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PANORÂMICA INTRODUTÓRIA

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

No presente livro, procurei apresentar a filosofia


da ciência de modo a pôr em relevo a maneira
como determinados problemas, que parecem
específicos da ciência, se revelam na verdade
matéria de questões filosóficas mais amplas.
Tem havido diversas tentativas para clarificar
os métodos por meio dos quais adquirimos o
conhecimento da natureza e para inserir tal
conhecimento no seio de uma metafísica mais
explícita. Ao mesmo tempo que me orientou o
propósito de tornar manifesta a variedade de
maneiras por meio das quais se buscou a base
racional da ciência, tentei também mostrar como,
em última análise, duas posições opostas parecem
sobressair da variedade palpável. Uma delas é a
corrente positivista, que tende a manusear as
teorias como se fossem meras estruturas lógicas,
apenas eficazes para o estabelecimento de
prognósticos; acompanha-a a tendência para
restringir o conhecimento científico a
generalizações acerca das impressões
transitórias da experiência dos sentidos.
Fortemente contra essa atitude, o ponto de vista
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realista sublinha o esforço da imaginação humana
para atingir as concepções dos elos reais
existentes para lá da experiência dos sentidos e
admite o conteúdo de teorias no estatuto do
conhecimento empírico.
Procurei apresentar o positivismo com a maior
isenção possível, muito embora julgue esmagadora
a evidência que contra ele existe, tanto sob o
aspecto intelectual como histórico e moral. Nos
anos mais recentes, surgiu nova ameaça contra o
realismo científico. O reconhecimento de
influências sociais na formação e no
estabelecimento de teorias, por parte dos
sociólogos da ciência, levou alguns filósofos a
propor um relativismo radical. Inclui-se nesta nova
edição um breve texto introdutório a este
problema fascinante.

Prefácio da primeira edição

No presente livro, procurei apresentar a filosofia


da ciência como inserida dentro de um contexto
filosófico mais amplo, na tentativa de demonstrar
como certos problemas, supostamente como
pertença específica da ciência, são, na realidade,
matéria de questões filosóficas mais alargadas.

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Tem havido diversas tetativas para clarificar os
métodos por meios dos quais adquirimos o
conhecimento da natureza e para inserir tal
conhecimento no contexto de uma metafísica mais
explicíta.
Ao mesmo tempo que me orientou o propósito de
tornar manifesta a variedade de maneiras
através das quais se tem procurado encontrar a
base racional da ciência, tentei igualmente
mostrar como, em última análise, duas posições
opostas parecem sobressair no seio da
variedade palpável.
Uma delas é a corrente positivista, que tende a
lidar com as teorias como se de teoremas
geométricos se tratasse e restringir o
conhecimento empírico às impressões transitórias
da experiência dos sentidos.
Fortemente contra tal atitude, o ponto de vista
realista sublinha o trabalho da imaginação humana
para atingir concepções da realidade existente
para lá da experiência dos sentidos e admite um
conteúdo teórico no conhecimento empírico.
Procurei apresentar o positivismo com a maior
isenção possível, muito embora julgue ser
esmagadora a evidência que contra ele existe,
tanto sob o aspecto intelectual como histórico e
moral.

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A bibliografia inserida no final da obra contém
sugestões para uma leitura mais alargada quer da
corrente realista quer da positivista, e espero que
tais textos contribuam para que o leitor possa
formar a sua própria opinião a respeito de tão
difícil matéria.

Capítulo I

A FILOSOFIA DA CIÊNCIA

A maioria das pessoas supõe que os filósofos se


ocupam de questões muito gerais e muito
profundas, no âmago das quais se situa o problema
do relacionamento do Homem com o Universo.
Considera-se, em regra, que os filósofos nos
fornecem ideias acerca das finalidades gerais da
existência, apontando mesmo os objectivos mais
específicos que cada um deverá estabelecer na
vida comum. Tomada neste sentido, a filosofia da
ciência representaria a discussão quanto ao lugar
ocupado pelo empreendimento científico dentro do
esquema global da vida; caber-lhe-ia, porventura, a
função de proporcionar um justificativo último
para a prática científica, isto é, de investigar se
valeria a pena ela existir.

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Poder-se-ia argumentar, por exemplo, que o
acervo de conhecimentos científicos destrói as
condições necessárias a que a vida humana seja
vivida o melhor possível; a que o esforço
despendido na persecussão do conhecimento
científico deveria ser canalizado, preferívelmente,
para o cultivo da sensibilidade artística, da
delicadeza de maneiras do embelezamento do
ambiente. Todavia, não prosseguirei nesta linha de
rumo, embora esteja muito longe de julgar
destituídos, de valor os debates acerca de tais
generalidades.
No presente livro, analisarei grande número de
questões de pormenor surgidas da própria prática
da ciência. Procurarei explicar como progride o
nosso conhecimento do mundo e das coisas que
nele existem. Tentarei também esclarecer quais os
princípios admitidos no emprego de métodos de
aquisição de conhecimento consagrados pelo
tempo. Veremos como certos princípios se revelam
operantes no trabalho científico; é objectivo
desta obra torná-los manifestos.
A filosofia divide-se em quatro ramos princípais,
a saber: a Lógica, que é a teoria do raciocínio; a
Epistemologia, ou seja, a teoria do conhecimento; a
Metafísica, isto é, a teoria dos conceitos e do seu

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relacionamento; e a Ética ou teoria da valorização,
em particular do valor moral.
Aqui, porém, não nos ocuparemos de ética.
Iniciaremos o presente capítulo com uma análise
preliminar às três primeiras divisões da filosofia e
faremos um breve exame do seu inter-
relacionamento. Por meio do estudo de alguns
exemplos de investigação de problemas lógicos,
epistemológicos e metafísicos, tornaremos mais
profundo o nosso entendimento dos referidos
ramos da filosofia.

A lógica

A lógica é o estudo dos cânones ou princípios do


raciocínio correcto. Para se descobrirem princípios
a partir de estudo de exemplos é preciso
reconhecer quando determinado raciocínio é
correcto. Se soubessemos, recorrendo apenas a
princípios lógicos, quais os argumentos válidos e os
não válidos, não teriamos necessidade de estudar
exemplos de raciocínio para tentar descobrir
princípios, visto já os conhecermos. Na verdade,
somos capazes de dizer se um dado raciocíno está
correcto ou incorrecto sem conhecer ou aplicar
deliberadamente quaisqueres princípios lógicos,

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isto é, sem explícita referência a cânones de
raciocínio correcto.
O estudo da lógica permitir-nos-á dizer porque
razão um raciocínio é correcto ou incorrecto.
Contudo, uma vez extraídos dos exemplos os
princípios da lógica, torna-se inevitável o seu
emprego como cânones, ou seja, que eles exprimam
os padrões aos quais terá de submeter-se o
raciocínio.
É necessário precavermo-nos contra a suposição
de que os princípios do raciocínio correcto, em
matemática, digamos, são também válidos para
outras disciplinas, para a química, por exemplo.
Isso seria idêntico a julgar que todas as línguas
têm a mesma gramática. A creditando em tal, há a
possibilidade de cair na tentação de argumentar,
por exemplo, que os substantivos ingleses têm
declinações, mas que estas são explícitas ou
subentendidas. Outra alternativa igualmente
racional seria a de perguntar se terá cabimento a
aplicação de casos de categoria gramatical aos
substantivos ingleses.
Neste livro, não farei qualquer espécies de
suposição sobre a transferibilidade dos princípios
da lógica de um para outro campo; em particular
não partirei da hipótese de que os princípios
lógicos adequados às matemáticas terão de sê-lo

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também aos métodos de raciocínio de todas as
ciências naturais.
Idealmente, a expressão escrita do
conhecimento científico toma a forma de um
enunciado racional e sistemático. As conclusões
são apoiadas por razões e as hipóteses são
consideradas relativamente ao equilíbrio entre a
evidência favorável e a contrária. Estabelecem-
se conexões lógicas entre as conclusões e as
razões que a elas conduziram e outras relações
lógicas entre as hipóteses e as razões que
apelaram para a sua rejeição ou alteração.
Relações deste tipo constituem o material lógico
e têm de conformar-se com os cânones ou
princípios do raciocínio correcto. Certos
considerandos apoiam uma conclusão; outros não o
fazem. Os juizos sobre tais matérias exprimem o
comentário lógico do raciocínio. Terão de ser
apresentados princípios lógicos que os apoiem. E
estes por seu turno, poderão submeter-se a
escrutação crítica.
Debrucemo-nos agora sobre um exemplo de
raciocínio científico. No paragrafo 944 da sua
obra Experimental Researches, Michael Faraday
escreveu, a propósito de um número de
experiências que demonstravam «o poder do calor
para gerar corrente eléctrica por meio da

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exaltação da afinidade química»: «Nestes
resultados da acção do calor, só posso ver as mais
fortes provas da dependência da corrente
eléctrica dos circuitos voltaícos da acção química
das substâncias que constituem tais circuitos – os
resultados concordam plenamente com as
conhecidas influências do calor sobre a natureza
química. Por outro lado, não vejo como a teoria do
contacto possa ter conhecimento delas, excepto
adicionando novos pressupostos àqueles que a
compõem.»
As fases deste raciocínio podem estabelecer-se
como segue: se a corrente eléctrica é produzida
por acção química, então o aumento desta acção
aumentará a corrente eléctrica; sabendo-se que o
aumento de calor aumenta a acção química, a
aplicação de calor aumentará a corrente
produzida. A corrente produzida aumenta de
facto, e por isso, a acção química terá de ser
responsável pela corrente.
O leitor ficou convencido? Estará correcto o
raciocínio de Faraday? Analisemos de novo o
argumento:

O aumento de calor provoca um aumento de


acção química

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O aumento de calor provoca um aumento de
actividade eléctrica

Portanto

A acção química provoca actividade eléctrica.

Ou em termos mais esquemáticos:

Se p, então q
Se p, então r
_________
Se q, então r

Será válida esta forma de argumento? Será


convincente?
Tal como se apresenta, estará correcta ou
incorrecta? A inclusão do argumento num contexto
experimental e teórico mais amplo modificará
aquilo que o leitor a este respeito?
O exemplo apresentado constitui a análise da
estrutura de uma relação de evidência, pois, no
argumento, Faraday adianta razões para se aceitar
uma hipótese. Este exemplo possui estrutura
muito simples; adiante, lidaremos com mais
elaboradas estruturas de teorias e de explicações.
Procuraremos encontrar os princípios de acordo
com os quais se arquitectam teorias válidas. Em

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certas ciências, tais como a Astronomia ou a
Meteorologia, as previsões representam parte
muito importante do trabalho científico.
Seguiremos a maneira como se estabelecem essas
previsões e observaremos os meios que fazem com
que se justifique a nossa confiança nelas. A
feitura das referidas previsões implica o emprego
de princípios lógicos. Mas, para aplicá-los, há que
preencher certos requesitos.
Consideremos, por exemplo, tudo aquilo que
acarreta a previsão de um eclípse da Lua.
Primeiramente, há que conhecer as leis gerais do
movimento solar e do movimento Lunar. O
astronomo terá ainda de saber em que ponto do
espaço surgiram previamente o Sol e a Lua. Para
que a aplicação das leis do movimento solar e lunar
se justifique, deverá também estar convencido de
que o comportamento passado desses corpos
celestes representa um bom indício do seu
comportamento futuro, ou seja, terá de querer
que parecerão continuar movendo-se do mesmo
modo que sempre pareceram mover-se. E esta
convicção implica partir do princípio de que os dois
astros são objectos materiais estáveis.
Como se vê, o estabelecimento de uma previsão
determinado de pressupostos de diversos graus de
generalidade. Torna-se condição necessária

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aceitá-las para poder aplicar-se o seguinte
esquema lógico:

A partir das posições prévias do Sol e da Lua


E das leis do movimento solar e lunar
___________________________
Inferem-se os movimentos e os lugares onde
Ocorrerão os eclípses da Lua.

A epistemologia

A epistemologia é a teoria do conhecimento.


Na pesquisa epistemológica, estudam-se os
modelos aos quais deverá conformar-se o
conhecimento genuíno.
A) Procura caracterizar-se o tipo de
conhecimento que dado método de estudo
poderá fornecer sobre determinada
matéria.
B) e investiga-se até que ponto esse tipo
de conhecimento se coaduna com o que se
considerou serem os padrões do
conhecimento genuíno ou verdadeiro.
A partir de tais considerandos, seremos talvez
capazes de formar uma ideia sobre qual o género
de factos que nunca chegaremos a conhecer.

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OBJECTIVO; É tarefa do epistemológico
demonstrar como é possível distinguir o
conhecimento da crença na verdade e
diferenciar a certeza da probabilidade.
Este estudo é uma parte importante da filosofia
da ciência. Os filósofos da ciência estão
interessados em determinar até que ponto se
deverá fazer fé em métodos de descoberta
específicos.
A EPISTEMOLOGIA Ocupam-se também de
questões de carácter mais gerais, tal como a
de saber se o conhecimento da existência das
coisas e da matéria é mais certo do que o
conhecimento dos efeitos que as coisas e a
matéria exercem sobre os nossos sentidos.
Os filósofos e os cientistas gostariam de
saber se existe alguma parte do conhecimento
científico que seja certa e não passível da
revisão sob quaisquer circunstâncias concebíveis.
Muitos outros problemas epistemológicos
importantes serão discutidos nos capítulos finais
do livro, como, por exemplo, os seguintes:
De que maneira as novas descobertas
científicas afectam o estatuto do que já
supomos saber? Ou: Terá a informação obtida
pela aprendizagem carácter diferente do da
adquirida através da observação? Ou ainda:

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Serão possíveis as observações sem que o
cientista tenha em mente uma teoria? Ou
então: Em última análise, será todo o
conhecimento um conhecimento teórico?
O debate de todos estes pontos suscitarão
novos problemas, alguns dos quais são de natureza
epistemológica, embora outros nos conduzam à
lógica e a metafísica.
Como breve exemplo introdutório da discussão
de um problema epsitemológico, consideremos
algumas possíveis respostas à pergunta seguinte:
«Que conhecemos realmente?»
A resposta não é fácil, pois poderemos lançar
dúvidas sobre todos os elementos informativos
que nos chegam, mesmo os de aparência mais
segura, e sobre a aparente matéria de facto.
Tomemos dois tipos de casos diferentes.
Suponhamos, em primeiro lugar, que fazemos a
seguinte pergunta: Estarei absolutamente
certo de que, neste momento, vejo a
página de um livro? A dúvida surgirá no nosso
espiríto se perguntarmos a nós próprios como
sabemos se o resto do livro existe quando olhamos
apenas para uma única página. Não é impossível
acontecer que, ao virar a página, se constate a
existência de um espaço em branco em vez das
outras páginas normalmente esperadas. É uma

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hipótese aberta à investigação empírica e pode
esclarecer-se semelhante dúvida. Suscitar-se-ão,
porventura, outras do mesmo género: Talvez o
texto impresso esteja a ser projectado sobre a
folha de papel em branco por meio de um
projector ingenhosamente oculto; ou talvez a
impressão seja projectada na página em branco
através dos poderes do imaginário eidético do
leitor. Todas estas dúvidas poderão,
eventualmente, ser clarificadas.
Mas há ainda um outro tipo de dúvida: É
também concebível que se esteja a sonhar que se
tem um livro na mão. Como provar que não é esse o
caso? Sou levado a pensar que, tomada a prova em
certo sentido, nem o leitor nem qualquer pessoa
conseguirá provar que esteve de facto a ler um
livro e não a sonhar. Trata-se de matéria que
não pode ser provada da mesma maneira que se
demonstra um teórema geométrico . Contudo,
permitimo-nos garantir que sabemos estar a ler
um livro porque ter a certeza de que à nossa
frente está um livro não é de forma alguma a
mesma coisa do que demonstrar um teorema.
Provamos tratar-se de um livro da mesma maneira
que distinguimos livros reais de livros imaginários
ou livros «sonhados».

