirulito mesmo serve. Pois semana
passada ganhei um presente. Ou melhor, a cidade de São Paulo ganhou um — e dos lindaços —,
mas quem deitou e rolou fui eu. Bem que andávamos precisados, ela e eu. Você também,
garanto.
Tem um nome, esse presente. Chama-se Espaço Banco Nacional de Cinema, fica na rua
Augusta, 1475, duas quadras da Paulista em direção ao centro, passando o Frevinho, quase
chegando ao Longchamp, ali onde era o Cine Majestic. Que felizmente não virou garagem nem
supermercado, igreja evangélica ou qualquer monstro tipo pró-barbárie. Esse Espaço é
antibarbárie. Eu falava de forma: tem três salas amplas, confortáveis, aparelhagem de primeira,
uma sala de espera imensa com um bar de garotas simpáticas, mais um enorme (e delicioso)
pôster de Oscarito e Grande Otelo. Falava de conteúdo: inaugurou com 26 filmes, considerados
os melhores da mostra do Rio de Janeiro.
Impossível ver todos. Mostra é meio empanturrante; ver um lrmãos Taviani e em seguida
um Zhang Yimou soa tão insensato quanto se jogar sobre um frango xadrez logo depois de uma
lasanha à bolonhesa. Mostra é meio zona também, e filme bom exige silêncio durante, depois e
às vezes até mesmo antes. Sou daqueles capazes de odiar com ímpetos homicidas quem fala e
come em cinema. Pipocas e Visconti, Diet Coke e Jane Campion, pode? Cinema é ritual, liturgia,
solidão, projeção inocente de fantasias secretas, discretas. Mostra é indiscreta: muita gente
aproveita mostra para mostrar-se. Arranjando um cantinho estratégico para ver sem ser visto, fica
divertido observar o Crítico Que Saltita de Grupo em Grupo Dizendo Coisas Geniais em Voz
Altíssima, ou a Modette Que Saiu Hoje na Coluna e Está Doida Para Ser Reconhecida. Coisas de
Sampa, que nunca andou tão Dallas e onde atualmente o pior tormento parece ser sentir-se
invisível — ou incolunável, que aqui viraram sinônimos.
Inabalável, graças a Deus, na noite de domingo vi um dos mais belos filmes da minha vida:
O cheiro do papaia verde, do vietnamita naturalizado francês Tran Ahn Hung. Frágil, delicado.
A câmera quase o tempo todo espreita a ação, desliza por trás de treliças, espia em vãos de portas
e janelas, detendo-se às vezes em vidas mínimas — uma rã, a gota de seiva do mamoeiro, uma
lagartixa, os grilos dentro de minúscula gaiola de bambu. As vidas também são minúsculas,
quase mudas. Os personagens falam por gestos, pelos olhos. Estado de graça, imagem, amém.
Depois desse filme, qualquer outro europeu ou americano (principalmente, lembrar do
Vietnã dói — como foi possível a pata yankee quase esmagar aquela gente nobre?) parece brutal
demais. Perigoso, porque também não se pode desprezar assim os lamês dourados e veludos
bordôs sangrentos de Peter Greenaway, nem o debochado Wittgenstein de sister Derek Jarman,
com a sensacional Tilda Swinton como Lady Ottoline Morrel, e mecenas amiga de Virginia
Woolf e Katherine Mansfield.
É que cinema salva. E pouca coisa salva. Muitas vezes, entre saltar imediatamente pela
janela, comprar uma passagem sem volta para Marabá ou comandar uma chacina no Planalto,
escolho ir ao cinema. Pois, como dizia Voltaire (aliás, citado por Louis Malle): “Resolvi ser feliz
porque é melhor para a saúde”. Cinema e felicidade (ou ilusão de, que importa?) são parentes
próximos. Será essa uma das razões por que o Brasil anda tão infeliz? Leio que entre os cento e
cinquenta filmes da 17-ª Mostra Internacional de São Paulo, a partir de 21 de outubro, há apenas
um brasileiro. Um país que não se vê, sem autoimagem. Pois é, deu nisso.

O Estado de S. Paulo, 17/10/1993


Tese de mestrado
à holandesa

Tenho um amigo holandês, Sappe Grootendorst, que viveu algum tempo no Brasil para preparar
sua tese de mestrado. O tema: “Homossexualismo na literatura brasileira”. Nas noites de inverno
de Amsterdã, com os canais cobertos de gelo, eu tentava ajudá-lo a compreender o que, para uma
cabeça holandesa, é tão complexo que mais parece título de outra tese: a ambiguidade do
comportamento sexual brasileiro. Que ultrapassa a literatura, mas, naturalmente, tem reflexos
nela. Tanto que uma das maiores personagens da nossa literatura (a/o Diadorim de Guimarães
Rosa, em Grande Sertão) é um travesti. Mais didaticamente, tentando ajudar Sappe, subdividi os
gays brasileiros em quatro tipos básicos:
Jacira — A Jacira é aquela que sabe que é, todo mundo sabe que ela é, e ela mesma não se dá ao
trabalho de tentar esconder que é mesmo. Ao contrário, até gosta de exibir isso chamando
atenção em público com gritinhos e gestos afeminados. O que talvez seja uma grande esperteza,
pois a Jacira sabe também que, em sua hipocrisia moral, o Brasil aceita, aprova e até aplaude a
caricatura.
Irma — Bem mais complexa, a Irma é aquela que todos acham que ela é (dá a maior pinta),
menos ela mesma. Frequentemente Irmas são casadas, ou têm noivas e namoradas, às vezes até
filhos. Gente maldosa costuma chamá-las de “bichas com álibi”, mas a verdade é que, em se
tratando de uma Irma, ninguém poderá provar jamais absolutamente nada…
Telma — Como a Irma, a Telma também nega de pés juntos. Mas, ao contrário da Irma, não dá
pinta alguma. O problema é que, depois do terceiro uísque, Telmas fazem coisas que deixariam
até uma Jacira ruborizada. E na manhã seguinte, lógico, não lembram de nada. A Telma é uma
permanente amnésica, e tão esquizoide que leva vida totalmente dupla: uma, contidíssima, como
Telma propriamente dita; outra, quando fora de si, como a mais louca das Jaciras.
Irene — A Irene faz a serena equilibrada, sensata, olímpica. Como não esconde nada, também
não precisa se preocupar em ser ou não descoberta. Em geral é culta, viajada, analisada. De todas
as formas, procura o equilíbrio, aceita seus desejos e às vezes até milita pela causa.
Os quatro tipos têm relações conflituadas. Só as Irmas, muito tolerantes, parecem aceitar as
outras três. As Jaciras, por exemplo, super-radicais, acham que Irmas e principalmente Telmas
não passam de “umas enrustidas”, enquanto as Irenes para elas são “umas falsas”. Já as Telmas,
quando sóbrias, detestam Jaciras, demasiado explícitas, mas admiram a discrição das Irmas e
desconfiam das Irenes. Estas, democráticas, tentam aceitar a todas, mas têm o irritante hábito de
recomendar psicanálise às Irmas e Telmas, e consideram as Jaciras “umas folclóricas”.
Claro, esses quatro tipos são abrangentes. Existem outros subtipos e intertipos. Quando
passei a relação para Karin von Schweder-Schreiner, a tradutora alemã de Rubem Fonseca, ela
não só me garantiu que as quatro categorias eram internacionais, como imediatamente localizou
uma quinta — a Renata. Que é aquela que, como a Irma, também tem álibi, mas em lugares
públicos sempre dá um jeitinho de ir ao banheiro dos homens, onde presta muita, muita atenção.
Pedro Paulo de Sena Madureira também localizou outra — a Ondina. Aquela que, ao entrar num
ambiente mais descontraído (sauna, bar, discoteca, por exemplo), instintivamente começa a
ondular feito uma Jacira.
Meu amigo Sappe entendeu. E começou a identificar Irmas, Telmas e Irenes até no metrô.
Jacira era mais difícil: ela é mais comum nos trópicos, não se dá bem com a severidade europeia
e precisa de calor para soltar toda a sua jacirice. Quanto à tese — bem, por carta Sappe me
informa que está pronta. Chama-se, juro, “Literatura bambi no Brasil”.

O Estado de S. Paulo, 31/10/1993


Na cama por
causa de Madonna

Tentei ignorar, juro. Mas foi completamente impossível. Acontece que moro a duas quadras do
Caesar Park, onde Madonna ficou. Do meu monástico 12o andar, dias e noites ouvia lá embaixo
os gritos daquela involuntária homenagem póstuma a Fellini. Certa manhã, acordei com um
barulho estranhíssimo sob a janela: helicópteros sobrevoavam a área. E, mesmo tendo que
desviar da Augusta para chegar à Paulista nas minhas peregrinações urbanas, não consegui mais
ignorar. Mesmo decidindo não ir ao show (pruridos ideológicos, tipo eeeu, colaborar com esse
Grosseiro Símbolo da Alienação Capitalista?), acabei indo. Na última hora, meu amigo Denis
Escudero acenou com um irrecusável convite. E fui.
Safári, claro. Uma hora de ônibus, duas na fila, mais três até começar. Dúvidas
pleistocênicas, oh Deus, já não tenho idade, devia ficar em casa lendo Cervantes no original, que
juventude idiota, não tenho mesmo vergonha na cara & etc. Então as luzes apagaram, a bailarina
seminua desceu pela corda. E eu adorei. No dia seguinte, de cama por causa da Madonna,
descobri algo inteiramente insuspeitado — ela é do bem.
Nem ofensiva nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que todos nós gostaríamos de
ser e ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura assim não existiria em tempos e espaços sem
o vírus da aids, que bloqueou a prática sexual e incendiou todas as formas imaginárias e indiretas
da sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a maré de revistas, filmes, vídeos pornográficos, sexo
por telefone e todas as formas de, digamos, fazer a coisa da maneira mental, não física — e
portanto sem riscos. Madonna faz no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis) fazem na
cabeça. Exemplo — um crioulo fortíssimo, com sotaque baiano, vendendo cerveja na fila,
gritava o que todo mundo sentia: “Minha gente, quero ser que nem a Madonna para dar mais que
chuchu na cerca!”
Infelizmente, observei outras atitudes, também sintomáticas da era da aids. No palco
(fantasia) pode, no real (vida) não. A drag queen montadésima foi atacada aos gritos de “bicha!
louca! piranha!”. Tudo na maior agressividade. Mas, durante as duas horas da realidade
fantástica instaurada pelo show, há respeito no ar. A vida suposta de Madonna e seu reflexo
coreografado (belamente, pelo brasileiro Alexandre Magno), mesmo entre berros excitados, é
recebida com encantamento. Madonna é um pouco como aquele transatlântico que atravessa ao
longe a madrugada em Amarcord, de — justamente — Fellini.
Na saída (Safári Parte II, o Retorno) Denis observou: “Engraçado, parece que tem uma
espécie de tristeza no ar”. E tinha. Pelas ladeiras do Morumbi, a noite tinha ficado fria, guardas
tentavam organizar um trânsito histérico, os ônibus não vinham, as ruas pareciam sujas, as
calçadas destruídas. Fugaz, o sonho passara. Ninguém era mais Madonna. Nem ela, de volta ao
hotel, enjaulada lá no alto, enquanto cá embaixo o povo só queria receber uma espécie de
autorização — a de que se pode também, mesmo em tempos sombrios e sem graça, ser meio
Madonna na vida.
A moça fez um enorme bem ao astral do Brasil. Parece que gostou de nós, e a gente precisa
tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio de dias estranhos, pesados (as mortes de Fellini,
River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas por toda a Alemanha, lama grossa em
Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de vitalidade. Saúde, alegria, tesão. Com ou sem vírus
e crise, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E
pouco importa se Ele não existe, porque ela também não existe. Existem símbolos. São eles que
mobilizam e, mesmo quando não bastam, são necessários. Melhor ainda se forem belos. E,
repito, do bem. Do lado certo da luz, compreende?

O Estado de S. Paulo, 14/11/1993


Levantando a cortina
de papel vegetal

Escrita em Tóquio, um dia depois do Natal de 1992, a carta levou mais de dois meses para me
encontrar. Passou pelo interior da França, pela Alemanha, Holanda, e acabou em Paris, onde,
num fevereiro sem sol, eu lia as denúncias de Reinaldo Arenas contra o regime cubano em sua
autobiografia Avant la nuit (atenção, editores brasileiros, alguém já pensou em traduzi-lo aqui?).
Rasguei o envelope branco, com timbre do Clube de Correspondentes Estrangeiros do Japão. A
carta era de Marco Lacerda, velho amigo daqui mesmo, dos primeiros tempos deste Caderno 2, e
na época correspondente da Editora Abril em Tóquio.
Nas três páginas, uma história horripilante. Um vizinho de Marco, o americano Chris,
namorado de Adriana, uma nissei brasileira, caíra de um oitavo andar no bairro chique de
Roppongi (os Jardins de Tóquio). Tinha a garganta e o pênis cortados por navalha. Parecia
obviamente um assassinato, mas nos laudos da polícia, que não quis reabrir o caso, a morte foi
atribuída a um “acidente com sinais de suicídio”. Menos de uma semana depois, Adriana e todos
os amigos do casal sumiram sem deixar pistas. Marco estava assustado. Eu também fiquei.
Nos meses seguintes, sem endereço fixo, me perdi de Marco e de muita gente. De volta ao
Brasil, pedi notícias aos amigos comuns, que me tranquilizaram — ele continuava em Tóquio,
escrevendo um livro. Na última terça-feira o livro foi lançado aqui, pela Editora Scritta. Chama-
se Favela high-tech, um romance-reportagem onde a favela do título (aliás, ótimo) é o Japão
contemporâneo, e, para minha surpresa, os personagens principais são aquele casal de que Marco
falava na carta.
Como excelente jornalista, ele foi atrás da história. E levantou um roteiro sangrento que,
com sua comercial e trepidante mistura de sexo, drogas e nogautas (canções tradicionais
japonesas), poderia render um filme de sucesso. A diferença — brutal — é que não se trata de
ficção. Adriana estava envolvida com a Yazuka, a poderosa máfia japonesa, em tráfico de
garotas brasileiras para prostituição, e também em tráfico de cocaína. Seis meses depois de
chegar a Tóquio para trabalhar como operária, tinha um BMW e um apartamento em Ayoama,
bairro fino da cidade. Ela e Chris apaixonaram-se e associaram-se também nos negócios
(ganhavam 10% sobre os lucros), mas acabaram descobrindo que faca que corta sushi sempre é
bem mais afiada do que parece…
Chris, americano, e Adriana, brasileira, eram ambos gaijin — palavra japonesa para
“estrangeiro”, mas que também significa “inimigo” — e um perigo para a yamato gokoro, a raça
japonesa pura, velha obsessão nazista que voltou a rondar o mundo inteiro. Corajosamente,
Marco Lacerda esclarece mais coisas. Levanta uma ponta da cortina de papel vegetal bordada de
clichês (haikus, gueixas, samurais etc.) que nos separa do Império do Sol Nascente para
desmistificar o paraíso capitalista do Japão contemporâneo, onde milhões de executivos de terno
azul-marinho se batem pelas ruas enquanto vivem em caríssimos cubículos entupidos de tralhas
eletrônicas. Atualmente, cerca de duzentos e cinquenta mil nipo-brasileiros vivem no Japão, a
maioria como operários.
Uma dona de casa que se prostitui para fugir ao machismo medieval, um monge zen
desiludido da filosofia oriental e afogando as mágoas em carreiras de pó, um homossexual
maléfico que transforma em ópera gay a tragédia de Chris — são alguns dos personagens que
tornam esta Favela high-tech um livro fascinante. Talvez não seja nem um pouco “politicamente
correto”, essa praga dos anos 90 — o que é uma qualidade em tempos de neopuritanismo. E
deixa uma estranha sensação daquela irrealidade da science fiction: como é possível imaginar um
país que perdeu a alma? Pelo que Marco Lacerda conta em seu livro, esse país chama-se Japão.

O Estado de S. Paulo, 28/11/1993


Sugestão para cair
na real… e depois sair

Cinema, teatro, literatura — nas últimas semanas, e sei que digo um clichê, a realidade brasileira
superou qualquer tipo de ficção. Se você ficasse meia hora sem ouvir rádio nem ver TV, ficaria
também completamente por fora das baixarias que saltavam como coelhinhos politicamente
incorretíssimos das cartolas do Planalto. Teve um dia que dei um basta: chega de realidade
objetiva, pô! Lidos todos os livros da casa, vistos todos os filmes da cidade, fui ao teatro. Com o
cuidado de escolher uma peça que, aparentemente, nada tinha a ver com o momento presente.
Vereda da salvação, texto de Jorge Andrade encenado pelo TBC em 1964 e remontado por
Antunes Filho, o grande mago rodriguiano.
Logo de saída, uma estranheza. Antes de a peça começar, com os atores de frente para o
público, imóveis, dentro de caixões, a lembrar macabramente o massacre de Vigário Geral, um
rádio ligado (rádio real, não ficcional) sintonizava — o quê? A última coisa que eu queria ouvir:
baixarias quentinhas de Brasília…Impossível fugir. A peça já começava e, nas duas horas
seguintes, com a loucura crescendo nos personagens, aumentava o desconforto agravado pelo
bafo de um teatro superlotado e sem ar-condicionado.
Acontece que a Vereda-93 de Antunes nada tem de escapista ou distante deste momento
brasileiro, mesmo sendo um texto de respeitáveis trinta anos. Justamente por isso, o adjetivo que
me ocorre para sintetizá-la é esse mesmo: desconfortável. A luz e a música são discretas, quase
imperceptíveis, a cenografia limita-se a longos troncos de madeira, como uma gigantesca
floresta. Não há cores, tudo é cinza, sépia, marrom. Não há nada, enfim, que possa distrair ou
amenizar o olhar ou a mente do espectador. Há um texto cruel, mergulhando fundo e sem volta
numa espécie de transe coletivo (Santo Daime hard-core?) até a catarse final: se a vida real é
insuportável, a única saída pode estar numa outra vida (imaginária, que importa?) — ou seja, na
morte. Na sua impiedade e secura, Vereda da salvação pode parecer chatérrima. Declamativa,
desglamorizada, arrastada como aqueles espetáculos universitários engajados dos anos 60.
Afinal, quem se importa com aquela gente descolorida, feia, louca e pobre? Esse é o ponto: quem
se importa? O diabolismo de Antunes Filho consegue o requinte de, ao final, tornar a plateia
besta um pouco cúmplice da polícia assassina: é isso mesmo, manda matar essa gente medonha!
Dessa maneira enviesada, o espetáculo atinge seu pleno horror quando localizamos dentro de nós
essa coisa imunda: a cumplicidade. A música brega que invade o final esbofeteia nossa
indiferença. A plateia aplaude frenética. Fico um tanto constrangido. Talvez porque não caibam
aplausos, mais honestas seriam quem sabe as cabeças baixas e o silêncio?
Saí do teatro em silêncio, cabeça baixa. Só nos dias seguintes fui compreendendo aos
poucos: é que Narciso, já dizia Caetano, acha feio o que não é espelho. E não me entendam mal,
não é que eu não goste da peça. O que detesto é ver nela o Brasil de hoje. Nesta vereda de
Antunes Filho não há salvação. Na do Brasil, haverá? E na de cada um de nós? Depois do
lamaçal deste momento plutoniano de cura, dizem, nunca mais o país será o mesmo. Ou será isso
só (mais) um clichê?
Como ninguém é de ferro, no dia seguinte fui ver Hair, na versão de Jorge Fernando.
Continua lindo, bailarinos e cantores excelentes. Naturalmente, já não me atrevo a subir no palco
para dançar, como em 1969, mas isso não me impediu de, comovido, cantar junto let the
sunshine in, deixa o sol entrar.
Ah, deixa. Vá ver Vereda da salvação e logo em seguida rebata com Hair. Esquisito? Essa
é a mistura teatral mais perfeita da cidade para cair na e sair da real. A gente precisa dos dois.

