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D. AFFONSo HENRIQUES,
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ABZECHRI.
IDRAMA EM 3 ACTOS E 6 QUADROS.
• COMPOSIÇÃO ORIGINAL
DE •

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NATYPOGRAPHIA DE s. J. R. DA SILVA & comº
"º do Jardim do Regedor N.° 2. 1.° Andar,
• …*

Pºst S 734. } D , 3 ó>


HARWARD COLLEGE LIBRARY •

COUNT, OF SANTA EULALIA


|- , , COLLECTION /N
GIFT OF
J9MN R. STET80M, ir,
, 9 DEC 1924

* Este Drama foi representado por uma Asso


ciação Dramatica de curiosos no Theatro da Villa
de Santarem, nas noites de 22 e 27 de Fevereiro
d’este anno,

*
•#
VOTO MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS

A todos os Senhores, que representaram o pre


sente Drama, pelo interesse e estudo que houve
ram para o bom desempenho dos caracteres, que
lhes distribuí. •

Ao Sr. Carlos Maria das Neves Machado, que


generosamente se me offereceu para compôr a mu
sica da Xacara, a qual sortiu um agradavel effeito.
Ao Sr. Bernardino Antonio da Silva, que me
promptificou gratuitamente o rico vestuario, que
tanto fez realçar o Drama.
Ao Sr. Torquato Francisco Carneiro, pela pin
tura do panno com a mesquita para o 4.º Quadro
do Drama.

A Associação Philarmonica da Villa de San


tarem, que gostosamente concorreu ao Theatro, no
perfeito exercicio de suas funcções, em as duas noi
tes, que subiu á Scena o presente Drama, dando
por este modo maior realce ao Espectaculo.
• Ao Sr. José Maria de Mello, que, de bom
grado, pontou o Drama. •

Ao Sr. Francisco Xavier Cardozo, que assaz


me coadjuvou na contra-regra do mesmo.
Aos Habitantes da muito Nobre e sempre Leal
Villa de Santarem pelo acolhimento, que deram a es
te meu primeiro Ensaio Dramatico, honrando-me com
o chamamento á Scena, ultimada que foi a sua re
presentação,
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PERsoNAGENs.
:

D. AFFONSO HENRIQUES, Rei de Portugal.


O Sr. José Maria de Carvalho e Silva.

D. PEDRO
O Sr. AFFONSO,
João Lucio de Infante, IrmãoCosta.
Faria Mendes do Rei.
MEM MONIZ DE GANDAREY, Fidalgo Por
tuguez. •

O Sr. Cyriaco Antonio de Pina,


MARTIM MOAB, Dito.
O Sr. Francisco José Alves.
D. GONÇALO DE SOUZA, Dito. 74 annos de
idade.
O Sr. Manoel da Costa Martins.
D. GASPAR DE SOUZA, Dito, filho de D.
Gonçalo, Captivo.
O Sr. Joaquim Vital da Cunha Sargedas:
PADRE THEOTONIO DE MENEZES, D.
Prior de Santa Cruz de Coimbra.
O Sr. Claudio José da Silva.
O ALCAIDE ABZECHRI, Governador de San
tarem. 46 annos. ,
O Sr. Leonardo José Augusto d'Aguiar.
ZORAIDA, Nobre Donzella moira. 20 annos.
O Sr. Theodoro Monteiro Machado.
OSCAR, Capitão moiro. 21 annos.
O Sr. Francisco Xavier Cardozo d'Almeida.
ARIMA, Serva de Zoraida.
O Sr. João Alexandrino Aguiar d'Almeida.
ABIM ELECH, Pagem d'Abzechri. 60 annos.
O Sr. Germano José de Carvalho.
RAIMUNDO, Criado de D. Gonçalo de Souza,
O mesmo.
Portuguezes que não falam = Lou RENço viEGAs,
Cavalleiro, = D. PEDRo PAEs, Alferes Mór do
Reino. = cavaLLEIRos do TEMPLO = soldados,
C CLARINS.•

Moiros que n㺠falam = ARIMUR e ALMANsoa, Ca


pitães. = solo.Anos.

A seçãºtarem,
dº 1°e ea 3° Agº é paradº em San
do 3.° em Coimbra.

##############
> ACTO I.
*--*

ARGUMENTO.
Dos christãos o distincto cavalleiro
Curvado está ao jugo mauritano,
E rosto mauro, e gesto feiticeiro
O peito lhe captiva, por seu damno;
A abandonar um Deos que é Justiceiro
S’tá preste o mizerando... Amor tyranno!
Mas Deos lhe fala n'alma, e de repente
O profeta mal-diz da maura gente.
Do Author,

QUADRO I.
4 de Maio de 1147. São 5 horas da tarde.
O Theatro representa um magestoso Salão na resi
dencia d'Abzechri; d’ambos os lados, quasi á
boca da Scena, ha dois ricos sofás; e algumas
almofadas guarnecem a mesma.

SCENA I.

D. GASPAR sentado sobre uma das almofadas,


lendo em um livro; em seu rosto se observa de
buxada a tristeza, e seus olhos exprimem
a aflicção que sente n'alma.
D. GASPAR,
*

?> F… dado todo o poder no Ceo e na terra; por


m tanto íde, e ensináe todas as nações… baptizáe-as
3 A TOMADA DE SANTAREM.

sr. em nome do Padre, do Filho e do Espirito San


» "to, ensinando-as a guardar todas as coizas que
» vos tenho recommendado; e estáe certos que eu
» hei de ser sempre comvosco até ao fim do mun
» do. » (Fecha o livro, e medita por breve espaço)
O pureza! ó sublimidade da Santa Lei que pro
fesso!... e eu, desventurado; que estive a ponto de
renegal-a!... E porque?!... Vergonha, maldição :
sobre mim!... Pelo amor... Oh! e para possuir um
coração ser mister commetter um sacrilegio!... Não,
isso nunca!... Mas Zoraida... Zoraida... iman que
atráes o meu coração com magico poder!... e não
és tu tão bella como as maravilhas do Ceo?... não
é a tua alma angelica similhante á innocencia dos
anjos!... tu, Zoraida, tu, que és humana sómen
te no ser... no ser... porque em todo o mais és di
vina! (Deixa o livro sobre a almofada, e ergue-se)
Desgraçado D, Gaspar de Souza! que horrivel lu
cta travam na tua alma o amor e a religião!... se
2 esta Ine submetto, o amor geme e suspira... se
para amor propendo, lá solta a religião um brado
ameaçador, e o seu medonho estampido estruge no
fundo do meu coração!... Lá me esperam as maldi
ções do meu rei, que, fé em Deos, Santarem sa
berá ainda conquistar ao jugo mauritano; esperam
me as maldições de meus páes e da minha patria!..
JE o futuro?!... Oh! que mal-afortunado que eu se
rei se abjurar a santa # de meus avós!... Qual
será o meu terrivel futuro!!!... Os tormentos, os
supplicios que padecem os condemnados nas foguei
ras
{
do Inferno! Ah!!... (Caíndo sobre a almofada.)
- • * •

*** - - - - +

SCENA II.
o PRECEDENTE e OSCAR,

oscAR (junto á porta.) * *

… D. Gaspar de Souza?!
SCENA II. 9

D. GASPAR.

Quem me chama?!... Ah! és tu, Oscar! Que


se pertende d'um desgraçado captivo ! -
oscAR (descendo á Scena.)
D. Gaspar de Souza, que sempre te encontre
afflicto! que nunca um sorriso te assome aos la
bios!... Sempre melancolico, pensativo sempre!...
Que hei mister fazer para chamar á paz a tua alma!
+

D. GASPAR ,

A paz! (Ergue-se) Oscar, se a tua fôra: a mi


nha mal-fadada situação, se inimiga estrella te rou
basse que
a liberdade, acaso haverias ua ventura os sor
risos ella me nega? •

OSCAR .

Não tens encontrado no alcaide Abzechri, por


minha intervenção, e a rogo da encantadora Zorai
da, que assaz interesse ha tomado no teu captivei
ro, todo o acolhimento e hospitalidade! Hospitali
dade e acolhimento, que um christão talvez dene
gasse a um
stancias em moiro,
que oraque houvera as mesmas circum
estás? •

D. GASPAR.

E' certo; e a minha alma, que jámais foi man


chada com o ferrete da ingratidão, será sempre re
conhecida a tanta munificencia. Ah ! mas deixo eu
por ventura de ser captivo? Não sou eu bem infe
liz vivendo em Santarem ha um anno, sem haver
novas de meus páes, que tanto amava? Não sou
bem infortunado, porque não vivo no gremio da
minha religião? Dize?
10. A TOMADA DE SANTAREM.

OSCAR,

Mal haja a religião, praguejada seja a cren


Ga...
D. GASPAR.

Oscar... (Com muita aflicção.)


- OSCAR »

Sim, portuguez, eu jámais deixarei de odeiar


a tua religião: um dia, que paxorrento estava eu,
me aturdiste os ouvidos com a leitura de tantos ar
tigos de fé, que ella dogmatisa, que de os escutar
inferi sua nullidade e chimera... quem acreditará,
christão, os dogmas d'essa religião, que dizes ser
a só unica verdadeira! quem acreditará tanto mis
terio incomprehensivel, que não se coaduna, que
repugna até mesmo á razão humana?!...
Dº GASPAR.

Oscar... não sejas blasfemo!... ah ! teme... te


me as iras do meu Deos!...

OSCAR,

E que mais tenho eu a temer do teu Deos? Não


me has tu dito, que quando a alma me saír do cor
po irá soffrer supplicios etermos na morada dos con
demnados, pelo só motivo de tendo nascido filho de
Páes mahomethanos, e como tal educado, haver
seguido o alcorão? Dize, christão, quando soffrer
morte o meu corpo, terei condemnação eterna , e
ser-me-ha vedada a entrada na patria dos bema ven
turados, ainda que no curso d’esta vida me atenha
sempre ao exercicio da virtude? Se o teu Deos me
ha de brindar com tormentos d'Inferno , mesmo
quando pela pratica de minhas boas acções alcance
do mundo nomeada de virtuoso, que mais terei a
sCENA II. 11

temer do teu Deos?!... Ah! christão, christão!...


se eu não olhasse como delirios as doutrinas que,
em vão, me tens querido incutir na mente, meus
filhos, quando houvesse de os ter, seriam affogados
á nascença por uma piedosa mão... pela mão de seu
páe, mesmo porque era seu páe... de seu páe, que
parecendo o seu algoz se tornava o seu amigo, e
que preferia tirar a vida a seus filhos, a doutri
mal-os na praxe da virtude, para serem votados á
condemnação eterna, e...
D. GAsPAR, (no maior auge de transporte.)
Oscar!... não mais... ah ! por piedade, cala
te, náo sejas blasfemo... não insultes a justiça do .
Todo Poderoso... Se tu trilhares o caminho da vir
tude, se pelo exercicio de tuas boas acções te tor
nares credor da estima de Deos, elle um dia te ins
pirará, e fará com que abraces a minha religião,
religião unica e verdadeira, que póde salvar o ho
mem... Foi o Messias tantas vezes promettido e an
nunciado pelos prophetas... Foi o Filho de Deos
feito homem, que vindo ao mundo a ensinou aos
povos da lei santa; a sua divina palavra será res
peitada em todo o mundo, adorada por toda a chris
tandade... Deos é um só... só o que chamas meu
Deos, é o verdadeiro Deos de todas as nações... só
elle é Deos... os mais são nada...

OSCAR.

Deliras, infeliz?... Insensato, que não recor


das Abzechrite possa ouvir! Olha que a compai
xão e benignidade tambem tem os seus limites.
D. GASPAR º

. Tens razão... Insensato! pois Abzechri me pó


de ouvir!...
12 A TOMADA DE SANTAREM.
• OSCAR. •

Experimentemos. (á parte) Porém, amigo,


nova trava de conversa, que ao mesmo passo que
se torna grativa ao meu coração, por ser nova dis
seminará talvez as tuas penas. Não ignoras que de
ha tempos adoro extremosamente a nobre e encan
tadora Zoraida.
#

D. GASPAR, (sobresalta-se.)
E ella, Oscar, accede á tua ternura?
OSCAR,

Lá deitaremos em tempo competente. Tambem


não ignoras que filha d’illustres progenitores, ella
nunca os enxergou, porque seu páe havia falecido
d'antemão ao seu nascimento; e a morte roubou
sua mãe ao mundo na mesma hora, em que havia
esmaltado o mundo, mostrando á luz do dia a en
cantadora Zoraida. •

D. GASPAR, (com interesse.)


E' verdade, a encantadora Zoraida... o esmal
te do mundo! o apuro da natureza!... oh ! tanta
virtude só no Ceo acharia competidora!... maravi
lhas como ella só lá se podem dar!... Praza ao Ceo 2
que ella não fôra mahomethana...
OSCAR º

Que escuto. (á parte) Tanto folgo, quanto fa


zes justiça a Zoraida... mas é a vez primeira, que
te oiço tomar por ella um interesse tão demesura
do... (Com ironia.)

SCENA II. 13

D. GASPAR, (buscando disfarçar.)


O reconhecimento... Oh! tem dó de mim meu
coração. (á parte.)
oscAR.
E' arrazoado o teu enthusiasmo, D. Gaspar
de Souza... oh ! tu muito lhe deves... a não ser Zo
raida, talvez que á similhança dos mais captivos
christãos, a cadeia comprimisse teu pé... talvez que
a tua mão avezada outr’ora a empunhar a espada,
quando só curavas da cauza do teu Deos e dos ca
prixos do teu rei, com muito maior interesse, que
dos interesses da tua patria... talvez que essa mes
ma mão sustentasse de presente a alavanca ou o pi
carete... Tu, portuguez, serias captivo como os mais
captivos, e de nada te montaria esse fantasma de
grandeza da tua luzida estirpe... Não podia isto mui
bem acontecer, D. Gaspar de Souza?...
D. GASPAR, (confuso.)

E' certo, capitão... é certo... Desconfiará el


le!... (á parte.)
OSCAR.

Que excessivo enthusiasmo quando proferi o


nome de Zoraida! Dissimulemos. (á parte) Que é
isso, amigo, ficaste pensativo? Tens razão; affas
tei-me do assumpto que havia enderessado; perdôa,
encetarei de novo a carreira da minha historia...

D. GASPAR.

Sim, a carreira da tua historia... e já ancio


so anhello pela sua conclusão.
OSCAR, " "

Filha d'illustres progenitores, como de ha pou


14 A TOMADA DE SANTAREM.
co te disse, os quaes não houve a ventura de en
xergar, foi, apenas recem-nascida, entregue aos
cuidados do grande Abzechri, que, relacionado por
vinculos de estreita amizade com os nobres autho
res de seus dias, curou logo desvellado da sua in
fancia, e ávante da sua educação: ella já mais foi
desamparada por Abzechri, no qual, até hoje, tem
encontrado todas as sympathias e desvellos pater
I}{\GS,

D. GASPAR, (com alegria e enthusiasmo.)


Oh! bom grado a Abzechri, bom grado ao Al
caide Abzechri, que soube inspirar no coração de
Zoraida... ( Tom diverso) sim, que lhe soube ins
pirar tanta virtude e heroicidade... Não é assim,
Oscar! Não fales coração. Lá parte.] -

- * OSCAR.

Não foram sem fundamento as minhas conje


cturas. Lá parte]. Assim é... Essa mesma heroicidas
de e virtude reunida á extremada belleza de que é
dotada, fizeram que eu realçasse o preço á vida to
das as vezes que a contemplava: pelos olhos, que
são os orgãos da nossa alma, e que sabem exprimir
ao vivo quanto se passa no coração, eu comecei a
patentear-lhe o meu affecto. [D. Gaspar, suspira]
Zoraida, tímida de natural, e noviça no amor, a
principio córava, estremecia... e, furtando aos meus
os seus lindos olhos, ía fazer com elles o chão di
toso... Emfim, eu não poude por mais tempo de
morar uma confissão, d’onde esperava dimanasse à
minha felicidade... disse-lhe que a amava, e...

P. assPAR, Tenthusiasmado.]
E ella disse que tambem te amava... que morº
ria d'amores por ti... não é assim, Oscar!... Oh!
bem haja ella... teve razão... fez justiça ao teu me
recimento... ainda bem, amigo... tu és digno de
SCENA II. 15

Zoraida... de Zoraida... Parabens, parabens pelo teu


triunfo amoroso... terás um anjo por consorte... go
zarás no mundo um Ceo de delicias... no mundo,
que é o meu algoz, o meu inferno! [Em extremo
transportado.]
OSCAR •

Não hei que duvidar; mas é mister o disfarce:


vigiarei teus passos, maldito captivo, e treme da
minha vingança que espantosa será ella. Lá parte]
Que é isto? Lagrimas, D. Gaspar!
D. GASPAR,

Lagrimas... sim, lagrimas d'alegria pela tua


felicidade... [Com gesto prazenteiro, e buscando af
fectar tranquillidade.]
OSCAR »

Concluirei a minha narração: Poucos dias ha


viam decorrido, em occasião que eu a seus pés lhe
testemunhava de novo um amor eterno, ella me
disse com sobeja frieza: — Oscar, que baldados
são os vossos extremos e sacrificios! Neta d’illustres
avoengos, continuou a linda ingrata, como vos não
é estranho, Abzechri, que ora faz as vezes de meu
páe, jámais consentirá que eu despoze um homem,
que, bem como vós, ignora quaes sejam os autho
res de seus dias. — E' verdade, lhe respondi eu,
que não tive a ventura de saber a quem devo a exis
tencia; só sei que á boa Fatima piedosa e anciãa
mulher, que de seu suor regava a terra, e com seu
braço a cultivava, é que devo o amparo e a educa
ção... foi só ella quem me serviu de mãe e d’esteio
na orphandade... a morte porém ma roubou quan
do eu contava apenas quinze annos, sem que até
então podesse haver da minha bemfeitora quaes fos
sem os meus progenitores, que ella mesma dizia
tambem ignorar. Todavia, accrescentei eu então...
-

16 A TOMADA DE SANTAREM.

e Zoraida me escutou... […"


e forte] é mister
que vós saibáes, que na honra, e sómente na hon
ra, é que se faz consistir a verdadeira nobreza, que
as boas acções são os seus doirados pergaminhos, e
que a virtude é o verdadeiro brazão d’armas que a
caracterisa... — Não é isto bem verdade, cavallei
ro dos christãos!

D. GASPAR •

Tu o disseste... [Confuso.]
OSCAR »

Eu o disse; e accrescentei: Sabei, senhora,


que o homem verdadeiramente nobre é aquelle, que
tem a alma enamorada da virtude, e o braço pres
tes para se armar em defeza do seu rei e da sua pa
tria. Não disse bem, fidalgo portuguez?
D. GASPAR.

d Ah! que elle me moteja... Dá parte ] Mas...


epois ; ...
OSCAR »

Depois ella principiou a tomar algum interesse


por mim; porém esse mesmo interesse, de mezes a
cá, que affrouxou de todo.
D. GASPAR,

. De todo?!... Respira coração. Dá parte] Oh!


e porque? porque?
• OSCAR » }

Talvez pelo só motivo de ser mulher, pois que


a volubilidade anda liada aos corações femenís por
"um nó indistructivel... ou talvez que algum rival
affortunado...
SCENA II. I?

D. GASPAR •

Oh " não, não... Oscar, não tem rival... nem


merece tel-o. E quaes são de presente os teus inten
tos, dize?
OSCAR •

Progredir no meu amor, e possuir Zoraida a


todo o risco... e até, se for mister, um rapto, a
violencia... |-

Dº GASPAR «

A violencia!... um rapto! ah !!... Não te acre


dito... Oscar não é capaz de commetter uma infa
mia! - -

OSCAR º

Bem hajas tu que me conheces; [com muita


ironia, o que conserva até findar a Scena] tens ra
zão; Oscar é incapaz de praticar qualquer acção,
que harmonia não tenha com a honra... Nem tu,
D. Gaspar... não é assim ? Isto não foi mais que

uma pedrà de toque para conhecer o gráu da tua
sensibilidade: deves muito á nobre donzella, e eu
quiz sondar d’est’arte se sabias compensar o seu af
fecto... Sim, amigo, eu espero conseguir o coração
de Zoraida... mas não pela força... hei de possuil-o
por mais nobre preço... ha de ser com amores, com ter
nura, com extremos... [Breve pauza] Christão, se
amor dever mercê, póde ser, que hoje mesmo seja
o dia da minha félicidade {#
e da tua rui
na. Fica-te cm paz, cavalleiro... Vou ser eom a
encantadora Zoraida. [Sáe olhando-o a furto.]
18 A TOMADA DE SANTAREM.
SCENA III.
D. GASPAR, só.
D. GASPAR, Ldepois de pauza1
Váe ser com a encantadora Zoraida. Mortal
affortunado! Váe ouvir o som d'aquella voz, cuja
melodía é para meus ouvidos encantados, mais sua
ve que o concerto dos anjos... contemplar a ima
gem do seu lindo rosto, onde alvejam todas as gra
ças... aquelle rosto, que por meu damno, é o iman
das minhas potencias e a vida da minha alma!...
váa vêr aquelles olhos, que enfeitiçam corações de
gêlo... aquella boca, que respira amores... Váe ser
emfim com a encantadora Zoraida!... Oh! e quan
to uma hora assim passada, vale mais, que a mais
longa vida, recamada de loiro dos conquistadores
e das corôas dos potentados!... Meu Deos! meu
Deos! eu de mim proprio me envergonho!... Sou
. christão, sou portugez; mas não me é dado ser he
roe... não, porque amor tem muito mais força que
o ser humano!... Ah! que a não valer-me a tua
misericordia, a minha alma será ligada aos demo
nios e arremessada ás chammas do Inferno!... Ver
Zoraida, e não possuil-a... oh ! um momento com
Zoraida equivale a seculos de existencia... Deos de
infinita clemencia, se essa voz evangelica, que me
véda renegar a santa crença de meus páes, se esse
grito ameaçador da carrancuda Eternidade, se esse
brado espantoso do Inferno me havia de continuo
ribombar aos ouvidos... para que tão sensivel me
fizeste, ou porque a amor não déste menos doçura!!..
Santa religião, tu já vás sendo um pezo insupporº
tavel á minha existencia!... Porque não havia her
dar o ser de páes mahomethanos, que já uma força
remorsiva não impeceria o meu amor... Ou, quan
do em Almeirim, estava eu, por mandado d'el-rei
D. Affonso Henriques, para vigiar de mais perto os
movimentos dos moiros, e que uma não esperada
scENA III. 19

incursão d’estes barbaros caíu sobre aquella povoa


ção, fazendo-me captivo e a meus irmãos d'armas,
ah! porque n'esse momento uma mão caridosa não
alevantou o alfange, e decepou a cabeça de meu
corpo?!... Com a morte teriam findado todos os meus
tormentos.. Deos d'Israel, não desampares a tua
ovelha, que perdida quasi que está ella do teu re
banho; dá nova fórma ao seu coração... eu curva
do to peço... [ajoelhaj ou me presta uma existen
cia de ferro, ou arreceia de menos um adorador á
tua divina omnipotencia. UErgue-se, vá buscar o
livro, e partindo, suspende-se á voz d'Abzechri.]
***

SCENA IV. .
• º PRECEDENTE e ABZECHRI.

|- Al}ZECHRI •

Christão, sei que te empenhaste com a nobre


Zoraida para ella obter o meu consenso, a fim de
que os captivos portuguezes, que ora existem n’es
la praça, trabalhando nos reparos e fortificações da
mesma, transitassem a livres de ferros; isto, D.
Gaspar, é muito exigir; todavia talvez assentisse á
tua supplica, se motivo assaz ponderoso, qual é,
a não mentirem os meus espias, premeditar o teu
rei o louco arrojo d'atacar Santarem...,
D. GASPAR ,

D. Affonso Henriques?!... [Buscando encobrir


a alegria.] •

ABZECHRIS

D. Affonso Henriques, homem estoico e atre


vido, que vendada traz ele a razão pelo mesmo es
toicismo, e que não se alémbra, que esta praça.»
2 +
2o A TOMADA DE SANTAREM.
inconquistavel por sua posição, e mais ainda pela
forte defensa de seus muros, bem livre está ella de
pé inimigo pizar seuB.solo.
• GASPAR.

" " Pois D. Affonso Henriques pertende aggredir


Sántarem?... Como escallar seus muros?... Oh!
não, não o creio: isso, senhor, não passa de ser
um mero antojo. º
**
*
* - ABzEcHRI.
• - • •

Do tempo abrotará a veraeidade ou nullidade


de taes rumores; e, no caso affirmativo, christão,
que alienado estaria eu, se, governador d’esta pra
ça, n'uma crize tal, alliviasse do pezo das cadeias
os captivos portuguezes! D’ost’arte lhe daria azos
para tramarem alguma sillada contra mim... porém
mesmo em ferros, ai daquelle que premeditar... que
apenas sonhar traições... D. Gaspar de Souza, ai
de ti, que mesmo porque ferros não tens, mais de
pressa podes ser traidor; mas...
D. GASPAR.
Senhor...
A BZECH RI,

Tens razão, excedi-me, cavalleiro, pela parte


que te diz respeito: D. Gaspar jámais poderia as
sociar-se a authores da traição, ou ser sectario de
seus crimes... oh ! elle jámais derriscará da memo
ria quanto deve ao alcaide Abzechri, de quem ha
recebido tão indubitaveis provas de verdadeira esti
II18) . "
D. GASPAR. . --

E verdade, governador; e, no encomio que


acabaes de tecer á minha honra, fazeis justiça ao
meu caracter. Consenti que me retire...
ABZEcHRI.

