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O Tractatus de Wittgenstein:

uma introdução
Copyright © Associação Filosófica Scientiae Studia
© H. O. Mounce 1981. Basil Blackwell Publisher
Projeto editorial: Associação Filosófica Scientiae Studia
Direção editorial: Pablo Rubén Mariconda
Design editorial e capa: Leticia Freire
Ilustração da capa: Guilherme Romero

Coleção Epistemologia e Filosofia Analítica


EDITORES: PLÍNIO JUNQUEIRA SMITH; RENATO Krnoucm

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


{Câmara Brasileira do Livre, SP, Brasil}

nocnce , H. O.
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Título original: wít.t.qenac eín ' ~1 'rr act auu s : ,;u1


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Índices para ce t.é.Loqo sistemático;

1. e í.t.tçene t.eí n 192

E.l.:i.eté Ha rqu ea de CRB---8/9380

Associação Filosófica Scientiae Studia


Rua Doutor Cícero de Alencar, 131

05580-080 -São Paulo, SP


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i Sumário
Prefácio • 7

Introdução • 9

Capítulo 1 Fato e coisa • ~9

Capitulo z A proposição como figuração • 37


~
Capítulo 3 As proposições da lógica • 53

Capítulo 4 A forma geral de uma proposição • 71

Capítulo 5 As equações da matemática • 83

Capítulo 6 Generalidade • 91

Capítulo 7 As leis da ciência • 101

Capítulo 8 Crença u3

Capítulo 9 Solipsismo • 1~1

Capítulo 10 Valor • 1~9

Capítulo 11 As proposições da filosofia • 139

Capítulo 1~ A concepção posterior • 151

Apêndice Os temas do Tractatus • 171

Referências bibliográficas • 179

lndice de termos

Í.ndice de nomes •
O único propósito deste pequeno livro é ser útil aos estudan -
tes que encontram dificuldades ao tentarem se orientar em
uma das obras filosóficas mais difíceis que existem. Parece-
-me que há uma demanda por um livro como este. Existem
vários excelentes comentários no mercado, mas todos eles
são feitos, a meu ver, mais para os especialistas do que para
os estudantes de graduação, para quem eles são muitas vezes
mais difíceis de acompanhar do que o próprio Tractatus.
Como meu objetivo com este livro é simplesmente ser
útil, e não produzir um comentário original, não hesitei
em fazer uso dos escritos dos outros. Por exemplo, em uma
parte de minha Introdução, segui de perto um capítulo do
livro de A. Kenny (1973) sobre Wittgenstein. Isso porque
me pareceu vão eu me preocupar com um trabalho no qual
Kenny já havia alcançado êxito. Na maior parte das vezes,
não agradeci por esses empréstimos; na verdade, em muitos
casos, eu provavelmente seria incapaz de fazê-lo. Após ter
estudado o Trac.tatus por cerca de vinte anos, eu não saberia
determinar, acerca de muitas contribuições, de quem são os
créditos, se meus ou de outra pessoa. Espero que qualquer um
que reconheça algo como seu se lembre do propósito deste
1 ivro e se sinta contente por saber que tem minha gratidão.
Há, no entanto, uma dívida que exige um agradecimento:
a que tenho com Rush Rhees,' que me iniciou no estudo do
'fractatus e cuja interpretação, em seus traços essenciais,
ainda me parece a melhor disponível.

1 Rush Rhees é o autor de Without answers e Discussions ofWittgenstein, e um


li os executores literários de Wittgenstein.
l

7
ÁGBADECIMENTOS DA EDIÇÃO ORIGINAL

O autor e a editora da versão original são gratos a Routledge


& Kegan Paul Humanities Press Inc., Nova Jersey 07716, pela per-
missão para citar a tradução de D. F. Pears e B. F. McGuinness do
Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein; aRoutledge & Kegan
Paul & Shocken Books Inc. pela permissão para citar as Discussions
of Wittgenstein, de Rush Rhees, direito de cópia© 1970 de Rush
Rhees; aBasil Blackwell Publisher pela permissão para citar Ludwig
Wittgenstein and the Vienna Circle, de Friedrich Waismann, os Note-
books 1914-1916 e aPhilosophicalgrammar, ambos de Wittgenstein;
e, finalmente, a George Allen & Unwin pela permissão para citar The
principles of mathematics, de Bertrand Russell.

ÁGBADECIMENTOS DA TBAD1JZIDA

O tradutor e a Associação Filosófica Scientiae Studia agradecem


ao autor, o professor H. O. Mounce, pela cessão, sem nenhum
custo, do direito de publicar esta tradução de seu livro no Brasil.
INTRODUÇÃO

O Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein, como seu


título completo deixa claro, é uma obra de lógica filosófica.
Para entendê-la, é preciso levar em consideração alguns dos
desenvolvimentos na lógica que a precederam e, especial-
mente, as realizações de Frege e Bussell." Frege, ao lado de
Aristóteles, é o maior nome da lógica formal, o estudo das
inferências válidas, e seu trabalho exerceu grande influência
sobre Wittgenstein. Por isso, precisamos começar lembrando
os seus principais feitos.
O maior feito de Frege foi inventar um sistema simbólico
por meio do qual os lógicos poderiam formular tanto os tipos
de inferência estudados por Aristóteles quanto aqueles aos
quais os métodos de Aristóteles não podem ser aplicados.

Se chover esta tarde, a partida será cancelada.


Choverá esta tarde.
Logo, a partida será cancelada.

~ As obras mais acessíveis de Gottlob Frege (1848-19~5) sãoDie Grundlagen


derArithmetik (1884), traduzida para o inglês como The foundations of arith-
,netic por J. L. Austin, e uma seleção de seus artigos intitulada Translations
Ji-om the philosophical writings of Gottlob Frege (195~). editada por P. Geach e
M. Black. [N.T.: Die Grundlagen der Arithmetik também foi traduzida para o
português, por Luiz Henrique Lopes dos Santos, como Os fundamentos da
11,ritmética (~0~1). Além disso, existe disponível em inglês um conjunto mais
recente de traduções de textos de Frege intitulado The Frege reader (1997),
editado por Michael Beaney], Bertrand Russell (187~-1970) foi o autor de
1 I i versas obras em filosofia, entre as quais as mais relevantes para este livro

Hno The principles of mathematics (1903), Principia mathematica (com A. N.


Whitehead, três volumes, 1910-1913).. e uma coletânea de seus ensaios inti-
1 u lada Logic and knowledge (1956).

9
H . O. M ounce

Essa é uma inferência válida, mas que não pode ser analisada
pelos métodos de Aristóteles. Isso ocorre porque a análise
de Aristóteles dependia da decomposição das proposições
contidas na inferência em sujeitos e predicados:

Todo grego é europeu. Todo Sé M.


Todo europeu tem a pele escura. Todo Mé P.
Logo, todo grego tem a pele escura. Todo Sé P.

Ora, a validade da inferência que estamos considerando


não depende da constituição interna das proposições en-
volvidas. Ela depende apenas das relações mantidas entre
as proposições tomadas como um todo. Assim, a inferência
pode ser simbolizada da seguinte maneira: "se p, então q; e
p; logo, q". O modo como a proposição que substituímos por
"p", por exemplo, se decompõe em sujeito e predicado, ou até
mesmo se ela assim se decompõe, é irrelevante.Na lógica de
Frege, inferências desse tipo ganham um lugar de destaque.
Elas são formalizadas pelo uso de dois tipos de símbolos, um
tipo representando as proposições (p, q, r), o outro represen -
tando conectivos ou, como são chamados, constantes como
"se ... , então", que relacionam as proposições entre si. Como
veremos, Wittgenstein tem muito a dizer no Tractatus sobre a
natureza dessas constantes. No Tractatus, elas .são usualmente
apresentadas na notação de Russell: "se ... , então" é repre-
sentada por":::)", "ou" por "v" etc. O sinal para a negação"-"
também é considerado uma constante.
Aqui, no entanto, surge uma questão interessante para
quem estuda o Tractatus. Vimos que a inferência válida "se
chover esta tarde, a partida será cancelada; choverá esta
tarde; logo, a partida será cancelada" pode ser apresentada
simbolicamente como "se p, então q; e p; logo, q". Algumas

10
pessoas expressaram isso dizendo que "se p, então q; e p; logo,
q" expressa uma verdade lógica que garante a validade da in-
ferência "se chover esta tarde etc." e de qualquer inferência
que tenha a mesma forma. Em outras palavras, "se chover esta
tarde etc." é válida por.que ela é uma expressão da verdade
lógica "se p, então q; e p; logo, q", e qualquer outra inferência
que seja uma expressão dessa verdade, e que possa seres-
crita nessa forma simbólica, também será necessariamente
válida. Ora, Frege desenvolve o seu cálculo concentrando-se
nessas assim chamadas verdades lógicas e dispondo-as numa
forma semelhante à de um sistema geométrico. Ele toma um
pequeno número dessas verdades como axiomas e, adotando
a regra de inferência" dados A e 'se A, então B', infere-se B",
mostra como se pode derivar delas um número ilimitado de
outras verdades lógicas. Russell e Whitehead, alguns anos
depois, desenvolveram um sistema semelhante baseado em
um conjunto diferente de axiomas. Ora, alguém que tenha
refletido sobre o que está ocorrendo no desenvolvimento
desses sistemas terá se sentido intrigado a respeito de algu-
mas coisas. Ter-Ihe-á causado especial estranhamento, por
xemplo, a questão de saber qual é a natureza das verdades
lógicas. Estas parecem ter uma espécie de necessidade que
as distingue, por exemplo, da verdade dos enunciados, das
ciências da natureza. Mas como essa necessidade pode ser
elucidada? Ou, então, consideremos as relações entre as ver-
dades lógicas e os axiomas sobre os quais elas repousam. Elas
dependem, para sua verdade, desses axiomas? Se dependem,
e ntão de que dependem os axiomas para a sua verdade? Se
i'

não dependem, então em que sentido elas são derivadas dos


axiomas? Consideremos ainda a inferência "se chover esta
tarde etc.". Dizemos que ela é válida porque é uma expressão

11
IL O. M ourice

da verdade lógica "se p, então q; e p; logo, q". Entretanto, qual


é a natureza do "porque"? Como, precisamente, a validade
da inferência depende da verdade lógica?
No estágio em que nos encontramos, não é necessário
que enfrentemos essas questões. Nós o faremos, com algum
detalhe, mais adiante. A ideia é, simplesmente, que elas
expressam certo embaraço no que diz respeito à natureza da
lógica. São questões que surgem não tanto quando se está
desenvolvendo um sistema de lógica quanto quando se reflete
sobre o que se está fazendo ao desenvolvê- lo. Como tais, elas
pertencem não à lógica, mas à filosofia da lógica. À medida
que avançarmos, encontraremos outras questões do mesmo
tipo e veremos que é precisamente com questões desse tipo
que Wittgenstein está lidando no Tractatus. Antes, contudo,
precisamos examinar outros aspectos da obra de Frege.
Vimos como Frege lidava com certos tipos de inferência
que não haviam sido formalizados por Aristóteles. Entretan -
to, em alguns sentidos, seu feito mais notável consistiu no
tratamento que ele deu aos tipos de inferência que Aristóteles
já havia formalizado. Ele fez isso por meio da introdução de
um expediente extraído da matemática que é chamado de
"função". Em álgebra, a expressão "x2 + 1" representa uma
função da variável x. Ela é uma função de x porque seu valor
dependerá daquilo pelo que x for substituído, isto é, daquilo
pelo que a variável for substituída. Substitua x por~ e o valor
da expressão será 5, substituax por 3 e o valor será 10, e assim
por diante. O número pelo qual a variável x é substituída é
conhecido como argumento. Frege tomou esse expediente e
o aplicou a proposições. Por exemplo, considere a proposição
"César conquistou a Gália". Em vez de falar de "César" como o
sujeito e" conquistou a Gália" como o predicado, podemos fa-

1~
INTHODUqAo

lar de "x conquistou a Gália" como a função cujo argumento é


dado por "César". Ou seja, tratamos o predicado por analogia
com "x2 + 1" e tratamos "César" por analogia com o número,
digamos z, pelo qual x é substituído. Na verdade, estamos
aqui diante de uma escolha, pois também poderíamos tratar
"César conquistou r" como a função cujo argumento é forne-
cido por "Gália" ou, ainda, "x conquistou y" como a função
cujos argumentos são fornecidos por "César" e "Gália".
Mas o que equivale aqui ao valor de uma função? O valor
de "x2 + 1" para o argumento z é um determinado número, 5.
O que é o valor da função "x conquistou a Gália" para o argu-
mento César? Frege disse que o valor era ou o Verdadeiro ou
o Falso. Ou, dito de outro modo, se se fornece um argumento
para "x conquistou a Gália", obtém -se assim uma proposição
que é verdadeira ou falsa - no vocabulário técnico, que tem
um valor de verdade. Assim, se a função "x conquistou a Gá-
lia" tem como argumento "César", ela é verdadeira; se tem
como argumento "Margareth Thatcher", é falsa.
Vejamos agora como isso nos permite formalizar as infe-
rências aristotélicas, isto é, desenvolver o chamado cálculo
de predicados. Para começar, é claro que essas inferências
não podem ser expressas pelo cálculo proposicional, porque
nesse cálculo as proposições são simbolizadas somente como
um todo, isto é, as inferências são simbolizadas sem que se
1 eve em consideração a estrutura interna das proposições
que as constituem e sobre as quais repousa sua validade. No
cálculo proposicional, "todo grego é calvo; Sócrates é grego;
logo, Sócrates é calvo" será simbolizada como "p; q; logo, r".
1
1 :ntretanto, "p; q; logo, r" pode se encaixar tanto com uma
inferência válida quanto com uma inferência inválida - por
exemplo, "todo homem é mortal; Totó é um cachorro; logo,
H. O. Mounce

a Lua é verde". Como, então, devemos proceder? O primei-


ro passo é perceber que um enunciado como "todo grego é
calvo" é equivalente ao enunciado "se alguém é grego, então
esse alguém é calvo". Proposições como essa podem ser es-
critas através de duas proposições conectadas por um "se ... ,
então". Escrevamos agora cada uma das duas proposições
assim conectadas na forma de uma função - "se x é grego,
então x é calvo". Quando escrita dessa maneira, a proposição
"todo grego é calvo" cai sob o escopo do sistema de Frege. Ou
melhor, quase cai. Resta ainda uma ambiguidade que deve ser
eliminada. "Se x é grego, então x é calvo" pode ser engana -
dora pela ambiguidade que apresenta entre umx particular e
qualquerx. Nós queremos o "qualquer r", queremos captar a
generalidade de "todo grego é calvo". Devemos, portanto, en-
contrar o caminho para expressar essa generalidade. Assim,
em vez de "se x é grego, então x é calvo", escrevemos "para
todo x, se x é grego, então x é calvo". O que assim obtemos
é uma frase aproximadamente equivalente a: "considere o
que você quiser: se é grego, é calvo". Se refletirmos sobre o
que estamos dizendo quando dizemos "todo grego é calvo",
veremos que essa equivalência de fato existe. De um modo
muito semelhante, se queremos representar "algum grego é
calvo", escrevemos: "paraalgumx,x é grego ex é calvo" -que
é aproximadamente equivalente a "existe algo que é grego
e é calvo". As duas expressões inteiramente formalizadas
seriam assim apresentadas: "(x) (Gx::, Cx)" e "(3x) (Gx ::>
Cx)". Munidos desse aparato, estamos aptos para introduzir
inferências aristotélicas em nosso sistema.
Aqui, portanto, no mais breve dos resumos, temos os ele-
mentos do sistema simbólico de Frege. É preciso tomar co-
nhecimento dele, em primeiro lugar, porque o conhecimento
lNT RODU ÇAO

desse sistema, ou, pelo menos, de sistemas semelhantes, é


pressuposto no Tractatus e, em segundo lugar, porque é pela
reflexão sobre esse sistema que poderemos vir a enxergar
alguns dos problemas filosóficos que Wittgenstein tinha
em mente ao escrever o Tractatus. Já ilustramos esse último
ponto. Devemos agora fazê-lo com mais detalhes.
Inicialmente, Frege foi levado a desenvolver o seu sistema
simbólico devido a um interesse pela matemática. Seu obje-
tivo era mostrar que a matemática é uma extensão da lógica.
Russell, no começo trabalhando independentemente de
Frege, tinha o mesmo objetivo. No decorrer de seu trabalho,
Russell deparou-se com problemas difíceis e de natureza
filosófica, problemas que pareciam colocar em questão,
para ele e para Frege, a própria natureza da lógica. Esses
problemas podem ser facilmente ilustrados por referência
a um paradoxo bastante conhecido na filosofia. Considere a
asserção, feita por um cretense, de que todos os cretenses são
mentirosos. Se ele está dizendo a verdade, seu enunciado é
falso, pois ele é um cretense e, ex hypothesi, veraz. Para dizer
a verdade, ele precisaria estar mentindo. Assim apresentado,
paradoxo pode parecer apenas um truque, mas ele pode
dar origem a uma perplexidade genuína. Modifiquemos um
pouco a formulação do problema. Parece claro que alguns
nunciados podem ser usados para fazer referência a si
mesmos. Por exemplo, pode-se considerar "este enunciado
·ontém cinco palavras" como fazendo referência a si mesmo
, quando assim considerado, pode-se ver que ele é verdadei-
ro. Agora, considere" este enunciado é falso". Se considerado
.orno fazendo referência a si mesmo, ele é verdadeiro ou
l'also? Bem, se primeiro supusermos que é falso, então, uma
vez que ele diz que ele mesmo é falso, teremos de concluir
H. O. M ourice

também que é verdadeiro. Por outro lado, se supusermos que


ele é verdadeiro, teremos de concluir também que é falso,
pois ele diz que é falso e, nessa suposição, o diz com verdade.
Assim, quando considerado como fazendo referência a si
mesmo, o enunciado nos apresenta uma contradição. Mas
por que isso é mais do que um truque trivial? A razão é que
o enunciado parece ter sido construído em perfeita ordem
lógica. As palavras são comuns, evidentemente significativas
e, em outros casos, o procedimento de autorreferência parece
funcionar perfeitamente bem. Como procedimentos lógicos
podem resultar em uma contradição? Pode ser o caso que
exista uma contradição na própria lógica?
Esse paradoxo, embora semelhante, não é exatamente
o mesmo que o de Russell. Para ver como surge o paradoxo
de Russell, precisamos entender melhor o que ele estava
buscando alcançar nos Principia mathematica. Seu objetivo
era mostrar que a matemática está fundada sobre a lógica,
isto é, que a matemática é inteiramente lógica. Para tanto,
ele precisava mostrar que a noção de número poderia ser
derivada de noções que não pertencessem à aritmética, mas
que pertencessem exclusivamente à lógica pura, e ele pensou
que poderia conseguir isso definindo a noção de número em
termos da noção de classe. Mais precisamente, ele definiu os
números como classes de classes. O número ~ foi definido
como a classe dos pares, o número 3, como a classe dos trios,
etc. À primeira vista, isso pode parecer inteiramente circular,
como se Russell estivesse definindo o número z como a classe
de todas as classes com dois membros. Russell, entretanto,
tinha uma maneira de evitar essa circularidade que, para o
nosso propósito aqui, não precisamos considerar. O impor-
tante para nós é que, ao desenvolver essa estratégia, ele se
lNTROirnçAo

deparou com uma contradição. Para enxergar o paradoxo, é


preciso lembrar, primeiro, que é essencial para o procedi-
mento de Russell que classes possam ser classificadas. Deve-
-se poder falar de classes de classes e, de fato, de classes de
classes de classes. Classes, em suma, devem poder ser mem-
bros de outras classes. Isso pode suscitar a questão de saber
se uma classe pode ser um membro de si mesma. A classe das
cadeiras não é uma cadeira, mas a classe de todas as classes é
ela própria uma classe. Parece que podemos distinguir entre
classes que são membros de si mesmas e classes que não o
são. Assim obtemos nosso paradoxo. Considere a classe das
classes que não são membros de si mesmas. Essa classe é
um membro de si mesma? Se o é, então ela necessariamente
não é um membro de si mesma; se, por outro lado, ela não
ú um membro de si mesma, então ela necessariamente o é.
u seja, temos um paradoxo muito semelhante ao paradoxo
do mentiroso.
Russell tratou isso como um problema muito sério. Com
efeito, se a noção de número deve ser definida em termos de
classes e se esta noção leva a uma contradição, então parece
11 ue deve haver uma contradição na própria noção de número,
lsto é, na própria aritmética. Para superar essas dificuldades,
1\.ussell introduziu sua teoria dos tipos. Ele argumentou que
11 m enunciado como" a classe de todas as cadeiras não é uma

1·11deira", longe de ser verdadeiro, é inteiramente sem sen-


1 ido na medida em que predica de um tipo lógico o que não
lhe pertence. Pode-se dizer de um objeto que ele não é uma
rndeira, mas não de uma classe de objetos; e, da mesma for-
111a, o que se pode dizer de uma classe de objetos não se pode
11 izer de uma classe de uma classe de objetos. Foi assim que
liussell buscou evitar o surgimento do paradoxo das classes.

17
H. O . Mourice

Há ainda outro tópico que devemos considerar antes de


nos dirigirmos ao Tractatus. Ao tentar mostrar que se pode
explicar a noção de número em termos da noção de classe,
Russell fez urna suposição que, à primeira vista, parece ser
empírica, isto é, parece depender de corno o mundo é. Essa
suposição pode não ficar evidente se nos limitarmos a consi -
derar números pequenos: quando Russell define o número ~
como a classe dos pares, não colocamos em questão a existên -
eia dessa classe, pois é evidente que pares de coisas existem.
Entretanto, é urna característica da série dos números que
ela pode estender-se indefinidamente. Suponha, contudo,
que exista um número finito de coisas no universo. Suponha,
para fins de argumentação, que existam um milhão de coisas.
Sendo assim, não existe urna classe de coisas com mais de
um milhão de membros. Mas, nesse caso, corno podemos
contar além de um milhão? Exatamente o mesmo problema
surge qualquer que seja o número de coisas que existam no
universo, contanto que o universo seja finito, pois, qualquer
que seja o número de coisas no universo, sempre seremos
capazes de contar além desse número. Para dar conta disso,
Russell fez a suposição de que o número de objetos no univer-
so é infinito. Esse é o assim chamado axioma da infinidade.
Wittgenstein ficou profundamente insatisfeito com esse
axioma. No aforismo 5.551 do Tractatus, ele diz: "nosso prin-
cípio básico é que toda questão que se possa decidir por meio
da lógica deve poder-se decidir de imediato. (E, se chegamos
à situação de ter que olhar o mundo para solucionar um tal
problema, isso mostra que seguimos urna trilha errada por
princípio.)". Ora, Russell, em sua análise da noção de núme-
ro, é forçado a olhar para o mundo, ou, pelo menos, a fazer
suposições sobre ele. Ele não pode completar sua análise a
menos que suponha que o número de objetos no universo
ô infinito. A objeção de Wittgenstein, é importante notar,
não é que Russell pode estar enganado em sua suposição,
mas que há algo de errado na análise de Russell se ele é for-
çado a fazer uma suposição desse tipo, certa ou errada. Com
efeito, suponha que ele esteja certo em sua suposição: ainda
assim, o fato de ele estar certo tem de ser, em certo sentido,
puramente acidental. Em outras palavras, sua suposição será
empírica, e não lógica. No entanto, para Wittgenstein, havia
uma distinção absoluta entre o empírico e o lógico, de modo
que este jamais poderia depender daquele.
Essa ideia nos fornece a melhor porta de entrada para o
Tractatus. Chegaremos mais facilmente ao coração da obra
vendo por que, para Wittgenstein, o empírico ou o contingen-
te, de um lado, e o lógico ou o necessário, de outro, precisam
ser claramente distinguidos. Wittgenstein enfatiza essa ideia
de diversas maneiras ao longo do Tractatus. A seguir, por
exemplo, temos um grupo de citações da tradução de Pears-
-McGuinness (Wittgenstein, 1974a, p. 6~-3):3

3 Primeira edição em brochura, com tradução revisada (1974). Essa tradu-


ção, de D. F. Pears e B. F. McGuinness, foi publicada pela primeira vez pela
editora Routledge & Kegan Paul (Londres, 196i). O Tractatus foi publicado
pela primeira vez na Alemanha em 1941, e a primeira tradução inglesa, de
C. K. Ogden, foi publicada em 1944. [N.T.: no presente volume, para fins
de consistência, optou-se por traduzir todas as passagens do Tractatus lo-
gico-philosophicus citadas pelo autor a partir da tradução inglesa utilizada
por ele. A tradução do Tractatus para o português de L. H. Lopes dos Santos
(Wittgenstein, 4008) foi utilizada apenas em poucos casos, que não afetam
a consistência entre o texto de Mounce e as passagens do Tttictaius citadas
por ele.]
IL O. Mounce

6.1~~~ ( ... ) Não só deve uma proposição da lógica não


admitir refutação por qualquer experiência
possível como ela também não deve poder ser
confirmada por qualquer experiência possível.

A marca de uma proposição lógica não é ava -


lidade geral.

Ser geral significa não mais do que ser aci -


dentalmente válida para todas as coisas ( ... )

A validade geral da lógica poderia ser cha -


mada de essencial, em contraste com a acidental
da proposição "todos os homens são mortais".
( ... )

Consideremos essa última proposição "todos os homens


são mortais". Ela é verdadeira porque acontece que é verda-
deiro de cada homem que ele morre, e acreditamos que assim
seja porque todos os homens de que tivemos notícia, ou que
tivemos a oportunidade de conhecer, morreram. Agora, com -
pare essa proposição com "todos os homens não casados são
solteiros". Essa proposição é verdadeira porque acontece de
ser verdadeiro de cada homem não casado que ele é solteiro?
Nós, por acaso, nos tornamos gradualmente convencidos
pela constatação de casos particulares de homens não ca-
sados que eram solteiros que todos os homens não casados
são solteiros? Essa seria uma maneira estranha de colocar a
questão.4 A certeza que temos de que todos os homens não
casados são solteiros claramente não depende do peso da
evidência empírica. Não alcançaremos maior certeza após
4 Eu sei que existem filósofos que não considerariam uma maneira estranha
de colocar a questão. Eles me parecem confusos, e discutir as suas ideias em
um livro dedicado à exposição seria, de qualquer modo, irrelevante.

~o
lN T R O JJU í;:X o

oxaminarmos um milhão de casos do que a que já tínhamos


110 começo. Podemos dizer que existe uma relação interna
ou necessária entre ser não casado e ser solteiro. Ela deve
ser contrastada, portanto, com a relação entre ser galês e ter
mais de 1,80m de altura, que é externa e acidental. A relação
pode até existir, mas não é necessário que exista.Na verdade,
(da não é necessária mesmo se verdadeira em todos os casos.
Mesmo que, durante uma determinada geração, todo galês
chegasse a ter mais de 1,80m de altura, a relação ainda assim
11ã.o seria interna. Sua verdade ainda dependeria de ela ser,
por acaso, verdadeira de cada galês e, desse modo, seria uma
proposição cuja verdade não poderia ser determinada sem
que se recorresse à evidência empírica.
O lógico, portanto, deve ser distinguido do empírico.
l sso não significa, como veremos, que não existe nenhuma
relação entre a lógica e os fatos, entre a lógica e o mundo,
mas a necessidade de uma inferência lógica, ou de uma as-
sim chamada verdade lógica, não depende doque acontece
no mundo. Essa ideia, entretanto, uma vez compreendi-
da, pode levar a um mal-entendido. Alguém poderia, por
exemplo, ficar tentado a supor que se uma verdade lógica é
independente do que é o caso no mundo empírico, então ela
depende, para sua verdade, do que é o caso em algum outro
inundo que não o empírico. Frege, por exemplo, ofereceu
uma análise das proposições aritméticas de acordo com a
11 ual sua verdade dependia de elas corresponderem ao que ele
ohamou de objetos abstratos. Assim, "'4 + '4 = 4'', ele foi claro,
não é verdadeira por algo a que ela corresponda no mundo
nmpírico. Mas como ela pode ser verdadeira, a menos que
haja algo, algum conjunto de objetos, de algum tipo, a que
1: 1 a corresponda? Pode-se sustentar uma ideia similar acerca

'11
H.O .

das proposições da lógica. Considere a proposição "p ::> q; e p;


logo, q". Ou, então, "pvq; e -q; logo,p". Essas proposições são
necessariamente verdadeiras, e sua verdade é independente
do que acontece no mundo empírico. O conteúdo de "p" e
de "q" nessas proposições, por exemplo, é irrelevante. Elas
serão verdadeiras qualquer que seja o conteúdo de "p" e de
"q". Sua verdade depende inteiramente das assim chamadas
constantes lógicas"::>", "v" e"-". No entanto, nesse caso, po-
de-se dizer, essas constantes devem certamente representar
algum tipo de objeto, pois, se não representam nada, como
proposições que as contêm podem ser verdadeiras? Russell,
assim como Frege, sustentou ideias desse tipo, como se pode
notar pela seguinte passagem, na qual ele discute o que cha -
ma de "os indefiníveis", isto é, as noções fundamentais da
lógica, das quais as constantes lógicas, ou sua própria noção
de classe, seriam exemplos.

A discussão dos indefmíveis - que constitui a princi-


pal parte da lógica filosófica - é a tentativa de enxergar
claramente, e de fazer com que os outros enxerguem
claramente, as entidades em questão, de modo que a
mente possa ter com elas aquela espécie de conheci -
mento direto (acquaintance) que tem da vermelhidão
ou do gosto de um abacaxi. Quando, como no presente
caso, os indefiníveis são obtidos fundamentalmente
como o resíduo necessário de um processo de análise,
é frequentemente mais fácil saber que essas entida-
des têm de existir do que de fato percebê- las; há um
processo análogo àquele que resultou na descoberta
de Netuno, com a diferença de que a etapa final - a
lNTRODIJÇ>ÀO

procura com um telescópio mental pela entidade que


foi inferida - é com frequência a parte mais difícil
do empreendimento. No caso das classes, devo con-
fessar, eu não consegui perceber qualquer concei -
to preenchendo as condições exigidas pela noção de
classe. E a contradição discutida no capítulo X prova
· que um erro foi cometido, mas que erro é esse eu ain -
da não fui capaz de descobrir (Russell, 1937, p. xv).

Note-se que, nessa passagem, Russell trata a noção de


classe como se esta correspondesse a algum objeto ou enti-
dade comparável aos objetos da astronomia. Ele é bastante
claro, no entanto, quanto a esse objeto ou entidade não ser
de natureza empírica. Como ele diz, nós o procuramos não
com um telescópio físico, mas com um telescópio mental.
Ainda assim, classes, e as constantes lógicas, correspon -
dem, enquanto representantes, a objetos de algum tipo .. Para
Wittgenstein, entretanto, isso não era melhor do que a ideia
de que a lógica representa objetos empíricos. Aos olhos de
Wittgenstein, a lógica simplesmente não representa objetos,
sejam eles de natureza empírica ou quase empírica. Adis-
tinção, /em suma, entre o lógico e o empírico é radical. Dito
de outro modo, a lógica é radicalmente diferente de todas as
demais ciências. Não, porém, porque as ciências físicas nos
informariam algo sobre o mundo físico enquanto a lógica
nos informaria algo sobre um mundo não físico. A diferen-
ça é ainda mais radical. Para Wittgenstein, a lógica não nos
informa, ou faz enunciados, sobre absolutamente nada.
"Minha ideia básica", diz Wittgensteinem4.031~, "é que
as 'constantes lógicas' não são representantes de nada, que
não pode haver representantes da lógica dos fatos". Assim, a

~3
H. O. Mounce

verdade lógica "p v q; e -q; logo, p" não é verdadeira porque


corresponda a um conjunto de objetos ou a um conjunto de
fatos. Toda correspondência carece da solidez da necessidade
lógica - é meramente acidental. Isso não quer dizer que a
lógica não reflete nada do mundo. No entanto, ela reflete,
segundo Wittgenstein, mostrando, e não dizendo. Essa, na
verdade, é a doutrina central do Tractatus. A lógica difere de
todas as demais ciências porque todas elas dizem algo sobre
o mundo, enquanto a lógica apenas mostra algo. Em 4.0~~.
Wittgenstein diz: "uma proposição mostra seu sentido. Uma
proposição mostra como estão as coisas se for verdadeira. E
diz que estão assim". E, em 4.1~1~: "o que pode ser mostrado
não pode ser dito".
Para ilustrar essa ideia, considere a proposição "está cho-
vendo". Ela diz algo sobre o mundo porque tem uma estrutura
lógica, porque tem sentido, mas ela mostra o seu sentido
no fato de você ser capaz de apreender o que ela diz sobre o
mundo, não no que ela diz sobre o seu sentido. A lógica, em
suma, não é aquilo de que os enunciados falam; ela é o que
faz com que seja possível que eles falem sobre alguma outra
coisa, a saber, o mundo ou os fatos. Russell, portanto, ao
falar das proposições da lógica como se elas representassem
objetos, não está entendendo a própria natureza da lógica.
A lógica não é algo representado; ela é o que faz com que a
representação seja possivel.s Como tal, embora ela mesma
não possa ser representada, ela se mostra em haver coisas
que podem ser representadas.
Como veremos mais adiante em detalhe, Wittgenstein
ilustrou essas ideias comparando uma proposição com uma

5 Teria sido melhor- embora, neste estágio, talvez mais confuso - dizer que
a lógica é a possibilidade da representação.
lNTRODuç:Ao

figuração. Uma pessoa sabe do que trata uma figuração, diga-


mos uma pintura de um campo de trigo, não porque a figuração
1 he diz isso, mas porque pode ver, pela figuração, do que esta
trata. É como se ela pudesse vê-lo na figuração, ainda que
aquilo que ela afigura, o campo de trigo, não tenha jamais
existido. É claro, aquilo de que a figuração trata também pode
ser posto em palavras, mas o ponto de Wittgenstein é que,
quando dizemos de que a figuração trata, estamos simples-
mente introduzindo uma outra figuração. O enunciado está
para a figuração como, em outro contexto, uma figuração pode
estar para um enunciado. Por exemplo, suponha que alguém
não consiga se fazer entender e, finalmente, faça um desenho
em um pedaço de papel. Wittgenstein diria que isso é possível
porque o que temos aqui são apenas dois tipos de figuração - o
enunciado é também um tipo de figuração. Em outras palavras,
pode-se elucidar o sentido da figuração A por meio de uma
figuração equivalente, B. No entanto, o que não se pode fazer
é representar o sentido da figuração A (dizer o que ela diz) do
mesmo modo como a figuração A pode representar um estado
de coisas como existente. O sentido de uma proposição não é
algo que corresponda a ela do modo como se pode dizer que
um conjunto de objetos ou fatos corresponde. Esse ponto, na
verdade, pode ser ilustrado por outro a ele relacionado: ainda
que você possa fazer alguém apreender o sentido de uma figu-
ração mostrando- lhe outra, isso só funciona se você não tem de
explicar de que trata essa outra figuração. Em algum momento,
m suma, você terá de esperar que a pessoa apreenda o sentido
do que é dito sem que ele lhe seja explicado. O sentido só pode
ser mostrado, ele não pode ser dito.
Essa é, mais uma vez, a razão pela qual a lógica deve diferir
radicalmente de todas as demais ciências. A lógica não pode

:;i5
H. O. Mounce

explicar o que é a estrutura lógica ou o sentido da linguagem


como a ciência explica os fatos, pois um entendimento da
estrutura lógica ou do sentido da linguagem estaria pressu -
posto nessa explicação. Em outras palavras, a explicação só
poderia ser dada a alguém que já entendesse a estrutura lógica
ou o sentido da linguagem. Qualquer teoria lógica estaria,
portanto, pressupondo o que quisesse explicar.
Finalmente, essas ideias precisam ser levadas em con-
sideração quando se reflete acerca do que foi dito sobre a
lógica formal, sobre o desenvolvimento de um cálculo lógico.
Alguns filósofos pensaram que a lógica formal revela as leis
ou os princípios sobre os quais repousa a lógica de nossa
linguagem, como se esses princípios fossem explicar por que,
digamos, um argumento na linguagem ordinária é válido.
Essa é uma ideia que alguns estudantes defendem quando
começam a estudar lógica formal. Eles às vezes pensam que
a lógica formal lhes ensinará a pensar. No entanto, se refle-
tirmos um pouco, é evidente que, se eles já não souberem
como pensar, jamais entenderão a lógica formal. Em suma, só
podemos desenvolver um cálculo formal porque já dispomos
de uma apreensão do que é a validade. Wittgenstein estava
chamando atenção para isso quando disse, em 6. 1~3: "Clara-
mente, as leis lógicas não'podern, por sua vez, subordinar-se
a leis lógicas". O que ele pensou, na época do Tractatus, é que
um cálculo formal seria útil para mostrar a lógica já inerente
à linguagem ordinária. A lógica da linguagem ordinária,
Wittgenstein sustentou, está perfeitamente em ordem como
está. Uma linguagem não pode ser imperfeitamente lógica.
Ou algo tem sentido ou não tem; não pode haver meio-termo.
Ele acreditava, no entanto, que, na linguagem ordinária, as
relações lógicas não são tão evidentes para o estudo formal
lNTRO.nuç.:to

quanto podem ser em um cálculo que foi construído especial-


mente para exibir essas relações. A gramática, na linguagem
ordinária, frequentemente esconde a forma lógica. A função
de um cálculo lógico, Wittgenstein pensou, seria mostrar
11 lógica da linguagem ordinária com mais clareza do que a

própria linguagem ordinária o faz. Como veremos, ele pensou


que os sistemas formais desenvolvidos por Frege e Russell
licaram aquém desse ideal em diversos aspectos.
/
CAPÍTULO 1
e

Até aqui, estivemos expondo algumas das ideias centrais


do Tracta_tus. Passemos agora a um estudo sistemático do
próprio texto. Ao considerarmos os detalhes do texto, será
importante ter em mente as ideias centrais que já foram es-
boçadas -por exemplo, a ideia de que as constantes lógicas
não representam nada e, diretamente relacionada a ela, a
ideia de que a lógica pertence ao que se mostra e não ao que
se diz. Veremos que Wittgenstein argumenta em favor dessas
ideias partindo de várias direções e com uma minúcia prolí-
fica e engenhosa. Isso nos proporciona, na verdade, um dos
prazeres do Tractatus. Como as obras dos grandes filósofos
metafísicos, a Ética de Spinoza, por exemplo, ele tem algo da
beleza de uma construção matemática.
O Tractatus está organizado de acordo com um sistema
de números decimais que Wittgenstein explica na primeira
página. A proposição 1.1 é um comentário à proposição 1, a
proposição 1.11 é um comentário à 1.1, e assim por diante.
Consideremos as proposições sob 1.
1 O mundo é tudo que é o caso.
1.1 O mundo é a totalidade dos fatos, não das coi-
sas.
1.11 O mundo é determinado pelos fatos, e por se-
rem todos os fatos.
1.1~ Pois a totalidade dos fatos determina o que é o
caso e também tudo que não é o caso.
1. 13 Os fatos no espaço lógico são o mundo.