O Estado de S. Paulo, 12/12/1993


1994: um ano
para a literatura

Dizia Clarice Lispector, acho que em A hora da estrela: “Quanto a escrever, mais vale um
cachorro vivo”. Na época, segunda metade dos anos 70, fiquei escandalizado. Afinal, estávamos
saindo daquele período conhecido como “boom de literatura brasileira”. As páginas de jornais e
revistas, as listas de best-sellers e programas de tevê viviam cheios de bons escritores. Havia
dezenas de revistas literárias e feiras de livros. Em centros e seminários por todo o país, novos
escritores e novas editoras surgiam a cada semana. Talvez naquele tempo, penso hoje,
começando a emergir da escuridão da ditadura militar, o público leitor tivesse necessidade de ver
a própria face refletida na literatura.
Passados quase vinte anos, a frase amarga de Clarice tornou-se dramaticamente real. O
escritor brasileiro — falo com conhecimento de causa, porque sou um deles — virou um nada.
Nunca é lembrado, não é publicado e, se publicado, não é exposto ou divulgado, nem
dignamente comentado. Restou o escracho: qualquer comentaristazinho de plantão ganha
páginas inteiras para demolir alguém que escreveu a vida inteira. Acuados, os escritores — essas
criaturas meio tortas, com uma terrível dificuldade para lidar com o real — preferem ser
deixados em paz nos seus cantos, cada vez mais pobres e mais confusos. Como, dizem, esses
espíritos de pessoas que morrem tão subitamente que não percebem ter morrido. Ghosts, almas
penadas, eguns. Estranhamente, isso é falso. Fora do Brasil, acredite se quiser, o escritor
brasileiro poucas vezes foi tão respeitado. De Machado de Assis a João Ubaldo Ribeiro,
passando pela própria Clarice até Lygia Fagundes Telles (dois cults na França), há uma enorme
curiosidade, principalmente na Europa, pelo que se escreve aqui. E também disso tenho
conhecimento de causa: passei os últimos três anos em seminários, leituras e encontros de
escritores na Inglaterra, França, Holanda, Alemanha, Itália. Pude ver, numa cidade para nós
improvável como Dusseldorf, uma livraria cheia, inclusive as calçadas em frente, para ouvir uma
leitura de Rubem Fonseca. Assisti, num teatro lotado em Paris, a uma adaptação teatral de A
paixão segundo G.H., de Clarice. Nas melhores livrarias de Londres, encontrei expostos com
destaque autores como Antônio Torres e Moacyr Scliar. Lembro da garota na Universidade de
Liverpool ávida por Ana Cristina César, do rapaz alemão recitando Ferreira Gullar em Köln,
daquela senhora em Bordeaux que sabe de cor Mário Quintana.
A melhor prova de que somos amados lá fora é a Feira de Frankfurt de 1994, a maior feira
de livros do mundo, este ano dedicada ao Brasil. Ou seja: ao escritor brasileiro, esse pobre
coitado em seu próprio país. Não compreendo. Talvez, neste tempo, afundado até o pescoço
neste pântano de corrupção que virou o Brasil, o povo rejeite ver sua própria face refletida na
literatura. Em parte, quem sabe, mas só em parte. Tirar o escritor brasileiro desse nada onde foi
jogado para revalorizá-lo depende muito dos donos do poder, e desse Big Brother inescrutável —
a Mídia, com maiúscula. Depende muito menos dos próprios escritores (que só querem conseguir
escrever, e isso é penoso) do que dos editores de livros e jornais e revistas, de livreiros e
distribuidores. Por que, raios, é na Alemanha, não no próprio Brasil, que dedicam um ano à
literatura brasileira? Por que não aqui, e agora, e já? Lanço minha modestíssima campanha: você
aí, leia um escritor brasileiro em 1994. Um só, para começar basta. Além dos que citei, há
centenas de outros. Graciliano, Callado, Hilst, Santana, Luft, tantos. Preste atenção neles: falam
do que nos cerca, do que sentimos, do que somos. Ler literatura brasileira é tornar-se mais apto a
compreender e lidar com o Brasil. Neste caso, quem não precisa disso?

O Estado de S. Paulo, 9/1/1994


Marina Lima enfrenta
o Brasil-Barbie

Faz uns dez anos, talvez mais. Marina Lima ainda estava nos seus começos e eu, comentando um
disco ou show seu para a revista IstoÉ, afirmei que ela seria “a voz dos anos 80”. Fui muito
criticado. Muitos disseram que era um exagero, que não passava de modismo, que ela
desapareceria como desapareceram várias cantoras surgidas naquela época. Fiquei quieto, detesto
polêmicas. Além disso, há intuições que não podem ser provadas racionalmente, para as quais
não existem argumentos além de uma suave certeza íntima. Nos anos seguintes, acompanhando
um por um seus discos (tenho todos e em todos há uma linha clara de crescimento pessoal),
sempre algo me dizia assim: “Engraçado, essa garota tem mesmo something else…”
Como ela mesma diz agora em seu disco mais recente (O chamado, lançado em dezembro
de 1993), na letra de “Meus irmãos”: “Os homens podem muito pouco/ O tempo sempre sabe
mais como agir”. Eu não disse? Aos trinta e oito anos (e cada vez mais linda), Marina não se
deixou transformar em nada supostamente mais atraente para o consumidor: não ficou mais sexy
nem mais roqueira, não ficou mais “popular” nem qualquer outra coisa que pudesse vender mais.
Marina não se tornou “vendável”: burilou-se, tornou-se ela mesma, e isso é precioso. Não faço
ideia do que pensa dela essa garotada atordoada pelos Hollywood Rocks da vida — e isso não
me importa. Acho que a ela também não.
Embora manso, esse disco novo de Marina é muito atrevido. Mas atrevido pelo avesso, não
porque esbraveja explicitamente contra algo estabelecido, como fazia Cazuza, de quem a bela
“Carente profissional” não por acaso abre o disco. Neste Brasil histérico, dominado pelo que
Lobão — outro que felizmente vai seguindo bom caminho — chama acertadamente de “estética
Barbie” (cultura de shopping, importações bregas, revista Caras: fake total), Marina reage à
estupidez ruidosa cantando lentas baladas de letras quase sempre melancólicas, cheias de versos
como “Eu sigo latindo, buscando um jeito de achar conforto” ou “Eu não ando bem da cabeça, já
cansei de acreditar” ou “Vou seguindo o chamado, onde é que vai dar eu não sei”. Meditativa,
filosófica, introvertida, seu enorme atrevimento é ir contra o que o Brasil-Barbie anda impondo
aos seus artistas. Contra o esquema muita-gritaria-e-estádios-cheios.
Marina — ave! — não grita. E até poderia encher estádios, mas a plateia vai ter que ficar
quieta para poder ouvi-la, já que ouvi-la é mais importante que sacudir-se. Seu disco soa um tom
— ou vários — abaixo dos tons ensurdecedores deste Brasil instaurado, onde qualquer tentativa
de reflexão é taxada de “baixo-astral”, qualquer intimismo é considerado “depressivo”. Um
artista sempre é o termômetro de seu tempo, e o disco de Marina revela com perfeição a face
oculta de um país que não está tendo voz — essa voz das pessoas mais ou menos como a gente,
um pouco acima da miséria, chegando à meia-idade, essa voz meio cansada, um pouco
desiludida e muito assustada. Por trás das dores, sem medo de ser séria, a comovedora serenidade
da “jovem senhora de passagem” pede que não tentem fazê-la feliz — ela aprendeu que o amor é
bom, mas também dói demais sentir.
Mas me enganei, sim, quando anos atrás previ que ela seria a voz dos anos 80. Afinal, já
estamos em 1994 e Marina Lima continua sendo para-raios de uma geração (como, de outra
forma, Rita Lee também é). Discreta e secreta, sua voz deliciosamente rouca vai dobrar o século,
explodindo modismos. Se duvidarem, lá por 2004 volto a tocar no assunto. Isso se eu — da
mesma maneira como ela promete no refrão de “O chamado” — também resistir, claro. Com
gente como Marina cantando ao fundo, garanto que fica bem mais fácil.

O Estado de S. Paulo, 23/1/1994


Para Dulcineia, que
nunca foi del Toboso

Foi numa daquelas noites de calor senegalesco no final do ano passado. Sem conseguir dormir ou
ler, nem fazer qualquer coisa um pouco mais útil do que me sentir enjaulado, escolhi a mais
modesta e refrescante das saídas — tomar uma cerveja num bar da rua Augusta. Esclareço: nem
sequer da baixa Augusta, perto do centro, mas daquele pedaço razoavelmente civilizado,
próximo à Paulista. E lá estava eu, então, um senhor quase de meia-idade e quase de bem com a
vida outra vez, diante de seu honestíssimo copo de cerveja, quando percebo um rebuliço na
entrada do bar. Não gritaria ou tiroteio, mas um movimento mais sutil, desconforto no ar.
Constrangimento silencioso, saia-justa. Com certa indiferença e nenhum preconceito, porque
nunca se sabe o que pode explodir nesses bares em noites quentes assim, olhei prudente.
Eram duas garotas. A mais alta, uma negrinha de brincos enormes e cabelos eriçados,
calças e bustiê estampados, não devia ter mais de quinze anos. A mais baixa — muito mais
baixa, tanto que parecia uma anãzinha — com certeza não passava dos dez anos. Branca, usava
bermudões grunge, muitas pulseiras e estava maquiadíssima. Sombra verde nos olhos, rodas de
ruge na cara, batom escarlate e uma cabeleira pintada de louro passando dos ombros. Pediram
uma cerveja no balcão e nem reclamaram quando o garçom falou que não servia menores. Eram
até discretas, mesmo com todo mundo olhando sem parar para elas. Que coisa, pensei, certo que
são um tanto precoces, mas por que olhar tanto em tempos de Madonna?
Foi quando um senhor disse que o-mundo-estava-mesmo-perdido e saiu batendo portas
imaginárias que eu me dei conta. Não eram duas garotas: eram dois travestis. Já vi todo tipo de
travesti, até travesti-mendigo, mas travesti-criança só numa reportagem da revista Time sobre
prostituição infantil no Leste Europeu. Que, a propósito, arrancou de Eduardo Logullo a mais
fútil e lógica das questões: “Se a miséria é tanta, de onde é que vêm as perucas?” As duas de que
falo não usavam peruca nem eram europeias. Brasileiríssimas, logo fizeram amizade com duas
prostitutas de outra mesa, descolaram a cerveja e começaram a conversar.
Estiquei o ouvido. Não peguei muita coisa — afinal, a Augusta não é exatamente um lugar
adequado para show de João Gilberto —, a não ser que a negrinha criticava a outra. A outra, a
falsa anãzinha, chamava-se (juro!) Dulcineia. A negrinha, uma autêntica Jacira, dizia toda
articulada: “Mas Dulcineia, não precisa usar tanta maquiagem. Viu como todo mundo ficou
olhando? Assim você agride a sociedade”. As duas prostitutas davam força à Jacira, que insistia:
“Afinal, quantos anos você tem, Dulcineia?” Dulcineia, que até então não abrira a boca, bufou
furiosa: “Treze”. E a Jacira, triunfante: “Mentirosa! Treze tenho eu, e sei que você é quatro anos
mais nova. Você tem nove anos, Dulcineia”. Nesse momento Dulcineia levantou-se, sacudiu o
jubão, olhou em volta desafiadora, bateu com força o copo na mesa e falou bem alto, pro bar
inteiro ouvir: “Posso ter só nove anos, mas quero que a sociedade se dane!”
Não pedi outra cerveja. Parecia soprar uma fresca, como diria meu avô, ali do alto da
Paulista, e achei melhor dar o fora. Semanas depois, numa dessas madrugadas de garoa oleosa
sobre São Paulo, eu descia a Augusta cheio de problemas quando vi alguém vagamente familiar
dormindo num degrau. A cabeleira loura saindo para fora do cobertor esfarrapado, ao lado (bem
sei que parece invenção demagógica, mas que posso fazer se estava mesmo lá?) de um ursinho
de pelúcia — era Dulcineia. Não parecia menino nem menina, anã, prostituta, Jacira ou
Dulcineia, mas apenas uma criança abandonada. Ah, pensei, fora eu Dom Quixote e puxaria
agora minha espada para protegê-la de tanta Miséria Maligna! Saí chutando a sombra de minha
triste figura. Vago desgosto, o que será que seria?

O Estado de S. Paulo, 6/2/1994


Pra cima com
a câmera, moçada!

Semana passada acendi uma vela para São Lázaro, padroeiro dos ressuscitados, vesti minha
camiseta de Dom Quixote assinada por Picasso e quase de joelhos fui assistir a três filmes
nacionais. Nada de reprise, vídeo ou TV: filmes recentes, de 1993, pós-assassinato collorido.
Magro peito estufado de orgulho varonil, encarei primeiro Capitalismo selvagem, de André
Klotzel (do saboroso Marvada carne); depois Era uma vez, infantil de Arturo Uranga, ambos
(milagre!) em circuito comercial. Para arrematar, movi céus e terras atrás de um convite para a
pré-estreia de A terceira margem do rio, de Nelson Pereira dos Santos. Bem:
Era uma vez tem mercado específico mas, apesar disso, direção de arte competente,
figurinos legais, bom acabamento e muitos achados espertos (o vilão pop star, a princesa-perua, a
ninfa-ninfômana etc.). Um problema: parece teatro infantil filmado. Como detesto teatro infantil,
o problema pode ser meu, porque é um filme simpático e, suponho, atraente para baixinhos não
demasiado psicóticos ou imbecilizados.
Capitalismo selvagem parte de uma ideia genial — o capitalista com uma “porção
selvagem” —, mas essa riqueza não rende o que poderia. O roteiro irregular, compacto demais,
deixa no ar várias pontas sem solução; falta unidade narrativa; há equívocos na direção de certos
personagens, que mais parecem saídos de um especial de Guel Arraes. Em contraponto e
compensação, além de um José Mayer corretíssimo, há uma Fernanda Torres deslumbrante.
Mistura de Juliette Lewis de Kalifórnia com Carmen Maura, meio Giulietta Masina, meio María
Félix (na magnífica cena de viuvez), Fernandinha nunca é menos que soberba. Por vários
motivos — como a bela sequência final, referência ao Macunaíma de Joaquim Pedro — vale ver
o filme, mas acima de tudo por Fernanda. Pena que a hibridez da linguagem atrapalhe tudo.
Como se Klotzel, bom cineasta, mesmo sem ter encontrado o “tom” certo, tivesse ido em frente
aos trancos.
De qualquer forma, Capitalismo parece íntegro e honesto. Embora cínico. Isso não
acontece com A terceira margem. A mão pesada de Nelson Pereira quase esmaga a poesia de
Guimarães Rosa, num desastrado mélange de sertão à la Leandro & Leonardo com ideologia-68
à la Antunes Filho em Vereda da salvação. Até aí passa. Mas imperdoável e repugnante mesmo
é o preconceito explícito: lá pelas tantas, a menininha-milagreira (a melhor coisa do filme)
resolve morrer logo depois de recusar ajuda a um pobre-diabo com aids. Homofóbico ou não, a
cena não ajuda em nada a derrubar o preconceito contra a doença. Argh! Pirotecnias
charmosinhas à la realismo mágico para inglês (ou alemão) ver, um excelente ator (Ilya São
Paulo), mais toneladas de supostas boas intenções e clichês não evitam o adjetivo —
constrangedor, este “Vidas Úmidas” anos-90. Pena.
Dias melhores virão, tem sangue novo chegando logo. Vêm aí: Alma Corsária, de Carlos
Reichenbach; o esperado O corpo, adaptação de Clarice Lispector por José Antonio Garcia;
Perfume de gardênia, de Guilherme Almeida Prado; A causa secreta, o Machado de Assis de
Sérgio Bianchi; os sambas de Chico Buarque visitados por Cacá Diegues; O mandarim, vida de
Mário Reis, o precursor de João Gilberto, por Júlio Bressane. E onde andarão Ana Carolina,
Roberto Gervitz e o magnífico Jabor-cineasta? E cadê todos aqueles roteiros inéditos deixados
por Wilson Barros?
Pensando bem, até que São Lázaro tem ouvido as minhas preces… Verdade que o Brasil
degradado até a última baixeza pela cafajestice de um presidente cantando uma jovem pistoleira
nordestina (outra?) nas fuças estupefatas do povo durante o Carnaval me deixa verde-amarelo de
vergonha. Drummond cobrava “mas… e o humour?” Cobro a esperança, nossa eterna profissão.
E só não falo em É-T-I-C-A porque o espaço acabou e eu preciso ir ao banheiro vomitar.

O Estado de S. Paulo, 20/2/1994


Viva o império das
coroas magníficas!

Paris — Há brasileirices de que a gente só sente falta longe do Brasil. Foi assim por exemplo com
a cantora Alcione, a quem nunca dei muita bola até certa tarde de 17 graus abaixo de zero, em
Londres, quando Cida de Assis colocou no toca-fitas “não-posso-mais-alimentar-essa-ilusão-tão-
louca-que-sufoco”. Soluçamos no ombro um do outro, depois enfrentamos a neve para comer
junk food indiana na esquina de Hampstead, cantarolando a Marrom. Ao molho de curry, que
assim é a vida.
Desta vez, sem vergonha na cara, confesso: morro de saudade de Fera ferida, a telenovela
de Aguinaldo Silva. Sou um telenoveleiro apenas razoável: não suporto a das dezoito horas, tola
demais; a das dezenove vejo enquanto pico cenouras, sem prestar muita atenção, embora Patrícia
Travassos tenha o dom de me arrancar dos confins da cozinha. A das oito, que sempre foi às oito
e meia, sempre me deixa mais atento porque vale como termômetro-do-emocional-coletivo-
tupiniquim. Principalmente se for de Gilberto Braga, aí não desgrudo mesmo. E trato mal quem
telefona durante. Sensibilidades das raras e especiais, como Cida Moreira, nessas fases têm a
sabedoria de ligar apenas durante intervalos comerciais.
Fera ferida começou irritante. Já na primeira cena, a soma das idades dos atores beirava a
idade do Brasil desde Cabral e aquele fatídico dia. Os tiques, e aquela coisa jecoide, ai, lá vem
sotaque nordestino, lá vem vestido de chita… Mas Aguinaldo Silva, como bom telenovelista e
romancista (leiam Lábios que beijei, Siciliano), foi esquentando aos pouquinhos. Quando a gente
dá conta, pronto: está viciado. Só depois de meses Fera ferida deixou bem claro por que é
excelente: tem um time de atrizes e personagens femininas fora do comum.
Nada de modelões arfantes ou jubões crespos (o único jubão é a figura mais apagada de
todas, Claudia Ohana): Fera ferida é o império das coroas magníficas. Pois não é que, sem
sentir, comecei a dizer coisas tipo “jantar fora, meu bem, só depois da Ilka Tibiriçá”? E não
apenas Cássia Kiss, redimida de anos de canastrice e antipatia por essa solteirona pungente: há
muito mais. Suzana Vieira, pérfida e cafona; Joana Fomm, ainda mais pérfida, mas nem tão
cafona assim. A perua provinciana e a perua viajada em choque: não esqueço a cena (cruel) em
que Salustiana dispensou a visita de Rubra Rosa. Isso sem falar na rainha do escracho: Maria
Gladys. Já quem tem menos de quarenta anos merece reparos: Camila Pitanga precisa de lições
de arte dramática; Déborah Evelyn, de uma boa dose de Efortil; a najinha Anna de Aguiar
(Isoldinha), menos bocas; a anoréxica Érika Rosa, de refeições mais substanciais, pobrezinha.
Sobre todas, merecendo uma ode, paira uma deusa discreta chamada Arlete Salles, a
costureira Margarida. Brava Arlete, que décadas atrás derrubou preconceitos casando com Tony
Tornado e nunca foi superstar. Contida, sóbria, modesta, elegante, ela não é daquele tipo de atriz
como Emma Thompson, Meryl Streep ou Beatriz Segall, entre as tropicais, cujo subtexto sempre
dá a impressão de um arrogante “Eu Sou Uma Grande Atriz”. Arlete é suavemente contagiante.
Chorei junto com ela aquele rio de lágrimas no chão do quarto; me arrepio com sua fidelidade à
Frida, a filha songamonga; adoro suas mãos castigadas e seus olhos de cão. Humaníssimos,
solidários, leais.
Pois sinto falta, agora, daquela pausa no final do stress nosso de cada dia quando, num
processo tribal e talvez alienante (mas que importa?), todo o Brasil esquece URVs e baixarias do
gênero para mergulhar junto na única coisa capaz de nos distrair um pouco da insegurança: o
sonho. Revejo Margarida Weber, a costureira desprezada, como uma tia arquetípica, a nos
garantir que tudo, tudo vai dar pé. Vocês vão ver só, meus filhos, nós vamos dobrar essa
gentalha!