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Concluir-se-á daqui que sejas absurdas as
dúvidas que suscitei? De certo modo, parecem
sê-lo, pois provar que se está de facto a
ler um livro real não requer nem admite o
rigor da demonstração geométrica. O
propósito da minha insistência em tais
dúvidas baseia-se na necessidade de
indicar o leque de pressupostos que se
nos deparam ao lidarmos com o mundo.
A) Trata-se de suposições empíricas.
Partimos do princípio de que os livros são
fisicamente iguais em toda a sua extensão e
que têm páginas impressas.
B) Mas há também pressupostos de
ordem metafísica. Considerar, por exemplo,
que nem todas as nossas experiências são
sonhos é um pressuposto de ordem metafísica;
não admite o ensino empírico . Constitui,
na verdade, um pressuposto sobre o sistema
conceptual que iremos adoptar. Tratar
o problema da realidade dos sonhos
segundo a mesma bitola do problema
da realidade do conteúdo de um livro
fechado será decair de um cepticismo
sensato sobre a matéria de facto para
uma controvérsia terminológica quase
totalmente desprovida de significado.

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Sonhar é um estado que identificamos por
contraste com a condição de acordado. Se nos
persuadirmos de que deveremos chamar «sonhos»
a toda a nossa experiência, teremos então de
introduzir um par de novos termos que assinalam a
antiga distinção entre sonhar e estar acordado,
visto continuarmos a ter necessidade de
distinguir os sonhos em estado de vigília
dos sonhos durante o sono. O termo
«sonhar» seria então empregue para todas as
nossas experiências e deixaria de ter o significado
de «sonhar», querendo dizer qlgo como
«experimentar». Abarcaria assim quer o estado de
sonho quer o estado de vigília.
Por vezes, será certamente legítimo que
o filósofo proponha semelhante revisão
terminológica. O novo emprego dado à
palavra «sonhar» não é nem antigo nem o
sinónimo daquilo que anteriormente se entendia
por «experimentar». Deixa-nos a sensação de que
a experiência se gera no nosso íntimo, não sendo o
efeito sobre nós do contacto com outras coisas e
com outros seres. Verifica-se uma certa mudança
de visão face a esta nova maneira de utilizar a
palavra «sonhar», que talvez também modifique as
ideias acerca da experiência (1).

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É óbvio – assim o espero – que seria erro bastante
grave avaliar a crença no nosso estado de vigília,
quando de facto estamos acordados, como um
pressuposto ao mesmo nível do que se refere à
uniformidade do material existente num livro ou ao
que respeita à estabilidade do modelo climático
periódico, etc., etc.
Mas regressemos à pergunta: Que é que
sabemos realmente? (em diferentes
circunstâncias). Se todo o conhecimento
científico deriva da observação do que se
passa na nossa vizinhança imediata, como
poderemos dizer com propriedade que
sabemos algo acerca das longínquas
paragens do espaço e do tempo? Uma vez
mais, se a observação se limita àquilo que o
cientísta é capaz de perceber por meio dos
sentidos – ou seja, o que consegue ver, sentir,
tocar, saborear, etc. – que emprego daremos a
informação canalizada por intermédio de uma
equação química? Decreverá ela, de facto, a
destribuição e a redistribuição dos átomos nas
moléculas, acontecimentos esses não suscesptíveis
de observação? Como poderemos garantir com
verdade que sabemos algo do comportamento de
coisas demasiado pequenas para serem
observadas?

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Se acaso aceitamos semelhantes dúvidas, uma
equação química representará simplesmente um
relato sumário das mudanças de cor, de paladar,
de textura, etc., ocorridas nas substâncias
intervenientes em reacções químicas que se sabe
ocorrerem à superfície da Terra e das mudanças
de distribuição dos pesos das substâncias
verificadas em laboratórios e em fábricas. Nos
anos 60 do século passado, Sir Benjamim Brodie
sustentou precisamente este ponto de vista
acerca do significado das equações químicas;
examiná-lo-emos adiante em mais pormenor.
Ao analisarmos o peso de tais dúvidas, torna-
se necessário resolver alguns problemas de
natureza epistemológica. Acaso as teorias
proporcionam um tipo de conhecimento especial,
diferente, do que se obtém através da observação
e da experimentação? Que género de
conhecimento se consegue recorrendo à
instrumentos?
No estudo filosófico dos instrumentos,
investiga-se as diferenças existentes entre o tipo
de conhecimento obtido por meio do uso de
instrumentos que aperfeiçoam e aumentam a
capacidade dos sentidos – o microscópio, por
exemplo – e o conhecimento conseguido pelo
emprego daqueles que captam fenómenos

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inobserváveis devido à falta dos sentidos
imprescendíveis para tanto ( por exemplo, pode
utilizar-se um papel revestido de limalha de ferro
ou uma pequena bússola para assinalar um campo
magnético).
Quando descrevemos os ensinamentos obtidos
através do emprego de instrumentos de detecção,
será lícito dizer que descobrimos factos a
respeito de um campo magnético, bem como factos
acerca da maneira como se comporta a limalha de
ferro ou a bússola nas vizinhaças de uma bobina
electrificada? O nosso estudo sobre as cores terá
sido ampliado pelas descobertas das radiações
ultravioletas e infravermelhas?
Em última análise, estas perguntas conduzem
a interrogações a respeito do conteúdo final
das leis científicas. No decurso da presente
discussão, consideraremos várias respostas a tal
problema. Muitas pessoas pensam que,
rigorosamente falando, o conteúdo das leis
científicas se deveria considerar restringido à
estatística dos conjuntos numéricos derivado da
leitura dos instrumentos; outras são de opinião
que as leis da Natureza se referem ao
comportamento da matéria e das coisas reais
que constituem o mundo tal como o conhecemos;
outras ainda acreditam que tais leis nada mais

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descrevem do que sequências ordenadas das
sensações que experimentamos – em vez de
considerarem as leis da óptica geométrica como
a passagem de raios luminosos através de
diversos sistemas de meios, encaram-nas como
a descrição de sequências de sensações
luminosas no campo visual.

A metafísica

Presentemente, os estudos metafísicos são mais


modestos do que foram no passado. Nenhum
homem prudente escreve acerca do Universo, do
Homem ou de Deus. A metafísica actual ocupa-se
dos conceitos mais gerais utilizados na ciência e na
vida comum. O metafísico moderno poderá
estudar, por exemplo, os conceitos de espaço e os
conceitos de tempo empregues na vida habitual e
compará-los com os usados na teoria restrita da
relatividade; examinará também, porventura,
vários conceitos de causa ou conceitos de
possibilidade e de necessidade.
A metafísica actual tem como objecto obter
clareza de pensamento através do estudo
minuciosos dos conceitos. Em certa medida, isto
efectua-se por meio do exame dos diversos
aspectos do uso da linguagem. O metafísico de

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hoje procurará descobrir a relação existente
entre diversos conceitos. Investigará, por
exemplo, a que se verifica entre conceitos de
objecto e conceitos de espaço. Considerará se
o conceito de direcção temporal se acha
contingente ou necessariamente ligado ao
conceito de causalidade.
Em tempos recentes, alguns destes estudos
e problemas conceptuais deslocaram-se
para o primeiro plano da ciência. Surgiu na
Física o debate de problemas acerca do
conceito de causalidade e de objecto, em
particular nas notas críticas sobre
tentativas de interpretar a mecânica
quântica de maneira útil e consistente.
Problemas conceptuais acerca do espaço e do
tempo despontaram nas teorias da
relatividade. Tabém a biologia suscitou
questões tais como a de saber-se quais os
limites do conceito de indivíduo,
especialmente na discussão dos esforços
tendentes a especificar a unidade da evolução, ou
seja, concretizar aquilo que evolui. O recente
descontentamento da psicologia gira, em parte,
à volta de sentimentos de incerteza quanto
a conceitos metafísicos tais como o de
pessoa e de «acto».

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A relação entre a lógica e a epistemologia

Na filosofia da ciência, os três ramos do estudo


filosófico não poderão ser examinados com
proveito por meio de análises separadas. As
soluções propostas para os problemas de um dos
campos afectam inevitávelmente o tipo de
soluções possíveis para os outros.
Suponhamos que, ao considerar as relações
lógicas existentes entre a evidência relativa a
determinada lei e essa mesma lei, decidimos não
ser apropriado falar-se de inferir a lei a partir da
evidência. Poder-se-á adoptar essa solução por
pensar-se que tal maneira de falar sugerirá a
existência de uma relação lógica onde ela não
existe. Os enunciados que descrevem a evidência
serão enunciados particulares, do género: «nesta
experiência, quando a luz passou de um para outro
meio, a razão do seno do ângulo de incidência e do
seno do ângulo de refracção tinha o mesmo valor
daquele que foi calculado nos ensaios
precedentes.» A lei será expressa num enunciado
geral: «Em todos os casos de passagem da luz de
um para outro meio, é constante a razão do seno
do ângulo de incidência e do seno do ângulo de
refracção»; a lei de Snell é uma lei geral.

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Mas a lógica dedutiva não sanciona a inferência
do particular ao geral. Deste modo, falar-se de
inferir a lei a partir da evidência é, no minímo,
induzir em erro, visto sermos tentados a pensar
que a lei é uma conclusão estabelecida a partir de
premissas especificas de acordo com princípios
lógicos. Se os princípios da lógica dedutiva não
presidirem à feitura das leis extraíveis do
observável, não poderemos afirmar que a verdade
dessas leis deriva, com rigor lógico, da verdade
dos enunciados que lhes descrevem a respectiva
evidência.
É possível retirar disto uma conclusão
epistemológica, nomeadamente a de que, não
obstante ser legitimo dizer que conhecemos a
verdade dos enunciados que descrevem
experiências particulares, não é possível
afirmar que conhecemos a verdade das leis da
Natureza que julgamos basearem-se, de algum
modo, nessa evidência.
Iremos ainda mais longe argumentando que, por
tal motivo, será induzir em erro falar-se em
absoluto de verdade das leis. Dever-se-ia, por
ventura, considerá-las como conjecturas mais ou
menos satisfatórias, deixando em aberto o
caminho ao aparecimento de nova evidência.

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Apresentar-se-á também, talvez, o argumento
de que, muito embora se possa dizer que
conhecemos os factos particulares que constituem
a evidência das leis, apenas é licíto garantir com
propriedade que acredtamos em determinada lei;
não deveria afirmar-se que conhecemos leis, visto
isso subentender que a lei é verdadeira. Não se
pode conhecer o que não é verdadeiro.
As considerações lógicas afectam a
epistemologia no problema das previsões. Alguma
vez teremos a certeza da verdade de uma
previsão? A previsão astronómica aproxima-se
tanto quanto possível da certeza, servindo assim
de exemplo. Há possibilidade de determinar com
grande rigor a posição de um astro. Os enunciados
que descrevem as posições prévias que ele ocupou
funcionam como premissas, as quais inferem
futuras posições com exactidão lógica. Os
almanaques náuticos e as tábuas astronómicas
representam precisamente resultados de tais
inferências.
Seremos talvez a supor que as previsões sejam
tão certas como os dados sobre os quais se
baseiam. É tentador pensar que o rigor das
observações forneça automaticamente um
aumento de certeza na previsão. Observações
precisas são imprescendíveis à previsão exacta,

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mas a certeza é outra ordem de ideias. A
certeza de uma conclusão corresponde à
certeza do elo mais fraco da cadeia dedutiva,
ou seja, da premissa menos certa. Se eu estiver
absolutamente certo de que João tem cavelo ruivo,
mas apenas razoavelmente convicto de todas as
pessoas ruivas são celtas, então só poderei estar
razoavelmente convencido de que João é celta.
Para o emprego dos dados astronómicos na
feitura de uma previsão por método dedutivo, há
necessidade de uma teoria astronómica. Essa
teoria, formada em parte por leis, terá carácter
geral. Todavia, de acordo com os argumentos atrás
apresentados a sua qualidade de verdadeira não
pode ser reconhecida. Na melhor das hipóteses,
considerar-se-á como a teoria mais satisfatória
arquitectada até ao momento. A possibilidade do
seu completo abandono significa o facto de ser
menos certa do que os dados astronómicos.
Encarando o assunto sob este ângulo, talvez
nos inclinemos a avaliar a teoria como o elo
mais fraco da cadeia que vai dos dados à
previsão. Quando se compara a confiança
depositada na exactidão de uma teoria com a
confiança que temos nos dados da observação e da
experiência, creio que em muitos casos, daremos
preferência à teoria. A teoria da evolução, por

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exemplo, é geralmente tida como correcta, não
obstante serem muito incompletos e pouco dignos
de crédito os dados sobre os quais assenta. Mais
adiante e a propósito do assunto, ocupar-nos-emos
de outro factor de maior complexidade.
As ideias quanto à credibilidade dos dados e
mesmo, em certa medida, quanto à maneira como
se interpretam depende da teoria sustentada pelo
investigador. «Dados puros» é coisa que não
existe. Seja como for o modo como se encarem,
contudo, as previsões baseadas em dados e
conseguidas com o emprego de uma teoria não são
mais certos do que a certeza depositada no
elemento mais duvidoso que faça parte da
previsão. Se acaso esta não se concretizar,
estando nós convictos da exactidão dos dados e da
respectiva interpretação, a teoria terá de ser
então revista ou mesmo, em casos extremos,
rejeitada.
Este tipo de incerteza acerca do futuro vai
diminuindo à medida que se descobrem mais factos
e que as teorias adquirem maior requinte e se
tornam mais elaboradas. Hoje em dia, estamos
mais seguros do que nunca a respeito das futuras
posições dos planetas, do efeito da temperatura
nas reacções químicas, dos progressos
demonstrados por pacientes que sofrem de

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determinadas doenças, e, sem dúvida, a nossa
certeza em tais matérias continuará a aumentar.
Existe aqui, porém, uma armadilha filosófica à
espera dos incautos. E bastante fácil ser-se
desviado da atitude sensata que encara como
impossível a certeza absoluta do curso dos
acontecimentos futuros, para se cair na dúvida
excessiva quanto à possibilidade de conhecer
seja o que for do que está para vir.
Ao interrogarmo-nos se conhecemos realmente o
desenlace provável de determinado processo,
poderemos aderir com facilidade à ideia de que, de
facto, não sabemos o que provavelmente
acontecerá. Se acaso não soubermos que o dióxido
de carbono torna leitosa a água de cal será
preferível precavermo-nos para a possibilidade de,
na próxima vez que fizermos passar uma corrente
desse gás atravéz de água de cal, acontecer seja o
que for – ela adquirir cor verde, por exemplo.
No decurso destas linhas, as dúvidas razáveis
talvez surgidas no nosso espirito a respeito do
desenlace concreto de determinada experiência e
do cumprimento exacto de previsões foram-se
transformando em cepticismo, devido à condição
necessariamente restrita daquilo que se deve
considerar conhecimento. Se tudo quanto nos for
permitido afirmar que sabemos tiver de ser

29
absolutamente certo, claro que, em tal caso, o
nosso conhecimento do futuro não será nenhum, e
nulo será também o conhecimento seja do que for.
Mas a diferença entre o conhecimento do futuro
e o mero palpite é um dos contrastes que faz com
que adquira sentido o conceito de conhecimento.
Os estudos científicos não produzem informação
com carácter de certeza absoluta; mas a
ciência também não é um jogo de adivinhas. Em
boa verdade, no sentido rigoroso e restrito do
conhecimento que torna possivel o conhecimento
do futuro, apenas as verdades matemáticas são
conhecimento.
A relação entre a lógica e a metafísica

Os exemplos acima citados foram exemplos da


influência da lógica sobre a epistemologia. Casos
há, também, em que ideias derivadas de reflexões
epistemológicas influenciam a lógica. No
seguimento do livro, depararemos com alguns
destes casos. Mas, por agora, darei apenas uma
rápida vista de olhos a alguns exemplos de
interacção da lógica e da metafísica.
O estilo em que se faz a análise lógica das
proposições pode influenciar-nos as ideias quanto
às categorias metafísicas últimas. Uma das
maneiras por meio das quais os lógicos procedem à

30
análise de enunciados gerais é recorrendo a
predicados e a um processo lógico a que se dá o
nome de quantificação. Por exemplo, a expressão é
«gasoso» designa-se por predicado. Os
substantivos comuns podem ser substituídos por
predicados sem perda aparente de significado. Em
vez de «este cavalo é castanho», dir-se-á este
animal é equino e é castanho».
Termos tais como «todo» e «alguns» são
denominados quantificadores pelos lógicos. É
costume empregarem-se variáveis x, y etc., em
conjunto com quantificadores, do seguinte modo:
em vez de «todos os cavalos são castanhos», dir-
se-á «todos os que são equinos são castanhos»,
eliminando os substantivos em favor dos
predicados. Assim, em lugar de um vago «que»,
utiliza-se a variável x, tornando a redigir a frase
tal como se segue:

Para todo o x, se x é equino, então x é


castanho.