~9
H . O. M ourice

1.~ O mundo resolve-se em fatos.

1. ~1 Cada item pode ser o caso ou não ser o caso en -


quanto tudo o mais permanece na mesma.

A primeira proposição é elucidada pela segunda, mas, para


entender a segunda, é preciso entender por que Wittgenstein
deseja distinguir entre fatos e coisas. Qual é, precisamen -
te, a diferença? Para perceber isso, será útil considerar as
proposições 1.i3 e 1.~1, começando por esta última. "Cada
item pode ser o caso ou não ser o caso enquanto tudo o mais
permanece na mesma". Essa afirmação pode parecer uma
negação do determinismo. O que é o caso não é determi-
nado por algo mais ser o caso. Todavia, isso não é, de forma
alguma, o que Wittgenstein quer dizer. O que ele quer dizer
é que algo ser o caso não é determinado por algo mais ser o
caso como uma questão de lógica. O sentido em que se diz que
as coisas ocorrem necessariamente não é o da necessidade
lógica. Esse, na verdade, é outro modo de dizer que a lógica
não determina o que é o caso. Entretanto, existe uma ligação
entre a lógica e os fatos porque, como Wittgenstein diz em
1.13, são os fatos no espaço lógico que constituem o mundo.

Mas o que é o espaço lógico? Compreender isso é também


compreender por que o mundo é a totalidade dos fatos, não
das coisas.
Vejamos as proposições ~-~.01~:
~ O que é o caso - um fato - é a existência de es-
tados de coisas.

~-01 Um estado de coisas é uma combinação de ob-


jetos (coisas).

3o
FNro e corsx

~. o 11 É essencial às coisas que elas possam ser partes


constituintes de estados de coisas.
~.01~ Na lógica, nada é acidental: se uma coisa pode
ocorrer em um estado de coisas, a possibilidade
do estado de coisas deve estar inscrita na própria
coisa.

Para ilustrar isso, consideremos as proposições "Sócrates é


gordo" e "Platão é magro". Essas proposições, suporemos,
representam estados de coisas. Esses estados de coisas
existem no mundo, mas note que eles poderiam não ter
existido. Sócrates poderia ter sido magro, e Platão poderia
ter sido gordo. Ora, isso mostra que estados de coisas são
complexos, pois podemos imaginá- los em outra disposição,
com os seus elementos aparecendo em combinações
diferentes daquelas em que de fato aparecem. Contudo, na
lógica, diz Wittgenstein em ~.01~, nada é acidental; se uma
coisapode ocorrer em um estado de coisas, a possibilidade do
estado de coisas deve estar inscrita na própria coisa. Assim,
está inscrito em Sócrates e em Platão que cada um deles pode
ser gordo e pode ser magro. Há uma série de estados de coisas
possíveis em que Sócrates e Platão se encaixam. Quais desses
estados de coisas são o caso não é uma questão para a lógica,
mas é uma questão própria da lógica a de saber quais estados
de coisas são possíveis. Que Sócrates seja gordo ou magro é
uma questão de fato, mas é uma questão de lógica que ele
pode ser ou um ou outro.
Alguém poderia lembrar aqui da noção fregeana de fun -
ção. Frege analisaria "Sócrates é gordo" em uma função, "x é
gordo", para a qual "Sócrates" fornece o argumento. Pode-se
dizer que "Sócrates" se encaixa na função "x é gordo". Ora,
H.O.

há um sentido em que se pode dizer que isso expressa o que


Wittgenstein tem em mente quando diz que "o mundo é a
totalidade dos fatos, não das coisas". Dizer que o mundo é
uma totalidade de coisas seria esquecer que as coisas man -
têm relações entre si. As coisas existem somente em fatos.
Além disso, em que fatos uma coisa pode ocorrer já está
determinado, está inscrito na natureza da coisa. É por isso
que não são as coisas, mas os fatos, e não apenas os fatos,
mas os fatos no espaço lógico, que constituem o mundo. Em
~.0131, Wittgenstein exemplifica as noções de espaço lógico

e de forma lógica. "Não é preciso, por certo, que a mancha no


campo visual seja vermelha, mas uma cor ela deve ter: tem à
sua volta, por assim dizer, o espaço das cores. O som deve ter
uma altura, o objeto do tato, uma dureza, etc.". A forma lógica
se mostra em que uma mancha deve ter uma cor, um som deve
ter uma altura, ao passo que uma mancha não pode ter uma
altura, nem um som pode ter uma cor. Pontos se encaixam
com cores, sons, com alturas.
No entanto, algo de grande importância deve ser notado
aqui. É importante que não se conceba o espaço lógico
ou a forma lógica como um tipo especial de fato, algum
tipo de cimento universal que une as coisas. Considere,
novamente, "Sócrates é gordo". "x é gordo" é a função com
a qual "Sócrates" se encaixa. Agora, suponha que alguém
perguntasse: "o que faz com que 'Sócrates' se encaixe?".
Poderíamos estar tentados a responder: "a forma lógica".
Isso, contudo, seria um grande equívoco, porque sugeriria
que a forma lógica é algum fato extra que liga as coisas entre
si. Não se pode, porém, enunciar a forma lógica nesses
termos. Ela se mostra em concatenarem-se as coisas umas
com as outras. Devemos lembrar que a lógica não determina
Fvro E COISA

nenhum fato, mas apenas quais combinações são possíveis.


que mostra a forma lógica é que "Sócrates é gordo" é
uma combinação possível, enquanto "gordura (fatness) é
Sócrates", por exemplo, não o é. Wittgenstein expressa isso
em ~.o3 por meio de uma imagem brilhante: "em um estado
de coisas os objetos se concatenam como os elos de uma
corrente". Um estado de coisas, como uma corrente, não
(: apenas um conjunto, mas um conjunto que se concatena
de uma determinada maneira. O que, no entanto, mantém
unidos os elos de uma corrente? Nada, exceto estarem eles
concatenados uns com os outros. Estarem eles concatenados
uns com os outros é como eles se mantêm unidos. O mesmo
1-1e aplica à combinação de objetos em um_ estado de coisas.

Estarem eles concatenados de determinada maneira mostra


11 lgo de sua forma lógica, mas a forma lógica não é um fato
extra acerca deles, aquilo que os mantém unidos.
O mundo, então, é a totalidade dos fatos no espaço lógico;
ou, ainda, é a totalidade dos estados de coisas, que são cons-
tituídos por objetos que se concatenam de uma determinada
maneira. Essas são as conclusões das primeiras páginas do
'l\·actatus. Mas que tipo de conclusões elas são? São enuncia-
dos sobre o mundo, mas, comoveremos adiante, não são, em
nenhum sentido natural, proposições empíricas. São enun-
ciados sobre como o mundo tem de ser para que haja sentido,
para que haja proposições. Veremos isso mais claramente se
examinarmos de perto a noção wittgensteiniana de objeto.
Até aqui, tratamos "Sócrates" como se fosse o nome de um
objeto. Isso basta para uma exposição inicial e panorâmica,
mas precisa ser qualificado. Nem pessoas nem, na verdade,
os objetos físicos de nossa experiência comum são objetos
110 sentido de Wittgenstein. Em a.oz, ele diz: "os objetos são

33
IL O. M ourice

simples". Os objetos de nossa experiência comum são com -


plexos. Uma cadeira, por exemplo, consiste em um encosto,
um assento e pernas. Assim, para apreender o nome" cadei -
ra", parece que se deve primeiro compreender os nomes mais
simples "encosto", "assento" e "pernas'l.Além disso, esses
nomes mais simples não são eles mesmos simples. Também
eles podem ser descritos e, portanto, dependem, para o seu
sentido, de nomes que são ainda mais simples. Os objetos dos
quais Wittgenstein nos fala são, no entanto, absolutamente
simples. Os nomes para esses objetos podem ser apreen-
didos de imediato, pois, para que sejam apreendidos, não
dependem da apreensão de nomes ainda mais simples. O
que, então, seria um exemplo desses objetos? Wittgenstein
nunca foi capaz de apresentar esse exemplo. No período de
redação do Tractatus, Wittgenstein estava certo da existên -
eia desses objetos, mas não acreditava que fosse possível
dizer o que eles são. Isso pode parecer suspeito, e o próprio
Wittgenstein, mais tarde, chegou a julgar que toda essa ideia
de objetos simples era radicalmente confusa. Por que, então,
ele estava inclinado a falar sobre eles no Tractatus? Porque
julgou que eles eram exigidos pela linguagem. Poderemos
perceber o que ele tinha em mente se voltarmos ao exemplo
de "cadeira". Para apreender o significado de "cadeira", dis-
semos, é preciso que se apreenda o significado de palavras
mais simples como "perna", "assento" etc. É claro, porém,
que esse processo não pode se estender para sempre. Se não
existirem algumas palavras que sejam representantes diretos
de objetos, jamais apreenderemos nome algum. Em alguma
etapa da análise, tem de haver objetos, e, portanto, nomes,
que são absolutamente simples. Do contrário, não haveria
contato algum entre a linguagem e o mundo, e nada poderia
FATO E COISA

ser dito. Isso é o que Wittgenstein tem em mente em ~-o~u,


onde ele diz que se não houvesse objetos simples, então ter
uma proposição sentido dependeria de ser verdadeira outra
proposição. O que ele quer dizer é que, se não pudéssemos
estar certos de que as palavras são representantes de objetos,
jamais poderíamos entender uma proposição qualquer a me-
nos que tivéssemos a nosso dispor outra proposição que nos
11ssegurasse que os nomes da primeira proposição de fato são
representantes de objetos. Esse, no entanto, é um estado de
coisas impossível, pois não pode ser uma questão contingente
que uma proposição tenha sentido. O que é contingente é se
da é verdadeira (ou falsa), mas, para que seja verdadeira (ou
lalsa), uma proposição já deve possuir um sentido. O sentido
de uma proposição, em suma, tem de ser independente de ela
ser verdadeira ou falsa. Consequentemente, tem de haver um
c:ontato entre a linguagem e o mundo que é anterior à verdade
ou à falsidade do que dizemos. Esse contato deve ser encon-
trado na relação entre um nome simples e um objeto simples,
e essa relação tem de ser tal que o nome apenas corresponda
no objeto, enquanto seu representante, independentemente
de qualquer descrição.
O que Wittgenstein está sugerindo, portanto, é que só
poderemos compreender a natureza da linguagem se tam -
bém compreendermos que o mundo não é simplesmente um
conjunto de coisas, mas uma totalidade de estados de coisas
([Ue são constituídos por objetos que se concatenam de uma
determinada maneira. 6 Mas como, então, a linguagem se
6 Essa não é uma maneira inteiramente feliz de colocar a questão. No en-
lnnto, como veremos mais adiante, não existe uma maneira inteiramente
Icliz de colocar a questão. Há, em poucas palavras, uma grande dificuldade,
11ser discutida mais adiante, sobre a natureza dos enunciados proferidos por
Wlttgenstein, aqui e em outras partes, no Tractatus.
/
C A PÍTU LO 2
proposição como figuração

Wittgenstein introduz sua comparação entre uma proposição


e uma figuração em ~.1:
~-1 Figuramos os fatos.

~-11 Uma figuração representa uma situação no


espaço lógico, a existência e inexistência de es-
tados de coisas.

~-1~ Uma figuração é um modelo da realidade.

~.13 A objetos correspondem, em uma figuração,


os elementos da figuração.

~.131 Em uma figuração, os elementos da figura-


ção são os representantes dos objetos.

~.14 O que constitui uma :figuração é o fato de es-


tarem seus elementos relacionados uns com os
outros de uma determinada maneira.

~.141 Uma figuração é um fato.


~.15 O fato de os elementos da figuração estarem
relacionados uns com os outros de uma deter-
minada maneira representa que as coisas estão
relacionadas umas com as outras da mesma ma -
neira ( ... )

À primeira vista, pode não parecer difícil compreender


essas proposições. Uma proposição é como uma figuração
porque representa algo no mundo e o faz porque é constituída
H. O. Mounce

de elementos que operam, cada um deles, como represen -


tantes de algo no mundo. Em "o livro está sobre a mesa",
por exemplo, cada uma das expressões "o livro" e "a mesa"
corresponde, enquanto representante, a um objeto, a palavra
"sobre" corresponde, enquanto representante, a uma relação
e, quando unidas na página, as palavras representam um ar-
ranjo particular desses objetos, isto é, um estado de coisas.:
Organize as palavras de outra maneira e outro estado de coisas
será representado. Assim, "o livro está sobre a mesa" repre-
senta um determinado estado de coisas; "a mesa está sobre
o livro" representa outro estado de coisas muito diferente.
Essa leitura está correta, mas ela omite muitas coisas,
incluindo, em certo sentido, o ponto central da comparação
de Wittgenstein. Para perceber isso, consideremos a relação
entre a proposição "o livro está sobre a mesa" e os nomes
que a compõem. A proposição como um todo tem um
sentido porque os nomes que a compõem correspondem,
enquanto representantes, a objetos. Na época do Tractatus,
Wittgenstein identificava o significado de um nome com o
objeto a que ele, enquanto seu representante, correspondia,
de modo que o significado de um nome é como que externo a
ele, algo a que ele, enquanto seu representante, corresponde.
Mas é o significado da proposição como um todo algo a
que ela corresponda? À primeira vista, poderíamos estar
inclinados a pensar que sim. Assim como se pode apontar
para um livro ou para uma mesa real como o significado das
expressões "o livro" ou "a mesa", também se pode apontar
para um estado de coisas existente, em que o livro está sobre
a mesa, como aquilo que é representado pela proposição
como um todo. No entanto, e se esse estado de coisas não
existir? Um pouco de reflexão revelará que, se a proposição

38
lor falsa, não haverá nada para o que se possa apontar como
nquilo a que a proposição como um todo corresponda. Uma
proposição, entretanto, tem o mesmo sentido quer seja
lalsa ou não. Como já vimos, uma proposição deve ter um
sentido antes que se possa colocar a questão de saber se ela é
verdadeira ou falsa. Segue-se daí que aquilo que a proposição
como um todo significa não é algo a que ela corresponda,
como os significados dos nomes que a compõem são coisas
11 que eles, enquanto seus representantes, correspondem.
Uma proposição, em suma, não é um nome complexo. Não
se pode apontar para aquilo que ela significa como algo
externo à própria proposição. É precisamente essa ideia
que Wittgenstein busca elucidar com a comparação com
uma figuração. O significado ou sentido de uma proposição
! interno à proposição, está na proposição como a cena
retratada por uma pintura está na pintura. Se a cena retratada
pela pintura é imaginária, alguém pode ser capaz de apontar
para objetos no mundo que correspondem às diversas
partes da pintura, mas não será possível apontar para nada
no mundo que corresponda à pintura como um todo. Ainda
ussim, há uma cena retratada pela pintura, um estado de
coisas possível. Essa cena, no entanto, não consiste em algo
l'ora da pintura, e sim na justaposição dos elementos na
própria figuração.
Essa ideia poderá ficar mais clara se examinarmos duas
proposições que ocorrem mais adiante no Tractatus. Em
:l.1431, Wittgenstein diz que "fica muito clara a essência de
11m sinal proposicional quando o concebemos composto

por objetos espaciais (digamos: mesas, cadeiras, livros) em


vez de sinais escritos. A configuração espacial dessas coisas
exprime, nesse caso, o sentido da proposição". Novamente,
H. O. Mounce

em 3.143~ ele diz: "Em vez de 'O sinal complexo "aRb" diz
que a mantém a relação R com b' deveríamos dizer 'O fato
de que "a" mantém uma certa relação com "b" diz que aRb' ".
O sentido da segunda dessas proposições é, sem dúvida,
obscuro em uma primeira leitura. Examinemo-la por meio da
primeira. É evidente que poderíamos deixar uma mensagem
para um amigo sem escrevê- la, mas dispondo os livros sobre
sua mesa de acordo com um padrão pré- estabelecido. Os li -
vros, assim dispostos, formariam uma espécie de proposição..
Além disso, ficará evidente que o sentido dessa proposição
será expresso pela disposição física dos livros. O fato de que
este livro esteja sobre a mesa nesta exata relação física com
aqueles outros livros diz uma coisa; mude-se a relação física
e outra coisa será dita, ou até mesmo nada. Ora, de um modo
similar, a asserção "ahb" diz o que quer que ela diga porque
o sinal "a" está em uma certa relação com o sinal "b". M u -
dem-se os sinais para "bRa" e outra coisa é dita.
Por que, no entanto, Wittgenstein insiste em pôr a questão
nesses termos, dizendo "o fato de que 'a' mantém uma certa
relação com 'b' diz que aRb", e não dizendo '"aRb' diz que a
mantém com b uma certa relação"? O que ele quer dizer ficará
claro se traduzirmos os símbolos por palavras. Suponha que
eu diga: "'o livro está sobre a mesa' diz que o livro mantém
com a mesa uma certa relação". Uma breve reflexão deixará
claro que não acrescentei nada ao enunciado "o livro está
sobre a mesa". Ou seja, meu enunciado é vazio. Do mesmo
modo, é inteiramente vazio dizer '"aRb' diz que etc." porque
qualquer pessoa que apreenda a relação que o símbolo a man -
tém com o símbolo b entenderá tudo que estou tentando dizer
simplesmente através de "aRb". Quem quer que apreenda a
disposição de palavras" o livro está sobre a mesa" não precisa
A PROPOSIÇ'ÀO COMO FIGURM;,Jo

que lhe seja dito o que ela diz. Ele o sabe quando lhe é dito "o
1 i vro está sobre a mesa".
Em outras palavras, a relação entre uma proposição e o seu
HC ntido é uma relação interna. Deve-se encontrar o sentido de

uma proposição em um arranjo de sinais físicos; não se deve


procurá-lo em algo a que esse arranjo corresponda, alguma
r-utidade sobre e acima dele, seja no mundo empírico ou em
11 ,n mundo quase empírico. Wittgenstein já havia defendido
l'Hsa ideia em seus Cadernos: "em aRb, não é o complexo que
Hi mboliza, mas o fato de que o símbolo a mantém uma certa
,·e lação com o símbolo b. Assim, fatos são simbolizados por
íutos, ou, mais corretamente: que algo seja o caso no sím-
bolo diz que algo é o caso no mundo" (Wittgenstein, 1961,
p. 105).7 Para perceber claramente o que Wittgenstein quer
dizer, suponhamos que aRb (o livro está sobre a mesa) seja
vc rdadeira. Nesse caso, haverá, como dizemos, algo no mun -
tio, algum conjunto de fatos, correspondendo à proposição,
que é ela mesma um conjunto de fatos, um certo arranjo
de sinais físicos. Note, porém, que o conjunto de fatos que
r-onstitui a proposição não nomeia o conjunto de fatos que
1'11z com que ela seja verdadeira. "aRb" significaria a mesma
roisa ainda que não houvesse nenhum conjunto de fatos cor-
respondendo a ela, ou seja, ainda que ela fosse falsa. Isso é o
que Wittgenstein quer dizer quando diz que em "aRb" não é
11 complexo que simboliza- "aRb" não é um nome complexo.

No entanto, ele quer dizer algo mais, pois, se a proposição


"nRb" não é um nome complexo, aquilo que ela significa não
pode residir em algo que corresponda a ela, seja esse algo o
1•onjunto de fatos que faz com que ela seja verdadeira, seja
11 rua terceira entidade que estabeleça a relação entre ela e os

7 N. T.] Wittgenstein (1979), p. 96.


1

41
I-LO. Mounce

fatos. Ou seja, se "aRb" é verdadeira, temos simplesmente


dois conjuntos de fatos, um constituindo a proposição, um
certo arranjo de sinais físicos, e outro que faz com que a pro-
posição seja verdadeira. E o que significa na proposição não
é algum terceiro elemento, mas o simples fato de ela ser um
arranjo físico particular dos sinais "a" e "b". Os sinais, assim
dispostos, são uma representação do mundo, a representação
não é algo que repousa por detrás deles.
Aqui, entretanto, pode surgir uma dificuldade. Conside-
remos, por um momento, como uma figuração representa.
Podemos supor que eu tenha feito um desenho de um rosto.
Talvez esse rosto não exista; ele foi apenas imaginado. Ainda
assim, podemos apontar para certas linhas no desenho que
representam um olho, para outras que representam uma
boca e assim por diante, o todo representando um rosto pos-
sível. Ora, parece não haver nenhuma dificuldade especial
em entender como isso ocorre, como um rosto possível é
representado pelas linhas físicas do desenho. Certas linhas
représentam um olho porque, considerando a escala etc.,
elas se parecem com um olho, e parece não haver nenhuma
dificuldade especial em entender como o desenho como
um todo representa um rosto possível, pois, ao dizer isso,
estamos apenas dizendo que poderia haver um rosto real
que, considerando a escala etc., se parece com o que vemos
quando olhamos para o desenho. Em outras palavras, o dese-
nho representa algo porque há, ou poderia haver, uma relação
natural, a saber, a de semelhança física, entre um objeto real
e as linhas do desenho. No entanto, podemos dizer o mesmo
dos traços físicos que constituem uma proposição? Parece
evidente que não podemos. Não se pode, por exemplo, saber
o que a palavra "livro", ou "mesa", significa simplesmente
olhando para ela. A relação parece ser inteiramente con -
Á PROl'OSIÇ'ÃO COMO FIGURAÇ,ÂO

vencional. Além disso, também parecem ser inteiramente


convencionais as relações entre as palavras na frase como um
todo. Na frase "o livro está sobre a mesa", a palavra "livro"
não está sobre a palavra "mesa", mas à sua esquerda. É ver-
dade que o arranjo das palavras é importante. Como vimos,
"o livro está sobre a mesa" diz algo diferente de "a mesa está
sobre o livro". Isso, contudo, também parece convencional.
Se assim quiséssemos, poderíamos dar à primeira frase o
sentido da segunda e vice-versa.
Alguém, no entanto, poderia se perguntar se isso prova
algo de relevante. Não poderia ser dito que estamos simples-
mente levando uma analogia longe demais? Não há dúvida de
que uma proposição não é exatamente como uma figuração,
mas é como uma figuração em alguns aspectos importantes.
Ambas representam estados de coisas possíveis, uma, por
manter uma relação convencional com o mundo, a outra, por
meio de certas semelhanças objetivas. Isso, contudo, não é
suficiente, pois é evidente que Wittgenstein deseja levar a
11 nalogia mais longe do que isso poderia sugerir. Por exemplo,

cm ~.151, ele diz: "a forma de afiguração é a possibilidade


de que as coisas estejam umas para as outras tais como os
elementos da figuração". Com essa observação, Wittgenstein
pretende esclarecer a natureza de uma proposição e sugere
que existe algum tipo de relação não meramente convencio-
nal entre uma proposição e um estado de coisas possível. Mas
! 1 ual pode ser essa relação? Obviamente, não existe nenhuma
semelhança entre as palavras escritas "o livro está sobre a
mesa" e uma situação real em que um livro está sobre uma
mesa, 8 Além disso, é igualmente óbvio que Wittgenstein não
podia ignorar esse fato.
li Exceto, é claro, no sentido em que alguma semelhança pode ser encon-
1 rada entre quaisquer duas coisas.
H . O. M ourice

A resposta a esse problema repousa no que descrevemos


no primeiro capítulo como forma lógica ou espaço lógico.
Como vimos, Wittgenstein pensava que se um objeto pode
ocorrer em um estado de coisas, a possibilidade desse es-
tado de coisas deve estar inscrita na própria coisa. Objetos
têm forma lógica, ou existem no espaço lógico. Ora, isso
significa que a relação entre uma proposição e o mundo não
é inteiramente convencional. Existe, é claro, um elemento
convencional. O sinal "livro" poderia não ter sido usado como
o usamos, e algum outro sinal poderia ter sido usado em seu
lugar. Mas o significado de um nome, muito menos o de uma
proposição como um todo, não pode ser dado apenas por
meio dessa relação convencional. Não se pode simplesmente
como resultado de uma decisão estabelecer a relação entre um
sinal e um objeto, isto é, transformar o sinal em um nome.
Isso se segue da observação de Wittgenstein em 3.3: "só as
proposições têm sentido; é só no contexto de uma proposição
que um nome tem significado". O estabelecimento de uma
correlação entre um sinal e um objeto só ocorre porque o si -
nal é usado em uma proposição. É a sua relação com os outros
elementos no contexto de uma determinada estrutura lógica
que torna o sinal um nome, que lhe confere significado. Além
disso, a estrutura ou forma lógica de uma proposição não é,
de modo algum, convencional. Uma proposição tem forma
lógica quando espelha a forma lógica do mundo.
Mas o que, precisamente, isso significa? Como a forma
lógica de uma proposição se mostra? O que se deve notar é
que a forma lógica de uma proposição não será encontrada
no modo como ela se apresenta na página. O máximo que
se pode obter com isso é a forma gramatical. Todavia, como
Wittgenstein enfatiza no Tractatus, a forma gramatical é

44
A PRffPOSIÇtlü COMO FIGUR"-Ç:ÀO

muitas vezes enganadora no que diz respeito à forma lógica.


Para apreender a forma lógica de uma expressão, é preciso
observar as regras para o seu uso. Expressões que parecem
11s mesmas, mas que são governadas por regras diferentes,
Hão expressões realmente distintas. Para tomar um exemplo
de Wittgenstein, o significado da palavra "é" em "a rosa é
vermelha" é diferente do seu significado em "a estrela da
, nanhã é a estrela da tarde". A estrela da manhã é idêntica à
estrela da tarde, mas a rosa não é idêntica à vermelhidão. Do
mesmo modo, expressões que parecem diferentes aos olhos
ou aos ouvidos, mas que são governadas pela mesma regra,
1-li'IO realmente a mesma expressão. Encontraremos exemplos
destas mais adiante.
Entretanto, alguém poderia se perguntar se obtemos algum
nvanço com isso. Afinal de contas, não são convencionais as
próprias regras que governam as expressões? De acordo com
Wittgenstein, só em um sentido trivial. Em certo sentido, é
11 ma questão de convenção que o sinal" é" seja usado de acordo
com alguma regra. O que não é matéria de convenção, contudo,
·: como podemos usar esse sinal uma vez fixado o seu signi -
l'icado por meio de uma regra. P~ra bem compreender isso,
voltemos a "a rosa é vermelha". Dadas as regras para o uso de
11
rosa" e "vermelha", esse é um enunciado perfeitamente inte-
1 igivel, d~sde que o uso de" é" seja predicativo. Poderíamos, no
entanto, manter os significados usuais de "rosa" e "vermelha"
,, usar, não o "é" predicativo, mas sim o "é" de identidade?
Não, não poderíamos. O enunciado torna-se ininteligível.
1 )ecidimos que ele deveria ser ininteligível? De forma alguma.
Sua ininteligibilidade se segue logicamente de nossa decisão
111icial de usar "é" de uma determinada maneira. Em suma,
não podemos escolher de acordo com nosso desejo as regras

45
H. O. Mounce

da linguagem, mas somente aquelas que refletem a estrutura


lógica do mundo; e, por essa razão, quando tivermos fixado
o significado de uma palavra por meio de uma regra, o modo
correto de aplicação da palavra em ocorrências futuras será
determinado, não pela convenção, mas pela lógica. Essa, na
verdade, é uma maneira imperfeita de expressar essa ideia.
Um sinal só tem significado se é aplicado de acordo com regras
que refletem a forma lógica, pois é a forma lógica que confere
significado a um sinal, e não nossa decisão de lhe conferir
um significado. Tudo que podemos fazer é decidir usar um
sinal logicamente. Para esclarecer um pouco mais essa ideia,
considere as palavras "Sócrates" e"- é gordo". Elas poderiam
ter sido usadas de um modo bastante diferente daquele em
que de fato as usamos. Dado, porém, o modo como as usamos,
não é arbitrário que possamos dizer "Sócrates é gordo", e não
"gordura é Sócrates". No primeiro caso, seguimos a lógica,
mas não no segundo. E isso se mostra, pois é somente no
primeiro caso que dizemos algo com sentido.
A ideia importante, então, é que a estrutura que é co-
mum à proposição e ao mundo só é revelada se apreende-
mos o modo como os sinais que constituem a proposição
são empregados, se entendemos as regras para o seu uso.
Como Wittgenstein diz em 3.3~T "é só com seu emprego
lógico-sintático que um sinal determina uma forma lógica".
Essa é uma ideia frequentemente negligenciada pelos co -
mentadores devido ao fato de eles localizarem as diferenças
entre o Tractatus e a obra posterior de Wittgenstein no lugar
errado. Eles consideram ser distintivo do pensamento ma-
duro de Wittgenstein o fato de que ele negava que um nome
tenha significado a menos que seja usadopara dizer alguma
coisa e de que ele pedia que pensássemos o significado de
A PHOPOSJq.i\.o COMO FIGURAÇ),o

uma palavra, não como alguma entidade especial ou algum


processo psicológico, mas em termos de seu uso. Entretan-
to, ideias desse tipo já desempenham um papel central no
Tractatus. Como já vimos, Wittgenstein negou no Tractatus
rrue um nome tenha significado exceto no contexto de uma
proposição. Além disso, ele afirmou na proposição 3.3~8:
"se não tem serventia, um sinal não tem significado. Este é o
sentido do lema de Occam. 9 (Se tudo se passa como se um
sinal tivesse significado, então ele realmente tem significa-
do)". O ponto em que ocorre a mudança importante entre
a obra de juventude e a obra posterior de Wittgenstein é a
sua concepção de forma lógica. No Tractatus, a forma lógica
orno que sub jaz às regras da linguagem e garante o seu uso
inteligível. Nas Investigações (1978), ele concebe a forma
lógica como uma espécie de formalização das regras da lin -
guagem, e estas surgem do seu uso, não sub jazem a ela, nem
garantem sua inteligibilidade. Comum a ambas as obras,
ntretanto, é a ideia de que o significado não é alguma en -
lidade especial ou algum processo psicológico. No Tractatus,
Wittgenstein já defende claramente que uma proposição é,
num primeiro nível, apenas um conjunto de sinais físicos
e que o que distingue um conjunto desse tipo de outro sem
qualquer significação não é alguma entidade ou processo es-
pecial, mas simplesmente que existam regras para o uso dos
sinais, regras que refletem a forma lógica, as possibilidades
de combinação dos objetos no mundo.
Será útil desenvolver um pouco mais essa ideia, conside-
rando, para tanto, as proposições 3.1-3.13.

') Essa é uma máxima atribuída a Guilherme de Occam (c.1~85-1349). Com


frequência, ela se expressa na forma: "entidades não devem ser postuladas
desnecessariamente" (Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem).

47
H . O. M ourice

3.1 Em uma proposição, um pensamento encontra


uma expressão que pode ser percebida pelos sen -
tidos.
3.11 Usamos o sinal perceptível (sinal escrito ou
sonoro, etc.) de uma proposição como projeção de
uma situação possível.
O método de projeção é pensar o sentido da
proposição.
3.1~ Chamo o sinal por meio do qual exprimimos
um pensamento de sinal proposicional. E uma
proposição é um sinal proposicional em sua rela -
ção projetiva com o mundo.
3.13 Uma proposição inclui tudo que pertence à
projeção, mas não o que é projetado.
Portanto, a possibilidade do projetado, mas
não ele próprio.
Uma proposição, portanto, não contém, de
fato, seu sentido, mas contém a possibilidade de
exprimi - lo.
("O conteúdo de uma proposição" significa o
conteúdo de uma proposição dotada de sentido.)
Uma proposição contém a forma de seu senti-
do, mas não seu conteúdo.