O Estado de S. Paulo, 20/3/1994


De laços, seios,
sábados e tormentas

Paris — Era uma vez um sábado de abril. Sábado é sempre sábado, igual em Paris, Porto Alegre ou
Cingapura. Sempre no ar aquela expectativa — pizza, cinema ou beijo, não importa — de uma
gota de mel para o domingo. Comprei o Le Monde e o Libération, sentei no café da esquina para
praticar meu mórbido e pátrio esporte diário: procurar notícias do Brasil, que não desato esse
laço. Nunca tem. Mas desta vez — explosão! como diria Clarice Lispector — ah, desta vez sim,
bem grande no alto da última página: BRÉSIL. Adiei a voracidade, pedi outro café, fui ao toalete
fazer nada, acendi um cigarro, sorri para uma alemã e depois de uns dez minutos, absolutamente
natural, só o coração batendo secreto me denunciaria, peguei e li sem fôlego, morto de sede e
saudade.
Olinda, uma das cidades mais belas que conheço, patrimônio histórico da humanidade.
Periferia de Olinda, Recife, Pernambuco, Nordeste do Brasil, América do Sul. Um seio
amputado no lixo. Fome, miséria. Tamanho horror que minha forma mais eficiente de reproduzi-
lo é repetir sua síntese aqui assim numa única linha para que fique bem claro e medonho e
irrecusável na sua hediondez que ofende a todos nós:
Canibalismo em Olinda.
Voltei ao toalete para fazer aquilo que os bebês e os bêbados fazem muito, embora tenha
passado dos quarenta e, hoje, só tenha bebido café e vitamina C. Dobro o jornal com cuidado e
vergonha, para que ninguém leia. Capricho na pronúncia ao pedir a conta, para que não
suspeitem de onde venho, e saio de fininho. Ando sem rumo por Alesia até me atrasar para a
entrevista. Eva Louzon, apaixonada pelo Brasil, faz milhares de perguntas, eu falo do Sol, da
energia bruta da terra — axé! axé-que-aqui-não-tem! —, de Machado e Rubem F. e Lygia
Fagundes e Hilda Hilst e muita música, Gal, Bethânia e Calcanhoto, cascatas, araras, essas praias
murmurantes aonde a lua vem brincar e futuro resplandecente. Um dia, um dia. Tropeço por
brasilidades histéricas, fumo demais. No metrô um punk antigo demimoicano ameaça com
navalha quem não dá dinheiro. Não dou, faço o invisível, sempre funciona. Desabo no Marrais
de tardezinha.
Um postal de Isabelle Adjani como Emily Brontë, uma antologia de contos gay organizada
por David Leavitt. Podia visitar sem aviso Betty Milan, que mora na esquina, telefonar para
qualquer um, em português, assistir a Jeanne la Pucelle, Sandrine Bonnaire como meu ídolo de
infância, Joana D’Arc na versão de Érico Veríssimo. Não faço nada: cinemas cheios demais, ruas
cheias demais. Quero voltar para casa, ver TV até a imbecilidade, dormir sem sonhos. Alguma
coisa me falta, desesperadamente. Estou perdido. Atravesso pontes, viro esquinas medievais. O
dia é cinza e frio como as cinzas dos borralhos. Quero qualquer coisa que não tenho agora, um
país, uma língua, um amor, nesta cidade estrangeira quero me jogar no Sena, me embriagar
alucinadamente. Então eu paro e olho a rua, a casa em frente.
Quai de Bourbon, número 19. Uma placa diz que ali viveu Camille Claudel. Mais abaixo,
esta frase dela — “Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente” (Existe sempre
alguma coisa ausente que me atormenta) — escrita exatamente há cento e oito anos. Mas já vivi
isso, penso, por que outra vez? Quero acender uma vela pela alma de Camille, a multidão de
japoneses barra a entrada de Notre-Dame. Amanhã, amanhã sem falta em Saint-Germain des
Prés. Volto pelos túneis cheios de namorados. O sábado, o mel. O Brasil me falta e dói como
dizem doer a ausência de um membro amputado, o seio no lixo, o tormento e a tormenta nas
esquinas de Pernety, eu repito e repito o horror que ofende a todos nós:
Canibalismo em Olinda.
E, no entanto, eu não desato esse laço. Tão apertado, parece forca.

O Estado de S. Paulo, 1/5/1994


Negro amor ao som
de Bruce Springsteen

Paris — Acaso — você conhece? — é só um dos nomes de Deus. Por essa espécie de acaso,
conheci João. Eu jantava com amigos quando o garçom me chamou a atenção. Um negro
pequeno, forte, cabeça raspada, olhos redondos pretos e vivos, sorriso enorme. E qualquer coisa
luminosa em volta. Apesar do seu francês impecável, imaginei Cabo Verde, Cuba, Martinica.
Puxei papo. João é brasileiro. De Minas. O mais simpático, rápido e sorridente garçom daquele
restaurante de garçons meio emburrados. Por outro acaso desses, outra noite nos cruzamos num
bar. Mortos de sede do Brasil, cantamos juntos Nana Caymmi, depois caímos nesse poço
inevitável: histórias pessoais. Eu quase não tinha nada para contar ou, por deformação
profissional, preferia ouvir. Entre cervejas, então, João contou.
Veio do Brasil há mais de dez anos, apaixonado por Christian, um francês também
apaixonado por ele. Trabalharam, viajaram, se amaram, sempre juntos. Então Christian começou
a ficar doente, cada vez mais doente. Fez o teste fatídico: sim, aids — ou sida, como dizem os
franceses e nós brasileiros também deveríamos dizer, não fôssemos tão colonizados. Mas isso
não importa agora.
O que importa é a história real de João. Dura, real, presente. À morte, no pequeno
apartamento alugado, Christian recusa-se a ser hospitalizado. O AZT, DDI e todas essas afetaram
sua mente, às vezes foge pelas ruas, seminu e muito magro. João avisou a mãe de Christian, que
não o conhece e vive em Toulouse. A mãe, judia de 74 anos que sofreu durante a guerra, veio a
Paris sem saber do que se tratava. Sem saber absolutamente nada. E esbarrou nas três pontas
farpadas dessa situação: 1-º) O filho de quarenta anos é homossexual; 2-º) O filho está à morte
com aids; 3-º) O filho vive com um negro brasileiro. Na cara certamente exausta dessa velha
senhora, três preconceitos de uma só vez: a homossexualidade do filho único; a aids e a raça de
João — além de negro, brasileiro. E, como se não bastasse, com um acintoso teste negativo. Os
três juntos num quarto e sala de Montparnasse. Christian delira no quarto. João trabalha em dois,
três restaurantes, sem folga. A mãe quer levar seu filho para morrer em Toulouse. Sem João,
claro: o que não vão dizer os vizinhos? Christian não quer. João também não: “Quero que ele
morra comigo. Quero ficar com ele até o fim, compreende?”
Compreendo. E vejo a mãe sentada na sala olhando João com olhos acusadores quando ele
chega de madrugada. João traz flores, frutas, leite, pães. Que a mãe não toca. Como se
estivessem contaminados e João fosse o anjo negro portador da peste desse país assustador, a que
os franceses se referem como là-bas… João evita voltar pra casa, fica pelos bares, vezenquando
dorme no apartamento de Fifi, que vive no mesmo prédio e é o melhor amigo de Christian. O que
fazer com uma história dessas?
Parece peça de teatro, digo, parece filme. E quando digo “filme”, ao mesmo tempo em que
João me pergunta o que fazer, eu tenho a ideia. João, convide a mãe de Christian para ir ao
cinema, leve-a para ver Filadélfia, de Jonathan Demme. Só isso. Não precisa dizer nada. Compre
pipocas, ou coisa alguma. Fique quieto, duas horas no escuro, ao lado dela. João sorri. Sorri
sempre, mesmo quando os detalhes de sua história são pesados demais. Et pourquoi pas?,
considera. Eu me pergunto se voltarei a vê-lo assim, por acaso. Por isso que as pessoas — tão
pudicas de magia — costumam chamar de “acaso”. E não sei o que vem depois.
Mas esse luminoso à sua volta, João, quero perguntar, será o que chamam de “amor”? Ele
não me escutaria. Braços abertos e sorriso enorme, dança no meio da pista como um deus negro,
solitário e selvagem.
A luta continua.

O Estado de S. Paulo, 15/5/1994


Confissões de um
lusófobo enfurecido

Paris — Estou uma fera, quero guerra.

Pois movido a fantasias meio uterinas (a pátria-mãe), literárias (ai, Pessoa), bucólicas (o tal
jardim-à-beira-mar) — e que tais — fui a Portugal pela primeira vez. Ônibus, vinte e cinco horas
on the road. Coluna doendo (ai, a idade), mas a memória florida de referências: Sá-Carneiro,
Sophia de Mello Brayner Andresen, Florbela Espanca, o Trás-os-Montes de Miguel Lorga, os
cus-de-judas de Lobo Antunes, a Mouraria de Amália Rodrigues, Manoel de Oliveira e Maria de
Medeiros, amorosamente eu fui. Passei duas semanas em Lisboa. Não exatamente venturosas.
De chegada, estorvos. Tresnoitado e sem escudos, perambulo por meia dúzia de bancos à
cata de câmbio para dólares ou francos. Nativos de maus bofes só trocam moeda estrangeira para
clientes. Mas como eu seria cliente, senhor, se acabo de chegar de França e só quero dinheiro
para pegar um táxi? Sorriso sádico: Ah pois se és brasileiro, ó pá, deves estar tristíssimo com a
morte de vosso herói. E eu lá tenho herói, cara? Ah pois não sabes que morreu o Senna? Sena
Madureira? Quem? Hein? Senna da Silva (sic). I beg your pardon? O Ayrton, o corredor.
Morreu? Completamente, pois. Ai, Jesus, que cá cheguei com o pé esquerdo…
Miúdo calvário. Banco em banco, arrastando malas e ciática pelas ladeiras, finalmente
consegui. Escudos em cima, entrei num snack bar e pedi um cafezinho. Ninguém me olha.
Estarei invisível? Morri? Insisto. O portuga joga uma xícara na minha cara: Aí está tua bica, ó
brasileiro. Pago, pego um táxi. A rapariga motorista não me deixa colocar a mala no banco de
trás (“Vais me romper o estofamento, ó pá!”) e recusa-se a sair para abrir o bagageiro.
Santificado, mala no colo, desabo na rua Actriz Virginia, no Areeiro, onde vivem meus amigos.
Meio-dia, eu chegara às nove. Três horas de puro atrolho. Por quê, Deus meu?
Gianni e Zé Arthur, que lá vivem na terrinha há quatro anos a comer o pão que Inês de
Castro amassou, me explicam a hostilidade; os portugueses ODEIAM brasileiros. Duvido.
Mostram plantas mortas na sacada: na calada da noite, a portuguesa joga água com sal para que
as plantas deles morram. Saímos às ruas falando alto em “brasileiro”. Um carro freia para
passarmos no sinal fechado. Alguém grita: Mas não precisas frear para brasileiros paneleiros, ó
pá!
Duas semanas de horror nazi-medievo-surreal. Discriminação: eu negro, judeu, turco,
paquistanês. A balconista insiste em dizer que não há blocos de papel, e eu vejo uma pilha na
prateleira; o caixeiro me empurra sandálias número 39 ou 41 e, quando faço literalmente pé
firme no 40, diz que não tem — mas há uma na vitrine. Meus amigos me ensinam o truque: falar
inglês, francês, italiano, qualquer língua, jamais “brasileiro”. Testo. Servis, gajos correm a me
atender melados de submissão. Começo a chafurdar nessa lama fétida: o ódio recíproco. Amor
ferido, sonho frustrado. Acho o Estoril escroto, Cascais cafona, Sintra sinistra. Bloqueio os
ouvidos: não compreendia, não compreendo e não compreenderei jamais português de Portugal.
É outra língua. E feia.
Laços fora, moçada: como escritor, não aceito o acordo ortográfico. Nem ortográfico, nem
geográfico, histórico ou imigratório. Portugal é um atraso de vida, disse Christiane Torloni,
guerreira ferida em batalhas lisboetas, a quem dedico estas linhas. Virei lusófobo naquele monte
de ruínas à beira-mar plantado. Vou pra Noruega rebater o baixo-astral. E continuo uma fera.
Não há pastel de nata, bolinho de bacalhau ou cálice do Porto que aplaquem minha cólera
sagrada.
Ai, Jesus, como dói amor não correspondido…

O Estado de S. Paulo, 29/5/1994


Entre a Frau do mal
e a “Jente” do bem

Paris — A caminho de Copenhague o ônibus para em Hamburgo, norte da Alemanha. Seis da


manhã, desço moído à procura do Café Salvador. Entro no bar da Frau gorda que me lembra
Marianne Sägebrecht. Peço café, custa cinco marcos. A Frau enche a xícara e não me entrega,
fica à espera do pagamento. Então percebo que talvez não tenha marcos suficientes. Escudos,
pesetas, francos franceses e belgas, florins e dólares: espalho sobre o balcão todas as moedas de
todos os bolsos. Marcos, só quatro e cinquenta. A Frau leva embora a xícara de café — oh, Deus,
tão fumegante… Recolho moedas, vou saindo injuriado. Então, em súbito ataque de nervos
latino, da porta berro em inglês com dedo em riste: “Todo mundo diz que vocês alemães
continuam nazistas!” Saio de fininho em direção ao ônibus. Afinal, todas essas histórias de
crimes contra estrangeiros…
Uma semana depois, vindo de Estocolmo, o trem chega à moderníssima gare de Oslo. Seis
da tarde e eu arrasto bagagens, mais de hora livre até outro trem para Sarpsborg, sul da Noruega.
Um jornal, delírio, um jornal em língua inteligível. Reviro o kiosk até encontrar um deslumbrante
El País dominical, com direito a revista em cores e entrevistas de Botero: 25 coroas norueguesas.
Cinco dólares parece baratíssimo pelo Paraíso, reflito enquanto a jente (garota) dourada como
trigo espera o pagamento. Espalho aquelas mesmas moedas, acrescidas de coroas dinamarquesas,
suecas e norueguesas. Faltam cinco. Amargamente experiente, recolho moedas, devolvo o jornal.
A garota me detém, pega as vinte coroas e entrega o jornal sorrindo. Vaer sa god!, diz, “bom
proveito”. How sweet you are!, suspiro. E só não a peço em casamento porque não posso mesmo
perder esse trem.
Não, nem todo inglês é arrogante; nem todo mexicano sonolento; nem todo russo bêbado
etc. Por trás e no fundo do geral panorâmico de raças e nações existem sempre as
Individualidades Abissais, e são elas que importam. Acendo um cigarro na vidraça do trem
futurista que contorna fiordes, bosques, cidades de nomes encantados, impronunciáveis —
Porsgrunn, Drammen, Sandefjord — e tento compreender tanto a Frau do mal quanto a jente do
bem. Às seis da manhã de um domingo, é possível que a Frau de Hamburgo estivesse de
medonho mau humor, na expectativa de perder o dia esplêndido atrás daquele balcão muito mais
melancólico que o do Bagdad Café. E, às seis da tarde de outro domingo, é possível que a jente
de Oslo estivesse de radioso bom humor, na expectativa de sair logo para encontrar algum viking
impetuoso na noite branca da primavera escandinava. Coisas assim, de gente.
Mas um viajante — ah, como um viajante precisa de doçuras. Para um viajante, o contato
com os nativos necessita desesperadamente ser amável. Caso contrário, inseguros e feridos,
caímos em Estado de Rejeição Lancinante e cometemos gravíssimas injustiças, generalizando na
tentativa de entender o que não é entendível — e afirmamos então barbaridades, como os suecos
são neuróticos, os japoneses traiçoeiros, os espanhóis violentos etc. Acontece que as
Individualidades Abissais, e são elas que importam, não são classificáveis. Uma raça ou país de
origem não determinam sentimentos. A certeza contrária a esse pensamento atende pelo nome
hediondo de nazifascismo.
Sim, a Noruega me encanta com a sua natureza de aquarela, embora ainda me aterrorizem
as imagens de Bosna!, o filme feito por Bernard Henri-Lévy nos escombros da ex-Iugoslávia, e
as manobras de Berlusconi e seus cinco ministros fascistas na Itália. Mas este verão na
Escandinávia é tão fugaz e frágil que urge ser feliz antes que voltem as sombras do inverno.
Escolho então guardar no coração a jente de Oslo, não a Frau de Hamburgo. E hoje, em vez de
ler jornais, prefiro colher lilases.

O Estado de S. Paulo, 12/6/1994


Afinal, quem era
mesmo Lolita Torres?

Prometi a Tânia, e estou tentando cumprir a promessa. Já andei perguntando aqui e ali,
discretamente, mas ninguém parece saber ou lembrar quem foi Lolita Torres. Bem sei, é desses
nomes tão sonoros e perfeitos que logo ao ouvi-lo todo mundo tem certeza de que conhece, mas
basta você começar a investigar quando, e onde, e como, que ninguém lembra mais nada. Ficou a
melodia, percebo. Ótimo, pois, segundo Tânia, Lolita era pura melodia solta no ar pesado da
Moscou dos anos 50.
Agora parei um pouco de escrever, olhei pela janela e pensei que vocês não devem estar
entendendo nada desta história. Vou tentar explicar, mas também confesso que não sei bem por
onde puxar o fio. História tem dessas coisas, você às vezes puxa um fio que resulta noutro
bordado não planejado. Em crônica fica ainda pior, porque você tem que controlar o espaço o
tempo todo e não pode dizer demais, jamais.
Conheci Tânia Prigarina no sul da Noruega. Russa, passou quase toda a sua vida tentando
escapar da Cortina de Ferro enquanto estudava no teatro do Bolshoi. Há quinze anos, conseguiu:
casou com um norueguês e foi morar em Hoisand, onde a encontrei na última primavera. Tem
setenta anos, mas não aparenta mais que cinquenta, com seus cabelos lisos pretíssimos que fazem
lembrar certas fotos de Diana Vreeland, a sacerdotisa americana do chique.
A primeira coisa em que pensei ao ver Tânia foi que ela seria uma das três ou quatro únicas
mulheres no mundo (uma era La Vreeland, a outra talvez Anjelica Huston?) perfeitamente
habilitadas a usar sombra verde nas pálpebras e calças justíssimas com estamparia de tigre. Ou
onça, não estou bem certo. Se você compreender isso e acrescentar inúmeros cigarros, olhos
brilhantes e voz grave falando inglês com estupendo accent russo, terá uma boa ideia do visual
de Tânia.
Foi nos anos 50 que Tânia Prigarina conheceu Lolita Torres em Moscou. Tânia ocupava
suas noites a copiar textos proibidos à luz de velas quando chegou a Moscou, pela primeira vez,
um sopro do charme fútil do Ocidente. Era Lolita Torres que, por razões misteriosas, não era
considerada capitalista ou nociva pelo Partidão. Nunca se falaram. Tânia era apenas plateia dos
shows onde Lolita dançava e cantava um repertório que incluía desde o fado português
“Coimbra” até a guarânia mexicana “Maria bonita”. Até hoje Tânia é capaz de repetir alguns
versos, com sotaque arrepiante. Que língua vigorosa o russo, meu Deus…
Pois durante uma das temporadas de Lolita em Moscou, e talvez ampliando o caminho
aberto por ela mesma, o governo russo resolveu realizar um grande festival de cinema ocidental.
Liz Taylor, Gregory Peck, Gina Lollobrigida, Kim Novak — uma chuva de estrelas despencou
sobre Moscou. Só que filmes americanos jamais tinham sido exibidos na Rússia, e portanto seus
superstars não significavam nada para o povo. Que na noite de abertura ignorou solenemente
Lollôs, Novaks e Elizabeths para jogar-se em cima da única estrela que conhecia e considerava
não só a maior de todas, mas a única: Lolita Torres. Nessa noite (talvez Tânia ou eu deliremos
um pouco neste trecho), conta-se que Lolita foi carregada em triunfo nos ombros do povo pelas
ruas de Moscou.
Então vêm as dúvidas. Tânia diz que Lolita era argentina. Mas como uma argentina
conseguiu furar a Cortina de Ferro dos anos 50? Não seria espanhola, ou até mesmo portuguesa?
E Tânia, pergunto, você está certa de que o nome era mesmo “Lolita”, e não “Conchita” ou algo
assim? Desde que voltei ao Brasil, tenho perguntado aqui e ali. Quando falo “Lolita Torres” as
pessoas fazem ah! e parece que já vão lembrar de tudo. Um segundo depois, não lembram de
nada. Ah, dizem também que Lolita fez um filme chamado Age of love, Tânia não lembra ao
certo. Quem lembra? E você, pense um pouco, tem certeza de que nunca ouviu falar em Lolita
Torres?