Esta proposição significa o mesmo que «todos


os cavalos são castanhos».
Aplicando tal método analítico à lei que nos diz
que todos os gazes têm o mesmo coeficiente a que
x se expande = ao coeficiente a que y se expande.

31
Em vez de dizer respeito à matéria, ou seja, aos
gases, a nova forma de que se reveste a lei parece
revestir-se à propriedade gasosa e à capacidade
expansível. Um enunciado concebido em termos de
substantivos dir-se-á falar de substâncias e de
objectos, enquanto o expresso em termos de
predicados parece querer indicar qualidades e
processos (1) .
A adesão à lógica predicativa pode levar a pensar-
se que uma proposição se exprime melhor num -
_____________
(1) Para um debate em termos gerais da controvérsia entre
substantivos, predicados e quantificadores, veja-se W. V. Quine na
sua obra From a Logical Point of View, capítulo 1 (Cambridge, Mass.:
Havard University Press, 1953).
eunciado onde se empreguem apenas predicados do
que num outro onde se apliquem substantivos e
adjectivos. Dai, será fácil chegar a pensar que o
modo predicativo de expressão represente, de
alguma maneira, uma reflexão mais exacta da
forma como as coisas são, mais fiel à sua natureza,
do que o emprego de substantivos. Tal sentimento
poderia exprimir-se na teoria metafísica de que
«propriedade» e «qualidade» seriam categorias
mais fundamentais do «substância» e «coisa» e de
que estas últimas deveriam tratar-se como
colecção ou receptáculos de propriedades ou de
qualidades. De acordo com semelhante ponto de
vista, uma maçã não é uma coisa doce, vermelha e
32
redonda, mas um nexo de qualidades – doçura,
vermelhidão e rotundidade.
Mas as coisas nada mais serão do que
receptáculos de qualidades? A pergunta é dificil
de responder e a solução do problema pertence ao
âmbito da metafísica; a ciência não consegue
resolvê-lo. Sejam quais forem as experiências
tentadas, a questão permanecerá em aberto;
trata-se, de facto, de um problema conceptual.
Serão os conceitos de coisa analisáveis sem um
resto de conjunções de conceitos de qualidade?
Algumas questões metafísicas aproximam-se
de questões e de problemas científicos,
relacionando-se com eles. A ciência não se
limita a efectuar experiências. Os cientistas
criam também sistemas de conceitos, adequados
e auto-conscientes, por meio dos quais consigam
compreender o mundo tal como se revela
através dos resultados das experiências.
Os conceitos de coisas abundam na maioria das
ciências. Qual o papel que desmpenham? Serão
elimináveis? Serão as condições para a aplicação
dos conceitos de coisas violadas pelos conceitos
necessários à física subatómica? Que
pressupostos arquitectaremos no nosso sistema
conceptual pelo simples emprego de palavras como
«neutrão» e «protão»?

33
Ao considerar-se a natureza do conceito de
coisa, é possível encontrar parte da resposta,
visto o uso de substantivos e o emprego de
conceitos de coisas serem dois aspectos do mesmo
cometimento metafísico. Regressaremos também a
este assunto ao fazer a análise pormenorizada dos
problemas filosóficos da ciência. Veremos não só
como a lógica influência a metafísica, mas também
os profundos efeitos que esta última exerce sobre
a primeira.

A relação entre a epistemologia e a


metafísica

Já me referi à teoria epistemológica segundo a


qual a única coisa que podemos ter a pretensão de
saber de facto é a de experimentarmos
sensações específicas. De acordo com a
teoria, o conhecimento restringe-se a factos tais
como o de, neste momento, eu experimentar uma
sensação de aperto nos dedos, inferindo apenas
que tal deriva do acto de segurar a caneta; há
também uma mancha branca no meu campo visual e
nos meus ouvidos ressoa um zunido – são outros
desses factos.
Tal como vimos este ponto de vista
fundamenta-se no extravagante
aproveitamento das reservas
34
perfeitamente judiciosas postas à certeza
absoluta quanto ao conhecimento do
mundo. No entanto, dir-se-á que seja qual for o
grau de dúvida experimentado, é impossível deixar
de imputar a nós próprios tais sensações e
impressões. Em vez de falarmos do papel que se
encontra a nossa frente, o que implica suposições
de carácter duvidoso acerca da existência do
reverso da página e da permanência do papel no
tempo, falar-se-á da mancha branca surgida no
campo visual, e esta maneira de falar não contém
pressupostos sobre a ocorrência de reversos de
folhas ou mesmo sobre a de folhas quando não
vemos o papel, por exemplo, quando não olhamos
para ele ou não lhe tocamos. As manchas brancas
que aparecem no campo visual não têm reverso e
não existem senão no momento em que são
experimentadas. Em vez de dizer que seguro na
mão uma caneta, direi sentir uma sensação de
pressão nos dedos.
Deste modo, segundo se argumenta,
para fins científicos em que parece ser
ideal a certeza absoluta, a matéria de
estudo deverá estringir-se a domínios
sobre os quais se esta absolutamente
certo, isto é, às nossas próprias
sensações.

35
Segundo este ponto de vista, uma coisa seria
encarada como não passando da presença conjunta
de impressões visuais, tácteis e gustativas de
determinado tipo. Vistas as coisas sob este ângulo,
se acaso não estiver tocando num dado objecto,
quando digo que vejo ou oiço, estou apenas
deduzindo que, sob determinadas circunstâncias,
experimentaria uma sensação de resistência nas
pontas dos dedos. O conceito de coisa parece
ser substituível, para fins científicos, por
conjunto de conceitos de sensações reais
e potenciais.
Pode arquitectar-se sobre esta base um
inteiro sistemas metafísico e tem-se-lhe dado o
nome de «fenomenismo». Todos os conceitos-
chaves da ciência são reinterpretáveis à luz
desta teoria. O facto de mudanças ocorridas em
determinada coisa poderem provocar ou conduzir a
mudança em uma outra é encarado como dedutível
ao facto de uma sensação de um tipo particular
ser usualmente seguida por uma outra sensação de
outro tipo particular na experiência pessoal. As
relações espaciais entre objectos são analisadas
como relações temporais entre impressões. A
distância entre duas coisas, por exemplo,
poderá entender-se como o número de
sensações sinestésicas ou de movimento,

36
associadas à locomoção, experimentadas entre
uma e outra sensação táctil.
Sensações que se sucedem no tempo tornam-
se assim as realidades últimas. Esta é uma
doutrina metafísica, e segundo se crê com
frequência, apoia-a a teoria epistemológica
de acordo com a qual a única verteza é a
das sensações presentes. No seguimento do
livro examinaremos em mais permenor as filosofias
da ciência ligadas a este ponto de vista
epistemológico.
Podem ser profundas para a epistemologia as
consequências da adopção de uma teoria
metafísica. Um exemplo flagrante e dramático de
tal coisa é o fornecido pela teoria restrita da
relatividade. À semelhança de qualquer outra
teoria importante da Física, também esta constitui
uma mistura de elementos metafísicos e empíricos.
Aqui, o elemento empírico é o suposto facto da
constância da velocidade da luz em todas as
estruturas inertes. Esta hipótese sugere que a
velocidade da luz será sempre a mesma
independentemente das velocidades relativas dos
corpos sobre que ela se mede. Por exemplo, esta
velocidade será a mesma para a luz proveniente de
corpos dos quais a Terra se aproxime ou para a luz
vinda de corpos dos quais a Terra se afaste.

37
O elemento metafísico de tal teoria cifra-se na
negação da inteligibilidade de conceitos
empíricos de posição e de tempo
absolutos.

Qualquer sistema de objectos tem direito


a ser considerado como estando «em
repouso absoluto». Seja qual for o quadro de
referência a ser escolhido, poderão determinar-se
relativamente a ele os movimentos de todos os
outros sistemas. Visto que, porém, se poderá
escolher qualquer outro sistema de objectos como
quadro de referência, os movimentos
determinados em relação à primeira escolha não
tem nenhum direito especial a ser considerados
como absolutos. Deste modo, não há possibilidade
de especificar quais os movimentos absolutos; não
é aplicável nenhum conceito empírico de
movimento absoluto.

A teoria da relatividade pressupõe a existência


da simultaneidade absoluta de acontecimentos,
mas, em conformidade com a teoria, nunca se
poderão determinar quais os acontecimentos
simultâneos sem os reportar a um quadro de
referência arbitrariamente escolhido. Portanto,
embora seja inteligível o conceito de
simultaneidade absoluta, não se poderá utilizar

38
empiricamente. É esta a originalidade da teoria. O
conceito de simultaneidade absoluta é excluído da
ciência em favor de um conceito empírico que
permita juízos de simultaneidade consistentes,
uma vez feita a escolha de objectos que se
encontrem supostamente em repouso. A teoria
metafísica acerca dos tipos de conceitos de
movimento e de simultaneidade admitidos na
ciência, em conjunto com o pressuposto empírico
da constância universal da velocidade da luz, leva
quase directamente a diversas teses
epistemológicas, tais como a tese de que, seja qual
for a relação verdadeira dos acontecimentos no
tempo, nunca se poderá saber quais são
absolutamente simultâneos em diferentes t
lugares.
Espero ter tornado claro, que em toda a
prática científica, se assumem problemas
filosóficos. Há que escolher conceitos que
ajudem a compreender o mundo que nos cerca e
isto significar imaginar ou aprender uma
linguagem e aceitar um sistema que retrate e
conceba as estruturas que constituem o mundo.
Seja qual for o conjunto de conceitos
escolhidos, independentemente do quanto estes
revelem de ausência de conexão sistemática,

39
isso implica sempre a existência de pressupostos
de natureza metafísica, lógica e epistemológica.
Quando optamos pelo emprego de conceitos de
coisas, ficamos desde logo enredados numa teia
metafísica que pressupõe a continuidade individual
no tempo (ou seja, que o individuo perdure para
além de certas mudanças menores), visto este
pressuposto ser uma faceta essencial do emprego
dos conceitos das coisas (isto é, que a entidade
perdure no tempo é uma das condições necessárias
a que possa denominar-se «coisa» com
propriedade).
Um dos alvos da filosofia da ciência é o de
tornar explicítos estes tipos de pressupostos,
explorando os conceitos que são objectos de
utilização, de modo a verificar com rigor o que o
seu emprego acarreta e a descobrir se se incerem
dentro de qualquer género de sistema. Há que
procurar esclarecer quais os conceitos que se
empregam num cometimento intelectual específico.
O valor deste estudo para a própria ciência
deriva do aumento de capacidade conferida ao
cientista através do conhecimento explícito dos
pressupostos envolvidos na linguagem e nos
modelos que utiliza. Se esses pressupostos são
conhecidos, poderão ser alternados de modo
sistemático, explícito e controlado. Nenhuma

40
quantidade de trabalho experimental, por si só,
conseguirá determinar quais os conceitos
preferíveis, pois efectuar uma experiência
requer já uma certa formulação do problema e
isso exige o uso de alguns conceitos.
Não quer isto dizer que se negue que uns sejam
mais convenientes do que outros. As leis da
química dos gases, por exemplo, descobertas nos
primeiros anos do século XVIII, foram
marcadamente caracterizadas pelo facto de as
relações de proporcionalidade serem exprimíveis
em proporções integrais; um volume de um gás
combinado com dois volume de um outro dá três
volumes de um terceiro e assim sucessivamente.
Não é de surpreender que a concepção
atomística da matéria principiasse por estar ligada
a tais descobertas, embora tal concepção
desagradasse a vários químicos e muitos deles
rejeitassem por completo o atomismo como
sistema conceptual apropriado à Quimica (1).
Por outro lado, poucas dúvidas haverá em que
a teoria filosófica das qualidades primárias e
secundárias, segundo a qual certas qualidades
dos corpos eram realmente conhecidas pela
experiência sensorial, ao passo que outras
qualidades dos corpos se manifestavam, na
experiência, de modo bastante diferente da sua

41
natureza de coisas em si próprias, conduziu ao
sistema conceptual denominado
«corpuscularismo», que influenciou
profundamente o prosseguimento da ciência e
continua a influenciá-lo (2). Porém, seja qual for o
rumo de influências mais importantes em qualquer
momento, a identificação explícita da estrutura e
dos componentes de um sistema conceptual liberta
o investigador da sua servidão.
O que se disse anteriormente é um esboço – e
apenas um esboço – de alguma matéria de estudo
da filosofia da ciência. O passo seguinte na nossa
análise será determinar em temos bastante

_______________
(1) D. M. Knitht, Atoms and Elements (Londres: Hutchinson, 1967)
(2) Sobre filosofia corpuscular e ciência natural, consulte-se R.
Harré, Matter and Method, parte II (Londres: Macmillan,
1964).

gerais o que é a ciência, aquilo que os


cientistas procuram conseguir e a maneira como
desempenham tal tarefa. Com isto ficaremos de
posse do vocabulário que nos permitirá falar do
processo científico e dos respectivos produtos.
Regressaremos depois aos campos da lógica, da
epistemologia e da metafísica, para examinar
algumas das mais importantes teorias clássicas
respeitantes ao conhecimento científico e àquilo

42
que pensamos serem os seus limites e
possibilidades, dentro dos contextos históricos
actuais relativamente à presente pesquisa
científica.

O mundo tal como é e o mundo como é


percebido.
Imaginemos que perguntamos a um leigo
razoavelmente bem informado o que pensa da
tarefa dos cientistas. A resposta será talvez a de
que estudam diversas coisas, tentando saber como
se comportam, como actuam e o que são. Alguns
cientistas dedicam-se ao estudo dos vírus, outros
das rochas; uns interessam-se pelo
comportamento das alforrecas, outros analisam a
anatomia destes seres; outros ainda investigam as
estrelas; os químicos e os engenheiros estudam as
substâncias, com vista a descobrir a sua
composição e o modo como irão funcionar face a
diversas situações. São corriqueiros alguns dos
materiais objecto de estudo dos cientistas e
estamos bastante familiarizados com eles; outros,
porém, são muito mais raros. Para se proceder ao
seu estudo, há necessidade de analisá-los, de
ensaiá-los e de estimulá-los e em seguida, elaborar
relatórios pormenorizados sobre as descobertas
feitas e sobre a teoria explicativa da origem ou do

43
ocmportamento ou da composição do tema
estudado. O mundo é constituído pela totalidade
das coisas e da matéria. A ciência conseguiu
resultados e aplicações práticas porque, uma vez
de posse de conhecimentos suficientes sobre
aquilo que compõe o mundo e sobre a matéria de
que é feito, se torna possível fazer toda a espécie
de coisas e originar toda a casta de efeitos
considerados desejáveis. É agora lugar-comum, por
exemplo, que só se está em posição de dominar
uma enfermidade após se ter compreemdido a sua
natureza.
Para os filósofos, a primeira e mais elementar
de todas as distinções é a que existe entre o
mundo tal como é e o mundo como se manifesta
através dos seus efeitos sobre os objectos
sensíveis, ou seja, como é percebido pelo homem e
detectado pelos instrumentos. Certas teorias
metafísicas descutem a não existência de
distinção entre estes dois supostos aspectos,
afirmando que o mundo é tal como se manifesta
por meio dos efeitos produzidos nos objectos
sensíveis.
De momento, porém, irei pôr de lado todas as
teorias e socorrer-me de um ponto de vista
simplista: seja como for, as pessoas são
perfeitamente capazes de estabelecer a diferença

44
entre o mundo tal como é e o mundo como se lhes
manifesta. Semelhante capacidade é demonstrada
pela aptidão em reconhecermos e admitirmos a
ocorrência de ilusões. Sabemos, por exemplo, que
as pessoas que se encontram à distância parecem
mais pequenas do que aquelas que se acham perto
de nós. Mas habituámo-nos de tal modo a admiti-lo
que os nossos juízos sobre os tamanhos relativos
das pessoas e dos objectos aceitam as distâncias
relativas que os separam de nós sem
reconhecimento explícito dos factos da
perspectiva. Com certa jovialidade, Kepler relata-
nos a história do ensonado passageiro de uma
diligência que confundiu uma aranha pendente da
parte superior da janela da viatura com um
estranho boi pastando no prado à beira da
estrada. Podemos fazer perfeitamente bem tais
distinções entre aparência e realidade.