Wittgenstein se expressa nessa passagem de forma bas-


tante enganadora, e, de fato, muitos comentadores se dei-
xaram enganar. Eles presumiram que Wittgenstein está aqui
defendendo uma posição que ele mais tarde criticou. Isso
porque, nas Investigações, ele criticou a tendência a se supor
que o significado é um tipo especial de processo psicológico
que conecta um nome a um objeto e confere sentido a um
A P.ROPOSH/Ã.O co:rvro FIGORAç:Ao

conjunto de palavras ou sinais de outro modo vazio. Alguns


1 ntérpretes pensaram que ele estava, nesse contexto, cri -
1 i cando uma posição antes defendida por ele mesmo e que

': precisamente na passagem acima citada que ela deve ser


oncontrada. Uma proposição é meramente um conjunto
de sinais. Somos nós que conferimos sentido a esses sinais
eorrelaoionando , psicologicamente, nomes com objetos.
Isso, porém, não é, de forma alguma, o que Wittgenstein quis
dizer. Para entender o que ele quis dizer, devemos começar
lembrando que uma proposição contém duas características
importantes. Em primeiro lugar, uma proposição é uma
coleção de elementos que tem uma estrutura lógica. Assim,
11 proposição "o livro está sobre a mesa" tem uma estrutura
lógica que pode ser simbolizada como "aRb". Todavia, em
Hcgundo lugar, a estrutura abstrata apenas diz alguma coisa
, 1 uando é preenchida com nomes, quando os elementos que
11 compõem estão de fato relacionados a objetos no mundo,
quandc, por exemplo, ela se torna "o livro está sobre a mesa".
1 sso, no essencial, é tudo o que Wittgenstein está dizendo nas
proposições 3.1-3.i3. É somente quando os elementos de
urna proposição estão de fato correlacionados com o mun-
do que a proposição tem um sentido. Antes disso, ela tem
somente a possibilidade de um sentido. Assim, "aRb" tem
somente a possibilidade de um sentido, enquanto "o livro
nstá sobre a mesa" de fato possui um.
Contudo, poderia ser dito, somos certamente nós que
correlacionamos os elementos da proposição com o mundo e,
portanto, somos nós que conferimos sentido à proposição. A
resposta é que "correlação" éum termo ambíguo. O que é ob-
viamente verdadeiro é que um sinal não se correlaciona por si
1 nesmo com o mundo: alguém tem que fazer alguma coisa, al-

49
H . O. M ourice

guma atividade psicológica é necessária para que a correlação


ocorra. ( O que poderia ser esse processo psicológico é, como
veremos, inteiramente irrelevante.) Ora, se assim se deseja,
pode-se chamar isso de "correlação't.Aquestão, no entanto,
é que se por "correlação" se entende uma conexão lógica,
então ela não consiste numa atividade psicológica. Ou seja,
a atividade psicológica, embora necessária para que a corre-
lação ocorra, não estabelece por si mesma a conexão lógica
entre nome e significado. Isso é estabelecido pela estrutura
.lógica em que o sinal é introduzido. Como Wittgenstein diz
em 3.3: "é só no contexto de uma proposição que um nome
tem significado". Correlaciona -se um sinal com um objeto
somente se ele mantém uma relação lógica com outros sinais
em uma proposição. É por isso que o processo psicológico
que pode estar envolvido no estabelecimento da correlação
entre um sinal e um objeto é inteiramente irrelevante para
a filosofia ou para a lógica. Em 4.11~1, Wittgenstein diz: "a
psicologia não é mais aparentada com a filosofia que qual-
quer outra ciência natural". A psicologia é irrelevante para
a filosofia ou para a lógica porque não é um processo psico-
lógico que confere sentido à forma lógica; pelo contrário,
é somente a forma lógica que pode conferir sentido a um
processo psicológico, que pode torná-lo, por exemplo, um
pensamento genuíno, por oposição a uma sucessão fortuita
de imagens. Portanto, a atividade psicológ~ca envolvida no
estabelecimento da correlação entre um sinal e um objeto
é, em si mesma, inteiramente destituída de significado. O
que lhe confere significado, o que a torna uma correlação
genuína, é a estrutura lógica em que o sinal é introduzido.
Além disso, o fato de que se possa correlacionar um sinal
com um objeto sem que se tenha em mente qualquer uma das
proposições em que o sinal poderia ocorrer é inteiramente
irrelevante. Wittgenstein teria dito, na época do Tractatus,
o que disse mais tarde, a saber, que o ato de nomear só faz
sentido porque já existe um cenário considerável montado na
1 inguagem. Ou, em outras palavras, alguém pode nomear um
objeto como que isoladamente somente porque já dispõe de
uma apreensão da estrutura lógica e porque sabe que existe,
no interior dessa estrutura, um espaço para o nome. Alguém
que não dispusesse dessa apreensão da estrutura lógica esta -
ria fazendo parte de uma cerimônia vã mesmo que o processo
psicológico nele operante fosse idêntico àquele que opera em
nlguém que dispõe da apreensão dessa estrutura.
Essas observações ilustram a importância de não se
im por muito rapidamente que qualquer ideia criticada por
Wittgenstein na primeira parte das Investigações tenha sido
defendida por ele anteriormente. Deveria ser lembrado que,
quando reexaminou suas ideias fundamentais, Wittgenstein
He esforçou para reconsiderar não apenas o que havia defen -
dido, mas também o que havia rejeitado."
Vemos, portanto, neste capítulo, que uma proposição, para
Wittgenstein, é um conjunto de sinais físicos dispostos sobre
uma página de acordo com regras que refletem a forma lógica,
de modo que os sinais, quando considerados individualmente,
representam objetos no mundo e, quando considerados em
xeu arranjo completo, fornecem-nos uma figuração do que
pode, de fato, ser o caso. Contudo, poderia ser notado que
Wittgenstein, até aqui, ocupou-se apenas de proposições
nmpiricas. Ele não teve nada a dizer sobre as chamadas ver-
dades necessárias da lógica, as proposições que aparecem, por

; o Teremos ocasião para retornar a esse tópico quando considerarmos o que


Wittgenstein diz no Tractatus sobre o solipsismo.
H. O. Monnce

exemplo, nos sistemas simbólicos desenvolvidos por Frege e


Russell. Pensando bem, isso não deveria parecer surpreen -
dente. Como vimos, a lógica, para Wittgenstein, só pode se
mostrar no que é dito sobre o mundo, sobre os fatos; ela não
pode, ela mesma, ser enunciada. Essa é precisamente a razão
pela qual Wittgenstein começa com proposições empíricas. A
única coisa que pode causar surpresa no estágio em que nos
encontramos é a questão de saber como ele pode lidar com
tudo o mais. Se não se pode enunciar a lógica, como podem
haver proposições da lógica a serem explicadas? Esse é o tó-
pico que devemos agora examinar.
CAPÍTULO 3

A fim de compreender o tratamento conferido por Wittgenstein


IÍ8proposições da lógica, precisamos examinar mais um
nspecto da assim chamada teoria da proposição como figuração
1:, em particular, a relação entre o sentido de uma proposição
na possibilidade de ela ser verdadeira ou falsa.
Como vimos, o sentido de uma proposição não é algo que
corresponda a ela. Para uma proposição, ter um sentido é
aimplesmente afigurar o que pode ser o caso, um estado de
coisas possível. Disso se segue, como se poderá notar com
11m pouco de reflexão, que entender uma proposição, apre-
onder o seu sentido, é saber qual estado de coisas possível
da afigura, ou, o que é o mesmo, como são as coisas se ela é
verdadeira. Entender, no entanto, como são as coisas se a
proposição é verdadeira é entender que se as coisas forem de
outro modo, então a proposição será falsa. Entender o que é
para uma proposição ser falsa está, portanto, envolvido em
entender o que é para a mesma proposição.ser verdadeira.
Com base nisso, podemos ver que a possibilidade de
uma proposição ser verdadeira ou falsa é constitutiva do seu
sentido, não algo que ocorra como resultado de ela possuir
11m sentido. As duas coisas, em suma, são a mesma coisa.
Será útil considerar como Wittgenstein ilustra essa doutrina
nos cadernos de notas que ele escreveu enquanto trabalhava
no Tractatus. A seguinte passagem ocorre na página 98 dos
;adernas. 11

i 1 [N.T.] O autor faz referência à já citada primeira edição em inglês (cf.


Wittge1;1stein, 1961; 1979, p. 104).
H. O. M ourice

Consideremos símbolos da forma "xRy"; a esses cor-


respondem, fundamentalmente, pares de objetos,
dos quais um tem o nome "x" e o outro, "y". Os xs e
ys mantêm várias relações entre si; entre outras rela -
ções, a relação R é o caso entre alguns, mas não entre
outros. Eu agora determino o sentido de "xRy" pela
seguinte regra: quando os fatos se comportam em re-
lação a "xRy" de modo que o significado de "x" man -
têm a relação R com o significado de "y", digo que os
fatos têm" o mesmo sentido" que a proposição "xRy";
do contrário, têm "sentido oposto". Eu correlaciono
os fatos ao símbolo "xRy" por assim dividi - los em,
de um lado, aqueles de mesmo sentido e, de outro,
aqueles de sentido oposto.

Podemos ilustrar o que Wittgenstein quer dizer conside -


rando a proposição "o livro está sobre a mesa". Livros e mesas
mantêm diversas relações entre si. Um livro pode estar sob,
próximo a, longe de, assim como sobre uma mesa. Ora, diz
Wittgenstein, determina-se o sentido de "o livro está sobre
a mesa" estabelecendo-se que, quando o significado de "o
livro" mantém com o significado de "a mesa" uma dessas
relações em particular, os fatos têm o mesmo sentido; caso
esses significados mantenham entre si qualquer uma dás
demais relações, os fatos têm sentido oposto. Pelo signifi-
cado de" o livro", Wittgenstein entende o próprio objeto ao
qual a palavra, enquanto sua representante, corresponde.
Quando se refere aos fatos de "mesmo sentido" que "o livro
está sobre a mesa", ele está fazendo referência aos fatos que
tornariam a proposição verdadeira; quando se refere ao que

54
As LÓGICA

· de "sentido oposto", está fazendo referência aos fatos que a


1 ornariam falsa. É muito importante não se deixar confundir

por isso. Wittgenstein não quer dizer que uma proposição


muda de sentido quando é falsa. Uma proposição tem o mes-
mo sentido quer seja verdadeira, quer seja falsa. Quando uma
proposição é falsa, são os fatos que têm sentido oposto, não
n própria proposição. A razão pela qual Wittgenstein se ex-
pressa dessa maneira confusa é que, quando uma proposição
é falsa, os fatos são tais que seriam corretamente descritos por
uma proposição de sentido oposto. Dessa maneira, quando
"o livro está sobre a mesa" é falsa, os fatos são tais que seria
correto dizer "o livro não está sobre a mesa". Mas a ideia de
Wittgenstein, em suas linhas essenciais, é bastante simples.
O que ele quer dizer é que se pode determinar aquilo que
uma proposição significa indicando-se o que a tornaria
verdadeira por oposição ao que a tornaria falsa. Assim, po-
de-se determinar o sentido de "o livro está sobre a mesa"
indicando-se, pela consideração das várias relações que o
livro mantém com a mesa, que um conjunto será chamado
"estar o livro sobre a mesa", e todos os outros serão chamados
"não estar o livro sobre a mesa". Agora, a ideia importante,
para o nosso propósito, é que a fixação do sentido envolve
tanto o lado negativo quanto o positivo. Não existe correlação
entre símbolos e fatos de mesmo sentido que não seja uma
discriminação entre o que é de mesmo sentido e o que é de
sentido oposto. Em outras palavras, é a discriminação do
que tornaria uma proposição verdadeira em vez de falsa que
confere a ela o seu sentido.
Wittgenstein também expressou essa ideia, nessa mesma
época, dizendo que uma proposição tem dois polos, um polo
verdadeiro e um polo falso. Não se entende uma proposição,

55
O. Mounce

não se entende o que seria para ela ser verdadeira, a menos


que se entenda o que seria para ela ser falsa. Ora, propria -
mente entendida, essa ideia leva a uma explicação engenhosa
da negação, e será útil considerar essa explicação aqui porque
ela elucidará a doutrina central de Wittgenstein de que as
constantes lógicas não representam nada e servirá como uma
introdução para o que ele tem a dizer sobre inferência lógica
e sobre as proposições que pertencem à lógica.
A ideia de Wittgenstein é que se entender uma proposição
é apreender tanto o seu polo verdadeiro quanto o seu polo
falso, então a negação não pode introduzir nenhuma nova
discriminação de fatos. Se alguém entende uma proposição,
entende como são as coisas se ela é verdadeira, e se entende
isso, então, no que diz respeito aos fatos, não há mais nada que
precise ser apreendido para que ele entenda a negação da -
quela proposição. Podemos ilustrar essa ideia considerando
o problema dos assim chamados fatos negativos. Compare" o
livro está sobre a mesa" com" o livro não está sobre a mesa".
A primeira representa um fato positivo, a última, um nega-
tivo. Mas o que é um fato negativo? Pode-se apontar para
o livro estando sobre a mesa, mas como se pode apontar
para o livro não estando sobre a mesa? Certamente, o que
quer que possa ser apontado será um fato positivo. Assim,
se o livro não está sobre a mesa, ele deve estar sob a mesa,
ou próximo à mesa, ou na outra sala, etc. No entanto, todos
esses são fatos positivos: eles não são, quando considerados
individualmente ou até mesmo coletivamente, equivalentes
em significado ao livro não estando sobre a mesa. A que tipo
de fato, então, esse último caso faz referência?
Esse é um problema que surge inteiramente da gramátic~.
Compare as proposições quando escritas da seguinte maneira.
As f'llOPOSlÇÔI;S DA LÓGICA

O livro está sobre a mesa.


O livro não/está sobre a mesa."
/\.formadas frases poderia sugerir que "não-estar-sobre-
a-mesa" é uma relação diferente, mas do mesmo tipo de
"estar-sobre-a-mesa". Para desfazer o problema podemos
escrever as frases da seguinte maneira.

O livro está sobre a mesa.


Não/o livro está sobre a mesa.
Escrita dessa maneira, a finalidade da segunda frase - isso
( 1 everia ficar claro - não é asserir a existência de uma relação
diferente daquela asserida pela primeira. O seu propósito
é simplesmente cancelar a primeira frase como um todo.
Pode-se apresentar essa mesma ideia de outra maneira.
Suponha que nos comunicássemos literalmente com figuras
desenhadas em vez de palavras. Se desejássemos dizer que o
1 ivro está sobre a mesa, apresentaríamos um desenho desse
estado de coisas. Mas como comunicaríamos que o livro não
está sobre a mesa? Um pouco de reflexão revelará que não
precisaríamos apresentar um outro desenho. Poderíamos
apresentar o mesmo desenho e então, digamos, virá-lo,
apresentando o seu verso. O propósito da negação é cancelar
uma representação particular dos fatos, não asseri - los.
Ora, essa é, em certo sentido, a ideia de Wittgenstein.
O sinal para a negação ( como todas as constantes lógicas) não

1~ [N.T.] Aqui convém chamar atenção para uma pequena diferença entre
11 língua inglesa e a língua portuguesa. No inglês, a negação ocorre após a
cópula - "the book is/not on the table" (" o livro está/não sobre a mesa").
Assim, existe no inglês mais semelhança entre a estrutura da proposição
11 firmativa e a estrutura da proposição negativa na medida em que ambas
parecem, mais do que no português, asserir a existência de um fato positivo.

57
H . O. M ourice

representa os fatos. Se se entende uma proposição, já estão


discriminados todos os fatos que são necessários para que se
entenda sua negação. Naturalmente, isso não significa que
uma proposição e sua negação tenham o mesmo sentido. O
que isso quer dizer é que o sentido do sinal para a negação
não repousa nos fatos. Diferentemente de um nome, seu
propósito não é o de ser seu representante. Wittgenstein
expressou essa ideia dizendo que das três proposições, p, -p
e --p, a terceira e a primeira são idênticas. Quando se passa
da primeira proposição para a terceira, não se adquire mais
informação do que já se tinha antes de se fazer essa passa -
gem; apenas retorna-se ao ponto de partida. O sinal para a
negação meramente cancelap, mas cancele o cancelamento
e você voltará a p. Do mesmo modo, vire o desenho do livro
sobre a mesa e você terá o polo negativo; vire-o novamente,
e terá o positivo.
Pois bem, o que consideramos até aqui neste capítulo
deve servir, eu sugeri, como uma introdução para o que
Wittgenstein diz sobre lógica formal e, especialmente, so -
bre as proposições da lógica, as assim chamadas verdades
necessárias. À primeira vista, entretanto, pode parecer
difícil perceber como isso pode ser o caso, pois, tendo em
vista o que foi dito, pode agora parecer ainda mais difícil
entender como Wittgenstein pode dar uma explicação das
proposições da lógica. Afinal de contas, as proposições da
lógica são necessariamente verdadeiras, isto é, verdadeiras
quaisquer que sejam as circunstâncias. Contudo, de acordo
com Wittgenstein, como dissemos, é necessário que uma
proposição tenha um polo verdadeiro e um polo falso, ou seja,
uma proposição não pode ser verdadeira quaisquer que sejam
as circunstâncias. Para ver como Wittgenstein resolveu essas
dificuldades, voltemo-nos para a sua explicação.
A s l'ROPOSIÇÕ.ES DA LÓGICA

A primeira noção que devemos entender é a de função


de verdade. Já vimos que se quisermos explicitar a estru -
tura lógica das proposições da linguagem ordinária, então
os nomes que as compõem precisam ser analisados. Tais
como se encontram, em sua forma não analisada, eles são
estruturas complexas formadas por proposições elementa -
res, as proposições cujos nomes realmente correspondem,
de maneira direta, a objetos no mundo. Wittgenstein, como
já dissemos, nunca dá um exemplo de uma proposição ele-
mentar. O que ele faz, entretanto, é indicar o tipo de relação
que existe entre uma proposição complexa e as proposições
elementares que a constituem. Uma proposição complexa,
ele diz, é umafunção de verdade de proposições elementares.
Para perceber o que Wittgenstein quer dizer, suponhamos
que uma proposição seja constituída pelas proposições
elementares "p" e "q". Vimos que cada proposição tem um
polo verdadeiro e um polo falso - em outras palavras, cada
proposição tem a possibilidade de ser verdadeira ou falsa.
No entanto, em uma proposição complexa, constituída por
"p" e "q", a verdade ou a falsidade da proposição como um
todo dependerá da verdade ou da falsidade das proposições
que a constituem, "p" e "q". Além disso, existem várias
possibilidades, várias maneiras pelas quais, dependendo
da verdade ou da falsidade de suas proposições constituin -
tes, a verdade ou a falsidade da proposição como um todo
pode ser determinada. Por exemplo, em uma proposição
complexa constituída por "p" e "q", "p" e "q" podem ser
ambas verdadeiras, ou "p" pode ser falsa e "q", verdadeira,
ou vice-versa, ou, ainda, "p" e "q" podem ser ambas falsas.
Isso pode ser apresentado na forma das tabelas de verdade
de Wittgenstein:

59
H. O. Mounce

p q
V V
F V
V F
F F
Entretanto, a maneira como as possibilidades de verdade
apresentadas nessa tabela afeta a verdade ou a falsidade da
proposição como um todo não será a mesma para toda propo-
sição constituída por "p" e "q". Isso dependerá de como "p" e
"q" estiverem combinadas para formar a proposição como um
todo. Assim, para algumas combinações, se "p" for verdadeira e
"q" for falsa, a proposição como um todo será falsa; para outras
combinações, será verdadeira. Aqui estão dois exemplos - a
terceira coluna em cada caso representa a maneira como a ver-
dade ou a falsidade da proposição como um todo é afetada pelas
possibilidades de verdade de suas proposições constituintes:
(A) (B)
p q p q
vv V V V V
FV V FV F
V F V V F F
F F F F F F

A tabela de verdade (A) é a tabela de verdade para a


proposição "p ou q" (p v q). (B) é a tabela de verdade para a
proposição "p eq" (p · q).Assim, "p ouq" será falsa se "p" e
"q" forem ambas falsas, mas verdadeira para todas as demais
possibilidades; "p eq" será verdadeira se "p" e "q" forem am-
bas verdadeiras e falsa para todas as demais possibilidades.
Isso, então, é o que Wittgenstein quis dizer quando disse
que uma proposição complexa é uma função de verdade de

60
A s PROl'OSIÇÕES DA LÓGICA

proposições elementares. A verdade ou a falsidade da propo-


sição complexa depende, dessa maneira, das possibilidades
de verdade das proposições elementares que a compõem.
Vejamos, contudo, se realmente entendemos a ideia de
Wittgenstein por completo. Tentei deixar claro em minha ex-
posição que uma tabela de verdade é um sinal proposicional.
Por exemplo, a tabela de verdade para a proposição "p ou q"
(p v q) tem como terceira coluna (VWF). Ora, esses sinais
são, para Wittgenstein, equivalentes. Em outras palavras, o
mesmo sinal proposicional pode ser escrito tanto como "p v
q" quanto como "(VVVF) (p, q)". Ou ainda, tanto como "p ·
q" quanto como "(VFFF) (p, q)". Ou ainda, como "p :::::> q" (se
p, então q) ou como "(VVFV) (p, q)".
Ora, substituir uma proposição que contém uma
constante lógica por uma tabela de verdade serve para
mostrar claramente que o sentido de uma proposição é
equivalente às suas possibilidades de verdade. Além disso,
serve ainda para enfatizar que as constantes lógicas não
correspondem a objetos, que a lógica não representa os
fatos. Como Wittgenstein diz em 4.441: "é claro que ao
complexo dos sinais 'F' e 'V' não corresponde nenhum
objeto (ou complexo de objetos); como tampouco aos traços
horizontais e verticais, ou aos parêntesis - Não há 'objetos
lógicos'". É evidente que os "F"s e "V"s na tabela de verdade
não correspondem a objetos, mas sim às possibilidades
de verdade das proposições, e é, portanto, evidente que as
constantes lógicas, uma vez que são equivalentes a essas
possibilidades, também não correspondem a objetos.
Admitindo, porém, que compreendemos o que
Wittgenstein entende por uma função de verdade, como
isso nos permite compreender a natureza das proposições
da lógica? Em 4.46, Wittgenstein diz:
H.

Entre os grupos possíveis de condições de verda -


de, há dois casos extremos.
Num dos casos, a proposição é verdadeira para
todas as possibilidades de verdade das proposições
elementares. Dizemos que as condições de verdade
são tautológicas.
No segundo caso, a proposição é falsa para todas
as possibilidades de verdade: as condições de verda-
de são contraditórias.
No primeiro caso, chamamos a proposição de tau-
tologia; no segundo caso, de contradição.

Para perceber o que Wittgenstein quer dizer, considere


as seguintes tabelas de verdade:
p · -p p::, p
V F F V V V
F V F F F V
V F F V V V
F V F F F V
Essas tabelas de verdade mostram que podemos construir
proposições que são falsas quaisquer que sejam as possi-
bilidades de verdade de suas proposições constituintes e
outras que são verdadeiras quaisquer que sejam essas pos-
sibilidades. Podemos construir contradições e tautologias.
Em 4.461, Wittgenstein diz que tautologias e contradições
não têm sentido. Por exemplo, ele diz, eu não sei nada so-
bre o tempo quando sei que chove ou não chove. Em outras
palavras, se uma proposição é verdadeira quaisquer que
sejam as circunstâncias, o que quer que ocorra no mundo,
então ela não afigura nada em particular. No entanto, se
não afigura nada em particular, então ela não diz nada, pois

6~
PllOPOS!ÇÔES DA LÓGICA

dizer alguma coisa é precisamente afigurar, dentre diversas


possibilidades, uma determinada possibilidade em particu -
lar. Agora, contudo, pode parecer óbvio que, se carecem de
sentido, essas proposições, na verdade, simplesmente não
são proposições. A questão não é tão óbvia quanto parece. Em
4.46u, Wittgenstein diz: "tautologias e contradições não são,
porém, contrassensos". Essa afirmação, à primeira vista, é
inteiramente mistificadora. Como tautologias e contradições
podem não ter sentido e, ainda assim, não ser contrassensos?
O que Wittgenstein quer dizer é que tautologias e contradi -
ções não têm sentido na medida em que não dizem nada, mas
que, apesar disso, elas não são algaravias (gibberish). Elas são,
como ele diz, parte do simbolismo. Ao construir uma tabela
de verdade que gera uma tautologia, seguimos as mesmas
regras usadas na construção de qualquer outro tipo de tabela
de verdade. Não há regras comparáveis para a construção de
algaravias. Além disso, embora não digam nada, tautologias
e contradições mostram algo sobre a natureza da estrutura
lógica. Assim, "p · -p" não diz nada, mas o fato de que isso
não possa ser dito mostra algo sobre a lógica, ou melhor, o
fato de que esses sinais, quando assim unidos, não digam
nada mostra algo sobre a lógica. Em "p · -p", pode-se dizer,
é revelada uma desintegração do sentido, mas o valor de "p
· -p" consiste em que essa desintegração se revela por não
ser arbitrária. Estamos cientes, por meio dela, de regras
que refletem a forma lógica e que nos permitem construir,
com os símbolos que a constituem, proposições que dizem
alguma coisa. Nada disso se mostra em uma algaravia como
"crase todavia uivo".
Ora, o ponto de Wittgenstein é precisamente que as
proposições da lógica são tautologias. Aqui, em outras pala -
vras, aproximamo-nos por outro ângulo da ideia central de

63
H. O. Mounce

Wittgenstein, a saber, a de que a lógica pode ser mostrada,


mas não pode ser dita. As proposições da lógica são tautolo-
gias: elas mostram a forma lógica, mas não dizem nada sobre
o mundo. Para perceber isso mais claramente, consideremos
o que Wittgenstein diz sobre inferência lógica. Ele expressa
o que pensa sobre o tema no aforismo 5.11:

Se os fundamentos de verdade comuns a um certo


número de proposições forem todos também funda -
mentas de verdade de uma determinada proposição,
diremos que a verdade desta se segue da verdade da -
quelas.

Será útil contrastar o que Wittgenstein está dizendo aqui


com o pano de fundo dos sistemas simbólicos desenvolvidos
por Frege e Russell. O sistema de Frege, como vimos, estava
estruturado como um sistema de geometria. Certas verdades
lógicas eram consideradas axiomas, ou proposições primiti-
vas, e delas, por meio das assim chamadas leis de inferência,
eram deduzidas outras verdades lógicas. Quando discutimos
isso anteriormente, suscitamos a questão de saber como
esses elementos do sistema deveriam ser entendidos. Que
relação, por exemplo, as verdades lógicas deduzidas mantêm
com aquelas das quais elas são deduzidas? São os axiomas, em
algum sentido, mais fundamentais do que as verdades lógicas
deles deduzidas? Poderia parecer natural responder a essas
questões dizendo que a lógica, como apresentada por Frege
e Russell, é um sistema hierárquico. Algumas verdades são
mais fundamentais do que outras. Os axiomas, por exem-
plo, são fundamentais porque são autoevidentes, e as outras
proposições do sistema dependem deles para sua verdade.
Entretanto, existem dificuldades evidentes nessa concepção.
As .PRO.POSIÇÔI:S DA LÓGICA

Em primeiro lugar, a escolha dos axiomas parece ser arbitrá -


ria. Os axiomas escolhidos por Frege eram da forma "se ... ,
- ... " : "P ::> --P" e "(P ::> Q) ::> ( - Q ::> -P)" senam
entao . exemp 1 os,
escritos na notação de Russell. O próprio Russell, entretanto,
usou axiomas que empregavam as constantes "ou" e "não".
Além disso, relacionada a essa, existe uma certa dificuldade
quanto às assim chamadas leis de inferência. Frege deduziu
as verdades do seu sistema de um conjunto de axiomas por
meio da lei: "de 'A' e 'seA, entãoB' infere-se 'B"'. Mas qual é o
status dessa lei? Ela mesma repousa sobre uma verdade lógica
autoevidente? Se esse é o caso, é essa verdade, em alguma
medida, ainda mais básicá do qu:e os axiomas? Wittgeristein
apresentou uma concepção de inferência que desfaz todos
esses problemas. Ele produziu, nas palavras de Russell, uma
simplificação surpreendente da teoria da inferência.
A essência de sua ideia é que a inferência repousa intei -
ramente sobre as relações internas mantidas entre propo-
sições. Se deduzo que choverá porque me disseram que há
nuvens carregadas no céu, não há qualquer relação interna
entre as proposições envolvidas. A relação, nesse caso, é
contingente, a inferência sendo justificada pela experiên -
eia passada. A inferência lógica é muito diferente. Se "p" se
segue logicamente de "q", diz Wittgenstein em 5. 13~, as duas
proposições são elas mesmas a única justificação possível
para a inferência. Em poucas palavras, pode-se ver que uma
se segue da outra simplesmente apreendendo o sentido das
proposições envolvidas. Isso porque dizer que "p" se segue
de "q" é apenas dizer que o sentido de "p" está contido no
sentido de "q", ou, para expressar exatamente a mesma ideia
em outras palavras, que os fundamentos de verdade de uma
estão contidos nos fundamentos de verdade da outra. Por
H. O . M ourice

exemplo, aqui estão os fundamentos de verdade, as terceiras


colunas das tabelas de verdade, de "p · q" e "p v q".
P. q pvq
V V
F V
F V
F F
Ora, pode-se inferir a verdade de "p v o" da verdade de "p •
q". Além disso, não é necessário que se explique por que isso
deve ser assim; pode-se vê-lo simplesmente olhando para as
tabelas de verdade, pois, enquanto existem Vs na coluna da
direita onde existem Fs na coluna da esquerda, não existem
Vs na coluna da esquerda onde existem Fs na da direita. Isso
significa que, enquanto "p vq" pode ser verdadeira e "p · q",
falsa, "p · q" não pode ser verdadeira e "p vq", falsa. Em outras
palavras, pode-se inferir "p vq" de "p · q".
Ora, disso se segue que todas as proposições da lógica es-
tão exatamente no mesmo nível. Se alguém deduz que choverá
porque lhe disseram que há nuvens carregadas no céu, essa
pessoa obteve alguma informação adicional. Ela sabe mais do
que simplesmente que há nuvens carregadas no céu. Pode-se
ficar tentado a olhar para a relação entre as verdades lógicas e
os axiomas do sistema de Frege precisamente da mesma ma -
neira. Isso, no entanto, está inteiramente errado. Em certo
sentido, nunca se vai além dos axiomas, pois tudo o que se faz
ao desenvolver o sistema é extrair o que está neles contido.
O sistema hierárquico da lógica deve, portanto, estar errado.
Todas as proposições da lógica estão no mesmo nível e todas
dizem a mesma coisa, a saber, nada. Em outras palavras, ao
desenvolver um sistema lógico não se estão deduzindo mais
e mais verdades sobre a realidade. O que se está fazendo é

66

..
As PROPOSIÇÜES DA LÓGICA

explicitar as conexões internas entre as proposições, mostrar


como seus sentidos estão inter-relacionados.
Também por essa razão, as leis inferenciais que encon -
tramos em Frege e Russell são inteiramente desnecessárias.
Sua introdução mostra, mais uma vez, uma confusão acerca
da relação entre a lógica e as outras ciências. Se conheço a
lei de que nuvens carregadas produzem chuva, então, do
conhecimento de que há nuvens carregadas, posso deduzir
que choverá. Sem a lei, eu não poderia ter feito essa dedução,
não poderia ter deduzido que choveria de minha observação
das nuvens carregadas. Contudo, como vimos, se "p" se segue
de "q", pode-se saber disso com base apenas em "p" e "q".
uma lei não se faz necessária. A inferência depende inteira-
mente das relações internas entre as proposições. Isso pode
ser expresso de outra maneira. Considere a lei de inferência
"de 'A' e de 'seA, então E', infere-se 'B"'. Agora, suponha que
eu perguntasse: "por que eu deveria fazer isso?". A resposta
poderia ser que a lei repousa sobre a verdade necessária
"A ::) B · A . ·. B". Mas preciso agora de outra lei que garanta
isso, ou posso ver a verdade da proposição nela mesma? Se
precisamos de outra lei, estamos a caminho de uma regres-
são ao infinito. Se não precisamos de outra lei, então por
que uma lei de inferência foi antes necessária? O que temos
aqui é meramente outra expressão da ideia de Wittgenstein
segundo a qual a lógica difere das demais ciências. Qual -
quer tentativa de provar ou de explicar a validade da lógica é
inevitavelmente circular, já que deve pressupor a validade e
compreensibilidade do que ela pretende provar ou explicar.
A lógica, como diz Wittgenstein, deve cuidar de si mesma.
Segue-se, portanto, que axiomas, leis de inferência e
proposições deduzidas estão todos no mesmo nível. Leis de
H. O. M ourice

inferência são supérfluas. Expressas como proposições, são


proposições lógicas como quaisquer outras. Além disso, o
que é considerado axioma é uma questão de conveniência e
não mostra nada sobre a lógica.
Ora, como eu disse, as ideias que estão sendo aqui apre-
sentadas são as ideias que aparecem ao longo do Tractatus,
que são fundamentais para a obra. Note, porém, o quão ma-
ravilhosamente elas se encaixam com a análise das proposi -
ções como funções de verdade de proposições elementares.
De acordo com essa análise, a verdade de uma proposição
depende da verdade das proposições que a compõem. Pro -
posições lógicas se mostram em serem verdadeiras para todas
as situações possíveis, isto é, elas são tautologias. Essa, no
entanto, é apenas outra maneira de dizer que a lógica não
pode ser dita, que ela só pode ser mostrada. Ainda de acor-
do com essa análise, as relações lógicas entre proposições
consistem nos modos como seus fundamentos de verdade
se inter-relacionam. É por isso que não pode haver relações
lógicas entre proposições elementares, que a verdade de uma
proposição elementar não pode se seguir da verdade de outra.
Se são proposições elementares, "p" e "q" não são formadas
a partir de outras proposições e, portanto, não podem ter
fundamentos de verdade em comum. Nesse caso, contudo,
a verdade de uma não pode se seguir da verdade da outra.
Relações lógicas existem apenas onde há complexidade e
proposições com fundamentos inter-relacionados. Mas
essa é apenas outra maneira de dizer que relações lógicas são
internas e devem, portanto, ser rigorosamente distinguidas
das relações estudadas por ciências que não sejam alógica ..
Além disso, se refletirmos sobre o que foi dito acerca da
natureza de uma tautologia, veremos por que Wittgenstein

68
As .:Pllü'POSI9ÔES DA LÓGICA

pensou que era importante desenvolver um sistema lógico. 13


Tautologias, dissemos, exibem a forma lógica. Consequente-
mente, um sistema lógico, que é um sistema de tautologias,
exibirá a forma lógica sistematicamente. Será importante
ter isso em mente quando considerarmos as críticas que
Wittgenstein formulou contra os sistemas lógicos desenvolvi -
dos por Frege e Russell. À primeira vista, essas críticas podem
ser facilmente mal interpretadas. Elas frequentemente con -
sistem em apontar para vagueza, ambiguidade etc., nos siste-
mas a que se dirigem. Corno tais, elas podem parecer pouco
mais do que a expressão, por parte de Wittgenstein, de uma
paixão por precisão ou até mesmo de uma preocupação exa -
gerada com detalhes. Isso, entretanto, é perder inteiramente
de vista sua verdadeira natureza. As críticas se seguem daquilo
que Wittgenstein julga ser o propósito de um sistema lógico.
Para ele, o propósito de um sistema lógico não é fornecer uma
linguagem logicamente mais-perfeita que a ordinária. Um
projeto desse tipo é, para Wittgenstein, inteiramente inco-
erente. Uma coisa não pode ser mais lógica do que outra. Ou
uma coisa é lógica ou não o é, ou ela tem sentido ou não tem
nenhum sentido. Assim, o propósito de um sistema lógico não
é fornecer a lógica de que a linguagem ordinária carece; pelo
contrário, é exibir a lógica da linguagem ordinária de maneira
mais perspícua do que a própria linguagem ordinária o faz.
Nesse caso, contudo, segue-se que o pecado capital de um
sistema lógico será falta de perspicuidade, vagueza, ambigui -
dade. Um sistema lógico vago nega o seu próprio propósito,
pois o seu propósito só poderá ser alcançado se ele for claro.