Obráe a vosso grado. [Sáe D. Gaspar.]


|- * * * - • * • #1

SCENA V.
ABZECHRI, e depois ABIMELECK.
ABZECHRI,

Joven captivo, tü me has attraído as sympa


thias da minha alma... Trazes sempre a tristeza de
buxada no semblante, que o germen da tristeza lá
se acantona no teu coração: é arrazoado o teu sen
timento: o captiveiro torna-se insupportavel até mes
mo no gêlo da idade, quanto mais no verdor dos
arnos, que o homem é todo desejo, e que não co
nhece outra lei, que não seja a realidade do seu
desejo; que o homem é todo liberdade, e que se
por ventura um dia apparece um freio que a limi
te, ele o despedaça a seu grado, e se engólfa de
novo na encadeada serie de seus prazeres... Eu pran
teio a tua situação... Oh! conspira-te contra o teu
rei, que victima és tu, bem como teus irmãos da
sua desordenada cubiça. O lá, Abimeleck?
> , … .. "
* *

/* * *

ABINELEcs, Lá porta.]
Que determinaos ?
ABZEC IIRI,

Hei mister a comparencia do capitão Oscar:


demanda caminho em sua busca. LSáe Abimelek]
Ah! D. Affonso Henriques, rei soberbo e orgulho
so, quem sabe se a tua desenfreada ambição, por
que a vida acabarás, virá tambem terminar comti
go em frente de meus inexpugnaveis muros! Rei
audaz, que não te alembras, vens tentar uma em
preza, que outro algum homem jámais tentou, que
castigado não fosse do seu atrevimento! A tua hy
pocrisia cavará a tua ruina: olha que nem sempre
o triunfo ha de ser das tuas armas, porque o ven
cedor tambem tem uma hora de ser vencido.
***

%
22. A TOMADA DE SANTAREM.
SCENA VI.
o PRECEDENTE e OSCAR.
\ oscAR, •

A's vossas ordens, governador.


ABZECHRI,

Bem vindo, Oscar. De ha muito que no hori


sonte não raia a aurora tão fagueira para Abzechri,
como hoje despontou; ella presagia novas victorias
ao meu exercito, que ainda mais uma vez enrama
rá de virentes laureis a sua fronte. Saberás que em
quanto Albaraque nosso rei, que de posse de Sevi
lha está elle, e a lá se prepara para novas conquis
1as sobre as terras, que pizam os christãos, o rei
christão concebeu o temerario projecto de vir atacar
Santarem... Santarem, cujas muralhas hão sido tan
tas vezes invejadas, e por isso mesmo accommetti
das, mas nunca conquistadas. Foi em Coimbra,
onde ora faz côrte, que elle e os seus premedita
ram o louco intento; e, talvez a largo passo, mon
tados em seus ginetes, já venham a caminho d’esta
praça.
OSCAR.

,E acreditáes vós que Affonso Henriques ouse


tal?! -

ABZECHRI.
Tenho dados certos, que assaz comprovam quan
to acabei de exarar: os meus espias velam incessan--
temente; Affonso Henriques ha tido sempre em vis
1a este ponto interessante, que, posse d’elle, lhe
daria passo franco para atacar o resto da Extrema
dura, que braços mahômethanos ainda defendem.
SCENA VI. $3

"OscAR,

Pois bem, senhor, se essa noticia que voga,


em quanto a mim sómente ideal, chegar a aproxi
mar-se de braços com a realidade, que hemos nós
a arreceiar? que terá o nosso rei a temer? Se nos
peitos dos christãos ferve o amor pelo seu Deos e
por D. Affonso Henriques, por quem pelejam sem
covardia; os nossos peitos não se inflamam menos
por Albaraque e pelo Profeta; e se os christãos, pe
ritos na arte da guerra, são destros em brandir a
espada e empunhar a lança, a lança e o alfange
tambem não são hospedes em mãos de moiros. Oxa
lá que hoje mesmo fosse o dia Affonso tal ousasse,
que hoje mesmo nós teriamos o prazer de vêr nau
fragar o orgulho portuguez nos baixios do seu átre
Vlmento,
A BZECHRF.

Muito me apraz, capitão, o enthusiasmo com


que falas das nossas armas, quando estamos prestes
á peleja; e, praza ao Ceo, que os meus soldados,
a exemplo do seu capitão, imitem sua coragem,
unico testemunho de reconhecimento que exige Ab
zechri, de haver sido sempre para com elles, na
paz páe e amigo, e na guerra campeão e compa
nheiro. •

QSCAR.

Governador, dado o caso que Affonso Henri


ues leve a effeito a tentativa d'atacar esta praça,
mister toda a cautella e segurança para com os
captivos christãos; e o mesmo D, # de Sou
Z8, , º • • •

ABZECHRI»

Singular metamorfoze, Oscar! Que nova lin


guagem é essa quando falas do teu amigo?!
24 A TOMADA DE SANTAREM.
OSCAR. -

Malvado! Tá parte] Senhor, D. Gaspar é por


tuguez; e, na crize apurada em que nos achamos...
quero dizer, quando se espera que o rei christão
cáia sobre nossas muralhas, não acho prudente que
D. Gaspar, aliás sabio e guerreiro, goze d'uma li
berdade, que póde ser prejudicial ás nossºs armas,
que póde vir a ser funesta... -

ABZECHRI.

Como assim? explica-te.


• OSCAR ,

Temo que possa seduzir alguns de nossos solda


dos, que possa (porque os christãos, e principal
mente os portuguezes são assaz cavilosos nos tramas
da guerra) comprar os sentinellas, evadindo-se por
este meio de nossos muros, e apresentando-se a Af
tonso Henriques, dar-lhe uma narração minuciosa
dos pontos mais ou menos fortificados d’esta praça...
Oh! recordáe-vos da condescendencia que houves
teis para com esse Mem Moniz de Gandarey, quan
do ha seis mezes mandado aqui de Coimbra pelo
mesmo Affonso ante vós, para com vosco assentar
pazes, pazes, ás quaes corajosamente não quizes
teis aderir... recordáe-vos, repito, da condescenden
cia que houvesteis para com elle, mostrando-lhe to
das as vossas fortificações, e fazendo-o entrar até
nos proprios carceres, que pulsos de christãos em
ferros habitavam, a fim de vêr e tratar com elles.
Talvez, governador, talvez que a vinda inopinada
do exercito christão, não seja mais que um effeito
da vossa nimia boa fé para com este portuguez en
genhoso e traiçoeiro. - -

ABZECHRI,

E' verdade, amigo, a attenção com que se da


SCE NA VI. 25

va esse cavalleiro, ainda a mais insignificante coi


za, não põe em duvida a tua justa desconfiança:
nem eu me persuadi que elle deixasse de ser trai
dor; e, se não fôra o direito das gentes, teria pa
go com a vida o seu arrojo. Porém D. Gaspar tor
na-se superior a todo o encomio, e jámais deixará
morrer em sua alma a gratidão para com Abzechri,
que tantas regalias lhe ha prodigalisado no seu ca
ptiveiro. /
- OSCAR »

O tempo, governador, é douto mestre; e, pra


za ao Profeta, que não tenháes de arrepender-vos
aind a da vossa munificencia em ordem a D. Gas
par. •

• A BZECHRI.

Não terei de que me arrepender sem duvida.


Ah! quão tardio é o momento que medêa entre o
ataque e a victoria ! Que morosa é a aproximação
do exercito inimigo a nossos muros... pois fé no Pro
feta, amigo, os meus soldados, do primeiro ence
jo que houverem com os christãos, á força de mil
golpes farão correr o sangue a jorros de seus peitos;
e, abatido d'est’arte o seu orgulho, estraboxando
pela terra, em vão hão de implorar o nosso soccor
ro, que Abzechri, para com elles será inexoravel.
• * . - *-

OSCAR.

. A vossa presença torna-se indispensavel ao ex


erCILO... - -

ABZECHRI.
• * ". 1
E justo, Oscar; vou tratar de passar revista
ás minhas tropas, e com a minha presença animar
os combatentes... o ocio da paz, quasi que é um
crime aos olhos do guerreiro; o clarim da guerra
váe soar a seus ouvidos; e os soldados mahometha
nos obrarão novos feitos de valor sobre as armas da
26. A TOMA DA DE SANTA REM.

christandade. Eia, amigo, sejamos prestes com o


meu exercito; mas antes d’isso faze reunir todos os
marabús; partamos com elles á grande mesquita da
praça, que alli, quaes sacerdotes do alcorão, pros
trados com a face em terra, implorem do Profeia
triunfo para as nossas armas. Partamos. LSáe.]
OSCAR º

Vou ser comvosco.


* *

SCENA VII.

OSCAR, só.
OSCAR, •

Não vingou a intriga que me havia pleneado...


oh ! mas a minha raiva azas me prestará para a vin
gança... Christão traidor, tu me roubaste Zoraida...
eu a perdi para sempre, porém tu não serás o se
nhor do seu coração... Assaz doutrinado está Oscar
nos direitos que tem á posse da ingrata... e, ai de
ti, porque és seductor, se rebentar o vulcão da mi
nha vingança; a explosão será espantosa; e o me
donho estampido de suas dezonações, quando troar
em seus ouvidos, te fará, talvez, caír no Inferno,
•=…=
[Sáe.]

SCENA VIII,
D.

Gaspan e ARIMA.
.…….

Aqui a tendes: [mostrando-lhe uma carta] a


illustre Zoraida me disse que vol-a entregasse; e,
na sua camara aguarda pela vossa resposta.
SCENA VIII. 27

D. GASPAR • •

E que exige Zoraida de mim ?...


A RIMA.

Estáes a tempo de o saber; abri esta carta, que


o seu conteudo de tanto vos fará sciente.
+

B. GAsPAR, Lá parte.]
Valha-me o Ceo!... Torna Zoraida a escrever
me... o que me dirá, meu Deos! o que me dirá
ella?!... Deverei eu revolver ainda uma outra vez
o veneno que me mata!... Oh! não... Váe-te... di
ze á nobre donzella, que eu... que D. Gaspar não
ousou, nem siquer, tocar a sua carta. Váe-te...
deixa-me...
ARIMA •

Não ha duvida que está muito bem despacha


do; essa resposta torna-se digna d’uma alma nobre
e agradecida: fico ccnhecendo, que os cavalleiros
christãos sabem compensar com gratidão á benefi
cencia, Lironicamente, e D. Gaspar mostra sentir
estas palavras] e ae bello sexo com delicadeza. Es
tá bem, levar-lhe-hei essa resposta. [Parte e sus
pende-se.] •

D. GASPAR ,

Suspende, Arima, não vás... não... Tu me


déste uma reprehenda, e para isso houveste razão..,
Entrega-me, Arima..., entrega-me essa carta.
A RIMA •

Aqui a tendes, Dentrega-lhe a carta] e confiu,


que a resposta será breve, e digna de cavalleiro
ortuguez. [A” parte] E' forte apêgo de religião!
'erdõe-me o Profeta; mas se o amor, que este in
sa A TOMADA DE SANTAREM.
teressante e joven christão consagra á minha nobre
senhora, houvera sido tributado cá á pessoa, a es
ta hora, provavel fôra, que as folhas do alcorão só
de embrulhar
meio cuscús me serviriam. [Retira-se para
da Scena.] •

D. GASPAR, [que tem contemplado o sobscriplo.]


Não hei que duvidar... é a letra de Zoraida...
[Lendo] º A D. Gaspar de Souza. » Foi o seu de
licado punho, que firmou o meu nome no sobescri
pto d'esta carta... E deverei eu abril-a?... deverei
lêl-a ... Ah! não, não. A rima? IElla se aproxi
ma] Recebe... dize a Zoraida... [Guerendo entre
gar-lhe a garta, que Arima não chega a receber.]
A RIMA -

O que hei de dizer á minha illustre senhora!

- º B. & AsPAR, [depois de pauka]


Nada... não lhe has de dizer coiza alguma.
* * * * A RIM A ,
i . . • - - \,

Isso já eu sabia. DA" parte, e torna para o lo


gar onde estava.] ••

D. º GASPAR»

2. Meu Deos!.. meu Deos, não me desampares!


Torna a olhar o sobescripto, e depois de pauza] Que
isto, D. Gaspar !!!... Nunca tremeste no seio dos
combates! Coberto de novellões de poeira e ensopa
do no sangue de teus contrarios, quantas vezes pi
zaste seus cadaveres, que juncavam a terra, como
guem piza um tapete de flôres! Quantas vezes te
bas achado braço a braço com a morte, e lhe tens
domado a furia!... Oh! nunca te assustou o estron
do da guerra, nunca tremeste á vista do inimigo da
SCENÁ VIII. * 29

tua patria... e tremes e te assustas d'olhar as ex


pressões d’uma mulher, que sendo a inimiga da tua
alma, porque a tua alma quer perder, nem por is
so deixa de ser a amiga do teu coração, que o teu
coração pertende ganhar. LBreve pauzal Leia-se.
[Resoluto, e abre a carta.] |-

- * * * A RIMA •

Agora é que a temos travada. [4" parte.]


D. GASPAR, [lendo.]
» Senhor. » [Representa] Senhor... senhor a
mim!... a mim, que em silencio, por tantas vezes
lhe hei chegado a tributar adorações!... [Continúa]
» Ainda esta vez, e por ultima, me dirijo a vós...»
Ingrata ! por ultima vez!... » Se a activa chamma,
» em que a minha alma de ha muito sente abrazar
» se, por um frouxo amador, é digna de recom
» pensa, espero da vossa bondade e delicadeza, que
2. hoje mesmo mo mandareis dizer...» [suspira] Meu
Deos! hoje mesmo!... » Uma resposta pela affir
» mativa fará a minha, derradeira felicidade... »
[com fogo, depois de ceflectir] Oh ! pois eu posso
fazer a felicidade de Zoraida?!... - Devo-lhe tanto,
e não hei de formar a ventura de seus dias!... Hei
de... hei de, sem duvida...
# • +

A RIMA •
---- * **

Caíu, como um patinho... Adeos, senhor li


vrinho das orações. [A parte.] • •

"D. GASPAR • ** * * +

» Se porém a vossa ingratidão montar a tanto


º excesso, que ouseis responder-me pela negativa,
” a morte, em breve, porá termo a uma vida, que
» ao mundo só respira por vós... N’este momento
3o A TOMADA DE SANTAREM.
» uma lagrima escapa de meus olhos... e um sus
» piro desliza do caminho dos labios...» Suspirou...
chorou Zoraida... e suas lagrimas humedeceram os
bellos caracteres, que aquella candida mão traçou
n'este papel... Lenxuga os olhos] Chorou Zoraida...
e o pranto se transmittiu a D. Gaspar!... Oh! quan
tas lagrimas derramaram seus lindos olhos sobre a
terra, foram thezoiros de menos, que competiam ao
meu coração. [Fica meditando na carta.]
*

A RIMA e

Ah! o rapaz já chora! Então o negocio não


váe mal affigurado para a minha nobre senhora;
creio que póde contar com marido, que desse ge
nero, tanto como eu, anda ella bem necessitada.
* # , , [A” parte.]
D. GASPAR.

» Eu vos affianço, que obterei prestes o con


» senso d'Abzechri, para que hymeneo nos uma por
» nó indistructivel; [com muito interesse] mas é
» mister que, hoje mesmo, perante o grande Alá
» abjureis, para sempre, a religião Christãa... ”
Ah!... que horror!!... [Fica como espantado, e con
vulso.] • + •

A RIM A ,

Boliram-lhe na ferida, temos o caldo entorna


do LA' parte.] • •

Dº GASPAR.»

Nunca... nunca... Não ha poder no mundo,


por mais superior e atroz... não ha paixão, por mais
forte que ella seja, que me obrigue a deslizar do
trilho religioso, que uma vez encetaram os meus
maiores... Váe-te, mensageira do Inferno... retira
te, não me contamines com teu halito pestifero...
leva esse veneno, [dá-lhe a carta] depozita-o na
fonte d’onde emanou... foge da minha vista para
SCENA VIII. . . 31

sempre... e para sempre... nunca mais me appare


ças.
A RIMA •
\

ra? Então, que hei de dizer á minha nobre senho


D. GASPAR.

A quem?... a quem, maldita mulher!!


A R RM A ,
A Zoraida.
D. GASPAR,

Zoraida!... Valha-me o Ceo!... Pois foi Zo


raida?!... Zoraida é que me enviou essa carta?!...
Oh! meu Deos! e hei de perdel-a!... tão bella!...
ainda mais linda que a aurora da primavera!... Ah!
quem, por piedade, me alivia do fardo da existen
cia?... [percorrendo a Scena] Quero a morte... Quem
me dá a morte!... [Furioso.]
A RIMA.

Senhor...
D. GASPAR ,

Foge, furia do Inferno... não impestes o san


ctuario da virtude... e dize a Zoraida, que nunca
mais me appareça... que a detesto para sempre...
que renunciu a esse amor, que por ella me infla
mava ... que só amo a Deos, que jámais renegarei
a minha crença... que praguejo Alá, o falso Pro
parece,e todas
feta, vôa daas minha
superstições
vista. do alcorão... Desap • •

A RIMA •

Fóra! Que tal é o criança?!... Tem affinco á


sua crença com furias de leão! [A” parte] Ficáe
em paz, cavalleiro. [Sáe.] - }
*
32 A TOMADA DE SANTAREM.

-3 - - - ... SCENA IX. #

D. GASPAR, só.
D. GASPAR. , ,

E' mister que, hoje mesmo, perante o grande


Alá abjureis, para sempre, a religião Christãa!...
[Em tom horroroso] Ah!!... que frio glacial se a
podera do meu corpo!... sinto gelar o sangue nas
veias!... Que horror!!... Nunca, nunca o conse
guirás... Mulher seductora da virtude, julgavas que
com teu magico poder... persuadias-te que com teus
encantos feiticeiros terias força sobeja para me vo
tar ao sacrilegio, para me arremessar ao Inferno...
Oh! tu te enganaste... não, D. Gaspar renuncía
o teu amor, não quer as louçanias d'hymineo com
tigo, não... elle as odeia; porque o amor que se
estriba no crime, é um purgatorio da existencia;
e os prazeres que elle derrama, quando bazeados
no delicto, são o Inferno da vida. Doirada cadeia,
que prendes a minha alma á santa religião de Je
sus, tu serás inquebravel para comigo até ao ul
timo arranco que exhalar a minha alma, quando
estiver prestes a ir caminho da Eternidade gosar
melhor vida no seio dos bem-aventurados. Ah! que
nunca a minha alma, como de presente, esteve
tão bonangosa!... Amor me escaldou o coração, e
hoje no coração só existe o remorso!... Oh ! mal
hajas tu, Zoraida, máu grado a ti, maldita seja
a tua formosura, que para dar-me momentos de
Ceo, me ía sepultando a alma no Inferno ! Eu
- fugirei de avistar-te, como os anjos fogem de avis
tar os demonios... eu te detesto, e para sempre te
abomino. Só em vós confiu... […"/" resolução]
d'ora avante só vivirei por vós, ó meu Deos, ó
meu Rei, ó minha Religião. (Parte precipitada
mente, e vendo 2oraida, recúa espavorido) Mas...
Ceos!... que objecto vêem meus olhos?!... Zorai
da!... Zoraida!... Meu Deos, meu Rei, minha
SCENA IX. 33

Religião... ah! eu vos perco... eu vos perco para


sempre !!... (Fica de olhos baixos, e n'uma emo
ção incaprimivel.

SCENA X.
o PREcEDENTE e ZORAIDA.

ZOR A IDA •

Captivo illustre, a tua ingratidão, ou, me


lhor direi eu, a tua barbaridade, decretou que já
mais ouzasse apparecer ante os teus olhos; porém
julguei do meu dever dar-te a ultima despedida,
antes que realisada seja a nossa separação, que ho
je mesmo se effectuará. .
D. GASPAR -

Zoraida... (Ainda de olhos baixos.)


ZOR A IDA •

Sim, christão, foi Zoraida, que impetrou a


teu favor, e que, apenas obtido, a bastante cus
to, o consenso d'Abzechri, essa mesma Zoraida
quiz cevar o coração de prazer quebrando de suas
mãos os ferros, que te agrilhoavam: foi n'essa oc
casião, D. Gaspar, que os nossos olhos se encon
traram pela vez primeira, que os labios emudece
ram, porque nem sabiam explicar-se, e que os
corações, mesmo por nada dizerem, é que muito
disseram. (Chora.)
D, a AsPAR, (sem olhal-a.)
Zoraida... só descutar-te me torno criminoso
ºperante Deos, que me vigia…, mas se te encaro...
34. A TOMADA DE SANTAREM.

oh ! então Zoraida, então... perde-se a minha al


ma, porque amor triumfará sem duvida!
ZOR AIDA .

E deve a nobre Zoraida ser tratada com simi


lhante indifferença e desprezo !
D. GAsPAR, (encarando-a pouco a pouco.)
Ha no mundo um outro homem digno de pos
suir-te, e esse póde fazer a ventura de teus dias
no regaço d'amor e d'hymineo... elle te ama... é
o capitão Oscar... elle muito te ama... é acredor
de ser amado, e amado já foi por ti...… "
*-

… . . * .. ZOR A IDA •

Por mim?!... Nunca, nunca... ah ! eu o ju


ro pelo mal-fadado amor que a ti me liga... Amei
um dia o cavalleiro christão; embora este amor se
ja infructuoso, seja, porque afinco tenha elle á
sua crença, ou por querer adeosar-se, eu já mais
deixarei de amal-o, mesmo a contra-gosto do seu
coração: amarei o cavalleiro christão até á morte,
e pelo cavalleiro christão morrerei, se stanto fôr
mister. - -

D. GASPAR. ·

Seus labios ainda á pouco o proferiram...


zoRAIDA.

Mentiram seus labios. Ah! quantas vezes por


que um olhar, um gesto se colheu ao acaso, ho
mens á que d’isso formam um triunfo amoroso.
D. GASPAR»
* - -- • - .

… Meu Deos! meu Deos, valei-me, que a mi


*
-, ,, SCENA X, … º 35
nha virtude me váe desamparando !... Zoraida,
quando te olho, diviso em ti maravilhas do Ceo...
e, ai de mim, infeliz, que bem arreceio eu, se
me demoro a contemplal-as, votar a minha alma
ao inferno ! (Sem olhar Zoraida.) -

ZORAIDA •

D. Gaspar... (Olhando-o com muita ternura.)


D. GASPAR. ***

Zoraida... (O mesmo, mas a furto.) Oh! (in


do para ella.) mas Oscar me disse tambem, quan
do prestes estava a deixar-me, que ía ter a ultima
entrevista comtigo.
ZORAIDA,

Elle a teve, e houve d’ella o ultimo desen


gano.
D. GASPAR.

O Zoraida, se eu, por te amar, mereço o


inferno; e se d’este amor sómente depende a tua
felicidade, dize... sim... dize, por deixar de amar
te não merecerei tambem o inferno ?!

zoRAIDA.
Ah! D. Gaspar de Souza... (Auge de ternura,
cruzando as nãos.)
Dº GASPAR»

Oh! cncantadora Zoraida... (Pegando-lhe na


mão.) •

ZORAIDA •

Sem D. Gaspar que farei eu no mundo...»


(Chora.)
3 $
36 A TOMADA DE SANTAREM.
• • D. GASPAR.

Que !... lagrimas!... lagrimas, minha vi


à !•••
da ! •

8 •

3
• ZOR AIDA.

Ellas são o lucto do nosso amor... (Chorando.)


D. GASPAR.

Ellas são o luto do nosso amor! Pois o nosso


amor já morreu ?! - Ah ! (largando-lhe a mão com
furor) que blasfemia proferiram teus labios, se aca
so o teu coração teve parte n’ellas!... Pois eu não
te amo?!... O Zoraida, eu não morro d'amores
por ti?!... D'onde emana este ciume que me de
vora?! D’onde procede este enthusiasmo que me
alucina a razão ? ! O nem um apreço, que ora es
tou dando á minha religião, que, se mais te escu
to e mais te comtemplo, renegarei forçosamente
curvado perante o altar da tua virtude e o simula
cro da tua formusura! Tudo isto, Zoraida... tudo
isto póde partir d'outro principio, que não seja
d'amor... que não seja d'amor !!...
ZOR A IDA,

Se tu me amaras, como eu te amo, tu ven


cerias, ingrato, tu esmagarias esses prejuizos, que
são os algozes do teu coração; tu então só escuta
rias a voz d'amor, a voz da natureza, que de con
tinuo te hade bradar ao coração: ama quem te
ama, vive para quem te adora... e respira só por
aquella, que tantas vezes ha sido criminosa por te
adorar... (Chorando.)
ID. GASPAR -

Zoraida, amores da minha alma... anjo do Ceo...


Não... não... anjo do mundo, que mal do Ceo se
SCENA X. - 37
no mundo não habitassem anjos... Tu tens sido cri
minosa por me adorar?!... E as tuas palavras são
acompanhadas de lagrimas e intercortadas de suspi
ros!... Como assim !!... Explica-te, minha vida !
ZOR A IDA . •

Criminosa por te adorar... sim... por te ado


rar com mais excésso, que adoro a minha religião...
com superioridade a tudo, que ha de mais claro
no mundo! ... Quantas vezes, quando te vejo, e
só vejo o que vêr quero... arrebatada do enthusias
mo d'amor, e attenta ao apreço, que tributas á
tua religião... apreço, que ha vedado até hoje, que
o nó d'hymineo nos uma para sempre... tenho arre
ceiado... (no maior auge d'afflicção, enxugando
as lagrimas.) ah! com vergonha o digo !... tenho
arreceiado, que a honra possa tornar-se um mero
fantasma ao meu coração... temido, tenho eu, de
chegar a estabelecer comparações entre o amor e
o dever... oh ! (apossada de vergonha esconde o ros
to com o lenço, e suffoca-se em pranto) porque
uma mulher, que ama, como eu amo, e chega a
estabelecer estas fataes comparações... ou delira...
ou já está meia vencida... (Descobre o rosto a custo,
c fica de olhos baixos, por breve espaço.)
D. GASPAR.

Mulher incomparavel, mulher digna d'um


throno, se a sorte desse os thronos á virtude; que
tu me amas, e que me amas como os anjos amam
a Deos no Ceo, é um axioma tão evidente corpo
existir esse mesmo Deos... Mas, dize, como ligar
me a ti por laço d'hyminco, se hymineo é objecto
do Ceo... e para o levarmos, a efeito, precisão,
teria eu, de renegar a fé de Jesus... a fé do meu
Divino Salvador!...
33 A TOMADA DE SANTA REM.

zoRAIDA, (com resolução.)