O Estado de S. Paulo, 26/6/1994


Apresentando
Álvaro Caldas, escritor

Recebi um pacote pequeno pelo correio. Dentro, um livro — Balé da utopia, de Álvaro Caldas
— e uma carta deliciosa do autor. Depois de sugerir que Lolita Torres talvez fosse uma agente
secreta, uma espiã dos tempos da Guerra Fria, Caldas lembra outra crônica minha, do início deste
ano, falando do desprestígio do escritor brasileiro e lançando modestíssima campanha: “Leia um
escritor brasileiro este ano”. Você já leu?, pergunto eu, e duvi-dê-o-dó do seu “sim”. Pois eu,
agora, já li.
Balé da utopia é um romance curtinho, cento e trinta e quatro páginas, mas tão densas e
bem trabalhadas que parecem trezentas. Foi publicado pela Editora Objetiva do Rio de Janeiro no
final de 1993, e traz duas apresentações respeitáveis — de um Ivo Barbieri, professor de
literatura da Uerj, e de João Antonio, o maravilhoso e esquecido autor de Malagueta, Perus e
Bacanaço. O autor Álvaro Caldas é um goiano de cinquenta e três anos, radicado no Rio,
jornalista com passagem por meia imprensa brasileira e autor de outro livro publicado no início
dos anos 80 — Tirando o capuz, “memórias da guerrilha urbana”. E foi essa informação que me
deixou aterrorizado e cheio de preconceitos fatais, irracionais: ah não, literatura poncho & conga
de novo, não, lá vem clichê anos 70, caipirinha, molotov e pau de arara: não sou obrigado!
Ficamos todos muito traumatizados por certo tipo de literatura oportunista abundante nos 70,
quando o principal crédito dos autores era “eles foram torturados”…
A gente se engana, às vezes. E Balé da utopia me surpreendeu. Sim, trata-se mesmo de
uma situação política clichê dos tempos da ditadura: num pequeno apartamento quarto e sala, no
Rio, convivem três militantes — Cristiana, o guerrilheiro urbano Santiago e um bailarino sem
nome, proibido de tirar o capuz. O que fazer com uma situação dessas? Já nas primeiras páginas
o autor explode nossos preconceitos — ele não parte, como poderia dizer Nelson Rodrigues, para
o “cretinismo da objetividade”; parte sim, e decidido, para a poesia. O apartamento é chamado de
“cabine”, como a cabine de um trem viajando em zona contaminada; o bailarino tem uma
obsessão por Nijinsky e Stravinsky, o que o faz contar histórias um pouco como aquelas de O
beijo da mulher-aranha, e aos poucos arma-se uma teia mágica, sensual, enfeitiçante. A grande
ousadia de Álvaro Caldas é ter optado pelo simbólico para uma narrativa que poderia ser
estupidamente realista. E com recursos literários para isso — linguagem trabalhadíssima e uma
agilidade técnica que, sem que o leitor perceba exatamente onde aconteceu o “truque”, o faz
transitar da primeira para a terceira pessoas, do passado para o presente, do imaginário para o
real. Com a suavidade de um bailarino e a precisão de um coreógrafo das palavras.
Balé da utopia é um romance belo, vigoroso e delicado ao mesmo tempo, percorrido por
um fio de erotismo sutilíssimo que pulsa e cresce até o orgasmo final. Nem amargo, nem
nostálgico: um romance que se atreve a terminar com um orgasmo é pura vitalidade. E tem
aquela outra qualidade das boas ficções: você às vezes o visualiza como uma peça teatral, outras
como um filme, uma coreografia. O autor brinca com gêneros, referências, ritmos e linguagens
— e por sobre todas essas habilidades paira a criação de um inesquecível personagem feminino,
Cristiana.
Não conheço Álvaro Caldas, nem sei como seu livro foi recebido na época do lançamento.
Talvez eu não estivesse no Brasil, mas não lembro de ter lido ou ouvido falar nada a respeito.
Bem, por enquanto esse é meu próprio livro brasileiro para 94. E o seu? Procure, insista. Claro,
nas livrarias vão dizer quem, o quê, não, nunca ouvi falar. Mas ah, insista sim. Álvaro Caldas é
um desses escritores, raríssimos, que ajudam a compreender melhor o Brasil. Se é que isso é
possível.

O Estado de S. Paulo, 10/7/1994


Lolita, Lisboa y
otras cositas más

Às vezes recebo cartas de leitores, mas nunca posso responder. O espaço da coluna é exíguo e
seria impossível responder a todas diretamente. Duas de minhas últimas crônicas (sobre Portugal
e sobre Lolita Torres) motivaram tantas cartas, faxes e telefonemas que me sinto na obrigação de
dar uma satisfação aos leitores. O que não me impede de falar em otras cositas más. Ou boas.
Vamos lá, por tópicos:
Lolita — Para alegria geral, comunico que Lolita Torres — a cantora que furou a Cortina de Ferro
para encantar Moscou nos anos 50 — realmente existe. Lolita é argentina, começou nos anos 50
cantando e dançando música espanhola, informa Letícia Esteves. Vive atualmente na Argentina,
ainda canta, tem entre sessenta e cinco e setenta anos. Guilhermo Cardozo se propõe a enviar a
crônica para Lolita e Jorge Abraham Jachuk, dois eleitores muito gentis, sugere escrever a algum
jornal ou revista argentinos para mais informações. Não é preciso. Para mim, basta saber que
Lolita passa bem e toda essa trama de filme noir confirma algo simples, fundamental para ir em
frente: senhores, a vida é fascinante!
Lisboa — Assunto bem menos fascinante. Visitando Portugal pela primeira vez em maio último,
fui violentamente discriminado por ser brasileiro. Escrevi uma crônica ofendida, lamurienta, me
declarando lusófobo. Várias cartas iradas. Desde uma leitora insinuando que eu “não-estava-
bem-&-quando-a-gente-não-está-bem-atrai-coisas-más”, passando por outro que envia uma lista
de maravilhas como o Algarve etc. (quem paga minha passagem?), um furioso porque fui de
ônibus, até um cônsul do interior do Estado me espinafrando por citar Miguel “Lorga”, e não
Torga. Esse senhor nunca ouviu falar em erro de revisão? Mais: minha tradutora francesa, Claire
Cayron, é a mesma do grande Miguel TORGA, de quem conheço toda a obra. Para os outros,
nada a dizer. Há um fato claro, duro, feio: fui discriminado em Lisboa apenas por ser brasileiro.
E discriminação (social, sexual, econômica, racial etc.), meus caros, é coisa que não admito.
Cheira a neonazismo, Berlusconi, Jirinovski. E o cheiro de neonazismo que empesta o planeta
me deixa doente. No pasarán!
Novela — Vocês já viram Éramos Seis, no SBT? Comecei curingando minhas amigas Jussara
Freire (linda!) e Luciene Adami (deus!) e acabei cativo. Belíssima. A antinovela global —
singela, delicada, sem nenhum artifício para atrair o público. Suas armas são a extrema
humanidade e o retrato arquetípico que traça da família brasileira. Direção, reconstituição
impecáveis. E atores idem, liderados pela soberba Irene Ravache, a nossa Jeanne Moreau.
Experiente, faz bem à alma.
Gênio — Morreu Sérgio Sampaio, há cerca de um mês. De cirrose, na Bahia, com pouco mais de
quarenta anos. Nos jornais não saiu uma linha. Para quem não lembra, o cantor e compositor era
o autor de “Eu quero botar meu bloco na rua”, grande sucesso nos anos 80. Sérgio era um pós-
tropicalista, uma espécie de elo entre Mutantes, Tom Zé e o que de melhor veio depois —
Cazuza, Lobão, Angela Rô Rô, Raul Seixas, que ele adorava, todos sofreram sua influência.
Gravou três ou quatro LPs malditos, era rebelde demais para sujeitar-se à caretice das
gravadoras. Era de Cachoeiro do Itapemirim, fomos amigos em noitadas inesquecíveis no Baixo
Leblon. Como Torquato Neto, é uma figura perfeita para ser ressuscitada, mitificada e, claro,
vendida. No além, Sérgio vai rolar de rir…
Brasil — Posso estar enganado, mas o tetra, o real e não sei que mais deixaram uma alegria maior
no céu do Brasil. Sinto no ar mais esperança, nova energia. Estamos todos tão exaustos de
corrupção, miséria, violência, desemprego. Claro, é preciso controlar a festa histérica, eufórica
— mas esses pores do sol púrpura, dourado e roxo que toda tarde vejo deste décimo segundo
andar me enchem de fé. Palavra sagrada: Axé!

O Estado de S. Paulo, 24/7/1994


Na trilha dos
mistérios de Clarice

No último dia 25 de junho o Caderno 2 publicou uma carta de Clarice Lispector que chegara
misteriosamente às minhas mãos (a amiga de uma amiga encontrara entre velhos guardados),
aparentemente inédita. Na maior boa fé — porque a carta era linda e, por sua sabedoria, poderia
fazer bem a muita gente —, encaminhei-a para o jornal.
Não era bem assim. Do Rio, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna telefonou informando
que a carta fora escrita por Clarice à sua irmã Tânia. Affonso tem uma cópia guardada. Mais
tarde, a mesma carta (ou trechos dela) foi incluída em Esboço para um possível retrato, uma
espécie de pequena biografia poética escrita por Olga Borelli, grande amiga da escritora nos seus
últimos anos de vida. Procurei o livro em várias livrarias para confirmar — está completamente
esgotado.
Mas entre telefonemas e informações desencontradas, fui recolhendo algumas
informações. Uma ótima: a Editora Ática deve publicar logo uma biografia escrita pela
professora Nadja Gotlib, depois de vários anos de pesquisa. Outra nem tanto: segundo Affonso
Romano, Tânia, uma das irmãs de Clarice — a outra, Elisa, é também escritora, autora do
romance O muro de pedras, entre outros —, guarda até hoje grande parte da correspondência,
mas não quer cedê-la para publicação de jeito nenhum.
A verdade é que Clarice, que viveu muitos anos no exterior, acompanhando o marido
diplomata, era uma grande missivista. Lygia Fagundes Telles me informa que havia muitas cartas
dela para Érico Veríssimo, outro também chegado num bom correios & telégrafos, naqueles
velhos tempos sem fax. E há uma história famosa sobre Lúcio Cardoso, por quem Clarice teve
uma grande paixão. Dois ou três dias depois de receber os originais de um romance escrito por
ela na Suíça, Lúcio recebeu um telegrama (cito de memória) dizendo algo como: “Favor não
considerar vírgula na linha X da página V PT Abraços Clarice”.
A verdade também é que Clarice era deliberadamente misteriosa. Apagava rastros, diluía
pistas. Ninguém sabe ao certo o ano de seu nascimento, na Ucrânia. Ela sempre disfarçava,
mudava de assunto, confundia. Era uma grande recicladora dos próprios textos. Nos anos 60 e
70, quando foi cronista do Jornal do Brasil, volta e meia republicava trechos de algum conto ou
romance como crônica, com outro título. Alguns dos capítulos de Uma aprendizagem ou o livro
dos prazeres foram publicados primeiro na coluna do JB e, mais tarde, também, em A descoberta
do mundo, a coletânea completa de seus escritos dispersos (inclusive, imaginem, entrevistas que
ela fez para a revista Manchete). Há quem diga que ela às vezes enviava a mesma carta para
várias pessoas…
Quem conheceu Clarice sabe: ela não era mesmo muito deste mundo. Até hoje lembro de
um encontro que tivemos em Porto Alegre, em 1975. Ela — que quase não falava, fumava muito
e suportava pouco as pessoas — me convidou para um café na rua da Praia. Fomos. Silêncio
denso, lispectoriano. No balcão do bar, por trás da fumaça do cigarro e com aquele sotaque
estranhíssimo, de repente ela perguntou: “Como é mesmo o nome desta cidade?”. E estava em
Porto Alegre havia três dias…
Na obra, na vida, foram muitas as lendas e mistérios deixados por Clarice Lispector. Hoje,
seus livros são cultuadíssimos na Europa. Seu tradutor inglês, Giovanni Pontiero, da
Universidade de Manchester, certa vez me disse que tinha certeza de que, se ela não vivesse no
Brasil, teria ganho o Nobel. Sofreu demais aqui. Lembro até hoje da crítica decretando seu fim
quando saiu A hora da estrela. Fim? Bem, passaram-se dezessete anos desde a sua morte, e
continuamos a falar nela. E, sinceramente, se fico encabulado com a história confusa da carta,
fico contente por poder trazê-la um pouco de volta.

O Estado de S. Paulo, 7/8/1994


Delírio eleitoral
à beira do ridículo

Porto Alegre — O.k., vamos mudar de assunto. A vida é sempre o mais importante. E o mais
importante justamente hoje, às vésperas da eleição — mesmo que o papa se mate ou um óvni
atropele a Casa Branca —, é esse luxo da democracia: vamos todos votar amanhã.
Todos, não. Alguns sentirão preguiça, outros estarão doentes, outros dementes, outros em
trânsito. Faço parte destes últimos. Pegarei todos aqueles papéis e carimbos no correio do
Menino Deus para enviar a nunca sei exatamente quem, nem quando, nem onde em São Paulo.
Estivesse lá (ou aí), com alegria, orgulho e confiança votaria na honestíssima Luiza Erundina e
também em Marta Suplicy. Os outros, pensaria bem, talvez até me submetesse a uma hora de
tortura televisiva assistindo ao HEG (não, não se trata de um novo vírus: é o Horário Eleitoral
Gratuito) para escolher certo. Ai, meu Deus, o certo e o errado, e Brasília depois, o poder
subindo à cabeça, corrupção, loterias, e os do-bem virando do-mal e os do-mal ficando cada vez
mais do-mal, porque nunca que eu saiba aconteceu de um político do-mal virar do-bem…
Nos últimos dias, ocupado em catar poluidores santinhos eleitoreiros jogados na grama
recém-cortada do jardim de meu pai, comecei a pensar em algo terrível. Tão terrível que
disfarçava, ia tomar um café, andar de bicicleta, ler mais algumas páginas de O homem da mão
seca, de Adélia Prado. Só para não pensar naquilo. Assumi o pensamento quando vi Eliakin &
Leila no SBT revelando que o mesmo temor atacou também Caetano Veloso, injuriado porque
Enéas Carneiro ultrapassou Brizola nas pesquisas. Mais seguro, revelo a vocês aqui e agora o
meu maior e mais ridículo medo pré-eleitoral — e se… o Enéas ganhar?
(Pausa longa. A princípio incrédula. Depois, paranoica).
Décadas atrás, o povo chegou a eleger o rinoceronte Cacareco (lembro da marchinha de
carnaval: “eu-encontrei-o-Cacareco-tomando-chope-com-salsicha-e-rabanada”); houve também
um certo macaco Tião. Houve até — credo em cruz! — Fernando Collor. Por que não Enéas
Carneiro? Assim, de sarro. Ou de amargura, porque depois de tanta bobagem, feiura, denúncias,
golpes, cinismos, arrivismo, falsidade (alô, alô, FHC!), o eleitor poderia muito bem se decidir
por aquela opinião que De Gaulle tinha sobre o Brasil — a célebre c’est pas un pays serieux.
Oswald de Andrade, ou seu espírito, adoraria. Chacrinha talvez reencarnasse para ser, digamos,
ministro da Fazenda. E Mazzaropi ou Oscarito para a Saúde, que tal? Uau, enfim uma República
Palhaça! Assumida, descarada.
Piada? Espero mesmo que não passe disso. Seria perigoso demais, pois, por trás da
imbecilidade aparente, Enéas parece tão fascista quanto o porco Berlusconi. Sei o que digo. Eu o
conheci no final de 1990, no Aeroanta, quando Grace Giannoukas, Ângela Dip e Marcelo
Mansfield (na época, o grupo Harpias & Ogros) ofereceram a ele um dos troféus “Crème de la
Crème”. Encarregado por Martha Góes de fazer a cobertura para este mesmo Caderno 2, dividi
uma mesa com a poeta Ledusha, a atriz Maria de Moraes e, voilà, o tal Enéas. Este, levando a
sério o puro deboche. Constrangedor. E me pergunto, será tão patética assim a desilusão do povo
brasileiro a ponto de cometer esse absurdo? Razões não faltam, sei. Eu mesmo endureci tanto
após o affair Ibsen Pinheiro…
Peço então en-ca-re-ci-da-men-te: amanhã, votem em quem quiserem, mas NUNCA em
Enéas. A comédia pode virar tragédia, gente. Já pensou, quatro anos de meu-nome-é-etc.,
perseguição às minorias e defesa da célula-mater? Posto isso, parto para Frankfurt dia 4. Terei
que ler em alguma língua estrangeira sobre o que rolou por aqui. Caso essas minhas torpes
fantasias se realizem, juro que nem volto: vou direto morar em Saravejo. Anyway, da estrada
mando notícias. E juízo amanhã, hein?

Estado de S. Paulo, 2/10/1994


Os onze sexos
de um anjo terapeuta

Carinho, com letra maiúscula, é uma das coisas que faltam no mercado

Você já ouviu falar em terceiro sexo? Claro que sim, eu também. E em décimo primeiro sexo?
Garanto que não, e eu também não. Pelo menos até ler o livro do dr. Ronaldo Pamplona da Costa
— Os onze sexos, publicado pela Editora Gente. Ou será Gente Editorial? Agora me escapa o
nome correto, mas li as provas antes de viajar e ponho minha mão no fogo por esse livro e por
seu autor, alguém muito especial.
A maioria das pessoas está acostumada (condicionada? manipulada?) a lidar com a ideia de
apenas dois sexos — masculino e feminino — ou dois tipos de sexualidade. Os mais abertos
admitem a existência de um terceiro, que englobaria confusamente todas as variantes não oficiais
nem pertencentes àqueles dois estabelecidos. Com muita objetividade e simplicidade, Ronaldo
propõe nada menos que onze variantes. Como assim? Eu também, a princípio, me espantei. Mas
é tudo muito lógico.
Veja só: 1) heterossexual; 2) bissexual; 3) homossexual; 4) travesti; 5) transexual. Só aí
cinco possibilidades. Pense então nelas nas versões masculina e feminina. O.k., serão dez. E a
décima primeira? Segundo Ronaldo, seriam os hermafroditas. Onze sexos, confere?
Com que autoridade o autor afirma isso? Bem, Ronaldo é psiquiatra, psicanalista,
terapeuta, psicodramatista com, calculo, mais de vinte anos de experiência com indivíduos,
grupos, casais e quem o procurar. Fora os créditos profissionais e o imenso e valiosíssimo
conhecimento do humano adquirido nesses anos todos, Ronaldo tem uma qualidade rara no seu
ramo: ele se individualiza para os pacientes. Não faz a Esfinge Enigmática consagrada pelo
modelão freudiano: Ronaldo sorri e conta histórias da sua ou de outras vidas, com um jeito
tranquilizador de deixar sempre no ar que nada do que é humano lhe é estranho.
Posto isso, percebo que é mais do autor que do livro (uma delícia não ortodoxa, recheada
de solidariedade) que quero falar aqui. Por que não? Conheço Ronaldo há pelo menos uns quinze
anos. No começo, eu fazia grupo com um terapeuta da mesma clínica. Mas na sala de espera
observava com certa inveja os clientes daquele outro terapeuta de cabelos compridos e túnicas
indianas. Eram diferentes, mais leves e livres, sem aquele ar terrivelmente sério de quem tem
confissões medonhas a fazer.
Parei com aquele grupo, passei por outras experiências. Algumas marcantes, como um
workshop liderado pela maravilhosa Rachel Rosenberg, num sítio em Pirassununga, interior de
São Paulo; outras absurdas, como as sessões lacanianas com Betty Milan. Sassariquei por
junguianos, pavlovianos, reichianos, rogerianos e nem lembro mais o quê — era o meu jeito de
fingir que estava me tratando, talvez, quando estava apenas me atordoando.
Até que um dia, seguindo indicação de mais um terapeuta, encontrei Ronaldo. Surpresa:
era aquele mesmo, o de cabelos compridos e túnicas indianas, só que agora de cabelos curtos,
jeans e camiseta. Então parei de me atordoar. E comecei a me tratar de verdade.
Entre altas provisórias, grupos e individuais, intervalos, viagens e voltas para, digamos,
“apertar parafusos”, Ronaldo cuida de mim há cerca de dez anos. Não temos mais aquela relação
severa médico-paciente, temos coisa muito melhor, mais preciosa: somos amigos.
Durante minha temporada no hospital, lembro de cada uma de suas abençoadas visitas,
quase todas as manhãs do mês de agosto. Chorei um pouco no colo dele, mas ri muito mais com
suas histórias de querubim safado e sempre pronto a, além de cuidados médicos, dar essa outra
coisa em falta no mercado — Carinho, chama-se, com maiúscula. Tenho certeza de que, depois
dele, me tornei uma pessoa melhor, mais feliz, menos culpada. E aposto que isso também vai
acontecer com você se ler o livro dele. Que, como o próprio, não é caro nem clínico, mas
reconfortante. Caloroso feito um abraço.