Observação e detecção

Mas regressemos aos efeitos que o mundo produz


sobre os objectos sensíveis. Tais efeitos são, sem
dúvida, de dois géneros.
Em primeiro lugar, há os efeitos exercidos
sobre as pessoas e a respeito dos quais alguns
filósofos e quase todos os leigos se inclinam a

45
dizer que se experimentam sensações e se têm
sensações. Empregarei o termo geral de
«sensação» para descrever este tipo de efeito
produzido nas pessoas.
Por vezes, o objecto sensível não é só a
pessoa, mas sim este é um instrumento, do género
especial a que darei o nome de «amplificador dos
sentidos», tal como, por exemplo, o telescópio,
microscópio, a sonda, o estetoscópio ou outro
equipamento idêntico, aparelhagem esta que nos
permite sentir algo para além do alcance da ponta
dos dedos ou ver qualquer coisa de outro modo
invisível, ou seja, que não veríamos sem o auxílio de
óculos ou do telescópio.
O segundo tipo de efeito produz-se sobre os
instrumentos que não ampliam os sentidos. É o
caso, por exemplo, do electroscópio. Este é
concebido de modo a não sofrer a influência de
corrente de ar. Duas lâminas de oiro pendem de
uma vareta central ligada a um disco de cobre.
Quando dele se aproxima uma haste electrificada,
as duas lâminas afastam-se uma da outra. O
aparelho é claramente sensível à corrente
eléctrica.
Não se trata, porém de um instrumento
amplificador dos sentidos. Quando estamos juntos
de um objecto electrificado, experimentamos uma

46
curiosa sensação de formigueiro, mas não
percebemos a carga eléctrica como uma entidade
que ocupe espaço: o corpo humano actua como um
electroscópio. Este instrumento não amplia os
sentidos do mesmo modo que o microscópio o faz.
O electroscópio é um aparelho destinado a
detectar algo imperceptível.
O assinalamento de um campo magnético por
meio da agulha da bússula está ainda mais
afastado da nossa percepção, pois não temos a
mínima consciência de nos encontrarmos dentro
desse campo.

A natureza da experiência e os pressupostos

É raro, alguém descrever as suas experiências em


termos de sensações. É muitíssimo improvável que
a pessoa se refira, por exemplo, a manchas
coloridas que lhe atravessam o compo visual. Se
acaso se exprime deste modo, será porque se
dirige ao médico na esperança de que ele faça
qualquer coisa a tal respeito.
A nossa experiência inclui percepções tais como
de coisas em movimento – cavalo branco – ou de
substâncias nas quais ocorrem determinados
processos, tal como a água entrando em ebulição.
Apercebemo-nos das coisas em correspondência

47
com outras – por exemplo, um cavalo a ultrapassar
aqueles contra os quais concorre.
Uma corrida de cavalos dir-se-á um
acontecimento bastante vulgar, mas, em termos
metafísicos, é um assunto bastante complicado. Se
não, vejamos: terá de existir um quadro de
referência material relativamente permanente,
constituído pela pista do hipódromo. Há também
objectos materiais em movimento que deverão
continuar a existir desde a partida até à meta.
Pense o leitor no sumatório de pressupostos
contidos na convicção de que o cavalo
desaparecido do campo visual, oculto pelo
obstáculo representado pelo corpo de uma pessoa
de grande estatura, é o mesmo que continua a
comandar a corrida depois dos animais emergirem
de novo para lá desse obstáculo. Quje diria se o
corredor de apostas persistisse na dúvida de que o
cavalo que cortou a meta em primeiro lugar fosse
aquele em que você apostou no início, pelo facto de
o vencedor não ter permanecido sob contínua
observação durante toda a corrida? Que diria do
físico que teimasse que os electrões existem
apenas nos instantes em que actuam sobre os
instrumentos?
O emprego dos conceitos das coisas implica que
se parta do princípio da existência dessas

48
«coisas», mesmo quando não observadas ou
detectadas. O justificativo de semelhantes
pressupostos conduz-nos a todo um complexo de
problemas metafísicos. O mundo tal como o
percebemos é constituído por grande número de
entidades variadas, incluindo coisas e substâncias
nas quais ocorrem diversos processos. A linguagem
comum permite-nos dizer que sentimos, ouvimos,
saboreamos, tocamos e vemos todo esse conjunto
de matéria que é submetido a processos e no qual
as relações recíprocas se alteram.

Percepções e sensações

As sensações foram consideradas as unidades


últimas em que a nossa experiência se pode
analisar. Quando se capta uma coisa, uma chávena,
digamos, supõe-se que semelhante experiência é
analisável num grupo de sensações elementares,
tais como manchas de cor no campo visual e
impressões de pressão na ponta dos dedos.
As sensações são o contributo do mundo
oferecido à experiência. A chávena, tal como a
percebemos, é vista e sentida por nós como um
objecto sólido, dotado de um certo tipo de
autonomia, capaz de ocupar diferentes lugares e
de perdurar no tempo.

49
Mas estas facetas da percepção não constituem
sensações e, segungo crem certos filósofos, não
são efeitos do mundo sobre nós. De acordo com
alguns filósofos o arranjo das sensações sob a
forma de percepções, de manchas coloridas e de
pressões sentidas que se transformam em
chávenas, por exemplo, é algo imposto pela pessoa
que sofre a experiência. As sensações são
consideradas as unidades últimas em que a nossa
experiência se pode analisar.
Um tratamento semelhante é proposto também
com frequência para os processos, relativamente
aos quais as unidades elementares de composição e
de análise são acontecimentos idênticos à
ocorrência de sensações num organismo sensível.
Examinaremos uma filosofia da ciência com
base no fundamento de que esta diz respeito,
de facto, ao estudo das sensações e não às
coisas que nos fazem experimentá-las. Esta
filosofia da ciência associa-se à teoria metafísca
que identificamos como «fenomenismo».
Existe uma certa contribuição do cognoscente
para o conhecido, ocorrendo parte dela ao nível
da experiência. Argumentarei aqui que a
contribuição provém do cientista para o seu
conhecimento científico, quando o cientista
exprime esse conhecimento por meio de teorias

50
e da descrição de observações, concretizando-
se aquela através da linguagem empregue para
tais finalidades. Ao descrever o que vê, o
cientista socorre-se da linguagem das coisas que
perduram no tempo. Quando explicamos os
acontecimentos de que tomamos consciência,
utilizamos a linguagem das causas, ou seja,
descrevemos a actuação das coisas e das
substâncias agindo uma sobre as outras.
O mesmo se verifica quanto à linguagem que
empregamos para descrever e explicar o
comportamento dos instrumentos. A maneira
como se comporta um instrumento, tal como o
electroscópio, é descrita na linguagem das coisas
e das causas. Não o descrevemos em termos de
mero afastamento de duas lâminas de oiro, mas
sim como algo que assinala um campo eléctrico. Ao
referirmo-nos a ele desta maneira, transitamos
em pensamento o seu efeito para uma realidade
substancial: Um campo eléctrico é qualquer coisa
que se encontra distribuída no espaço, que perdura
no tempo e que possui pentência causal. Para além
da simples divergência das duas lâminas do
electroscópio, será a sausa de acontecimentos de
outras coisas mais. Descrito nestes termos, o
campo eléctrico principia a adquirir substância em
nossas mentes e começamos a encarar o

51
electroscópio como um aparelho que assinala algo
de real e não apenas como qualquer coisa que reage
à presença de uma vareta electrificada.
Poderão suscitar-se problemas filosóficos
bastante profundos quanto aos pressupostos
implícitos na distinção entre o mundo tal como é
e os efeitos por ele produzidos em nós e nos
instrumentos de que nos servimos. Como saber
até que ponto o mundo, tal como dele nos
apercebemos, é o mundo como ele é? Como
poderemos estar certos de que os instrumentos
de detecção assinalam substâncias ou estados
de coisas que, de outro modo, não
conseguiríamos aperceber-nos?
O mundo real será bem diferente, porventura,
daquele que distinguimos. Na verdade, pode ser
bastante diferente daquilo que conjecturamos, de
acordo com o entendimento que temos dos
instrumentos. Talvez nunca entremos em contacto
com o mundo tal como realmente é. Se assim for,
o nosso problema desvanece-se, como é óbvio,
pois o conceito de «mundo tal como realmente
é» deixa de ser aplicável, podendo nós
prosseguir no estudo do mundo tal como parece
ser.
Existe um outro problema de grande interesse.
Suponhamos que, impressionados pela ideia aquilo

52
de que nos apercebemos depende, em parte, da
maneira como entendemos o mundo, e de que há
mais para ver do que a luz que nos atinge os olhos,
procuramos atingir a verdadeira objectividade
unicamente através do registo das sensações
experimentadas ao captarmos as coisas materiais
e os processos. Mas será que assenta nisto a
verdadeira objectividade? Não parece que ela
resida na linha de rumo daquilo que
peecebemos, visto termos admitido que a
percepção é mais uma espécie de compreensão
do que um simples efeito do mundo sobre os
órgãos dos sentidos. Regressaremos
ocasionalmente ao problema da objectividade e
das sensações.
Perguntar-se-á também qual o justificativo
para se interpretar o comportamento segundo o
mesmo modelo da visão, da audição e do tacto, ou
seja, segundo o modelo perceptual. Esta concepção
poderá suscitar dúvidas se a ideia das coisas e dos
processos imperceptíveis que alegadamente
explicam o comportamento dos instrumentos se
considerar como mera concepção fictícia, mera
teoria cujo pressuposto torna possível conferir
certa ordem aos resultados obtidos em
experiências realizadas com instrumentos. Não
esclarecerei tal dúvida neste momento, mas

53
voltarei a ela mais adiante, encarando-a sob
diversos pontos de vista à medida que for
prosseguindo o debate sobre problemas filosóficos
da ciência.
O mundo tal como se nos manifesta constitui um
tipo de produto resultante da acção do intelecto e
é também o efeito produzido sobre nós pelo mundo
real. Se não formos capazes de conseguirmos uma
receita à prova de descuidos para separar estes
dois elementos, até que ponto estaremos seguros
de que o mundo como se manifesta é de algum
modo o mundo tal como é? Eis a forma geral dos
problemas atrás considerados:
Todavia, as ciências naturais, com as suas
técnicas de construção de modelos, não dependem
do pressuposto de que o mundo como se manifesta
seja idêntico ou mesmo semelhante ao mundo tal
como é. Na verdade, a ciência, de maneira
consciente, arquitecta um quadro do mundo tal
como é, diferente em muitos aspectos do mundo
como é visto, tacteado, ouvido e saboreado. A
objectividade absoluta de observação não
constitui um ideal possível da ciência.

Pensamento e experimentação

54
Como é natural, isto leva a considerar a faceta
intelectual como oposta à faceta observacional da
ciência. Muito embora se saiba não serem duas
facetas verdadeiramente separadas do trabalho
científico, poderemos focar a nossa atenção na
parte da ciência que se concretiza através do
pensamento, dos dotes imaginativos, do trabalho
escrito e falado, da elaboração de diagramas, etc.,
etc., sem que com isso achemos que a tarefa de
observar e de utilizar instrumentos constitua
actividade destituída de conteúdo intelectual.
Os cientistas não só descrevem e classificam
as coisas e as substâncias e as suas acções e
interacções, como também no-las explicam.
Muitas vezes, explicam-nos por que existem as
coisas que existem e por que motivo se comportam
como se comportam. Geralmente, tais explicações
são dadas formulando teorias.
A teoria exprime-se em proposições, em
diagramas, ou seja, sob a forma de estruturas
verbais ou ilustrativas. A lógica é teoria geral
das estruturas verbais e a teoria dos modelos
icónicos a teoria geral das estruturas
ilustrativas. Tanto a lógica como a teoria dos
modelos icónicos se acham comprometidas, tal
como veremos adiante, na organização das
sentenças de todas as actividades intelectuais dos

55
cientistas. Á medida que formos prosseguindo,
diversas falsas imagens de tais actividades
exercerão sobre nós os seus efeitos sedutores.
Um deles é a ideia de ciência como uma
acomulação de verdades separadas, conseguidas
por meio da soma de um facto a outro,
verificados independentemente pela
experimentação. Este é talvez o ponto de vista
mais comum e será o primeiro a que dedicaremos o
nosso interesse crítico.
O trabalho científico é tanto labor da
imaginação como aquele que ocorre na bancada
do laboratório. Só com o auxílio de uma imaginação
disciplinada e regida pelo raciocínio se arquitectam
hipóteses sobre a natureza das coisas. Por via de
regra, em primeiro lugar, imaginam-se os
mecanismos originadores de determinado
comportamento e que, por si sós, sugiram futuras
linhas de estudo frutuosas.
A ciência não história natural nem acomulação
de factos; é a arquitectura de um quadro do
mundo. Trata-se de um empreendimento
intelectual que visa entender o que nos cerca. O
que a torna diferente de outros cometimentos
semelhantes – da feitura de obras de arte, por
exemplo – é o facto de decorrer sob a disciplina
do método experimental. E esta disciplina é

56
bastante severa. Uma teoria cujas consequências
não sejam fruto da experimentação e da
observação deverá ser alterada ou demonstrados
os possíveis defeitos da experimentação.
A ciência também não é apenas um idear de leis
ou de sistemas de leis matemáticas que
abranjam de maneira adquada os resultados
numéricos de experiências quantitativas. A
busca singular deste ideal leva directamente à
trivialidade. Uma teoria tem de servir de base à
explicação; não é apenas um instrumento
quodificado. Para cumprir tal exigência, a teoria
deverá descrever os meios através dos quais se
verificam os fenómenos que ela explica. Deve
reportar-se aos mecanismos da Natureza e não
somente aos resultados quantitativos obtidos
quando se estudam esses mesmos mecanismos em
acção. Tais resultados pertencem ao âmbito
disciplinar da ciência e raramente à sua faceta
criativa.
Descrição e explicação, observação e teoria
parecem ser aspectos diferentes bem nítidos de
uma mesma distinção. O que se observa é
susceptível de ser descrito, se os recursos da
linguagem estiverem à altura, e, tipicamente,
recorre-se à teoria quando se procede à
explicação científica. Dificilmente se tratará de

57
uma explicação científica sobre fenómenos quando
se descrevem meramente outros fenómenos
associados aos primeiros, a não ser que o cientista
tenha alguma concepção de como acontece tal
associação. Em tal caso, é essa concepção que
explica, em boa verdade, e que constitui o
cerne da teoria.
Tomando como exemplo o fenómeno da aurora,
citar o aumento de actividade das manchas solares
que regularmente antecede o aparecimento da
luminosidade no céu não é de forma alguma
explicar de modo científico o que acontece. A
explicação científica dir-nos-á porquê e como as
manchas solares se relacionam com a aurora e isso
implica o debate sobre a natureza das referidas
manchas e sobre a trajectória dos electrões
emitidos pelo Sol. Tal debate só é relevante pelo
facto de termos alguma ideia sobre quanto à
natureza da aurora e de sabermos bastante acerca
de descarga eléctrica no seio dos gases raros.
Em resumo: para explicar a aurora, descreve-se
o mecanismo que produz o fenómeno e assim se
chega a compreender porque é que as manchas
solares se lhe associam. Ao fazê-lo, mencionam-se
muitas outras coisas para além de manchas solares
e de auroras.