Pois bem, não ha força, não ha razão, não
ha reconhecimento, que forcé o cavalleiro christão
a esquecer-se do Deos, que não conhece, para a
lembrar-se da mulher conhecida do seu coração...
está bem, sê com o teu Deos e sem Zoraida, que
Zoraida fica com o seu Profeta, e vai chorar na
solidão as ingratidões do homem, que preferiu as
chimeras religiosas aos extremos da mulher, que
morria d'amores por elle. (Parte, e suspende-se.)
D. GASPAR.

Zoraida... que disseste?!... Não... tu vás legar


o teu coração a Oscar!...
(Oscar espreitando da porta, onde se conserva
até descer o pano.)
ZOR A IDA .

Ah! não... isso nunca !... A não ser D. Gas


par, nem um outro mortal possuirá o meu coração;
só elle morará na minha alma; e proferindo sem
pre o seu nome, acabarei, mirrada de saudade,
os meus desgraçados dias na solidão. -

D. GASPAR,

Zoraida, amores do meu coração, se menos


apêgo has tu á tua religião, que o captivo portu
guez afferro tem á sua, porque não renegas a tua
crença, e abraças a religião de Jesus?... O Zorai
da, se me queres a teus pés, a teus pés estou eu,
Lajoelha] que se mahométhana tu não foras, eu
me acreditára, n’este momento, curvado perante
a Divindade. Vamos, idolo da minha alma, dei
xemos estes sitios da irreligião e do crime, vamos a
cuberto d'um Ceo mais favoravel gostar livres e se
renos os nossos dias, até que a ampulheta da vi
da nos demarque a hora derradeira da existencia…
SCENA X. , , , , , , ; 33

[ergue-se, e pega-lhe na mão] sim, Zoraida, fu


jamos... Com a tua protecção, saberemos illudir os
soldados d'Abzechri, e a saída dos muros de San
tarem nos será franqueada. Oh ! vem, não te de
LIlO TCS - , , •

• ZORA1DAº • *

Que proferes, christão!... Fugir!! Ah!... que


vilania! [Soltando a mão com impeto..] Que máu fa
do sugeriu na idêa do distincto cavalleiro portu
guez um similhante crime?!... |- !

* * * D. GASPAR.
* · • • |- • • •

Crime lhe chama a nobre donzella moira!...


Pois será crime procurar a liberdade quem vive na
escravidão? •

4 - , … - ZOR AIDA. } - , , …"


* * ***

E' crime só concebel-o na idéa, e maior crime


o pratical-o: assim pagaria D. Gaspar ao alcaide
Abzechri tantos beneficios, que a sua munificencia
lhe ha prodigalisado? E Zoraida esquecer-se-ía tam
bem d'Abzechri, que lhe tem servido de pai, por
que, máu grado á sorte, seu pai não chegou a co-
nhecer? • •

. * . * . . D. GASPAR ,
ii --- - - •

. Tens razão, Zoraida; mas quem ama, como


eu amo, nem sempre póde ostentar d’heroe.O sa
crificio, que me disponho fazer é superior a todas
as forças humanas!... Tenho quasi esgotado o ca
lice d'amargura; mas, ao dar-lhe o ultimo trago
todos os membros se me congelam de horror; e o
Pregão assustador da Eternidade, soando a meus
ouvidos, me está dizendo: [quasi delirantc] Filho
ingrato, que esqueceste os conselhos d’um pai des
venturado, que esperava encontrar em ti o arrimo
da sua velhice... elle, por teu mandado vai descer
á sepultura; e quando habitar na patria Celestial,
AO A TOMADA DE SANTAREM.

de lá mesmo, não se esquecerá de soltar a justa


maldição sobre o filho já amaldiçoado pelo Senhor!..
Vassallo infiel, que perjuraste o teu Rei, que em
quanto, a travez de tantos perigos, busca plantar
a religião do seu Divino Mestre no alcaçar da incre
dulidade e do crime, tu, porque amor te conta
mina, renegas essa mesma religião!... , Cégo ado
rador do falso profeta, que abjuraste a fé de Christo,
que tanto amaste!... Anathema, cem vezes peior
que o atheista, que do poder do Senhor sempre
duvidou !... Anathema, que trocaste a suavidade
e a puresa do Evangelho pelos caracteres de san
gue do alcorão... olha o inferuo que te espera,
que o clarão dos seus brazeiros te está chamando...
EORAIDA .

Só um momento, e este só para a decisão: ou


render cultos a
raida. Alá, ou, para sempre, perder Zo

D. GASPAR.

Oh! amor... Oh! amor a quanto me obrigas !..


[Resoluto..] Zoraida... ámanhã.... sim... ámanhã
iremos caminho da mesquita; - e lá então, esque
cendo-me de Deos e da alma, só me alembrarei de
Zoraida e do Profeta: o meu corpo soffrerá alli a
ceremonia admissivel da tua religião, que tambem
será a minha, e a minha alma ficará perdida, e
perdida para sempre... [Fica como delirante atéfin
dar o Quadro.] •

• • ZORA1DA -

- • . * - -

A razão vencerá os teus infundados temores.


D. Gaspar por longo tempo guerrearam na tua al
ma todas as paixões contra todos os deveres; o com
bate foi renhido, e no combate o triunfo foi do
coração. Amanhã deixarás de ser christão, e ma
hometano que sejas, Abzechri, amanhã mesmo,
saberá da nossa mutua inclinação, comprehende
SCENA X. 41

rá a historia dos nossos amores: a meu rogo elle


hade assentir que sejamos esposos; e depois, em
briagados na bebedice d'amor, sem freio, que li
mite nossos prazeres, gostaremos vida de consortes
no seio das delicias. Todavia, novo escravo da lei
do alcorão, o amor requer sacrificios, e hei mister
uma prova indubitavel, que authentique a promes
sa, que acabaste de fazer á pouco, de renegar a
tua crença: aqui mesmo, prostrado por terra, de
verás prometter ao Profeta de não retraíres a tua
palavra, e que amanhã abraçarás a sua lei, que
arraigada será ella com o tempo em teu coração.
Portuguez, esquecerás a tua religião?
D. GASPAR -

Esquecerei a minha religião para sempre...


ZOR AIDA.

Renegarás a tua crença!


D. GASPAR -

A minha crença será renegada...


ZOR A IDA,

Abjurarás o teu Deos?


D. GASPAR,

Abjurarei o meu De... o meu Deos... [Cho


rando, soluçando e prendendo-se-lhe a vos na fauce]
zon AIDA, [enternecida, enxuga os olhos.]
Só quererás o Profeta e o alcorão!
42 A TOMADA DE SANTAREM.
" " D. GASPAR. " " ** ** ** *

E Zoraida... e amor tambem a Zoraida... [Cru


zando as mãos e curvando-se pouco a pouco.]
zoRAIDA.
** ** * * * * • * * * *

Mas nunca esquecendo o Profeta.


. . . … D. GASPAR. : ::: : : : :

Sim, professarei a lei do Profeta... renegarei


a crença de meus pais... far-me-hei um condemna
do... Lajoelha] e trocarei o Ceo de delicias, que
me franqueia a posse de Zoraida, n’esta vida... pe
los tormentos do inferno, que padecerei na ou
tra..." * . , ; ; , " ":" . "

* * * . . ,ºi º
FIM DO PRIMEIRO QUADRO,
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QUADRO II.
Eº meio dia.

A mesma vista do Primeiro Quadro.

SCENA I.

ZORAIDA de cabellos soltos, e ARIMA.


ZORAIDA.
T
Eu não posso soffrer mais, Arima... [limpan
do os olhos] a languidez me opprime o peito, de
vora-me a tristesa, e o desgosto me envenena...
• *

A RIM A ,

Esperança no Profeta, que ainda sereis feliz.


ZORAIDA •

Esperança, amiga?! Eu sei que ella é o ali


mento dos desvalidos da felicidade, como eu ; mas,
que terei a esperar, º que bom seja, quando vejo
Abzechri, ardendo em raiva, mandar lançar ca
deias ao desventurado D. Gaspar de Sousa, e pro
testar horriveis estragos e vinganças sobre o infeliz,
pelo conhecimento, que houve, da nossa mutua
inclinação... conhecimento devido á baixesa e ao
refinamento
pérfido Oscar,da maldade, que encerra no peito o
• • •

A RIMA.

Queimados tenha elle os bigodes! E sugeito


de cabellinho no coração! Que desgraça não seria,
#re!essa pombinha caísse nas unhas d’aquelle milha
• -
44. A TOMADA DE SANTA REM.

ZOR A IDA .

Nunca, nunca serei sua... bem desenganado


ostá elle, por mim, para que esperança possa ain
da nutrir no peito, que, favoravel lhe seja, em res
peito a ser amado.
ARIMA. , , , , , , ,

E fez bem, minha nobre senhora: sempre é


homem, que não sabe quem foi o pai nem a mãi;
deve de ser de geração muito antiga, porque nin
guem os conheceu.
ZO RAIDA,

Ah! que o meu coração soffre horriveis tor


mentos .. o presente e o futuro me intimidam... a
verdade e as quimeras nada me apresentam de a
gradavel... sou importuna a mim mesma... quero
fugir de mim e não posso... Nada me distrác!...
os prazeres teem. perdido a sua graça... [chora] e
oxalá
sua que os deveres não venham a perder ainda a
importancia... •

• • A RIMA -

E' verdade, minha nobre senhora : quem vos


viu, e quem vos vê ! D’antes ereis vós tão alegre
como a risonha primavera, e hoje vos contemplo
mais triste que o carrancudo inverno!
" +

zoRAIDA.

Passo mal de toda a maneira: se passeio, a


fadiga me obriga a descançar, se descanço, obri
ga-me o socêgo a passear... O meu coração não tem
sufficiente logar onde habite... elle se contráe e
palpita com violencia... se quero respirar, longos e
profundos suspiros escapam de meu peito... um
fôgo ardente corre em minhas veias, e me consos
me... e as lagrimas abundantes e amargas molham
meus olhos, mas não me aliviam... Ceos! quanto
• : SCENA I. | 45

me péza a existencia! o amor n'outro tempo a em


bellecia; via correr seremos os meus dias; uma do
ce melancolia me levava a buscar a sombra no es
pesso e emaranhado labirintho do ameno jardim, e
alli gosava do descanço e dos encantos da nature
sa... hoje, apenas desponta o dia, sinto logo redo
brar o meu mal!... Que d'instantes contados pará
a dôr!... O sol se elleva, brilha sobre toda a na
turesa, e a reanima de seus fogos... só eu sou im
portunada com seu reflexo; elle me é odioso e me
abate, similhante ao fructo, que um inceto tem
ruido o interior, e contêm um mal invensivel... E
por tão vivas e rapidas commoções, que de conti
nuo vem ferir os meus sentidos, sinto um estreme
cimento em todo o corpo... Meus olhos nada vêem,
porque vêr não podem D. Gaspar em ferros... a
minha alma, absorta, procura, e não acha o que
espera... ah! que então agitada, e ao mesmo tem
po enfraquecida pelas impressões, que á recebido,
sucumbe inteiramente, e força não tem ella para
combater o mal que a devora... (Amargamente cho
rando.) "
A RIMA e

Nada d’isso sente o meu coração, porque bem


afferrolhado, o trago eu, ás tentações d'amor; com
tudo eu vos pranteio.
ZOR A IDA .

A venturada creatura , que amor não rendes


culto!
deixa-meMas... precizo
entregue estar só...
ás minhas retira-te, Arima,
meditações. •

A RIMA .

Eu vos obedeço, senhora. (Sáe.)


46 A TOMADA DE SANTAREM.

SCENA II.

zoRAIDA, ó.
*: * • < * * •

# Oh! delicias das almas sensiveis! encanto dos


corações apaixonados!... amor... que sobre tuas lon
gas azas nos elevas até ao Ceo! Onde estão essas
setas abrasadoras com que feres os amantes ditosos?
Onde aquella embriaguez em que os sepultas! On
de param esses alegres arrebatamentos, que elles
alternadamente se inspiram um ao outro? Onde
param elles!... Ah!... feneceram, expiraram, por
que mal-aventura lhe roçou o germen !... Porém,
sinto passos... quem será?... (Olhando para den
tro) Ah!!... D. Gaspar!... em que estado! Ceos!
valei-me, e valei-lhe tambem... (Apossada degran
de afflicção các sobre
• .*
uma das almofadas.) , !

. --

SCENA III.

A PRECEDENTE e D. GASPAR, com cadeias nos


pulsos; es/c entra delirante no Scena, scu passo
é tardio e incerto, vcm pálido e desfigurado, os
olhos cspantados; irto e cabello, etc.
D. GASPAR.

Foi aqui... foi a seus pés... foi aos pés da se


ductora da minha alma, que os meus #…
COTIl

vozes d'alma, proferiram a saerilega promessa de


abjurar o meu Deos... de renegar a minha crença!..
Amor... que obras, milagres tão espantosos, quão
espantoso é o teu poder! ... Amor... tiranno amor...
foste tu gerado no Ceo?!... Deos... Deos é que a
nimará o teu ser... ou os demonios é que te fabri
caram, e medras a influxos do Inferno?!... Ah ! e
… … SCENA III, … . 17
para quantos amor á sido bem funesto desde a in
fancia da natureza!... Quantos hão sido aventura
dos com elle desde a meninice do mundo!... Ceo
a uns... Inferno a outros!... Oh! mas amor... a
mor sempre é suave; e, ás vezes, quanto mais cri
minoso, mais doçura o necteriza!... Zoraida... mi
nha Zoraida... Ceos! e ainda ouso chamar-te mi
nha!... Ah! tu mo perdeste... e foi para ganhar
te, que me perdeste!... Era mister, que eu com
mettesse um crime, para ser virtuoso a teus olhos...
Porém, que vejo!... Nuvem carregada e prenhe de
spectros, parece enluctar o matiz do firmamen
to!... Que voz espantosa é esta, que fere meus ou
vidos!!... [Escutando]. Já sei... já sei... é o pre
goeiro terrivel da Eternidade, que me está apon
tando as fogueiras dos condemnados... ah !!... recúa
horrorisado, cubrindo os olhos com as mãos] Mas
que tremor se apossa de mim!... Que desordem sin
to dentro do peito!... Ceos! que estranha afflicção
é esta, que me desorganiza toda a maquina, já
corrupta pelo peccado ?!... Socorro... soccôrro...
Quem me acode!... Ai de mim ! são os demonios,
que me vão arremessando a alma para o Inferno!...
Meu Deos, perdão... piedade... não negueis uma
hora de arrependimento ao criminoso... LCaíudo de
joelhos.] - -

ZO RA IDA .
+ + • • • *

Desgraçado!... o remorso lhe desorganiza os


sentidos! Em que mizero estado o contemplo !
Ah!...
D. GASPAR, Lainda de joelhos.]
Oh! meu venerando páe... honrado cavallei
ro, que o nome de cavalleiro jamais deshonraste
com a sombra, ou o vislumbre d'acção, que boa
não fosse ella... [váe erguendo-se pouco a pouco]
vassallo, e portuguez fiel, para quem o pezo dos
longos annos são ligeirezas da mocidade, quando se
ºura de brandir a espada e sustentar o escudo a Prol
48 A TOMADA DE SANTAREM.

do rei e da religião... religião e rei, que ainda


hontem me deslembraram!... Oh ! meu venerando
páe, a tua justa maldição está eminente sobre a
minha cabeça... caia a maldição sobre teu filho,
que amaldiçoado está elle do Senhor!... D. Affon
so Henriques, primeiro homem, que por tuas vir
tudes, os mais homens assentaram digno de fazer
te rei... quando soar em teus ouvidos, que o vas
sallo, que de tantos honras accumulaste, chegou a
esquecer os teus benefícios... oh ! esta nova hade
contristar o teu coração, por veres, que, á simi
lhança do lirio viçoso tocado por vil inceto, o jo
ven, em quem havias depositado as tuas esperan
ças, deixou amachucar a sua gloria; que o seu co
ração foi roçado pela serpe d'amor venenoso!...
'arentes, amigos, honrados irmãos d'armas, que
a meu lado, vós e eu, hemos, por tantas vezes,
partilhado da gloria, e engrinaldado o capacete da
palma do triunfo... Posteridade... e tu, ó posteri
dade... ah ! pranteia, mas não me amaldições..."
ZOR A IDA .

D. Gaspar?... [Com voz muito sentida]


D. GASPAR.

Ah!... [Recuando horrorisado.] Que sentida


voz é esta, que troou em meus ouvidos?!... que
tanta afflicção exprime ?!... que parece estar ago
nisante!!.., Oh! já sei... é d'algum, que anathe
ma, como eu, preferiu o amor á religião de Je
sus... Clama em vão, desgraçado, que para ti
não ha piedade... Mas ah!... que hidiondos e mir
rados spectros me circundam!... Ave nocturna e
agoireira esvoaça em torno de mim, e me vaticina
a morte!... Que mádido fragor rebenta das entra
nhas da terra! Um lisão de fogo vem repassar es
tas abobedas, e parece annunciar a hora derradei
ra da naturesa!... Onde estou eu?!... Estou no in
SCENA III. - - 49

ferno!... estou no inferno!... Quem me prende?!...:


Lfigurando que sente algemar os pulsos] ah ! são os
demonios... são os condemnados!...
}

.* ZORAIDA •

D. Gaspar, que desorientada tens tu a ra»


zão... [Vindo para elle na maior afflicção.] #

- D. GASPAR.

D. Gaspar!... [Espantado, e como immovel]


Este som não me é hospede... [percorrendo a scenã
com os olhos, vê Zoraida] Ah !!!... Zoraida!... Zo
raida!... [recuando.] Sombra sempre adorada... és
tu, que, mesmo na morada dos condemnados, que
res acompanhar o teu amante?!... Foge... foge,
que além se me prepara a fogueira, e o seu clarão
já allumia este recinto infernal!...
2ORA IDA «

D. Gaspar, minha vida... [Tomando-lhe a


mão] já não conheces a tua Zoraida?... a tua Zo
raida, que, se quer vida, é para morrer por ti...
[Com muita ternura]
D. GASPAR, encarando-a.
E' verdade... és Zoraida... delirei... Oh ! meu
Deos, a força do delirio, que se arreigou na minha
escaldada fantezia, me pintava na habitação do
inferno; volve de novo a razão, encaro Zoraida...
eCéo!
nos seus olhos parece-me divisar a habitação do
• • -

ZORA IDA ,

Por mercê, cavalleiro, escuta-me ainda uma


vez... uma vez somente: esses grilhões, D. Gaspar,
que algemam teus pulsos, esses átavios» que ho
4 •
so A TOMADA DE SANTAREM.
mens, nem sempre purgados de crimes, inventa
ram para o crime, não devem pesar sobre a virtu
de: se Zoraida, até hoje, ha sido o algoz da paz
da tua alma, se ella sómente tem sido o verdugo
do teu coração, attenta a peia religiosa, que te
coarcta a liberdade d'amar, d’ora avante, D. Gas
par, ninguem te impecerá que sejas do teu Deos »
uma vez, que o sejas tambem de Zoraida: essas
cadeias foram parto do amor; pois bem, o amor sa
berá aliviar-te do seu peso: decidida a levar a ef
feito todos os sacrificios de que é susceptivel uma
mulher apaixonada, eu te affianço, christão, que
a tua religião será por mim abraçada: esquecerei o
Profeta, adorarei o teu Deos; e até, se fôr mister,
esquecer Deos, não me recordar do Profeta, e des
1embrar-me d’ambas as religiões, para só me alem
brar de D. Gaspar e do amor... tudo esquecerei,
que em ti encontrarei tudo.
D. GASPAR.

Que proferiste, Zoraida!!... Esquecer o meu


Deos!...
has Ah! isso nunca!... Mas Zoraida, que me
tu dito: •

- ZOR A IDA ,

Verdades, e verdades gravadas no meu cora


ção em caracteres indeleveis. Escuta, cavalleiro,
o plano, que me tenho traçado: D. Affonso Hen
riques dispõe- e a atacar Santarem, para cuja ten
tativa, Abzechri, suppondo-o já em marcha, faz
pegar em armas toda a juventude moura, organi
sa nova falanges, que anima a preço d’oiro e de
seu exemplo, passa revista a seus exercitos, e con
fia nos soldados, que já veteranos em combater,
odeiam o ocio da paz, que só a guerra agrada ao
combatente: se a sorte das armas fôr propicia aos
christãos, posse de Santarem a christandade, abra
garei seus ritos e seus costumes; se, de contrario,
vingar Abzechri, em quanto seus soldados, engol
SCENA III, 51

fados na embriaguez da victoria, cantarem o triun


fo das suas armas, nós, espreitando a occasião mais
favoravel ao nosso intento, passaremos a salvo es
tas muralhas, abandonaremos Santarem, deixare
mos tudo... e tudo levaremos, porque levamos o
nOSSO amor.
Dº GASPAR •

Zoraida, e tu serás christãá?... oh ! sim tu


amarás a Deos com toda a força da tua alma, tu
o deverás preferir a tudo, e lhe começarás a tribu
tar os cultos e adorações, que lhe são devidas...
Mas dize-me, e terás tu animo para deixares Abze
chri? Abzechri, a quem deves tanto!

zoRAIDA.

Se deixarei Abzechri!... Ah! cruel; que jus


tiça não aprendeste tu a fazer ainda ao meu cora
ção! Dize, ingrato, se eu deixo a minha religião,
para abraçar uma estranha, que muito é perder
Abzechri para ganhar D. Gaspar? Se Abzechri,
no auge da saudade, que a minha perda, forçosa
mente, lhe hade trazer ao coração, me alcunhar
d'impudica, ou d'ingrata, chame elle a razão em
seu auxilio, e então saberá que, quando se trata
d'amor, esquece-se patria, dever, beneficencia...
esquecem-se as proprias conjecturas da posteridade...
tudo se esquece, e nos alembra tudo, porque d'amor
nos não esquecemos... Sim, homem, por quem só
respiro no mundo, em qualquer cantão, da terra,
para onde a sorte nos arrojar; a cuberto de doira
dos salões, onde se pavonêa a grandeza; na humil
de choupana do pobre, onde o infeliz soffre todas
as privações, e assim mesmo se exigem d'elle to
das as virtudes; no árido deserto ou na cavernosa
gruta sempre bem-direi a sorte, que a ti me ligou;
é gostando as louçanias d'amor e os brinquedos in
nocentes de nossos filhos, que de seu páe virão a
ser fiéis imitadores no valor e 4na# virtude, não te

62 A TOMADA DE SANTAREM .
rei a invejar a sorte dos reinantes, não invejarei
nem a purpura brilhante, que os atavia, nem ou
tro algum bem do mundo, porque acharei em teus
braços o meu universo, no teu coração o meu so
lio, e o meu diadema no teu amor. (Abraçando-o.)
D. GASPAR -

O” Zoraida da minha alma, vêr-te, e não te


amar, difficil cousa é para o homem, que teve a
ventura de não nascer feroz nem selvagem; con
templar-te, e não ambicionar possuir-te, torna-se
impraticavel ao coração do humano, que é sensi
vel; mas chegar a ouvir o som da tua voz; conse
guir um encontro de teus olhos, ainda que seja ao
acaso; um gesto a furto; um sorriso de teus la
bios, onde podiam habitar os anjos, e não delirar,
não morrer d'amores por ti... oh ! minha Zoraida,
# tal acontecer seria mister um milagre de
eos, e Deos nem sempre está para obrar mila
gres. Sim , minha vida, estes ferros, que pesam
sobre meus pulsos, serão despedaçados por tuas mi
mosas mãos, e então em minhas mães hão de bem
dizer as armas de cavalleiro, que em defensa te com
dusirão onde a sorte guiar meus passos. Embora se
exaspere e morda d'inveja esse Oscar traiçoeiro,
chame a raiva em seu auxilio, ou invente espanto
sas vinganças, que nós, sem curar-mos d'outra cou
sa, que não seja amor, nada teremos a arreceiar
do refinamento da maldade, que habita o seu co
ração...
SCENA IV, " " #3

os PRECEDENTEs e ARIMA, apressada.


AR IMA *

Senhora ! minha nobre senhora ?... Abzechr?


para aqui, sem detensa, encaminha os passos.
D. GASPAR ,

E' preciso que me retire... LP'ivo]


ZOR AIDA ,

Sem tardança. (Rápido, e girando a Scena


eom os olhos.)
D. GASPAR *

• Ainda hoje nos hemos de vêr... Não é assim,


encanto da minha alma? (Pegando-lhe na mão com
capressiva ternura.)
ZORAIDA , ,

Ainda hoje nos veremos.


D. GASPAR.

Ainda hoje, minha Zoraida... (Beijando-lhe a


mão com ternura.)
ZORAIDA •

D. Gaspar... (Lançando-lhe vistas affectuosa


mente ternas.)
AMBOS.•

Adeos. (Desprendendo as mãos, e sáe D. Gasº


par.)
54 A TOMADA DE SANTAREM.

SCENA V.

zoRAIDA e ARIMA.
zoRAIDA.

Vem Abzechri... Não sei que sente a minha


alma quando oiço pronunciar seu nome, ou escuto
a sua voz !... A ventura não houve eu de conhecer
meu páe; e, todavia uma força desconhecida, por
muitas vezes, me ha forçado a dar-lhe nomeada de
páe.
ARIMA.

Elle chega, senhora.

SCENA VI.

As PRECEDENTEs e ABZECHRI.
ABzEcHRI. +

Retira-te. (Para Arima, que sáe.), Zoraida,


anhelava pelo momento de me achar a só com-tigo.
Careço d’uma franca; e ingenua confissão da tua
boca... olha que sou eu que a exijo... repara que
é Abzechri, que váe interrogar-te. (Breve pausa,
e tom diverso.) De que tempo ha, que essa desor
deira e infesta paixão se accende em teu peito a
prol do captivo portuguez, D. Gaspar de Sousa!
zoRAIDA,
Senhor...
AazECHRI.

Verdade, e só verdade,
SCENA VI. sº
zoRAIDA.