O Estado de S. Paulo, 30/10/1994


Para Rita Lee,
com amor e irritação

Pudesse, ia te dar palmadas no bumbum

Rita, olha, não se espante nem se injurie com esta carta. Você sabe muitíssimo bem que o meu
amor por você é público e notório, tanto que há dois anos, quando retomei esta coluna, minha
primeira crônica foi uma espécie de miniode a você e seu último disco, lembra? Você até me
mandou um fax, convidando para uma tarde de wine and roses. E eu morri de timidez e bobeira e
não fui até hoje. Haverá tempo?
Mas olha só, ando preocupado com você. Que que houve, Rita? Bem no dia do teu
aniversário, li nos jornais que você teria sido internada para lavagem estomacal, depois de uma
overdose de Lexotan. Tudo meio misterioso, a família não queria dar declarações, só garantia
que você estava bem. Telefonei ao Bivar e à Vânia, as pessoas mais chegadas a você que
conheço, mas uma estava na Bahia, o outro imagino que em Ribeirão Preto. Então rezei, acendi
vela, incenso, joguei rosa branca no mar no réveillon de Oxalá, pedindo por todos nós e por você
especialmente. Mas até hoje não sei direito o que houve.
Fico pensando: acidente ou tentativa de suicídio. E não pode, nenhum dos dois. Imagino
que você saiba que suicídio é o pior crime que alguém pode cometer, violação cármica braba e
burra, porque depois reencarna com todo o bode anterior pra pagar, ainda mais o suicídio.
Acidente também não pode, Rita, já bastou a Elis. Não tem que tomar Lexotan, é do mal, esses
downers todos matam neurônios, deixam a gente meio tantã no dia seguinte. Quando você estiver
a fim de se jogar pela janela, toma chá de mulungu, maracujá, capim cidró. Senta em lótus e fica
inspirando, expirando bem devagarinho. Além do mais, você há de concordar, overdose de
Lexotan é jequérrimo…
Outra coisa que me grila é ter sido justo na véspera do teu aniversário. Rita, a astrologia
esotérica diz que quem morre no dia do aniversário em plena conjunção Sol-Sol queimou todo o
carma, vai pra luz (foi assim com Ingrid Bergman), mas forçar a barra com suicídio não vale.
Deus não é engambelável feito criança que berra por uma coisa caríssima e você dá uma bala.
Rita, cá entre nós, você tá com medo de Cronos, o Tempo? Ó menina, mas ele acontece com
todos nós. E eu sonho sempre que, lá pelo réveillon de dois mil e tantos, pessoas como nós
vamos estar velhinhos sacudidérrimos, com bengalas enxutíssimas vindas de Paris, para tomar
champanhe e rir de tudo. Na verdade, eu tô mesmo é meio puto com você e a fim de te passar um
pito. Pudesse, na hora que soube do bode, pegava um jatinho e ia direto a Sampa te dar sonoras
palmadas no bumbum. Daquelas que doem de verdade.
Porque não pode você ficar mal, Rita. Você tem responsabilidades. Não falo nem de filhos,
trabalho, essas coisas. Falo de mim e de nós que te amamos tanto e pra quem você deu tantos
toques bons de vida nos últimos pelo menos, sei lá, quase trinta anos. Você tranquilizou a todas
as ovelhas negras das famílias, mandou a gente sentar no colo da mamãe natureza, disse que
queria mais saúde, nos mergulhou numa banheira de espuma no meio da cidade nua e agora fica
aí de frescura? Você tá apavorada com abrir o show de titia Jagger, é isso? Mas Rita, só você
pode mostrar pros Stones o que é que a gringa tem, você é nossa porta-voz junto às tias todas, a
nata jurássica! Não me falhe, não nos falhe, e principalmente não se falhe, compreende? Eu sei,
eu sei que dói às vezes sem remédio, e a gente também não é de ferro. Mas tem que ser, Rita.
Você não pode nos deixar agora, quando parece que tudo vai dar certo, compreende? A gente
fica muito fraco sem você. Por solidariedade, não pode você ficar mal, por consciência social,
por você mesma, enfim. Fique linda, fique feliz, arrase nos Stones e me perdoe o atrevimento.
Amor, saúde pra todos nós, axé.

O Estado de S. Paulo, 8/1/1995


Ney Matogrosso,
muito além do bustiê

Tê-lo entre nós nos deixa mais nítidos e felizes

De passagem por este Rio que eu amo, ganhei um presente raro: Ney Matogrosso no show
Estava escrito, os sucessos de Ângela Maria. Nos figurinos elegantérrimos de Ocimar Versolato,
o novo fashion darling, Matogrosso surge com o vigor e a beleza de uma viúva grega ou
portuguesa, dramatismo de Amália Rodrigues, Irene Papas, Edith Piaf. Luz divina, cenário
celestial (Billy Accioly), músicos perfeitos. Ney quase não se move. Nos telões, sua cara de
gavião etrusco é pura tragédia. Perdas, dores de amores impossíveis. Grego, sim. E tropical.
O público se remexe impaciente. Aplaude, mas assustado. Afinal, onde está o bustiê?
Depois de quase uma hora de punhais, Ney tira o paletó. Por baixo, naturalmente, o bustiê. Mas
preto. Com gargantilhas. Então baixa uma rumbeira. De meio-luto, verdade. Esse é o Ney que a
plateia conhece, e a festa fica garantida com o grand finale de “Babalu”.
Danço e choro, lembrando noitadas de Santo Daime com Vicente Pereira, Carlos Augusto
Strazzer (tantas, tantas perdas), Duse Nacaratti, Patrícia Travassos, Eduardo Dusek, Leiloca. O
tempo passou. Tantos se foram. Nós ainda não. Revejo Ney no enterro de Cazuza, todo de
branco, imóvel feito anjo de pedra junto aos dois metros de flores sobre o túmulo. O cemitério
foi esvaziando, todos se foram. Ele ficou. Abrindo o caminho da luz para o menino Agenor,
parecia um anjo.
E era. E é.
Beijando-o depois nos camarins, já “desmontado”, tive a confirmação do que suspeitava
havia muitos anos, desde que o conheço. Ney Matogrosso não é humano. Quero dizer, Ney
Matogrosso é humaníssimo, sim. Não, nada disso. Ney Matogrosso é um anjo encarnado, como
aqueles de Wim Wenders. Jamais o vi dizer uma palavra mais rude para alguém, nunca o vi fazer
ou dizer algo vulgar nem negar nada a ninguém. Penso: Ney apenas parece um anjo porque é um
grande artista, talvez o maior deste país, de energia só comparável à da entidade Maria Bethânia?
Ou os anjos se fingem, sonsos, tanto de esfinges quanto de mendigos para não dar bandeiras
perigosas à extensa do mal?
Eu não sei, Ney é mistério. Deve-se ouvi-lo sem deixar a razão interferir demais, senti-lo
tanto nas cadeiras quanto no espírito, feito onda morna e tropical que nos embala além da
arrebentação entre espumas e corais. Caribe e Tebas ao mesmo tempo, Star Trek e Maria
Antonieta Pons, Dalva de Oliveira e Antonio Banderas, confins do rio Araguaia e a Viena, de
Egon Schiele.
Ney foi o anjo enviado por Deus para que o brasileiro compreenda melhor sua louca
identidade de homem-mulher unidos num só: pássaro e tigre, cobra e borboleta, miséria e
esplendor. Muito além do bustiê, Ney Matogrosso parece uma tese de mestrado ao vivo sobre a
ambiguidade deste país. Tê-lo entre nós nos deixa mais nítidos e mais felizes também, pois a
clareza dele é bela e como ele é nós, épico e arquetípico, nos tornamos belos através dele e muito
mais livres e muito mais nobres. Rosa de Hiroshima soropositiva, seria radioativa, something
between Greta Garbo, Rodolfo Valentino e Antígona: saúde!
Depois do show, abraçado por disparidades como Benedita da Silva e Cláudia Abreu,
Fábio Assunção e Antonio Pitanga, seus olhos úmidos diziam obrigado. Suavemente, sem
esconder as tantas perdas. Tão verdadeiro e tão singelo é Ney Matogrosso que ao chegar perto
dele qualquer um desce do altar. Não arrogante, mas rei. Não pretensioso, mas luminoso. A seus
pés, brilhamos todos iluminados pela grandeza de sermos humanos como ele. Pois Ney
Matogrosso, repito, foi o anjo escolhido pelo senhor para cantar estes Brasis de rumba, samba-
canção, matas, cachoeiras, araras, cariris e chimarrões. Axé, chê!
Como a G.H. de Clarice, eu não entendo o que digo. Então adoro.

O Estado de S. Paulo, 3/2/1995


Feliz em conhecê-la,
Natália Lage

Chama-se Natália, essa garota. Como heroína de romance russo ou uma tia-avó que nem
conheci, famosa pela solidão (morreu solteirona), independência (vivia num hotel), aristocracia
(odiava gentalha) e bom-gosto (costureira requintadíssima) e, curiosa, como a própria filha que
não tive e sempre pensei chamar de Clara, Luz ou, justamente, Natália.
Tem dezesseis anos. Feitas as contas, poderia ser minha neta, posto que sou trinta anos
mais velho. Supondo que eu tivesse tido um filho aos quinze, e esse filho tivesse tido um filho
também aos quinze — esse último filho ou filha, neto ou neta, poderia ser Natália. Por escolha,
não tive nenhum. Os dois possíveis, em comum acordo com suas mães, foram abortados. Coisa
de que me arrependo até hoje, ainda que não soubesse o que fazer a esta altura do safári com um
rapaz ou moça de dezenove anos e outro ou outra de treze.
Penso muito nesses filhos que não deixamos que vivessem. Rezo por eles, peço-lhes
sempre um perdão desesperançado, amargo, desconfiado de que o crime cometido será para
sempre imperdoável. Mas como Deus, embora aja, arranja jeitos tortuosos de compensar, volta e
meia cruzo com alguém que poderia ser um daqueles filhos.
Natália é desses. Pele branca de porcelana, cabelos lisos quase louros, silhueta barroca,
parece uma inglesinha do século passado. Não é difícil imaginá-la envolta em rendas, com
chapéu e luvas, um livro ou bordado nas mãos. Fala pouco, quase nada. Mas olha muito, o fundo.
Séria, não fica jogando carinho fora (é de Escorpião), mas de vez em quando pega na sua mão ou
te dá um abraço apertado sem avisar. Súbito e verdadeiro, o gesto de Natália nunca é social,
estudado ou sedutor; toca em você respirando suave, sem nada pedir, sem carências. Como quem
diz qualquer coisa tipo “que bom, navegamos juntos”.
Até dez dias atrás eu só conhecia Natália da TV: ela foi a filha ao mesmo tempo de Vera
Fischer e de Silvia Pfeifer (e de Mário Gomes) numa telenovela cujo nome não lembro, depois a
riponga Adrenalina de Tropicaliente. Por amigos, certo dia soube que Natália gostava dos meus
livros. Mas ela é tão jovem, pensei, e esses teens (argh!) não leem nada, pensei assim com
preconceito burro.
Fim do ano passado me procurou Marta Lage, mãe de Natália, queria produzir um
espetáculo teatral com meus contos. Natália, imaginem, não tinha coragem de falar comigo. Pura
intuição do bem, autorizei na hora.
Juntaram-se ao elenco Candé Horácio (dezenove), Suzana Pires (dezoito), Henrique Farias
(vinte) e Maurício Branco (vinte e cinco), todos eles filhos-não-tidos. Gilberto Gawronski
começou a dirigi-los. Surgiu o título de um dos contos — À beira do mar aberto, a ideia justa
desse mar imenso da vida aos pés dos muito jovens, tão jovens que mal começaram a navegar.
Terá sereia nesse mar? E ilha e tubarão, terá? Piratas, tesouros, naufrágios, calmarias,
tempestades, recifes, corais, escorbutos, banzo e nácar? Oh Deus, tende piedade dos moços: só
navegando em tuas águas pra descobrir tanto horror e maravilha.
Então vim ao Rio, e com uma equipe de dezessete lindas pessoas fomos a Fortaleza estrear.
Conheci Natália. Durante a viagem, enquanto os outros se agitavam excitados, ela leu todo O
marinheiro de Fernando Pessoa num bar, a vi sair discretamente para caminhar de mãos dadas
com um menino mendigo. De vez em quando, numa mesa cheia, baixa a cabeça e escreve,
escreve, escreve. É uma atriz. Tão menina, e de vez em quando umas entonações sabidas de
balzaquiana, ironias de diva, charme de gatinha. Estranha densidade. Aura, magnetismo: talento.
Voltei, eles ficaram. Vão a Natal, João Pessoa, Salvador, Ilhéus, depois para o Sul. Eu
trouxe Natália no meu coração assustado, feito flor rara. Desde que a conheci, aqueles filhos que
não tive me doem bem menos. Que é da natureza da dor parar de doer, tenho aprendido.

O Estado de S. Paulo, 5/2/1995


Reza forte para um
egum maldespachado

Recebo lindas cartas dos leitores desta coluna. Cada “lote” que a Margarete manda do Caderno 2
em São Paulo traz notícias de amigos perdidos há tempos (Harumi Ishiahae, a mais bela das
japas; Raquel Salgado, jamais esquecerei nossa viagem de moto para Trindade; Ludovico da
Silva, talentoso e inédito escritor de Piracicaba, ex-aluno meu numa oficina iniciada pelo Ignácio
de Loyola) e também de gente que nem conheço. Quer dizer, nunca vi o rosto, mas isso não
significa que não conheça, certo? Como Maria Ester Fernandes, que me envia de Paris fotos
daquela casa no Quai de Bourbon, onde para sempre enlouqueceu Camille Claudel, e tantos mais
que, fosse contar suas gentilezas, teria mais material que a Xerazade nas suas mil e uma noites.
Vou tentando responder então pelas próprias crônicas. O tempo é curto, energia
milimetrada. E hoje fico até encabulado de tocar num assunto extremamente pessoal para pedir
ajuda a esses amigos e a outros que nem suponho. A história é longa, feia, triste e, ao que parece,
também sem remédio.
Há cinco ou seis anos, selecionando — pela qualidade do texto — os participantes de uma
oficina de criação de contos em São Paulo, recusei — pela absoluta mediocridade — os textos de
uma moça. Ela insistiu. Além de má escritora, parecia também mau-caráter. E louca, louca do
mal, porque há poucos e loucos, inclusive os geniais e os que não fazem mal a ninguém. Ela
costumava invadir as aulas aos gritos e, desde então, me persegue feito um egum (espírito sem
luz no candomblé) maldespachado. Me seguia pelas ruas, metrôs e ônibus quando eu ainda vivia
em São Paulo, descobria os lugares aonde eu gostava de ir. Parei de ir.
Mas o pior eram os telefonemas. Bêbada ou drogada, ou os dois, ligava de bares (copos e
gritos ao fundo) às quatro, cinco da manhã. Eu levava sustos terríveis imaginando doenças e
acidentes medonhos com parentes, com amigos. Para poder dormir, comecei a deixar a secretária
ligada. Certa vez deixou gravada uma oração de magia negra. Assim também é demais, pensei, e
pedi ajuda ao meu amigo Paulo Coelho.
Não sei que reza braba Paulo (que é dos bons) fez, mas o fato é que ela parou no mesmo
dia. Durante uns três meses. Depois voltou. Até hoje. Eu já tentei de tudo, da mansidão à fúria,
da argumentação lógica às ameaças. Processo, polícia. Nada, o egum não desencarna.
Em agosto último, no dia em que recuperei a consciência no hospital, ela foi a primeira a
invadir o quarto. Pedi às enfermeiras que avisassem aos seguranças. Na casa Mário de Andrade,
onde eu dava aulas, a escritora Anna Maria Martins e a brava Mariclaire Brant também tiveram
que pedir ajuda para impedi-la de entrar. Pois desde que vim para Porto Alegre ela descobriu o
telefone (psicopatas têm uma porção Sherlock Holmes forte) e liga, imaginem, a cobrar. Desligo
assim que entra a musiquinha. O que cria grandes problemas, pois sempre pode ser pessoa da
família viajando, ou alguém em dificuldades.
Além de vexames tipo eu xingar outro dia o diretor teatral Mario Diamante, cuja voz
confundi com a dela, ou minha mãe gritar com Cecília Nisemblat, minha bela amiga dos tempos
da faculdade.
Pois chama-se Maria Cecília Flosi, o monstro. Dizem que já esteve internada várias vezes,
dizem também que é filha de um homem importante. Descobri o telefone, liguei para ele, pedi
providências. Não foram tomadas. No momento em que escrevo, onze da manhã, ela já ligou três
vezes. O que quer? Pura obsessão, imagino. E lembro de O fã, aquele filme em que um maníaco
matava Lauren Bacall, ou de um conto de Milan Kundera. Mas isto que conto não é ficção, até
poupei vocês dos detalhes mais escabrosos.
Então peço: se alguém tem o desprazer de conhecer essa patética psicótica ou pessoa de
sua pobre família, por favor, me ajude. Para que eu possa continuar a trabalhar com a paz
possível nesta ilha onde travo minha solitária guerra pela saúde física e mental.

O Estado de S. Paulo, 19/2/1995


Vamos voltar a
falar em poesia?