13 Por razões que ficarão claras logo adiante, seria mais preciso dizer que o
que Wittgenstein desejava ver desenvolvido não era um sistema lógico, como
os de Russell e Frege, mas um simbolismo lógico mais adequado.
H. O. M ounce

No entanto, esses são tópicos que consideraremos em


maior detalhe quando nos voltarmos para outra característica
importante da argumentação de Wittgenstein.
CAPÍTULO 4
uma

Como vimos, Frege e Russell usarGerentes axiomas em


seus sistemas, e essa diferença se mostra especialmente no
uso que eles fizeram de diferentes constantes lógicas como
fundamentais. Frege usou "se" e "não", Russell usou "ou" e
"não". Já vimos que, para Wittgenstein, a escolha de axiomas
é uma questão de conveniência e não mostra nada sobre a
lógica. Ele ainda sustentou, contudo, que a mera existência
de uma pluralidade de constantes era indesejável na medida
em que obscurecia as relações lógicas e fazia com que elas
parecessem arbitrárias. Para perceber por que ele pensou
isso, considere as seguintes inferências:
(a) (pvq)·-p.·.q
(h) -(-p. -q). -p .·. q

À primeira vista, (a) e (h) são inferências diferentes; elas re-


presentam operações lógicas diferentes.Na verdade, porém,
(a) é equivalente a (h). Isso porque "(p v q)" é equivalente
a "-(-p · -q)". Em outras palavras, as inferências (a) e (h)
permaneceriam as mesmas se" (p v q)" fosse substituída por
"-(-p · -q)" em (a) e" -(-p · -q)" fosse substituída por" (p v q)"
em (h). O que temos é uma única operação lógica aparecendo
como duas, e é arbitrário que essa operação seja simbolizada
por meio das constantes lógicas "v" e"-". No entanto, como
vimos, é essencial para Wittgenstein que um simbolismo
lógico não contenha elementos arbitrários. Um simbolismo
lógico deveria constituir um espelho em que a forma lógica
aparecesse com total clareza, em que uma única operação na
ILO.

lógica fosse representada por uma única operação no simbo-


lismo. Esse ideal, entretanto, não pode ser alcançado por um
sistema lógico que emprega uma pluralidade de constantes
lógicas. Em qualquer sistema dessa natureza, o modo como
operações lógicas são simbolizadas será, em alguma medida,
uma questão arbitrária.
Ora, na época em que Wittgenstein escreveu o Tractatus,
já havia sido mostrado que as constantes lógicas poderiam
ser todas substituídas por uma única constante - a assim
chamada barra de Sheffer. Wittgenstein refere-se a ela na
proposição 5.13u:

se concluímos q de p v q e -p, a relação entre as for-


mas das proposições "p v q" e "-p" é velada por esse
modo de significação. No entanto, se escrevemos,
por exemplo, "plq. l .plq" em vez de "p vq", e "plp" em
vez de "-p" (plq = nem p nem q), a conexão interna
torna-se óbvia.

Como diz Wittgenstein, p I q = nem p nem q; e pelo uso desse


recurso pode-se eliminar a pluralidade de constantes lógicas,
assim reunindo as operações lógicas sob uma única formá
e representando as relações internas entre proposições
de maneira mais perspícua. Por exemplo, "p v q" e "-(-p
· -q)" podem agora ser escritas na forma "plq-1.plq". Isso
significa: nem, nem p nem q, nem, nem p nem q - e precisa
ser escrito desse modo um pouco artificial para preservar a
forma "nem ... nem ... ". Entretanto, tudo o que está de fato
acontecendo é que se está descartando a possibilidade de
que nemp nemq, o que, se pensarmos um pouco, poderá ser
reconhecido como equivalente a asserir "p ou q" ou "não é~
caso que não p e não q"
A FORMA G:Efü\L DE llMA PRüPOSH,:Ao

A ideia central acerca da barra de Sheffer, portanto, é que


ela mostra que a pluralidade de constantes lógicas pode ser
eliminada e, portanto, mostra também que qualquer simbo-
lismo em que elas não sejam eliminadas-e,bs-~cerá a forma
lógica. Isso nos leva à noção wittgensteiniana da forma geral
de uma proposição. Poderemos perceber o que Wittgenstein
entende por isso se tivermos em mente tanto que proposições
são funções de verdade de proposições elementares quanto
que há apenas uma constante lógica. Dado que proposições, ou
ao menos as proposições do discurso ordinário, são funções
de verdade de proposições elementares, deve haver alguma
maneira pela qual elas são construídas a partir dessas pro-
posições. À primeira vista, pode-se supor que as constantes
lógicas que aparecem em Frege e em Russell desempenham
esse papel. Duas proposições "p" e "q" tornam-se a proposi-
ção complexa "p v q" quando a constante "v" é colocada entre
elas; elas se tornam uma proposição diferente quando unidas
pela constante "· "; e assim por diante. Ou, para expressá - lo
de forma mais precisa: "p" e "q" tornam-se proposições
complexas diferentes quando sujeitas às diferentes operações
lógicas representadas por "v" e"·". Todavia, já vimos que isso
é inadequado, pois vimos que "v" e "·" não representam, na
verdade, operações lógicas fundamentalmente diferentes.
Dado que as constantes lógicas podem ser definidas umas
pelas outras, podem ser substituídas por uma única constante,
tem de haver uma única operação fundamental que subjaz a
todas elas. É essa operação fundamental pela qual todas as
proposições são produzidas a partir de proposições elemen -
tares que Wittgenstein chama a forma geral da proposição.
Entretanto, para compreender isso adequadamente, pre-
cisamos entender o sentido preciso em que Wittgenstein fala
de uma operação. Consideremos as proposições 5.~-5.~3.
H.O.

5.~ As estruturas das proposições mantêm entre si


relações internas.

5.~1 A fim de realç~r essas relações internas, pode-


mos adotar o seguinte modo de expressão: pode-
mos representar uma proposição como o resultado
de uma operação que a gera a partir de outras pro -
posições (que são as bases da operação).

5-~~ Uma operação é a expressão de uma relação en-


tre a estrutura de seu resultado e de suas bases.

5.~3 A operação é o que deve ser feito com uma pro-


posição para que dela se faça outra.

Aplica-se, então, uma operação sobre uma proposição de


base para produzir uma proposição diferente como resul -
tado. Wittgenstein, no entanto, tem em mente um modelo
particular de como isso é feito. Em 5.~5~1, ele diz: "se uma
operação é aplicada repetidamente aos seus próprios resulta -
dos, falo em aplicações sucessivas dessa operação ("O'O'O' a"
é o resultado da tripla aplicação sucessiva de "O' ç" a "a")".
E, em 5.~5~3, ele diz: "o conceito de aplicações sucessivas de
uma operação equivale ao conceito 'e assim por diante'", Em
outras palavras, Wittgenstein está especialmente interessado
em operações que tomam seus próprios resultados como
base, em que, como ele diz em 5-~~. há uma relação estrutu-
ral entre a base e o resultado. Assim, aplicando-se O sobre
a, obtém-se Oa; repetindo-se a operação e aplicando-se O
sobre Oa, obtém-se OOa; e assim por diante. Em sua obra
posterior, Wittgenstein viria a examinar continuamente a
natureza desse "e assim por diante" de um modo que ele não

74
A. FOllMA GERAL llF l,ROPOSlÇ.4.0

o fez no período de redação do Tractatus. Deixemos, porém,


isso de lado por enquanto. A ideia é que uma opêraçãêY~de
tomar seus próprios resultados como base. Um exemplo fa-
miliar é a multiplicação por~:~ multiplicado por~ é 4; pegue
o resultado e multiplique-o por~ novamente.
Ora, a operação fundamental (a forma geral de uma pro-
posição) por meio da qual todas as proposições são geradas
a partir de proposições elementares é desse tipo. Mas o que,
mais especificamente, ela é? Na proposição 6, Wittgenstein
representa a forma geral da proposição como [p, {, N(f)J, e
o que isso diz, ele explica, é que toda proposição é o resultado
de aplicações sucessivas da operaçãoN(l) a proposições ele-
mentares (isto é, "p"). O "N" indica que a operação envolve,
de alguma maneira, a negação. Portanto, o que Wittgenstein
está dizendo é que qualquer proposição que se considere
será o resultado de aplicações sucessivas (isto é, aplicações
do tipo ~ vezes ~. 4 vezes ~) a proposições elementares de
alguma operação que _envolve a negação. Mas o que, mais
especificamente, é N(ç)? Isso é explicado em 5.5:

Toda função de verdade é um resultado de aplica -


ções sucessivas da operação
(-----V) (ç, .... )
a proposições elementares.
Essa operação nega todas as proposições entre os
parênteses da direita, e chamo-a a negação dessas
proposições.

O que temos nos parênteses da direita-" ç, .... " - repre-


senta simplesmente uma seleção particular de proposições
elementares. O que temos nos parênteses da esquerda é

75
H . O. M ourice

uma tabela de verdade com os Fs deixados de fora. Assim,


o símbolo de Wittgenstein pode, para os nossos propósitos,
ser escrito como (FFFV) (p, q). Ora, o que Wittgenstein está
fazendo é expli_5ar "N(f)" por meio daquela tabela de verdade.
Em suma, "N(ç)" e" (FFFV) (p, q)" são equivalentes entre si.
Mas aquela tabela de verdade nos leva, por sua vez, à barra de
Sheff er - nem p nem q ou -p · -q. Assim:
-p ·-q
V V F
F V F
V F F
F F V

Portanto, "(FFFV) (ç, .... )" ou "N('[)" é equivalente a uma


operação de negação conjunta, representada pela barra de
Sheffer, e o que Wittgenstein está dizendo é que as aplica -
ções sucessivas dessa operação às proposições elementares
produzirão todas as demais proposições. Ou seja, é assim que
as proposições complexas do discurso ordinário são produ -
zidas. Considere, por exemplo, como a proposição "p v q" é
produzida a partir de p, q, duas proposições elementares. Se
aplicamos a operação de negação conjunta a p, q, obtemos
N(p, q) - isto é, nemp nem q. Aplicando a operação a esse
resultado, obtemos N(N(p, q)) - isto é, nem, nem p nem q;
nem, nem p nem q, que é equivalente a "p v q".
Podemos ver, portanto, como a essência da linguagem, sua
forma comum, é espelhada mais claramente em um simbolis-
mo lógico que elimina a pluralidade de constantes e as substitui
pela barra de Sheff er. Retornaremos à forma geral da proposi -
ção mais tarde. Por enquanto, consideremos em maior detalhe
o que Wittgenstein tem a dizer sobre o simbolismo lógico:
3.3~8 Se não tem serventia, um sinal não tem sig-
nificado. Este é o sentido do lema de Occam.

E
3.33 Na sintaxe lógica, o significado de um sinal
nunca deveria desempenhar papel algum; ela
deve poder estabelecer-se sem que se fale do
significado de um sinal: ela pode pressupor so-
mente a descrição das expressões.

Em outras palavras, um simbolismo lógico deveria ser, em


si mesmo, um espelho da forma lógica. Ele deveria funcio-
nar, não dizendo o que a lógica é, mas exibindo a lógica na
operação dos seus sinais. Por essa razão, a mão do lógico não
deveria aparecer em seu sistema. Tendo estipulado as regras
para como os sinais que aparecem em seu sistema podem se
combinar, ele deveria se distanciar e deixar que a operação
dos sinais fale por ele. Ademais, isso ocorrerá inevitavel-
mente se ele tiver garantido que as regras que governam a
operação dos seus sinais refletem a forma lógica. Portanto,
se os sinais funcionarem, ele não precisará enunciar o seu
significado. Este será evidente, pois, se tudo se comporta
como se um sinal tivesse significado, então ele tem signifi-
cado. Se os seus sinais não funcionarem, ele terá deixado de
dar- lhes significado, pois, se não tem serventia, um sinal
não tem significado.
Será útil ilustrar essa ideia fazendo referência a algumas
outras críticas que Wittgenstein dirige contra o sistema de
Russell. Uma de suas críticas diz respeito ao uso que Russell
faz do sinal de identidade.

77
H . O. M ourice

5.53 Exprimo a identidade do objeto por meio da


identidade do sinal, e não usando um sinal para
a identidade. A diferença dos objetos, por meio
da diferença dos sinais.

5.5303 Em termos aproximados: dizer de duas coi-


sas que elas são idênticas é um contrassenso, e
dizer de uma coisa que ela é idêntica a si mesma
é não dizer rigorosamente nada.

E vemos agora que pseudoproposições como


"a= a", "a= b. b =e::::> a= e", "(x). x = x", "(3x). x = a"

etc. não podem nem mesmo ser formuladas


numa ideografia correta.

Para Wittgenstein, os sinais em um simbolismo lógico correto


expressarão o seu significado por meio do seu uso. Assim, a
identidade de um objeto ao qual um sinal, enquanto seu re-
presentante, corresponde deveria ser evidente na identidade
do sinal, e não deveria ser preciso asseri -Ia separadamente.
De fato, uma proposição como "a= a" ou "a = b", quando con -
cebida como uma asserção sobre um objeto, é estritamente
sem sentido (dizer que um objeto é idêntico a si mesmo é
não dizer nada). Concebida como uma asserção sobre esses
sinais, é claro que ela é bastante coerente; '"a' = 'b"' pode ser
tomada como uma asserção de que esses sinais têm um uso
equivalente. A ideia de Wittgenstein, contudo, é que, em um
simbolismo adequado, este último tipo de asserção deveria
ser desnecessário, pois o que é de fundamental importância
em um simbolismo adequado é que um sinal deve significar
através de sua identidade, por meio de um uso claro e deter-
minado. Ter de remover uma ambiguidade, ter de explicar o
À FORMA DE 01.fA. PROPOSIÇJ:;.o

uso de um sinal, no meio de um simbolismo lógico é evidência


certa de que o simbolismo é inadequado.
Essa ideia é de fundamental importância para compreen -
der o que Wittgenstein diz sobre a teoria dos tipos de Russell.
Como vimos, Russell desenvolveu essa teoria dos tipos para
evitar os paradoxos lógicos que parecem surgir se se permi -
te que proposições façam referência a si mesmas, ou se se
permitem noções como classes de classes ou propriedades
de propriedades, ou funções de funções. Em sua teoria dos
tipos, Russell tentou restringir a construção de expressões
como essas. Em 3.33~, Wittgenstein diz:

Nenhuma proposição pode enunciar algo sobre si


mesma, pois um sinal proposicional não pode estar
contido em si mesmo· (isso é toda a "theory of types ").

Para ilustrar essa ideia, Wittgenstein imagina a tentativa de


construir uma função que constitua o seu próprio argumento.
Assim, na função "x é gordo" (fx), poderia a função ocupar
a posição de seu próprio argumento, "x"? Supondo que pu-
desse, ela poderia ser simbolizada como F(f). No entanto,
diz Wittgenstein, o que ocupa essas duas posições não é um
símbolo, mas dois. A identidade de um sinal, isso deve ser
lembrado, não é garantida pela sua forma física, mas pelo seu
uso. Sinais com formas bastante diferentes, mas com o mes-
mo emprego, são o mesmo símbolo; sinais que têm a mesma
forma, mas que são empregados de maneiras diferentes,
são símbolos diferentes. Nesse caso, quando "F" está fora
dos parênteses, ele é um símbolo diferente do que é quando
está dentro dos parênteses, pois tem um emprego diferente.
Sendo assim, não teremos construído uma expressão em que
um e o mesmo símbolo ocorre tanto como função quanto

79
IL O. Mounce

como seu próprio argumento. A ideia de Wittgenstein é que,


em um simbolismo correto, uma construção como essa será
vista como impossível e que é isso que desqualifica a teoria
dos tipos de Russell. Em outras palavras, não se pode, em
um simbolismo correto, construir uma proposição que faça
referência a si mesma sem tornar evidente que a proposição
contida tem uma função diferente daquela da proposição
que a contém. Nesse caso, no entanto, será evidente que não
se pode construir uma proposição que faça referência a si
mesma, pois, tendo em vista essa tentativa equivocada, será
evidente que o que se tem não é uma proposição, fazendo
referência a si mesma, mas proposições diferentes. Em suma,
uma teoria dos tipos é inteiramente desnecessária, pois,
em um simbolismo correto, o problema com o qual Russell
pretende lidar simplesmente não surgirá. Ele desaparecerá
na própria operação dos sinais.
Wittgenstein defende basicamente a mesma ideia ares-
peito do axioma da infinidade de Russell. Este acreditava
que era necessário supormos uma infinidade de objetos se
quiséssemos garantir a plena inteligibilidade de nossa lin -
guagem; pois, do contrário, como poderíamos estar certos de
que não há mais nomes em nossa linguagem do que objetos
para conferir- lhes significação? A resposta de Wittgenstein
é que isso se mostrará na aplicação de nossa linguagem.
Onde há um objeto, pode ser-lhe atribuído um nome; se um
sistema contém nomes vazios, se há sinais em um sistema
que carecem de um objeto correspondente, as proposições
em que esses sinais forem introduzidos não dirão nada. Seja
como for, a suposição de Russell é desnecessária. Essa res-
posta, na verdade, precisa ser suplementada. Russell estava
ocupado, fundamentalmente, com a matemática. Sua ideia

, 80
A FORMA GJ,BAL DE UMA }'ROPOSIÇAO

era que, ao lidarmos com um sistema matemático, estamos


comprometidos a aceitar uma infinidade de objetos, pois
sabemos, com base em razões a priori, que o sistema pode
ser estendido infinitamente. Em outras palavras, sabemos,
de antemão, que, não importa o quanto estendamos o siste-
ma, ele terá significação e, portanto, que tem de haver uma
infinidade de objetos se a significação do sistema deve ser
garantida. A resposta de Wittgenstein a isso não poderá ser
inteiramente apreciada até considerarmos em detalhe o que
ele tem a dizer sobre a matemática. Brevemente, no entanto,
sua ideia é que Russell concebeu de maneira equivocada a
natureza da matemática. Para Wittgenstein, a matemática é
como a lógica na medida em que não representa o mundo, e
o fato de falarmos sobre infinidade na matemática de modo
algum exige que nos comprometamos com suposições sobre
os fatos. No entanto, como eu disse, retornaremos a esse
tópico mais tarde e o consideraremos em detalhe.
Neste capítulo, portanto, ilustramos o tema de que trata-
mos no final do capítulo anterior. Para Wittgenstein, a lógica
não pode ser dita, mas pode ser exibida em um simbolismo
adequado. É necessário, entretanto, que o simbolismo seja
adequado; e vimos alguns dos motivos pelos quais, segundo
Wittgenstein, o sistema de Russell se afastou desse ideal.

81
CAPÍTULO 5
As equações matemática

Até aqui, examinamos, pelo menos em linhas gerais, muitas


das ideias centrais do Tractatus. Contudo, muitos detalhes
precisam ser explorados. Precisamos considerar agora como
Wittgenstein lida com uma variedade de proposições que,
à primeira vista, não se encaixam adequadamente em sua
explicação. Aqui estão alguns exemplos:
1. Enunciados gerais, contendo as palavras "todo" e
"algum".
~- Enunciados matemáticos.
3. Enunciados de probabilidade.
4. Enunciados psicológicos; por exemplo, da forma "A
acredita que p".
5. Enunciados das leis da natureza.
6. Enunciados de valor, na estética, na ética e na reli-
gião.

Alista não é exaustiva. Por exemplo, há ainda os enunciados


do próprio Wittgenstein no Tractatus. Wittgenstein disse
repetidamente que a lógica se mostra e não é dita, mas ele
mesmo está fazendo enunciados sobre a lógica no Tractatus.
Como esses enunciados devem ser tomados?
Comecemos com o que Wittgenstein tem a dizer sobre
enunciados matemáticos. Para entender esse tópico, será
útil levar em consideração a noção de conceito formal. Em
4.1~6, Wittgenstein diz:

Podemos agora falar de conceitos formais, nomes-


mo sentido em que falamos de propriedades formais.

83
H. O. Mounce

(Introduzo essa expressão a fim de exibir a fonte


da confusão entre conceitos formais e conceitos pro-
priamente ditos, que perpassa toda a lógica tradicio-
nal.)
Quando algo cai sob um conceito formal como um
de seus objetos, isso não pode ser expresso por meio
de uma proposição. Isso se mostra no próprio sinal
para esse objeto. (Um nome mostra que significa um
objeto; um numeral. que significa um número, etc.)
Com efeito, conceitos formais não podem, como
conceitos propriamente ditos, ser representados por
uma função.
Pois suas características, propriedades formais,
não são expressas por meio de funções.
A expressão de uma propriedade formal é um tra -
ço de certos símbolos.
O sinal para as características de um conceito for-
mal é, portanto, um traço distintivo de todos os sím-
bolos cujos significados caem sob o conceito.
A expressão de um conceito formal é, portanto,
uma variável proposicional em que apenas esse traço
distintivo é constante.

Ficará evidente para o leitor que Wittgenstein está ex-


pressando aqui uma ideia muito próxima àquela com a qual
estávamos lidando no final do último capítulo. A lógica não
pode ser dita; ela se mostra na operação dos sinais. Assim,
conceitos formais, os conceitos nos quais buscamos expres-
sar a característica da lógica, não são conceitos genuínos, pois
buscam expressar o que só se pode mostrar. Por exemplo,
M ATEM .ll'IICA

"está chovendo" diz algo; "' está chovendo' é uma proposição"


não diz nada. "Está chovendo" mostra que é uma proposição,
que é inteligivel, ao dizer algo. Nada adicional é acrescentado
ao se tentar dizer que ela é uma proposição. "x é uma propo-
sição" é, portanto, um exemplo do que Wittgenstein descreve
como um conceito formal, por oposição a um conceito real.
Será interessante notar como essa ideia diferia da ideia
de Frege. Este havia argumentado que ser um conceito é algo
que se mostra, mas que não pode ser dito. Mostra-se que
gordura é um conceito em sermos capazes de dizer "Sócrates é
gordo", mas não "gordura é Sócrates". O fato de que algo seja
um conceito mostra-se em que a expressão para o conceito
aparece na posição de predicado. Frege, no entanto, não
aplicou essa ideia tão amplamente quanto Wittgenstein. Por
exemplo, o conceito de número é, para Wittgenstein, um
conceito formal. Não se pode dizer "3 é um número". O fato
de que 3 é um número mostra -se em podermos combinar" 3"
com algumas expressões, por exemplo, "3 + 5 = 8", mas não
com outras, como "3 é rosa". Frege, porém, estava bastante
disposto a permitir uma frase como "3 é rosa". Isso se deve
à sua ideia de que um numeral nomeia um objeto. É mais
evidentemente falso que 3 é rosa do que a afirmação de
que Sócrates é rosa, mas essa não é uma questão de lógica.
Ora, isso nos leva ao coração da exi:ilicação apresentada por
Wittgenstein para os enunciados matemáticos, pois, em
sua explicação, ele procura mostrar que a ideia de Frege é
inteiramente confusa.
Wittgenstein começa sua explicação da noção de número
em 6.o~, e é significativo que ela apareça logo após a apre-
sentação da forma geral da proposição, a forma mais geral
pela qual se pode gerar uma proposição a partir de outra por
H. O. Mounce

meio de uma operação. Como veremos, ele sustenta que há


uma conexão interna entre a noção de número e a da operação
pela qual se gera uma proposição a partir de outra. Em 6.o~,
ele diz que dará as seguintes definições:
(i) x = Qºx Def.,
(~) QQN = QN+,x Def.

Assim, de acordo com essas regras, escrevemos a série


(3) x, S'Jx, QQx, QQQx ... ,

como
(4) !2ºx, go+ix, go+1+1x, Q 0+1+1+1x ••• ,
(5) Portanto, em vez de [x, ç, Qç]
(6) Wºx, QNx, QN+'x]
E podemos dar as seguintes definições:
(7) 0+1=1

0+1+1=~

0+1+1+1=3

Colocar a questão dessa maneira faz transparecer a simila -


ridade, a conexão interna, entre número e operação formal
(a, Oa, OOa, OOOa ... ) , uma operação cujo resultado é usado
como base dessa mesma operação. Assim, partindo dessa
operação tal como representada em (3), ou, ainda, partindo
da forma dessa operação (5), podemos chegar a uma definição
dos números 1, ~ e 3. Poderíamos expressar isso dizendo que
os números representam vários estágios em uma operação ou
série formal; ou, como Wittgenstein o expressa, um número é
um expoente de uma operação. Com isso ele quer dizer qual-
quer operação, ou, pelo menos, qualquer operação formal. A
noção de número é inerente a qualquer operação formal; dar
um número é definir um estágio de uma operação desse tipo.

86
As EQDAÇÔES DA MATEM.ÁTICA

Tentemos explicar essa ideia por meio de um exemplo da


Sra. Anscombe. Podemos explicar "ancestral na linhagem
masculina" dizendo "há o meu pai, e o pai do meu pai, e o
pai do pai do meu pai, e assim por diante". Entende-se "an-
cestral na linhagem masculina" quando se entende, como se
poderia dizer, que "do pai" pode ser acrescentado a "do pai"
um número indefinido de vezes. Meu ancestral na linhagem
masculina é qualquer um que faça parte da série meu pai, o
pai do meu pai, o pai do pai do meu pai, e assim por diante.
Suponha, no entanto, que alguém queira saber qual dos meus
ancestrais masculinos uma determinada pessoa é. Isso, como
sugere a Sra. Anscombe, requer um numeral para uma res-
posta. O que se deseja saber, pode-se dizer, é quantas vezes
se deve voltar em "do pai". Ora, isso ilustra que a noção de
número é inerente a qualquer operação formal. Qualquer
série formal é apenas um número indefinido de aplicações
de uma operação a uma base. Um número, 3, por exemplo, é
a aplicação de uma operação a uma base um número definido
de vezes. Assim posto, é claro que isso parece circular, pois
quando falamos em "um número de vezes" já estamos empre-
gando a noção de número e, poderia ser dito, não podemos,
portanto, recorrer a isso para elucidar a própria noção de
número. É como se explicássemos o significado de "3" di-
zendo que esse sinal significa uma operação formal aplicada 3
vezes. A circularidade, contudo, é, na verdade, inteiramente
aparente, como poderemos ver se voltarmos a "ancestral na
linhagem masculina". Ficará evidente, se refletirmos, que
se pode apreender os passos sucessivos "pai; pai do pai; pai
do pai do pai ... " sem recorrer, de forma alguma, à noção de
número. É a aplicação da operação que elucida a noção de
número, não o contrário. É por isso que Wittgenstein diz
H. O. Mounce

que um número é o expoente de uma operação. Isso signi-


fica que se pode traduzir qualquer frase contendo numerais
em uma frase que represente a aplicação de uma operação.
Por exemplo, pode-se escrever t'z + ~ = 4" como "Q25?2x =
Q4x"; e pode-se escrever isso, por sua vez, como "(QQ)(QQ)
x = QQQQx". Aqui deveria ficar evidente que a aparência de
circularidade desaparece por completo; a noção de número
é elucidada por referência a um estágio na aplicação de uma
operação formal.
Talvez a ideia possa ficar ainda mais clara. A finalidade de
se insistir em que um número é um expoente de uma opera -
ção é enfatizar que os numerais não correspondem a objetos.
Suponha que eu diga que há dois ovos em uma caixa. Isso não
significa que a caixa contém três coisas - um ovo, outro ovo
e dois deles. Há apenas este ovo, aquele ovo e a caixa. Supo-
nha que eu acrescente mais um ovo. Agora tenho três ovos
e o estado da caixa é diferente, mas a diferença é produzida
inteiramente pelo ovo adicional. Os únicos objetos que tenho
na caixa são este ovo, aquele ovo e aquele outro. O que, então,
estou dizendo quando digo que 'o número de ovos na caixa é
três? Estou dizendo que se pode realizar uma operação com os
ovos de tal modo que, dada uma caixa vazia, posso acrescentar
este ovo, Oa, aquele ovo, OOa, e aquele outro, OOOa; e não
posso ir adiante. O número de ovos é equivalente à operação
OOOa, pois, quando realizo a operação de acrescentar um ovo
a um ovo, é lá que eu chego.
Proposições matemáticas, portanto, uma vez que não
representam objetos, não dizem nada sobre o mundo.É
importante não se confundir aqui. Por proposição matemá-
tica entendemos uma proposição da forma t'a+ a = 4", não
uma da forma "há três ovos na caixa". A última proposição é

88
As EQUAÇÔES DA :\,L\TEM,\TICA

empírica; ela distingue um estado da caixa de outro (o de ela


conter quatro ovos, por exemplo). Proposições matemáticas
podem ser usadas na discriminação entre estados de coisas
no mundo, mas as proposições em si mesmas, aquelas que
são assim usadas, não representam quaisquer desses estados
de coisas. Elas representam estágios na aplicação de uma
operação formal e estão internamente relacionadas entre si.
Em suma, elas são como tautologias; são puramente formais.
Em 6.22, Wittgenstein diz: "a lógica do mundo, que as pro-
posições da lógica mostram nas tautologias, a matemática
mostra nas equações".
A razão pela qual se perde isso de vista, pela qual é fácil
conceber as proposições matemáticas à maneira de Frege
(como representando objetos), é que a gramática obscurece
a forma lógica. A proposição "2 + 2 = 4", em outras palavras,
não exibe sua própria forma de maneira perspícua e é, por-
tanto, fácil concebê-la como uma asserção sobre os fatos.
Suponha, no entanto, que a escrevamos na forma "(1 + 1) +
(i + 1) = 1 + 1 + 1 + 1". Aqui, a relação entre o que está à esquerda
e o que está à direita do sinal de igualdade torna -se explícita.
Torna -se evidente que estamos diante de uma equação ( uma
, questão de sinais equivalentes), e não de uma proposição
no sentido normal. Ou, como Wittgenstein diz em 6.2321,
torna -se evidente que se pode determinar a correção dessa
proposição sem compará- la com os fatos.
Além disso, é importante perceber todas as implicações
desta última ideia. Equações matemáticas não dizem nada,
isto é, não dizem nada nem sobre o mundo nem sobre sua
própria forma. Assim, podemos determinar a correção de
"2 + 2 = 4" simplesmente com base no conhecimento do
significado de "2 + 2" e de "4". Isso, porém, não é dizer que
H. O. Mounce

"~ + ~ 4" diz que "~ + ~" significa o mesmo que "4". Devemos
=

lembrar o que Wittgenstein já disse sobre identidade, a saber,


que ela se mostra na operação dos sinais e não pode ser dita.
Ele faz uma afirmação semelhante em 6.~3~~: "é impossível
asserir a identidade de significado de duas expressões. Pois,
para poder asserir algo a respeito do significado delas, devo
conhecer seu significado, e não posso conhecer seu signifi-
cado sem saber se o que elas significam é o mesmo ou não".
Uma equação matemática não nos diz que os sinais que ela
contém são equivalentes entre si. Contudo, como ficará evi-
dente se pararmos para pensar, ela não precisa fazê-lo. Com
efeito, considere novamente "(1 + 1) + (1 + 1) = 1 + 1 + 1 + 1".
Não é preciso que nos digam que as expressões em ambos os
lados do sinal de igualdade são equivalentes; podemos vê-lo
por nós mesmos. Em outras palavras, equações matemáticas
mostram e não enunciam a equivalência do que contêm.
Essas ideias são resumidas pela proposição 6. ~34: "a ma -
temática é um método da lógica". Note-se que isso não é dizer
que a matemática é derivada de um conjunto de princípios
lógicos, que é o que Frege e Russell procuraram mostrar. No
entanto, há uma relação interna entre a matemática e a lógica.
Para Wittgenstein, a matemática não é derivada de qualquer
conjunto particular de proposições lógicas. Ela é um aspecto
da operação lógica fundamental pela qual qualquer proposi-
ção é derivada de outra.
C A PÍTU LO 6

Devemos agora nos voltar para o tratamento que Wittgenstein


confere a outro tipo de proposição contido em nossa lista;
devemos examinar o tratamento que ele confere às propo-
sições gerais. É evidente que proposições desse tipo são de
especial importância para a lógica, seja a lógica aristotélica,
seja a contemporânea. Afinal de, contas, foi a invenção fre-
geana de um expediente para quantificar proposições como
essas- (x) (fx); (3x) (fx) - que levou ao desenvolvimento da
lógica simbólica contemporânea.
Vimos que, para Wittgenstein, toda proposição pode ser
derivada de proposições elementares pelo que é fundamen -
talmente uma e a mesma operação. Como essa operação
produz proposições que têm a forma da generalidade? Al-
guém poderia estar tentado a dar uma explicação da seguinte
espécie. Considere a proposição "todos os ovos na cesta estão
quebrados" e suponha que existam três ovos na cesta. Nesse
caso, se este ovo, aquele ovo e aquele outro estão quebra-
dos, segue-se que todos os ovos na cesta estão quebrados.
A generalidade, pode-se dizer, é um produto lógico. "Todos
os ovos estão quebrados"» "Este ovo, e aquele ovo, e aquele
outro estão quebrados". Ou, se não é um produto lógico, é
uma soma lógica. Assim, "algum ovo na cesta está quebrado"
= "ou este ovo, ou aquele ovo, ou aquele outro está quebrado".

Alguém poderia supor, então, g:ue proposições gerais sejam


produzidas simplesmente pela conjunção ou disjunção de
enunciados particulares.

91
H. O. Mounce

Uma breve reflexão revelará, entretanto, que isso não


pode estar certo. Considere novamente a proposição "todos
os ovos na cesta estão quebrados". É evidente, se pensamos
um pouco, que isso não pode ser equivalente a "este ovo,
aquele ovo e aquele outro estão quebrados", pois, mesmo
que esses ovos estivessem quebrados, ainda assim, todos os
ovos na cesta só estariam quebrados se não houvesse nenhum
outro ovo na cesta. Dizer que um ovo particular está quebrado
nunca nos levará ao enunciado de que todos os ovos estão
quebrados, por maior que seja o número de enunciados
particulares, a menos que acrescentemos o enunciado de que
não existem outros ovos na cesta além daqueles particulares.
Podemos ir ainda mais longe. É possível saber que todas as
coisas na cesta estão quebradas sem saber de qualquer coisa
particular que ela está quebrada. Por exemplo, a cesta tem um
rótulo "maneje com cuidado", e um carregador desastrado
deixa- a cair sob a roda de um trem. Podemos estar certos de
que todas as coisas que a cesta contém estão esmagadas sem
que sejamos capazes de dizer uma das coisas particulares
que ela contém. No entanto, certamente, poderia ser dito,
o enunciado geral não pode ser verdadeiro a me~os que
algum produto de enunciados particulares seja verdadeiro.
Portanto, se todas as coisas na cesta estão esmagadas, então
algum enunciado da forma "a caixa de chá está esmagada e a
xícara está esmagada e o prato está esmagado ... " tem de ser
verdadeiro. Sem dúvida. Existem relações entre um produto
lógico e um enunciado geral. A questão, entretanto, é que
não se pode deduzir do enunciado geral qualquer produto
particular. Os enunciados geral e particular constituem
diferentes usos da linguagem. Eles estão relacionados, mas
são diferentes. Anos mais tarde, Wittgenstein expressou essa
GENERALIIlADE

ideia da seguinte maneira. Se uso a figura @] para dizer "o


círculo está no quadrado", a posição do círculo na figura não
desempenha papel algum no significado da própria figura.
Contraste-se isso com o seguinte uso:

A B C D

E] êJ ~
Aqui posso ler, pela posição do círculo na figura, sua posi -
ção no quadrado real. A questão; entretanto, é que @] não
pertence à sérieABCD ... de modo algum; trata-se de um uso
diferente de uma figura. EmABCD ... , é necessário levar em
consideração a distância entre o círculo e os lados do quadra -
do. Em@] a distância entre o círculo e os lados do quadrado
não tem nenhum significado, não mais do que as distâncias
entre as letras em "aRb". Poder-se-ia dizer que se@] está
correta, então alguma coisa na série ABCD ... também deve es-
tar correta. Certamente, mas qual está correta é uma questão
inteiramente contingente. Aquilo para o que se quer chamar
a atenção com @] é que podemos usá - la corretamente ainda
que não saibamos qual figura da série ABCD ... está correta.
Fiz referência a ideias que Wittgenstein defendeu em·
seus anos posteriores. E quanto às ideias que ele defendeu
na época do Tractatus? Penso que podemos estar certos, pelas
observações do próprio Wittgenstein sobre o tema, de que ele
não tinha clareza sobre esse assunto à época do Tractatus. O
que, entretanto, não é de modo algum fácil de determinar é
onde precisamente a faltahllareza se encontra.
À primeira vista, suas ideias parecem inteiramente con -
sistentes com as que ele adotou mais tarde. Em 5.5~1 ele diz:
H. O. M ourice

Separo o conceito todo das funções de verdade.