Então, senhor, Já que assim o quereis, serei


ingenua: Desde o primeiro instante, em que os
meus olhos tiveram a dita de encontrar os seus.
ABZEcHRI.

E que fructo esperas tu colher d'esse amor lou


co, que te inflama o peito, dize?
/ e -

ZOR A IDA •

O fructo, que deve esperar uma mulher, que


ama, como eu amo, d'um homem, que me ado
ra, como ainda ninguem adorou. * .

ABZECHRI.

E não sabes, infeliz, que a tua religião te


prohibe esse amor?
ZORA IDA ,

Pois a minha religião denega-me um bem »


que, ao passo que faz a minha felicidade, em na
da offende a mesma religião?!
ABZECHR1,

Zoraida, é mister apagar no coração até os


vestigios d'esse amor criminoso, e derriscar da me
moria a mesma sombra do christão ingrato... falso
e ingrato, como todos os christãos, que bem mal
reconhecido soube elle ser á hospitalidade , , que
Abzechri houve sempre para com elle, e á urbani
dade com que o havia tratado.
2ORAIDA e

Senhor, os grandes da terra podem muito ,


36 A TOMADA DE SANTAREM.

porque os pequenos, em quem se estriba o seu po


der, assim o querem; os potentados da terra tem
aguerridos exercitos que os defendam, que defen
dam seus direitos, e ás vezes os seus caprixos...
cem vezes mais poderosos, que os pequenos, que
em quanto tem lingua e braços, os potentados tem
braços e cadafalsos, elles dispõem, a seu bel-pra
zer, da conservação ou não duração dos homens:
tem leis, que, ora suaves, ora arbitrarias e escora
das na força, delapidam com ellas o thezoiro do
avaro, bem como o parco metal, que o camponez
pode haver do fructo, que, á custa de suor e de
trabalho colhe da terra... Tudo podem os potenta
dos... oh ! mas dar leis ao coração, legislar n’este
universo d'amor... [batendo no peito] nem Abze
chri, nem Albaraque, nem todos os mandões da
terra tem poder para tanto.
ABZECHRI •

Desventurada... que nem te recordas da diffe


rença dos cultos!... ah! ignoras tu por ventura,
que não é permittido aliar-te, por nó d'himineo,
ao captivo christão! Como levar a, effeito a cere
monia nupcial, dize?... Se de menos, possivel fos
se, que D. Gaspar renegasse a sua crença, e abra
gasse a lei do Profeta...
ZOR A IDA ,

. . Não... (balbucientc.) elle jámais abraçará as


taboas do alcorão... E mui forte o afferro... que
D. Gaspar consagra á sua crença... Mais facil se
ria... que o excésso da paixão, que domina Zorai
da, a levasse a abjurar o Profeta... e a despresar
o alcorão... que elle...
ABZECHRI.

Que disseste, desgraçada?!... Que furia do in


SCENA VI. . 57

ferno te incutiu na idéa, se ainda mal, não foi no


coração, um similhante desvario?!... Ah! abafar
no peito os cultos devidos a Alá, para render ho
menagens ao falso Deos dos christãos!... Treme,
Zoraida, treme do meu furor... e trema o captivo
da minha vingança!... Se não fôra... (Em cólera.)
zoRAIDA.

O falso Deos dos christãos!... (Meditando hor


risada.)
- 4, ABZECHRI.
Zoraida!... •

ZORA IDA ,

O Deos, que obra tantas maravilhas!... [Com


horror e espanto.] •

A BZECHR I.

Vingança! vingança!...
ZORA 1 DA. -

O Deos de D. Gaspar de Sousa!!... [O ines


mo, e forte.] +

AZECHR! » +

O raiva!... Agora é que eu comprehendo...


é agora, que, roto o véo, que me vendava os
olhos, apparece a terrivel verdade, que estragos e
morte acarretará sobre o traidor! Bem sei, fraca
mulher, bem sei, que foi o malvado captivo chris
tão quem ha derramado em tua alma a fatal dou
trina, que ora de lá se transmittiu a teus labios...
doutrina terrivel e incongruente, que a raça da
christandade pertende arreigar em toda a parte ,
quando não á força d'armas, de menos, á custa de
sophismas de falsa filosofia. Ah! que a minha vin
gança váe ser espantosa!... Agora irás vêr, Zorai
da, agora irás vêr o teu amante, rotas as cadeias,
58 A TOMADA DE SANTAREM.

que lhe algemam os pulsos, serem substituidas por


outras mais pezadas cadeias... Em subterraneo e
medonho carcere, onde não more um só vivente, o
monstro váe ser sepultado... alli esperdiçará elle as
lagrimas e os ais... que Zoraida não poderá enxu
gar seu pranto, nem ajuntar um suspiro á somma
de seus ais... alli...
ZORA DA •

Mal-aventurado... mal-aventurado amante... é


a tua Zoraida quem te infelicita!... [De olhar _es
plantado, e sentindo quanto expressou. Abxcchri.]
ABZECHR I e

Escondido assim á luz do dia e á communica


ção dos viventes, nem da vida gosará metade.».
que, entre angustias, a vida equivale ao nada: e
a fome, a sede e os tormentos o tornarão informe
e dececado esqueleto... -

zoRAIDA, Do mesmo.]
Ah! então já não brilhará a viveza de seus o
lhos... já terão murchado as graças de seu rosto...
e a sua boca não poderá proferir o nome de Zorai
da!...
A BZEC IIRI.

Oh! e trema o monstro , se do crime d'amor


ousar passar ao crime de rebellião; que, ainda an
tes d'Affonso Henriques se approximar d’estes mu
ros, armado o cadafalso em meio da praça, o al
goz lhe decepará do corpo a infame cabeça; e de
pois, suspensa pelos cabellos, mostrada, será ella,
para exemplo aos captivos christãos, que, a man
dado d'Abzechri, presenciarão o funebre e terrivel
apparato.
SCENA VI. 59

2ORAIDA»

Que horror!... que mar de sanguc!!... [Qua


si em delirio.]
ABZECHRI.

A fogueira estará accesa; e finda, que seja a


execução no cadafalso, o seu corpo lançado ás
chammas, concluirá a medonha scena do terrivel
espectaculo. [Sáe.] •

SCENA VII.

ZORAIDA, só.
zoRAIDA, Do mesmo.]
Perder para sempre o meu amante... e elle
perdido para sempre: D'alem o algoz e o cadafal
so... e d’aqui a fogueira e as cham mas !... O mun
do! ó natureza, reveste-te de funéreo lucto... váe
morrer quem esmaltava o mundo! quem honrava
a natureza!... vão morrer os meus amores!... On
de está pois a verdura dos campos?!... [girando a
scena com os olhos] Já se não escuta o doce gor
geio dos passaros!... Não se ouve já o suave mur
murio das agoas na fonte christalina!.. Já o zephi
ro não imprime o seu brando susurro no frondoso
arbusto!... Que heide fazer pois?!... para onde di
rigir os passos?!... Oh! foge, Zoraida... váe lenta
mente vagar na campina, escolhe o logar mais so
Iitario e sombrio... e se ainda lá encontrares algu
ma flôr selvagem e dececada, como tu... algum
mal-mequer, emblema da tua tristesa... colhe-o,
atavia-te com elle, e seja só esse o teu divertimen
to. Ah! que a morte está em toda a natureza, co
mo a esperança no meu coração!!... [em tom hor
roroso..] Mas... que sentidos gemidos são estes º
60 A TOMADA DE SANTAREM.

que ferem o meu tympano?!... Linteiramente deli


rante] Que ais tão afflictos!... O desgraçado, quem
quer que seja, parece implorar soccorro!!... Ediva
gando afflicta pela Scena] Que multidão de povo
se apinhôa !... [elhando para dentro] Oh! e de
entre tantos não ha, siquer um, que acuda ao in
feliz!!... Que inhumanidade!... Nem, ao menos,
se derrama uma lagrima!... não ha quem solte um
suspiro de compaixão!... Quem será o desventura
do?!... Ah!!... Lrecuando espavorida ] D. Gaspar!..
D. Gaspar de Sousa!... Que funebre apparato!...
Lá o conduzem entre guardas... palido, desfigura
do, abatido... quasi muribundo!... A poz elle ca
minha com tardio passo o membrudo algoz! ... Po
rém... que horror se apresenta á minha vista!...
Que medonho espectaculo!... Lá está o patibulo...
lá sobe... Ah! que a alma do miserando váe pres
tes romper o véo da humanidade!... Aquelles o
lhos... aquelles olhos, que davam vida, já estão
arremedando a morte... e assim mesmo parece que
ainda falam, que ainda proeuram os meus olhos...
Ceos! eis o termo fatal da existencia! Lextrema
mente horrorisada] Lá ergue o algoz o lucido cu
tello... lá lhe sepára a cabeça do corpo... Sua car
noza mão lhe segura pelos eriçados catellos, e ain
da gotejante de quente sangue, a mostra, em tri
unfo, ao povo, que applaude, com grita iniqua,
tão horroroso altentado!... Morreu... |"# OS O

lhos] já não vive!... Está livre de sofrer tirannias


de reis, o despotismo de seus mandões, a brutesa e
a crueldade dos povos... Morreu emfim!... A bar
baridade humana o furtou ao mundo, porque elle
era digno d'um mundo!... Mas ai!... [finge con
gelar-se de terror] que excesso d'impiedade e de
cruesa!... Lá foi entregue ás chammas o seu cor
po ensanguentado !... Mal fadado ! não ficarão na
terra nem vestigios de que houveste vida... E's cin
za... és nada!... [váe cnfraquecendo-lhe a voz] Fe
neceram os nossos amores no dia em que príncipia
Yam a medrar!... A tua Zoraida váe acompanhar
SCENA VII. " 6}

te na jornada derradeira... As forças me abando


nam... sinto avisinhar-se a morte... a minha al
ma... já está... mais perto de Deos... que... do
mundo... [Cáe.]

SCENA VIII.

A RIMA, correndo, e logo depois ABIMELECK.


A RIM A ,

Senhora? senhora?... Ai! coitadinha da minha


nobre senhora, que se foi como um passarinho!...
Soccorro?!... soccorro?... º

ABIMELECK.

Que vejo!... Minha nobre senhora... minha


boa ama... Jovem desventurada... a extrema affi
cção a privou dos sentidos!... LJunto de 3oraida,
o que tambem tem praticado Arima, e ambos a vão
erguendo pouco a pouco.]
A RIMA .

Minha nobre senhora... minha...

ARIMELECK.

Silencio, que váe recuperando os sentidos.


zoRAIDA. " "
*

Onde estou eu?!... Ah! és tu minha boa ser


va?... Dize-me, D. Gaspar não morreu?...
ABIMELECK. ** .

Sem duvida, amor lhe roubou os sentidos,


62 A TOMADA DE SANTAREM.
porque amor a restitue de novo á vida. (Pegando
lhe na mão.)
ZORAIDA •

Quem é, que a minha mão comprime?!...


ABIMELECK.

Sou eu... sou eu, senhora... é o vosso fiel ser


vo, que não se esquece de prestar-vos seus serviços
no momento da vossa afflicção.
ZORA IDA ,

Sim... és tu, Abimeleck!... és tu, que, em


vão, queres dar a paz á minha alma!... E's tu,
que me vens prestar o ultimo serviço... Mas... di
ze-me... D. Gaspar ainda existe em ferros?...
ABIMELECK•

Socegáe, senhora, não vos deixeis sucumbir á


paixão, que vos opprime... Porém... sinto passos!...
Quem será!...

ARIMA, Lindo á porta.]


Ah! senhora, é Abzechri, que, em companhia
do capitão Oscar demanda esta sala.
ABIMELECK.

Oh ! evitai, que vos vejam n'esse estado..…


Vinde, minha nobre senhora... retirai-vos para a
YO5Sa C8IIlaras -

2ORAIDA •

Ah! sim... ánnuo ao teu conselho só para não


encarar o causador dos meus tormentos,,,, o capi
SCENA VIII, 63

tão Oscar... o monstro, que, sem duvida, foi vo


mitado pelo inferno para me flagellar...
[Ouve-se o toque de clarins.]
A B 1MELECK.

Que rumor será este?!... Mas... Lolhando para


dentro] elles chegam... Vamos. LSáem, conduzin
do Soraida.]

SCENA IX.

ABZECHRI e OSCAR.

OSCAR.

Senhor, em occasião, que os nossos vigias,


rondava eu, em companhia de alguns soldados pe
lo lado d'Atamarma, a pequena distancia, descu
brimos um grupo de cavalleiros christãos, que, a
toda a brida, montados em fogozos ginetes, deman
davam caminho de nossos muros: um d’estes, go
vernador, arvorava o pendão, de cuja côr se depre
hendia o emblema da paz: com effeito, approxi
maram-se da fortalesa; corri a fazer-lhe frente; e
logo esse, que o pendão arvorava, e que, pelo tra
jo, conheci ser portuguez, findas que foram suas
urbanas saudações, a que a politica mahomethana
soube corresponder, d'ést’arte me fallou...
ABZECHR I º
Continua.
OSCAR,

Saude e paz ao alcaide Abzechri, governador


de Santarem, ao qual partecipareis, que, emissa
rio do meu rei e senhor D. Affonso Henriques, en
carregado d'alta missão, hei mister d’uma entrevis
ta com o mesmo Abzechri. Promptamente, segun
6: A ToMADA DE SANTAREM.
do a tactica da guerra, fiz correr os ferreos gonzos,
que affer, olham o robusto cancêllo d'Atamarma,
e as portas par em par ao cavalleiro portuguez,
lhe deram franca entrada em nossos muros. Os bra
vos capitães Arimur e Almansor o acompanham á
vossa presença. A pressei-me a antecipar-vos do suc
cesso; todavia, de precaução, fiz tocar a reunir to
do o exercito; e, tenho o prazer de asseverar-vos,
que no rosto de cada soldado parece brilhar o dese
jo da tardia juncção com o inimigo.
LRepele o toque de clarins.]
ABZECHRI.

Capitão, é de presumir, que o enviado por


D. Affonso Henriques, a esta praça, venha muni
do do orgulho, que caracterisa o genio portuguez;
porém Abzechri, orgulhoso tambem, quando se tra
ta de defender e pugnar pela causa d'Albaraque,
saberá rebater a sua altivez.

OSCAR.

Ancioso aguardo o resultado da sua missão.


A BZECHRI •

Qualquer que fôr, sempre o seu resultado será


a peleja. Eia, amigo, estejamos álerta: ao guer
reiro cumpre, mesmo na paz, não estar em ocio:
o clarim da guerra já nos annuncia o combate, e
o estrondo das armas será espantoso. A perfidia não
dorme.... véla de continuo, e, ou medita, ou pre
para traições.
ABIMELEck, Dá porta]
O emissario portuguez. [Sáe.]

SCENA X. •

os PRFcFDENTEs, ARIMUR e ALMANSOR, que


tomam os dois lados da porta, e logo MARTIM
MOAB: este corresponde a Oscar, que o ha cum
primentado, mas secamente, e váe indicar-lhe o
sofá, que está á esquerda da Scena, junto do
ual o Emissario fica de pé. Oscar colloca-se á es
querdo d'Abzechri, um pouco mais para traz d'es
te. O Governador dá signal ao Emissario, e am
bos tomam assento. O caracter de Marlim Moab
é austero e adornado de nobresa.

M ARTIM MOAB,

Alcaide Abzechri, logar-tenente do rei Alba


raque na praça de Santarem, eu Martim Moab,
cavalleiro portuguez, de mandado do meu rei e
senhor D. Affonso Henriques, venho participar-te
que, havendo elle em attenção os graves prejuisos,
que lhe has causado, ordenando continuas correrias
de teus soldados sobre varias terras, que habitam
os christãos, devassando seus domicilios, sem se
pouparem ao saque e á rapina, talando seus cam
pos, fazendo crueis insultos a seus habitantes, e
conduzindo-os captivos a esta praça, onde priva
ções e tormentos, tem soffrido elles, arrastando
pesadas cadeias; tendo outro sim chegado, a magoa
sua, ao conhecimento do mesmo rei e senhor , que
os teus soldados, nas ditas terras, barbara e impie
dosamente, sem temor ao nesso Deos, hão arrom
bado os templos, profanado o sanctuario, escarne
cido a imagem do proprio Deos e dos seus santos,
sem temor ao sacrilegio, ás irias do Senhor, ou á
justa vingança do Ceo: por tantos e tão ponderosos
motivos, El-rei D. Affonso Henriques me envia á
tua presença, e por mim te faz sciente, que pazes
alevanta elle, d’ora avante, com os moiros de San
*
86 A TOMADA DE SANTAREM.

tarem, e que apenas o sol haja feito por tres vezes


o seu curso, o exercito christão romperá as hostili
dades, caindo sobre teus muros com aquella cora
gem, disciplina e bravura, que, por tantas vezes
tem sido funesta ás armas mauritanas.

ABZECHRI.

Martim Moab, cavalleiro portuguez, encarre


gado pelo teu Rei D. Affonso Henriques a fim de
me annunciares o quebramento de pazes com os
portuguezes, e, talvez instruido pelo mesmo Rei
com o só intuito de me intimidares: dize, da mi
nha parte, ao Rei Christão, e em nome do gran
de Albaraque, que o alcaide Abzechri, governador
d’esta praça, inabalavel em seus principios, jámais
deixará, sempre que possa, e, mesmo á custa dos
maiores sacrificios, de perseguir e castigar o orgu
1ho da christandade; que o mesmo Abzechri escu
ta, de bom grado e a bel-prazer d'Albaraque, essa
quebra de pazes, que em vez d’intimidar minha
coragem, a faz redobrar no fundo do meu coração;
(forte) dize tambem a Affonso Henriques, que se
os portuguezes tem patriotismo, igual patriotismo
aquece os nossos peitos; que se os portuguezes tem
espada e escudo, os moiros sobra-lhe o alfange,
que do escudo não carecem; que se os portuguezes
em fim tem valor e brio nacional, nem valor nem
brio nacional hão faltado, até hoje, aos agarenos;
(ergue-se com fogo, e Martim Moab conservando-se
sentado, cruza os braços, e olha Abrechri com so
bja friesa) que Abzechri o espera, a sangue frio,
e só anhela pelo tardio momento da juncção dos
dois exercitos,
a palma para (Senta-se.)
da victoria. engrinaldar a sua fronte com

MARTIM MOAB,

- Alcaide Abzechri, (ainda de braços cruzados e


mencando a cabeça) essa tua audacia assás castiga
SCENA X. 67

da e desmentida está ella pelas proesas, que o


braço portuguez por tantas ha obrado sobre as moi
rasphalanges: para coroborar a minha asserção,
sufficiente será chamares á memoria esse infausto
día para as armas mahomethanas... (solta os bra
ços, e váe tomando fogo) o dia 28 de Julho de 1139,
que de immarcessiveis loiros coroou as frontes dos
guerreiros christãos... dia, que a posteridade fará
remarcavel nos fastos da historia em quanto existi
rem seculos!... dia sem par, quando, por nós ou
tros portuguezes, acclamado nos campos d'Ourique
o Senhor D. Affonso Henriques primeiro rei de
Portugal, lhes dissemos, de viva voz t — D. Af
fonso Henriques cingi o diadema, adornae-vos da
purpura, empunhae o sceptro, porque misteres he
mos nós de rei, de reino e de liberdade. E qual
deve ser a tarefa, lhe dissemos nós então... qual
deve ser a tarefa do grande Affonso no dia em que
os portuguezes o elevaram á alta calhegoria de rei
nante!... Exerceres o officio de rei, e somos con
tentes. Além... sobre aquellas montanhas visinhas,
está o poderoso Ismar, rei moiro, á frente do seu
forte exercito, a que reune os exercitos de outros
reis mahomethanos: eia, Affonso... ávante, guia
nos á victoria. — Então o heroe congrega todos os
seus, manda; e sendo obedecido como rei, qual
o havia sido até alli em quanto cidadão, trava
prestes a escaramuça: a victoria halbuccou por lon
gas horas; porém Ismar baqueou, e com elle sete
reis moiros e sete exercitos baqueram ao mesmo
tempo!... Todavia, Ismar seguido das poucas re
liquias do seu exercito, poude ainda acoitar-se em
Leiria; lá mesmo e sitiado pelo exercito portuguez,
em breve acommettido, vencido tambem em breve,
e alfim... estrangulado. (Ergue-se, cruza os braços,
e breve pausa. Abzechri tambem se ergue, e ficam
de pé até findar a Acto.) Abzechri, deixarão de ser
verdades espantosas as que acabo de exarar?

5 #
63 A TOMADA DE SANTAREM.
ABZECIIRI.

Fólgo de ouvir-te, cavalleiro; tu me has dese:


nhado com brilhante colorido o painel d'altas vi
ctorias. Mas dize, Martim Moab, se Affonso Hen
riques obrou bellicos feitos sobre as cohortes do rei
Ismar, d'aí se deprehenderá acaso, que iguaes triun
fos alcance elle nas armas d'Abzechri ! Um rei,
que venceu reis, por força vencerá vassallos? Por
que Affonso abateu Ismar, Abzechri abaterá tam
Dem?... Olha que aquelles, que nascem para rei
nar, trazem muitas vezes comsigo o orgulho, a al
tivez, a soberba... nascem para lhes curvarem o
joelho... nascem para que a ignorancia, que aliás
tendo a mesma origem que elles, lhe chegue a con
ceder porções de divindade, como se seus avós bai
xassem dos Ceos... mas elles nascem poucas vezes
para o valor; de contrario, quasi sempreencharca
dos no ocio e engolfados nos deleites, a mollesa os
corrompe, e só o prazer os embriaga... Oh! nunca
o valor, cavalleiro, deve ser medido pelo sangue...
se Ismar não soube ganhar, Abzechri saberá ven
cer, se Ismar...
MARTIM MOAB.

Governador, eu não venho altercar comtigo:


como mensageiro do meu rei e senhor, te hei ex
posto a resolução em que se acha o seu real animo.
Oxalá, Abzechri, oxalá que tu então te recordes
das reiteradas admoestações, que por tantas vezes
te ha mandado fazer o meu Monarcha, e dos gra
ves insultos e prejuisos, que tens causado á chris
tandade.
A BZEC IIR I.

D’elles não me hei eu até hoje arrependido,


nem jámais me arrependerei. Cavalleiro, ancioso
aguardo o ferro inimigo do Profeta.
SCENA X. • G9

M ARTIM MOAB.

O ferro que pugna pela causa de Deos em bre


ve se medirá com elle.

* , A BZECHRI «

Saude ao distincto cavalleiro dos christãos, (To


cando-lhe a mão.)
MARTIM MOAB.

A mesma ao nobre governador mahomethano.


Uma graça.
ABZECIIRI,

º Mandáe.
MARTIM MO AL,

O christão D. Gaspar de Sousa é teu captivo:


de ha muitos annos, que nos consagramos mutua
mente a mais estreita amisade: governador, vel-o
e apertal-o ao coração será permittido ao emissario
portuguez! •

ABZECHRI,

O desejo do emissario portuguez váe ser satis


feito. (Separam as mãos, e ##### aO Ouvi
do de Oscar, o qual sáe.) Martim Moab, triunfo
ás armas d'Albaraque. (Indo para elle, tocam de
novo as mãos.) -

MARTIM MOAB,

Abzechri, victoria ás armas d'Affonso Henri


ques. • A MBOS.

Ao combate. (Soltando as mãos e partindo.)


FIM DO PRIMEIRO ACTO,
aaaaaaaaeemezzzzzzzzzzzzzzzas
*#############################
ACTO II

D'Escalabis famosa os fortes muros


Defende Abzechri com força ingente,
Sem máu fado temer, ou máus futuros
Que possa motivar-lhe um rei potente.
O Grande Mem Moniz, mauros impuros
Protesta derribar: subindo á frente,
Franqueia a Affonso a porta, e dá-lhe a gloria
D'assalto conseguir alta victoria.
Do Author,

QUADRO III.

7 de Maio de 1147. Onze horas da tarde.

O Theatro representa um vasto campo com olivei


ras. Quasi ao fundo da Scena ha uma barraca
de campanha, á entrada da qual se observa ar
vorado o estandarte real. Estão dois sentinellas
pôrtuguezes á porta da barraca.
SCENA I.

D. GONÇALO e MEM MONIZ.


D. GoNçALo.

Com effeito, amigo, depois de cinco dias de for


çadas marchas, por emaranhados e desconhecidos
SCENA I. , , 71.

caminhos, se acha o nosso exercito cubrindo os oli


váes de Santarem na falda de suas fortes muralhas.

MEM MONIZ • * -, 4

E verdade, D. Gonçalo, a empresa, que


nos hemos proposto, é temeraria, e por isso mesmo
digna de braços portuguezes.
D. GoNçALO.

Bem longe estava eu, e os mais fidalgos da


côrte, de apperceber-mos, que a atitude bellica com
que El-Rei, meu Senhor, largou Coimbra, seria
para romper as hostilidades com os moiros, que
hão posse de Santarem; e, assás me surprehendeu,
quando no dia seguinte á nossa partida, descança
dos que fomos em Dornélles, onde se reuniu ao
nosso exercito Sua Altesa o infante D. Pedro Af
fonso, o Monarcha então lhe deu conta de seus in
tentos, bem como a todos os fidalgos, que o acom
panhavam.
MEM MONIZ,

Por certo: foi alli que, reunido o conselho,


toda a côrte disse, a uma voz, que não arreceiava
perigos quando se tratava de pugnar pela causa de
Deos, do Rei e da Patria; e, grande foi o meu
enthusiasmo, quando vi que a alegria assomava ao
rosto de toda a real comitiva, no momento em que
El-Rei ordenou a Martim Moab, que prestes se di
rijisse a Santarem a levantar pazes com Abzechri;
e, maior enthusiasmo se apossou de nós, cavallei
ros, na vespora de hontem, chegado que foi o mes
mo Martim Moab ao logar de Adégas, aonde o
nosso exercito havia feito alto, e, além soubemos,
que este emissario tinha cumprido a salvo a sua mis
são, alevantando pazes com os moiros; e, findos
que fossem tres dias de tregoas, lhe annunciára o
rompimento da guerra.
72 A TOMADA DE SANTAREM.