58
As diferenças existentes entre descrever
fenómenos e explicá-los e entre explicá-los e
descrever as condições sob as quais eles
ocorrem, tornar-se-ão cada vez mais
evidentes, à medida que os exemplos
pormenorizados se forem sucedendo nos
capítulos seguintes.
Mas a existência quanto às diferenças entre
observação e teoria e entre descrição e explicação
não deverá permitir que se ofusque a amplitude
do seu inter-relacionamento. Descrever
observações não constitui um acto inteiramente
independente da teoria, tanto na forma como no
conteúdo. Não existem modalidades descritivas
que permaneçam invariáveis sob todas as mudanças
de teoria. O modo como as observações se
descrevem altera-se quando a teoria se
modifica. A maneira aceite de explicar os
fenómenos compartilha do próprio significado dos
termos empregues para os descrever.
Parece ter agora consenso geral dos filósofos
a impossibilidade de realizar o ideal de um
vocabulário descritivo aplicável às observações,
mas inteiramente virgem de influências teóricas.
Para o entendimento de uma descrição, é
indespensável estar a par das explicações do
fenómeno descrito. Tanto as teorias científicas

59
como as teorias metafísicas fazem parte, de
diversas maneiras, das descrições e da
compreensão que delas temos.

A implicação de teorias na descrição

Teorias metafísicas: o emprego de nomes e de


adjectivos ao descreverem-se os fenómenos tende
a propiciar a teoria metafísica da substância e das
qualidades, vinculando deste modo os pressupostos
de tal teoria.
Vimos em que medida o facto de se preterirem
os substantivos em favor dos predicados envolve
profunda mudança dos pressupostos metafísicos,
condunzindo, eventualmente, à ideia de que a
categoria de substância é menos fundamental do
que a categoria de qualidade. Claro que se não é
obrigado a dar este passo metafísico; poder-se-á
encarar a abolição dos nomes em favor dos
predicados como apenas um assunto de técnica
linguística.
O envolvimento das teorias científicas no
significado dos termos descritivos é bastante
óbvio no caso das metáforas, faceta importante
e comum nos vocabulários descritivos. O emprego
da palavra «corrente» com referência a

60
fenómenos eléctricos não está isento de
conotações com a teoria dos fuídos eléctricos.
Mas também outros termos de aparência mais
neutra contêm no seu significado alguns elementos
de teoria. Quando, em linguagem química, se fala
de «reagentes», de «catalizadores» e de
«compostos», utiliza-se um vocabulário cujos
termos possuem um significado derivado, pelo
menos em parte, da teoria atómica da modificação
química.
Compreender a descrição de uma substância tal
como o alfa-hexa-clorobenzeno implica o
entendimento da teoria estrutural da organização
molecular. Parece-me não ser de mais dizer que
não existe nenhum termo dos quais se utilizam
para descrever observações acerca da natureza e
do comportamento das coisas e da matéria cujo
significado se possa apreender sem algum
conhecimento da teoria ou teorias relevantes.
Em resumo: quando se aprende a aplicação de
termos descritivos, aprendem-se simultaneamente
as teorias. Se acaso aprendemos a identificar a
piridina apenas através do seu cheiro, então
desconhecemos o que a palavra «piridina» significa
na realidade.

61
Exame da ideia de que as teorias não são
descritivas

As teorias diferem claramente das descrições das


observações que pretendem explicar. Mas será que
esta diferença implica que os termos empregues
em uma teoria não sejam descritivos e não possam
ser utilizados com prioridade como
correspondesnte a coisas que existem de facto, a
estados, a substância e a processos além daqueles
que estão explicados?
Consideremos o termo «átomo», por exemplo,
que aparece constantemente nas teorias físicas.
Milhares de tipos de observações explicam-se com
referência aos átomos. Sem tal noção, estas duas
disciplinas teriam conteúdo completamente
diferente. E, no entanto, nunca ninguém viu um
átomo, com ou sem instrumentos amplificadores
dos sentidos. Os átomos exolados nunca foram
vistos, ouvidos, tocados, sentidos ou saboreados.
Assim sendo, será que tal coisa existe de facto?
Por certo que tem de admitir-se o ponto de vista
epistemológico de que é impossível reconhecê-la
como entidade individual, por meio do contacto
directo com ela. Seguir-se-á daqui que não
podemos saber absolutamente nada acerca do
átomo? Se fosse este o caso, teríamos que

62
concordar que a palavra «átomo» não queria dizer,
aquilo que pensávamos que significasse, ou seja, a
mais pequena partícula quimicamente
independente. Utiliza-se o termo «átomo» de tal
maneira que, quando olhamos e tocamos num
pedaço de madeira, acreditamos que ele é formado
por um conjunto de átomos, poderemos dizer com
propriedade que estamos a olhar e a tocar num
enorme amontoado de átomos.
Mas se não é isso o que a palavra «átomo»
significa, que significará ela então? Se acaso for
consistente a teoria segundo a qual termos
como «átomo» não são descritivos e não se
referem a coisas reais, essa teoria terá então
de explicar-nos o que tais termos querem
dizer.
É possível arquitectar uma teoria sobre o
significado de «átomo» por meio da comparação do
seu papel com o de outro termo bem conhecido -
«força». As forças são tão inobserváveis como os
átomos. Qualquer ideia que possamos fazer da sua
presença provem da observação dos seus supostos
efeitos. Mas se reflectirmos um pouco sobre o
papel do termo «força» na mecânica clássica,
veremos que este se emprega como elemento de
ligação nas descrições dos estados de sistemas
de coisas antes e depois de haverem actuado

63
entre si.A mecânica reconhece a interacção por
meio de choque, por bielas, por fios, etc. O
termo força é introduzido pela lei da acção e
da reacção, isto é, pelo princípio de que, por
exemplo, em toda a colisão, forças iguais e
opostas actuam entre os corpos que colidem.
O conceito de força aparece também com
referência a fenómenos como a órbita de um
satélite à volta de um corpo pesado como a Terra.
Imaginou-se uma «força da gravidade» igual e
oposta a «força centrífuga». As duas «forças»
permitem que as massas relativas dos dois
corpos em causa e a velocidade e o raio da
órbita do satélite sejam relacionadas sob a
forma de uma equação de movimento. No
entanto, depois de estabelecida esta ligação, o
termo «força» desaparece; desempenhou apenas
um papel formal.
Em Química, a palavra «átomo» desempenhará,
porventura, a mesma função. Talvez que tudo
quanto se diz acerca dos átomos, das suas
propriedades e organização estrutural, não passe
de um estratagema ilustrativo, destinado a ligar as
descrições das substâncias em causa, antes da
reacção química e o seu estado após esta se ter
completado. Poderá argumentar-se que nada de
concreto se acrescenta a descrição de uma

64
reacção quando o facto de dois volumes de
hidrogénio se combinarem com um volume de vapor
de água é explicado pela fórmula atómica.

2H2 + O2 = 2H2O

Os factos observados explicam-se com referência


à hipótese de que os gases reagentes são
constituídos por moléculas biatómicas. Alguém que
pretendesse distinguir o papel do «átomo» do
papel de «força» na linguagem científica, teria
de insistir que o primeiro possui um significado
para além do seu papel de ligador de factos,
transformando-os em conhecimento organizado
e sistemático, e, nomeadamente, que significa a
mais simples parte ou parcela de matéria
quimicamente independente. Será legitimo teimar
neste seu último significado? Ocupar-nos-emos
largamente da resposta em tal pergunta em um
outro capítulo.

Conceitos

Ao referir-me a descrições e explicações, servi-


me da palavra «conceito». Esta não deverá ser
encarada como se funcina-se como o termo

65
«átomo», mas como algo semelhante ao
vocábulo «força».
Utiliza-se para distinguir o que pensamos
daquilo que dizemos, escrevemos, desenhamos,
projectamos e modelamos. Falar do conceito de
«causa» é falar da ideia de causalidade, tal como
se patenteia no emprego de um vocabulário casual,
ou seja, quando usamos palavras como «originar»,
«produzir», «fazer», «ocasionar», «potencia» e
assim sucessivamente, ou como sucede quando nos
servimos de sistemas articulados e de jogos de
engrenagens para originar o que pretendemos ou
ainda tal como é evidenciado quando recorremos a
modelos e a diagramas de mecanismos para
explicar os processos observados. Deste modo
falar de conceitos permite o prosseguimento de
discussões na generalidade sem se especificar
em que termos exactos se aplica o conceito – se
sob o ponto de vista linguítico, se concreto ou
se como indicativo de acção.
Os conceitos cientifícos podem ordenar-se em
dois grandes grupos: Há aqueles tais como o de
«massa», «comprimento», «carga», «força»,
«vermelho», «oiro», «mamífero», «momento»,
«valência», etc., etc., que denominarei «conceitos
materiais». Trata-se de conceitos que exprimem
propriedade, género, qualidade e substância e

66
se empregam para descrever coisas, substâncias
e processos. As coisas e as substâncias têm
massa, são vermelhas, adquirem momento, exibem
valência, etc.
O segundo grupo é constituído por aqueles a que
chamarei «conceitos formais» ou «estruturais»
ou, ainda, «organizacionais». Os conceitos formais
incluem «causação», «existência», «identidade»
e conceitos espaciais e temporais.
Identificar como causa o estado de uma coisa ou
a sua presença em certo lugar e em determinado
tempo não é atribuir-lhe qualquer nova qualidade
ou potência que antes lhe não houvessem sido
imputadas, mas encará-la como relacionada, de
certa maneira com outros estados de coisas que
são os seus efeitos. De modo semelhante, dizer
que algo existe não é atribuir-lhe uma
característica especial de que carecem coisas não
existentes. Quando se diz que duas coisas são
idênticas, a afirmação não descreve qualquer elo
físico entre ambas. Conceitos como «existência»
e «identidade» exigem a organização intelectual
das observações. Servem para exprimir o nosso
entendimento daquilo que acontece.
Os conceitos materiais e formais podem ter
outras classificações. Por exemplo, surgiram
algumas descrepâncias no papel do conceito de

67
força, na mecânica clássica e no papel do conceito
de átomo, na química clássica. O conceito de força
parece operar de modo tal que se torna difícil
encará-lo como dizendo respeito à influências
reais entre coisas reais, ao passo que o conceito
de átomo dir-se-á referir-se a algo para além das
proporções dos reagentes.
A hipótese atómica não é apenas uma forma
pitoresca de exprimir a lei da proporção integral.
A palavra «átomo» parece segnificar a parcela
mais ínfima da matéria que os químicos
manipulam e que se comporta quimicamente. A
questão de saber-se se os átomos existem
parece ser de natureza empírica, mesmo que
nunca seja resolvida de modo inteiramente
conclusivo.
Mas aparecem outras diferenças. O conceito de
momento é empregue com respeito a uma
característica dos corpos em movimento, não
observável por meio dos nossos sentidos, quer
desamados quer ampliados por instrumentos,
enquanto o rubor é uma característica observável.
O rubor é semelhante à macieza por esta ser
também uma característica observável, mas difere
dela pelo facto de ser simplemente relacionado
com um conceito quantitativo, nomeadamente o

68
comprimento de onda da luz reflectida do objecto
para os olhos quando se olha para algo vermelho.
Comprimento difere de temperatura porque,
enquanto o comprimento se mede por meio de
coisas compridas, a temperatura é medida por algo
diferente da inergia interna de uma coisa material,
por exemplo, pela dilatação de uma coluna de
fluído ou por alterações de condutividade
eléctrica ou mesmo por mudanças de cor.
Ocupar-nos-émos em particular de algumas
destas diferenças entre conceitos materiais
quando tivermos oportunidades de considerar,
numa fase posterior deste estudo, os ideiais
para que apontam os cientistas ao descreverem
as suas observações sobre as propriedades das
coisas e sobre o comportamento das
substâncias.
O objectivo da filosofia da ciência é
esclarecer os princípios assumidos em ciência.
Estes encontrar-se-ão através do estudo da
lógica, da metafísca e da epistemologia. Mas a
filosofia da ciência terá de dizer respeito àquilo
que os cientistas realizam de facto e à maneira
como efectivamente pensam.
Nos capítulos que se seguem, desenvolver-se-ão
formas ideais de raciocínio, ideais de verdade e de
objectividade e sistemas de conceitos ideais.

69
Criticar-se-ão alguns princípios propostos por
certas filosofias da ciência mais antigas e que
foram seguidos por outras gerações de cientistas.
«Daremos baixa» do pensamento filosófico com
referência à actual prática científica, visto que, na
nossa teoria da ciência, não devemos formular
ideais que se revelem imcompatíveis com qualquer
prática científica importante.

Resumo do argumento

1.(a) A filosofia como justificação para a relização de algo é


distinta da filosofia como teoria geral de alguma actividade
intelectual.
(b) O presente livro trata apenas das três primeiras divisões da
filosofia – lógica, epsitemologia e metafísica -, não se ocupando
da quarta, a ética.

2. Lógica é a investigação dos princípios do raciocínio correcto.


(a) O método aqui utilizado é o de tentar encontrar os
princípios justificativos de intuições de validade.
(b) Não se pressupõe que os princípios do raciocínio correcto
relações de apoio evidêncial utilizadas no raciocínio científico não
têm analogia com os princípios do raciocínio metafísico correcto.
(c) A análise de exemplos mostra que simples noções de
validade são inadequadas para lidar com o raciocínio científico.

3. Epistemologia é a teoria do conhecimento e diz respeito a


problemas como o da distinção entre o conhecimento genuíno
e o conhecimento empiríco.
(a) (i) Como exemplo de investigação epistemológica, considera-
se a diferença existente entre o tipo de dúvidas que podem

70
surgir quando se pretende saber se o âmago de uma coisa é aquilo
que esperamos que seja segundo a perspectiva que dela temos do
exterior e os métodos de estabelecimento de tais dúvidas; e o
tipo de dúvida expressa na sensação de que talvez toda a vida
não passe de um sonho.
(ii) O propósito de se suscitar esta última dúvida é o de
explorar os limites de aplicação dos conceitos.
(iii) Semelhantes dúvidas extremas são resolvidas mostrando-se
que, ao formulá-las, uma palavra cujo significado dependa de um
contraste, por exemplo, supondo-se que todo o estado de vigília
seja sonhar.
(b) (i) Como saber se os tipos de processos observáveis aqui e
agora constituem bons indicativos dos tipos de processos
ocorridos em lugares muito distantes, em outros tempos e onde
intervêm coisas demasiado pequenas para serem observadas?
(ii) Uma solução é negar que o enunciado científico diga respeito
à algo mais do que aquilo que é possível observar num instante
preciso.
(iii) Outra solução é o argumento de que alguns instrumentos
ampliam os órgãos dos sentidos e que outros assinalam
influências que estes escapam, mas que provocam experiência
sensorial.

4. Metafísica é o estudo de conceito mais gerais utilizados na


ciência e na vida comum, através da análise da estrutura interna
da linguagem empregue nos diversos campos.
Um exemplo é o estudo da relação entre o sistema conceptual
de espaço e de tempo e os conceitos de «coisa» e de «causa».

5. Relações entre a lógica e a epistemologia


Existem conexões muito fortes entre os três ramos da filosofia,
no contexto científico.
(a) Argumentar-se-á talves como tese lógica que a relação entre
a evidência e as leis da Natureza é tal que não se devia
interpretar como uma espécie de inferência. Daqui poderá
extrair-se a tese epistemológica de que, muito embora se possa
71
falar com propriedade da verdade de uma parcela da evidência,
não será licito falar da verdade de uma lei da Natureza.
(b)Poderá pensar-se que o estatuto epsitemológico das previsões
deriva da estrutura lógica da feitura de uma previsão, na qual ae
condições iniciais e uma lei da Natureza conjectural se combinam
para originar a dedução da previsão, compartilhando esta do
estatuto de conjectura da lei da Natureza.
(c)Em certos casos, a lei ou a teoria são mais dignos de crédito
do que os dados – por exemplo, a teoria da evolução.
(d) poderá gerar-se um cepticismo radical ao exigir-se que todo o
conhecimento seja um conhecimento certo. O problema será
solucionado, por ventura, encarando-se o conceito de «saber»
como em contraste com o conceito de «conjecturar».