Frege e Russell introduziram a generalidade em cone-
xão com o produto lógico ou a soma lógica. Assim, tornou-
-se difícil entender as proposições "(3x) fx" e "(x)fx", em
que estão encerradas ambas as ideias.

O que está sendo sugerido, aqui, é que não se pode explicar a


generalidade por meio do produto lógico e da soma lógica, sendo
Frege e Russell criticados por tentar fazê- lo. Como, então, ela deve
ser explicada? Wittgenstein o faz por meio da função "[x", Em 5-5~
t
ele diz: "se os valores de são todos os valores de uma função fx
para todos os valores de x, então N({)= -(3x) fx". Como vimos,
o sinal "[" representa um conjunto de proposições. Portanto,
Wittgenstein está sugerindo que por meio da função fx estamos
de alguma maneira providos de um conjunto de proposições a
partir das quais se pode gerar uma proposição geral (-(3x) fx) por
meio da aplicação da negação conjunta. Além disso, a ideia é que
fx especifica proposições como um conjunto, isto é, sem percor-
rê- las uma a uma. Em outras palavras, quando dizemos "todos os ·
ovos na cesta estão quebrados", especificamos um conj-imto de
proposições, mas não chegamos a essa especificação percorrendo
as proposições individualmente. Mas como isso é possível? Qual é
a importância da referência à função fx? Duas outras observações
de Wittgenstein são relevantes aqui
5.5~3 O sinal da generalidade ocorre como um argu-
mento.
5-47 É claro que tudo que se possa em geral dizer de
antemão sobre a forma de todas as proposições de-
ve-se poder dizer de uma vez por todas.
Com efeito, em uma proposição elementar já
estão contidas todas as operações lógicas. Pois "[o"
diz o mesmo que

94
G EN ERALID ADE

"(3x) fx· x=a",


Onde há composição, há argumento e função, e
onde eles estão, já estão todas as constantes lógicas.

O que Wittgenstein quer dizer quando diz que o sinal da


generalidade ocorre como um argumento? Ele está se re -
ferindo, é claro, ao argumento de uma função, aquilo que
ocorre no lugar de x emfx, (x é gordo). Mas, se isso é o que
ele quer dizer com "argumento", como ele pode se referir
ao sinal da generalidade como .11m argumento? Seria com
certeza um contrassenso escrever, por exemplo,f (3x). Para
perceber o que ele quer dizer, considere (x) (fx). Aquilo a que
Wittgenstein está se referindo como o sinal da generalidade
não é o quantificador, mas o segundo x. O que ele quer dizer
é que a generalidade já está contida no x de fx. À luz disso,
a observação em 5.47 torna-se clara. Se considerarmos um
caso particular de fx como fa (ou Jb ou fc ... ) , veremos que ele
já contém uma certa generalidade. De fato, isso está envolvido
em dizermos que ele é um caso particular de fx; ele compartilha
com outros casos particulares uma forma comum ou geral.
Wittgenstein expressa isso dizendo que fa = (3x) fx·x = a (a é
gordo = existe algo que é gordo e esse algo é a). É por isso que
é um erro explicar a generalidade por meio de um produto
lógico (ou soma lógica),fa,Jb,fc, ... Dado que cada um desses
é um caso particular de fx, cada um deles já contém uma certa
generalidade. Nesse caso.icontudo, a generalidade não pode
ser ela mesma explicada por meio deles.
Segue-se, portanto, que fx contém a generalidade; a fun-
ção, poder-se-ia dizer, é um protótipo para um conjunto de
proposições -fa,Jb,fc etc. Entretanto, n~se caso, também
se segue que, se aplicamos a operação N(f) afx, estamos ao

95
H. O. M ourice

mesmo tempo aplicando-a às proposições para as quaisfx é


um protótipo; e o fazemos sem enumerar as proposições in-
dividualmente. Russell coloca a questão da seguinte maneira
em sua introdução ao Tractatus.

O método usado por Wittgenstein no tratamento das


proposições gerais ... difere de métodos anteriores
pelo fato de que a generalidade aparece apenas es-
pecificando o conjunto de proposições envolvidas e,
uma vez feita a especificação, a construção das fun-
ções de verdade prossegue exatamente como no caso
de um número finito de argumentos enumerados p,
q, r ....
Será útil insistir neste último ponto. Já vimos como, pela
aplicação da operação N ([) a uma base de proposições, podemos
desenvolver funções de verdade dessas proposições. Assim,
onde temos p, q como nossa base, obtemos N(p, q) - nem p
nem q - e com mais uma aplicação, N(N(p, q)) - ou P, ou q-; e
assim por diante. Ora, o que Wittgenstein tentou mostrar é que
exatamente o mesmo processo está envolvido no desenvolvi-
mento de proposições gerais. Assim, se negamos o conjunto
de proposições que formam os valores de fx, chegamos à pro-
posição que diz que fx é falsa para todos os valores de x, isto é,
-(3x) (fx). Se negamos essa proposição, obtemos "existe pelo
menos umx para o qualfx é verdadeira", isto é, (3x) (fx). Se
tivéssemos começado com 1x,
teríamos chegado, pela negação,
a "fx é verdadeira para todos os valores de x", isto é, (x) (fx).
Vemos, portanto, que o método para o desenvolvimento de fun -
ções de verdade permanece precisamente o mesmo tanto para
proposições gerais quanto para os outros tipos de proposições.
G ENERALIDA DE

Ora, isso era de grande importância para Wittgenstein.


Como ele diz em 5·4T "é claro que tudo que se possa em
geral dizer de antemão sobre a forma de todas as proposições
deve-se poder dizer de uma vez por todas". Tudo na lógica está
presente ao mesmo tempo: o que aparece posteriormente em
um sistema lógico já estava contido no que apareceu inicial-
mente. Ao defender essa ideia, Wittgenstein está preocupado
em mostrar, por exemplo, que a noção de negação que apare-
ce na lógica proposicional não é de um tipo diferente daquele
que aparece na lógica de predicados; não deve parecer que
existem duas lógicas em funcionamento. Além disso, parece
que isso precisa ser mostrado. À primeira vista, por exemplo,
não é evidente que o uso do sinal de negação é o mesmo em
-p, -(p v q) e (3x) -(fx). Wittgenstein traz à tona a ::_nidade
mostrando que se trata da mesma operação de N(t), que,
quando aplicada a p, q, produz uma proposição no cálculo
proposicional (-p · -q) e, quando aplicada afx, produz uma
proposição no cálculo de predicados, -(3x) (fx). Por que é
a mesma operação? Porque a única diferença repousa na
maneira pela qual nossas proposições de base são especifi-
cadas.No primeiro caso, elas são enumeradas, especificadas
individualmente; no segundo, elas são especificadas como
um conjunto. Em ambos os casos, no entanto, o que temos é
um conjunto de proposições a partir das quais geramos sua
negação conjunta por meio da operação N.
Pode agora parecer que Wittgenstein evitou o erro que
mencionamos anteriormente, a saber, o de explicar age-
neralidade em termos do produto lógico e da soma lógica.
Contudo, a questão está longe de ser tão clara quanto parece.
Russell, por exemplo, após descrever a ideia de Wittgenstein
na passagem que citamos, refere-se, na página seguinte,

97
H. O. Mourice

à "teoria do Sr. Wittgenstein acerca da derivação das pro-


posições gerais a partir de conjunções e disjunções". Ou
seja, pareceu a Russell que a ideia de Wittgenstein acerca
da generalidade era compatível com uma que explica age-
neralidade em termos do produto lógico e da soma lógica.
Russell talvez estivesse simplesmente enganado. Mas como
devemos interpretar a seguinte passagem da Gramática filo-
sófica de Wittgenstein, uma obra escrita alguns anos depois
do Tractatus? No tópico "Críticas à minha antiga concepção
de generalidade", Wittgenstein escreve:

Minha ideia acerca das proposições gerais era que


(3x) · Qx é uma soma lógica e que, embora não es-
tejam enumerados aqui, os seus termos podem ser
enumerados (com base no dicionário e na gramática
da linguagem). (1974b, p. ~68)

Penso que não pode haver muitas dúvidas de que Wittgenstein


está fazendo referência nessa passagem à ideia que ele de-
fendeu no Tractatus. No entanto, se esse é o caso, como essa
passagem é consistente com aquela do Tractatus em que ele
critica Frege e Russell por introduzirem a generalidade em
conexão com o produto lógico e a soma lógica? Como, de fato,
ela é consistente com a tendência geral de seu argumento
no Tractatus, no qual ele parece claramente defender que o
produto lógico e a soma lógica pressupõem a generalidade e
não podem, portanto, ser usados para explicá-la?
Para responder a essas questões, consideremos novamen -
te como, na Gramática filosófica, Wittgenstein caracterizou
sua ideia anterior. Ele defendeu, como nos diz, que (3x) · Qx
é uma soma lógica. Considere, porém, o que ele acrescenta:
ele não defendeu que seus termos são enumerados aqui.
G .EN .El\ALIDA DE

É esta última ideia que aponta para sua crítica a Frege e


Russell. Para chegar a (3x) (fx) não é preciso percorrer a
disjunção "fa, oujb, oufc ... "; mas não porque as duas sejam
logicamente distintas, e sim porque (3x) (fx) já faz esse traba-
lho. Frege e Russell estavam errados, não porque associaram
a generalidade ao produto lógico e à soma lógica, mas porque
introduziram a noção daquela maneira. Ao introduzirem a
noção em associação com o produto lógico e a soma lógica,
eles obscureceram o que é de vital importância, a saber, que
a disjunção "fa oujb oufc ... " apresenta casos particulares
de uma forma lógica comum e é, portanto, especificada por
(3x) (fx) como uma questão de lógica. Em suma, para que se
entenda a generalidade, deve-se começar percebendo como
(3x) (fx) necessariamente capta uma disjunção; não se de-
veria começar com uma disjunção e, então, tentar alcançar
a generalidade.
Isso, entretanto, é evidentemente consistente com a ideia
de que (3x) (fx) é uma soma lógica. Além disso, uma reflexão
posterior revelará que essa ideia é, na verdade, vital para toda
a posição de Wittgenstein no Tractatus. Como vimos, era im -
portante para Wittgenstein defender que a negação é a mesma
operação, quer apareça no cálculo proposicional, quer apa -
reça no cálculo de predicados. Contudo, para defender essa
ideia, ele também tem de defender que as diferenças entre o
seu uso no cálculo proposicional e no cálculo de predicados
consistem simplesmente na maneira pela qual são especifi-
cadas as proposições às quais a operação é aplicada. Assim,
está -se aplicando a operação N(f) a uma base de proposições
precisamente da mesma maneira, quer ela esteja sendo
aplicada ap, q ou afx, quer esteja sendo aplicada aN(p,q) ou
a-(3x) (fx). Nesse caso, porém, desconsiderando-se o modo

99
H . O. M ourice

de apresentação, não pode haver qualquer diferença entrefx e


(3x) (fx) e uma sequência de proposições,p, q, r ... , isto é, elas
devem ser respectivamente um produto lógico e uma soma
lógica. É por isso que, na Gramática filosófica, Wittgenstein
caracteriza sua ideia anterior dizendo que os termos de (3x)
(fx), embora não imediatamente enumerados, devem poder
ser enumerados, e ele quer dizer "sobre fundamentos pura -
mente lógicos", pois logo diz que eles podem ser enumerados
"com base no dicionário e na gramática da linguagem".
Está, portanto, claro que a ideia anterior de Wittgenstein
difere significativamente de sua ideia posterior. De acor-
do com sua ideia anterior, a verdade de (x) (fx) consiste
na verdade do produto lógico fa·fbfc ... De acordo com sua
ideia posterior, (x) (fx) e "fa·Jbfc ... " são usos diferentes da
linguagem, sendo uma questão contingente a de saber, dada a.
verdade de (x) (fx), qual produto lógico deve ser enumerado.

100
CAPÍTULO 7
.,,._ .
d a ciencia
Será útil se agora considerarmos a generalidade sob um aspecto
diferente, considerando a generalidade envolvida na ciência.
Como vimos, há, para Wittgenstein, uma distinção absoluta
entre a generalidade da lógica e o que ele chama de generali -
dade acidental. Ele retorna a essa ideia na proposição 6.3. "A
pesquisa da lógica significa a pesquisa de toda legalidade. E fora
da lógica tudo é acidental". Isso, no entanto, poderia parecer
apresentar um problema para Wittgenstein, pois como ele dará
conta das leis científicas, tais como aparecem, digamos, na
física? À primeira vista, essas podem parecer não se encaixar
nem na categoria do logicamente necessário nem na catego-
ria do acidental. Para compreender a ideia de Wittgenstein,
precisamos começar considerando as seguintes proposições:
6.31 A assim chamada lei da indução não pode,
de modo algum, ser uma lei lógica, pois é ob-
viamente uma proposição com sentido. - E por
isso não pode também ser uma lei a priori.

6.363u Que o Sol se levantará amanhã é uma hipó-


tese; e isso significa que não sabemos se ele se
levantará.

6.37 Não há compulsão em virtude da qual, por-


que algo aconteceu, algo mais deva acontecer.
Só há necessidade lógica.

Por "a chamada lei da indução" Wittgenstein se refere à


ideia de que o que ocorrerá no futuro se conformará ao que

101
H. O. Mounce

foi experienciado no passado. Essa, ele diz, não é uma lei


da lógica, pois tem um sentido. Com isso ele quer dizer que
ela afigura um estado de coisas possível e, portanto, dife-
rentemente das leis da lógica, abre espaço para estados de
coisas possíveis que a tornariam falsa. É por isso que ele diz
que é uma hipótese que o Sol se levantará amanhã. Se ela é
verdadeira ou não, depende do que o amanhã nos trará. Há
um sentido, portanto, em que não podemos saber se ela será
verdadeira. Isso porque a evidência de que dispomos para
supor que seja verdadeira não pode incluir o que a tornará
verdadeira ou falsa, e, embora haja, é claro, relações entre
eventos, nenhuma delas é necessária. Se um evento, por
exemplo, ocorre antes ou depois de outro, ele poderia não
ter ocorrido dessa maneira. Isso leva Wittgenstein à sua
concepção das leis da natureza.

6.371 Toda a moderna visão do mundo está fundada na


ilusão de que as chamadas leis naturais são as expli -
cações dos fenômenos naturais.

Assim, as pessoas de hoje detêm-se diante das


leis naturais como diante de algo intocável, como os
antigos diante de Deus e do Destino.
E ambos estão certos e estão errados. Os antigos,
porém, são mais claros, na medida em que reconhe-
cem um termo frnal claro, enquanto, no caso do novo
sistema, é preciso aparentar que está tudo explicado.

A ideia de Wittgenstein é que, se falamos em leis da na -


tureza, deveria ficar claro que não estamos falando de como
as coisas devem ser, mas de como ocorre que elas são. Por
exemplo, dizer que "o fogo queima" é uma lei da natureza é,

10~
As LEIS DA CIÊNCIA

em si mesmo, não explicar nada; não acrescentamos nada


ao enunciado de que o fogo queima. As leis da natureza, em
poucas palavras, resumem a experiência; elas não a explicam.
Com isso, Wittgenstein não quer dizer, é claro, que a ciên-
cia não explica as ocorrências naturais em nenhum sentido.
Pode-se explicar o fato de que o fogo queima no sentido de
ligá- lo a outros fatos, e, em particular, a outras regularidades.
Uma breve reflexão revelará, entretanto, que, ao fazê-lo, dei-
xam -se os outros fatos, ou as outras regularidades, inexpli-
cados. É claro que se pode explicar esses outros fatos, por sua
vez, ligando-os a outros fatos. No entanto, ou esse processo
é infinito e, portanto, nunca pode ser concluído ou existe
algum conjunto de fatos últimos e, portanto, inexplicáveis.
De qualquer maneira, é impossível explicar tudo. Por essa
razão, os antigos, quando explicavam as ocorrências naturais
referindo-se, em última instância, à vontade de Deus, eram,
sob um aspecto, mais claros do que os modernos, pois eles
eram claros quanto a suas explicações repousarem sobre
algo que eles mesmos não podiam explicar e, portanto, não
estavam iludidos em supor que poderiam explicar tudo.
O que temos até aqui, então, na explicação de Wittgenstein,
é uma asserção vigorosa da ideia de que a física tem como
objeto o acidental ou, melhor, o contingente. As leis da na-
tureza nos dão um sumário do que descobrimos ser o caso.
Uma contingência pode estar ligada a outra, mas o processo
assim ligado permanece puramente contingente. A questão,
todavia, não para por aí, pois Wittgenstein pretende mostrar
que existem alguns aspectos da ciência que requerem um
tratamento diferente. Por exemplo, na proposição 6.3~, ele
diz: "a lei de causalidade não é uma lei, mas a forma de uma
lei". Por" a lei de causalidade" ou, como ele às vezes a chama,

103
H. O. Mounce

"o princípio de razão suficiente", Wittgenstein se refere ao


enunciado de que tudo tem uma causa. Este, ele sugere, não
é uma lei, mas a farma de uma lei. Com isso ele quer dizer
que aquele, na verdade, não é um enunciado, isto é, que ele
não diz nada sobre o mundo. Será de grande ajuda para a
compreensão dessa ideia considerarmos a proposição 6.3611:

( ... )quando se diz, por exemplo, que nenhum de dois


eventos (que se excluem mutuamente) pode ocorrer,
por não haver nenhuma causa por que devesse ocor-
rer um em vez do outro, trata -se, realmente, de não
sermos capazes de descrever um dos dois eventos na
ausência de algum tipo de assimetria. E se há uma
tal assimetria, podemos entendê- la como causa da
ocorrência de um e da não ocorrência do outro.

Para perceber o que Wittgenstein quer dizer aqui, suponha


que eu diga: "não choverá hoje à noite porque não choveu
na noite passada, e as condições são exatamente as mes-
mas". Agora suponha que de fato chova. Diante disso, tenho
agora de admitir ou que as condições não são exatamente as
mesmas ou que algo aconteceu sem uma causa. A ideia de
Wittgenstein, a meu ver, é que os fatos nunca podem nos
forçar a adotar a última alternativa. Em outras palavras, nunca
podemos ser forçados a dizer que algo aconteceu sem uma
causa porque sempre podemos supor que existe uma dife-
rença entre as condições sob as quais dois eventos ocorrem.
Por quê? Porque na medida em que podemos distinguir um
evento de outro, na medida em que sabemos que existem dois
eventos, tem de haver alguma diferença entre eles, e podemos
.sempre tratar essa diferença como a causa da ocorrência de
As LEIS DA CIÊNCIA

um e da não ocorrência.do outro. Por essa razão, "tudo tem


uma causa" não é realmente um enunciado sobre o mundo.
Dizer que A tem uma causa pode, à primeira vista, parecer
dizer algo definido sobreA, mas, na verdade, dizê-lo é não
dizer absolutamente nada, pois qualquer diferença pode ser
tratada como uma causa; eA, na medida em que simplesmen-
te é uma coisa distinta, está fadado a diferir de outras coisas.
Essa ideia pode ficar mais clara por meio de um exemplo
que Wittgenstein usou muitos anos depois. Suponha que
peguemos duas sementes, uma da planta A e a outra da planta
B, uma planta de um tipo diferente. Quando examinamos as
sementes, não vemos nenhuma diferença entre elas, mas,
quando as colocamos sob o solo, cada uma se transforma
em uma planta do tipo de que ela veio. De início, deverí-
amos supor que existe uma diferença entre as sementes;
nós apenas não a detectamos. No entanto, suponha que
isso acontecesse continuamente e nunca achássemos uma
diferença. Poderíamos acabar desistindo de procurar uma
diferença nas sementes. A ideia de Wittgenstein, contudo,
é que isso não significa que precisaríamos desistir de falar
em causas. Por exemplo, poderíamos agora tratar a origem
como a causa. Esta semente cresce desta maneira porque vem
de tal e tal planta; a outra cresce diferentemente porque vem
de uma planta de um tipo bastante diferente. Assim, as duas
sementes, simplesmente por serem duas, devem diferir
entre si em algum aspecto - na posição, talvez, ou na origem
-, e não há nada na lógica que nos impeça de tratar qualquer
diferença existente como a causa de certos eventos.
Ora, é claro que, no momento, pode parecer-nos bastante
arbitrário que as origens das sementes, em vez de algumas
diferenças nelas mesmas, deveriam ser tratadas como cau-

105
H. O. Mounce

sas. Isso, porém, simplesmente indica a atração que uma


forma particular de explicação exerce sobre nós. Se A e B têm
efeitos diferentes, esperamos uma diferença em A e B. Mas
isso ocorre porque usualmente encontramos essa diferença.
Não há nenhuma prova na lógica de que as coisas devam ser
assim. Imagine os fatos mudando e torna-se fácil imaginar
nossa adoção de um esquema de explicação muito diferente.
Assim, "tudo tem uma causa" não nos diz nada sobre
o mundo. O que nos diz algo, o que é uma questão de fato,
é que atribuímos causas do modo como o fazemos, isto é,
desta maneira, oposta a alguma outra.Na época do Tractatus,
Wittgenstein expressou isso dizendo que "tudo tem uma cau -
sa'' nos dá a forma de uma lei, não nos diz o que de fato ocorre.
Em sua obra posterior, ele viria a expressar isso dizendo que
a proposição expressa algo que pertence ao nosso método de
representação, e não aos fatos que são representados. "Tudo
tem uma causa" nos dá uma regra para representar os fatos.
Dada a ocorrência de um certo evento, devemos ligá - lo à
ocorrência de outro. Ela, contudo, não nos diz quais liga -
ções de fato existem. Nessa época posterior, Wittgenstéin
sustentou que uma teoria científica pode ser comparada, em
certos aspectos importantes, com um mapa. Como um mapa,
o objetivo de uma teoria não é asserir algo sobre os fatos, e
sim apresentá- los de uma maneira perspícua. Também como
um mapa, uma teoria conterá elementos que não são empíri -
cos, mas não porque esses elementos sejam asserções sobre
algum outro mundo que não o empírico. Pelo contrário, eles
simplesmente não são asserções, mas pertencem ao aparato
pelo qual os fatos do mundo são representados. Assim, dois
mapas podem usar símbolos muito diferentes, digamos,
para uma cidade ou uma ferrovia, e, ainda assim, apresentar

106
As LEIS DA clÊNCIA

essencialmente os mesmos fatos. Os símbolos pertencem à


maneira pela qual os fatos são representados.
Essa concepção já está presente, em muitos de seus traços
essenciais, no Tractatus, embora aqui ele use uma analogia
diferente. Na proposição 6.341, ele nos apresenta uma analo-
gia para a mecânica newtoniana pedindo- nos para imaginar
uma rede quadriculada fina recobrindo uma superfície bran -
cacheia de manchas pretas irregulares. A distribuição das
manchas pode ser descrita por meio da rede. Dizemos, por
exemplo, "primeiro quadrado, branco; segundo quadrado,
uma mancha preta, etc.". Agora, é evidente que se poderia ob-
ter uma descrição igualmente precisa por meio de uma rede
bastante diferente - digamos, uma rede triangular. Elas são
meramente formas diferentes de representação, diferentes
sistemas para descrever o mundo. A mecânica newtoniana
constitui apenas um desses sistemas. Dizer que o mundo
é tal que se pode descrevê-lo pela mecânica newtoniana é
tão pouco informativo quanto dizer que se pode descrever
a superfície branca por meio de uma rede quadriculada.
Isso porque existem inúmeros outros sistemas pelos quais
se pode descrever o mundo, assim como se pode descrever
a superfície branca não só por uma rede quadriculada, mas
também por uma rede triangular ou hexagonal.
Para alguns, isso pode parecer uma espécie de convencio-
nalismo, como se Wittgenstein estivesse dizendo que os fatos
do mundo são determinados pelas teorias que sustentamos
acerca deles. Entretanto, se refletirmos, ficará bastante
evidente que Wittgenstein não está dizendo nada disso. Para
percebê-lo, basta reconsiderar a analogia. É evidente que
os fatos são independentes de nossas teorias e que isso se
revelará de pelo menos duas maneiras. Em primeiro lugar,
H. O. Mounce

embora as manchas sobre a superfície possam ser repre-


sentadas de inúmeros modos, nem todas as maneiras de
representá-las serão igualmente úteis. Como Wittgenstein
diz, as manchas podem estar distribuídas de tal maneira, por
exemplo, que seja muito mais difícil descrevê-las por meio
de uma rede triangular de malhas mais grossas do que por
meio de uma quadricular de malhas mais finas. Em segundo
lugar, mesmo que nossa escolha da rede fosse inteiramente
convencional, ainda assim a descrição que fizéssemos por
meio dela não seria uma questão de convenção. Com efeito,
suponha que escolhamos uma rede quadriculada. Ora, que
seja correto dizer, quando essa rede é aplicada à superfí-
cie, "primeiro quadrado, branco" ou "primeiro quadrado,
mancha preta" não é algo que nossa escolha nos permitirá
determinar. No que diz respeito à nossa escolha, qualquer
dessas descrições pode estar correta. O que é de fato correto
só pode ser determinado pelos fatos. Como diz Wittgenstein:

AP, leis da física, com todo seu aparato lógico,


ainda falam, mesmo que indiretamente, dos ob-
jetos do mundo.

6.34~ ( ... ) a possibilidade de descrever o mundo por


meio da mecânica newtoniana não nos diz nada
sobre o mundo; mas o que nos diz algo sobre ele
é a maneira precisa pela qual se pode descrevê-
-lo por aquele meio. Também nos diz algo sobre
o mundo o fato de que se pode descrevê- lo mais
simplesmente por meio de uma mecânica que
por meio de outra.

108
As LEIS DA CIÊNCIA

A ideia, portanto, é que a ciência é uma mistura do em-


pírico e do não empírico. Se estamos inclinados a conceber
o enunciado científico como não contingente, isso se deve
ao fato de nos determos sobre seus elementos não empíri -
cos - "tudo tem uma causa", por exemplo. O grande erro,
entretanto, é supor que esse elemento não empírico trata dos
fatos.Na medida em que dizem alguma coisa sobre o mundo,
os enunciados da ciência são contingentes. Na medida em que
não são contingentes, eles não dizem nada sobre o mundo,
mas meramente refletem métodos para representá- lo.
6.35 Embora as manchas em nossa configuração se-
jam figuras geométricas, é evidente que a geometria
não pode dizer rigorosamente nada a respeito da
forma e posição que de fato possuam. A rede, con -
tudo, é puramente geométrica; todas as suas pro-
priedades podem ser especificadas a priori.
Leis como o princípio de razão, etc., tratam da
rede, não do que a rede descreve.

Será conveniente neste ponto se dissermos alguma coisa


sobre o tratamento que Wittgenstein confere à probabilidade.
Para Wittgenstein, uma expressão ordinária de probabilidade
não é uma questão de lógica. Por "uma expressão ordinária de
probabilidade" refiro-me a um enunciado como o seguinte:
"ele costuma ser pontual, por isso, se disse que estará aqui
às 17 h, ele provavelmente estará aqui a tempo". Probabilidade
dessa espécie, que nos dá uma indicação do que ocorrerá,
é uma questão, não de lógica, mas de psicologia. Com isso,
Wittgenstein não quer dizer que é ilógico fazer uma afirmação
como essa, isto é, que ela entra em conflito com a lógica, mas
que essa simplesmente não é uma questão lógica ( ou ilógica).
H. O. M ourice

Isso porque a lógica nada tem a ver com os fatos, com o que
ocorrerá ou não ocorrerá. Consequentemente, se estamos
inclinados a acreditar que uma determinada coisa acontecerá
em vez de outra, essa é uma questão de psicologia. Em outras
palavras, é uma questão do que estamos inclinados a acreditar,
como resultado, por exemplo, de experiências passadas, do
que vimos acontecer.
Na medida em que é uma questão de lógica, a probabilida-
de diz respeito simplesmente à inter-relação de fundamentos
deverdade. "Em si mesma", dizWittgensteinem5.153, "uma
proposição não é nem provável nem improvável. Um evento
ocorre ou não ocorre, não há meio-termo". Isso significa
dizer que a probabilidade não representa nada no mundo.
"Não há um objeto particular que seja próprio das proposi-
ções probabilísticas" (5.1511). Assim, se não é uma questão
de como nossas atitudes estão guiadas, ela só pode ser uma
questão de como os fundamentos de verdade de proposições
relacionam-se entre si. Wittgenstein explica a relação entre
probabilidade e fundamentos de verdade em 5.15.

Se Vr é o número dos fundamentos de verdade de


uma proposição "r", e se Vrs é o número dos funda -
mentos de verdade de uma proposição "s" que são
também fundamentos de verdade de "r", então po-
demos chamar a razão Vrs : Vr de medida da probabi-
lidade que a proposição "r" confere à proposição "s".

Para perceber o que Wittgenstein quer dizer, considere-


mos, primeiro, proposições elementares. Que grau de pro-
babilidade uma proposição elementar confere a outra? Uma
vez que proposições elementares são independentes entre
si, não pode haver qualquer inter-relação entre fundamen-

llO
As LEIS DA

tos de verdade. Em outras palavras, dadas duas proposições


elementares, cada alternativa é tão provável quanto a outra.
Consequentemente, duas proposições elementares conferem
uma à outra½ de probabilidade.
Consideremos agora duas proposições complexas "p e q"
e "p ou q", cujas constituintes são elementares.
p q peq pouq
V V V V
F V F V
V F F V
F F F F

Comecemos vendo que grau de probabilidade "p e q" confe-


re a "p ou q". Para ver isso, temos que olhar para os fundamen-
tos de verdade que elas têm em comum (Vrs) e também para
os fundamentos que "p e q" tem sozinha (Vr). As proposições
têm somente um fundamento de verdade em comum (VV), e
"p e q", ela mesma, tem somente um fundamento de verdade,
ambos coincidindo. Assim, a razão de Vrs para Vr é 1/i. Em
outras palavras, "p eq" confere a "p ouq" a probabilidade 1, que
é o que deveríamos esperar, já que a primeira implica a última.
Vejamos agora como essa relação se dá na outra direção,
considerando que grau de probabilidade "p ou q" confere a "p
e q". Já vimos que essas proposições têm somente um funda -
mento de verdade em comum. Os fundamentos que "p ou q"
tem sozinha são três. A razão de Vrs para Vr é, portanto, 1/3 e
esse é o grau de probabilidade que "p ou q" confere a "p e q".
Compreendemos, portanto, pelo capítulo como um todo, que
Wittgenstein, em seu tratamento dos enunciados científicos,
mantém consistentemente sua distinção rigorosa entre ques-
tões de lógica e questões de fato.

lll
CAPÍTULO 8

Dissemos, perto do final do último capítulo, que expressões


ordinárias de probabilidade (como as denominei) são uma
questão de psicologia, do que as pessoas estão inclinadas a
acreditar. Além disso, como enfatizamos, isso não significa
que esses enunciados sejam tolos ou incoerentes. No entan-
to, isso suscita uma questão importante: como enunciados
psicológicos, supondo que sejam coerentes, encaixam-se na
explicação de Wittgenstein? À primeira vista, parece haver
uma dificuldade. Considere a proposição "Henrique acredita
que está chovendo". A peculiaridade dessa proposição é que
sua verdade ou falsidade parece não depender da verdade ou
falsidade de seus constituintes. Para ver isso, consideremos
a última parte da frase: "está chovendo". Isso pode ser ver-
dadeiro e pode ser falso sem afetar a verdade ou a falsidade
da proposição como um todo. Por exemplo, poderia ser falso
que está chovendo e ainda ser verdadeiro que Henrique
acredita que está chovendo; e poderia ser falso que Henrique
acredita que está chovendo e ainda ser verdadeiro que está
chovendo. Isso, contudo, para alguém que aceita a explicação
do Tractatus, poderá parecer bastante problemático, pois, de
acordo com o Tractatus, é essencial para uma proposição que
ela seja uma função de verdade de proposições elementares.
Ora, isso significa precisamente que a verdade ou a falsidade
das proposições constituintes deveria determinar a verdade
ou a falsidade da proposição como um todo. O que, então,
Wittgenstein tem a dizer sobre proposições desse tipo?

113
H. O. Mounce

5.54~ É claro, porém, que "A acredita que p", "A


pensap'', "A dizp", são da forma "'p' diz p"; e isso
não envolve uma correlação de um fato com um
objeto, mas a correlação de fatos por meio da cor-
relação de seus objetos.

Ajudará na elucidação dessa proposição se começarmos


com esta última parte: " ... '"p' diz p". E isso não envolve uma
correlação de um fato com um objeto, mas a correlação de
fatos por meio da correlação de seus obj etos", Para ver o que
isso significa, basta nos lembrarmos de duas proposições que
já consideramos.
Fica muito clara a essência de um sinal propo-
sicional quando o concebemos composto por ob-
jetos espaciais (digamos: mesas, cadeiras, livros)
em vez de sinais escritos.
A configuração espacial dessas coisas expri-
me, nesse caso, o sentido da proposição.
3.143~ Em vez de "o sinal complexo 'aRb' diz que a
mantém a relação R com b" deveríamos dizer "o
fato de que 'a' mantém uma certa relação com 'b'
diz que aRb".