D. GONÇALO.

Ventura teve Martim Moab, que não houve


um páe desventurado... viu, tratou e apertou em
seus braços D. Gaspar de Sousa, que devia ser o
esteio da minha velhice... o meu querido filho... o
unico filho, que me restava... aquelle, que fazia
a consolação de meus dias, e que, victima do seu
“valor, a desgraça retêm, em ferros,

no captiveiro...
(Chorando.)
MEM MoNIz.

Em breve gosará da liberbade: confiae em Deos


e no apostolo S. Thiago, que Santarem será rendi
da ao ferro dos christãos.

D. GoNçA Lo.

Fé e coragem me não faltam ellas; e vás,


Mem Mouiz, testemunha haveis sido, que, sem
pre a vosso lado, jámais me visteis fraquejar o bra
ço, em conta aos annos, quando se trata de com
bater os inimigos da nossa santa fe; porém, ami
go, ólho a empresa bastante arriscada, em atten
ão ao numero dos nossos combatentes ser muito in
erior ao do inimigo.
MEM MONIZ.

Nada temaes: a causa é justa o nobre; hemos


da nossa parte a justiça e o valor, e a victoria não
póde deixar de ser certa. Quando enviado a Santa
rem, por Sua Altesa , para assentar pazes com
Abzechri, a que elle não quiz acquiescer, sondei
a quêdo e minuciosamente todos os reductos e trin
cheiras d’aquella praça, e, foi então, no meu re
gresso a Coimbra, que a El-Rei fiz a alta promessa
de ser o primeiro, que firmasse o estandarte real
sobre os muros do inimigo, promessa que, só entre
mim e Sua Altesa esteve sempre a cuberto do maior
SCENA I. • 73

sigillo, até que o mesmo Augusto Senhor deu con


ta á côrte, que o acompanhava, dos intentos, que
de ha muito ferviam em seu real animo, de aggre
dir Santarem, quando, em Dornélles, formou con
selho de cavalleiros, a que tambem assistiu o in
fante D. Pedro Affonso.

D. GONÇALo.

Hoje quando, sobre a madrugada, chegados


que fomos ao cume do monte de Pernes, havendo
deixado de vespora a serra dos Albardos, foi gran
de o alvoroto, que se apoderou dos nossos solda
dos, ao escutarem o proclama, que, de viva voz,
lhes dirigiu o Senhor D. Affonso Henriques; e do
seu discurso inferi que Sua Altesa, conquistado,
que haja Santarem ao jugo agareno, em breve se
apromptará para novos combates , estendendo a
mais longe as suas conquistas.
MEM MONIZ.

Estamos de acordes no mesmo pensar; é assás


arrasoada a vossa supposição: D. Affonso Henri
ques ha grande interesse na tomada de Santarem ,
pois que, assenhoreado d’este forte e importante
ponto, achará segura passagem para cair sobre os
muros de Lisboa, sujeita tambem ás armas agare
Ila S.
74 A TOMADA DE SANTAREM.

SCENA II.

os PRECEDENTES, MARTIM MOAB, D. PEDRO


PA'ES, LOURENÇO VIEGAS e TEMPLA
RIOS,

MARTIM MOAB,

Amigos e companheiros d’armas, en vos saudo.


MEM MONIZ,

Bem vindos sejáes vós, amigos.


D. GONÇALO.

Cavalleiros, eu vos saudo tambem. (Fica pen


sativo.) •

MARTIM MOAB,

Amigos, aonde encontrar El-Rei?


MEM MONIZ.

Além na sua real tenda.

- MARTIM MOAL •

Vou ser com Sua Altesa, que hei a commu


nicar-lhe. Até á volta , cavalleiros. (Partindo ,
suspende-se.) -

MEM MONIZ ,

Certamente lhe não fallareis agora, se o ne


gocio não é de urgencia: Sua Altesa está em con
ferencia com o senhor iefante D. Pedro.
SCENA II. 75

MARTIM MOAB e

De grande urgencia não é elle; communicar


lho-hei em tempo opportuno. Dizei-me, Mem Mo
niz, que auguráes vós d’esta expedição!
MEM MONIZ.

Mais uma victoria para as nossas armas.


MARTIM MOAB.

Assim o espero. (Reparando em D. Gonçalo.)


Que é isso, D. Gonçalo de Sousa, estáes melan
colico! Tendes razão, amigo, vosso filho ainda ge
me no captiveiro; mas confiáe no Ceo, que pres
tes gosará elle a liberdade e o encontro dos braços
paternaes.
D. GONÇALo.

O Ceo dê vigor ao meu já cançado braço, pa


ra que, no calor do combate, não desmereça, a
par de vós, o nome de cavalleiro. |-

MARTIM MOAB,

Parece que os nossos soldados não houveram


seis dias de marchas forçadas: venho agora do
acampamento, e admiro, que um só delles não
procurasse o repouso, tão necessario ao combatente;
de contrario, todos álerta estão, de olho ficto nas
muralhas, que protestam escallar, aguardando com
anciedade o signal, que á victoria os hade condu
ZIT,

D. GoNçALo.

Ah! que se de menos vinte annos, houvera eu,


não cederia a gloria a nem um outro, que caval
leiro fosse, de ser o primeiro a montar os muros
d'Abzechri, • • •
76 A TOMADA DE SANTAREM.

MEM MONIZ.

Assás conhecido de nós todos, cavalleiros, ha.


sido, até hoje, o vosso valor, respeitavel ancião.
MARTIM MOAB,

Quantos contáes, amigo?


D. GoNçALo.

Setenta e quatro.
.*
MARTIM MOAB,

Em paz conteis vós os que ainda vos restarem


de vida, que permitta o Ceo fazer longos. Porem,
amigos, em quanto se não trava a peleja, conver
semos por mais um pouco: Que se dirá em Coim
bra da repentina saída d’El-Rei d'aquella côrte
com parte do seu exercito?
D. GoNçALo.

Nada se dirá, por certo, que o costume é já


sabido: a esta hora estarão apromptando os loiros
para receberem o Monarcha em triunfo: os portu
guezes muito bem sabem, que o antigo vezo d'El
Rei, é, sempre que sáe á peleja, entrar na côrte
de fronte enramada com a palma de vencedor.
MEM MONIZ,

Que sei eu do que se passará na côrte: o cer


to é que, no entanto que, em Coimbra, seus leaes
habitantes se adornam da veste da galla, entre re
gosijos e bem concertados festins pelo feliz nasci
mento do senhor infante D. Henrique, El-Rei se
esquece de tudo o que é mais charo a um páe e a
um esposo, e deixa os prazeres louçãos da sua côr
SCENA II, ... 77

te, para ir alongar novas conquistas pela terra,


que, dentro em pouco, portugueza será toda.
(D. Affonso e D. Pedro apparecem á porta da
barraca. Os sentinellas fazem a devida continencia.)
D. conçº Lo, (olhando para a barraca.)
Chega Sua Altesa e seu augusto Irmão.

SCENA III.

os parcenestes, D. AFFONSO e D. PEDRo.


D. ArroNso, (de gesto alegre.)
Deos seja com vosco, cavalleiros. A noite váe
fresca: andar assim, que o calor não se ageita ao
braço do guerreiro. Mem Moniz, os affans da guer
ra obram milagres no vosso fysico... de cada vez
mais saudavel. D. Gonçalo de Sousa, ainda mais
um combate, e, por consequencia, podemos con
tar com mais uma victoria: o velho cavalleiro não
sabe ficar apoz dos cavalleiros moços. Martim Moab,
como vamos nºs a respeito d'arrogancias d'Abze
chri, em tanto que, no meu real nome, lhe déste
a embaixada! (Martim Moab sorri-se, mas respei
tosamente.) Ora pois, pouco tardará, que a sua al
tiva cerviz dobrada não seja ao ferro luzitano. D.
Pedro Páes, Lourenço Viegas, Cavalleiros do Tem
plo, eu a todos vos saudo, e todos podeis acreditar
nas véras da minha boa estima. - **

D. GoNçALo.

Senhor, não entra em duvida, que esta pele


ja, pela santidade dos principios, que em si encer
ra, deixar de ser funesta, certamente não poderá,
bem como todas as mais que haveis emprehendido,
78 A TOMADA DE SANTAREM.

aos inimigos da nossa santa fé; porém, Real Se


nhor, conviria, e até, indispensavel achava eu,
e comigo toda a côrte, que não vos expozesseis a
este combate, que, de tantos em que haveis corri
do grande risco, talvez nem um haja sido tão ar
riscado, como elle será por certo.
MEM MONIZ.

Iguaes sentimentos me animam, Senhor: Vos


sa Altesa tem em seu augusto Irmão um digno i
mitador da intrepidez e coragem belliea, que ani
ma o vosso real peito. O senhor infante D. Pedro
Affonso póde levar-nos á victoria, sem que vós...
MARTIM MOAB.

Sem que vós expunháes ao ferro mauritano uma


vida, que é tão chara aos portuguezes.
D. PEDRO,

De accôrdo vou eu, Senhor, com os nobres


cavalleiros, que me precederam, sem que haja em
vista o roubar-vos a gloria d’esta empresa: ah ! que
seria de nós se a morte vos roubasse á patria?!...
D, AFFONSO•

Se houver de perecer na juncção com o inimi


go, em vós, meu irmão, deixarei aos meus vassal
los um fiel imitador do braço de Affonso Henriques;
e Portugal não ficará viuvo de monarcha, que di
nastia lhe deixa o seu Rei na pessoa de seu filho o
infante D. Henrique, qua a exemplo do augusto
Tio, com os annos ganhará o valor e a coragem
necessaria para perseguir e supplantar a raça ma
homethana, plantando em todo o Portugal a ver
dade e a puresa do Evangelho. Além de que, ca
valleiros, o Deos, que proteje o vosso Soberano,
SCENA III. 79

ainda é o mesmo Deos, que, no campo de Ouri


que, victoria o fez ganhar de sete reis inimigos da
nossa santa fé; a causa porque vamos pelejar, é a
mesma que a Ourique levou as nossas armas; se
Ismar baqueou, e com elle o seu forte exercito,
Albaraque º de raiva, baqueará tambem, quando,
em Sevilha, chegar a seus ouvidos, que Abzechri
se deixou succumbir ao valor da christandade, Fé
em Deos, amigos, que jámais nos desamparou:
todavia, ao padre Theotonio de Menezes, varão
de vida exemplar, e a quem dei conta, em segre
do, do motivo da minha partida, ordenei que in
cansavel fosse elle, bem como todos os conegos de
Santa Cruz de Coimbra, em dirigir fervorosas pre
ces ao Altissimo pelo triunfo completo das nossas
armas. D. Gonçalo de Sousa, estranho que me não
falleis de vosso filho!...

D. GoNçALo.

Não decorre um instante da minha vida, des


de que o infeliz geme no captiveiro, que á lem
brança o não traga um páe infortunado, mas quan
do se trata de combater, supito no coração a voz
da naturesa, e affogo no centro d’alma todas as
sensações paternaes, pois me alembro, que fui sol
- dado muito antes de vir a ser páe... (Volta o ros
to, e limpa os olhos com recato.)
I), PEDRO.

Animo, cavalleiro. (Baixo ao ouvido de D.


Gonçalo.)
MEM MONIZ»

Ah ! meu Soberano, quão tardia se torna a


hora, em que eu deva levar a effeito a promessa,
que vos fiz, pela honra de cavalleiro, de ser o pri
meiro, que arvorasse aquelle real estandarte nas
muralhas inimigas. (Indicando o estandarte.)
do A TOMADA DE SANTAREM.
D. AFFONSO,

Eu não hei que duvidar do vosso valor e perí


cia militar; e a prova mais exuberante de quanto
deixo dito, é que, quando premeditei, em Coim
bra, atacar Santarem, a contra vontade da côrte,
por julgar inconquistaveis os seus muros, fingi, por
algum tempo, desistir da empresa; até que, in
quietado, cada vez mais, o meu real animo, pelos
perpetuos assaltos, que os moiros de Santarem da
vam nas terras dos portuguezes, resolvi, a todo o
risco, vir atacar os barbaros, confiando sómente o
segredo d'esta expedição á vossa prudencia militar.
Neto do grande Egas Moniz, meu aio, que foi,
M em Moniz em tudo ha sido, até hoje, um fiel
imitador do valor e das virtudes, que tanto enobre
ceram seu avô, que enobrecido já era elle por seu
distincto nascimento.

D. PEDRo..

E pesar, conservo eu, de não ter conhecido


tão douto varão, de que a memoria, porque heróe
é Mem Moniz , heroicidade lhe acarreta como
seu descendente.

• MEM MONIZ.

Encomios com que El-Rei, meu Senhor, e


Vossa Altesa premeiam o muito desejo, que ferve
em meu peito, de imitar o homem grande, que o
Ceo me deu por avô.
D. - AFFONSO.

Portuguezes, ainda antes que a aurora rompa


o denso véo, que nos furta o seu orvalho matuti
no, Santarem baqueará por terra, e as espadas que
defendem e combatem pela religião de Christo, se
rão ensopadas no sangue mauritano, sem que es
SCENA III. - 81

cape um só dos impios filhos de Agar ao furor do


nosso braço: nem um de vós se acovarde porque
arreceie o grande numero dos infieis, que, tendo
Deos pela nossa parte, o triunfo não será, por
certo, dos nossos contrarios. Infante D. Pedro Af
fonso, templarios, e vós todos, que espadas de ca
valleiros pendeis ao lado; alem, estão os muros,
que a escuridão da noite encobre a nossos olhos, e
são esses mesmos muros, aquelles que o vosso valor
em breve irá conquistar: alli, parte de vossos com
panheiros de armas, parentes e amigos gemem no
captiveiro e soffrem os ferros da escravidão; elles
têem os olhos fictos em vós, em vós confiam, e
é de vós que esperam o seu resgate. Guerreiros do
campo de Ourique, a quem nunca assustou o es
trondo dos alfanges agarenos , conquistadores de
Alcanede, vencedores de Leiria, onde sempre obras
teis gentilezas em honra do nosso Deos; vêde, so
bre aquella tenda tremula o regio pavilhão, que
tântas vezes nos ha demarcado a estrada das victo
rias; e é perante elle que ídes prestar o mais so
lemne juramento. Alferes-mór do reino, conduzi o
meu estandarte. •

D. PEDRO.

Cavalleiros, viva el-rei D. Affonso Henriques.


TQ DQS »
Viva,

D. AFronso, (recebendo o estandarte)


Vassallos d'Affonso Henriques, eis as quinas
do nosso Redemptor; juráe por ellas, e dizei: Da
reis, como até aqui, a vossa vida pela fé de Chris
to, pela defensa da sua religião, e pelos direitos
do vosso rei?
TODOS,
Assim o juro,

6
se A TOMADA DE SANTAREM.
D, AFFONSO.

Satisfeito sou eu com vosco: os juramentos de


cavalleiros jámais retrocedem, e d’elles, nunca es
qnecido , ainda exulta Ourique. Meu Deos , a
causa é vossa ; dáe valor ao nosso braço, para que
não escape á morte um só dos inimigos da vossa
fé. Cavalleiros, partamos a reunir aos demais com
batentes: portuguezes, eia, á victoria. (Com en
tusiasmo, desembainhando a espada, e partindo.)
TODOS,

A” victoria. (o mesmo.)

em DO TERCEIRQ QUADRO,
— 22222
QUADRO IV.

8 de Maio de 1147. = 3 horas da manhã.

O Theatro representa grande praça com uma mes


quita ao fundo, hoje igreja de Nossa Senhora
das Maravilhas.

SCENA I,

Ouvem-se tocar dentro os clarins com forte estrepito.


A RIMUR postado ao fundo, em frente de sol
dados moiros, de alfanges nús. A BZECHRI
está em meio da scena, tambem de alfange nú.
ABZECHRI,

Valente, agarenos, correi a engrossar o ponto,


que o inimigo pertende atacar, que Abzechri váe
ser com vosco. (Parte e suspende-se. A imur, e sol
dados praticam o mesmo.

SCENA II.
Os PRECEDENTEs, e OSCAR apressado, d'alfange
A
72 lt ,

OSCAR •

Senhor, descançáe; nada havemos a temer por


aquelle importante ponto, que já se achava sobe
jamente reforçado, antes que o inimigo ouzasse en
caral-o de perto: os christãos, ajudados do escuro
da noite e do seu atrevido orgulho, cruzaram, a pés,
o olival de Montirás, e descendo
• 6 % ao valle, que fi
84. A TOMADA DE SANTAREM.
ca entre a calçada d'Atam’arma e a da banda d’a-
lém, marcharam por elle acima, em grande silen
cio; porém encontrando seus muros fortificados de
novo, e muito mais reforçados, que elles christãos,
aliás os suppunham, d'improviso retrocederam pe
lo mesmo sitio. Eis quanto poderam colher os vi
gias d'aquelle ponto, ajudados do clarão de seus
faróes.
ABZECHRI.

Oh! malditos christãos!... Se temeridade não


fôra saír a atacal-os em campo razo... por certo
que a minha raiva só assim se fartaria!... Ah!
porque não raias, ó astro luminoso?!... porque
não rompes as trevas em que te abismas?! .. Oh!
e que até a noite me persiga ! Amigos união e va
lor; confiáe em Abzechri, que elle jámais se exi
mirá aos perigos; e sempre á vossa frente arrosta
rá com os inimigos. Soldados, viva o rei Albara
que.
TODOS,
Viva.
OSCAR,

Morram os christãos.

TODOS,
Morram. •

ABZECIHR H.

Oscar, partamos a reforçar todos aquelles pon


tos por onde mais facil possa ser ao inimigo o ata
que desta praça. Soldados, acompanháe-me. LSáem
todos.]

••••••••••••••
85

SCENA III.
D. AFFONSO HENRIQUES, D. PEDRO AF
FONSO, M EM MONIZ, MARTIM MO
A B, D. GONÇALO DE SOUSA, D. PE
DRO PA'ES que traz o estandarte real, LOU
RENÇO VIEGAS, cavaLLEIRos Do TEMPLO ,
solDA dos PoaTUGUEZEs, E cLARINs. — Postam
se todos á direita da sceiva.

MEM MONIZ.

Senhor, realisada está a promessa feita por Mem


Moniz ao seu Soberano. Com o soccorro d'uma es
cada, que me fez ganhar a muralha contigua á
porta d'Atam arma, desapercebidos os vigias moi
ros, caí sobre elles com os poucos soldados que me
segundaram, e tirando-lhes as infames vidas, corri
prestes, a bastante custo, já posse da bronzea cha
ve, a abrir-vos a pesada porta; franqueando-vos
dest’arte o passo, bem como ao vosso exercito»
para que nem um dos inimigos da nossa santa fé
possa subtraír-se ao valor do braço portuguez, e á
justa vingança que lhe abraza o peito.
D. ArroNso.

Meu Deos, eu vos rendo infinitas graças por me


achar a salvo dentro d'estes muros. Vigorisáe, se
nhor, vigorisáe o meu braço, e o braço de todos
meus fieis vassallos, que estes barbaros, que hão
zombado até hoje das vossas justas íras e do vosso
santo poder, caiam aterrados e confundidos aos gol
pes de nossas espadas; que o vosso evangelho fique
triunfante n’este alcaçar da irreligião e do fanatis
mo; que os seus corações se inflamem á vista da
virtude, e que o crime e a incredulidade desappa
regam em breve do meio da sociedade. Portugue
ºe A T()MADA DE SANTAREM.

zes, não vos acovardeis, nada temáes, que Affon


so Henriques está á vossa frente.
Monos, (dentro.)
Traição !... traição ! ... christãos na pra
ga! ...
D, AFFONSO,

O inimigo já nos presentiu. Sim, malvados...


Christãos na praça; e que d’aquem vos esperam,
a pé firme, para ensoparem suas espadas no vosso
sangue.
MoIRos, (dentro.)
São christãos... Morram os christãos,

MUITAs vozes, (dentro.)


Morram.

Tocam os clarins até findar o combate, que váe


ter logar.
D, AFFONSO,

Malvados... eu saberei castigar a vossa auda


cia.
D. PEDRO•

Cavalleiros, soldados, viva el-rei.


TODOS.
Viva.
D. AFFONSO,

Vivam os christãos.

TODOS •
Vivam.
SCENA III. 37

ABzechRI, (dentro.)
Mahomethanos, corramos a castigar a sua ou
sadia.
MEM MONIZ,

Uma aluvião de barbaros se encaminha para


nós.
D, AFFONSO,

Soldados, firmeza e coragem... d'aqui mesmo


os aguardemos.
•--

SCENA IV,
os PRECEDENTEs, ABZECHRI, OSCAR, ARI
MUR, ALMANSOR, A BIM ELECK, E sol
DA Dos Mortos, todos de sabres nús, e ficam posta
dos á esquerda da Scena, -

ABZECHR I, * ". .

Destemidos agarenos, imitáe o meu exemplo,


e vereis que d’este modo se castiga o atrevimento
dos christãos.
D, AFFONSO.

Portuguezes aguerridos, investi, e d'ess'arte


castigáe o orgulho dos agaremos.
LD. Afonso investe com Abzechri; os dois exer
citos travam-se na peloja, e os clarins tocam appres
sadamente, com forte estrepito.]
D." AFFONSO,

Rende-te, desgraçado.
ABZR CHR I»
O furias.
88. A TOMADA DE SANTAREM.

Os moiros vão recuando, defendendo-se sempre


dos portugueses até que se retiran. Principia a a
smanhecer, e váe aclarando progressivamente. O es
trondo das armas continúa dentro. •

•••••••••••

SCENA V.

D. GASPAR, só, ainda com cadeias.


Quem me dá uma espada?... (repelando-se,
e mordendo os ferros) uma espada para a defesa !! ..
uma espada para a vingança?!... Meus irmãos
combatendo pelo seu Deos, e eu... desgraça ! des
graça! ... e eu em ferros... Ah ! (o mesmo) quem,
jor piedade, me allivia do pezo d'estas cadeias! ...
Quem me despedaça estes grilhões que me esmagam
os pulsos, e me aferrolham a gloria em que o meu
braço podia tomar parte?!... Mas... (applicando
o ouvido) para além retine o estrondo das armas...
partamos para além... que lá um portuguez me
dará um ferro... a minha honra, quasi obscureci
da, inflamará de novo o meu coração; meus golpes
serão mais desapiedados, e cairão com mais força
sobre os barbaros, que os do cutello do carniceiro
algoz; e, similhante ao tigre esfaimado, sangue. . .
e sómente sangue saciará a minha raiva. (Parte
precipitadamente.) •

DO estrondo das armas deve ir diminuindo de


maneira, que finde quando D. Gaspar acaba de fu
lar.]
$9

SCENA VI.

D. PEDRO AFFONSO E SOLD A DOS PORTUGUE

zes, de espadas núas.


D, PEDRO.

Valorozos combatentes, grande parte do inimí


go já tem deposto as armas, e não pequeno nume
ro ha sido aprisionado pelos nossos soldados; cente
nares de baroaros hão expirado ao fio de nossas es
padas; e os que ainda, pertinazes em seu caprixo
e cegueira, ouzam medir seus sabres com o ferro
lusitano, quinhoarão, dentro em pouco, a mesma
sorte. Nada resiste ao braço portuguez, quando cu
ra de fazer triunfar a causa de Deos; e quando pu
gna pela defensão do rei. Todavia, soldados, con
vêm não desamparar este ponto. Além é a mesqui
ta, onde os cegos e já abatidos filhos da lei do
Profeta, vão render-lhe os mais infames cultos. Os
despresiveis sacerdotes do alcorão, vendo a sua cau
sa propinqua a baquear de todo, talvez ousem, a
companhados de alguns dos seus, penetrar ainda
alli, a fim de implorarem do Profeta triunfo para
as suas armas: se a tanto se atreverem , calamos
sobre elles, e, decepadas que sejam suas cabeças,
e tomadas então as chaves que afferrolham aquelles
altares do fanatismo, devassaremos o domicilio da
irreligião e da incredulidade, esmagando e reduzin
do a cinzas quanto lá encontrar-mos. -
3D A TOMADA DE SANTAREM.
|-

SCENA VII.
Os PRECEDENTEs, e MARTIM MOAB, appressa
do.

MA 1: TIM MOAB,

Senhor, o jubilo me prestou azas para voar ao


encontro de Vossa Altesa. Annuncio-vos o comple
to triunfo das nossas armas sobre as cohortes do ini
migo, que, de todo ressachado, depõem os sabres
e implora sóccôrro. Abzechri, durante o conflicto
horrivel, sem que fosse apercebido de nossos solda
dos, poude, como depois soubemos, evadir-se com
uns vinte de seus sequazes, apossados de raiva e de
temor, e maldizendo a estrella que os fez nascer,
El-rei ordena que compareçáes á sua presença, no
entanto que, em meio de seus fieis soldados, rece
be os vivas e acclamações por tão alta victoria. D.
Gaspar de Souza, já rôtas as cadeias, e empunhan
do a espada, ainda poude partilhar da gloria d’es
te successo, obrando proesas, bem dignas de tão
distincto quão valente cavalleiro,
D. PEDRO.

Não me admiro, amigo, porque nós outros os


portuguezes costumamos contar os triunfos pelos
combates: com tudo eu jubílo com vosco. Parti, e
dizei a Sua Altesa que marcho ao seu encontro.
Soldados, já aqui não é mister a vossa estada: re
tiráe-vos. (Sáe Martin Moab e os soldados.)
91

SCENA VIII.
***

D. PEDRO, só.
O” minha patria! (embainhando a espada) tor"
rão abençoado por Deos! tu triunfarás sempre dos
teus inimigos, que os teus inimigos pouco a pouco
irão caíndo aterrados ao fio de nossas espadas, ou
confundidos perante a immensidade do teu santo
poder. Abzechri, malvado Abzechri! que bem cas
tigada está a audacia que desenvolveste, quando
ainda ha tres dias, dentro em teus muros, que ho
je são nossos muros, escutaste a embaixada, que
por boca de Martim Moab te enviou meu augusto
irmão e senhor: mas ah ! a minha vingança não
foi completa... que a tua criminosa cabeça não ro
lou a meus pés. (Vae a partir, e suspende-se.)