Então tá. Passou eleição, Natal, Ano-Novo, Reis, praia, Carnaval (bela Bidu Sayão, hein?):
começamos agora outra vez. Diz que o povo em Brasília cantava nas ruas “Eu tinha medo do
HIV, agora tenho medo do FHC”. Pura maldade, tem Dona Ruth Maravilha por trás, não? Então
tá seguro, então já rolou, então vamos falar do que interessa.
E o que interessa? Toujours y always and sempre: po-e-si-a.
São três rapazes por volta dos trinta anos, dois paranaenses e um paulista que acabam de
conseguir a façanha inacreditável de publicar seus primeiros livros. Boas editoras, bons livros:
Solarium, de Rodrigo Garcia Lopes; LSD Nô, de Ademir Assunção, ambos da valorosa
Iluminuras de Samuel León, e Primeiro segundo, de Ricardo Lima, numa edição lindíssima da
Arte Pau-Brasil. Entre eles, em comum, além da geração (Rodrigo é de 62; Ademir de 61;
Ricardo, o mais jovem, de 66) e do talento incomum, certo universo, certas heranças. Aqui e ali,
pelos três, é possível recolher vestígios da geração beat, de Paulo Leminski, Ana Cristina César,
e uma visão de mundo marcada pela ironia em relação ao amor e às estruturas sociais.
Cada um faz isso de um jeito, e com múltiplas atividades. Rodrigo, o mais viajado (mestre
em Artes pela Arizona State University, com tese sobre William Burroughs), tem poemas
escritos em Creta, Veneza, Londres, Viena, Barcelona, é também tradutor dos difíceis poemas de
Sylvia Plath, publicados pela Iluminuras. Ademir, jornalista que passou aqui pela redação do
Caderno 2 lá por 87, sob o heterônimo de Pinduca, é letrista de músicos como Itamar
Assumpção e Edvaldo Santana, participou de exposições de poesia visual em Paris, Lisboa e
Sidney. Ricardo fez três anos de Geologia, que trocou por Comunicação, e guerrilhou anos em
oficinas culturais em Ribeirão Preto e, em São Paulo, na Assessoria de Cinema da Secretaria de
Cultura do Estado. Ou seja: alem de poetas, são três lutadores culturais.
Em Rodrigo e Ademir, às vezes certa atração pelo concretismo, pela visualidade: do
poema, versos em corpos diversos ou dispostos no branco de maneira não convencional. Ricardo
é diferente: através de uma epígrafe de Hilda Hilst — que com João Cabral e Adélia Prado
compõe o triângulo de nossos maiores poetas vivos — propõe de saída seu universo de puro
rigor. Poemas enxutos, exatos, sem título, essenciais a ponto de lembrar às vezes Antônio
Fernando de Franceschi ou Rubens Rodrigues Torres Filho, poetas marcantes da geração
anterior.
Pelos três livros, pequenas genialidades. E cada um atinge sua obra-prima: o budista
Ademir, em “Satori” (“sou apenas/ mais uma/ espécie de vida/ entre muitas/ viajando pelo
tempo/ que nunca existiu”); Rodrigo em “Morning glory”, dedicado a Ana Cristina César, musa
de todos nós (“olha/ é outono/ em tudo/ (lá fora e agora-)/ quando um rosto (é tudo-)/ que resta
na memória”); Ricardo mais de uma vez, talvez principalmente neste poema com sabor
gullartiano: “pessoas se perdem/ vizinhos mudam da infância/ amigos somem de tempos em
pentes./ Família morre/ amor passa/ cidades partem/ as tardes/ não as recebo mais”.
Publicados entre final do ano passado e início deste, não lembro de ter lido nenhuma
resenha ou sequer notas pelas raríssimas páginas literárias dos jornais. E olha que sou atento…
Onde andarão os críticos d’antanho? Será que, como Dulce Veiga, também querem “outra
coisa”? Pois essa outra-coisa palpita nestes livros de uma geração de jovens-nem-tão-jovens,
muito além dos shopping centers e videoclipes e clubbers da vida, cheios de cultura, vigor,
brilho. Quando voltarem a me encher o saco perguntando por-que-a-poesia-brasileira-está
estagnada, esfrego estes livros nas fuças dos desinformados. E quanto a vocês, o que estão
fazendo aí parados lendo esta crônica? Corram já para as livrarias.

O Estado de S. Paulo, 5/3/1995


Betty Crawford, Ph.D.
em Najice Comparada

Este domingo não tem Caio F. Acossado pela psicopata telefônica (não, ela não parou); pelo
processo movido pelo senhor Meu Nome É Enéas, graças à crônica aqui mesmo publicada; pela
grosseira pirataria cometida pela Geração Editorial, que incluiu um texto dele no livro Viagem
Inteligente sem autorização ou contrato, e nem responde a cartas — esta semana, exausto e aos
gritos de “Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece!”, nosso colaborador recolheu-se
a um spa zen em Macapá para tratamento à base de ayhuasca, Maracujina e Lexotan. Em seu
lugar, com vocês, sua estonteante interina.
Meu nome é Betty Crawford, dupla homenagem a duas deusas do cinema prestada por meu
bravo pai, e vou começar de sola colocando alguns pingos nos is. Primeiro, sou Ph.D. em Najice
Comparada, portanto não esperem ter de mim angélicas delicadezas, metafísicas divagações ou
poéticos delíquios. Meu negócio é Dallas, uma rajada de balas — ou seja, Brasil 95.
Segundo, a escolha de meu nome para substituí-lo foi do próprio Caio F., imediatamente
aprovada pelo querido Antônio Bivar, meu padrinho de formatura, o.k.? Então apertem os cintos,
leitores, que hoje vamos ter uma coluna agitada…
E agora falem pra tia: vocês já se deram conta de que estamos em plena era Dona Ruth?
Pois deem-se, e urgente, pois isso impõe novas éticas, estética, moral, comportamento etc.
Depois de Rosane Collor, e sem levar em conta Lilian Ramos, June Drummond e muito menos
Norma Bengell, como evoluiu este pobre país em apenas quatro anos! Um salto não só
geográfico, mas qualitativo também. De Pajuçara ao Quartier Latin, de boizinho de cerâmica a
Camille Claudel, de livro de cordel à tese de mestrado na Sorbonne, os tempos mudaram. Jamais
esqueçam de quanto nos fez sofrer Fernanda I, a do Mal, e de quantas renovadas esperanças traz-
nos agora a ascensão de Fernanda II, a do Bem, exclamação!
Pois nesta nova dinastia, certas bagaceirices tornaram-se mais que intoleráveis. Seja qual
for o tema em pauta, antes de opinar, pensem em Dona Ruth — ela aprovaria? Por exemplo,
Romário, a pior imagem que o macho brasileiro poderia ter — ah, bons tempos de Nelson
Sardelli, aquele bofe da Jayne Mansfield, Bob Zagury e BB, Paulo Pilla e Rachel Welch, Tarso
de Castro e Candice Bergen! Imaginem o pônei Romário tomando um chá com Dona Ruth.
De que falariam? Chuteiras, meniscos talvez? Se pelo menos fosse o Raí, que deve
arranhar o seu francesinho (no sentido linguístico, suas najas!), ou o Renato Gaúcho (com este,
aliás, a última coisa que uma mulher sensata pensaria em fazer seria conversar). Em respeito a
Dona Ruth, a primeira-dama mais culta e chique que já tivemos em toda a história (sorry, Dona
Sarah), precisamos reagir contra os destroços morais herdados dos negros tempos de Fernanda, a
Má. Esqueçam Miami, queridos, et vive la France!
Me digam: uma revista como Fuças, digo, Caras, você consegue mentalizar Dona Ruth
folheando, mesmo na sala de espera do psicanalista? E a ilha de Caras, vocês acham que Dona
Ruth passaria um fim de semana lá? Se pelo menos fosse um estúdio na USP, perceberam a
técnica de raciocínio Brasil-contemporâneo?
Mas o mais inadmissível de tudo é essa paraguaia Veronica Castiñeira, que faz a Lillian
Ramos parecer um anjo de pureza. Me digam, o Brasil precisa importar pistoleiras, ainda por
cima do Paraguai? Ah, bons tempos de Coccinelle… E domadores de leão? Se pelo menos fosse
um estruturalistazinho…
Mas mal comecei a desenvolver minha tese e o espaço acabou. O que quero dizer,
queridos, é simples: esqueçam sim o parâmetro Miami, mas pelo amor de Deus não se voltem
para o modelão Assumpción. Bem sei quanto a gentalha deve estar atemorizada com as
mudanças trazidas por Dona Ruth, mas façam um esforcinho estético pelo amor de Roland
Barthes. Mais processos, please, para a redação. Beijos, Betty C.

O Estado de S. Paulo, 19/3/1995


De volta ao avesso
do avesso do avesso

A Paulista é sempre comovente à noite

Numa rasante de dois dias e uma noite sobre São Paulo — não, não ficou mágoa dessa relação.
Como esses casais que vivem brigando durante anos e depois, ao separar, percebem que deviam
ter feito isso antes, pois se afastarem era a única maneira de continuarem amigos, da mesma
maneira olhei o largo do Arouche e a cidade em volta, do décimo terceiro andar do Hotel San
Raphael. Sem saudade nem vontade de voltar, mas feliz ao perceber que na “cidade em
escombros”, como diz Ignácio de Loyola, um de seus amantes mais críticos, a pequena praça
redonda do largo está cheia de flores bem cuidadas e as bancas continuam verdes.
A boa impressão continua durante a gravação para o programa de Marília Gabriela. A
produção é gentil e, de repente, sem que elas mesmas saibam, vejo reunidas no mesmo trabalho
pessoas que conheço de lugares diferentes e não via fazia muito tempo: a própria Gabi, minha
ex-vizinha na Haddock Lobo, leitora entusiasmada de Onde andará Dulce Veiga?, Ninho
Moraes, o diretor do programa, tempos de José Márcio Penido, Aninha Braga e Samuca Jagger
na Girassol da Vila Madalena; Reinaldo Moraes, cronista do programa, de outros tempos na rua
Alagoas, noitadas inesquecíveis com Mário Prata, Maria Emília Bender, Ruy Fontana Lopez,
Ana Cristina César. De repente, na plateia, Sílvia Poppovic e sua beleza barroca para ajudar
ainda mais o astral. Ah São Paulo, penso, e seu grande luxo que em cidade nenhuma existe igual:
as pessoas. Pessoas sérias, fiéis, leais, solidárias, discretas, trabalhadoras.
Com Gil Veloso, que é tudo isso também e vive em Sampa, saio da TV para ver Nanni
Moretti e o humor tristíssimo de seu belo Meu caro diário. A Paulista é sempre comovente à
noite em seu mar ilusório de neon, as garçonetes do quiosque Viena no Conjunto Nacional
continuam lentas, e no Cinearte, um dos meus preferidos, mudou a sala de espera, levemente
claustrofóbica agora. Saio fascinado por aquele passeio de vespa na praia onde foi assassinado
Pasolini, ao som — reconheço espantado — do Köln Concert, de Keith Jarrett.
Na manhã seguinte uma saudade súbita me fere ao sol, atravessando a rua em direção ao
Almanara. Talvez porque nos cruzávamos às vezes no outro Almanara, da Oscar Freire, lembro
com força e sem planejar de Ileana Kwasinski. Da esplêndida atriz que era, e pôde mostrar isso
em Depois do expediente, peça de um alemão contemporâneo, não lembro o nome, sem uma
única palavra ou como o rei de A vida é sonho. Não sei se Ileana era paulistana, mas era também,
como eu dizia, séria, fiel, leal, solidária, discreta, trabalhadora. E de um talento que não creio
tenha sido explorado até os últimos recursos, talvez inesgotáveis. Sim, estamos partindo, penso
sem amargura, mastigando meu homus com suco de laranja. E ainda nem sei que Rofran
Fernandes também morreu…
Ah São Paulo, tanta gente lutando numa paisagem urbana que não ajuda na luta, enumero
no caminho para o aeroporto os encontros carinhosos com Gisela Arantes, com George Freire. E
aos poucos, pela janela do táxi, o susto antigo que volta, o engarrafamento monstruoso. O manto
de fuligem envolvendo o topo dos edifícios, transformando o obelisco do Ibirapuera lá embaixo
da 23 de Maio numa espécie de escultura abstrata cuja parte superior se perde num céu de
sujeira. Os olhos ardem, começo a tossir. Muito sereno, o motorista comenta bem natural que,
em breve, todos em São Paulo terão que usar máscaras de oxigênio para sair às ruas. Sim,
concordo, em breve. Hoje, ontem, já.
E não sinto saudade, percebo da janela do avião. Nenhuma nostalgia de estar lá. Nenhum
rancor. Bom ir, bom voltar, bom saber que aquelas pessoas boas continuam lá, outras também,
outras não mais. Suspiro aliviado: sim, esse casamento meu com Sampa acabou na hora certa.
Mas te desejo, de longe, felicidade. Me deseje também. E saúde, meu Deus.

O Estado de S. Paulo, 30/4/1995


Inútil pranto
por Santa Teresa

Havia grilos, vaga-lumes, perfumes soltos no ar mais frio no morro

Conheci Santa Teresa em 1968. E era tão bonita que nem parecia real, mas locação de filme
brasileiro de época, o casario colonial de portas e janelas coloridas feito pintura primitivista, o
sobe-desce das ladeiras e o Rio de Janeiro esparramado lá embaixo. Jurei encantado: um dia, ah
um dia ainda venho morar aqui.
Cumpri a promessa. Lá por 1971, fui morar numa espécie de minicomunidade hippie com
Lima, Lili e Tereza, perto do morro do Silvestre. Nos fundos do apartamento, um abismo de
bananeiras, flores tropicais selvagens que ninguém sabe o nome. Vezenquando alguma cobra
atravessava a rua, bem natural. E nós tão hippies, mas tão hippies que volta e meia, geralmente
nos sábados à tarde, o pintor Luiz Jasmim (onde andará?), que morava ao lado, colocava as
caixas de som na janela e a trilha sonora de Hair bem alto, só pra nós. Os acordes de Aquarius ou
Let the sunshine in eram uma declaração de simpatia ao mesmo tempo explícita e delicada. Se
éramos felizes? Não sei, éramos jovens. Além disso, havia Santa Teresa em volta e aquele
exagero de beleza da baía de Guanabara, que podia ser vista até da janela do banheiro. Nem teve
importância que tudo terminasse numa dançada federal. Saímos de lá corridos, feridos,
assustados. Normal para a época. Afinal, quem não dançou nos anos 70 nem sequer sonhou.
Mas não me dei por vencido. Em 1982 voltei para morar outra vez em Santa Teresa. Desta
vez no lendário hotel do mesmo nome onde, reza a lenda, morou Raul Seixas. Durante quase um
ano, enquanto escrevia Triângulo das águas, me dedicava a longas caminhadas pelas ladeiras de
calçadas estreitas, pegando amizade com a população do bairro. Naquele tempo, e nem tanto
tempo assim faz, por incrível que pareça as pessoas não tinham medo umas das outras.
Violência? Vez por outra um pivete roubando relógio ou corrente de ouro de turista tonto no
bondinho, e a história era comentada durante uma semana. Mas tiro, bala perdida, mortos e
feridos, isso nunca. Essas coisas não cabiam lá.
Santa Teresa ficava no interior da cidade do Rio de Janeiro. Santa Teresa, qualquer coisa
entre Paraty e as cidades coloniais mineiras, era pacífica, preguiçosa, suavemente monótona.
Feito uma foto em sépia, aquarela primitiva, vila fora do tempo. À noite, dava para sentar no
muro caiado de branco, ouvindo as mangas maduras demais se esborracharem no chão, sentindo
o perfume de dama-da-noite solto no ar. E quando se descia até o Rio e ficava muito tarde, e os
motoristas de táxi recusavam-se a subir, dizendo que os trilhos dos bondes cortavam os pneus,
ia-se a pé mesmo, por quebradas estreitas da Glória, por intermináveis escadarias do Cosme
Velho. Havia grilos, vaga-lumes, perfumes soltos no ar um pouco mais frio no morro. E as luzes
da Guanabara, maravilhosas e perigosas, lá longe. O melhor de Santa Teresa, talvez, era que o
Rio de Janeiro era uma coisa que você podia ou não usar, mas estava sempre lá.
Agora acabou. O que leio nos jornais e vejo na TV nas últimas semanas me deixa doente.
Ainda mais doente. Santa Teresa sangra, transformada em Sarajevo tropical, em Chechênia
invadida, estuprada. As pessoas abandonam as casas e fogem para qualquer lugar, escondendo o
rosto. Balas perdidas cruzam o ar. Não, não sei se é suficiente chorar o que se perdeu e rezar pelo
que ficou. Sei que, por conta disso, acabei achando um pouco ridículo FHC todo sorridente ao
lado da rainha da Inglaterra e todas essas comemorações do fim da Segunda Guerra, enquanto
Santa Teresa agoniza, desamparada e bela, no alto daquele morro. Quem pode fazer alguma
coisa, que faça. E quem pode?

O Estado de S. Paulo, 14/5/1995


Tentativa de sitiar
uma esquisitice

O terror interno foge de todas as maneiras do real e do agora

Ando esquisito. Não exatamente mal, mas preguiçoso, dispersivo, desatento. Ou atento a coisas
tão remotas que é como se não estivesse completamente aqui. Nem lá, na coisa remota. Na caixa
do supermercado, de repente revejo nítida aquela esquina do restaurante japonês em Pernety,
Paris. Ao atravessar uma rua aqui do Menino Deus, onde moro, a luz do crepúsculo me
transporta para a beira do fiorde de Skjeberg, no sul da Noruega. E também não são só flashes
assim chiques, estrangeiros, não. Outro dia na sacada aqui de casa, voltou de repente certo
entardecer na fronteira com a Argentina: 360 graus de pampa, o sol se pondo atrás do Uruguai e
a lua cheia subindo exatamente a 180 graus opostos. E não só lugares. Caras também, e vozes, e
pessoas ausentes ou distantes de repente se introduzem no presente e no próximo. Não são
apenas lembranças, que isso é comum de ter, é mais inquietante que isso: são invasões no real do
imaginário e da memória.
Vou ao cinema. Prêt-à-porter, de Robert Altman, me faz rever por dentro um filme francês
sofisticadíssimo do fim dos anos 60: Qui êtes-vous, Polly Maggoo? Não só o filme, mas também
o cinema onde o vi, e que já não existe mais, e a própria tarde de novembro em que foi visto,
depois de uma prova na faculdade. Amateur, de Hal Hartley, e seus personagens zumbis
desmemoriados me levam de volta a uma noite gelada de inverno em Kentish Town, Londres,
saindo de um restaurante paquistanês. Uma moça chorava desesperadamente sentada no degrau.
Perguntei se precisava de ajuda, ela contou: acabara de encontrar o namorado com outra na
cama. Mas não queria ajuda nem nada, só queria ficar ali chorando sozinha no degrau gelado.
Fui embora.
Será grave isso que tenho, ao ver outras coisas dentro da coisa presente? Não no sentido
clínico ou físico, suponho, que não exige internação nem tratamento. Mas num outro sentido um
tanto abstrato, talvez seja gravíssimo. É normal ver o que não é mais no que está sendo?
“Normal” não é a palavra, eu sei, “normal” estabelece um critério tão inabalável de sanidade que
chega a ser fascista. Tento de outro jeito, então: será que é bom, isso?
Percebem como é vago? Tenho que dizer isso porque não sei como se chama. O que
agrava as coisas, pois sempre é muito mais fácil lidar com algo batizado, classificado e
supostamente compreendido. Será o inverno chegando? Aqui no Sul temos inverno brabo, e este
final de maio deixa no ar uma espécie de calafrio de antecipação: quer-se de repente estar no
Caribe ou na Bahia para não ter que atravessar as geadas e os gelos de junho e julho para chegar
despedaçado em agosto e, a partir de setembro, tentar reunir os cacos outra vez. Talvez porque há
quatro anos viajando sem parar, vivendo dois invernos seguidos, e nenhum verão, ou o contrário,
meu organismo tenha perdido o ritmo natural?
Será o Zaire? Será a greve dos petroleiros? Será o excesso de remédios? Será porque
terminei livro novo, e isso sempre deixa a gente assim, esvaziado, espantado? Durmo e não
sonho, faz tempo. Cartas e telefonemas, que quase não atendo, deixo para responder depois.
Então esqueço. Começo a ouvir Mozart, me dá vontade de ouvir Satie. Vou ao Satie, mas acho
que quero mesmo é Chopin. Abro Jorge de Lima pensando em Drummond, quero João Cabral,
mas no segundo verso estou pensando em T. S. Eliot. De madrugada, acordo súbito e suado,
julgando ouvir as sirenes da polícia daquele inverno infernal em Brixton. Há qualquer coisa
ausente? Há outra coisa que ronda, querendo tornar-se presente? O terror interno foge de todas as
maneiras do real e do agora para não encarar-se, será? Não sei, ando esquisito. Ando mesmo
muito esquisito e, bem sei, ninguém pode ajudar.

O Estado de S. Paulo, 28/5/1995


Picadinho para
aquecer o inverno

Novela — Os muito intelectuais que me perdoem, mas fui atacado outra vez pela síndrome
telenoveleira. Desde que Marcos Frota partiu a cara da naja Claudia Ohana no dia do casamento,
não perco um capítulo de A próxima vítima. Sem alarde, a novela tem lá suas ousadias: a família
de negros onde, desta vez, a branca é a empregada; uma prostituta assumida sensacional (a
divina Vera Holtz); uma dupla de rapazes gays discretos e sem traumas; o romance de um negro
com uma branca (Mila Moreira, uma perua fantástica). Claro que também há malas pesadíssimas
a carregar, como o chatíssimo e subliterário Zé Bolacha de Lima Duarte (que felizmente viaja
muito: podia morrer num acidente), a gritaria da harpia Suzana Vieira ou o casalzinho xaroposo
Deborah Secco-Selton Mello. Nada de grave. Afinal, além de Sílvio de Abreu, tem as mãos
sábias dos dramaturgos Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira ajudando. Mais aquela
garota linda e ótima atriz que faz a Yara. E o melhor de tudo: Aracy Balabanian, a nossa Bette
Davis.