Como vimos, o que Wittgenstein está enfatizando aqui é


que a relação entre uma proposição e seu sentido não é como
a relação entre um nome e o objeto ao qual ele, enquanto seu
representante, corresponde. Uma proposição tem sentido
porque é um arranjo de sinais que, no contexto do arranjo,
correspondem a objetos, mas o sentido da proposição não é
um outro objeto, e sim aquilo que se mostra quando os sinais
estão dispostos de uma maneira em vez de outra. Assim, não
Gm:Nç:A

se pode explicar a diferença de sentido entre "aRb" e "blia"


em termos dos objetos aos quais elas correspondem; ambas
correspondem exatamente aos mesmos objetos. Elas diferem
em sentido porque afiguram diferentes configurações de
objetos e fazem isso porque, em cada uma delas, os sinais
para esses objetos estão arranjados diferentemente. Como
Wittgenstein o expressa nos Cadernos, "fatos são simboliza -
dos por fatos, ou, mais corretamente: o fato de que algo é o
caso no símbolo diz que algo é o caso no mundo".
Ora, Wittgenstein insiste precisamente nessa ideia na
última parte da proposição 5.54~.Aproposição "p" é um fato,
um conjunto de sinais. O sentido de "p" não é um objeto ao
qual aquele fato, aquele conjunto de sinais, corresponda. Ou
seja, ele não envolve a correlação de um fato com um objeto.
A proposição diz algo e, portanto, pode selecionar um fato no
mundo porque ela mesma está correlacionada com o mundo
por meio dos objetos, os sinais, que a compõem.
A última parte de 5.54~ é, portanto, relativamente sim-
ples, dado o que já consideramos. O que é mais difícil é a pri -
meira parte da proposição, Em outras palavras, a dificuldade
repousa, não no que Wittgenstein diz sobre "'p' diz p", mas
no que ele diz acerca da relação disso com "A acredita que p"
ou "A diz que p". Como "'p' diz p" pode ser equivalente a "A
acredita que p "? Ou, para colocá- lo de outra maneira, como
"Henrique acredita que está chovendo" pode ser equivalente
a "'Está chovendo' diz que está chovendo"? A verdade é que
não podem ser equivalentes. A explicação de Wittgenstein é
enganosamente elíptica. O que Wittgenstein está nos dando
não é uma explicação exaustiva de "A acredita que p", mas
simplesmente uma pista para essa explicação. A pista é que
a relação entre o pensamento (ou a crença) de A e aquilo de
H. O. Mounce

que aquele pensamento é um pensamento é a mesma que a


relação existente entre a proposição "p" e o que ela diz.
Para ver como isso pode ser esclarecedor, será útil exa-
minar a explicação da noção de crença que Russell havia
apresentado alguns anos antes de o Tractatus ter sido escri -
to. Russell havia argumentado que, se um homem acredita
que A ama B, isso envolve uma relação entre ele, A, amor e
B. Wittgenstein objetou a essa ideia argumentando que ela
permitia que se acreditasse em um contrassenso. Considere
"esta mesa porta-caneta o livro". Se isso não pode ser objeto
de crença, não é porque não se possa ter conhecimento direto
(be acquainted) dos elementos que o constituem. Na verdade,
não é nem mesmo evidente na explicação de Russell por que
ele pode distinguir entre a crença de que A ama B e a crença
de que B ama A, pois os elementos envolvidos são os mesmos
em ambos os casos. Para Wittgenstein, o que quer que seja
aquilo com o que me relaciono na crença, o que quer que eu
tenha em mente quando creio, isso deve possuir estrutura
ou sentido. É por isso que ele insiste em que a crença de A
envolve "p", isto é, um fato que tem forma ou estrutura lógica.
Ora, isso significa que o objeto da crença de um homem,
aquilo em que ele acredita, não pode, de modo algum, ser um
objeto no sentido ordinário. A relação entre o pensamento
(ou crença) de um homem e aquilo de que o pensamento é
um pensamento não é uma relação externa, como pensou
Russell, mas interna, como a relação entre a proposição "p"
e o que ela diz. Essa é uma ideia especialmente difícil de se
entender quando se discutem as chamadas atitudes propo-
sicionais. Considere "A acredita que aRb". Existe uma forte
tentação para se sustentar que aquilo em que A acredita não
é nem o estado de coisas, pois o estado de coisas pode não

116
ocorrer, nem os meros sinais, mas uma terceira entidade, a
saber, a proposição que é expressa pelos sinais. A "proposi-
ção", aqui, parece figurar como um objeto distinto que está
empiricamente relacionado à crença do homem. A ideia de
Wittgenstein é que isso é um engano. Acreditar que aRb é
apenas ter em mente (ou proferir) os sinais "aRb" em seu
arranjo lógico.
Para compreender a ideia de Wittgenstein em maior
detalhe, consideremos "A diz que p" em vez de "A acredita
que p". O problema é o mesmo em ambos os casos, mas o
primeiro pode ser abordado mais facilmente. Para que seja
verdadeiro que A diz que p, é evidente que algo tem de ser
verdadeiro de A. Essa é a parte da análise que Wittgenstein
omite inteiramente. Talvez ele a julgasse muito óbvia para ser
mencionada. Se é verdade que A diz que p, tem de ser ver-
dadeiro deA que ele diz: "p". Mais estritamente: tem de ser
verdadeiro de A que ele diz "p", ou algum outro conjunto de
sons cuja estrutura tenha a mesma significação lógica. E "p"
diz que p. Portanto, podemos dizer que, para Wittgenstein,
A diz que p = A diz "p" e "p" diz que p.
No entanto, é de vital importância compreender agora que
o" diz" na frase acima marca dois tipos bastante diferentes de
relação. No primeiro, A diz "p", a relação é externa ou empí-
rica, ela indica o proferimento de certos sons que estão em
um certo arranjo lógico; no segundo, "p" diz que p, a relação é
interna. Isso é algo que a professoraAnscombe, por exemplo,
parece perder de vista em sua introdução ao Tractatus. Ela
pensa que a relação entre "p" e o que isso diz, como a relação
entre A e os sons que ele profere, é inteiramente empírica,
pois, ela diz, "p" poderia não dizer que p. Poderíamos, por
exemplo, ter atribuído a esses sinais um uso muito diferente,
H. O. M ourice

e, nesse caso, eles teriam uma significação diferente. Mas o


que, precisamente, isso quer dizer? É verdade que os sons
"p" poderiam ter sido usados de maneira diferente. Os sons
ou as palavras "está chovendo", por exemplo, poderiam não
ter tido o uso que têm na língua portuguesa. Dado, no entanto,
que eles têm o uso que têm, é agora uma questão contingente
que eles digam que está chovendo? O mesmo se aplica a "p".
Wittgenstein está evidentemente pensando nesses sons como
proferidos de acordo com as regras para seu uso na lingua -
gem. É uma questão empírica, certamente, que eles sejam
proferidos assim. No entanto, quando proferidos assim,
não é uma questão empírica adicional que eles digam que p.
Deveria ser agora possível apresentar por completo a ideia
de Wittgenstein. Poderíamos expressá-la dizendo que, quan-
do nos é dito "A diz que p", nos é mostrado o que A diz, o que
ele assere sobre o mundo, ao nos ser dito o que ele profere.
Ou ainda, se nos é dito "A acredita que p", nos é mostrado
aquilo em que A acredita ao nos ser dito quais figurações
ocorrem a ele. Isso não é tão complicado quanto parece. A
ideia é simplesmente que B pode nos comunicar o que A diz
(ou pensa) simplesmente nos dizendo que sons ele profere.
Como isso é possível? Bem, primeiro, porque essas palavras
possuem forma lógica e, segundo, porque, uma vez que nós
mesmos dispomos de uma apreensão da forma lógica, isto é,
entendemos uma linguagem, não é necessário que nos seja
dito o que elas dizem; nós mesmos podemos compreendê-lo.
O relato de B difere de um enunciado normal, é claro, na
medida em que alguns dos sinais nele contidos são men -
cionados em vez de usados. Ainda assim, ele é claramente
verdadeiro ou falso, na medida em que A poderia não ter
proferido o que B diz que ele proferiu (ou ter tido em mente

u8
CRENÇA

o que B diz que ele teve). Além disso, onde o relato não fun-
ciona empregando diretamente a linguagem verifuncional,
ele funciona apresentando o que se mostra em tal emprego, de
modo que se pode explicar um relato desse tipo sem que seja
preciso ir além daquilo com o que o Tractatus se compromete.
CAPÍTULO 9
Solipsismo

Será agora conveniente considerar o que Wittgenstein tem


a dizer sobre algumas outras noções da psicologia, especial-
mente sobre a noção do eu. Wittgenstein introduz parte desse
material no que ele diz sobre "A acredita que p". O efeito, me
parece, foi confundir alguns comentadores e, através deles,
seus leitores, pois aqueles supõem que não se pode entender
o que Wittgenstein diz sobre "A acredita que p" sem que se
considere o que ele diz sobre o eu. Isso, contudo, não está
correto. Os temas se tocam só num certo ponto e, dada sua
complexidade, considerá-los juntos gera confusão.
Em 5.54~1, imediatamente após considerar proposições
da forma "A acredita que p", Wittgenstein diz:

Isso também mostra que não há tal coisa como a


alma - o sujeito, etc. - tal como entendida na psico-
logia superficial de hoje em dia.
Uma alma composta não seria mais uma alma.

Para entender o que isso significa, consideremos de novo


"A acredita que p". Isso, diz Wittgenstein, é da forma '"p'
diz que p". No entanto, como vimos, isso não significa que,
em uma análise adequada de "A acredita que p", A não seja
sequer mencionado, o verdadeiro sujeito sendo "p". Aquilo
a que Wittgenstein está objetando não é a ideia de que A seja
o sujeito, mas a ideia de que a alma de A seja o sujeito, a alma
de A sendo concebida de um certo modo, a saber, como uma
entidade não composta. Mas por que ele acredita que sua
H. O. Mounce

própria análise mostra que não se pode conceber o sujeito de


"A acredita que p" dessa maneira? A resposta é que a análise
de Wittgenstein de "A acredita que p" envolve ele dizer que
ocorrem a A certos elementos psicológicos que possuem
forma lógica e que, portanto, afiguram ou mostram um estado
de coisas possível. No entanto, para que possuam forma ou
estrutura lógica, esses elementos psicológicos devem possuir
complexidade. Consequentemente, o sujeito de "A acredita
que p" não pode ser a alma deA, isto é, alguma entidade não
composta. É fácil ver como isso leva a uma concepção do eu
comparável à de Rume. Meu eu não é uma entidade simples;
é um aglomerado de elementos psicológicos. Esses elemen -
tos estão relacionados, não com uma entidade simples que
subjaza como que por trás deles, mas com outros elementos
psicológicos que ocorreram antes ou que ocorrerão depois.
Eu sou apenas este corpo com aquela história mental. Essa
concepção, ou algo parecido com ela, é o que Wittgenstein
parece estar sugerindo, ao menos em uma primeira leitura
(como veremos, ela se torna mais complicada depois).
Nada disso, é claro, implica que A não seja o verdadeiro
sujeito de "A acredita que p"; isso apenas esclarece o que
temos de considerar como A, o sujeito. Até aqui, as coisas
parecem relativamente simples. Entretanto, elas se tornam
consideravelmente menos simples quando, em uma seção
posterior, Wittgenstein reintroduz a noção do eu em uma dis-
cussão sobre o solipsismo. Essa seção, que vai da proposição
5.6 à proposição 6, é, a meu ver, a mais obscura do Tractatus,
e eu mesmo estou muito longe de entendê-la por completo.
Vejamos, entretanto, o que podemos fazer dela, começando
com uma seleção de suas proposições.
SoLIPSISM.o

5. 6 Os limites de minha linguagem significam os li -


mites de meu mundo.

5. 6i A lógica permeia o mundo; os limites do mun -


do são também seus limites.

Na lógica, portanto, não podemos dizer: há no


mundo isso e isso, aquilo não.

Isso pareceria pressupor que excluímos certas


possibilidades, o que não pode ser o caso, pois, se
pudesse, a lógica deveria ultrapassar os limites do
mundo; pois somente assim ela poderia observar
esses limites também do outro lado.

Não podemos pensar o que não podemos pen-


sar; portanto, tampouco podemos dizer o que não
podemos pensar.

5.6~ Essa consideração fornece a chave para se


decidir a questão de saber em que medida o so-
lipsismo é uma verdade.

O que o solipsista quer dizer é inteiramente


correto; apenas é algo que não se pode dizer, mas
que se mostra.
O mundo é o meu mundo: isso se mostra no
fato de que os limites da linguagem (a linguagem
que, só ela, eu entendo) significam os limites de
meu mundo.
5.6~1 O mundo e a vida são um só.

5.63 Eu sou meu mundo. (O microcosmos.)


H. O. Mounce

5.631 Não há tal coisa como o sujeito que pensa, re-


presenta(. .. )
5. 63~ O sujeito não pertence ao mundo; ele é um li-
mite do mundo.

5.633 Onde no mundo se pode encontrar um sujeito


metafísico?

Você dirá que tudo aqui se passa como no caso


do olho e do campo visual. O olho, porém, você
realmente não vê.

E nada no campo visual permite concluir que


ele é visto por um olho.

Em 5.63~, Wittgenstein parece introduzir a noção de um


sujeito que não pertence ao mundo, mas que é um limite do
mundo. Para explicar essa ideia, ele apresenta a analogia do
olho e do campo visual. A existência do campo visual mostra
a existência do olho, mas o olho não aparece ele mesmo no
campo visual. De um modo semelhante, o eu não aparece em
minha consciência do mundo simplesmente porque ele é a
fonte dessa consciência, e não um de seus objetos. Em outras
palavras, Wittgenstein parece sugerir aqui que a filosofia pode
trazer à tona, embora não possa dizer, um sentido do eu que
não foi capturado no que foi dito sobre o eu empírico; nesse
sentido, o eu não aparece no mundo da experiência, pois é a
fonte dessa experiência e, portanto, não pode estar mais lo-
calizado naquele mundo do que o olho pode estar localizado
no campo visual.
Digo que Wittgenstein parece sugerir isso porque não fica
claro se ele mesmo aceita essa noção do eu ou se ele a considera
somente para rejeitá-la. Black, em A companion to the Tracta-
SOLIPSISMO

tus (1964, p. 308), adota a última interpretação. Sua ideia é


que a noção de um eu não empírico ou metafísico é usada por
Wittgenstéin simplesmente para ilustrar a espécie de confusão
a que se pode chegar por não se entender a diferença entre
o que se pode dizer e o que só se pode mostrar. O próprio
Wittgenstein, entretanto, parece se apoiar sobre essa noção em
seções posteriores do Tractatus. Por exemplo, em 6.43u, ele
diz: "a morte não é um evento da vida. A morte não se vive ...
Nossa vida é sem fim, como nosso campo visual é sem limite".
Essas observações podem ser consideradas em conjunto com
outra dos Cadernos (Wittgenstein, 1961, p. 77): "claro, a vida
fisiológica não é 'a vida'. E nem o é a vida psicológica. A vida
é o mundo" .'4 Em outras palavras, no sentido em que minha
vida fisiológica e psicológica tem um fim, minha vida não tem
fim. Com isso, Wittgenstein não quer dizer, é claro, que minha
vida se estende para sempre. Ela não tem fim no sentido em
que meu campo visual não tem limites. Assim, ao passo que faz
sentido para mim a pergunta do que está à direita de um objeto
que eu vejo, não faz sentido para mim a pergunta do que está
à direita do meu campo visual, Nesse sentido, não há fim para
o meu campo visual; ele não tem vizinhos. Há um sentido algo

14 [N.T.] Na já citada segunda edição em língua inglesa da obra, que viemos


utilizando para facilitar a consulta das passagens referidas pelo autor, a
passagem ocorre também na página 77 (Wittgenstein, 1979). Aqui, entre-
tanto, Mounce rejeita uma escolha feita por Anscombe. Anscombe traduziu
"das Leben" ("a vida"), que Wittgenstein contrapõe às noções de "vida fisio-
lógica" e "vida psicológica", por "Life", e não "Iife" (com "l" minúsculo). No
entanto, como Mounce parece ter percebido, o original alemão não fornece
fundamento para essa escolha. Isso porque, no alemão, todos os substanti-
vos são escritos com iniciais maiúsculas. Além disso, e este é o nosso ponto
aqui, a tradução de Anscombe pode sugerir uma conotação transcendente ao
conceito de vida utilizado no texto, porém Wittgenstein não fez uso de qual-
quer recurso semelhante ao de Anscombe que pudesse sugerir essa leitura.
H, O, Mourice

similar, Wittgenstein parece sugerir, em que também minha


vida não tem fim, mas o eu ao qual se está fazendo referência,
não é, de modo algum, um objeto, algo no mundo.
Essa interpretação, se estivesse correta, nos ajudaria a
entender o que Wittgenstein diz sobre o solipsismo. Em 5.6~,
ele diz que "o que o solipsista quer dizer é inteiramente corre-
to; apenas é algo que não se pode dizer, mas que se mostra".
Wittgenstein, me parece, está aqui se expressando de um
modo muito enganador. Por exemplo, alguns comentadores
o interpretaram como se ele estivesse dizendo que, embora
seja uma confusão expressar o solipsismo, este, no entanto, é
realmente verdadeiro. '5 Mas isso, me parece, está claramente
errado. O que Wittgenstein quer dizer é que o solipsismo é ele
mesmo confuso, e não simplesmente que é uma confusão ten -
tar expressá- lo. Mas o que, então, ele tem em mente ao dizer
que o que o solipsismo quer dizer está inteiramente correto?
Sua ideia, a meu ver, é que o solipsismo é a tentativa confusa de
dizer algo outro, que não pode ser dito e que deveria deixar-se
mostrar. Existe como que uma verdade por trás do solipsismo,
mas ela não pode ser dita, e o solipsismo é o resultado confuso
de se tentar dizê-la. A verdade não é que só eu sou real, mas que
eu tenho um ponto de vista do mundo que não tem vizinhos.
Talvez possamos ver isso com maior clareza se conside-
rarmos o que Wittgenstein diz sobre os limites da linguagem.
"O mundo é o meu mundo", ele diz em5.6~, "isso se mostra
no fato de que os limites da linguagem (a linguagem que, só
ela, eu entendo) significam os limites de meu mundo". É
importante notar a tradução da frase entre parênteses. Na

15 Esse é outro exemplo de como os comentadores se precipitaram ao supor


que uma ideia que Wittgenstein critica nas Investigações é tal que ele mesmo
a defendeu no Trocuitus,
SOLIPSISMO

primeira tradução inglesa, encontrávamos "(a linguagem


que apenas eu entendo)". Traduzida dessa maneira, a frase
confere algúm apoio à ideia de que Wittgenstein estava de-
fendendo uma espécie de solipsismo, pois ela sugere que,
segundo Wittgenstein, os limites da linguagem e do mundo
seriam dados em uma linguagem privada a ele mesmo. A
tradução, no entanto, é incorreta; o que a frase significa é
"a única linguagem que eu entendo". Por "a única lingua -
gem que eu entendo", Wittgenstein não está se referindo
ao alemão, ao inglês ou ao russo. Todas as linguagens, do
modo como Wittgenstein as está concebendo, são uma só.
Isso porque não pode haver uma linguagem ilógica. A lógica
está completamente presente em qualquer linguagem que
faça sentido, e uma linguagem que não faça sentido não é,
de modo algum, uma linguagem. Todas as linguagens, então,
podem ser consideradas em conjunto na medida em que a
lógica está completamente presente em cada uma delas, as
diferenças entre elas sendo meramente convencionais. Ora, a
ideia de Wittgenstein, a meu ver, é a seguinte. O que eu con-
cebo como o mundo me é dado na linguagem. Essa concepção
é a única que há. Eu sei disso, não porque considerei outras
possibilidades e as rejeitei, e sim, precisamente, porque isso
se mostra em não haver outras possibilidades, pois não existe
linguagem exceto a linguagem e, portanto, nenhuma outra
concepção do mundo além daquela que a linguagem nos dá.
Essa concepção é a minha concepção. Minha concepção do
mundo, portanto, como meu campo visual, não tem vizinhos.
Entretanto, outra vez, devemos tomar cuidado para não
identificar isso com o solipsismo. É importante lembrar que
minha concepção do mundo se mostra somente no que eu
digo sobre o mundo. Mas não terei dito nada sobre o mundo
H. O. Mounce

a menos que, na ocasião em questão, ele possa ser diferente


do que eu tiver dito que ele .é: ou seja, é uma condição do
discurso que minha linguagem faça referência a objetos
independentes de mim mesmo. Se esses objetos são irreais,
então também o sou eu, pois é somente em meu discurso
acerca deles que meu eu aparece. O eu, como Wittgenstein
deixa claro, não é ele mesmo um objeto.Nesse caso, então, o
solipsismo é evidentemente confuso. Propriamente enten-
dido, ele colapsa com o realismo, pois o solipsista, ao desejar
negar a realidade independente do mundo, ao defender que
somente ele e suas ideias são reais, tem a ideia do seu eu como
um objeto que está como que sobre e diante de um mundo
irreal.No entanto, quando ele se dá conta da confusão que há·
nisso tudo, quando percebe que não pode haver um objeto tal
como ele concebe o seu eu, o mundo reaparece como a única
realidade em que o seu eu pode se manifestar.

5.64 Aqui pode-se ver que o solipsismo, levado às


últimas consequências, coincide com o puro rea -
lismo. O eu do solipsismo reduz-se a um ponto
sem extensão e resta a realidade coordenada a ele.
CAPÍTVLO 10

Quero agora examinar as últimas páginas do Tractatus, que


tratam, em grande parte, dos juízos de valor.
Como vimos, uma proposição, para Wittgenstein, é uma
figuração de um estado de coisas possível: a proposição é
verdadeira se o que é afigurado é um fato, e falsa se não o é.
Entende-se a proposição quando se sabe o que a torna verda -
deira e o que a torna falsa. Ora, pelo menos em uma primeira
reflexão, enunciados de valof parecem não ser dessa forma.
Por exemplo, "não roubarás", evidentemente, não se torna
falso se roubamos. Uma pessoa é censurada se o faz, porque,
embora o faça, não deveria fazê-lo. "Não roubarás", ou "você
não deve roubar", parece evidentemente não ser, de modo
algum, um enunciado acerca do que é o caso.
Essa, de fato, é precisamente a ideia que Wittgenstein
sustentou, não só no Tractatus, mas, em muitos de seus traços
essenciais, ao longo de toda sua vida. Uma expressão de valor
não é um enunciado sobre os fatos. No entanto, na época do
Tractatus, ele sustentou que o sentido de uma proposição
repousa precisamente em ela figurar os fatos, ou, ao menos,
um fato possível. Segue-se que não pode haver proposições
de valor.
Essa é uma ideia que Wittgenstein expressa, próximo ao
final do Tractatus, de diferentes maneiras. Por exemplo, em
6.4, ele diz: "todas as proposições têm igual valor". Em outras
palavras, nelas não aparecem distinções de valor. Outra vez,
em 6.4~, ele diz explicitamente que "tampouco pode haver
H. O. Mounce

proposições da ética". O sentido de uma proposição repousa


em ela figurar o que acontece ou não acontece no mundo.
Entretanto, o que acontece ou não acontece no mundo é
diferente do que possui valor. Em 6.41, Wittgenstein diz:

( ... ) No mundo, tudo é como é e tudo acontece como


acontece; não há nele nenhum valor - e se houvesse,
não teria nenhum valor.
Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de
toda a esfera do que acontece e é o caso. Pois tudo o
que acontece e é o caso é acidental.

Será útil trazer à tona a ideia central desta última proposi-


ção com algum detalhe. Suponha que um homem questione o
valor, digamos, de usar um cinto de segurança em um carro.
Tentaremos fazê-lo ver o valor disso explicando-lhe o que
pode acontecer se ele não o usar. Aqui estamos explicando o
que Wittgenstein chamou de valor relativo, o tipo de valor que
depende das consequências, do que acontece no mundo. Isso
não é o que Wittgenstein entende por "valor" no Tractatus. Ele
está se referindo ao tipo de valor que encontramos na ética ou
na estética, e sua ideia é que esse tipo de valor não depende
do que acontece no mundo. Assim, suponha que alguém
negasse o valor, digamos, da ação do Bom Samaritano. Seria
simplesmente uma confusão se tentássemos fazê- lo mudar
de opinião apontando para as consequências da ação.No caso
da ação do Bom Samaritano, nenhuma de suas consequências
poderia ser mais valiosa do que a ação em si mesma. Em sua
"Conferência sobre ética" (1965), escrita alguns anos depois
do Tractatus, Wittgenstein ilustrou novamente essa ideia.
Se disséssemos a um homem que ele deveria estar jogando
tênis melhor, e ele respondesse "eu não quero jogar melhor",

130
dirí_amos "Ah! Então, tudo bem!". No entanto, se disséssemos
a outra pessoa "você deveria tratar melhor os seus pais", e
ela respondesse "eu não quero tratá- los melhor", respon-
deríamos "então você deveria querer tratá- los melhor". A
importância de tratarmos bem os nossos pais não depende de
algo ser o caso, tal como o fato, contingente, de você querer
tratá-los bem. Em sua conferência, Wittgenstein falou des-
se valor como absoluto, enfatizando novamente que valores
desse tipo não poderiam ser expressos em uma proposição.
É claro, entretanto, que as pessoas dão, de alguma maneira,
expressão ao que elas valorizam ou admiram. Na "Conferên-
cia sobre ética", Wittgenstein diz que essas expressões são
tentativas de dizer o que não pode realmente ser dito. Está
claro, contudo, tanto na conferência quanto no Tractatus,
que essa tendência a expressar o que não pode ser dito não
é - como o solipsismo, por exemplo - produto de um mau
entendimento da lógica. Por exemplo, não é algo a ser elimi-
nado por uma análise lógica adequada. Em sua conferência,
Wittgenstein diz que essa é uma tendência que ele admira e
defenderá. Algo de importante se mostra, mesmo que não
seja dito, quando uma pessoa tenta, dessa maneira, expressar
o que não pode ser dito.
A esse respeito, existe uma analogia com as proposições
da lógica, e, nos Cadernos (1979, p. 77), Wittgensteinfaz essa
comparação explicitamente. "A ética não trata do mundo. A
ética deve ser uma condição do mundo, como a lógica". A
ética, assim como a lógica, pertence ao que se mostra, não ao
que é dito. Isso não quer dizer que ela se mostre da mesma
maneira. Não há nada no caso da ética, por exemplo, que
possa ser comparado ao método de mostrar a necessidade
de um princípio lógico por meio da notação V. F. Ainda as-
ILO.

sim, a ética, como a lógica, faz parte daquilo que "se mostra"
(proposição 6.5~~).
Isso também pode ser visto pela consideração da relação
que existe, para Wittgenstein, entre a ética e a vontade.

O mundo é independente de minha vontade.

Ainda que tudo que desejássemos aconteces-


se, isso seria, por assim dizer, apenas uma graça
do destino, pois não há nenhuma conexão lógica
entre vontade e mundo que o garantisse, e a su-
posta conexão física, por seu lado, decerto não é
algo que pudéssemos querer.
6.43 Se o bom ou mau exercício da vontade altera o
mundo, só pode alterar os limites do mundo, não
os fatos; não o que pode ser expresso por meio da
linguagem.
Em suma, o mundo deve então, com isso, tor-
nar-se a rigor um outro mundo. Deve, por assim
dizer, minguar ou crescer como um todo.
O mundo do feliz é diferente do mundo do in -
feliz.

O que Wittgenstein está sugerindo aqui é que a diferença


entre, digamos, a boa e a má vontade não será encontrada nos
fatos, no que vem a ser o caso, pois o que a vontade de fato pro-
duz no mundo é uma questão acidental. É, portanto, possível,
por exemplo, que a vontade de um homem mude, digamos, de
boa para má sem que isso seja revelado em suas ações. Onde,
então, se encontra a mudança? Wittgenstein sugere que ela
se encontra não em ser diferente este ou aquele fato, mas em
o mundo mudar como um todo. Mas o que, precisamente, isso
significa? Wittgenstein explica o que ele quer dizer por meio
de uma analogia - "o mundo do feliz é um mundo diferente
do mundo do infeliz". A ideia é que são os mundos do feliz e
do infeliz que são diferentes.tnão os fatos. Os fatos, em outras
palavras, constituem mundos diferentes dependendo da ati-
tude que se assume em relação a eles. Assim, embora os fatos
~
sejam os mesmos, a boa e a má vontade confrontam-se com
mundos diferentes. A ética, mais uma vez como a lógica, é uma
questão não dos fatos, mas de sua significação.
Devemos ter cuidado, no entanto, para não fazer uma
leitura equivocada da analogia de Wittgenstein. Ao falar do
mundo do feliz, é claro que ele está se referindo obliquamen -
te a um fenômeno comum. O homem com um temperamento
feliz olha para o lado bom das coisas, aceita os mesmos fatos
que levam o homem infeliz ao desespero. É importante notar,
entretanto, que essa é meramente uma analogia. Wittgenstein
não quer dizer que a atitude ética é ela mesma uma questão de
temperamento: Pelo contrário, o temperamento que temos
é apenas outro dos fatos em relação aos quais devemos adotar
uma atitude ética. Essa é uma razão pela qual Wittgenstein,
em 6.4~3, distingue a vontade que é portadora do bem e do
mal da vontade como um fenômeno, a vontade que interessa
apenas à psicologia. A vontade ética não é uma tendência
psicológica. Ela se mostra no que fazemos das tendências
psicológicas que possuímos, no que fazemos, por exem-
plo, de nosso temperamento feliz ou infeliz. "Os fatos", diz
Wittgenstein, "fazem todos parte apenas do problema, não
da solução". 16 Os fatos não resolvem problemas éticos, eles
apenas podem fazê-los surgir. As soluções são encontradas
nas atitudes que adotamos em relação aos fatos. Wittgenstein,
16 [N.T.] Tractatus, 6.43~1.
H. O. Mourice

porém, quer dizer todos os fatos, tanto psicológicos como


físicos. A vontade, enquanto portadora do bem e do mal, ô
independente da totalidade dos fatos, isto é, independente,
em certo sentido, do mundo.
Mais tarde, Wittgenstein veio a pensar que havia algumas
confusões envolvidas na maneira como ele falou sobre a von -
tade na época do Tractatus. No entanto, há muito no Tractatu
sobre a relação entre vontade e ética que ele manteve, embora
em uma forma um pouco diferente, ao longo de sua vida. Em
seus últimos anos, por exemplo, ele continuou a insistir em que
os fatos, embora contribuam para a solução de um problema
ético, não a determinam. O problema ético não é determinar
que é o caso, mas o que fazer, que atitude se deve tomar. Em sua
obra posterior, ele deu muito mais atenção aos tipos de situação
em que surgem problemas dessa espécie e estava preocupado
em enfatizar, como nunca o fez no Tractatus, o papel que os
padrões de uma cultura desempenham no desenvolvimento do
sentido do bem e do mal. No entanto, ainda assim, problemas
éticos permanecem, em certo sentido, pessoais. Pouco apó
escrever sua conferência sobre ética, ele disse, em uma dis-
cussão com Waismann: "no final de minha conferência sobre
ética, falei na primeira pessoa. Penso que isso é algo essencial.
Aqui não há mais nada para ser dito; tudo o que posso fazer
é dar um passo à frente como indivíduo e falar na primeira
pessoa". E, novamente: "tudo o que posso dizer é isto: eu não
ridicularizo essa tendência no homem; eu a reverencio. E aqui
é essencial que essa não é uma descrição da sociologia, mas que
estou falando de mim mesmo" (Waismann, 1979, p. u7-8).
Como eu disse, Wittgenstein estava preocupado, em sua obra
posterior, em enfatizar que uma atitude pessoal se desenvolve
nos padrões de uma cultura, mas ele também enfatizaria que
V:;.wn

uma atitude desse tipo não é simplesmente o produto desses


padrões. Por exemplo, dois homens que cresceram na mesma
cultura podem diferir, em algumas ocasiões, não apenas no
que decidem quando confrontados com um problema ético,
mas também no que tom~ como um problema ético. O que
é um problema para um pode não ser problema algum para o
outro.Além disso, se alguém pergunta "qual está certo?", essa
própria questão requer, para uma resposta, que se tome uma
decisão sobre o tema. Wittgenstein expressou isso, cerca de
cinco ou seis anos antes de sua morte, da seguinte maneira.

Suponha-se que alguém diga "um dos sistemas éticos


deve ser o correto - ou o mais próximo do correto".
Bem, suponha-se que eu diga que a ética cristã é a
correta. Nesse caso, estou fazendo um juízo de valor.
Ele equivale a adotar a ética cristã. Não é como dizer
que uma dessas teorias físicas é a correta. O modo
como alguma realidade corresponde - ou entra em
conflito - com uma teoria física não tem nenhuma
contrapartida aqui (Rhees, 1970, p. 101).

No Tractatus, como na conferência sobre ética, Wittgenstein


apresenta questões sobre o valor ético juntamente com questões
sobre o sentido da vida, ou ao menos apresenta as duas conjun -
tamente em certos pontos. Problemas sobre o sentido da vida,
como problemas sobre o bem e o mal, não são problemas cien -
tíficos. "Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas
possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não
terão sido sequer tocados." (Proposição 6.5~) Além disso, não
apenas os fatos da física, mas também os fatos, ou supostos
fatos, da investigação psíquica são independentes de valor.
H. O. Mounce

6.431~ Não apenas não há nenhuma garantia da imor-


talidade temporal da alma humana, ou seja, de sua
sobrevivência eterna depois da morte, como, de
qualquer maneira, essa suposição absolutamente
não se presta ao que com ela sempre se pretendeu.
Com efeito, há enigma que se resolva por minha
sobrevivência eterna? Não é essa vida eterna tão
enigmática quanto a vida presente? A solução do
enigma da vida no espaço e no tempo está fora do
espaço e do tempo.

A tentativa de conferir sentido à vida não é uma tentativa


de determinar se os fatos vão em uma direção em vez de
outra. '7 É tendo isso em vista que se deve considerar o que
Wittgenstein diz sobre o "místico". Essa palavra tem conota-
ções infelizes, que a equivalente alemã talvez não tenha. Ela
sugere uma revelação de eventos extraordinários por meios
extraordinários. Isso, porém, não é, de forma alguma, o que
Wittgenstein tinha em mente. Ele introduz o termo em 6.44.
Não é como as coisas são no mundo que é místico,
mas que o mundo existe.

Isso está provavelmente relacionado ao que Wittgenstein,


em sua conferência sobre ética, descreve como a experiência
de admiração quanto à existência do mundo. Lá ele diz que,
quando deseja se concentrar no que entende por "valor

17 Isso não significa, aliás, que os fatos sejam irrelevantes para que se con -
fira sentido às coisas. Imagine-se, por exemplo, que certas peças estejam
faltando para que se complete a figura de um quebra-cabeça. Sem elas, pode
ser impossível conferir sentido à figura. O ponto, entretanto, é que o sentido
não repousa nas peças extras, mas na figura como um todo - as peças extras
são necessárias porque sem elas o todo não pode ser adequadamente visto.

136
v'.'-.LO.R

absoluto", ele se lem bra de um a experiên cia particular e diz


que a m elh or m an eira de descrever essa experiên cia é dizer
que "quan do eu a ten h o, eu m e adm iro com a existên cia do
m undo". W ittgen stein m en cion a essa experiên cia não com o
algo que lh e seja peculiar, ou m esm o com o algo in com um ,
m as com o algo com o que os seus ouvintes provavelm en te
estariam fam iliarizados. (D e outro m odo, o exem plo não
surtiria efeito.) A lém disso, ela não é, precisamente, uma
experiênci\de algo extraordinário no sentido usual. Por
exemplo, ela é bastante diferente de um caso que ele mencio-
na mais tarde, o de ver a cabeça de um homem se transformar
na cabeça de um leão. Admirar-se com a existência do mundo
não é se admirar com o fato de o mundo ser de uma maneira
em vez de outra. É admirar-se, pura e simplesmente, com
a existência das coisas, o extraordinário aqui não sendo de
maior significação que o lugar comum.
Ora, é claro que a admiração pela existência do mundo
poderia levar alguém a questões sobre o sentido do mundo
e sobre a vida que leva nele. A ideia de Wittgenstein é que
essas não são questões científicas; mas isso significa, dadas
as ideias do Tractatus, que, em um sentido, elas simplesmente
não são questões. É por isso que em 6.5~, após mencionar
nosso sentimento de que, mesmo que todas as questões
científicas venham a ser resolvidas, os problemas da vida
continuarão completamente intocados, ele prossegue: "é
certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão;
e a resposta é precisamente essa". "Percebe-se a solução do
problema da vida", ele diz em 6.5~1, "no desaparecimento
desse problema". Isso não significa, entretanto, que apre-
ocupação seja irreal, produto de mera confusão, pois ele
continua: "não é por essa razão que as pessoas para as quais,
H.

após longas dúvidas, o sentido da vida se fez claro não se


tornaram capazes de dizer em que consiste esse sentido?".
O sentido da vida é algo que pode se tornar claro. No entan -
to, outra vez, ele apenas se mostra; ele não pode ser dito.
Anscombe sugere que Wittgenstein poderia ter ilustrado essa
ideia referindo-se a Tolstói, que havia tentado, em diversos
livros, dizer o que compreendeu sobre a vida. Wittgenstein
pensava não apenas que esses livros o representavam em seu
pior, e que ele estava em sua melhor forma em um livro como
Khadji-Murát, onde se limita a contar uma história, mas que
foi em um livro como Khadji-Murát que ele melhor expressou
o que compreendeu sobre a vida. Ou seja, o entendimento
de Tolstói se mostrou no que ele disse sobre outras coisas,
como a lógica se revela, não no que dizemos sobre a lógica,
mas no que dizemos sobre o mundo.
CAPÍTULO 11
As proposicõ da filosofia

Resta ainda um assunto importante a ser discutido. Ele diz


respeito à natureza das proposições que são encontradas na
filosofia e, mais particularmente, no próprio Tractatus. Se
a natureza da lógica não pode ser dita, como Wittgenstein
pode, no Tractatus, dizer o que a lógica é? Em 6.54, ele diz:

Minhas proposições servem como elucidações da


seguinte maneira: quem me entende acaba por reco-
nhecê-las como contrassensos, após tê-las usado -
como degraus - para subir além delas. (Deve, por as-
sim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.)
Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o
mundo corretamente.