SCENA IX.

O PRECEDENTE, ZORAIDA pressurosa e na maior


afilicção, e A RIM A , ambas de cabellos sol
los.

A R1M A ,

Fujamos, senhora...
D. PEDRO, * . ..A

Que veêm meus olhos... E quanto é gentil.


(A” parte.)
ZORA1DA •

Senhor... senhor... (correndo a D. Pedro,


lançando-se-lhe aos pés, e erguendo as mãos) pode
92. A TOMA DA DE SANTAREM.

rá uma nobre e infeliz donzella moira encontrar o


soccôrro no peito d'um christão!
D. PEDRO.

Alevantáe-vos, bella agarena , (erguendo-a,


com agrado) e faláe, na certeza, que encontrasteis
em mim um homem, que assaz respeita os deveres
da honra e da humanidade: os christãos, senhora,
não declararam guerra ao vosso sexo; a contenda
foi com os homens, e só com os homens...
zoRAIDA, (com humildade.)
Não vos deva causar espanto a frase de que
uzei: perguntei-vos se uma infeliz poderia encon
trar soccôrro em vosso peito, porque os deveres da
humanidade quasi que desertaram do seio da natu
resa; e principalmente em colizão tal, qual aquel
la em que ora estamos ... (pequena pausa c abai
aca os olhos.) Ah! senhor... vós sois vencedor...
e Zoraida é vossa prisioneira... (chora.) Porém
devo alembrar-vos, cavalleiro, que, se a religiao
dos christãos lhe impõe deveres... iguaes deveres
nos impõe a nossa religião... (com intimatira) oh !
os deveres que se derivam das sagradas leis da hu
manidade, e que dimanam da honra e da razão...
devem ser respeitados de todas as nações... (chora
com maís força.)
D. PEDRO.

Oh! e como é bella!... Se encanta quando


chora, que será quando estiver risonha! (21' parte.)
ZOR A IDA •

Uma graça, senhor; e só esta graça tenho a


pedir-vos... e é que á preença do vosso rei me con
duzáes... quero vêl-o, saudal-o... desejo conhe
cer o grande heroe... esse prodigio da naturesa,
- SCENA IX. 93

que por suas virtudes e valor ha ganho assombrozo


renome em nossa idade... Quero vêr e admirar os
bravos cavalleiros que o acompanham... quero vêr
D. Gaspar de Sousa... [chora, e depois de pausa,
diz com disfarce] oh ! não vos cause estranheza esta
minha exigencia... haveis de mui bem saber, que
este cavalleiro da vossa nação viveu captivo, por
espaço d'um anno, nesta praça... (toma interesse
de novo) concorri com elle... é virtuoso... e ...
Lenrugando os olhos.]
D. PEDRO,

Não posso comprehender... estou perplexo!..


{ parte, olhando-a.] Sim, senhora, esse caval
eiro, quiz a sorte que trocasse as cadeias pela espa
da; e ao lado do Soberano, obrando gentilezas de
soldado, ainda quinhoou da gloria, que houveram
os mais portuguezes neste dia.
2ORAIDA,

Sim!... Ainda bem... [Com alegria, e lim


pa os olhos a furto.]
[Os clarins tocam dentro uma marcha.]
D. PEDRo, [olhando para dentro]
Mais me não é permittida a demora. O exer…
cito marcha para este sitio: parto ao encontro de
Sua Alteza. Se assim vos apraz, senhora, acompa
nháe-me |-

zoRAIDA, Lcom inteireza.]


Eu vos sigo, cavalleiro christão, confiada na
vossa honra, e na certeza que não imitareis esses
monstros da humanidade, que em todo o tempo se
inclinam a uzar da força para com este sexo; e pa
recendo seus escravos, ao passo que lhe rendem ho
mºnagem, elles são, na realidade, os seus maiores
tirannos.
94 A TOMADA DE SANTAREM.
• D, PEDRO,

Quanto ereis digna de melhor sorte, virtuosa


agarena! Partamos. [Sácm todos.]

SCENA X.
MEM MONIZ commandando o czercito portu
guez, D. PEDRO PA'ES com o pavilhão real
arvorado, e moiros prisionciros com cadeias nos
pulsos, entram na scena marchando ao som de
clarins, e se perfilam na mesma, ao signal de
Mem Monix, ao qual cessa o toque dos instru
º mentos. -

MEM MONIz.

Valorosos combatentes, dignos discipulos do


vosso rei, a quem as continuas fadigas da guerra
não abatem o valor, não cançam o espirito, nem
atemorisam o braço; vencesteis, e vencesteis porque
pelejasteis : as armas portuguezas só se empunham
para a gloria, e para o triunfo. A causa era de
Deos, e o triunfo, sendo de Deos, tambem perten
ceu aos homens. Eia, amigos, não affrouxar na
coragem, que os trabalhos da guerra ainda não fin
daram : o clarim dos combates vos chamará em bre
ve para novas conquistas: el-rei protesta plantar a
nossa santa fé em todo o Portugal; novos futuros
vos esperam de gloria, e alfim descançareis então
em paz á sombra d’uma reputação sublime.
[Tocam os clarins, a tropa faz continencia, e
abate-se o pavilhão.]
scEN A XI.
Os PRECEDENTEs, D. GONÇALO DE SOUSA,
D. GASPAR DE SOUSA, já armado de ca
valleiro, MARTIM MOAB, LOURENÇO
VIEGAS, e o AvALLEIttos Do TEMPLo, todos dão
entrada a D. A FFONSO HENRIQUES, e a
D. PEDRO AFFONS().

D. AFFONSO,

Soldados, cessem as continencias, que o rei


que houve, á pouco, a gloria de com mandar-vos
no combate, bem honrado ficou com a victoria,
sem que outras provas exija da vossa fidelidade e
acatamento. LFaz signal, e os soldados inclinam
as espadas ; D. Pedro Páes eleva o pavilhão, c
Mem Moniz embainha a espada. Todos os aclores
descem á scena.] Amigos com vosco me congratulo,
porque todos fosteis heroes na grande empreza de
conquistar Santarem ao poder dos agarenos. Mem
Moniz de Gandarey os vossos brilhantes feitos de
armas com sigo trazem o devido encomio; todavia
a posteridade marcará o grande dia, em que o va
lente neto de Egas Moniz, com animo e bravura,
nunca excedida, soube franqueiar a porta d'Atam"-
arma ao seu soberano; e d’est’arte fazel-o ganhar,
de assalto, a praça de Santarem.
MEM MONIZ.

Senhor|r,, q
quem milita nas bandeiras de Vossa
• •

Altesa,2 não |póde deixar de obrar milagres de valor.


D. AFFONSO.

Infante D. Pedro, el-rei D. Affonso Henri


ques assaz se compraz de ser vosso irmão: tambem
concorresteis, em grande parte, para o triunfo d'es
ta batalha.
96. A TOMADA DE SANTAREM.

D. "…….
Bom mestre hei eu tido em Vossa Altesa.

D• AFFONSO,

D. Gonçalo, o vosso monarca váe fazer um


furto ao velho e honrado cavalleiro. D Gaspar de
Souza vem aos meus braços.
D. a AsPAR.

Meu rei... [Abraça D. Affonso, e D. Gon


çalo cnauga os olhos.]
I), AFFONSO,

No dia de hoje nem a lembrança si quer de


passadas desgraças, nem de longe a ideia do capti
veiro. Tens o meu real consenso para tudo que me
pediste, em respeito á nobre donzella moira. Ago
ra sê nos braços de teu bom páe.
D. GoNÇALo.
Meu filho...
D. GASPAR.

Meu querido páe... [Váe abraçar o páe.]Sou


contente meu páe. [A meia vox.]
D. AFFONSO,

Martim Moab á vossa guarda confio o governo


d’esta praça, que a força precisa para a sua defen
são á quem ficará, em tanto que o resto de meus
bravos soldados me acompanharão até Coimbra,
onde renderemos as devidas graças ao senhor dos
exercitos pela victoria alcançada sobre os inimigos
da nossa santa religião: de lá vos enviarei os sagra
dos pastores, para que º prégando, de continuo, a
* * * * sCENA XI. r > 97 |

moral evangelica áquelles dos barbaros a que ami


nha real munificencia perdoou, possam, Por esta
modo, desertar do caminho do crime, e surgir da
irreligião e da cegueira. Além mesmo..naquella
mesquita, dentro da qual os moiros rendiam cultos
ao falso Profeta, nós outros, portuguezes, incensos
queimaremos ao verdadeiro Deos, logo que seja
feita por nossos bispos -a importante ceremonia da
sagração; e este templo será consagrado á mãe de
. Deos, invocada no titulo de Nossa Senhora das
Maravilhas, em memoria das que obraram as nos
sas armas sobre as armas dos infieis.

MARTIM MOAB •
+ • .* ….? * * *

Agradeço, senhor, o cargo com que me hon


ráes; e as ordens de Vossa Altesa em tudo serão
cumpridas. (Ajoelha, e beija-lhe a mão.)
D, AFFONSO,

Que resta pois, amigos? Ainda nos resta mui


to. Chegados que sejamos a Coimbra, minha côrte,
onde hei a tratar negocios d’estado, bem pouco
tempo estaremos quêdos; alli reunirei o maior pé
do meu exercito, que os muros da famosa Lisboa
lá me estão chamando para a conquista. Soldados,
eu, em nome de Deos, em nome da religião, e
em nome da patria agradeço os feitos sublimados,
que assaz vos immortalisam ; e em tempo opportu
no vos convidarei a novos combates; sim amigos,
nova gloria vos espera, esperam-vos acções d’uma
memoria infinda. No entanto ide conciliar o preci
so descanço, tendo sempre em vista, que a promes
sa feita por D. Affonso Henriques, quando, em
Lamego, na igreja de Santa Maria de Almacave,
reunido em côrtes o clero, a nobresa e o povo do
reino, será sempre cumprida: foi lá, que o vosso
rei, depois de haver aceitado de mãos portuguezas
as reaes insignias, ornada a fronte do diadema, e
7
93 A TOMADA DE SANTAREM. -

sentindo o pezo á regia purpura, protestou assegu


rar a seus vassallos, a troco do proprio sangue, o
trono, o reino e a liberdade; e é aqui que elle lhes
retifica o solemne juramento. Cavalleiros, soldados,
seja a nossa diviza propagar a religião, sustentar o
throno, defender a liberdade.
** - - * •
* **

- ; , - ! TODOS.
: Até á morte.

- * ** ** * * * ** *

FIM Do. SEGUNDO ACTO •


* * * . ', , …
* * * * *
: ', 99

22222222
22222222
p#2
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## •

ACTO III.
••••••-+

A garena gentil, já do peccado


A mancha vás lavar co as aguas santas;
E em breve d'himineo o nó sagrado
Ao joven te unirá que o peito encantas.
Segredo que até qui foste occultado,
Que assombraste a christãa, Coimbra espantas:
Um mouro revelou a origem tua,
Ignorando tambem ser prole sua.
· · · Do Author,

" *-****-*--* - , ,!

QUADRO V.
8 de Maio de 1148. — 4 horas da tarde. … .

Sala no palacio de D. Gonçalo: ao fundo ha


uma porta. Meza, cadeiras, e junto á meza uma
harpa. - º

SCENA I.

D. GONÇALO e D. GASPAR, ambos sentádos.


p. GoNçALo. •

D. Gaspar, meu prezadissimo filho, o dia de


hoje é de jubilo sem par para um páe, que, como
eu , extremozamente te adora, e que antigo caval
leiro, nunca esquece fazer remarcaveis as épochas,
7 $
too A TOMADA DE SANTAREM.
em que as armas portuguezas alcançam qualquer
triunfo sobre os eegos inimigos da nossa santa fé:
anniversario é hoje, º meu filho, do grande dia que
os muros de Santarem caíram em nosso poder; e
um anno ha tambem ho e, meu querido D. Gaspar,
que resgatado tu foste dos ferrºs e do captiveiro. A
alegria me tolhe as expresses na fauce... Ah ! vem ,
meu filho, vem unir-te a este seio paternal...
D. GASPAR.
|- ** * • • • "...", º |-

Oh! meu bom páe, (ergue-se, e váe abraçar o


páe) oxalá que vosso filho ainda podesse gostares
te prazer no seio da sua carinhoza mãe... ( Enru
gando
bem se osergue.)
olhos.· D.
2 Gonçalo faz o mesmo, e tain • • • |-

: ; D. GoNçALo.
… " … , , … …" º - •

E' verdade; quando regressei a esta córte, de


pois da conquista de Santarem, já era falecida a
minha pranteiada consorte - mas feliz ella, que a
habitação dos justos tem por morada. Agora, meu
filho, curemos só do prazer que nos espera: pouco
tarda que os convidados affluam a este palacio,
bem como os padrinhos, e o doutissimo e veneran
do ancião padre Theotonio de Menezes, D. prior
de Santa Cruz, a fim de effeituar-se a ceremonia
do baptismo: a tua Zoraida receberá hoje o santo
sacramento, que, purificando-a da culpa, a torne
creatura do nosso Deos, quanto ella é digna de o
ser; e, decorridos. que hajam alguns dias, unida
comtigo, por laço d'himineo, para o que já obtive
º real consenso, verei realisados os meus ardentes
votos, compensando por este modo á nobre donzel
la os sacrificios acredores d’uma memoria infinda,
praticados por ella a prol de D. Gaspar, durante
do seu captiveiro. , , , : " - -
o . . . , , , , , , , , {
• . … :- . :

} {.***** * * * . *. . , º "… …" " … -- { * * * **


º , , , , SCENA I. * * * T A 161
D. - GASPAR -

Remuneração assaz diminuta á sua virtude:


todavia, senhor, ligando-me a Zoraida, por laço
d'himineo, julgo estar quite, pois que, em quantº
a mim , o premio que posso dar de maior valor ás
illustre donzella, é doar-lhe o meu coração.
... , D, cosgato. * .

Dizes bem, meu filho. A não ser a tua parti


da para a conquista de Lisboa, a que o meu já
cançado braço não poude ajudar, conquista effeic
tuada no sempre memoravel dia 25 de Outubro do
anno passado, já a tua futura esposa teria recebido
a agua do baptismo, bem como aconteceu a Arima,
sua fiel serva, que nunca a desamparou, e que na
pia baptismal trocou esse nome pelo nome de Ade
laide; porém quiz demorar este dia de prazer para
quando houvesses de estar presente; e era esse um
dos principáes motivos porque aguardava ancioso a
tua vinda de Lisboa a Coimbra. •

* * *

D. GASPAR»

Eu lho agradeço, meu páe, e contáe com as


veras da minha alma, que a minha gratidão será
@terna. |- - ,

RAIMUNDo, (á porta.)
O senhor cavalleiro Mem Moniz. (Retira-se,
logo que entra Mem Moniz.)
102 A TOMADA DE SANTAREM.

SCENA II.

Os razeroestes, e MEM MONIZ.


MEM MONIZ»

Amigo D. Gonçalo, eu vos saudo, e tomo


parte comvosco no jubilo d’este dia. (Abraça-o.)
D. GoNçALo.

Eu o creio amigo Mem Moniz, valente e hon


rado companheiro de armas. -

• MEM MONIZ.

- D. Gaspar igualmente vos saudo e felicito pe


lo dia de hoje. [Abraça D. Gaspar.] •

< "" .. . :- ; ; D. GASPAR . . .

Certo estou eu, cavalleiro, do interesse que


tomáes na minha felicidade.

* * * * * * * MEM MoNIz.
* * * * * … .' * *
- * *

Alguns convidados passeiam na proxima sala,


e outros se vão apeando á porta do palacio; porém,
confiado na vossa amisade, houve a ousadia de vir
interromper-vos. * * * * ",

D. GoNgALo.
Nuuca me encommoda a vossa companhia, a
migo: comtudo é mister que eu vá receber os con
vidados: sêde com meu filho, e concedei-me licen
Qa por um pouco.
MEM MONIZ •

Amigo, até á volta. (Sáe D. Gonçalo.)


SCENA III.

D. GASPAR e MEM MONIZ.


----
#

MEM MONIZ,

Com effeito, D. Gaspar, pela caída de Lis


boa, demos tregoas, por em quanto, aos combates:
agora é disfructar a paz, sem comtudo deixar-mos
enferrujar as espadas. Em breve, amigo, vereis co
roada a vossa sorte, quando ella vos conduzir, de
junto com Zoraida ao altar de himined,
D. GASPAR.

E verdade, cavalleiro; e então a minha feli


cidade será completa. Quanto a hoje só tratamos
de fazer christãa a minha Zoraida, que na ceremo
nia do baptismo tomará o nome de Carlota, que
as im se chamava a minha boa, e já defuncta mãe.
Todavia para completar a minha alegria no festejo,
que, de presente, n’este palacio se prepara, só me
falta a companhia do nosso honrado amigo e caval
leiro Martim Moab.
,, " . ;
MEM MONIZ. º

Governador de Santarem, elle está de olho á


mira a qualquer sillada, que os moiros ouzem tra
mar
guez.
para restaurar aquella praça ao valor portu
• • • • • • • •
4ô4 A TOMADA DE SANTAREM.

SCENA IV.
Os rs…………, PADRE THEOToNio , e D.
GONÇALO.
* , ,, , PADRE THEoroN1o.

** *
Cavalleiros,
* * *
a paz do senhor vos acompanhe.
"-.- -

** * * * . * * * *
#… q º :- ; ( /
D.: * GoNçAlo.
". •
" "/ –

Mem Moniz, meu filho, apresento-vos o res.


peitavel sacerdote Padre Theotonio de Menezes º
recebeio, em quanto vou condusir Zoraida, para
ouvir a voz… evangelica
ESáe.]", º , - da boca do -conspicuo varão, •

, ,

sCENA v.
• Os ……………, ·pto D. GONÇALo.

- , , e - º MEM MONIZ.

Venerando varão as vossas virtudes e talentos


vos hão grangeado a estima da côrte e do monarca.
D. GASPAR. · ·· ·2

…D. prior de Santa Cruz, como admirador de


Vossas altas virtudes, profundamente vos respeito.
PADRE THEOTONIO.»

Meus filhos, eu sou um ministro de Deos;


exerço este santo e terrivel encargo. Sou homem,
e fragil como tal; mas s% com a ventura de não
ser do numero d'aquelles, que, inflamando-se á
Vista do vició, olham para a virtude, como se di
… º SCENA V. - - - - 105

visassem n’ella a sua maior inimiga. De meus la


bios nunca saíu uma faúlha de fanatismo: jámais
o zelo da causa de Deos me fez esquecer de quan
to devo aos homens; leprehendo-lhes seus erros e
seus defeitos, sem que por isso deixe de amal-os
menos; não tenho ao filosofo por incredulo, nem
sou dos sacerdotes que medem a sãa filosofia como
adversaria da religião de Jesus. Além de que, ca
valleiros, conveneido estou eu, que os homens tem
mais de fracos, que de máus; e, consequencia cer
ta, a maior parte de seus vicios, procede da fraque
sa, companheira inseparavel da especie humana. "
•••••*****

SCENA VI.

Os parcebenres, D. GONÇALO, e ZORAIDA,


ricamente vestida á portuguesa.
D. GoNGA Lo.

Venerando pastor, aqui vos apresento a nova


ovelha, que, de seu grado váe hoje amaranhar-se
no rebanho do Senhor': fortificáe a sucº alma com as
vozes do evangelho; inspiráe-lhe a santidade e a
pureza da nossa santa religião; º que nós outros,
reunidos á comitiva, que na proxima sala nos es
pera, aguardaremos o momento da sua conducção
á capella. ,, " * * * * * * ** … : *

** ! º D. GASPAR.

Oh! e quanto está encantadora! (A parte.)


MEM MONIz.
• • " " . -…-

# *

Vamos, amigos. (Sáem) " ,


* •

106 A TOMADA DE SANTAREM.

SCENA VII. . " …

PADRE THEOTONIO e zoRAIDA.


** *
PADRE THEorosio. "… :

Por mercê, assentáe-vos, (Dando uma cadeira


a 3oraida, e seu tam-se.). Pena é, minha filha, que
fazendo vós parte d'um sexo, que tanto interessa
e enternece o homem, e a quem os mesmos sabios
confessam que devem cultos; sexo, que dá a con
solação ao homem nas amarguras da vida, e cujas
graças em ansam aquelle, que nasceu feroz e selva
gem; pena é, minha filha, que houvesseis nascido
no erro, e que tenhaes vivido no peccado.
• * -
* • - - { • - - ".

ZOR AIDA ,

Oh! a culpa não foi minha...


PADRE THEOTONIO.

Verdade seja, a culpa não foi vossa: e hoje


ficarão sanados os vossos males, pois que ao mes
mo tempo que o baptismo lavar o vosso corpo, pu
rificará tambem a vos a alma; e, desde esse mo
mento, filha de Deos e da religião santa, que de
pura não ha outra, as portas da Bemaventurança
vos serão franqueadas; de lá vos esperam as ben
çãos celestes, e as misericordias do Senhor cairão
sobre a vossa alma. , , , , , , , , ,
2OR A IDA,

1.
Padre, com todas as veras do coração, abraço
essa religião, que me torna filha do seu divino fuu
dador, -
SCENA VII. 107

PADRE THEOTONIO.

No ceo achareis v5s a recompensa. Sim, mi


nha filha, deveis contemplar a religião de Jesus
como a alma da vida, pois que é ella quem pri
meiro se apodera de nós, apenas nascemos, e é a
ultima que nos deixa, quando a vida deixa o nos
so corpo: feliz aquelle que, durante o curso da
existencia, lhe tributa eonstantemente o respeito
que lhe é devido, que a não despreza como impor
tuna, ou que a não trata como a uma pessoa, que
é preciso vêr algumas vezes, mas que se torna fas
tidioso vêr sempre. * * -
ZORA ! DA •

Com o tempo, bom padre, com o tempo irei


comprehendendo essa religião, que, fundada, se
gundo já outr’ora mo dissesteis, em anar a Deos
e ao proximo, me fará gostar esse amor para com
Deos, que, o do meu similhante, professado foi
sempre por mim, apesar de ser filha do peccado, e
de me esperar a condemnação eterna. Ministro de
Deos, vós me haveis explicado, por varias vezes,
os dogmas da religião santa, que hoje professarei
no baptismo; oh ! e nunca mais que hoje eu care
gº d'essas explicações. (Com interesse.)
PADRE THEOTONIO.

Contente sou eu com vosco Pois bem, minha


filha, agora ouvireis vós a graça que ides réceber
de Deos, pelos merecimentos de seu amado Filho,
Vós vades tomar um sacramento, que apagando o
peccado original, todos os mais peccados, bem co
mo toda a pena, que lhes é devida, nos constitue
filhos de Deos e da igreja catholica: constitue-nos
filhos de Deos, porque nos dá uma nova vida, com
cuja dadiva nos faz membros de Jesus; e filhos da
igreja catholica, porque nos coloca no numero dos
fiéis, dando-nos, por esta fórma, direitº aos sacra
103 A TOMADA DE SANTAREM.

mentos, e ás outras prerogativas da mesma igreja;


e este sacramento imprime em nossa alina um ca
racter espiritual, que já máis se póde apagar."
* ** ** O - , * ** * **** "…
zoRAIDA... . *

. Embaixador da paz, (ergue-se com enthusias


mo, e Padre Theotonio pratica o mesmo) verdadei
ro amigo da humanidade... Deos é quem me espe
ra, e prestes quero ser com Deos: vinde bom pa
dre, vindo com a agua santa, lavar as manchas,
que o alcorão ainda possa ter impressas no meu
corpo, que a minha alma é já toda do Senhor
Deos de Israel. (Erguendo as mãos c os olhos ao
Ceo.) Vamos, meu amigo, ide tornar-me filha de
Deos... * . -

PADRE THEOTONIO.

Ah! vós, minha filha, abraçareis, para sem


pre, a religião de Jesus!... -

• • zoRAIBA.
Para sempre. ", e •

PADRE THEOTONIO, -?

* **

Renunciareis ao demonio, e as suas pompas!..


ZORA IDA ,

Para sempre. . . , , , ,
+
-
PADRE THEOTONIO• ;

• Renunciareis a maximas e as vaidades do mun


do?... * *

ZOR A IDA .

, , Quero unir-me unicamente a Deos, e só por


elle viver e morrer. - - -

- ** … …- - - -- … ** - - - • • . * .* . *. * .
SCENA VII. , "", f, 109

* . . PADRE THEOToNio. … … so – º

Varnos, minha filha, marchemos á capella.


zoRAIDA. " - .
… - … … e , " " "
Vamos. (Sáem) *
1…" … : *A " ,! …" • … , : , :

*** ! - *: ,; , . …

-
*****-****-* " ... º { |-

• ,, " " , . .….… … . . .