6. Relação entre a lógica e a metafísica

(a) A análise lógica de proposições gerais utiliza, por via de


regra, os conceitos de «predicado», de «variável» e de
«quantificador». A análise transforma um enunciado feito em
termos de nomes comuns, num enunciado em termos de
adjectivos. Em tal processo, dir-se-á que o assunto se transferiu
das coisas e da matéria para qualidades e processos. Isto pode
conduzir a teoria metafísica de que as coisas e a matéria se
devem tratar como conjuntos de qualidades.
(b) A conexão entre o uso de nomes comuns e uma metafísica
das coisas influência os problemas científicos fundamentais. Em
física, por exemplo, o emprego de palavras como «neutrão» e
«electrão» tende a sugerir que as entidades básicas são
semelhantes as coisas. A conexão entre a metafísica das
coisas e os princípios da ciência clássica origina dificuldades
de interpretação das novas formas das leis da mecânica
quântica.

7. Relação entre a epsitemologia e a metafísica

72
(a) A teoria epistemológica que obriga a negar a possibilidade
de conhecimento de tudo excepto dos fenómenos da sensação
imediata como utilizar-se como base de teoria metafísica
segundo a qual o mundo da ciência é o mundo segundo o qual das
sensações e que os existentes fundamentais são mais os dados
dos sentidos do que as coisas. Este é um dos fundamentos do
fenomenismo.
(b) A teoria metafísica que nega a inteligibilidade dos
conceitos empíricos de espaço e de tempo absolutos conduz,
através da teoria da relatividade restrita, à teoria
epistemológica de que, sejam quais forem as relações dos
acontecimentos no tempo, jamais poderemos conhecer quais os
que são absolutmente simultâneos em diferentes lugares. Os
princípios filosóficos fazem parte integrante da ciência e, na
filosofia da ciência, esses princípios são criticamente analisados.
Decisões sobre matérias como considerar fundamentais os
conceitos de coisas, ou considerar o mundo como
fundamentalmente atómico, não podem ser tomadas por meio
de experiências e constituem o resultado do debate filosófico.

8. O mundo tal como é e como é percebido


Sabemos do mundo através do efeito por ele produzido sobre
os objectos sensíveis – sobre os observadores e sobre os
instrumentos. A diferença entre o mundo como parece ser e
como ele é realmente desenvolve-se na vida prática comum.
(a) Observação e detecção:
(i) O mundo afecta os objectos sensíveis, como as pessoas,
quer de maneira imediata quer mediata. Há tendência para
descrever tais efeitos em termos de sensação; trata-se porém
de uma teoria filosófica de pouco mérito.
(ii) O efeito do mundo sobre os instrumentos de detecção
deverá interpretar-se como deminstrativo da existência de
entidades que não podem tornar-se perceptíveis.
(b) A natureza e os pressupostos da experiência:

73
(i) A experiência comum não é a das sensações, mas sim a das
coisas.
(ii) Tratar o mundo que percebemos como um mundo de coisas
implica pressuposições metafísicas, como a identidade e a
existência de coisas quando não se experimentam ou detectam.
© Perceptos e sensações:
(i) Muitas características de perceptos não são sensações
simples.
(ii) Certos filósofos crêem que tais características fazem
parte integrante da experiência, mas que devem ser encaradas
como fornecidas a priori pela pessoa que tem a experiência.
(iii) Outros filósofos são de opinião de que apenas a
componente sensível da experiência é empírica, devendo assim a
ciência limitar-se ao estudo das sequências de sensações.
(iv) Argumentarei aqui que há um contributo do cobnoscente
para o conhecido, derivado natural do uso da linguagem que
descreve o conhecimento e que se trata de uma perscrição
metafísica inelutável mas a priori.
9. Problemas suscitados pela distinção entre o mundo como ele é
e o mundo tal como se manifesta à percepção.
(a) Como justificar o pressuposto de que os instrumentos de
detecção assinalam entidades que existem realmente, o
pressuposto de que é mais amplo o mundo tal como é do que o
mundo tal como parece ser?
(b) Dado que existe um contributo do cognoscente para o
conhecido, talvez a verdadeira objectividade resida na eliminação
do referido contributo e em lidar apenas com os dados
fornecidos pela sensação.
© Qual o justificativo para se considerarem os instrumentos
de detecção como percipientes, em vez de apenas como
exibidores de sequências de fenómenos?
As ciências naturais solucionam tais problemas partindo do
princípio de que os seus modelos explanatórios constituem
representações do mundo real, que não é idêntico ao mundo
percebido. Reconhecem o papel do cientista na sua contribuição

74
para o quadro científico da realidade e, ao fazê-lo, admitem a
impossibilidade da objectividade científica absoluta.

10. Pensamento e experimentação


(a) As teorias e as explicações são os produtos arquetipícos da
actividade intelectual dos cientistas.
(b) As teorias exprimem-se em proposições e são
complementadas por diagramas e por modelos. É lógica a teoria
das estruturas dos arranjos proposicionais; a teoria dos
diagramas, dos modelos e dos quadros é a teoria dos modelos
icónicos.
© Uma teoria, ou imagem da acção da Natureza, precede
sempre qualquer programa experimental. Deste modo, deve
resistir-se à intenção de interpretar a ciência como a acumulação
de inexorável de factos verificados.
(d) Portanto, a explicação científica não é apenas o relato das
condições sob as quais ocorrem os fenómenos, mas deve dar
conta dos meios através dos quais, nas referidas condições, se
produziram os efeitos.

11. A implicação das teorias na descrição


(a) A própria escolha da linguagem que será expressa a descrição
implica a presença de telorias metafísicas. Assinalamos já a
diferença metafísica existente entre a linguagem descritiva
feita de nomes comuns e a linguagem construída com adjectivos e
quantificadores.
(b) O uso comum de termos metafóricos envolve o emprego de
teorias científicas.
12. Exame da ideia de que as teorias não são descritivas
(a) Tem-se afirmado que as teorias não descrevem a realidade.
(b) Compare-se o emprego do conceito de «força» com o de
«átomo».
(i) O conceito de «força» é introduzido em linguagem
científica para o apoio da criação da estrutura lógica dos
enunciados da observação e para garantir a uniformidade de

75
método em mecânica. Inventam-se assim forças com forças
iguais e opostas.
(ii) O conceito de «átomo químico» desempenha o papel
organizador e unificador do conceito de força, mas aplica-se
também para definir o constituinte mais ínfimo de amostras
de matéria observáveis, tendo assim certa pretensão ao
estatuto empírico e descritivo.
13. Conceitos
Utilizarei o termo «conceito» na sua asserção usual, ou seja, a
que se refere a unidades de pensamento na fala, na escrita, na
acção etc.
(a)Os conceitos materiais podem ser utilizados na descrição das
coisas, das propriedades e dos processos, observados e não
observados. Classificam-se ainda consoante digam respeito às
coisas conhecidas como reais, às coisas que podem ser reais e às
ficções.
(b) Os conceitos formais empregam-se para conferir estrutura
e organização às descrições. Conceitos como os usados no
sistema espaço-tempo, os conceitos de causalidade, de
existência, etc., são neste sentido, conceitos formais.

CAPÍTULO II
AS FORMAS DE RACIOCÍNIO CIENTÍFICO
Em lógica, como já se disse, estudam-se as formas
ideais de racicínio. Para tal, procuram estabelecer-
se regras de argumentos válidos e sólidos, regras
essas que possam guiar o pensamento segundo
76
linhas de rumo desejáveis, tais como aquelas que
conduzem ao encontro da verdade. O que se
deseja evitar a todo o custo é o
estabelecimento de falsas conclusões a partir
de evidência verdadeira.
No raciocínio o ponto de partida é constituído
pelos enúnciados ou pelos princípios que supomos
conhecer ou, que provisóriamente, simulamos
conhecer, afim de verificar-lhes as consequências.
Em geral é nosso desejo partir da verdade, de
enunciados de facto ou, pelo menos, de enunciados
considerados bastantes certos. Estes enunciados
foram o ponto de partida do raciocínio e
denominam-se «premissas» do argumento.
Neste caso «argumento» não segnifica
controvérsia, mas sim uma série de fases do
raciocínio que conduzem do ponto de partida à uma
conclusão. E visto que novas fases do raciocínio
podem fazer passar das conclusões iniciais a
outras conclusões, susceptíveis de se revelarem de
considerável importância tanto prática como
científica, é claramente vital que o raciocínio
científico possua o máximo de perfeição ademitida
pela natureza do caso.
A ciência moderna é uma actividade muito
complexa e, por isso, não nos surpreende que
várias teorias tenham surgido ao longo do tempo,

77
exprimindo diversos ideais de raciocínio científico,
em particular quanto as operações de raciocínio
por meio das quais se formulam as leis da
Natureza, com base na evidência factual e
através das quais se verifica o efeito de nova
evidência sobre a confiança depositada na
verdade das leis.
Antes de ocupar-me das referidas teorias,
examinemos dois exemplos típicos de raciocínio
científico. Em um deles, tira-se uma conclusão que
se admite representar uma lei da Natureza,
conclusão essa findamentada em evidência
conhecida. No outro exemplo, uma lei já conhecida
é submetida a ensaio, tirando-se as conclusões da
lei e ensaiando-as pelo confronto com novas
observações.
O raciocínio que leva a elaboração de teorias é
muito mais complicado e ocupar-nos-emos dele
depois. Há que ter em mente também que por via
de regra, o raciocínio que conduz ao
estabelecimento original de uma lei não é tão
simples como os casos que me proponho discutir
aqui.

As leis de Mendel

78
Estas leis referem-se às percentagens do número
de indivíduos que, em sucessivas gerações de
plantas e de animais adultos, exibem determinados
caracteres. Por exemplo, os filhos nascidos de um
casal formado por um homem com olhos castanhos
e uma mulher com olhos azuis terão todos olhos
castanhos; mas, se a progénie deste casal se
cruzar com indivíduos dotados de passado
genético semelhante, há possibilidade de, por cada
quatro descendentes desses matrimónios, três
deles possuirem olhos castanhos e o quarto olhos
azuis.
Mendel formulou leis gerais que descrevem
casos em que «factores genéticos» dominantes
«(olhos castanhos) e recesivos (olhos azuis) se
agrupam formando diversas combinações, em
pessoas, animais e plantas.
Mendel chegou a essas leis raciocínando a partir
da evidência. Ele e seus assistentes efectuaram
experiências com ervilheiras, procederam ao seu
cruzamento e registam o número de plantas
dotadas de certos de certos caracteres
específicos, produzidas em cada geração. A paritr
de tal evidência, Mendel generalizou até chegar às
leis. Ao fazê-lo ignorou pequenas discrepâncias
das proporções exactas que exprimiu nasleis. Os
caracteres investigados diziam respeito à forma e

79
à cor das ervilhas obtidas em cada geração,
comparou grãos redondos com enrrugados, grãos
verdes com amarelos.
Este processo de raciocínio pode estabelecer-se
esquemáticamente como se segue:

Na experiência nº 1, a percentagem foi de 5474


grãos redondos para 1850 grãos enrrugados =
2,96: 1.
Na experiência nº 2, a percentagem foi de 428
grãos verdes para 152 amarelos = 2,82:1.
Estes valores representam os obtidos de facto por
Mendel, muito embora, recentemente, tenha sido
posta em dúvida a sua autenticidade.
De cordo com os resultados obtidos, Mendel
formulou a seguinte lei:
Na segunda geração, a percentagem de
caracteres dominantes para recessivos é de 3:1.

Torna-se perfeitamente claro que o seu processo


de raciocínio principia na evidência experimental
chegando à lei como conclusão. Empregando a
terminologia lógica, diremos estar de posse de
premissas – a descrição dos resultados das
experiências – e de uma conclusão – o enúnciado
da lei. Parece, pois, que temos um argumento e

80
uma fase ou operação ou uma série de
operações, indo das premissas até à conclusão.
Qual é então – poder-se-á perguntar – a regra ou
princípio do argumento? Ao procurar responder à
pergunta, depara-se-nos toda a série de
dificuldades, em tão grande número, de facto, que
muitas pessoas dirão não existir argumento
absolutamente nenhum, mas sim apenas um seu
simulacro.

Kepler e a órbita de Marte

Na sua obra De Stella Martis, Kepler descreve as


agonias mentais porque passou ao tentar
estabelecer com exactidão qual o fromato da
órbita de Marte a partir das observações das
posições relativas do planeta com referência a um
segundo plano de estrelas fixas fornecido por
Tycho Brahe e por outros astronómos. Kepler
procurava passar das premissas à conclusão – dos
factos conhecidos acerca das posições do planeta,
a uma lei ou, pelo menos a uma proposição geral
sobre o seu movimento. Mas a única conclusão a
que chegou foi a de tratar-se, provavelmente, de
uma órbita oval que modificava o respectivo
formato de acordo com uma teoria de librações,
de expansão e contração do diâmetro do planeta.

81
Kepler, porém, sabia que a teoria não prestava.
Mais tarde, após estudar a teoria da elipse em
outro contexto, teve a ideia luminosa de supor que
a órbita de Marte fosse elíptica e a partir de tal
suposição, de ver se conseguiria determinar
posições do planeta que correspondessem às
posições observadas. Foi isso que fez e, para
grande contentamento seu, verificou que a
suposição – ou hipótese – de que a órbita era
elíptica se confirmava na prática, ou seja, que
Marte era observado ocupando as posições
previstas ao partir do princípio de que o planeta
possuía órbita elíptica.
Kepler estabeleceu independentemente a sua lei
e só depois a verificou, comparando-a com a
evidência. Trata-se aqui de um esquema lógico
diferente do anterior. Neste processo, a lei
transforma-se no ponto de partida do raciocínio,
as premissas e as fases ou operações de
pensamento fornecem conclusões que são julgadas
segundo a sua concordância com os factos.
No entanto, associada a esta maneira de
proceder científica, existe uma outra fase que a
aproxima do tipo de raciocínio que, tal como se viu,
Mendel terá utilizado. Qual o propósito dos
ensaios? Por certo que se estes se revelaram
satisfatórios será lícito afirma que a suposta lei

82
também o é. Ou seja, dir-se-á que do carácter
satisfatório da lei ou, caso se queira, da verdade
das previsões se infere a aceitabilidade da lei. E
isto é algo de identico ao que Mendel
supostamente terá feito, aos raciocínar partindo
dos factos para a lei.

Os cânones de Mill

O primeiro caso apresentado exemplifica o


método indutivo, o segundo o método hipotético-
dedutivo. Alguns lógicos tomam-nos em conjunto,
encarando-os como dois aspectos diferentes do
mesmo processo de raciocínio, outros julgam-nos
basicamente distintos.
Os filósofos têm procurado esquematizar os
padrões de raciocínio subjacentes aos casos
aparentes de emprego do método indutivo, como a
da descoberta das leis de Mendel. É errado tomar
Francis Bacon como exemplo destes casos; por
vezes, o método indutivo é mesmo injustamente
designado «método baconiano». Os expoentes
máximo deste método foram Guilherme de
Ockham, John Herschel e John Stuar Mill. De
modo mais que injusto do ponto de vista histórico,
à vulgar formulação de algumas pertenças leis
indutivas foi dado o nome de «canones de Mill».