Essa proposição foi interpretada como uma admissão tácita


de incoerência, pois, se as proposições do Tractatus são con-
trassensos, como elas podem ser entendidas, e, se não podem
ser entendidas, como elas podem elucidar qualquer coisa?
Ora, éimportante perceber que aquilo que Wittgenstein
está expressando aqui, embora tenha as suas dificuldades, não
é nem tão absurdo nem tão arbitrário quanto se fez parecer.
Para perceber isso, devemos, em primeiro lugar, atentar pre-
cisamente para o que Wittgenstein diz. Note que ele fala não
tanto em entendermos o que ele diz quanto em entendermos
ele mesmo, isto é, o próprio Wittgenstein. Ele está sugerindo,
em outras palavras, que, mesmo que não possamos, estrita-
mente falando, apreender o sentido do que ele diz, podemos
n. O. Mounce

certamente perceber onde ele quer chegar com o que diz. Em


segundo lugar, devemos levar a sério uma ideia que aparece
em diversas partes do Tractatus e não simplesmente, de um
modo arbitrário, no final da obra. Essa é a ideia de que algo
pode ser mostrado mesmo quando nada é dito. Wittgenstein
já disse que nem tudo que carece de sentido é uma algaravia
(gibberish). Tautologias, por exemplo, não são algaravias- elas
mostram a forma lógica - , mas também não possuem sentido ..
Ora, as proposições do Tractatus não são tautologias, mas per-
tencem grosso modo à mesma categoria. Elas carecem de sen-
tido, porque não dizem nada sobre o mundo, mas cumprem
uma função. Ao contrário dos enunciados do solipsista, por
exemplo, elas não são o produto de uma confusão. Elas cum -
prem uma função, precisamente, na medida em que podem
prevenir o surgimento desse tipo de confusão.
Mas como, pode-se perguntar, pode um enunciado
cumprir uma função se ele carece de um sentido? A pessoa
que faz essa pergunta, quando pensa em algo que carece de
sentido, está quase certamente pensando em algaravias. No
entanto, no Tractatus, como dissemos, algaravias não são a
única alternativa ao sentido.
Será importante ilustrar esse tópico com algum deta -
lhe. Suponha que alguém mostre ser impossível fazer uma
determinada construção na geometria. A impossibilidade
envolvida nesse caso é de um tipo interessante e instrutivo.
Por exemplo, é bastante diferente da impossibilidade física.
Alguém pode, após diversas tentativas, ficar convencido de
que é impossível levantar um determinado peso.No entanto,
as tentativas foram úteis - foi assim que ele ficou conven -
cido -, e ele sabe como teria sido se tivesse conseguido. Na
geometria, o caso é diferente porque a prova tem o efeito de
.A s PHO"POsH;:(n;;s nA FJ.LOSOFI/r,

convencer uma pessoa de que não havia nada corresponden -


do ao que ela estava tentando fazer. Não é que a construção
seja concebível, embora impossível de ser realizada; pelo
contrário, o ponto é precisamente que ela não era concebí-
vel. Mas, nesse caso, o que a pessoa estava fazendo ao tentar
construí-la? O que, de fato, era "isso" que ela estava tentando
construir? A dificuldade é igualmente grande se vista do ou -
tro lado. O que era o "isso" que a prova de impossibilidade
mostrou ser impossível?
Esse tipo de perplexidade pode surgir repetidamente
na filosofia. Por exemplo, alguns filósofos (ou teólogos)
argumentaram que Deus pode ver o futuro diretamente e
explicaram como isso é possível dizendo que, cómo ele existe
fora do tempo, ele pode ver o passado, o presente e o futuro
simultaneamente; ele pode ver como que diretamente o que
para nós ainda está adiante. É fácil ver o que faz isso parecer
plausível. Imagine soldados marchando em um dos lados
de uma montanha. Eles não podem ver o que os espera no
outro lado, mas alguém em uma posição privilegiada, em
um helicóptero, por exemplo, estaria apto a ver ambos os
)
lados da montanha simultaneamente e, portanto, saberia o
que os espera em um dos lados da montanha enquanto eles
sobem o outro. Todavia, há uma dificuldade, se pensarmos,
em ver o quanto essa analogia é apropriada. A analogia parece
apropriada simplesmente porque não refletimos sobre ela,
pois adificuldade que se pretende eliminar com a analogia
é a de entender como Deus pode ver de uma só vez o que
está ocorrendo em dois tempos diferentes. Se os tempos são
diferentes, como eles podem ser vistos de uma só vez, isto
é, ao mesmo tempo? Ficará evidente, se refletirmos, que o
homem no helicóptero não nos ajuda a compreender isso,
H. O. Mounce

já que é evidente que ele pode ver o que está ocorrendo em


ambos os lados da montanha somente se os eventos não estão
ocorrendo em tempos diferentes. Ele pode ver simultanea -
mente o que está ocorrendo ao mesmo tempo, mas se você
lhe pedir para dizer o que está ocorrendo em um dos lados
agora e no outro daqui a três anos, ele não estará em melhor
posição para dizê-lo do que os soldados. A analogia entra em
conflito com o que deveria explicar no exato ponto que pre-
cisa ser explicado. Mas o que, então, faremos da asserção de
que Deus pode ver o futuro diretamente? Uma breve reflexão
revelará que essas palavras (pelo menos ao que tudo indica)
não constituem, de modo algum, uma asserção inteligível.
Não podemos tomá-las sequer como representando um es-
tado de coisas possível. Além disso, essa é apenas metade da
dificuldade, pois, se a asserção não tem sentido, como pode
haver um sentido em negá - la? O que, mais uma vez, seria o
"isso" a ser negado?
Ora, há um ponto acerca das frases contidas nesses
exemplos que devemos observar se queremos entender o
que Wittgenstein diz sobre a filosofia no Tractatus. As frases
podem ser contrassensos, mas por certo não são algaravias.
Poderemos ver isso se notarmos uma reação que elas geram
naturalmente. Muitas pessoas estariam inclinadas a dizer,
sobre o último caso, por exemplo, que se a asserção e sua
negação são ambas contrassensos, ainda assim uma parece
muito menos um contrassenso do que a outra. Isso porque,
ainda que seja um contrassenso tanto asserir quanto negar
que Deus pode ver o futuro diretamente, parece muito menos
um contrassenso negá-lo do que asseri-lo. Isso porque a ne-
gação tem ao menos alguma função a desempenhar, mesmo
que seja apenas a de impedir que a asserção seja feita. Essa
As PROPOSIÇÕES DA FILOSOFIA

reação indica - embora, talvez, de uma maneira confusa - o


ponto em questão. O ponto é que a afirmação, ao contrário
de, digamos, "Cluck tok hoo", tem uma aparência de sentido
que pode confundir as pessoas, pode enganá- las, e pode ser
importante libertá- las de sua confusão. Isso está relaciona -
do à ideia de Wittgenstein no Tractatus. Tanto o enunciado
"a lógica pode ser dita" quanto "a lógica não pode ser dita"
carecem de sentido na medida em que não dizem nada so-
bre o mundo. No entanto, o último enunciado cumpre uma
função, não com relação ao mundo, mas com relação ao que
outras pessoas estão dizendo; por exemplo, ele pode servir
para pôr fim a um certo tipo de conversa confusa, do qual o
primeiro enunciado é um exemplo. Como, em si mesma, a
negação não diz nada (isto é, não representa nada no mundo),
ela se torna inútil uma vez que serviu ao seu propósito, uma
vez que a conversa confusa foi encerrada. Assim, como uma
escada, ela pode ser deixada de lado.
Ora, como veremos em seguida, o que Wittgenstein está
dizendo aqui é, na verdade, inadequado. Dada sua posição no
Tractatus, não lhe foi possível tornar a questão inteiramente
clara. Mas sua ideia também não era absurda. Ele estava li-
dando com um tema de grande importância para a filosofia.
Na filosofia, muitos erros consistem não em falsidades empí -
ricas, mas em confusões. Além disso, é importante perceber
que a confusão envolvida é de um tipo especial. Não se trata,
por exemplo, de uma questão de mera falta de clareza ou de
uma pessoa falar sobre algo que não entende direito (embora
também se encontre esse tipo de confusão com muita frequ-
ência na filosofia). É por isso que Wittgenstein diz em 6.53
que o método correto na filosofia envolveria demonstrarmos
a um homem que pretende dizer algo de metafísico que ele
I-LO. Mounce

"não conferiu significado a certos sinais em suas proposições".


Ou seja, a confusão de que trata Wittgenstein é uma questão
de haver algo de errado no uso das palavras. Isso, porém,
não ocorre em função de as pessoas que usam essas palavras
não estarem familiarizadas com elas, quando consideradas
individualmente - em uma asserção metafísica, as palavras
usadas são frequentemente muito familiares. Essa confusão
surge pelo fato de elas usarem as palavras de tal maneira que
estas deixam de ser governadas pela sintaxe lógica, pelas
:regras que, refletindo a forma lógica, governam o seu uso em
contextos ordinários e garantem, nesses contextos, que elas
possam ser usadas para dizer alguma coisa. Assim, a confusão
metafísica não é resultado de falta de clareza pessoal ou de falta
de conhecimento, mas de uma má compreensão da lógica de
nossa linguagem. "O livro trata dos problemas filosóficos", diz
Wittgenstein no Prefácio, "e mostra - creio eu - que a formu -
lação desses problemas repousa sobre o mau entendimento
da lógica de nossa linguagem". Na confusão metafísica, não
percebemos isso por:que as palavras que usamos são familia -
res. É isso que distingue essas confusões de algaravias, que
lhes confere sua aparência de sentido. Um dos propósitos de
um método correto na filosofia é eliminar essa aparência de
sentido mostrando que às palavras de uma asserção metafísica
não foi conferido o seu uso familiar.
Será útil, neste ponto, retornar à discussão de Wittgenstein
sobre o solipsismo, pois nela encontramos o único exemplo
detalhado que ele apresenta no Tractatus de uma asserção
metafísica e de como se deve lidar com isso. A asserção
"Somente eu existo" (ou, talvez, "o mundo é meu mundo")
contém palavras que têm, cada uma delas, um uso bastante
familiar. É fácil perceber, entretanto, que o solipsista, em

144
As PROPOSIÇÕES DA .F ILOSOflA

seu uso dessas palavras, se afasta de seus usos familia -


res. Por exemplo, no uso ordinário de "eu", o solipsista
é apenas um homem entre outros. Nesse sentido, se eu,
em circunstâncias ordinárias, desejo fazer referência a
mim mesmo, eu o faço distinguindo-me dos outros - a
existência dos outros é, nesse caso, pressuposta. A ideia
do solipsista, entretanto, é que há um outro uso de "eu"
em que o pronome se refere a um objeto que está acima e
diante do mundo no qual ele distingue a si mesmo como
um ser corpóreo entre outros - sendo este último mundo
irreal, sendo, na verdade, um produto de sua própria mente.
A ideia de Wittgenstein, contudo, é que, na medida em que
faz sentido distinguir um segundo nível no uso de "eu", a
palavra não corresponde a objeto algum. O solipsismo surge
por causa de uma confusão entre os diferentes níveis. Ele
procura expressar uma verdade, que não pode ser dita e que
só pode se manifestar, como se fosse uma verdade sobre
um objeto no mundo; mas o eu tratado como um objeto no
mundo é apenas um objeto entre outros. Em outras palavras,
o solipsismo coincide com o puro realismo, ou melhor,
coincide com o puw realismo quando adequadamente
entendido, pois a ideia de Wittgenstein é que o solipsismo
depende de ele não ser propriamente entendido. Assim, a
refutação do solipsismo não consiste em mostrarmos que
os fatos são diferentes de como o solipsista os representa:
ela consiste em mostrarmos que ele não representa nenhum
fato possível. O solipsismo surge de uma má compreensão
da lógica de nossa linguagem.
Permanece verdadeiro, entretanto, que o tratamento
que Wittgenstein confere a esses temas no Tractatus não é
inteiramente adequado. Isso, em parte, porque ele defendeu

145
H. O. Mounce

naquela época que existe uma distinção radical entre sentido


e contrassenso, que o que conta como sentido e o que conta
como contrassenso deve estar determinado para todos os
casos possíveis. Mais tarde, ele veio a acreditar que adis-
tinção entre sentido e contrassenso, como muitas distinções
na linguagem, não é uma distinção radical. 18 Considere, por
exemplo, a diferença entre noite e dia. Ao meio-dia, obvia-
mente, não é noite; à meia-noite, não é dia; mas que seja noi-
te ou dia durante, digamos, uma certa porção do entardecer
é inteiramente indeterminado. Ocorre quase o mesmo com
a diferença entre sentido e contrassenso. Na filosofia, per-
de-se isso de vista porque tendemos a julgar todos os casos
por meio daqueles em que a distinção é facilmente traçada.
Como exemplo de contrassenso, escolhemos uma algaravia,
tal como "Gluck tok hoo"; como exemplo de algo que tem
sentido, escolhemos um enunciado claramente factual como
"está chovendo". O que perdemos de vista é que podem ser
construídas inúmeras frases que não caem em nenhuma
dessas categorias. Em sua obra posterior, Wittgenstein deu
vários exemplos de frases desse tipo, o mais famoso sendo
"que horas são no Sol?". Essa pergunta, ao contrário de uma
algaravia, tem toda a aparência de sentido, e muitas pessoas,
quando se deparam com ela pela primeira vez, são incapazes
de dizer de imediato se ela tem sentido ou não. Entretanto,
é fácil perceber, após alguma reflexão, que a frase não tem
nenhuma aplicação natural. Isso porque, para determinar a
hora do dia, devemos levar em consideração uma porção da
Terra que é iluminada pelo Sol. Falar da hora do dia no próprio
Sol não representa nenhum estado de coisas possível. Ora,

18 Talvez fosse melhor dizer que ele veio a acreditar que havia uma confusão
em sua ideia anterior acerca do que constitui uma distinção clara ou radical.
As .PHOPOSJÇÔES DA FILOSOFIA

na medida em que não representa nenhum estado de coisas


possível, a frase é exatamente como qualquer algaravia, mas,
na medida em que consiste em palavras normais arranjadas
gramaticalmente, ela é exatamente como "está chovendo",
um enunciado com sentido. Como vimos, é característico de
muitas das assim chamadas teses da filosofia que elas caiam
nessa categoria: elas não são nem algaravias nem enunciados
claramente dotados de sentido. Elas têm como que a apa -
rência de um enunciado dotado de sentido, porém sem sua
substância. O problema com a posição de Wittgenstein no
Tractatus é que ele não pôde deixar isso inteiramente claro,
porque sustentou que existe uma distinção radical entre
sentido e contrassenso, que o que conta como sentido e o
que conta como contrassenso tem de estar determinado para
todos os casos possíveis. Dada uma distinção tão rígida, é di -
fícil apreciar a força do que ele diz sobre a filosofia como uma
atividade que elimina confusões, pois é difícil perceber como
pode haver diferentes graus de contrassenso, como uma
proposição pode carecer de sentido sem ser uma algaravia.
No entanto, como também sugeri, a posição de
Wittgenstein, quaisquer que sejam suas dificuldades, tem
certas características que são de grande valor. A fim de re-
sumi-la, será útil considerar algumas das proposições do
Tractatus que dizem respeito especificamente à filosofia.

4 .11 A totalidade das proposições verdadeiras é toda


a ciência natural ( ou a totalidade das ciências na -
turais).

4.111 Afilosofia não é uma das ciências naturais.

1 47
H . O. M ounce

(A palavra "filosofia" deve significar algo que


esteja acima ou abaixo, mas não ao lado, das ciên -
cias naturais.)

4.112, A filosofia visa ao esclarecimento lógico dos


pensamentos.

A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade.


Uma obra filosófica consiste essencialmente em
elucidações.

A filosofia não resulta em "proposições filosó-


ficas", mas no esclarecimento de proposições.

Sem a filosofia os pensamentos são como que


turvos e indistintos: sua tarefa é torná - los claros e
dar- lhes limites precisos.

Para Wittgenstein, então, a filosofia é uma atividade de


um tipo diferente da ciência. Isso, no entanto, não é dizer
que ela é uma pseudoatividade, um desfile de contrassensos.
Seu objetivo é esclarecer pensamentos, eliminar confu-
sões, especialmente o tipo de confusão que está contido em
tentativas mal sucedidas de falar sobre o mundo. Na época
do Tractatus, Wittgenstein acreditava que a principal fonte
dessas tentativas era a não apreensão da diferença entre
que pode ser dito e o que só pode ser mostrado, e que urna
vez que essa diferença fosse apreendida a confusão poderia
ser eliminada. Ele também acreditava que, para eliminar essa
confusão, era importante desenvolver um simbolismo lógico
que fosse adequado para exibir a forma lógica.
Em sua obra posterior, ele modificou essa ideia em diver
sos aspectos importantes. Ele se convenceu, por exemplo,
As V.R O'POSIÇÔES DA ITLOSOFIA

de que a lógica formal tinha apenas um valor limitado para


a filosofia e de que não havia uma única fonte da confusão
filosófica, de modo que jamais se poderia eliminar essa con-
fusão de uma vez por todas. Em outros aspectos, entretanto,
essa ideia permaneceu muito próxima à do Tractatus, pois ele
continuou a distinguir a filosofia da ciência, sustentando que
a investigação filosófica era fundamentalmente conceitua], e
continuou a acreditar que a tarefa filosófica essencial não era
estabelecer um corpo de doutrinas, mas alcançar a clareza.

49
1
CAPÍTULO 12
Aco cão posterior

Antes de concluir esta breve introdução ao Tractatus, será útil


considerar em maior detalhe algumas das diferenças entre
a obra inicial de Wittgenstein e sua obra posterior. Isso será
útil não apenas porque as diferenças são interessantes em si
mesmas, mas também porque a obra inicial pode ser vista de
maneira mais clara à luz dessas diferenças.
Vimos que Wittgenstein, na época do Tractatus, era claro
quanto às proposições da lógica não representarem os fatos.
Pode-se notar, entretanto, que elas ainda são, em alguma
medida, representacionais. Como Wittgenstein diz em 6.1~4,
as proposições da lógica não "tratam" de nada, mas represen-
tam" a armação do mundo". Elas representam uma ordem de
possibilidades, isto é, não o mundo, mas a lógica do mundo.
Essa ideia aparece no que ele diz em 3.34~.

Embora haja algo arbitrário em nossas notações,


isto não é arbitrário: se já determinamos algo arbitra-
riamente, algo mais tem de ser o caso. (Isso decorre
da essência da notação.)
As regras de nossa linguagem não são simplesmente
convencionais. Os sinais e os sons, o que há de convencio-
nal na linguagem, derivam seu sentido das regras para seu
uso, e estas refletem a lógica do mundo. Ora, a diferença
fundamental entre a obra inicial de Wittgenstein e sua obra
posterior é que na obra posterior ele rejeita essa ideia. Na
obra posterior, as proposições da lógica refletem as regras
H. O. Mounce

da linguagem, e estas são encontradas no seu uso; elas não


subjazem a ele. Tentemos agora esclarecer essa ideia.
Será útil começar com a forma geral da proposição. Como
vimos, Wittgenstein pensou à época do Tractatus que todas
as proposições possíveis estivessem determinadas pela
aplicação sucessiva da operação N(ç) a proposições elemen -
tares. Dessa maneira, se a operação de negação conjunta
é aplicada a "p" e "q", isso determina a proposição N(p,q).
Se a operação é agora aplicada, do mesmo modo, a N(p ,q), a
proposição N(N(p ,q)) é também determinada. Ou, para tomar
um exemplo diferente, mas próximo a esses, se negamos p,
obtemos -p; se negamos -p, obtemos uma proposição equi -
valente a p. Na época do Tractatus, Wittgenstein acreditava
que esses passos fossem determinados inequivocamente pelo
significado que havia sido dado ao sinal para a negação. Em
outras palavras, é uma questão de convenção que devamos
dar ao sinal.">" o significado que damos, mas o que não é
uma questão de convenção é como, dado seu significado,
ele deve ser aplicado, pois o significado do sinal, como que
independentemente da interferência humana, determinará
de maneira inequívoca todas as suas aplicações futuras.
Mais tarde, Wittgenstein veio a acreditar que essa maneira
de falar expressava uma concepção de forma lógica inteira -
mente confusa. Poderemos ver o que ele tinha em mente se
refletirmos por um momento sobre o discurso ordinário.
No discurso ordinário, a dupla negação, quando é usada,
não é equivalente a uma afirmação: "eu não quero nada" é
equivalente, não a "eu quero algo", mas a "eu quero nada"
enfaticamente proferida. Além disso, esse uso, quer seja gra -
maticalmente correto ou não, é manifestamente inteligível.
Na época do Tractatus, Wittgenstein teria dito que isso ocorre
A CONCEPÇÃO POSTERIOR

porque o significado do sinal para a negação foi modificado,


isto é, no discurso ordinário, a segunda negação não está
sendo usada da mesma maneira que a primeira. Se estivesse
sendo usada da mesma maneira, então a dupla negação seria,
logicamente, equivalente a uma afirmação.No entanto, mais
tarde, ele veio a perceber que isso perdia inteiramente de vis-
ta o ponto em questão. Isso porque o ponto importante é: em
que consiste usar a negação da mesma maneira? Ou, melhor,
o que significa dizer que a dupla negação é determinada pelo
significado da negação simples? Como o significado do sinal
para a negação determina suas aplicações futuras?
Uma breve reflexão revelará a força dessas questões.
Dissemos que o uso do sinal para a negação é cancelar uma
proposição afirmativa. Ora, se adicionamos uma segunda ne-
gação (--p), como isso deve ser interpretado? Lógicos formais
pensam ser natural supor que se o primeiro sinal para a ne-
gação cancela "p", então o segundo cancela" -p", deixando "p"
como resultado: a dupla negação equivale a uma afirmação.
Contudo, se pensarmos um pouco, não é igualmente natural
pensar da seguinte maneira? Se a primeira negação cancela
"p ", a segunda repete o cancelamento de "p" com força du -
pla. Ou seja, por que deveríamos supor que o segundo sinal
para a negação cancela "-p"? Por que não deveríamos seguir
o discurso ordinário em considerar o segundo sinal para a
negação como aplicando-se junto com o primeiro a "p"? Uma
mente não tendenciosa descobrirá, se refletir, que aqueles
que seguem o discurso ordinário têm tanta razão quanto
seus oponentes em sustentar que estão usando o segundo
sinal para a negação do mesmo modo que o primeiro. Mas,
nesse caso, como o significado do sinal para a negação pode
determinar inequivocamente suas aplicações futuras?
II. O. Mourice

Ora, essa questão, uma vez apreendida, nos levará a refle-


tir sobre o que se quer dizer quando se diz que o significado
de um sinal determina suas aplicações futuras. Essa é uma
frase que nos ocorre naturalmente em certas circunstâncias.
Por exemplo, quando se consideram os passos de uma série
matemática (digamos,~. 4, 6, 8 ... ), pode-se ter a sensação
de que os passos seguintes já estão determinados. Mesmo
que ainda não os tenhamos dado, é como se eles estivessem
esperando para serem dados. É como se, quando colocamos
os passos no papel, estivéssemos apenas traçando o que
de certa forma já existe. Essa não é exatamente a ideia que
Wittgenstein tinha na época do Tractatus. Como vimos, ele foi
claro quanto aos passos da série não existirem como objetos.
Todavia, a possibilidade dos passos, ele sentia, está em algum
sentido determinada pelos passos iniciais, independente-
mente do que qualquer pessoa que esteja continuando a série
venha a colocar no papel. Mas a questão é: em que sentido
"determinada"? É essa ideia de estar logicamente determi-
nada que é deixada obscura no Tractatus, e é a ela que ele se
dedica em sua obra posterior.
A fim de esclarecer isso, consideremos um exemplo que
o próprio Wittgenstein usou mais tarde. De" (X) fx" (tudo é f)
segue-se quefa (que alguma coisa particular, a, éf). Se tudo
que está sobre a mesa é vermelho, por exemplo, segue-se
que esta maçã, que está sobre a mesa, é vermelha. Mas por
que isso se segue? Ou, antes, em que sentido isso se segue?
Alguém poderia estar inclinado a dizer que isso se segue do
significado de "(X) fx". Qualquer um que entenda o signifi -
cado de "(X) [x" deve admitir que "[a" se segue. Mas em que
sentido "deve"? Wittgenstein, em sua obra posterior, disse
que isso ficaria claro se fosse expresso dizendo-se, não que o

54
1
A GONCEPÇKO POSTERIOR

significado de" (X) fx" determina que "[a" se segue, mas que
qualquer um que não perceber que deve inferir "f a" de "(X)
[x" não terá apreendido o significado de "(X) fx". Em outras
palavras, deveríamos dizer que alguém entende "tudo o que
está sobre a mesa é vermelho" se e somente se, ao asseri - lo,
essa pessoa estiver disposta a asserir de qualquer coisa so-
bre a mesa (esta maçã, por exemplo) que ela é vermelha. A
última asserção é uma condição da primeira asserção. Ou,
para colocá-lo de outro modo, "(X) fx implicafa" pode ser
tratada como uma regra para o uso de "(X) fx". Dessa maneira,
o enunciado de que o significado de "(X) fx" determina que
fa se segue é verdadeiro apenas no sentido em que o fato de
inferirmos "[a" de "(X) [x" determina o significado de "(X)
fx". A mesma ideia se aplica ao caso das constantes lógicas.
Assim, de "p v q e -q" segue -se que "p". Em que sentido isso
se segue? Ora, não está claro que alguém que assere "p ou q"
já deve estar disposto, se pretende ser entendido, a asserir
que se uma dessas proposições é falsa, "q", por exemplo, a
outra é verdadeira? Em outras palavras, a última se segue da
primeira somente no sentido em que é uma condição para
asseri-la.
Wittgenstein, de fato, chega perto de dizer isso no
Tractatus. Entretanto, no Tractatus, uma proposição, como "p
ou q", é gerada por meio da aplicação de uma operação sobre
proposições elementares. Ela deriva o seu sentido de sua po-
sição no interior do sistema de proposições, de enunciados
inteligíveis.Na obra posterior, essa ideia é deixada de lado. A
linguagem não forma um sistema, no sentido de um cálculo.
Se quisermos saber como obtemos uma proposição como "p
ou q", deveremos procurar em um lugar bastante diferente;
deveremos examinar o propósito a que ela serve, o lugar que

155
H . O. M ourice

ela ocupa, no interior das atividades de uma vida social. Como


eu disse, "(X) fx ::J fa" e "p v q . -q . ·. p" podem ser concebidas
como regras para o uso de "(X) fx" e "p v q" respectivamente.
Mas essas regras não são o reflexo de alguma estrutura lógica
mais profunda. As proposições da lógica não refletem algo
que subjaza às regras; elas são uma cristalização das próprias
regras, as quais derivam seu papel daquilo que as envolve, a
vida social em que elas se encontram.
Façamos, no entanto, uma pausa, pois, para alguns, a
análise acima parecerá conter uma falha óbvia. Dissemos que
as inferências que se seguem, por exemplo, das constantes
lógicas são realmente uma expressão do significado dessas
constantes. Isso, entretanto, pode parecer plausível somente
se nos confinamos a casos simples. Isso se torna menos plau -
sível, assim seria argumentado, se consideramos as inferên-
cias que permeiam um sistema lógico como um todo, pois é
evidente que muitas dessas inferências ainda precisam ser
feitas. Mas, nesse caso, como essas inferências, que ainda não
foram feitas, podem ser parte do significado das constantes
lógicas? Certamente, devemos primeiro determinar o signi-
ficado das constantes antes que possamos seguir em frente e
fazer novas inferências. Mas, então, que explicação daremos
de como essas novas inferências se seguem do significado das
constantes lógicas? Uma resposta a esse problema foi bastante
criticada. Alguns dos positivistas lógicos (filósofos que foram
influenciados pelo Tractatus em alguns aspectos) disseram que
um sistema lógico pode ser dividido como que em duas partes.
O significado dos sinais usados na primeira parte de nosso
sistema é determinado pelas regras que lhes conferimos, en -
quanto o resto do sistema consiste no que se segue de nossas
regras. No entanto, foi dito, isso não resolve o problema, pois
A CONCEl'ÇKO POSTI:IUOR

como devemos entender a frase "se segue de nossas regras"?


Parece que existem apenas duas possibilidades. Ou os posi-
tivistas lógicos são obrigados a recorrer a uma noção que eles
deveriam estar elucidando, a saber, a de uma estrutura lógica
que, existindo independentemente dos fatos empíricos e do
acordo humano, garante o desenvolvimento de nosso sistema,
ou eles são forçados a supor que o desenvolvimento de um
sistema lógico é inteiramente arbitrário, dependendo, em
qualquer ponto, de como queremos desenvolvê-lo. A primeira
alternativa, no entanto, supõe o que se pretende elucidar, e a
segunda parece extremamente implausível.
Ora, é importante perceber que esse problema é apenas
aparente. Bem entendido, ele desaparece. Para perceber
isso, será útil considerar uma analogia. Podem-se construir
computadores que, diante de problemas, concordarão ao
fornecerem respostas que até o momento não foram sequer
consideradas por qualquer ser humano. Como isso é possí-
vel? Parece evidente que os computadores não dispõem de
qualquer apreensão de princípios lógicos, que eles operam,
em poucas palavras, de acordo com causas puramente na-
turais. Frente a isso, poder-se-ia dizer que os engenheiros
que constroem os computadores dispõem de uma apreensão
desses princípios e constroem computadores para operarem
de acordo com eles. Entretanto, se pensarmos um pouco,
veremos que essa não é uma resposta para o problema,
pois como os engenheiros programam nos computadores a
maneira como esses princípios devem ser aplicados a pro-
blemas que eles mesmos sequer consideraram? Como dois
computadores, trabalhando independentemente, podem
concordar na solução para um problema, solução essa que,
até então, não havia sido vista pelo olho humano?

157
H. O. Mounce

Ora, não é evidente, se refletirmos, que o que temos aqui


é meramente a ilusão de um problema? Os computadores
concordam porque foram construídos nos mesmos moldes;
o resto é apenas o trabalho da causação natural. Uma expli-
cação análoga a essa se aplica ao caso de seres humanos que
desenvolvem um sistema lógico ou matemático. Pessoas que
foram ensinadas a usar sinais de determinadas maneiras
continuarão, em diferentes circunstâncias, a concordar
em seu uso desses sinais, mesmo quando estiverem traba -
lhando independentemente. A explicação para isso (se uma
explicação for necessária) repousa no modo como elas foram
inicialmente treinadas. É um fato que pessoas que receberam
o mesmo treinamento em certas circunstâncias reagirão
de maneira similar em outras, não como resultado de um
acordo explícito, mas como resultado de seu treinamento.
O desenvolvimento de um sistema lógico ou matemático
depende desse acordo nas reações. Em outras palavras, o
desenvolvimento de um sistema lógico ou matemático não é
nem uma questão arbitrária, em qualquer sentido natural da
palavra, nem uma questão de ele ser guiado por alguma es-
trutura lógica subjacente. Princípios lógicos, de fato, não são
eles mesmos fatores na explicação do desenvolvimento de um
sistema - o que não significa negar a existência de princípios
lógicos, e sim elucidar sua natureza. Princípios lógicos são
uma característica do sistema uma vez desenvolvido, e não
fatores exigidos na explicação de como o desenvolvimento
ocorre.
Isso será melhor esclarecido se compararmos o desen -
volvimento de um sistema na lógica ou na matemática com a
composição de variações sobre um tema na música, que é uma
das analogias favoritas de Wittgenstein. O tema representará a
A CONCEl'ÇKO POSTERIOR

primeira parte do sistema, enquanto as variações representa -


rão o seu desenvolvimento. A analogia é boa para o propósito de
Wittgenstein porque seria inteiramente implausível sustentar
tanto que um tema determina suas próprias variações (como
que independentemente de interferência humana, de como ele
é percebido pelo compositor) quanto que a forma variação na
música é inteiramente arbitrária, estando o compositor livre
para colocar na partitura o que quer que lhe venha à cabeça.
Assim, parece evidente que aquele que compõe variações so-
bre um tema é tanto um criador quanto um descobridor e que
um conjunto de variações não exclui outro conjunto de varia-
ções, igualmente bom, sobre o mesmo tema. Há um tema de
Paganini, por exemplo, que é objeto de incontáveis variações
de diferentes compositores - só Brahms chegou a compor dois
desses conjuntos. Obviamente, seria uma tolice sustentar que
existe apenas um conjunto correto dessas variações. No en-
tanto, seria igualmente tolo sustentar que o modo como uma
variação é composta é inteiramente arbitrário. Se não vemos
nenhuma conexão entre um tema e sua variação, não dizemos
que o compositor compôs uma má variação; dizemos que ele
não compôs variação alguma. Muitos de nós, por exemplo,
quando ouvimos pela primeira vez a mais famosa das varia -
ções que Rachmaninov compôs sobre o tema de Paganini, não
conseguimos detectar nenhuma relação com o tema. A relação
consiste em que a variação apresenta o tema invertido. Quando
nos convencemos disso, reconhecemos que Rachmaninov
compôs uma variação, e não apenas uma bela melodia. Em
outras palavras, um tema é uma variação sobre outro somente
se existe alguma conexão entre eles.
Isso, porém, suscita uma reflexão importante. Não é pos-
sível encontrar alguma conexão entre quaisquer duas coisas?