+ + + SCENA, VIII. , , , , , , , ,
. " … , ,, , , . >
RAIMUNDo, (só.)
Bravo, senhor Raimundo... (mirando-se) cas
pite... , como v. m. está guapo e anafado! No seu
trajar não tem inveja a um principe!… (arrumando
as cadeiras) Grande saráu se prepára de já em pa
lacio, para á noite se levar-a effeito, christã que
seja a minha nova ama e senhora. Ora, fallando
sem paixão, bem arrasoado é o affecto, que o se
nhor D. Gaspar de Sousa lhe tributa, e bem con
certados hão sido os sacrificios que a tal moirasinha
tem obrado pelo filho do meu nobre senhor. Elles
amam-se como uns perdidos... mesmo como uns
louquinhos. E, coisa bem singular, presenceiado
tenho eu, que o amor, em peitos nobres, produz
effeitos, diversos áquelles que sentem os corações
plebêos: nos peitos nobres o amor parece ter algu
ma coisa d'im mundo: o senhor D. Gaspar quando
está a bixanerar com a sua futura esposa, leva de
continuo o lenço ao nariz, como se estivesse ra
nhoso; d’onde collijo que, ou o amor faz ranho,
ou que isto, entre os grandes da côrte, é nova ta
ctica de expressar que se querem bem. Não somos
nós assim, cá os pobres da plebe: quando amamos
é, pão pão, queijo queijo. Eu quero. Você tam
bem, quer? Quero, sim, senhor. — Não quero,
não senhor. — (Com voz affeminada; remedando
de mulher.) Se péga, péga; e se não péga, larga, * * **
- -
11o A TOMADA DE SANTAREM.
Ora eis-aí como pensa cá o senhor Raimundo... Mas
tá... (applicando o ouvido) que tropel será este!
LKai á porta.] Ui!... de gente que aflue á capel
Ja!... A esta hora já a senhora Zoraida não é se
nhora Zoraida. Nada de nomes mafamedes, que fa
zem embrulhar o estomago a um christão, que ser
ve cavalleiros de tanto valor, e de tão distincta ge
rarchia como meus nobres patrões... [Torna á por
ta..] Mas... lá saíu da capella a delambida da se
nhora Adelaide... E como ella vem saracoteada
atravessando o visinho salão... Quando a fizeram
christã, por certo que não houve tanta bulha em
palacio. Sem duvida, que é guapa moçoila... Que
sei eu?... Talvez só esta cachorra fosse capaz de me
fazer quebrar o voto, que por tantas vezes hei for
mado,
toca
de morrerCaracter.
meller
no celibato... Ella que chega :
a em " • •

** } ***-*****

SCENA IX.
º ranceoeste e ADELAIDE, já de trojo á por
tugueza, apressada e alegre.
ADELAIDE,

Já é christã... já é christã a minha nobre se


nhora... Que alegria váe em palacio!... Não caibo
em mim de contente... Que funcção tão sumptuosa
deve de ser a d’esta noite; o saráu por certo que
hade ser brilhante... • •

|- RA1MUXDO.

a Seja Deos louvado e mais os seus santos. Mas


diga-me, que interessa a senhora Adelaide em que
o saráu seja ou deixe de ser brilhante ? Persuadido
estou eu, que a sua pessoa não hade ir metter o
seu honrado nariz nas salas, onde affluir o luzido
auditorio.
.* . *. : SCENA IX. ' . . . .'. 111

………….
Por um buraco, que seja, certamente não dei
xarei de dar fé da funcção. - - , > >

.…. RAIMUNDo.

Ora o que a senhora Adelaide quizer: não sa


be que nas casas dos nobres não ha buracos. "
. --* * * ** ••
** .

ADELAIDE.

O que sua mercê quizer tambem ; e não sabe


que isto, é modo de falar. Olhe cu heide vêr a fun
cção, ainda que me mellem.
RAIMUNDO,
- = ' ' .. ** * * * * #; c; , , … > --
Verá, verá; que vossas mercês, as mulheres,
em embirrando, são peiores que mulas de arrieiros.
A'page! Porém mesmo assim, senhora Adelaide,
o que lhe posso affirmar, é que já fui mais inimi
gº d’ellas que de presente... e a esse respeito tinha
eu a dizer-lhe que... , , , * -

ADELAIDE.

Diga, que aqui me tem prompta no seu ser


viço. -* # : , • • ',

RAIMUNDO.

De sorte que... tinha a dizer-lhe que ha muito


tempo desejo fazer-lhe uma confissão... porém, é
coisa celebre! quando estou diante da sua pessoa,
sinto uma coisa cá por dentro, que sobe por mim
acima até me chegar á boca... mas depois, não sei
se é por medo da sua mesma pessoa, ou por outra
alguma causal…, torna a descer a tal coisa... e tu
do isto fica n’uma coisa, sem que vossa mercê,
nem eu saibamos qual seja a dita coisa.
11º A TOMADA DE SANTAREM.
ADELAIDE»

Ora o senhor Raimundo é engraçado: apostar


que isso não deixa de ser alguma tentação do de
monio?
RAIMxNDo, Cáparte.]
. Só se o demonio usa de sáia. Em fim, senho
ra Adelaide, lá váe; e o que fôr soará; preste-me
attenção, que serei breve. [Escarra.]
A DELAIDE.
" ... " … "
:,,.

Ora graças ao A postolo!


RAIMUNDo.
.** * * #

Em quanto a senhora Adelaide seguia a lei do


alcorão, e d'esse senhor profeta chamado Maho
meth, que sempre era creatura que não bebia vi
nho, olhava eu para a menina assim a modo de
quem não quer a coisa; mas depois que deixou o
patriarcha dos cuscús, e abraçou a religião christã...
jogo... [coçando a cabeça..] Não sei se lho conte,
senhora Adelaide!...
.…… , ,

A DELAIDE •
• "" - - … f -

Diga, diga, tamanhãº, não se faça piégas.


- • RAIMUNDO.

senti logo cá por dentrº a tal coisa, que tra


duzida ao pé da letrº, quer dizer… quer dizer...
• Apenaior.
- Quer dizer o que? D…………. * … º
• •• • • • * 1. …* ** *
+

A
SCENA IX. 113

nAtMUNDO.

Como heide eu desembuxar, se já não tenho


buxo? Em fim, minha senhora, é necessario que
nos entendamos: eu não tenho buxo, não tenho
figado, não tenho coração... não me resta dentro
do corpo uma só tripinha, por mais miuda que se
ja, porque essa mesma já foi consagrada á sua pes
soa: mais claro; eu amo a senhora Adelaide.

ADELAIDE.

Ah... ah... ah... (Rindo) Bem lhe tinha eu


dito, que isso era tentação do demonio. Ah... ah...
ah... (O mesmo.)
RAIMUNDo, (áparte.)
Diz o que é.
A DELAIDE» , |

Mas victor serio; convem saber se cassôa, ou


se falla com sinceridade!

RAIMUNDo.

Fallo-lhe com todas as véras do coração: sua


mercê deve calcular, que um servo de cavalleiros
de tão lustrosa stripe, e a quem seus nobres amos
hão incumbido missões de todos os jaezes, porque
nós os plebéos devemo-nos honrar de servir os gran
des em toda a qualidade de obsequios, jámais po
dia bigodear com a sua pessoa. Se amor unir nossas
mãos, por nó de matrimonio, sem duvida que se
remos ditosos... possue a graça do sr. D. Gonçalo
de Sousa, e de seu filho, e...
ADELAIDE»

Sr. Raimundo, veja que isso não basta: olhe


3
114 A TOMADA DE SANTAREM.
que a graça e o favor dos nobres é como a lua, que
com muita brevidade dá volta; e, se bem me re
cordo, dizia minha avó, sabe, minha netinha, que
a amizade com os gentis-homens da côrte, asseme
lha-se ao rio grande dos scytas, que, no principio
é dõce, mas depois amargoso.
RAIMUNDO.

Eu cá não sou homem que me alembre do dia


de amanhã: gosto da menina, e por consequencia...
ADELAIDE.

Comtudo, sua mercê deve recordar-se que leva


uma bellesa de Coimbra; e por isso... •

RAIMUNDO,

Um... tanto não digo eu... sua mercê não é


nenhuma coiza do sete-estrello... assim... assim...
emfim, é uma cara commua... Mas... (indo á por
ta) nossos amos e os convidados regressão da ca
pella. Retiremo-nos.
* ADEL A IDE ,

Vamos por este lado. (Sácm.)

SCENA X.
PADRE THEOTONIO, CARLOTA, D. GON
ÇALO, D. GASPAR, e M EM MONIZ.
PADRE THEOTONIO,

Carlota, está satisfeita a ceremonia mysteriosa


do baptismo: sois filha da igreja catholica, que,
qual mãe carinhosa, vos estreitará em seu seio;
*.*
SCENA X, º " - 115

assim vós saibáes não vos affastar do trilho religioso,


que ella vos aponta. Já desteis as devidas graças
pelo beneficio, que a vossa alma, de envolta com
o vosso corpo, acabou de receber á pouco, quando ***

a agua santa vos purificou de toda a mancha peca


ininosa. Que resta pois, minha filha? Não deslisar
da vereda, que o Senhor nos demarca, que a pre
sença dos justos vos aguarda na bemaventurança
eterna. Carlota, cavalleiros, Deos seja na vossa
guarda. (Partindo, e suspende-se.)
D. GoNçALo.

Já nos deixáes?
D. GASPAR,

Tanta brevidade...

MEM MONIZ,

Por mais um pouco...


CARLOTA;

Por favor; não vos retireis ainda...


PADRE THEOTONIO.

Meus filhos, os sagrados e rigorosos deveres do


meu magisterio me estão chamando ao claustro.
A manhã serei comvosco. (Sáe com D. Gançalo e
Mem Moniz.) *
116 A TOMADA DE SANTA REM.

SCENA XI.

CARLOTA e D. GASPAR.

D. GASPAR.

Carlota, querida Carlota... (pegando-lhe na


mãº) que falta pois ao teu amante para comple
mento da sua felicidade? Oh! a minha immagina
ção, noite e dia, nào sonha senão delicias... deli
cias, e s% delicias encontro n'este mundo, que em
teus olhos diviso o meu Ceo, e tenho o meu uni
verso no teu coração...
CARLOTA e

D. Gaspar, o meu enthusiasmo em nada di


versifica do teu ; são iguaes os nossos sentimentos:
acredita, minha vida...
D. GASPAR •

Himineo... himineo fará em breve a nossa ven


tura... -

CARLOTA,

Oh! e então nada mais ambicionaremos no


mundo... •

D. GASPAR ,

N’esse mundo seremos nºs reproduzidos... n %s


reviviremos em nossos filhos... Agora, minha Car
lota, hei mister d uma condescendencia tua: em
quanto as trevas não enluctam o dia, e que o luzi
do cortejo não é comnosco para enderessar o baile,
e todos os mais folguedos d’uma brilhante reunião,
ouvir desejava a xacara, que á noite tencionas can
tar na assembléa: sim, querida Carlota!
SCENA XI. 117

GARLOTA e

D. Gaspar ignora, por ventura, que um de


sejo seu, torna-se uma lei para Carlota!
D. GASPAR»

Eu não o ignoro, imam da minha alma. (To


ma-lhe a mão, e a conduz a uma cadeira; dá-lhe
a harpa, e senta-se.)
cARLorA, (cantando.)
Que milagres obra amor
Quando falla ao coração!
A quem vive na cegueira
Ministra douta razão,
E abraçar faz de bom grado
A santa religião.
Qu’imperio tem em nos’alma
A força da educação:
Dava o sangue pelo Profeta,
A vida pelo alcorão:
Agora dou sangue e vida
Pelo cavalleiro christão.

De prazer corre em meu peito


Voluptuosa vibração...
Sinto n’alma, D. Gaspar,
Dôce e terna sensação...
Praza ao Ceo que nunca affrouxe
Nossa mutua inclinação.
D. Gaspar, por teu respeito
Baptismal agoa tomei;
Sou christã, e dentro em pouco
Consorte feliz serei.
118 A TOMADA DE SANTAREM.
D. GASPAR.

Tu satisfizeste o meu coração. (Tomando-lhe a


harpa, que encosta á meza, e erguem-se.)
CARLoTA.

Agora permittir-me-heis, que vá ser com vosso


Páe?
D- GASPAR -

De bom grado, minha Carlota,

canLora.
Adeos, cavalleiro,
D. "…….
Adeos, linda Carlota. (Pisa…me … mão,
e conduzindo-a até á porta. Sáe Carlota. — Anoi
tece.) •

• • -=-=-

SCENA XII.

D. GASPAR, (só, descendo á Scena.)


Suave laço d'himineo, dôce prisão, que em
breves dias me prenderás para sempre á gentil Car
lota... que instantes de gloria e de prazer não acar
retarás tu ao meu coração ! -
SCENA XIII.
o PRECEDENTE, e RAIMUNDO, (com luzes, que
* * colloca sobre a mesa.)
, , , RAIMUNDo, - *",

Sr. D. Gaspar, um desconhecido vos procura,


dizendo haver grande carencia de fallar-vos: elle,
senhor, vem rebuçado; comtudo o seu trajo mostra
à CI II]O] flsCO,
D. GASPAR.

pertender fallar
Um moirisco?!... A esta hora P -

me!.. (Fica suspenso.)


#-

*Ainundo (áparte) |
Eu te arrenego, diabo! As obras poderão ser
boas, mas os bigodes não o ajudam. . . -
, , ,, , D. GASPAR.

Está bem: dize-lhe que entre. (Raimundo sáe.)


----
-

•------

SCENA XIV.
D. GASPAR, (só.)
Que pertenderá um moirisco a esta hora?...
(Breve pausa.) Talvez algum infeliz, que alembra
do ainda
implor de quand
ar soccorr o...o Oiçam no captiveiro, me venha
estiveos. * * • •

+
|- . 1.
120 A TOMADA DE SANTAREM.

SCENA XV.
o PREcEDENTE, e OSCAR, (rebuçado, o qual, lo
go que cntra, une a porta.)
oscAR, (junto da porta, e com voz desconhecida.)
D. Gaspar?..
D. GAsPAR.

Que voz é esta!...

oscAR, (com voz pavorosa, e avançando até meio


da Scena.)
D. Gaspar de Sousa, estamos sós?...
D. GASPAR •

Sós estamos: e que pertendes?!


oscAR, (ainda com voz pavorosa.)
Cavalleiro, ignoras tu por ventura o que eu
pertendo? Pois bem; vás saber quem sou, e avante
conhecerás da minha pertenção. LChega-se a elle,
c descobre-se.] - -

D. GASPAR.

Ah !!... és tu, Oscar?!... és tu, aquelle a


quem eu devo o peso dos grilhões no meu captivei
ro?!... E's tu, malvado, que querias fumentar a
minha total ruina?... Ah !!... porque caminho do
inferno vieste tu a Coimbra!!... dize!

OSCAR.

D. Gaspar, não te exesperes... deixa a raiva


SCENA XV. 121

só para o meu coração, as furias todas, todas as


vinganças mais espantosas do inferno...
• * •

D. GASPAR •

Foge, váe-te da minha presença... ou aliás...


oscAR.

Olha que eu, christão, não temo essa arro


gancia da tua côrte; não me faz acovardar a gran
deza, só porque se pavonêa a coberto de doirados
tectos; olha que eu não sou d’aquelles, que tem o
nobre e o plebêo por materias heterrogeneas... não,
portuguez, na minha opinião, o fidalgo e o mecha
nico são maça puramente homogeneas... D. Gas
por de Sousa, sabe que eu nunca servi, nem já
mais servirei de capaxo aos grandes...
D. GASPAR.

Tu me insultas!... oh ! váe-te... volve ao in


ferno d’onde abrotaste... desapparece de meus olhos...
OSCAR.

- D. Gaspar, treme do meu justo furor: con


templa em mim um homem louco, cego, desespe
rado... um ser que declarou guerra ao genero hu
mano... um ser que desejava todos os homens for
massem um só corpo, e uma s% vida tivessem... oh!
que ventura seria então a minha em tirar-lhe essa
vida... sangue... sºmente o sangue do genero hu
mano saciaria a ardente sede que me devora as en
tranhas!... Ah!... quasi que estou degradado da
essencia humana... porque o homem, feito assassi
no, só lhe apraz o sangue e a carnagem... e d’esta
arte
no debem depressa
toda me tornarei o inimigo e o tyran
a naturesa! •
12º A TOMADA DE SANTAREM.
- D. GASPAR -

Sê breve: ou dize o que pertendes, ou teme...


o…….
O que pertendo? Tu o queres saber; não é as
sim?... Pois eu te satisfaço... Sabe que pertendo
revindicar os meus direitos... os direitos que hei
agora, com dobrado juz á posse de Zoraida.
. * * *

D. GASPAR,

Já outro é o seu nome, e...


• •• OSCAR.

Eu o soube á pouco: no baptismo tomou o de


Carlota; e no baptismo, nome de christão, em bre
ve tomará Oscar. ,
D- GASPAR.

ça?!...
Tu,Não
Oscar?!...
te acredito.
tu, tão afferrado á tua cren • •

*;
OSCAR º

E tu, cavalleiro, que tanto affinco havias á


tua, não prometteste — vê se te recordas — não
prometteste, curvado aos pés da que então era ma
homethana, e hoje christã, abjurar a tua religião a
e abjural-a para sempre!... * * * *

# D. GASPAR.

Inferno!... Ah! não me recordes scena de tan


to horror!... Oh ! o meu Deos me tocou na alma...
fallou-me o remorso ao coração... e eu me arrepen
di, em tempo,
sómente amor, meda fatal
haviapromessa,
arrastado !a que amor, e •
" , SCENA XV. • 123

OSCAR,

D. Gaspar de Sousa, verdades espantosas, ver


dades que te farão tremer, verdades que tu julga
rás vomitadas pelos abysmos, vão ser patentes a
teus ouvidos... este papel as encerra; [mostra um
papel] e é este papel que dá a felicidade ao meu
coração. Alembras-te tu do dia — hoje é o seu an
niversario — que Santarem foi rendida ás armas
dos christãos? • •

D. GASPAR ,

Esse dia de eterna gloria já mais será derrisca


do da minha lembrança.
OSCAR º

Abzechri vendo perdida a victoria que espera


va, tempo houve apenas, para em companhia de
vinte fiéis agarenos, deixar Santarem, e a grande
carreira demandar Sevilha; eu fui um d'aquelles,
que entrou no numero dos que o acompanharam;
alli servimos então sob o commando do rei Albara
que ; porém a enfermidade chamou Abzechri ao lei
to, e em breves dias a morte o roubou ao mundo...
D. GASPAR.

Morreu Abzechri?!...
t > , ,

OSCAR.

Morreu Abzechri... é verdade, cavalleiro; e


na vespora da sua morte, a minha mão traçou n’es
te papel, a mandado do mesmo Abzech ri, a sua
espontanea e derradeira vontade, que elle assignou,
muito a seu contento.
124 A TOMADA DE SANTAREM.
D. GASPAR, Ucon interesse.]
Prosegue...
…, [… …, …]
» Mahomethanos, sou um monstro de crimes...
eu choro o meu erro; e, tal ez tarde, me arrepen
do. Mahomethanos, ouvi-me, e tremei : Ha vin
te dois annos, quando apenas vinte quatro de ida
de contava eu, Suzaira, illustre e gentil agºrena,
que era toda innocencia e virtude, foi seduzida por
mim, com o pretexto de desposal-a: seu páe o hon
rado e mísero Delma cur, arreceioso da minha ty
rannia e orgulho desmedido, porque sciente se acha
va elle do meu affecto a Suzaira, a fez sair de San
tarem, e habitar uma quinia a duas léguas em dis
tancia d'essa praça: recentido d’este passo, eu sou
be com tudo dissimular; e convidando-o um dia a
explendido banquete em companhia de outros nos
bres agarenos, no meio dos regosijos do grande fes
tim, sem que o presentissem, veneno lhe lancei
n'um copo d’agua: então o infeliz, a tragos, be
beu a morte, que, em vinte quatro hurus, o des
pojou da vida!
D. GASPAR º

Que malvadez!...

oscAR, [continuando a lêr.]


* Morto d'est’arte o infortunado Delmacur,
e seduzida sua filha, em pouco tempo a formosa
Suzaira sentiu engendrado em suas entranhas o pri
meiro fructo do nosso amor, ou da minha violencia
e barbaridade. Ciumes infundados, que houve d'el
la, em respeito a um nobre e joven agareno, me
vendaram a razão, e fizeram persuadir que, trai
dora a innocente Suzaira, outro era o páe d’aquel
le, que só devera ser meu filho, A desventurada
SCENA XV. 125

deu á luz um varão; e eu, renitente em minha fa


tal suspeita, chamei logo o pagem Abimeleck, ao
qual entregando o recem-nascido, lhe ordenei que
o furtasse á minha vista, e prestes désse a morte
áquelle que acabava de ganhar a vida. A bimeleck
executou as minhas ordens, e de as haver cumpri
do no mesmo dia, me deu parte... »
1D. GASPAR»

Que horrror!!...
-OSCAR»

Horrorizas-te, D. Gaspar! Tens razão: Ora


pois, escuta o resto: [Proseguindo na leitura.]Com
o tempo vim a entrar no conhecimento da innocem
cia de Suzaira: não já violencia, mas brutesa, e
amor a tornaram a fazer mãe... ella deu á luz do
dia uma menina, e esta menina...» Cavalleiro,
podes tu advinhar quem ella seja !...
D. GASPAR, Dcom muito interesse.]
Quem é, dize?...
OSCAR»

Tu o queres saber, D. Gaspar? Olha bem o


que fazes...
D. GAsPAR, [como fóra de si.]
Falla... quem é?...
oscAR, [em tom horroroso e pausado.] -

• * *
E" Zoraida. - * ** * *

D. GASPAR»

Zoraida?!... ah !!... [Breve pausa..] Não... não


te acredito; tu és um vil embusteiro...
1es A TOMADA DE SANTAREM.
CSCAR»

… Não me insultes, D. Gaspar... Zoraida é a fi


lha de Abzechri. -

- D. GASPAR •

Carlota, a filha do inimigo do meu rei!... do


inimigo da minha patria!... da minha religião!...
oh ! que fatalidade! que terrivel verdade !!... A ca
ba, Oscar... acaba de dislacerar-me o coração...
OSCAR,

Eu te satisfaço. [Continua a lêr.]» De meus


crimes só era sabedor o meu pagem Abimeleck,
que prisioneiro ficou dos christãos, quando conquis
taram Santarem; e á minha Zoraida eu fiz acredi
tar, bem como a toda a gente maura que habitava
aquella praça, que seu páe havia falecido de an
temão ao seu nascimento. A Alá peço perdão de
meus crimes; e é minha ultima vontade, que Zo
raida, a minha adorada filha, seja esposa do joven
Oscar... »

D. GAsPAR, [interrompendo-o furioso.]


Ah ! nunca... nunca o verás...

oscan, Lultimando a leitura.]


» Dada em Sevilha aos 12 de Abril de 1148.
= Abzechri. = [Dobra o papel, o qual conserva
na mão.] D. Gaspar, terei eu juz á mão de Car
lota, responde ?... E ella deixará por ventura de
cumprir a derradeira vontade de seu páe ?... Oh!
por certo que não.
D, º GASPAR.

Deixará... deixará... Não, nunca será tua.


SCENA XV. - 127
* *

oscAR.

- Nós o veremos, cavalleiro. Assignado por Abze


chri este papel, estreitou-me em seus braços, e ba
nhado em pranto me disse, que procurasse todos
os meios de encontrar sua filha. Deu-me oiro... mui
to oiro, cavalleiro... oiro capaz de me fazer obrar
milagres sendo homem e mahomethano. Seis dias
depois vogou a nova em Sevilha, que El-Rei D.
Affonso Henriques mandára affixar editos em to
das as terras portuguezas, dando o perdão áquelles
moiros, que, tomando o baptismo, quizessem se
guir a religião christã. Eu fui um do numero d'es
ses, que poderam evadir-se ás precauções d'Alba
raque. Com effeito, cavalleiro, hoje cheguei a
Coimbr2 , amanhã apresentar-me-hei ao teu mo
narcha, em breve serei christão, Carlota minha
esposa haded’est’arte
funto páe ser em breve, e a vontade de seu de
será cumprida. ••

D. GASPAR.

Debalde te jactas que a possuirás homem des


graçado e vagabundo, homem sem patria, vil,
fraco e covarde como todos aquelles que em Santa
rem foram rendidos ao valor do braço portuguez...
debalde, que a mansa e candida pomba não foi for
mada para enlaçar-se ao tigre faminto e sanguimo
so!... Carlota, a linda Carlota me ama com todas
ºs veras da sua alma... ella me arma com aquele
dºce enthusiasmo, que sentindo-o o coração, saber
não tem os labios para exprimi!-o... em fim ama
me como eu a amo, que é com aquelle interesse
de que são susceptiveis dois jovens nos seus primei
ros amores... Não, malvado, Carlota já mais será
tua... Embora Abzechri o quizesse; fosse essa a sua
derradeira vontade... que as leis paternáes... e is
leis paternaes d'um monstro de crimes, não impe
ram em seus filhos, se a chamma da ternura lhes
affoguêa o coração... Sim, cruel, tu verás Carlo
123 A TOMADA DE SANTAREM.
ta... mas hade ser conduzida comigo no altar do
nosso Leos, que a tocha de hymineo de lá nos es
pera a cesa... ah! que então, em tanto que te mor
deres de raiva, que te arrepellares... nós, já con
juges, já ditosos, olhar de escarneo lançaremos pa
ra ti, de vêres malogradas as tuas esperanças.
OSCAR.

Tu me insultas, christão?! oh ! tu muito me


has insultado!... Não importa... apéllo para o dia
de amanhã: serei com o teu monarcha; elle ficará
sciente de quanto encerra este papel... e então,
certo fico eu, que el-rei D. Affonso Henriques já
mais com sentirá que um cavalleiro da sua côrte des
pose a filha do homem, que foi um dos maiores fla
gelos da sua patria, o primeiro inimigo da sua re
ligião. Fica-te em paz. [Partindo.]
D. GASPAR.

Traidor... traidor... entrega-me esse papel...


Ah! treme da minha justa vingança...
OSCAR»

D. Gaspar, olha que eu não cinjo o sabre.


porque estou na côrte do vencedor: mas um punhal
é arma occulta aos olhos do mesmo vencedor... e
um punhal trago eu para a defesa. [Tira um pu
nhal.] Se dás um passo, a morte...
D. GASPAR»

• O furias!... ó inferno!... um moiro vencido


vergonhosamente... um moiro que vem approveitar
a regia munificencia do seu vencedor, ousa empu
nhar o ferro, e de ameaça, a um cavalleiro por
tuguez!... e na sua patria... e no seu proprio do
micilio... ah ! que mesmo a braços... •
SCENA XV. 129

OSCAR º

Christão, não movas siquer um passo.…


P. GASPAR » (avançando.)
Dá-me esse papel forjado no inferno.»
OSCAR,

Morre... (Vai a feril-o, e elle lhe segura no


braço, e lhe tira o punhal.) Oh! raiva!..
D. GASPAR =

Malvado, entrega-me esse papel... (Compri


mindo-lhe o braço com força.)
OSCAR e

Por piedade... não me tires a vida.