83
Mill, Herschel e Ockham concordavam quanto aos
seguintes princípios:
Cânone da concordância: «Se duas ou mais
instâncias do fenómeno sob investigação tiveram
apenas uma circunstância em comum, só a
circunstância em que todas as instâncias
concordam é a causa ou (efeito) do fenómeno em
questão.»
Cânone da diferença: «Se uma instância na qual
ocorre o fenómeno sob investigação e uma
instância na qual ele não ocorre tiverem todas as
circunstâncias em comum menos uma e essa
ocorrer apenas na primeira, só a circuntância em
que as duas instâncias diferem é o efeito ou a
causa ou uma parte indespensável da causa do
fenómeno.»
Nos comentários a estes trechos, Mill afirma:
«O método da concordância assenta no
fundamento de que, seja o que for que possa ser
eliminado, se não liga ao fenómeno por qualquer lei.
O método da diferença tem por base que, seja o
que for que não possa ser eliminado, se liga ao
fenómeno por uma lei.»
Mill cita também outros cânones de menor
relevo. Segundo ele, os dois cânones principais que
referimos, constituem os princípios ou inserem-se
nos princípios do raciocínio indutivo, pois, achadas

84
as causas, encontrou-se também a lei, conforme
ele pensa. Eis princípios recorrendo aos quais
poderá passar-se dos factos às leis gerais.
Mas de que maneira se aplicarão na prática?
Consideremos oexemplo do raciocínio de Mendel
para o estabelecimento da sua lei. A única
diferença existente entre as ervilhas de grão liso
e verde e as ervilhas de grão enrrugado e amarelo
por ele cultivadas terão de provir de diferenças
existentes entre as plantas-mãe. Portanto, sejam
quais foram as diferenças existentes entre as
plantas-mãe, essas diferenças deverão ser
responsáveis pelas verificadas na descendência.
Encarada do ponto de vista do «cânone da
diferença», A concordância em outros pontos
entre diferenças paternas e diferenças em
discendentes fornece poderoso sustentáculo às
hipóteses pormenorizadas quanto à maneira como
se explicam as diferenças ocorridas nas várias
gerações.
Há, porém, certos obstáculos à aplicação dos
cânones de Stuar Mill e evidência-los-lei aos
poucos. Para ser possível empregar os «métodos
da concordância e da diferença», torna-se
necessário ter uma ideia da totalidade das causas
possíveis do fenómeno. Vamos supor que estuamos
o crescimento das plantas de que, constatamos

85
que, com o tempo quente, estas crescem mais
depressa do que com o tempo frio. A não ser que
saibamos que, no decurso do período quente, a luz
solar brilha durante mais tempo, talvez sejamos
tentados a supor que a diferença de temperatura
é a responsável pela diferente taxa de
crescimento das plantas. Caso encaremos o
problema deste modo, deduziremos que a maior
quantidade de luz solar durante o Verão. Só por si,
os cânones de Mill não conseguem solcionar o
problema de se saber se foi o calor ou a luz o
factor causal, a não ser que se realize um outro
género de experiência. Essa experiência é a de
cultivar as plantas na ausência de lu e na
przesença de calor ou, pelo contrário, na presença
de luz e na ausência do hábitual calor do Estio. Só
depois, aplicando os cânones de Mill, poderemos
deduzir dos resultados das experiências qual a
causa do crescimento.
Mas poderemos fazê-lo, de facto? Mesmo de
posse dos resultados das experiências adicionais,
estes não deixam de ser equívocos. Com efeito, o
que ficámos saber efectivamente, foi que se torna
necessária uma certa quantidade de calor para
estimular o crescimento das plantas, tendo elas
também necessidade de luz. Esta parece ser a
causa predominante, mas talvez se alie a um

86
terceiro factor, ainda não assinalado, que
constitua a causa real.
Para ultrapassar tal dificuldade, algo de muito
diferente se terá de se fazer. Há que se
investigar o mecanismo de crescimento das
plantas, o processo por elas utilizado na sintese de
novas substâncias. Ao fazê-lo, constatamos que o
processo depende da luz; trata-se da fotossíntese.
Só após descobrirmos o mecanismo de
crescimento das plantas, poderemos ter a certeza
de haver encontrado a causa.
E descrever tal mecanismo é avançar com uma
teoria acerca da maneira como se verifica o
crescimento. O credito dado à tal teoria
dependerá do grau de certeza que se tenha quanto
a haver desvendado o mecanismo verdadeiro.
O facto de qualquer aplicação específica dos
cânones de Mill proporcionar informações válidas é
determinado apenas pelo grau de solidez da teoria
que pretende explicar os processos que se
investigam. Seja qual for a informação obtida
através do emprego dos cânones de Mill,esta
dependerá tanto da teoria sustentada pelo
investigador como daquilo que ele observa durante
a experiência.
Dir-se-á que os cânones de Mill representam, na
melhor das hipóteses, um preliminar para estudos

87
mais aprofundados dos cientístas. Com efeito, os
cânones eliminam possibilidades, não obstante
nada de positivo conseguirem provar. Na prática,
ninguém se dá por satisfeito com leis para as quais
não existam explicações.
Quando se encaram como expressão de formas
de raciocínio aceitáveis, os cânones de Mill
representam ainda outra dificuldade. Análisamos
o problema no capítulo anteriro, problema que é o
de saber até que ponto se devem tomar como
verdadeiras as leis estabelecidas com recurso ao
raciocínio segundo os cânones de Mill ou a qualquer
outro método indutivo.
Imaginemos que a única razão para acreditar na
lei de Mendel seja a constituída pelas experiências
por ele efectuadas. Suponhamos também que
qceitamos como factos os resultados indicados,
isto é, que os aceitamos como evidência
irrefutável, como resultados verdadeiros das
experiências. Será possível ter igual certeza
quanto às leis mendelianas generalizadas? Que
tipos de dúvidas nos suscitarão? Não poderá
suceder que os valores obtidos por Mendel
representem apenas uma coincidência e que, se
acaso fizessemos estudos semelhantes em outro
ano, achássemos resultados muito diferentes?
Nada existe nas experiências que nos leve a

88
pensar que obteriamos resultados semelhantes em
outro ano ou em outro século.
Maso facto de se enuncirem os resultados como
leis aponta, por certo, para uma forte expectativa
de que a hereditariedade irá operar segundo tal
modelo e que continuará a fazê-lo para sempre. A
ideia global da existência de leis da Natureza
contém em si a sugestão de que os padrões do
fenómenos se repetem. Todavia, onde está essa
evidência?
Partamos do princípio de que responderemos à
pergunta dizendo que tal prova reside no conjunto
da ciência tal como ela é. Inumeras vezes se
verificou que se repetem os padrões da Natureza
discernidos com o auxilio dos cânones de Mill. Os
processos naturais desenrolam-se de
conformidade com o mesmo esquema daqueles que
os antecederam. Deste modo, dispomos de sólidos
fundamentos para acreditar na uniformidade da
Natureza. Dir-se-á que os cânones de Mill
constituem um par de princípios lógicos
alicerçados em factos. Não obstante isso, que
princípios lógicos utilizaremos para conduzir o
raciocínio desde a evidência de passados sucessos
científicos até à verdade da suposição de que os
padrões se repetem em circunstâncias

89
semelhantes? De facto, nenhum, excepto os
cânones de Mill.
A ciência alcançou êxito onder quer que os
referidos padrões se repetem de facto; nos casos,
porém, em que as «leis» se basearam em
coincidências ou em experiências imperfeitas,
verificou-se subsequentemente que existiam
excepções ou que aquelas não eram de todo
aplicáveis. Eis de novo em acção os «métodos da
concordância e de diferença»! Dir-se-á que aprova
de um dos mais importantes tipos de raciocínio
científico depende de se admitir o carácter
correcto desse próprio método. Assim sendo, a
não ser que se actue com cuidado, poderemos
surpreendermo-nos a pensar que o método
científico ou é infundado ou assenta em provas
falaciosas. Mas esta consequência extrema pode
ser evitada.
Aquilo que de facto descobrimos foi que os
cânones de Mill emparceiram com várias outras
formas de raciocínio restritas e subalternas.
Estabelecem normas de procedimentos e, à
semelhança de outros ideais, não necessitam de
provas práticas científicas. Descobrimos também,
se aceitarmos os cânones de Mill como formas
ideais de raciocínio, não abrangerão tudo aquilo
que gostariamos de incluir no método científico.

90
As razões que nos levam a pensar que um tipo de
fenómeno seja a causa de outro tipo de fenómeno
não constituem apenas uma questão de verificar se
os dois tipos de fenómenos ocorrem em conjunto
ou em sequência e osegundo nunca sem o primeiro,
baseando-se muito mais no nosso conhecimiento ou
em especulações sobre os mecanismos que fazem
relacionar os dois fenómenos e por meio dos quais
o primeiro desencadeia o segundo.
O conhecimento de que a vibração é a causa da
fadiga do metal, por exemplo, provém não só do
facto de os metais sujeitos a vibrações se
quebrarem mais rapidamente do que aqueles que a
elas se não submetem, mas também do
conhecimento que temos da estrutura dos metais
e das mudanças de estruturas originadas pela
vibração.
Os cânones de Mill são uma forma de raciocínio
empregue pela ciência, mas, muito embora se
utilizem amiúde como estádio preliminar essencial
da investigação, não constituem de modo algum os
únicos princípios necessários à formulação de
hipóteses bem sucedidas.

O indutivismo

91
Mas, ao jeito inimitável da filosofia, os cânones
foram promovidos à categoria de teoria científica
acabada. Tal teoria exprimi-se em três princípios:

Princípio da acumulação – Este princípio afirma


que o conhecimento científico é um cojunto de
factos bem comprovado e que tsl conhecimento
aumenta por meio da adição de outros factos bem
comprovados, de modo que a soma de um novo
facto ao conjunto deixa inalterados todos os
outros. Tudo se passa como se a química, por
exemplo, consistisse apenas de listas e mais listas
de reacções entre elementos e entre compostos.
Princípio da indução – Segundo este princípio,
existe uma forma de inferência de leis a partir de
factos simples acumulados, de modo que podem
inferir-se leis verdadeiras de enunciados
verdadeiros que descrevem as observações e os
resultados das experiências. Os cânones de Mill,
por exemplo, podem propor-se como princípios de
tais inferências, As leis da Natureza não passam
de factos particulares generalizados e
codificados; tal como Mach comenta, «são a
reprodução mnemónica dos factos no
pensamento». Na ciência moderna, reconhece-se
muitas vezes a acção deste princípio no esforço

92
para se obterem dados numéricos e encontrar
depois funções algébricas que os exprimam.
Princípio da confirmação por instâncias – De
acordo com este princípio, o crédito no grau de
plausibilidade (ou o nosso grau de crença em) de
uma lei é proporcional ao número de instâncias
observadas no fenómeno descrito na lei. Por
exemplo, quanto maior número de gases diatómicos
(com dois átomos na molécula, no estado gasoso)
encontrarmos, mais depressa acreditaremos e
aceitaremos a lei de que todos os gases são
diatómicios.

Trata-se de uma teoria científica bastante


sedutora. Parece ser um ponto de vista positivo,
claro e empiricamente fundamentado. Fornece-nos
a visão de cientístas a empilharem factos com
persistência, a generalizá-los, transformando-os
em leis, e a tornarem a empilhar factos sobre
factos, passo à passo nos laboratórios. Sendo
possível inferirem-se leis dos factos acumulados,
também se podem deduzir estes das leis e o
conteúdo destas últimas resumir-se-á aos factos.

Objecções ao indutivismo

93
O indutivismo, porém, não consegue resistir a um
momento de crítica séria; nenhum dos três
princípios se manterá de pé.
Tomemos o princípio de que a ciência progride
por meio da acumulação dos factos. Isso não é
verdade. O desenvolvimento da ciência processa-
se por meio de saltos de acumulação de factos e
de avanços teóricos. Veja-se por exemplo, a
história do cálculo dos pesos atómicos. Quais
foram, neste caso, os factos? Sob a influência da
hipótese de Prout, alguns químicos tomaram como
erros as descrepâncias nos valores integrais dos
pesos atómicos do elementos, pois Prout
sustentara que todos os atómos elementares eram
combinações de números inteiros de átomos de
hidrogénio completos e, por conseguinte, os seus
pesos atómicos teriam de ser números inteiros
comparativamente ao hidrogénio. Os que não
aceitaram ou abandonaram a hipótese de Prout
inclinaram-se, pelo contrário, a supor que os pesos
não integrais constituíam os factos, isto é, uma
medida genuína do fenómeno natural. Aquilo que os
factos eram dependia, em parte, do facto de se
perfilhar ou não uma teoria específica.
Não apenas uma mudança introduzida numa
teoria resuta na alteração de facto como também,
mesmo no âmbito de uma só teoria, há dificuldade

94
em saber-se quais são os factos. Regressemos oas
pesos atómicos. Serão eles os pesos relativos dos
átomos, tal como a expressão sugere, ou
representarão um conjunto, assim baptizado com
propósitos ilustrativos, de proporções numéricas
dos pesos relativos segundo as quais se combinam
as substâncias?
Muito embora se trate de interrogações
importantes, poderá pensar-se, ainda assim, ser
possível discernir aqui alguns «factos brutos», isto
é, factos que tenham permanecido imutáveis face
à modificação da teoria e do ponto de vista.
Infelizmente, a tentativa para encontrar tais
factos conduz a um dilema fatal. Os únicos
factos que parecem ser genuínamente
independentes de toda a teoria científica são os
inerentes as sensações de tacto, de paladar, de
olfacto, de ouvido e de vista que cada cientista
individual experimenta. Mas tais factos não são
públicos, como é óbvio; são factos privados de
cada indivíduo. Deste modo, ficamos perante o
dilema: se os factos são verdadeiramente
independentes da teoria, trata-se de factos
privados, não fazendo parte do domínio público
do conhecimento; se são factos públicos,
sofrem o efeito de todos os genéros de
influências, em particular das do conhecimento

95
anterior, das quais depende a sua forma exacta
e a nossa confiança neles. Não há factos
brutos, pelo menos para a ciência. Não há
factos que outros factos não possam alterar;
não existe conhecimento totalmente
independente da teoria.
O princípio da indução conduz-nos a águas ainda
mais turvas. Neste caso, não só se põem as
objecções apresentadas relativamente aos
cânones de Mill, que são formas específicas do
princípio indutivo, como ele também suscita
problemas gerais, sendo o mais premente o da
indeterminação dos resultados na tentativa do
emprego do princípio para inferir as leis.
O princípio da inferência não é legitimo se, das
premissas propostas, se puderem extrair várias
conclusões mutuamente incompatíveis. Mas
utilizando o princípio da indução, de cada conjunto
de premissas do facto experimental e
observacional podem inferir-se leis em número
infinito; isto torna-se, porventura, mais simples
quando transformado em gráfico.
Cada uma das curvas da gravura representa uma
lei inferida pelo método indutivo, a partir de
premissas constituídas pelos pontos que figuram
sobre as linhas, de cada lei podendo
2
1

96
Fig. 1 – Prova das cruvas
Inferir-se os pontos (os factos). Qual destas
múltiplas leis potencialmente infinitas é a
correcta?
O princípio da indução não nos fornecerá a
resposta porque, de tudo quanto possa dizer-se
empregando apenas esse princípio, todas elas são
igualmente correctas. Para fazer face a tal
problema, os indutivistas adicionam quase sempre
um «princípio de simplicidade» ao seu arsenal
lógioc: de todas as leis debitadas pela indução,
apenas as mais simples se devem aceitar –
argumentam eles. Na figura 1, há que escolher,
portanto, a marcada com o número 1, embora se
trate de um critério altamente duvidoso.
Em primeiro lugar, não é clara a maneira exacta
de o aplicar. Deveremos escolher a cruva 1 vou a 2
do diagrama? A 2 mostra-se, por certo, uma boa
adquação, mas o mesmo se pode dizer da 1. Não é
dificil conceberem-se novas experiências
acrescentando mais pontos, que permanecerão
ambíguos relativamente à escolha entre 1 e 2.
97
Recordemos que, do ponto de vista indutivista, não
é possível recorrer a mais nada excepto aos factos
experimentais e ao princípio da simplicidade; a
fase para a qual os cientistas habitualmente
transitam – a de se reportarem à teoria para
resolverem os problemas – deixou de ser viável
aqui.
Em segundo lugar, a história da ciência poucas
perspectivas oferece aos adeptos da simplicidade.
O progresso do conhecimento não levará, por
ventura, às formas de leis mais complexas que é
possível conceber – se acaso ainda faz sentido o
conceito de «mais complexas» - mas por certo que
não conduz às mais simples. O aumento do
conhecimento sobre o comportamento dos gazes,
por exemplo, levou-nos da fórmula PV = RT até à
fórmula (P + a/V2) (V – b) = RT; o progresso do
conhecimento no campo do movimento dos planetas
foi desde a simples hipótese se órbitas circulares
até formas mais complexas de curvas elípticas; o
avanço do conhecimento quanto ao formato da
Terra passou da primitiva ideia da forma esférica
para a concepção de um esferóide achatado nos
polos e depois para formatos ainda mais
elaborados.
Não estam dúvidas de que a história da ciência
demonstra que as leis da Natureza são sempre