159
H . O. M ourice

Por exemplo, suponha que Rachmaninov tivesse inserido


"Cod save the Queen" como uma das variações sobre o tema
de Paganini e, quando questionado sobre isso, tivesse dito
que a primeira vez em que ele ouviu o tema de Paganini foi
durante um concerto em que a rainha da Inglaterra esteve
presente. Não deveríamos aceitar, com base nisso, que ele
teria composto uma variação. Ainda assim, haveria uma co-
nexão, bastante peculiar, entre o que ele compôs e o tema de
Paganini. De maneira semelhante, suponha que eu continu -
asse a série a, 4, 6, 8 ... escrevendo 14; isso porque meu filho
mais velho tem catorze anos, e os outros filhos, respectiva-
mente, dois, quatro, seis e oito anos. Isso não contaria como
uma continuação da série. Por outro lado, contaria como
uma continuação da série se eu escrevesse 10, minha razão
para isso sendo que este é o quinto número par da série dos
números cardinais, e os quatro números pares precedentes
constituem o começo da série que busco continuar. Mas por
que isso ocorre? Em ambos os casos, existe uma conexão.
Parece que, para compor uma variação ou continuar uma
série matemática, devo encontrar não apenas uma conexão
com o que a precede, mas uma conexão que seja pertinente.
Isso, entretanto, pode parecer desqualificar toda a posição,
pois como é possível explicar o que faz com que uma conexão
seja pertinente sem recorrer aos fatos ordinários e às reações
dos iniciados? Na verdade, é fácil mostrar que o que faz com
que uma conexão seja pertinente não é algo que subjaza a uma
prática, e sim as reações dos iniciados. Assim, se a conexão
entre o tema de Paganini e a rainha da Inglaterra é inteira -
mente pessoal àquele que está compondo as variações, então
não será uma variação se ele inserir "God save the Oueen". No
entanto, suponha que fosse um fato bastante conhecido, algo
A CONCEPÇÃO POSTERIOR

familiar a todos os amantes da música, que o tema de Paganini


foi composto a pedido de uma monarca britânica que esteve
presente em sua primeira apresentação; nesse caso, seria
inteiramente aceitável se um compositor incluísse ao menos
uma pequena referência ao hino nacional britânico em suas
variações sobre aquele tema. De um modo semelhante, ao
continuar uma série matemática, supõe-se que eu não deva
considerar as idades de meus filhos, e sim apenas aqueles
fatores que são comuns àqueles com algum treino em ma -
temática. Um treinamento em matemática é precisamente
uma tentativa de concentrar a atenção do aluno sobre alguns
fatores em detrimento de outros. É por isso que o que vem à
mente de alguém que passou por esse treinamento e a quem
se pede que se concentre em algo presente na série será quase
certamente idêntico ao que vem à mente de outra pessoa que
se concentra sobre esses fatores e que passou pelo mesmo
treinamento. É assim que matemáticos entram em acordo
e que um sistema matemático é desenvolvido. Em suma, o
que faz com que algo seja um passo correto na composição
de uma variação ou na continuação de uma série é o fato de
que isso está relacionado de um modo pertinente com o que
o precede; o que faz com que uma conexão seja pertinente é
determinado pelas reações dos iniciados.
Talvez isso possa ser colocado de maneira ainda mais
simples. Considere a relação entre o tema de Paganini e a
mais famosa das variações de Rachmaninov. Naquela varia -
ção, como dissemos, o tema aparece invertido. O significado
preciso disso não é importante. Basta que se refira a um fato a
respeito das duas melodias que é tão objetivo quanto qualquer
outro. Mas o que faz com que esse fato seja relevante na com -
posição de uma variação? Simplesmente, o fato de que existe
H. O. Mounce

uma atividade na qual as pessoas são levadas, por treinamento


explícito ou não, a tratar fatos como esses como relevantes, e
é essa atividade que chamamos de" compor variações". De um
modo semelhante, a série a, 4, 6, 8 ... é constituída pelo que
são de fato os primeiros quatro números pares na série dos
números cardinais (ou, todo outro número nessa série). Os
números 10, 1~, 14 ... continuam a série dos números pares.
Mas o que faz com que esses fatos sejam relevantes na con-
tinuação de uma série matemática? Simplesmente, o fato de
que existe uma atividade em que as pessoas são treinadas para
tratar fatos como esses como relevantes, e a essa atividade
chamamos "matemática". Não é a matemática que determina
o que é relevante, isto é, algo que subjaza à prática humana.
Pelo contrário, é o fato de aqueles que fazem parte de uma
prática particular (ou conjunto de práticas) tratarem uma
coisa como relevante em detrimento de outra que define a
matemática. Ou seja, os fatos aos quais a matemática se refere
não produziriam em si mesmos a matemática. Também tem
de haver matemáticos para reagir a esses fatos. É da intera -
ção entre as duas coisas que surge a matemática. Em suma,
pode-se dizer que o que faz com que a matemática não seja
arbitrária é o fato de que os matemáticos não são arbitrários
em suas respostas, eles respondem de maneiras que confir-
mam o que esperam uns dos outros, e a explicação para isso
será encontrada, se é que será encontrada, em certos fatos
gerais acerca da natureza física e humana.
A razão pela qual esses pontos são perdidos de vista é
que nossa percepção do que é relevante ou apropriado, não
simplesmente na matemática e na música, mas na vida social
em geral, é frequentemente influenciada por fatores que
esquecemos ou dos quais dificilmente estávamos sequer
cientes, e, então, quando filosofamos, estamos inclinados a
supor que os fatores que a influenciaram existem de maneira
inteiramente independente de toda atividade humana. '9
Nas Investigações, Wittgenstein apresenta uma excelente ilus-
tração do quão tacitamente nos baseamos no que é relevante
ou apropriado. Suponha que tivéssemos pedido a alguém que
19 Isso está relacionado ao que Marx tinha em mente quando falou em alie-
nação. A palavra "alienação" tornou-se hoje destituída de significado, mas
Marx a usou para expressar um insight importante. Ele notou uma tendência
a se atribuir como que à natureza das coisas o que é na realidade o produto
das próprias ações das pessoas. Por exemplo. as pessoas às vezes acreditam,
ou agem como se acreditassem, que aquilo que responde pelo funciona-
mento do estado ou do sistema econômico é algo mais do que as atividades
daqueles que compõem o estado ou que lidam com questões econômicas;
de fato, é quase como se elas acreditassem que as atividades daqueles que
compõem o estado ou que lidam com questões econômicas pudessem ser ex-
plicadas pelo funcionamento, digamos, do Estado ou do Sistema Econômico.
Elas tratam os produtos de sua própria atividade como se fossem alheios a
elas. Um seguidor de Marx certa vez satirizou essa tendência dizendo qu~.
além de considerarmos os interesses dos pacientes e dos médicos, devemos
cuidar para não negligenciar os interesses da Medicina. Essa ideia foi vulga -
rizada por marxistas posteriores que, diferentemente de Marx, perderam de
vista duas coisas igualmente importantes, a saber, (a) que a medicina, por
exemplo, não existe independentemente das ações de pacientes e médicos
e (b) que a relação entre um paciente e um médico não é algo que possa ser
alterado arbitrariamente. É (b), de fato, que ajuda a explicar a tendência a
tratar a Medicina como se ela existisse independentemente de pacientes e
médicos. O ponto é que a atividade humana, em uma dada época, terá con-
sequências que influenciarão a atividade humana futura, de modo que as
instituições, em sua maioria, desenvolvem-se independentemente do que
é desejado para elas. Ora, devemos ter cuidado com comparações apressa-
das, mas há, parece-me, uma relação real neste ponto entre o tratamento
conferido por Marx às instituições sociais e o tratamento conferido por
Wittgenstein à matemática e à lógica. Podemos dizer que o que Wittgenstein
tentou mostrar era que não há, além dos fatos naturais e das atividades dos
matemáticos, algo chamado "Matemática", mas que isso não significa que as
operações matemáticas sejam arbitrárias e possam ser livremente alteradas.
IL O. Monnce

ensinasse um jogo a nossos filhos e, ao retornar para ver o


andamento das coisas, víssemos que essa pessoa estava en -
sinando-lhes um jogo de azar, digamos, roleta ou blackjack.
Indignados, diríamos: "não foi isso que quisemos dizer com
um jogo". Por que estaríamos justificados em nossa indig-
nação? Afinal de contas, roleta e blackjack são classificados
como jogos. Além disso, não os excluímos no que dissemos,
e é inteiramente improvável que os tenhamos excluído até
mesmo mentalmente quando o dissemos. A razão é que,
nesse contexto, essas coisas estão supostas. Não apenas é
impróprio ensinar esse tipo de jogo a crianças como é nor-
malmente impróprio pedir a alguém que não o faça. Adquirir
esse sentido do que é apropriado dizer ou fazer é a parte mais
importante do aprendizado de uma linguagem. Um conheci -
mento da estrutura gramatical é, por comparação, de menor
importância. Alguém pode ser perfeitamente inteligível com
um português errado e inteiramente ininteligível ainda que
suas frases sejam perfeitamente construídas.
Ora, o que se aplica à linguagem em geral se aplica em
particular ao desenvolvimento de um sistema na matemática
ou na lógica. Como eu disse, para pessoas com uma fisiologia
similar, que compartilham um treinamento em co~um e que
se deparam com um mundo em comum, certos fatos suscita-
rão outros fatos e, mesmo trabalhando independentemente
umas das outras, elas concordarão na maneira de proceder. O
matemático ou o lógico não desenvolve o seu sistema olhando
atentamente para o futuro, mas procurando uma conexão
pertinente com o que já passou, sendo razoavelmente con -
fiante em que aquilo que ele toma como pertinente também
será tomado como pertinente pelos outros. Nesse sentido, ele
é tanto um criador quanto um descobridor; e uma vez que,
_A CONCEPÇAO POSTEI\101\

como o compositor de uma variação, ele só pode se basear no


que já passou, ele não pode garantir que encontrará a conexão
pertinente que procura, nem mesmo que essa conexão existe
para ser encontrada.
À luz desta última observação, será útil concluir conside-
rando o que Wittgenstein tem a dizer em sua obra posterior
sobre os paradoxos de Russell. De acordo com a concepção
posterior de Wittgenstein, não teremos entendido propria -
mente um paradoxo como o do Mentiroso até que tenhamos
chegado a sentir-nos intrigados a respeito de como qualquer
pessoa pode se sentir intrigada por ele. Isso porque é muito
fácil explicar o surgimento do paradoxo, cujos passos não são
nem um pouco intrigantes. Por exemplo, considere o enun -
ciado "isto é falso". É evidente que os fundamentos de verdade
dessa proposição, em seu emprego mais usual, são parasitários
dos fundamentos de verdade de outra proposição. Em outras
palavras, quando alguém diz "isto é falso", normalmente, essa
pessoa está se referindo a algum outro enunciado (digamos,
"está chovendo"), e não se sabe se o que ela diz é verdadeiro
ou falso até que se tenha determinado a verdade ou falsidade
do outro enunciado C'está chovendo"). Assim, se "está cho-
vendo" é falso, o enunciado "isto é falso" é verdadeiro; se "está
chovendo" é verdadeiro, o enunciado é falso.
Agora, note que, se alguém nos pede para tratar a frase
"isto é falso" como fazendo referência a si mesma, essa pes-
soa está nos pedindo para estender o uso da frase para além
de seu emprego normal. Não há, é claro, nenhuma razão em
si mesma segundo a qual não deveríamos fazê-lo. Estende-
mos o uso de uma frase para além de seu emprego normal
quando tratamos "esta frase contém cinco palavras" como
fazendo referência a si mesma. Nesse caso, parece bastante
O.

natural fazê-lo; temos pouca dificuldade, afinal de contas,


em determinar se a frase em seu novo uso é verdadeira ou
falsa. Note, entretanto, que existe uma diferença vital entre
os dois casos. Uma frase da forma "X contém cinco palavras"
não depende para sua verdade ou falsidade da verdade ou fal-
sidade de alguma outra frase. O procedimento normalmente
usado para verificá - la pode ser aplicado de forma igualmente
simples tanto à própria frase quanto a qualquer outra. No
entanto, a verdade ou falsidade de "isto é falso" depende
manifestamente da verdade ou falsidade de alguma outra
frase. Ou seja, quando tratamos "isto é falso" como fazendo
referência a si mesma, não estamos apenas estendendo o seu
uso, estamos removendo de seu uso normal uma das carac-
terísticas que lhe são essenciais. Portanto, não surpreende
nem um pouco que devêssemos nos meter em confusão. Seria
muito surpreendente se isso não acontecesse.
Todavia, o que isso não explica, poder-se-ia dizer, é a forma
particular que a confusão assume. Por que ela assume a forma
de um paradoxo, de uma contradição? Isso é muito facilmente
explicado. A contradição surge porque, embora não estejamos
mais usando a frase normalmente, continuamos a aplicar a
ela, por raciocínio análogo, algumas das características de
seu uso normal. Como dissemos, os fundamentos de verdade
de "isto é falso" estão de tal modo relacionados aos de outro
enunciado que, quando o outro enunciado é verdadeiro, "isto
é falso" é falso, e, quando o outro enunciado é falso, "isto é
falso" é verdadeiro. Ora, por raciocínio análogo, se "isto é
falso" faz referência a si mesmo, então se é verdadeiro (é im-
portante não olhar muito de perto para o que se supõe que isso
signifique), ele é falso, e se é falso, ele é verdadeiro. Temos aí
nossa contradição.
A CONCEPÇiíO l'OSTERJOR

Ora, é essencial não reagirmos a essa contradição tentan -


do nos livrar dela. Se estamos corretos em nossa explicação,
isso será, de qualquer forma, impossível, pois todo o objetivo
da explicação é mostrar que a contradição é inteiramente es-
perada. O que seria surpreendente - na verdade, miraculoso
-, dado o modo como estamos usando, ou tentando usar, a
frase "isto é falso", é que uma contradição não surgisse. O
que deveríamos considerar não é a contradição, mas o modo
como as pessoas reagiram a ela. Por que, afinal de contas, as
pessoas tentaram se livrar dela? Por que se sentiram intri -
gadas por ela?
A resposta, me parece, não está muito longe. A contradi-
ção será intrigante somente se a analisarmos com uma visão
preconcebida, de acordo com a qual ela não pode estar onde
está. Por exemplo, se sustentarmos que o desenvolvimento
de um sistema lógico reflete alguma estrutura subjacente
infalível, então o aparecimento da contradição parecerá ex-
plicável somente com a suposição de algum erro humano. Ou
seja, parecerá algo de que devemos nos livrar. No entanto,
nosso esforço neste capítulo tem sido o de mostrar que essa
visão está equivocada. Seguindo Wittgenstein, argumenta-
mos que um sistema lógico ou matemático é uma construção
humana em que, apoiando-nos em um sentido comum acer-
ca do que é relevante ou pertinente, procuramos construir
sobre o que já foi estabelecido.Já que não temos nada sobre
o que nos apoiar exceto aquilo que já foi estabelecido, não
podemos garantir que, na tentativa de estendermos nosso
sistema, seremos indefinidamente bem sucedidos. Vista
agora por esse ângulo, a contradição que estamos conside-
rando não parecerá nem um pouco intrigante. Tudo o que
ela provará é que não podemos esperar estender nossos
H. O. Mounce

procedimentos indefinidamente sem jamais nos meter:11-os


em confusão.
Isso estava implícito no primeiro exemplo que conside-
ramos no presente capítulo. Dissemos que o uso de "-p" não
garante um uso inequívoco a "--p". Algumas pessoas acharão
pertinente usar o último sinal como equivalente a "p"; outras,
como equivalente a "-p". Os fatos não se assimilam ao nosso
sentido comum do que é pertinente. Nesse caso, porém,
a questão torna-se indecidível;'º deparamo-nos com um
obstáculo. A ideia de Wittgenstein é que a existência desse
tipo de obstáculo não deveria nos surpreender.
Precisamos esclarecer um pouco mais esta última ideia,
pois Wittgenstein foi amplamente mal entendido no que
disse sobre ambiguidade e contradição. Por exemplo, foi dito
que, para Wittgenstein, uma contradição na matemática não
tem nenhuma importância. Isso, entretanto, é um completo
mal entendido. A ideia de Wittgenstein era que uma contra-
dição na matemática, ou em qualquer outra área, é danosa
somente onde causa dano. Obviamente, ela é danosa se nos
mantém presos ou impede a comunicação, mas ela não faz
isso por meramente existir. Em outras palavras, a existência
de uma contradição no interior de um sistema não é nem
surpreendente nem danosa em si mesma. Podemos ilustrar
isso facilmente por referência a "isto é falso". Como vimos, se
o uso da frase é estendido de um certo modo, deparamo-nos
com uma contradição, mas o ponto é que a condição para o
surgimento da contradição é que a frase não seja usada da ma -
neira usual, isto é, da maneira como todos desejarão usá-la.

~o Quero dizer, é claro, dentro do sistema. Obviamente, podemos alterar


o sistema de um jeito ou de outro, digamos, de acordo com o que for con-
veniente.

168
A CONCEPÇAO POSTEI\IOI\

Por essa razão, a contradição, no que diz respeito à lingua-


gem ordinária, é inteiramente inofensiva. Onde as pessoas
querem usar a frase, não existe nenhuma contradição; ela
existe apenas onde ninguém desejaria usar a frase. Em outras
palavras, é mera superstição tratar uma contradição como
uma espécie de veneno que, se ocorre em uma parte de um
sistema, gradualmente se espalhará pelo sistema como um
todo. Ou uma contradição em um sistema causa dano ou ela
não causa; se não causa, podemos ignorá-la; se causa, pode-
mos tomar algumas providências para lidar com ela.
Perceber-se-á, então, que o tratamento conferido por
Wittgenstein ao paradoxo de Russell está de acordo com
toda a sua concepção posterior da lógica. Resumindo, sua
concepção posterior é a seguinte. Um sistema lógico ou ma -
temático é uma construção humana. Ele começa em um uso
concordante de sinais. Podemos desenvolver um sistema
porque o modo como originalmente usamos os sinais leva ao
seu uso futuro. Pode-se dizer, se assim se quiser, que os usos
(
anteriores determinam os usos posteriores. A determinação,
no entanto, é uma questão de fato, não de lógica. Ela se dá
por meio da natureza humana e física. Quando há um acordo
no uso de sinais e no desenvolvimento desse uso, temos
princípios lógicos, pois esses meramente registram e cris-
talizam o modo como usamos os sinais. Em outras palavras,
princípios lógicos surgem a partir do uso da linguagem; eles
não subjazem a ela.
É de se esperar que, por contraste com essa concepção
posterior, a concepção anterior ficará ainda mais clara.
APÊNDICE

temas do Tracuuus

O seguinte índice analítico pode se mostrar útil para estudantes


que já estão familiarizados com a parte principal deste livro.

Fatos 1- 1.~1
"O mundo é tudo que é o caso". As proposições que se seguem a
essa são suas elucidações. Assim, "tudo que é o caso" é a totalidade
dos fatos, não das coisas. A diferença entre "fatos" e "coisas" é
elucidada pelo enunciado de que são os fatos no espaço lógico que
são o mundo.

Estados de coísas z - ~.0141


"O que é o caso, um fato, é a existência de estados de coisas". A
seção que começa com essa proposição é uma elucidação ulterior
das proposições que caem sob 1. Um fato é um estado de coisas,
é algo complexo. As coisas que constituem o complexo aparecem
em certa combinação, mas elas poderiam estar combinadas de
outro modo. Na lógica, entretanto, nada é acidental. Se uma coisa
pode ocorrer em um estado de coisas, a possibilidade do estado de
coisas já deve estar inscrita na coisa. Uma mancha no campo visual
não precisa ser vermelha, mas deve ter uma cor; um som deve ter
uma altura; objetos do tato, uma dureza; e assim por diante. Os
objetos existem no espaço lógico, de modo que, se conheço um
objeto, também conheço todas as suas possíveis ocorrências em
estados de coisas.

Objetos a.oa - ~.o63


"Objetos são simples". Um estado de coisas é complexo, de modo
que todo enunciado sobre um estado de coisas pode ser analisado
em um enunciado sobre os seus constituintes.No entanto, nenhum
enunciado sobre seus constituintes pode ser analisado em outro
H. O. Monxcr

enunciado, do contrário, não haveria contato entre a linguagem e


o mundo. Em algum ponto, portanto, palavras devem apenas ser
representantes de objetos, estes sendo simples. Somente quando
palavras são representantes de objetos algo pode ser dito. Além
disso, o que quer que seja dito envolve complexidade, envolve a
combinação de objetos. Dizer que algo é vermelho, por exemplo,
é representar uma combinação de objetos, um estado de coisas.
(É por isso que um objeto em si mesmo é, por assim dizer, inco-
lor.) Uma combinação de objetos pode ser representada porque é
possível para os objetos representados aparecerem nessa combi-
nação. Essa é uma questão de lógica. O que é o caso, a realidade, o
mundo, depende de quais dentre esses estados de coisas possíveis
existem. Essa é uma questão de fato. A lógica determina apenas o
que é possível; ela não pode determinar o que é o caso.

Figurações ~.1- ~-~~5


"Figuramos os fatos". Uma proposição afigura; ela é a represen-
tação de um estado de coisas possível, do que poderia ser o caso.
Os elementos de uma proposição correspondem a objetos; eles
são seus representantes. Esses elementos estão relacionados uns
com os outros de determinada maneira. A forma que os elemen -
tos assumem constitui a figuração. O fato de que os elementos da
figuração estão relacionados de uma determinada maneira é uma
representação de como as coisas estão no mundo. Assim, deve
haver algo em comum entre a forma da proposição é a forma dos
objetos que ela representa.No entanto, o que a proposição afigura
é um estado de coisas possível; ela não pode afigurar sua própria
forma. Além disso, a questão acerca de sua verdade ou falsidade é
diferente da questão de saber o que ela afigura. Para saber se ela
é verdadeira, deve-se primeiro saber o que ela afigura e, então,
compará - la com a realidade. Ela afigurará a mesma coisa quer
seja verdadeira ou não.

Pensamento 3 - 3. 13
"Uma figuração lógica dos fatos é um pensamento". Isso pode ser
lido na outra direção: um pensamento é uma figuração lógica dos
A Pt:N llJCE: os TEMAS DO Troctatus

fatos. Em outras palavras, um pensamento é um pensamento ape-


nas quando tem a estrutura lógica de uma proposição ou figuração.
(Essa interpretação é, no entanto, controversa. Aconselha-se o
estudante a consultar as páginas 47-51 deste livro, onde a questão
é discutida em detalhe.)

Proposição e nome 3.14-3.~61


"O que constitui um sinal proposicional é o fato de que, nele,
seus elementos (as palavras) estão uns para os outros de uma
determinada maneira". O sentido de uma proposição repousa em
sua estrutura. Nisso ela deve ser contrastada com um nome. Um
nome não possui forma de afiguração; ele apenas corresponde,
enquanto representante, a um objeto do mundo, que é o seu sig-
nificado. Entretanto, o significado, ou melhor, o sentido de uma
proposição ,n ão é algo no mundo a que ela corresponda. O sentido
de uma proposição não é externo a ela como o significado de um
nome é externo a ele. É por isso que uma proposição tem o mesmo
sentido quer seja verdadeira ou falsa, quer corresponda a algo no
mundo ou não.

Lógica e convenção 3.~6~ - 3.5


"O que os sinais não expressam, sua aplicação mostra. O que os
sinais escamoteiam, sua aplicação denuncia". É somente porque
uma proposição é uma coleção de sinais provida de estrutura lógica
que ela tem um sentido, e é apenas no interior dessa estrutura que
um nome tem significado. Todavia, a estrutura lógica nem sempre
é claramente revelada pelos sinais. Por exemplo, um e o mesmo
sinal, escrito ou falado, pode ter diferentes usos, como a palavra
"é", que aparece às vezes como a cópula, às vezes como um sinal
de identidade e às vezes como uma expressão para existência. Aqui
a palavra "é" realmente corresponde a três símbolos diferentes,
e isso é evidente em sua aplicação, em haver três regras bastante
diferentes para o seu uso. Assim, a forma ou estrutura lógica é
revelada não pelo modo de apresentação dos sinais escritos ou
sonoros, não pelo que é convencional, mas por sua aplicação.Nessa
medida, a lógica se distingue do que é convencional ou arbitrário,
H. O. Mouxcr

pois, embora seja arbitrário o fato de a palavra "é" ser simples-


mente usada, não é arbitrário que algumas coisas se sigam quando
lhe é dado um uso e não se sigam quando lhe é dado outro uso, que
se possa dizer algumas coisas quando ela é usada como a cópula,
mas não quando é usada como um sinal de identidade. A vantagem
de uma notação (ou simbolismo) formal é que ela torna isso claro.
Em um simbolismo adequado, a diferença na aplicação dos sinais
seria indicada por diferenças nos próprios sinais, de modo que a
forma lógica seria adequadamente exibida. Desse modo, o que é
essencial a uma proposição seria claramente distinguível do que
é convencional ou arbitrário. (As proposições 3.33 - 3.333 dizem
respeito à teoria dos tipos de Russell. Para uma discussão sobre
esse tema, ver as páginas 79-Si deste livro).

Filosofia 4-4.0031
"Um pensamento é uma proposição com um sentido". O que não
tem sentido não é uma proposição e não pode ser pensado. No
entanto, como vimos, o sentido de uma proposição pode estar
disfarçado; a gramática, a convenção, pode ocultar a forma ló-
gica. Assim enganados, podemos proferir palavras que somente
parecem constituir uma proposição. Ou seja, palavras podem ser
proferidas sem que tenham uma aplicação clara, uma lógica clara.
Boa parte da filosofia consiste em proferimentos desse tipo, que
surgem por não se compreender a lógica de nossa linguagem. A
filosofia, propriamente entendida, é, portanto, em um sentido
especial, "uma crítica da linguagem"; ela reconduz as palavras ao
seu sentido próprio.

Verdadeiro e falso 4.01 -4.0641


"Uma proposição é uma figuração da realidade". Se entendo uma
proposição, sei qual é a situação que ela representa. Entender uma
proposição é saber o que é o caso se ela for verdadeira, e pode-se
indicar o sentido de uma proposição indicando-se o que a tornaria
verdadeira por oposição ao que a tornaria falsa. Assim, ser uma
proposição verdadeira ou falsa não é uma consequência de ela ter
um sentido: entender o que a tornaria verdadeira e o que a tornaria

174
A PÊN D ICE: os TEMAS DO Tractatus

falsa é entender o seu sentido. Segue- se que o sinal para a negação


não introduz uma nova discriminação dos fatos. Se entendemos
uma proposição, sabemos o que a tornaria falsa, e, no que diz respeito
aos fatos, não há mais nada a ser apreendido para que entendamos
a negação dessa proposição. Para acompanhar a discussão, ver as
páginas 56-8.

Filosofia e ciência 4.1 - 4.116


"Proposições representam a existência e a inexistência de estados
de coisas". A totalidade das proposições verdadeiras constitui as
ciências naturais. A filosofia não é uma das ciências naturais. Ela
não é uma teoria, mas uma atividade. Sua tarefa é o esclarecimento
dos pensamentos.Na medida em que se considera uma teoria, ela
é confusa. Ela confunde o que pode ser dito com o que só pode ser
mostrado.

Conceitos formais 4.1~ -4.~


"Proposições podem representar toda a realidade, mas não podem
representar o que devem ter em comum com a realidade para
que possam representá- la - a forma lógica". Relações lógicas são
propriedades formais. A tentativa de enunciar as propriedades
formais de um conceito é confusa. Essas não podem ser ditas, mas
se mostram na aplicação do símbolo. Desse modo, asserir '"está
chovendo' é uma proposição", ou "vermelho é uma cor", ou "1 é
um número", é um contrassenso. "Está chovendo", por exemplo,
mostra que é uma proposição, que é inteligível, naquilo que diz.
Nada é acrescentado ao se tentar dizer que ela é uma proposição.
(Wittgenstein introduz, nessa seção, a importante noção de série
formal. No entanto, ver as proposições 5.~-5.541 para um trata-
mento mais detalhado).

Função de verdade 4.~1-4.45


"A proposição de tipo mais simples, uma proposição elementar,
assere a existência de um estado de coisas". As proposições da
linguagem ordinária são complexas; elas são constituídas por pro-
posições elementares. Uma proposição complexa é uma função de

1 75
H . O. M orrncr

verdade de proposições elementares, isto é, a verdade ou falsidade


da proposição como um todo dependerá da verdade ou falsidade de
suas constituintes elementares. Os modos pelos quais a verdade
ou a falsidade da proposição como um todo pode ser determinada
pela verdade ou falsidade das proposições que a constituem po-
dem ser exibidos na forma de uma tabela de verdade. Uma tabela
de verdade é um símbolo proposicional. Por exemplo, pode-se
escrever o mesmo sinal proposicional tanto como "p v q" quanto
como "(VWF) (p,q)".

Tautologia 4.46-5.101
"Entre os grupos possíveis de condições de verdade, há dois casos
extremos". Podemos construir proposições que são falsas quais-
quer que sejam as possibilidades de verdade de suas proposições
constituintes e outras que são verdadeiras quaisquer que sejam es-
sas possibilidades. Podemos construir contradições e tautologias.
Tautologias não dizem nada: nada sabemos sobre o tempo quando
sabemos que chove ou não chove. Entretanto, tautologias não são
contrassensos. Elas são parte do simbolismo. Diferentemente de
algaravias, elas mostram algo sobre a forma lógica. As proposições
da lógica são tautologias.

Inferência 5.11-5.156
"Se todos os fundamentos de verdade comuns a um certo número
de proposições forem, ao mesmo tempo, fundamentos de verdade
de uma determinada proposição, diremos que a verdade desta se
segue da verdade daquelas". A inferência lógica repousa inteira -
mente sobre as relações internas entre proposições. Se "p" se segue
de "q" na lógica, elas mesmas são a única justificação possível para
a inferência. As "leis de inferência", que se supõe que justifiquem
as inferências, são supérfluas. Não existe hierarquia entre as
proposições da lógica. Todas estão no mesmo nível e todas dizem
a mesma coisa, a saber, nada. Ao desenvolver um sistema lógico,
estamos meramente explicitando relações internas entre propo-
sições, mostrando como seus sentidos estão inter-relacionados.
A PÊN D ICE: os TEMAS DO Tracrotus

(Nessa seção e, brevemente, na última, Wittgenstein discute a


probabilidade. Ver as páginas 110-1 deste livro para aprofundar
a discussão).

Operação formal 5.~-5.54


Essa é uma seção complexa na qual os modos como Wittgenstein
apresenta as operações formais, a forma geral da proposição, a sig-
nificação do simbolismo lógico e a generalidade estão interligados.
Para uma explicação adequada dessas passagens, recomenda-se
que o estudante volte aos capítulos 4 e 6 deste livro.

A essa altura, Wittgenstein já completou a exposição de sua


concepção da proposição e da lógica. Nas seções que restam, o
principal objeto de sua atenção são aquelas proposições que, à
primeira vista, parecem não se encaíxar de maneira conveniente
em sua exposição. Em grande parte, a discussão presente nessas
seções é demasiado complexa para admitir um resumo de alguma
utilidade. Onde isso ocorre, adotarei o procedimento adotado no
caso da seção 5.'.4-5.54: indicarei o tópico e então apontarei para
o capítulo deste livro em que ele é discutido em detalhe.

Enunciados de crença 5.541-5.54~3


A dificuldade com "A acredita que p" é que ela parece não ser
verifuncional. Para uma discussão de como Wittgenstein resolve
essa dificuldade, ver o capítulo 8.

A lógica, o mundo e o eu 5.55-5.641


'Essa seção inclui a discussão wittgensteiniana acerca do solip-
sismo. Veja o capítulo 9. É importante que o estudante note que
Wittgenstein não está defendendo uma versão do solipsismo, e
sim que ele está apresentando o solipsismo como um exemplo de
confusão filosófica que surge por não se perceber a diferença entre
o que pode ser dito e o que só pode ser mostrado.

177
H. O. Morrxct

Lógica e matemática 6-6.~41


O que é importante nessa seção é perceber o sentido preciso em
que a lógica e a matemática estão relacionadas. A matemática é um
método da lógica. Ela não é derivada de um conjunto de princípios
lógicos; ela é, sim, um aspecto da operação lógica fundamental
através da qual qualquer proposição é derivada de outra. Para uma
discussão detalhada, ver o capítulo 5.

Ciência natural 6.3-6.37~


Aqui, Wittgenstein elucida um pouco mais a diferença entre a
generalidade da lógica e a generalidade acidental considerando a
natureza das leis científicas. Ver o capítulo 7.

Valor 6.373-6.5~~
Uma expressão de valor não é um enunciado de um fato. Todas
as proposições têm o mesmo valor porque todas as proposições
meramente dizein o que é o caso.No entanto, o que é o caso, o que
acontece no mundo, não é o mesmo que o que deve ser, aquilo que
possui valor. Para aprofundar a discussão, ver o capítulo 10.

O que pode ser dito e o que só pode ser mostrado 6. 53-7


Para uma discussão das questões complexas levantadas por essas
últimas proposições, ver o capítulo 11.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BLACK, M. 1964. A companion to Wittgenstein's Tractatus. Cambridge:
Cambridge University Press.
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__ . 1974. The foundations of arithmetic: a logico-mathematical enquiry
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·--· 1993. "Alecture onethics". ln: KLAGGE, J. C. & NoRDMAN,A. (Ed.).
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Santos. 3ed. São Paulo: Edusp.
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M. S. Hacker e J. Schulte. Oxford: Wiley/Blackwell, Oxford.
__ . ~015. Tratado lógico-filosófico/Investigações filosóficas. 6ed. Tradução
M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
__ . ~015. Uma conferência sobre ética. Coimbra: Imprensa da Univer-
sidade de Coimbra.
__ . ~017. Cadernos 1914-1916. Lisboa: Edições 70.
ÍNDICE DE TERMOS

A M
Axioma da infinidade, 18, 80 Matemática, 83-90, 178
Mecãnica newtoniana, 107-8
B
Místico, 136-8
Barra de Sheffer, 72,, 76
N
e
Negação, 54-8, 152,-3
Causalidade, 104
Conceito formal, 83-90, 175 o
Constante lógica, 10, 2,4 , 71-5 Objeto, 33-5, 171-2,
Contradição, 62,-3, 168 Operação,73-6,85-9
Crença, n3-9, 177
p
E Paradoxo lógico, 15-8, 165-9
Espaço lógico (ou forma lógica) 3o- Probabilidade, 109-n
3, 44-8, 89, 171-2, Produto e soma lógica, 91-100
Equação, 89-90 Proposições filosóficas, 139-49, 174
Ética, 83, 130-6 Psicológico, 49-51
Eu, 12,1-8
s
F Solipsismo, 12,1-8, 140-6, 178
Fato Soma lógica (ver Produto e soma
e coisa, 2,9-36, 171 lógica)
negativo, 54-5
T
Forma geral da proposição, 71-Si
Tabela de verdade, 59-61
Forma lógica (ver Espaço lógico)
Tautologia, 62,-70
Função, 12,, 31
Teoria dos tipos, 17, 79- 80
G
V
Generalidade, 91-100
Valor, 12,4 -38, 178
I Verdade
Identidade, 78-9 função de, 59-70, n3
Indução, 101 -2, fundamentos de, 64-70
Inferência lógica, 64-70, 176-7 lógica, 10-2,, 2,1-4
Verdadeiro e falso, 53-8
L
Vontade, 132,-4
Lei científica, 101-12,
H. O. Mouxcs

ÍNDICE DE NOMES

A
Anscombe, G. E. M., 87, 117, 125, 138
Aristóteles, 9-10, 12

B
Brahms, J., 159

F
Frege, G., 9-15, 21-2, 27, 31, 52,
64-5, 67,69,71,73,85,89-9o,
94,98-9
K
Kenny,A.,7

M
Marx, K., 163
McGuinness, B. F., 8, 19

o
Occam, W., 47, 77
Ogden, C. K., 19
p
Paganini, N., 159-61
Pears, D. F., 8, 19

R
Rhees, R., 7, 135
Russell, B., 8-11, 15-9, 22-4, 27, 52,
64-5,67,69,71,73,78-81,90,
94, 96-9, 116, 165, 169, 174

s
Spinoza, B., 29

w
Whitehead,A. N., 9, 11
Tírm.os DA COLEÇÃO DE EPISTEMOLOGIA E FILosoFIAA~ALÍTICA:

A significação do ceticismo filosófico, de Barry Stroud. ~o~o. 480 pp.


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um grupo de pesquisadores e estudantes movidos por questionamentos
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do periódico latino-americano homônimo, mais de 15 títulos e algumas
peripécias no universo das artes gráficas e visuais. Entre os livros, artigos,
resenhas e documentos científicos já publicados encontra -se a constante
reflexão sobre a forma com que o conhecimento científico e as tecnologias
devem ser utilizados, de modo a assegurar que os direitos, o bem-estar
e as condições de participação democrática sejam fortalecidos e que a
natureza e seus poderes regenerativos sejam respeitados e restaurados.

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Este livro foi composto em Filosofia
e impresso em papel pólen soft
8og/m 2 pela gráfica Eskenazi no
pandêmico inverno de 2021.
SOBRE O AUTOR

HOWARD OWEN MOUNCE (1939) é Fellow


Honorário da Universidade de Swansea, no País
de Gales, editor da revista Philosophical Investiga-
tions - periódico oficial da British Wittgenstein
Society - e autor de diversos artigos e livros,
destacando-se, além do presente volume, The two
pragmatisms: from Peirce to Rorty (Routledge,
1997); Hume's naturalism (Routledge, 1999);
Tolstoy on aesthetics: what is art? (Routledge,
~001); e Metaphysics and the end of philosophy
(Continuum, ~008).

SOBRE A COLEÇÃO

O objetivo central da Coleção Epistemologia e


Filosofia Analítica é difundir escritos que
contribuam para a reflexão crítica sobre os gran -
des temas da epistemologia, bem como sobre os
principais autores e assuntos da filosofia analíti-
ca. Com esse intuito, a Coleção visa à publicação
de livros produzidos sobretudo por brasileiros,
fruto de investigações originais nessas áreas,
mas também de traduções para a língua portu-
guesa de obras que, embora relativamente
recentes, já se tornaram clássicas. Desse modo,
pretende contribuir para a divulgação da refle-
xão filosófica e para o debate público sobre a
filosofia e a cultura na sociedade brasileira.

A coleção está organizada em duas séries de


textos:
Epistemologia geral .
Filosofia analítica contemporânea
Coleção _
EPISTEMOL

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