Bonecos — Semana passada, subi a Serra Gaúcha para o 8-º Festival Internacional de Teatro de
Bonecos, em Canela. Cerca de trinta espetáculos, com pelo menos três deliciosos do pouco que
consegui ver: o chinês Yang Feng, o russo Nikolai Zykov (com uma doida marionete camp
dublando Gloria Gaynor) e, o melhor, o catalão Jordi Bertran, de Barcelona (Pablo Casals e
Salvador Dalí entre os bonecos). Para aquecer o frio da cidade, mais para Suíça do que para
trópico, a gentileza da primeira-dama da cultura local: Nídia Guimarães, viúva do escritor
(grande) Josué Guimarães. Luxo gaúcho, venham conhecer.

Princesa — Meus leitores são um barato. Mal saiu a crônica que escrevi sobre o livro A pequena
princesa, de Frances Burnett, Sérgio Telles apressou-se a me enviar um exemplar igual ao meu
perdido. Mais um verbete da Enciclopédia Britânica sobre a escritora: uma capricorniana nascida
em Manchester em 1849 e falecida em Nova York em 1924. Outra leitora informa que A
Pequena Princesa virou filme e está chegando logo por aí. O livro foi publicado em 1888.

Rebanho — Depois de muito trabalho, insegurança e chiliques de escritor, lancei aqui em Porto
Alegre as minhas Ovelhas negras, pela Sulinas, com Luís Gomes no comando, um jovem editor
cheio de pique. Estamos tramando lançamentos em São Paulo (na Cultura) e Rio (na Argumento)
para julho. Quero ver vocês! Afinal, the show must go on. Ou como dizia Vicente Pereira,
citando Marlene Dietrich: “Segura o turbante, meu bem. E sente o ritmo”.

Baixo-astral — Com atraso, vi em vídeo aquele Natural born killers, de Oliver Stone.
Provavelmente o filme mais do mal que já vi em toda my perra vida. Vamos combinar: essa
gentalha tipo Stone, Quentin Tarantino ou aquele outro diretor de Kalifornia não tem nada a ver.
Pura energia negativa. E o que parece contestação à violência contemporânea frequentemente
beira o nazifascismo. Stone justificando o assassinato é de dar náuseas. Bons são Theo
Angelopoulos, Jim Jarmusch. E viva Robert Altman!

Joias — Vida inteligente — inteligentíssima — na Rede Globo: o programa de Regina Casé,


síntese comovente da diversidade brasileira provando que o Brasil é muitos países, e a Comédia
da vida privada, com textos de Luis Fernando Verissimo. O último, uma geral na vida brasileira
dos últimos 25 anos, com o quarteto maravilha Fernanda Torres, Diogo Vilela, Paulo Betti e
Pedro Cardoso, foi das melhores coisas que vi nos últimos anos. Engraçado sem ser tolo,
pungente, poético, humano, coisas raras. Na direção, o competentíssimo Jorge Furtado, do curta
Ilha das Flores. Faz um longa logo, Jorge, faz, para calar as Carlas Camuratis da vida…

O Estado de S. Paulo, 25/6/1995


A vaia consagradora
de Denise Stoklos

Domingo, 24 de setembro último, nove da noite. Na umidade desta Gay Port, pelo menos 1.500
pessoas se acotovelavam em frente ao Salão de Atos da Reitoria para assistir ao encerramento do
festival de teatro Porto Alegre em Cena. Atração: a estreia internacional de Denise Stoklos com
Elogio, inspirado na obra de Jorge Luis Borges. Certo frenesi percorre a plateia. Animação,
expectativa.
O espetáculo começa. Flui com dificuldade. Apesar da luz magnífica de Maneco Quinderé,
dos belos figurinos, da soberba Cida Moreira, da presença enigmática de Fábio Namatame
travestido de gueixa. E da própria Denise, e do próprio texto de Borges, claro. Para agravar as
coisas, em cena está também o casal de adolescentes filhos da atriz. Simpáticos, às vezes até
comoventes, mas inexperientes e, por vezes, constrangedores. Os pais de Denise atravessam o
palco dançando um tango. Passam-se duas horas entre trocas de cena morosas e um tom
indefinido de sátira. A plateia suspira, remexe-se inquieta. Deve durar ainda mais uma hora,
cochicham. Nem a voz e a figura de Cida Moreira, em grande momento, conseguem aliviar o
desconforto.
Súbita, então — a vaia. Não crescente, nascendo aos poucos de pontos isolados do teatro,
espontânea. Mas ululante, organizada, partindo de cerca de trinta pessoas junto a uma das saídas.
Por instantes a plateia vacila; fará parte do espetáculo? As luzes se acendem todas, Denise e Cida
interrompem a peça. A vaia é de verdade, “Cala a boca”, gritam, “sai de cena”. Cida debruça-se
ao piano com ar entediado, Denise estatiza de braços abertos, crucificada ao fundo do palco. Às
vezes repete: “Eles estão vivos! Eles estão vivos!” O salseiro dura uns dez minutos, enquanto a
plateia se levanta em peso — menos os vaiantes, claro — e aplaude em pé. No palco a ação é
retomada. Agora elétrica, conturbada, como se o espetáculo finalmente começasse.
Saio sozinho ao final, rapidinho desviando de grupos excitados no saguão. Preciso ficar só,
quase meia-noite de domingo, preciso pensar na vaia. Lembro Nelson Rodrigues, Caetano,
Clarice Lispector — que teve uma morte literária decretada pela mídia ao publicar A hora da
estrela, talvez sua obra-prima, um ano antes de morrer. Pois que um artista, vou pensando, um
verdadeiro artista, um experimentador de técnicas e emoções, não deve ambicionar jamais a
unanimidade. A unanimidade é o começo da acomodação e da mediocridade. Lembro do escritor
francês Georges Bataille e sua frase usada por Hilda Hilst para justificar suas novelas
pornográficas: “Agora, enfim, sinto-me livre para fracassar”. Só os verdadeiramente livres são
vaiados?
Além disso, não se diz “cala a boca” nem a uma criança, a um operário ou faxineira. E
ordenar “sai de cena” aos berros é como dizer a um doente grave “pare de viver”. Lembro de
minha avó repetindo: “Os incomodados que se retirem”. Ninguém é obrigado a gostar de Denise
Stoklos. Mas também ninguém pode duvidar de seu extraordinário talento. Mais ainda porque,
como artista experimental, ousa errar.
Ousa, honesta, apresentar o mero rascunho de um espetáculo que pode vir a ser
deslumbrante. Ousa, enfim. Quando podia muito bem estar faturando horrores com, por
exemplo, Apareceu a Margarida. Feito Marília, a Pêra. Denise não é estabelecida. Graças a
Deus.
Um casal comenta: “Nossa, coitada, deve estar arrasada”. E eu penso que não. Ou que, se
estiver, não deveria. Para um artista do calibre de Denise Stoklos, a vaia deve soar como uma
consagração pelo avesso, que impulsione para o questionamento de possíveis autocomplacências.
Envio mentalmente minha solidariedade a todo o grupo. Suspiro.

O Estado de S. Paulo, 1/10/1995


Para mãe Sonia
de Oxum Apará

Sou um homem de sorte. Uma das razões é que tenho duas mães. Alguns não têm nenhuma,
outros desprezam ou detestam a sua. Outros até, leio nos jornais, até a matam. Pois tenho duas.
Ambas maravilhosas. Uma, claro, é a poderosa Dona Nair, atualmente recuperando-se de uma
isquemia com a bravura de sempre, é tão legal que às vezes eu tinha ciúme: meus amigos às
vezes ficavam mais amigos dela do que meus.
Como o José Márcio Penido, que preferia ficar vendo fotos antigas com ela a fazer a ronda
comigo pela noite de Porto Alegre, que ele não conhecia. A outra mãe não é de sangue, mas de
espírito. Chama-se Sonia Maria Barbosa, vive no Rio. Libriana ascendente Libra, pura beleza,
fez aniversário no último dia 5. Este texto eu gostaria de ter publicado naquele dia. Vai atrasado.
Com carinho e respeito, eu conto:
Há uns quinze anos, vivendo em Sampa, por conta de uma namorada eu ia ao Rio quase
todo fim de semana. Um dia a artista Vera Salamanca me disse: “Procura lá no Rio uma mãe de
santo maravilhosa”, minha amiga deu o endereço. Na época, kardecismo, candomblé, umbanda,
pra mim era tudo a mesma coisa. Incompreensível, vista com superioridade e até certo desprezo
pseudointelectual. No Rio, comentei com a amiga Graça Medeiros (grande astróloga, há uns dez
anos em Nova York). Graça animou-se. Lá fomos nós, safári heavy da rua Mundo Novo,
Botafogo, até o Méier, zona norte, via Maracanã.
Sonia era uma senhora bonita, pouco mais velha que a gente (mas tinha um ar de senhora,
no melhor sentido: nobre), cabelos castanho-claros, quase louros, olhos verdes penetrantes,
sérios, um tanto melancólicos. Falava pouquíssimo, vivia só, apartamento pequenino,
limpíssimo. No minúsculo quartinho de empregada, a mesa de jogar búzios. Fiquei fascinado
com a beleza dos panos brancos, as contas coloridas em círculo, as orações em iorubá. Ela jogou
e disse que eu, coisa rara, tinha os dois Oxalás — Oxaquiã, o jovem guerreiro do sol do meio-
dia, e Oxalufá, o velho sábio, mais uma Oxum. Não entendi nada. Sonia contou que de sete em
sete anos Oxalá mandava um filho especial, do qual ela teria obrigação de cuidar para sempre.
Esse filho não precisaria fazer nada, nem dar cabeça, nem voltar lá nunca mais. Já era dezembro,
estava angustiada porque esse filho não aparecera ainda naquele ano quase no fim. E esse filho
era eu. Senti vaidade. E medo. E suspeitas paranoicas. Mas, sobretudo, encantamento.
Sonia foi “feita” na Bahia, ala Keto, candomblé puríssimo: Sonia de Oxum Apará. Faceira,
guerreira. Contou lendas lindas, me indicou livros. Voltando a São Paulo, devorei Pierre Verger,
Roger Bastide, Nina Rodrigues, tudo o que me caísse nas mãos. Voltei ao Rio, voltei à Mãe
Sonia com Graça, de Oxumaré, e Cacaia, de Bará e Oxum. Sonia precisava de uma casa maior.
Fizemos uma espécie de pacto: levaríamos lá o maior número de pessoas possível, seria a nossa
forma de pagamento. Sonia comprou uma casa enorme, quase em ruínas, na Vaz de Toledo.
Engenho Novo. Obras intermináveis. A casa foi ficando pronta. Sonia mudou-se. A casa cada
vez mais linda. Na frente, ao nível da calçada, depois com uma escada que desce entre plantas e
árvores incrivelmente verdes até as casas dos Orixás, o terreiro, a sala onde ela joga búzios. Tudo
impecável, branco, limpo, perfumado. Bandejas de frutas, cheiro de manga madura no ar. Você
senta e tem vontade de ficar para sempre lá. E Mãe Sonia cada vez mais bela, generosa, sábia.
Muita gente deve muito a ela, em todo o Brasil. No estrangeiro também.
Nunca fugi, sempre voltei. Nunca dei cabeça, nunca parei de ler sobre camdomblé e,
autorizado por ela, a preparar meus banhos, meus axés. Tudo branco, tudo do Bem. Quem a
conhece a ama muito. Liguei um dia depois de seu aniversário (no dia, o telefone sempre
ocupado, fiquei com ciúme). Mãe Sonia anda cansada, doente. Batizei minha roseira amarela de
Sonia, plantada em 8 de dezembro, dia de Oxum. Hoje contei sete botões em Sonia. Mas Sonia
vai ficar bem. E viver longos anos, para o bem de quem quer o Bem.
Rora Yêyê ó fí dé rí omon!

O Estado de S. Paulo, 15/10/1995


Entrevisão do trem
que deve passar

Está amanhecendo. Não, talvez esteja anoitecendo. Impossível dizer baseado apenas nessa luz
nem clara nem escura, suspensa na atmosfera, uma luz que não vem de nada visível, nem de sol
nem de lua. Uma luz como essa que costumamos dizer de “um dia sem luz”. Erradamente, pois
embora invisível, indefinida, a luz está lá. Sob uma luz dessas, ao ar livre, você está sentado.
Não sei se na transição do dia para a noite, da noite para o dia. E nem mesmo se em algum
outro tempo no meio da manhã ou da tarde. No meio da noite, não, porque seria escuro e essa
luz, a do escuro, a da não luz, é reconhecível. Mas ela não importa, a luz, seja qual for. Nem
importa se você está sentado, em pé ou mesmo deitado. Importa você estar lá. Importa, quero
dizer, no que escrevo agora, no que imagino, e não sei ainda direito o que é.
Você está lá. Há aquela luz à sua volta. Não posso descrever seus traços, nem mesmo dizer
se é homem ou mulher, vejo apenas um vulto. E sei, mas não sei por que sei, que se trata de um
espaço aberto. Como a plataforma de uma estação. Perto de você há vultos menores, quadrados,
retangulares. Parecem malas, bagagens. Sei que são objetos porque não se movem, enquanto
você às vezes dá alguns passos, abre ou estende os braços.
Imagino então assim: você é alguém que vai viajar para longe, ao amanhecer. Eu poderia
até afirmar isso, e ninguém duvidaria, não só porque sou dono e soberano de minha própria
imaginação, mas porque é exatamente isso o que imaginaria qualquer um que entrevisse o
mesmo que entrevejo. O problema para descrever é esse: apenas entrevejo.
Apenas entrevendo, continuo a escrever.
Não há mais ninguém nessa estação. Ou por algum motivo não entrevejo os outros que
talvez estejam também lá, apenas você, num zoom seletivo que exclui os demais. E por se tratar
de uma estação, deve haver um trem que não chega, não passa nem parte. O que passa é apenas o
tempo. Sei que passa não porque a luz se modifique ou aconteça alguma coisa, mas pelos seus
pequenos movimentos, um passo, um braço, que revelam ansiedade e espera.
O que se pode fazer numa situação como essa — mesmo para mim, que deveria ser o dono
dela, mas me recuso — a não ser esperar? Esperamos, todos. O que está lá, o que conta sobre
isso e os que leem sobre isso. Esperamos então. Horas, dias, meses, anos e anos. Ninguém sabe
quanto.
Podemos nos distrair enquanto esperamos, ligar o rádio, olhar pela janela, abrir a geladeira,
mastigar alguma coisa, beber mais água neste dia seco, até mesmo ligar a TV para entrar noutras
histórias, falsas ou verdadeiras, mas onde aconteçam coisas, em vez de ficarmos parados nesta
onde nada acontece desde as primeiras palavras. E voltar a ela como quem volta a chamar um
número de telefone eternamente ocupado, só para constatar que continua ocupado e apenas para
ter a sensação de não desistir. Desistir não é nobre. E arduamente, não desistimos.
Então acontece. É tão surpreendente que aconteça que pouco importa seja a única coisa
que poderia acontecer. O trem chega e para. Na plataforma você começa a tentar colocar as
bagagens dentro dele. Mas elas não saem do chão. O trem apita, o trem vai partir. Você percebe
que não pode levar nada além de você mesmo. E entra no trem.
Mas isso que você tenta fazer entrar no trem, e que é o seu corpo, também não pode entrar.
Então você o deixa, deixa o vulto que entrevejo jogado na estação junto com as bagagens. O
trem então parte levando de você algo que nem você nem eu sequer conseguimos entrever. Outra
coisa, talvez nada, porque nada podemos garantir ter visto partir dentro do trem.
Você não grita nem acorda. Não há terror, mesmo sendo aterrorizante: é assim que é. E
pior ainda, não se trata de um sonho. Começa a amanhecer. Ou a anoitecer. Ninguém sabe
quando passa o trem. Nem para onde vai. E não se leva nada. Isso é tudo o que sabemos.

O Estado de S. Paulo, 12/11/1995


A cara do Brasil em
Terra estrangeira

Há pelo menos quarenta anos tenho uma paixão compulsiva pelo cinema brasileiro. Desde as
chanchadas no Cine Imperial, em Santiago, passando pela fase pré-Cinema Novo (inesquecível
Odete Lara, até hoje nossa única star, em Mulheres e milhões) até os tempos do Cinema Novo
(acho O padre e a moça, de Joaquim Pedro, o mais belo filme nacional de todos os tempos).
Acompanhei os abismos de Walter Hugo Khouri, o cinema da Boca, as obras-primas
rodrigueanas de Jabor, os últimos suspiros nos anos 80 (lindos Anjos da noite, de Wilson Barros,
Feliz ano velho, de Roberto Gervitz). Fui corroteirista de Romance, de Sérgio Bianchi; passei por
projetos jamais realizados com Ana Carolina, Ana Maria Magalhães, Ivo Branco. E a quatro
mãos, com Wilson Barros, restou um roteiro pronto e engavetado: Em nenhum lugar. Wilson se
foi, ficou tudo por isso mesmo. A propósito: se alguém se interessar pelo roteiro, dê notícias.
Tudo isso para dizer que sofri como se fosse um amigo o assassinato promovido pela besta
Collor. Mas desde que voltei de viagem ano passado e assisti a Lamarca (Sérgio Rezende) e
Capitalismo selvagem (André Klotzel), uma esperança modesta começou a pintar. Afinal, Collor
foi expulso (mas não punido), as coisas não morrem e tudo se renova sempre sem parar. Levei
um susto maravilhoso com o sucesso popular de Carlota Joaquina (Carla Camurati), apesar de
odiar a grosseria do filme, vibrei com O quatrilho (Fábio Barreto) e Perfume de gardênia
(Guilherme Almeida Prado), onde até faço uma ponta.
Esta semana tive a confirmação definitiva. O cinema brasileiro voltou, moçada, voltou com
tudo! Terra estrangeira, de Walter Salles Jr. e Daniela Thomas: um filme dilacerado, vivo,
radicalmente contemporâneo em relação não só ao país, mas ao próprio cinema brasileiro.
Walter, de quem a estreia em A grande arte era animadora, embora pecasse pela ambição e pós-
modernidade chatinha (Giulia Gam de prostituta com jaqueta de grife, waal…). Terra
estrangeira não é ambicioso, mas despojado e competentíssimo no preto e branco pungente, na
trilha sonora de José Miguel Wisnik, em seus atores deslumbrantes, no toque presente da
extraordinária Daniela Thomas. Sangra lucidez. Faz pensar e chorar. Quem não soluçará com
Gal Costa cantando “Vapor barato 70” em contraponto gemido com Fernanda Torres naquela
disparada vertiginosa em direção à Europa e a um futuro talvez morto? E quando você supõe que
isso foi o fim, a sequência final aplica a última punhalada: o violinista cego, os diamantes do Mal
esmagados por pés anônimos. Bravo!, gritei no escuro.
São muitas as marcas de outros cineastas na obra de Walter (afinal, é um cinéfilo de
estirpe): Jim Jarmusch, o Antonioni de Zabriskie Point, sobretudo no final, um Glauber aqui,
Godard ali. Mas há um tom e um estilo absolutamente novos. Brasileiro e universal, sincronizado
com a barbárie do país e do planeta. Grandeza e sutileza, ao mostrar a vida-cadela dos brasileiros
em Portugal. Aliás frente ao navio naufragado, quando Fernanda diz: “Pobres portugueses,
navegarem tanto para descobrirem… o Brasil”. É a única coisa que não concordo. Fernando
Alves Pinto (excelente ator) deveria replicar: “Pobres brasileiros, esperarem tanto para serem
descobertos por… Portugal”.
Mas isso, sorry, são recaídas desse lusófobo traumatizado. O que importa é este filme
quase apocalíptico, arrancando poesia dos escombros do final de século. A imigração de O
quatrilho e Carlota Joaquina encontra seu reverso e complementação na emigração de Terra
estrangeira. Os três, cada um a sua maneira, revelam um Brasil finalmente disposto a conhecer e
a mostrar sua cara.
E viva Cazuza!