D. GASPAR •

Já imploras piedade?... Sim, D. Gaspar não


se parece comtigo; elle jámais tiraria a vida a um
homem, ou a um monstro, indefeso como ora es
tás. (Lança fóra o punhal.) Dá-me esse papel.
oscArt.

Aqui o tens... mas não me mates... (Dá-lhe


o papel.) *

D. GASPAR»

Sim, eu estou de posse d’elle... Agora pro


metje-me aqui mesmo, que não irás ao monar
cha, que cederás da pertenção de Carlota, que
hoje mesmo deixarás Coimbra, que te sumirás nos
abysmos... (Comprimindo-lhe o braço com muita
13o A TOMADA DE SANTAREM.
violencia, e fazendo-o curvar.), ah!... nos abys
mos... Repára, que é um cavalleiro portuguez que
assim to ordena... que é um portuguez...
OSCAR»

Por piedade...
P. GASPAR.

Eu não a devera ter comtigo... oh ! tu vieste


perturbar a felicidade, que este dia havia trazido
ao meu coração... . Deves lamber a terra que piza
a virtude; e como já experimentaste o valor do fer
ro portuguez, justo é, malvado, que conheças tam
bem hoje(Fazendo-o
nhar... qual a força
cair do braço que o sabe empu
de joelhos.) •

OSCAR.

Ah!... Vergonha!... vergonha!...

sCENA XVI.
os PREcEDENTEs, D. GONÇALO, MEM MO
NIZ, CARLOTA, A DELAIDE, e RAI
MUNDO, Diodos apressadamente.]
D. GoNçALo.

Meu filho, que acontece?... Que vozes são


estas?!...

D. GASPAR,2 (deixando Oscar,» Oo qt


qual se ergue.
8

Desgraças, desgraças, meu páe... #

MEM Moniz.
Que vêem meus olhos!... Um moiro!...
scENA xvi. - 131
cARLorA.

Oscar!... Oh! tu em Coimbra !


OSCAR.

Venho trazer-te um brinde... venho nomeiar


teu páe, que não é o que has julgado.

P. «AsPAR.
Imbusteiro... Não o acrediteis...

oscAR, (fóra de si.)


Venho nomeiar teu páe.
Todos, [excepto D. Gaspar º Carlota.]
Seu páe!...
cARLorA, (elevando as mãos ao Ceo.)
Mercê a vós, meu Deos! E quem... quem é
meu páe!...
OSCAR •

Abzechri.

robos, [excepto D. Gaspar e Oscar.]


Abzechri!...
CARLOTA •

Ah!!... (Caindo nos braços de D. Gonçalo.)

FtM DO QUINTO QUADRO.

9 *
13a A TOMADA DE SANTAREM.
—…<>.…— |-

QUADRO VI.
8 de Maio de 1148.
A mesma vista do Quinto
• • fechada.Quadro. A porta está
|- •

SCENA I.

D. GASPAR, [só, sentado junto á mesa, sobre a


qual ha um punhal.]
V……... terrível verdade vomitada pela boca
do inferno!... Verdade espantosa, que vieste enlu
tar a alegria d’este dia, e roubar o socego ao meu
coração, que, se dasasocegado alguma vez estava
elle, era só porque hymineo me não tinha unido
ainda á bella Carlota... Carlota, a quem hei res
peitado sempre como um homem deve respeitar a
virtude e a innocencia... Carlota adornada da can
didez dos anjos... (Pausa.) Mulher digna de tal
nome... mulher a quem devo tanto, e que tão re
ligiosamente tenho amado, eu te perderei para sem
pre... e para sempre!... (Chora.) Oscar, o traiçoei
ro Oscar, que palavra não tem um moiro, e um
moiro apaixonado, irá sem duvida aos pés do mo
narcha, narrar-lhe-ha o facto espantoso... D. Af
fonso Henriques saberá a verdade... oh ! e elle já
mais consentirá que um nobre da minha stirpe se
una, por contracto de consorcio, á filha do feroz
oppressor da christ ºndade... E eu, e eu, mal-aven
turado! que farei no mundo sem Carlota ?... De
que me servirá a vida?!... Ah!... (toma o punhal,
e ergue-se) e não terei eu juz para acabar uma da
diva que não pedi, e que me é funesta?... Um
presente de Deos ou do acaso, que só males, que
só desgraças me ha accumulado no verdor dos an

SCENA I. 133

nos?!... Oh! quando principiava a ser ditoso, na


esperança de possuir Carlota, é que uma verdade,
traçada pelo demonio, forjada no abysmo horren
do, e do abysmo pregoada ao mundo, º em trans
tornar esta bella esperança!... Morrerei... morre
rei... (Pequena pausa, e tom diverso.) Carlota,
adorada Carlota, é este o maior sacrifício, que
posso fazer nas aras da tua formosura... Meu bem,
u ternura em breve nos devia unir para sempre...
e hoje para sempre nos váe desunir a morte... (Er
gue o punha/, vae a ferir-se, e ba'em dentro.) Mas...
batem... Quem será?!... quem será que vem funes
tar com sua presença este instante para mim de fe
licidade?!... Quem está aí!... Quem bate a essa por
ta!... (Muito forte, indo á porta.)
PADRE THEotoNIo, (dentro)
Abri, cavalleiro.
D. GASPAR,

Ah!... em que occasião!!... [Esconde o pu


nhal.] Sois vós, D. Prior!... [Abre a porta.] En
tráe.

SCENA II.

o PRECEDENTE e PADRE THEOTONIO.

PADRE THEOTONIO.»

Signaes d’afflicção descubro eu em vosso rosto,


e sobeja razão tendes v%s, meu filho; mas deveis
recordar-vos, que, ao homem cumpre ter força pa
-ra alcançar victoria de todas as paixões, por mais
fortes que sejam, quando acantonadas no coração;
pois que, de contrario, se nos deixamos arrastar
Por seus fortes impulsos, d'est’arte nos degrada
134 A TOMADA DE SANTAREM.
mos da nossa essencia, e, similhantes aos brutos,
caminhamos ao precipicio, sem freio que limite as
mesmas paixoes. •

D. GASPAR,

Ah ! padre... ah! bom padre... que a moral


evangelica aprendesteis vós a pregar... Dizer ao ho
mem apaixonado, que deve enfrear essas paix5es
que o devoram, é facil... é mui facil... mas supi
tar no peito os seus impulsos, ter força para esma
gal-os... ah! que nem a razão, nem a filosofia po
dem tanto,... Milagres, padre, só Deos... só a elle
compete obrar milagres...
PADRE THEOTONIO.

Não desespereis, que Deos é de misericordia.


D. Gaspar, da boca de vosso páe acabo de ouvir
circumstanciadamente a expozição, que, tocado do
remorso, fez o defuncto Abzechri na vespora da sua
morte; noticia que já vogava por toda a côrte. E'
a este monstro, e não a este homem, que a virtuo
sa Carlota deve os seus dias; mas eu vos affianço,
meu filho, que, se bem fosse elle o maior inimigo
da nossa santa fé; comtudo, em atenção aos be
neficios que recebesteis da joven Carlota no capti
veiro, e em respeiro a ella, de tão bom grado,
abraçar a religião catholica, alcançarei de S. Al
tesa, á força de instancias, a regia permissão pa
ra os vossos desposorios. --
D. GASPAR.

Ah! padre, vés derramasteis um balsamo sua


ve no meu coração!... um balsamo consolador!…
PADRE THEOTONIQ,

Confiáe em mim, eu vol-o peço; e já mais per


cáes a esperança, porque Deos é justo,
135
* *<= **

SCENA III.


os rarcrossrss , e taD.naGONÇALO
• mão.] Dcom uma car

D. GoNçALo.

Amigo D. Prior, um creado do hospital real,


disse procurar-vos no convento, onde soube que vós
estaveis n'esta casa: trouxe esta carta do regente
do mesmo hospital, a qual entregou a um de meus
servos para que vol-a désse. LDá-lhe a carta.]
PADRE THEOTONIO.»

Agradeço-vos, D. Gonçalo. [Olhando o sob


escripto.]» Do regente do hospital.» Ah ! bem sei,
é do virtuoso Fr. Damião. Concedei-me licença,
cavalleiros. [Lê baixo..] D. Gaspar, não vos hei
eu dito, por tantas vezes, que nunca o homem
deve deixar fenecer a esperança no coração? Ouvi =
[Lê alto.]» D. Prior, um moiro, por nome Abi
melech, que foi pagem do feroz Abzechri, cujo pa
gem ficou prisioneiro dos christãos, quando Santa
rem caíu em seu poder, ha um mez, que habita
esta piedosa casa, atacado d’uma violentissima en
fermidade: hontem, já sem esperanças de vida,
poude conseguir que elle recebesse o baptismo; e
agora mesmo acaba de dizer-me, que tem a fazer
uma revelação, da qual talvez penda a felicidade
da filha de seu defuneto senhor... »

D. GASPAR º

Que escuto!...

D. GoNçÁro,
Será possivel!...,
126. A TOMADA DE SANTAREM.
PADRE THEoroNIo, [continuando a lêr.]
» Elle ouviu fallar da chegada d'um moiro a
esta côrte, chamado Oscar; e sabendo tambem que
vós tendes estreita ligação de amisade com o caval
leiro, em cuja casa ora existe a filha do fullecido
Abzechri, vos roga, como graça especial, e que
sem dúvida será do agrado de Deos, tenhaes a bon
dade de comparecer aqui, a fim de ouvirdes da sua
boca a revelação, que elle, de seu grado, perten
de que v%s façaes publica. A graça de Deos vos
acompanhe, — Fr. Damião de Tarouca. — » [Guar
da a carta.]
D. GONÇALO,

Abimelek é o escravo que foi confidente e con


socio nos crimes de Abzechri. $

D. GASPAR º

Sem duvida, é aquelle a quem o monstro or


denou désse a morte a seu filho, ao desgraçado ir
mão de Carlota.

PADRE THEOTONIO,

E' esse mesmo. Cavalleiros, eu parto ao hos


pital; vou ouvir a revelação do malfadado Abime
leck; e do que occorrer, a este respeito, em breve
vos farei sciente. Até á volta. [Sáe.]
D. GoNçALO.

E eu parto a fallar ao Soberano. Meu filho


vou advogar a causa do teu coração. LSáe.]
- - - 137

SCENA IV.

• P. o AsPAR, (só)
Uma revelação de Abimeleck feita na hora ex
trema!... oh ! será ella por ventura tão medonha,
tão infermal como aquella, que tambem, á beira
do sepulchro, vomitou de seus labios o malvado
Abzechri!!. Uma revelação de Abimeleck!.. A ora
çar a nossa crença!... Fallar-lhe-ía Deos ao cora
ção!!... Quem sabe... quem sabe se será falsa a
confissão de Abzechri!... Se será algum trama do
pérfido Oscar, a fim de impecer o andamento dos
meus amores com a linda Carlota... Mas ah ! chi
merica esperança!... Nada... nada posso esperar
quº bom seja para o meu coração... Virtuoso pa
dre Theotonio, a tua chegada á pouco a esta casa,
me impedio de ser homicida de mim proprio... já
descançaria no repoiso eterno... A minha alma es
taria condemnada ao inferno... Oh!... viver em tor
mentos de amor, acaso não equivale a existir nos
"tormentos do inferno?!... [Pausa..] O dia de hoje
marcará a minha sorte: ou a certesa da posse de
Carlota, ou o desengano de a perder para sempre...
Se não houver de ser minha, este ferro me acabará
o amargor da vida. Vós então, entes que amaes,
e que, á similhança de D. Gaspar, sois infortu
nados em vossos amores, consagrareis uma lagrima
á sua memoria, uma flôr ao seu jazigo... carpireis
a sua sorte... sim, que a morte quando é digna de
ser chorada val mais que a mais longa vida... Mas,
vem Carlota... oh ! e quanto e bella, mesmo em
pranto !
138 A TOMADA DE SANTAREM.

•••••

SCENA V.
o PREcEDENTE e CARLOTA. -

cARLoTA, [limpando os olhos.]


· Cavalleiro, o meu coração temoroso, mais ti
mido está agora com a revelação que pertende fa
zer Abimeleck...
d'esta revelação! D. Gaspar, que devemos esperar

• D. GASPAR.

Nada que favoravel seja aos nossos amores...


sim, minha Carlota, certo estou eu, que a sorte
se compraz de atormentar dois entes, que deviam
ser venturosos neste mundo desgraçado.
CARLOTA -

D. Gaspar, se el-rei não consentir nos nossos


desposorios, que faremos entao minha vida!
D. GASPAR •

El-rei governa homens, não governa corações:


se o Monarcha pertender alongar o seu imperio ,
onde amor, e sómento amor deve dar leis, perdoe
me D. Affonso Henriques; mas elle passará pelo
dissabor de vêr-se desobedecido.

cARLoTA, [chorando.]
Ah! que tu d'esse modo ficarás por certo des
graçado...
D. - GASPAR.

Não te afflijas, minha Carlota, que apêgo não


tenho eu á nobresa que me deu o acaso: D. Gas
• - , SCENA V. 139

par saberá trocar, sem custo, as honras de caval


leiro pela mais humilde profissão; saberá deixar a
côrte, e os seus luzidos enganadores; saberá dei
xar palacios, grandesa, fausto... e s% o que elle
não saberá, nem poderá deixar é a encantadora
Carlota, por ser ella, e s% ella, a dôce amiga do
seu coração... Sim, anjo do Ceo, escolhe, e sê
breve: Se vencer o fanatismo, ou o desmedido or
gulho de alguns cortezãos que circundam o Rei,
alembrando-lhe o explendor do throno e o brilhan
tismo da côrte, que, de ordinario, são os doira
dos punhaes com que os tyrannos costumam assas
sinar a liberdade das almas sensiveis, em referen
cia ao amor, ou dispõe-te a abandonar a côrte, e
soffrer todas as privações, todos os vexames, que
a sorte tiver
homicida de marcado para o teu amante, ou aliás
mim proprio... •

CARLOTA • A

Não desvaires, D. Gaspar... ah! faz justiça


ao meu amor. Eu abandonar-te!... Deixar de se
guir-te!... eu, cavalleiro?!... Carlota ainda é a
mesma que foi em quanto Zoraida; ainda te arma
com igual fogo, qual então te amava; ainda jura
seguir-te ás margens as mais remotas... ainda pro
testa acompanhar-te, se tanto fôr mister, até ao
fim do mundo... Sou mulher... [formalisada, o
com recentimento] oh ! , mas em mim não ha mu
dança; e se a houve foi sómente na religião; mas
essa, cavalleiro, ensina ao coração dos que a pro
fessam, que sigam sempre a virtude... ella nunca
lhes aponta a carreira do crime... Jurei ser tua até
á morte... O meu amor, para comtigo, durará tam
to quanto me durar a vida... Ah! e porque não se
rá possivel prolongar este sentimento ainda além
da morte?!... Homem, que por tantas vezes hei
julgado transcenderes a méta humana... sentimen
to tão justo, e que faz o prazer da minha existen
cia, não deveria ter fim, e s% sendo infinito satis
faria a minha sensibilidade.
110 A TOMADA DE SANTAREM,
******.

SCENA VI.
OS PRECEDENTES C oscAR.
+ oscA". -
Carlota, D. Gaspar, eu vos saudo.

C.A.R.I.OTA •

Oscar !
• D. GASPAR.

"Oscar, que exiges de nós? Que pertendes n'es


ta casa?
OSCAR. /

Nada de ti, e muito de Carlota.


CARLOTA •

De mim!...
OSCAR»

Sim, Carlota, de ti. Consulta o teu coração,


evedir-me-has
ou não sersecumprida
a vontadeporderradeira
sua filha. d’um páe de

B. GASPAR e
Cala-te...
OSCAR »

Queres que me cale? Pois nem será licito a


um homem abatido, sem patria, sem paes... a um
homem vencido.. fallar, quando seja a verdade,
diante do seu vencedor ?!... Carlota, teu páe é
morto; mas antes de expirar proferiu a sua ultima
vontade, que eu escrevi, testemunhas escularam »
e, elle assignou; este papel pára em mão de D.
Gaspar.
SCENA VI. . 141

CARLOTA.
• / •

D. Gaspar, onde pára esse papel?... ah: eu


quero vel-o... quero beijar uma vez a firma do que
rido author dos meus dias...
D. GASPAR.

Meu páe ha posse, d’elle. Carlota, tu ousas


ainda carpir um monstro?! Atreves-te a chorar o ti
gre, que só teve o nome de teu páe, porque con
correu para a tua existencia !! O tyranno que en
ganou a virtude, que seduziu tua infeliz mãe, que
á força de tormentos e desgostos talvez mais depres
sa a arremeçasse á sepultura, que aliás origem não
seria da sua morte o haver-te dado a vida !! Recor
das-te com saudade do malvado, que sem temor ao
Ceo, que sem freio mesmo da sua religião, pois
religião não ha que ensine a ser tyranno, tomou
nos braços o recem-nascido infante enfaixado ape
nas nas mantilhas, e chamando Abimeleck, mons
tro igual ao monstro que teu páe se appelidava,
ordenou lhe arrancasse a vida, quando o innocen
te nem sabia ainda o que era ter vida?... Ah! n %s
devemos respeitos, devemos ternura áquelles que
nos deram o ser ; mas quando, em vez de páes,
só encontramos tyrannos, nós os despresamos, quan
to elles são despresiveis por seus crimes, e vonta
des de tyrannos jámais devem ser cumpridas.
CARLOTA • }

Ah!... elle é meu páe...


oscAR.
Carlota, com horror tenho ouvido as expres
sões de D. Gaspar, em ordem a Abzechri!... oh !
e persuadido estava eu, que um christão soubesse
- perdoar ao seu inimigo, de menos, quando elle ha
142 A TOMADA DE SANTA REM.

bitasse debaixo da fria loisa. Ah! Carlota, que in


conquistaveis direitos tenho eu ao teu amor! Nas
cidos na mesma patria, no gremio da mesma reli
gião... hontem, porque tu abraçaste uma estranha,
amanhã abraçada será tambem por mim; debaixo
das mesmas leis, ao abrigo de iguaes costumes;
vivendo como irmãos, por espaço de tres annos,
na rezidencia de Abzechri, desde que militei nas
suas bandeiras; o amor que desde então te consa
grei, a ternura que as tuas graças me inspiraram
ao coração... e alfim, linda Carlota, a vontade
de teu páe, a vontade d'um páe, na hora extre
ma, não será sobejo motivo pura me legares o teu
coração?... •

CARLOTA •

Ah!... não... nunca o esperes: jurei ser uma


vez do cavalleiro christão, e este meu juramento
ou hade ser religiosamente cumprido, ou a morte
me levará, em breve, á habitação do nada.

SCENA VII.

os PREcEDENTEs, e D. GoNÇALO, [com alegria]


p. GoNçALo.

Oscar, d'ora em diante, nada tendes a fazer


n'esta casa. Meus filhos, annuncio-vos, com indi
zivel prazer, que S. Altesa houve por bem conce
der-vos a regia permissão para que sejáes esposos;
e o monarcha me assegurou se comprazia d’esta união,
pois que de tal modo mostrava um cavalleiro da
sua côrte, que sabia ser reconhecido á virtude; que
elle se esquecia dos crimes de Abzechri, e que,
d'ora presente, só se alembrava, que esses crimes
produziram virtudes, quaes as que recamam o co
ração de Carlota.
scENA VII. 143
D. GAsPAR.

Carlota, minha Carlota, nada resta para com


plemento da nossa felicidade... permitte o monar
cha que sejamos esposos... E's tu contente, minha
vida ?
oscAR, Cáparte.]
Que responderá ella?...
CARLOTA • •

El-rei accede á nossa união?... [Balbuciente]


D. GoNÇALo.

Sim, Carlota, e n'isso muito se compraz.


D. GASPAR,

Oh! tu serás minha... tu serás minha para sem


pre... [Pegando-lhe na mão com ternura.]
O” raiva ! oscAR, Cáparte.]
IV
CARLOTA •

Oscar, meu páe morreu... é certo que elle le


vava em bom grado a minha união comvosco; mas
que inconquistaveis direitos á minha mão não tinha
já a esse tempo D. Gaspar de Sousa... [Koltando
se para D. Gaspar expressivamente..] Oh! sim...
eu jámais deixarei de ser tua... de ser tua, D. Gas
Par... DAbraçando-o]
OSCAR.
Inferno... -

D. GASPAR.

Ah ! meu bem, triunfo... triunfo ao meu co


ração...
144. A TOMADA DE SANTAREM.
*#***

SCENA XVIII.
os ParcEDENTEs, e RAIMUNDO, [correndo.]
RAIMUNDO,

O Sr. D. Prior de Santa Cruz chega agora


mesmo a palacio, e cheio de alegria atravessa suas
salas, perguntando por vós, e exclamando ao mes
mo tempo: — Venho trazer a paz e a felicidade
ao seio d’esta familia. — Mas... elle chega. [Cor
rem todos á porta, e Raimnndo sáe, logo que en
tra o padre.)
•=•••••=

SCENA ULTIMA.

ps PaecEDENTEs, e PADRE THEOToNIo,


Lcom muita alegria.]
PADRE THEOTONIO.

D. Gonçalo, Carlota, D. Gaspar... a alegria


me tolhe as expressões... oh ! eu venho trazer a paz
e a felicidade ao seio d'esta casa. Oscar, tambem
vades ser feliz…. vou dar um presente ao vosso co
ração...
OSCAR»

A mim?!... Explicae-vos...
PADRE THEOTONIO.

Não o duvideis, vou dar-vos Carlota.


D. GoNçAlo, D. GASPAR e oscAa.

Carlota!!...
SCENA ULTIMA. 143
CARLOTA.

Ceos ! que ………"


PADRE raroroso.
D. Gaspar, não desanimeis, Carlota tambem
será vossa.
- D. GASPAR.

Que mysterio!... Pelo Ceo, explicáe-vos.


CARLOTA.
• Aº • •

Fazei-me surgir da incertesa em que fluctua o


meu coração; por piedade vol-o peço.
*
PADRE THEOTONIO.

Sim, eu me explico... escutáe-me, e jubiláe


comigo. E vós, Oscar, que mais que todos da mi
nha narração quinhoareis a felicidade... aproxi
máe-vos a mim, ouvi-me attento, que mil com
moções de jubilo em breve vos aguardarão. (Todos
se aproximam.) Meus filhos, chego do hospital,
acabando de ouvir a publica confissão, que fez o
desgraçado Abimeleck pouco antes de votar a alma
ao Creador: este papel a encerra, que testemunhas
assignaram para ser presente a el-rei. Alembrar
vos-heis vós de ouvir dizer, que Abzechri tomando
nos braços o filho recem-nascido, o entregou a Abi
meleck, ordenando-lhe o sacrificasse á morte, ar
receioso que algum occulto amor o gerára nas en
tranhas da misera Suzaira, quando barbaridade,
e sómente crime lhe haviam presenteiado o ser?
D. GoNçALo c oscAR.

Sem duvida,
10
16. A TOMADA DE SANTA REM.
6ARLOTA e D. GASPAR.

Certamente. " • -

PADRE THEOTONIO,

Pois bem: Abimeleck, estranho ao crime, tre


meu, ao escutar o terrivel mandado de seu perver
so senhor; porém dissimulando por um pouco, e
calando no peito todos os affectos de páe, porque
tambem era páe, recebe o tenro infante, põe-o a
cuberto do furor paternal, e é prestes em partici
par ao monstro, que seu filho acaba de ser sacri
ficado ás suas mãos, quando d’ellas o innocente
acabava de receber a vida.
CARLOTA.»

Oh! Ceos... Vive meu irmão!!... E onde, se


nhor, onde pára elle!...
OSCAR,

Vive o filho de Abzechri!... Acabáe...

PADRE TIIEOTONIO.

Vive o filho de Abzechri... sim, vive o filho


de Abzechri. Abimeleck, apenas houve o innocen
te das mãos do seu author e seu tyranno, vôa ao
encontro d’uma piedosa mulher, que, a bom gra
do seu, depois de escutar a medonha narração ao
fiel conductor, o recebe em seu pobre lar, a cuber
to do maior sigillo, então...
oscAR, (interrompendo-o com o mais vivo interesse.)
E quem
lher!... era ella!... dizei... quem era essa mu
• "…
SCENA ULTIMA. 147
PADRE THEoroN1o.

Essa piedosa mulher era Fatima… e o infante


recem-nascido eras tu... eras tu, Oscar…
OSCAR º

Ah!!... (Arrojando-se sobre uma cadeira.)


cARLorA, (correndo a Osear.)

Oh! meu querido irmão…


osca a, (forte, e com gesto e tom horroroso.)
Carlota... foge... separa-nos fatal proximida
de!... (Inclina a cabeça sobre os braços.)
\ CARLOTA •

par.)D. Gaspar... (Correndo aos braços dº D. Gas •

D. a AsPAR, (abraçando-a com enthusiasmo.)


Carlota... minha Carlola, somos felices…
PADRE Tagorosio, Labençoando-º"l
Meus filhos... as bençãos do Ceo sejam cº"
vosco, •

rIM Do DRAMAs
* *

----

, , #

Paginas. Linhas, Erratas. - Emendns.

9 6 á paz a paz
17 22 • * #1)Or ámor
J8 |3 ligada legada
920 21 a authores aos authores
22 16 a caminho caminho --
1 H. á •

25
29 18 derradeira duradoira. C.
45 26 | 3] H} OT ámor a
50 27 II) OU T{\ II141 Ull'8.

50 98 Il O V3. I1OVGS ,
67 Q tantas ha tantas vezes ha
-, .67. 23 balbuciou º balanceiou
78 23 qua que

ADVERTENCIA.
... O Author deste Drama participa ao Publico,
que com brevidade, vae publicar dois volumes de
suas obras Poeticas, divididas em folhetos, que
conterão tres folhas de papel cada um, saíndo,
depois da publicação do primeiro número, de dois
em dois mezes um folheto, até completar os dois
volumes.
Subscreve-se a 120 rs. por cada folhetº na lo
ja de Bordalo, Rua Augusta Nº 195. •

+ -
+
13
••• •••
• æ• • • •• • •• •----- - -._

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