O Estado de S. Paulo, 10/12/1995


Tirando o pó
do velho 1995

Para começar um novo ano, nada melhor do que arrumar gavetas. Jogar fora sem piedade esses
trastes que se acumulam na vida da gente, jornais, revistas velhas, cartas antigas, objetos
quebrados. Podem até ter um certo valor afetivo, mas é inútil tentar aprisionar o tempo. Só atrasa
a vida. Também é excelente para saldar dívidas, não só pagar contas, mas ligar amigável para
aquele ex-amor que nos feriu, visitar a tia jogada numa clínica etc.
Limpar, desvencilhar-se do velho para deixar entrar o novo. Pois é isso que vamos fazer
hoje. Como esta coluna é bimensal, muito assunto vai ficando para trás, perguntas dos leitores
vão ficando, injustamente, sem resposta.

Sonia de Oxum — Muita gente ligou ou escreveu pedindo o telefone da maravilhosa babalorixá
carioca. Pedi autorização à própria Sonia, ela concordou. Anotem: (021) 204-5684. Fica no
Engenho Novo, no Rio, numa rua tranquila, arborizada, serena como no interior. É fácil chegar
lá, e Sonia, sempre gentilíssima, certamente explicará.

Jardim — Muito sofreu este ano. Depois do inverno medonho, comecei a ficar mal de saúde, o
que culminou em três cirurgias dezembro último (convalesço, pareço Frida Kahlo, mas ça
marche bien). Fiquei impossibilitado de cuidar dele como devia. Quando saí do hospital, a
devastação era dolorosa. Não que meu pai e minha irmã Claudia não tivessem cuidado dele, mas
houve uma seca medonha, com temperaturas de 40 graus, as formigas enlouqueceram, comeram
quase tudo. Até as roseiras pararam de florir. Como se não bastasse, depois veio um vendaval
daqueles de arrancar jacarandá. Curioso: de todas as minhas flores, só as sempre-vivas
sobreviveram. Fortes, coloridas, aparentemente indestrutivas. Agora as plantas convalescem, a
roseira de Oxalá (Lygia) chegou a dar três rosas no Natal. Aos poucos, tudo volta à vida. Como
eu. Como todos nós em 96, não?

Princesa — Recebi vários exemplares de A pequena princesa, “o livro da minha vida”. Fico
gratíssimo. E informações preciosas: no Brasil, foi publicada somente uma adaptação. A autora
Frances Eliza Hodgson nasceu em Manchester, Inglaterra, em 1849 e emigrou para os Estados
Unidos com a família em 1865. Grande e famosa escritora na época, na Inglaterra está reeditada
e consagrada. Não me perguntem por que não a traduzem no Brasil. Eu mesmo faria isso com
prazer. Ah: parece que há um filme, com Shirley Temple fazendo Sarah Crewe.

Notáveis — “Cuidado, um engano em bronze pode ser um engano eterno”, reagiu Mário
Quintana quando quiseram colocar um busto dele numa praça. Foi o que eu disse quando José
Castello me propôs fazer um daqueles ótimos Encontros Notáveis dos sábados aqui no Caderno
2. O resultado foi comovente e belíssimo. Castello é o melhor, e dos poucos, jornalista literário
do país. Mas em horas de gravação, nomes, datas, lugares, são inevitáveis algumas confusões. Eu
mesmo já troquei Ibsen por Pirandello numa crítica teatral… Bem, Castello enganou-se numa
longa história sobre um editor irlandês gângster (Ray Keenoy, da Boulevar Books, que — medo!
— está publicando Ana Cristina César em Londres). Tudo aquilo — pratos do restaurante
L’Écluse, em Camden Town, a livraria Compendium com Dragons na Vitrine, foi em Londres,
jamais em Paris, onde sempre fui tratado como um príncipe. E como mandei cópias da matéria
para lá, fiquei preocupado que meus três editores franceses honestíssimos (Henry Dougier, da
Autrement; André Versaille, da Complexe; o poeta Christian Bouthemy, da Arcane 17)
acabassem sabendo e resultasse em confusão. Mas a matéria foi a mais linda da minha vida, e
Castello, não por ter sido comigo, é um expert respeitável e de nível internacional nessa área.

Pedido — Aos leitores que me enviam cartas lindas: leio todas, mas não tenho tempo para
responder. E imploro: pelo amor de Deus, não me mandem originais inéditos para opinar!
Preciso dedicar-me ao meu próprio texto. Bom ano-bom para todos nós e para Gaia.

O Estado de S. Paulo, 7/1/1996


Cor-de-rosa,
uma ova!

Marianne Faithfull chega quietinha, carregando um forte sotaque de cabaré

Cuidado, meu amigo, vai doer. Se você é daqueles que acham que a vida é um mar de rosas cor-
de-rosa, mantenha distância. Ou vá ouvir a Xuxa. Se você também não quer ver maculada aquela
imagem da moça Marianne Faithfull, musa da swingin’ London nos anos 60, groupie dos Rolling
Stones que passou na cara todos, estrelou filmes com Alain Delon e foi consagrada pela mídia da
época como a garota símbolo de ousadia & liberação — não, melhor não ouvir este dilacerante
Strange weather (WEA).
Mas, se você não tem medo de descobrir um dos discos mais bonitos lançados no Brasil
este ano (e por que desespero, amargura, tristeza, desamor, solidão, não podem ser belos? em
pleno 1987?), caia de boca no blues de Marianne. Depois de uma tentativa de suicídio,
envolvimentos com a polícia por causa de drogas (nada soft: heroína no duro) e pântanos de
álcool, ela salvou-se não pela conversão a alguma seita brega, mas pela música. Sim, a arte salva.
Ou consola. Ou torna pelo menos suportável.
A foto em preto e branco da capa mostra um rosto ainda jovem, mas meio devastado
(lindamente devastado). Com esse rosto, Marianne Faithfull joga sua voz grave, metálica, de
negra velha, em onze canções de clima pesado de cabaré. Lembra às vezes Lotte Lenya, mais
frequente a deusa Marlene Dietrich. Uma Dietrich que tivesse atravessado aqueles velhos bons
tempos de rock, sexo e drogas para chegar, depois do punk, ao som de New Orleans, onde
começou o blues. Fumaça de muitos cigarros, bebidas fortes — e a certeza de que “desde o meu
nascimento eu tenho sido uma estranha neste mundo” (em “A stranger on earth”, regravação de
um clássico de Dinah Washington, que fecha o disco).
Cheia de fé, Faithfull relembra Billie Holiday em “Yesterday”, passeia sem
acompanhamento algum pela capela de “Aint’ goin’ down to the well no more”, pelo hino
religioso “Sign of judgement” revisa Bob Dylan (em “I’II keep it with mine”) chega à sarjeta
mais contemporânea de Tom Waits (um dos amigos que ajudaram a emergir da rebordosa, na
faixa-título). E chega ao paroxismo, ao requinte (da crueldade e do talento, também) a regravar
“As tears go by”, aquele antigo sucesso de Mick Jagger, Keith Richards e dela mesmo
longínquos dezessete anos. Dói, e dói muito ver o tempo assim, tão nítida e implacavelmente
perdido.
Com músicos impecáveis — segundo ela mesma, “os melhores de Nova York e alguns dos
melhores do mundo” —, entre eles o baixista Fernando Saunders e o baterista J. T. Lewis,
integrantes da banda de Lou Reed, a corajosa Faithfull conseguiu os cúmplices e o clima exato
para encarar de frente a própria amargura. Claro, sonhos quebrados sempre doem. Mas talvez
seja mais saudável contemplar os cacos e tentar compreender o quebra-cabeça do que comprar
uma passagem para a Disneylândia.

O Estado de S. Paulo, anos 1980


Muito além do bordô

Semana passada fui a Porto Alegre, tchê, apanhar energias gauchescas. Porque Sampa é vampira,
você sabe. E Portinho sempre revigora, por mais decadente, feia e semidestruída que esteja. À
beira de agosto: frio tipo navalha na alma, paredes mofando de umidade.
Assim como uma velhice precoce baixando na gente, vontade de ficar sentado ao sol, feito
planta. Úmido e humilde, querendo apenas um pouco de calor. Nem humano — que pretensão!
Calor do sol mesmo, na pele.
Matei saudade virando noite com Denise Barella, Eliane Steinmetz, Ivan Mattos e Otávio
Punk (os mais darks, lógico, que não me dou com gentinha), ouvindo as neogauchices de Eliane.
Fica tão falso dizer Eliane, porque na verdade ela é “A Gorda”. Uma grande atriz, linda, loira,
mocinha e — pasmem — magra. Gorda é a maior autoridade em neogauchês daquela paróquia.
Que tal: porém bordô? Porém-bordô é quando algo ou alguém é quase legal. Quase-quase chega
lá, mas vacila no caminho. Não é de quinta, mas também não será nunca nenhuma maravilha.
Porque falta tchã, falta crà, falta pã — percebe? Exemplo: andei lendo Coiote, de Roberto Freire.
Louquíssimo, superinteressante e tal. Porém bordô…
Outra da Gorda: se você obceca num papo meio depressivo, tipo meu-amor-me-
abandonou, não-tenho-onde-morar ou traumas-da-mais-terna-infância, ela implora: “Pelo amor
de Deus, não me mostra as tuas feridas!” Eu tava que era uma feridama só… Então fiquei quieto.
E ri. Depois de saudade de Porto Alegre, morrendo de saudade de Porto Alegre, entende? Porque
a Portinho de lá — real, objetiva — existe mais no meu coração bordô do que lá mesmo, e ela
não tem culpa. Com frio e sede, voltei.
Morto de saudade de Porto, fui parar no Espaço Off. E dou de cara com o melhor do Sul:
Annie Perec (foto) e seus teclados comandados pelo Ricardo Severo. Annie é uma cantora. Será
mesmo uma cantora? Não, é mais. Primeiro, pensei: alguma coisa entre Patricio Bisso e Cida
Moreira, temperada pela maldição de Cláudia Wonder. Mesmo assim, não define. Annie me
assustou pelo contemporâneo “tem sarcasmo, tem rua, tem aquele chamado tipo ‘vem pra barra
pesada, meu!’” que La Wonder gosta. Uma plateia pequena, arrebatada, antenada e arrepiada,
delirava com os versos de Severo para Antígona, um dos retratos mais perfeitos que conheço do
psicótico ego contemporâneo. E quando digo contemporâneo quero dizer agora, já, neste minuto,
aqui — que medo, hein?
Saí do Off juntando coisas na cabeça. Tipo assim: o contemporâneo é depressão inevitável,
mas com autocrítica e overdoses de cinismo e sarcasmo em cima. Nada do que é medonho me é
estranho — a mim, que tenho o coração batendo neste fim de século pós-Chernobyl.
Isso a Gorda fala, e Porto Alegre é, e Annie Perec canta e incorpora através dos versos de
Severo. E mostra, sim, as feridas todas. Mas rolando de rir delas. Muito além do bordô. Porque,
convenhamos, fica no mínimo ingênuo querer ser feliz & saudável & rosadinho a esta altura do
milênio. Annie e Severo inauguraram o hilário-dilacerado disto que eu e você estamos vivendo
AGORA, metidos até o pescoço neste instante de boldo com chantili. Ser capaz de rir da própria
dor (e daquela da humanidade) é bênção.
Em tempo: Annie estreou ontem no Madame Satã, enquanto o Espaço Off — ontem
também — começou a ser ocupado por mais uma gauchinha alucinante, Laura Finokiaro. Se
você for conferir o trabalho das duas, de repente até pode compreender por que eu falo tanto
nesses gaúchos.

O Estado de S. Paulo, anos 1980


Clarice Lispector ress...
(sem título completo e sem data)

Cronista do Caderno 2 resgata correspondência da escritora enviada em 1947 para uma grande
amiga

“Autora busca os prazeres da existência e faz apologia do respeito a si mesmo”

Puro mistério. Como ela gostava. Quase não há fatos nem nomes. Uma amiga — Ana
Amaral, psicanalista também chegada em mistérios — veio me visitar. Lá pelas tantas, muito
natural, disse que tinha uma surpresa. E tirou da bolsa uma carta inédita de Clarice Lispector. Fiz
perguntas. Ana foi vaga, uma amiga de uma amiga encontrou entre velhos guardados. Encantado
e intrigado, fiquei com a carta nas mãos sem saber o que fazer. Porque é linda resolvi trazê-la a
público. Como um presente.
A carta é datilografada. Inclusive, sua assinatura (o que era hábito de Clarice) não tem o
nome da destinatária (apenas “querida”), nem nada que possa comprovar sua autenticidade.
Exceto um detalhe: o estilo. Qualquer leitor de Clarice imediatamente reconhecerá nestas linhas
o inconfundível estilo-não-estilo da escritora. Sabe-se também que, em 1947, após uma
temporada de quatro anos com o marido diplomata em Berna, na Suíça (onde escreveu A cidade
sitiada ou O lustre, não estou bem certo), ela voltou ao Brasil. Tinha cerca de vinte e cinco anos.
Mas esse texto belíssimo, cheio de humanidade e sabedoria, é de alguém sem idade, atemporal,
que se investiga com intensidade quase impiedosa, como Clarice sempre fez. E tudo isso me faz
pensar, melancólico, que desde a sua morte, em 1977, ninguém se atreveu a escrever uma
biografia de Clarice Lispector, nem se dispôs a recolher sua abundante correspondência.

“Berna, 2 de janeiro de 1947

Querida,

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e
continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso — nunca se sabe qual é o
defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como explicar minha alma. Mas o que eu
queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode
desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o
respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades — depois disso fica-se um pouco
um trapo.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e de
outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si
mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia
apenas lhe contar o meu novo caráter, ou falta de caráter, um mês antes de irmos para o Brasil,
para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta
eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar.
Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi
toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se
transforma num boi? Assim fiquei eu… em que pese a dura comparação… Para me adaptar ao
que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões
— cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também
minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante.
Espero que no navio que me leve de volta, só a ideia de ver você e de retomar um pouco minha
vida — que não era maravilhosa mas era uma vida — eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: ‘Você era
muito diferente, não era?’ Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me
encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que
parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de
cinquenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de
lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma
pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser
respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você — respeite sobretudo o que você
imagina que é ruim em você — pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita
— não copie uma pessoa ideal, copie você mesma — é esse o único meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia — será
punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma
mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida
exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.
Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse
minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se
pactua com a comodidade de alma.

Tua
Clarice”
Por aquelas escadas
subiu feito uma diva

Foi mesmo amor à primeira vista. Naquela manhã de 1982, pelas escadas que levavam à “Nau
dos Insensatos” — como Caio Graco batizara a redação do Leia Livros, um mezanino da antiga
editora Brasiliense na General Jardim, plena Boca do Lixo em São Paulo — por aquelas escadas
de madeira subiu Ana C. feito uma diva. Linda, loura, pescoço de Audrey Hepburn mas “certo ar
de Mia Farrow”, como ela mesma se autorretratou em um poema, um único brinco indiano na
orelha esquerda. Nervosa, irônica, crispada, inteligentíssima. Atenta demais, quem sabe?
Talvez tenha sido amor correspondido também, pois através do correio imediatamente
começamos a nos escrever. Os meus livros, os dela, editados artesanalmente por Heloisa
Buarque de Hollanda, traduções, artigos para o velho e bom Leia, contos, poemas. Ana C. em
sampa em fim de semana fin-de-siècle, com Reinaldo Moraes e Maria Emília Bender íamos a
restaurantes japoneses (ela adorava saquê), ao Spazio Pirandello, Frevinho, o antigo Longchamps
do grande balcão anos 50 e falávamos, falávamos sem parar.
As cartas ficaram insuficientes, vieram os interurbanos — ela usando a Rede Globo, no
Rio, onde trabalhava; eu a Brasiliense, em São Paulo. À noite, quando começou a longa crise,
outros telefonemas em desespero: “Me sinto emparedada”, repetia sempre. Um pouco por ela,
mudei para o Rio, para o Hotel Santa Teresa, no alto do morro. A crise continuava. Certa vez, no
apartamento de nossa amiga astróloga Graça Medeiros, segurei-a na janela à beira do salto.
Quase bati nela. Noutra, segurei-a tentando jogar-se em frente aos automóveis da Gávea. Ela
quase me bateu. Não, nunca fomos amantes: nossas praias eram outras, se é que me entendem.
Durante quase um ano, ela forjou suicídios cotidianos ao mesmo tempo sinceros e fraudulentos.
A última vez que a vi foi numa noite de setembro, quando eu completava trinta e cinco
anos. Graça conseguiu levá-la até o alto de Santa Teresa e, por mais de duas horas, Ana C. não
disse nada. Lerda, concentrada, apenas tocava, um por um, todos os objetos do meu quarto. E me
olhava. Profunda, atentíssima, remota. Parecia uma despedida. Pouco depois tentou o suicídio
pra valer e foi internada numa clínica inacessível, para onde liguei tentando falar com ela e a
psicanalista recusou-se, dizendo que “os amigos eram os principais culpados”. Seríamos? Mas
logo nós, que a amávamos tanto, seríamos assim uns love killers?
Em outubro vim a Porto Alegre lançar o meu Triângulo das águas, muito influenciado por
ela. Ao entardecer de um começo de novembro, nossa amiga Maria Clara Jorge ligou do Rio
dizendo exatamente: “Caio F., a Ana C. conseguiu”. Surpresa nenhuma, havia um ano ela jogava
aquele xadrez bergmaníaco com a morte. Sabia que era cedo demais; sabia que viraria mito;
sabia que, mais que uma atitude existencial, era uma atitude literária. Mas ousou. Senti dor e
raiva por ela nos ter abandonado tão brutalmente no meio do caminho, deixando aquela sensação
de que poderíamos ter feito alguma coisa. Tão arrogantes: quem tem, afinal, o poder de salvar o
outro de seus próprios abismos?
Não fomos felizes para sempre. Nem infelizes. Já a perdoei, já me perdoei. Fica esta dor de
saber que toda a literatura brasileira perdeu o prenúncio de sua maior voz poética
contemporânea. Nossa Sylvia Plath, nossa Zelda Fitzgerald. Fugaz como elas, doida, bela,
chique, insuportável, irresistível. Ficou ainda um buraco, um vácuo, solavanco na continuidade.
Cartas, poemas. Vestígios, souvenirs. Palavras, nossa asa e arma. Às vezes mortífera, sabes?

O Estado de S. Paulo, 1995


Caio Fernando Abreu nasceu em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 1948, e
morreu em Porto Alegre em 1996. Nasceu escritor, literalmente: ainda menino escreveu o
primeiro conto e aos 19 anos produziu o romance Limite branco.
Em 1968 mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar na grande imprensa. Seu talento
de escritor foi logo reconhecido com o prêmio da União Brasileira de Escritores a seu primeiro
livro de contos, Inventário do ir-remediável.
Na década de 1970 morou ainda no Rio de Janeiro, em Estocolmo e em Londres. Voltou a
São Paulo em 1981, onde atuou como jornalista, escritor e editor de livros.
De 1986 a 1989 e de 1992 a 1996 escreveu as crônicas de que parcela essencial viria a
constituir os livros Pequenas epifanias, publicado originalmente em 1996, poucos meses depois
de sua morte, e A vida gritando nos cantos, de 2012.
Caio Fernando Abreu lançou onze livros, tendo sido premiado duas vezes com o Jabuti da
Câmara Brasileira do Livro (em 1984 e 1989), e seus textos foram traduzidos para diversas
línguas. Sua obra está sendo relançada pela Editora Nova Fronteira.
EDITORAS RESPONSÁVEIS
Janaína Senna
Maria Cristina Antonio Jeronimo

PRODUÇÃO
Adriana Torres
Ana Carla Sousa

PRODUÇÃO EDITORIAL
Ingrediente Secreto e Estúdio Sabiá

REVISÃO
Valéria Braga Sanalios
Ceci Meira

CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Carla Castilho, Lia Assumpção | janela estúdio

PRODUÇÃO DE EBOOK
S2 Books

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