98
mais complexas do que de início se imaginou.
Dificilmente se aceita o princípio da simplicidade
como princípio geral. Claro que, em cada estádio do
conhecimento, seria loucura optar pelas hipóteses
mais complicadas, mas por certo que não é legitimo
considerar como princípio metodológico o
potentoso estatuto epistemológico atribuído ao
princípio da simplicidade.
Deparamos já com problemas de confirmação por
instâncias em diversos conteúdos e, portanto, só
com dificuldade nos sobmeteremos a esse mesmo
princípio. Todavia, o problema mais profundo do
indutivismo, na sua qualidade de teoria exclusiva
da ciência e proporcionadora de um ideal que tudo
abrange , é a impotência em incluir a explicação no
campo do esforço cientifico. Esta falha é
claramente assinalável quando se comparam, por
exemplo, os métodos astronómicos seguidos pelos
Babilónios e pelos Gregos.
O problema prático a que os cientistas das duas
culturas se dedicavam era o da execussão de
tábuas astronómicas, isto é, de tabelas que
fornecessem antecipadamente os factos
astronómicos em que as pessoas estavam
interessadas, como o momento do nascer e do
acaso das constelações, do Sol e da Lua, ao longo
de todo o ano. Para esse fim, os Babilónios

99
utilizaram um método indutivo e os Gregos um
método não indutivo. No caso dos primeiros, as
tábuas astronómicas foram elaboradas com
recurso a regras numéricas, obtidas sob a forma
de leis indutivas, por meio das quais a adição ou
subtracção de constantes, de acordo com regras
definidas, produziam conjuntos de valores
representativos do nascimento e do
desaparecimento dos corpos celestes de interesse
astronómico. Para mais pormenores sobre este
curioso tipo de astronomia, leia-se The Exact
Sciences in Antiquity (1).
Neste género de ciência, a teoria de que se
dispõe é tomada apenas no sentido de expediente
abstracto de cálculo capaz de fornecer previsões,
mas não no sentido de explicação de fenómenos no
seio de um quadro do sistema estalar, teoria que
os assinale e explique. Os métodos astronómicos
babilónicos, nossos conhecidos através da
reconstituição das placas de argila onde foram
gravados, nunca poderiam ter fornecido hipóteses
realistícas acerca da estrutura do Universo e do
movimento dos corpos que o compõem, visto não
haver na «teoria» qualquer elemento capaz de se
converter em realidade de uma maneira
apropriada. É impossível conceber uma hipótese de

100
natureza física apenas a partir da adição e
subtração de alguns valores constantes.
O panorama da astronomia grega era bastante
diferente. A teoria lunar de Eudoxo repressenta
já meio caminho andado para o estabelecimento de
um modelo de Universo, pois

PPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPPP
PPPPPPPP PPP

Fig. 2 --- O sistema de Eudoxo


seus elementos não constituem relações
matemáticas, mas sim esferas geométricas. Para
dar conta do movimento da Lua, tal como a vemos,
101
por exemplo, Eudoxo propôs uma teoria.
Considerou a existência (ou possibilidade de
existência) de três esferas concêntricas à Terra,
cada uma delas girando dentro da outra,
encontrando-se a Lua ligada ao ponto P tal como se
vê no diagrama acima.
Aristóteles foi mais longe e encarou as esferas de
Eudoxo como objectos fisicos verdadeiros,
existentes no Universo, cujos movimentos reais
originavam o movimento dos corpos celestes, tal
como é percebido da Terra.
A astronomia Babilónica forneceu uma
«reprodução mnemónica dos factos no
pensamento» e o seu método de soma e
subtracções (funções ziguezagues) aproximou-a o
mais possível de uma ciência de puras leis
indutivas. Mas os Babilónios não foram capazes de
explicar os movimentos estelares observados.
Pelo contrário, a teoria astronómica dos Gregos
tanto resumia os factos, servindo assim de base à
previsão, como também os explicava como
resultantes da acção de certos mecanismos,
satisfazendo os preponentes de cada teoria.
Deve notar-se também que, quanto aos Babilónios,
os factos eram constituidos pelas posições
relativas das estrelas tal como as distinguimos no
espaço. Para os Gregos, porém, os factos eram

102
subtilmente diferentes. O que a maioria dos
astronómos pensava ver perscrutando o céu, à
noite, eram objectos luminosos que se deslocavam
segundo determinado padrão ou sistema, não
exactamente igual àquele se avistava da Terra,
dado que, desta, se vê o conjunto estelar apenas
de um ângulo. Foi a astronomia explicativa dos
Gregos que se transformou nas modernas ideias
acerca do Universo e não a astronomia indutiva
dos Babilónios.
A conclusão que daqui se extrai terá de ser a de
que, muito embora os cânones de Mill representem
uma esquematização valiosa para a organização da
investigação, será dificil generaliza-los na
qualidade de método científico completo. Isto
porque, em resumo, os cientistas não se dedicam
em exclusiva à descobertas das correlações
entre fenómenos, estando também empenhados,
pelo monos, em explicar porque motivo são da
maneira que são as correlações, entre
fenómenos, estando também empenhados, pelo
menos em explicar porque motivo são da
maneira que são as correlações susceptíveis de
descoberta e porque motivo existem as
estruturas que existem. A estronomia deverá
esclarecer não só a correlação entre os
movimentos do aparecimento e do

103
desaparecimento dos corpos celestes, como
também o modo como os planetas se encontram
dispostos no sistema solar e a maneira como esse
sistema se acha inserido na Galáxia.
Isto conduz-nos a um ponto de aplicação mais
geral. A verdadeira razão porque o indutivismo
está tão errado é a do seu carácter irrealista.
Trata-se da tentativa de codificar uma concepção
da ciência mais ou menos mítica. Partindo dos
cânones de Mill, torna-se bastante óbvio que os
adeptos do indutivismo pintam os cientistas
entregas às suas experiências na esperança de
descobrirem correlações entre fenómenos. Assim
sendo, que dizer da actividade dos anatomistas
que investigam a estrutura dos organismos, dos
cristalógrafos e dos físicos nucleares que também
buscam o conhecimento das estruturas? Que dizer
igualmente do enorme esforço posto nas
tentativas de medir com exactidão as constantes
naturais? Que dizer dos taxonomistas e do seu
trabalho de classificação das plantas, dos minerais
e dos animais existentes no mundo?
Seria bastante ridículo considerar como não
científicas tais actividades. Esse elas fazem parte
da ciência e se, como eu acho, constituem um dos
seus sectores mais importantes, será difícil pintar
a ciência como a busca de correlações entre

104
diversos géneros de conhecimentos. Os químicos
estão interessados em saber que substâncias
poderão conseguir e a partir do quê; não lhes
interessa a correlação das ocorrências do
desaparecimento de um dado número de
substâncias e do aparecimento de outro conjunto
delas.
Este mito dos fenómenos tem ocupado, em
grande medida a mente dos filósofos e foi
responsável, no passado, em muito, pela
ausência de significado de diversas filosofias da
ciência.

Poper e a doutrina da falseabilidade

Se a ciência não é o processo de confirmação por


exemplos de leis da Natureza obtidas por indução,
nesse caso, talvez se trate de um processo de
falseamento por exemplos de conjunturas sem
base lógica nos factos até agora conhecidos. Tal
teoria, a que se dá o nome de «falibilismo», foi
desenvolvida nos tempos modernos por Sir Karl
Popper (1).
Este ponto de vista mantém a visão indutivista
das leis da Natureza como enunciados gerais de
correlações entre fenómenos e a da evidência
como rnunciados particulares de correlações

105
entre observáveis. Este aspecto da teoria pode
muito bem denominar-se conservador e chamar-
lhe-ei «princípio conservador». A proposta mais
radical de Popper é a de que a evidência é válida
apenas na medida em que tende a falsear os
enunciados gerais. Uma parcela de evidência que,
habitualmente seria considerada favorável e
susceptível de apoiar uma hipótese é encarada por
Popper, pelo menos em alguns dos seus trabalhos,
como exemplo do fracasso da tentativa de
falsificar a hipótese submetida à ensaio;
referir-me-ei a esta ideia de evidência como
«princípio radical».
Popper emprega também este mesmo princípio
em sentido contrário para classificar hipóteses
quer como empíricas quer como não empíricas ou
não metafísicas. As que podem falsificar-se por
evidência empírica (experimental ou observacional)

(1) Consulte-se o seu livro Logic of Scientific Discovery (Londres:


Hutchinson, 1963), assim como conjectures and refutetions
(Londres: Routledge and Kegan Paul, 1963).
São encaradas como empíricas ou científicas e as
que não podem ser falseadas por nenhum tipo de
ensaio, Popper di-las não empíricas ou, como por
vezes lhes chama, «metafísicas». Designarei esta
opinião por «princípio de demarcação radical –
«radical» pelo facto de excluir da ciência bastante

106
daquilo que, em regra, se considera como
característicamente científico.
Os princípio de Popper originam diversas
consequências de interesse. Do princípio
conservador segue-se que os cânones do raciocínio
correcto, isto é, os princípio da lógica, terão de
cingir-se aos estabelecidos por Aristóteles; os
princípio de raciocínio aristotélicos, relevantes
dentro deste contexto, resumen-se, por assim
dizer, ao tradicional «quadrado da oposição».
Os enunciados gerais podem ser afirmativos -
«todos os metais são condutores» - ou negativos -
«nenhuns metais são condutores». O mesmo
acontece com as leis da Natureza. Os resultados
das experiências são susceptíveis de exprimir-se
como «alguns metais são condutores» quando tais
experiências foram coroadas de êxito; ou como
«alguns metais não são condutores», se falhou a
tentativa de ensaio de alguns metais quanto à
respectiva condutividade. As relações entre estes
quatro enunciados mostram-se graficamente no
diagrama seguinte:
1
(A) Todos os metais são condutores (E) Nenhuns metais são
condutores

3 4 5 6
7 8
2
(I)Alguns metais são condutores (O) Alguns metais não são
condutores
107
As relações são as seguintes:
1 A e E não podem ser verdadeiros em conjunto.
2 I e O não podem ser falsos em conjunto.
3 e 5 se A é verdadeiro, I também o é. Se E é
verdadeiro, O também o é.
4 e 6 a verdade de I apoia A e a verdade de O
sustenta E.
7 e 8 a verdade de I contradiz E e a verdade de O
contradiz A.

Deste modo, 7 e 8 são as relações que a evidência


contradiz tem com as hipóteses, ao passo que 4 e
6 são as relações mais fracas que a evidência
favorável tem com as hipóteses.
A consequência mais importante para 3, 5, 7 e 8
das reservas de Popper à lógica da ciência é a ideia
de que o processo de gestão de hipóteses se não
verifica de acordo com princípios críticos
racionais. Segundo Popper, a ciência tem origem
num nevoeiro de conjecturas acerca do modo como
as coisas se passam. Este corpo de hipóteses é
progressivamente debastado por meio do trabalho
experimental, cujos resultados falseam
determinadas componentes.
Em conformidade com tal parecer, o progresso
da anatomia deverá entender-se não como o
desenvolvimento de ideias correctas acerca dos

108
órgãos e das estruturas dos organismos,
conseguindo por meio de dissecação e de
observação, mas sim como o falseamento de
conjecturas incorrectas quanto àquilo que existe
por debaixo da pele. A descoberta dos capilares
de Malpighi olhar-se-á não como a confirmação de
uma das hipóteses de Harvey, mas como o
falseamento de alguma outra conjectura
contraditória.
De maneira semelhante, o raciocínio por analogia,
de acordo com Popper, não possui qualquer
vantagem sobre o palpite, visto que,em ambos ao
casos, a única verificação racional da hipótese é a
acção da evidência negativa; esta maneira de
encarar a evidência é aquela é aquela a que dei o
nome de «princípio radical».
Tal princípio exige a reinterpretação drástica de
quase todo o trabalho científico, dado que toda a
evidência que se supôs favorável à uma hipótese é
agora encarada como tentativa de falseamento que
se gorou. Visto que, nesta teoria, as relações
lógicas apenas existem entre evidência falseadora
e hipóteses, torna-se impossível a existência
daquela que se dão entre evidência favorável e
hipóteses. O processo, por exemplo, por meio do
qual se calcula a média de resultados
experimentais afim de achar-se o valor de

109
constantes naturais teria de ser refeito de
maneira radical. Segundo a interpretação
comum,cada experiência é encarada como
apoiando-se no valor e como contribuindo, no fim,
para o valor eventualmente atribuído à constante.
É esta ideia que confere sentido à inclusão de
todos os resultados no cálculo da média. Como,
porém, de acordo com Popper, as experiências
exprimem apenas evidência potencialmente
falseadoras, o cálculo da média não passa de um
processo irracional. Os resultados experimentais,
diferindo todos eles do valor final atribuído,
teriam de ser olhados como falseadores. Da
hipótese de que o valor seria o valor médio. Nesta
teoria, não pode existir qualquer noção de erro
aceitável e, portanto, não permanece em aberto a
opção usual de considerar os resultados
divergentes como o insucesso em falsear a
hipótese, por se acharem dentro da margem de
erro aceitável. Por conseguinte, tanto quanto me é
dado perceber, por este motivo, nenhum valor
poderá atribuir-se à uma constante natural. Certos
processos, tais como os de cálculos da média,
teriam de ser banidos da ciência.
Do «princípio da demarcação radical» resultam
duas consequências de sumo valor. Duas
importantes categorias de enunciados empíricos,

110
que representam o tipo acabado do enunciado
empírico para muitos pensadores, terão de ser
despromovido do estatuto científico. Trata-se dos
enunciados existenciais gerais, tais como «há
moléculas» ou «há ocápis» e dos enunciados
específicos de probabilidade como, por exemplo,
«a probabilidade de este dado exibir o número
seis no próximo laço é de 1:6».
Os primeiros enunciados não são científicos por
não serem falseáveis, não obstantes serem
confirmáveis; o último também não tem carácter
científico porque a falha do dado em exibir o
número seis nessa jogada ou mesmo nas seis
jogadas seguintes não funciona como evidência
suficientemente forte para falsear o enunciado.
Os enunciados de probabilidade específicos são
incorrigíveis. Se, nos próximos cem lances, o seis
não aparecer, não consideramos como falso o
enunciado de probabilidade, mas argumentaremos
que ago se passa de errado com o dado.
A conclusão de que os enunciados existenciais
gerais não são científicos torna-se ainda mais
flagrante pelo facto de Popper e seus adeptos
sustentarem que os enunciados de evidência que
exprimem resultados experimentais devem
formular-se como se de enunciados existenciais
particulares se tratasse. Por exemplo, «isto é um

111
termómetro que marca 30º» e «isto é uma rádio-
estrela» é verdade, também «existem rádio
estrelas» (1) o é. Não parecerá estranho que o
primeiro deva ser classificado como empírico e o
segundo não?
-------------
(1) O fenómeno da existência de potentes focos de
radiação no espaço foi assinalado pela primeria vez em
1948 e deu-se-lhe o nome de «estrela de rádio» ou
«rádio-estrela». Mas pelo facto de a sua proveniência
com coincidir com a posição de certos objectos
brilhantes conhecidos e de o nome atribuído se prestar a
confusões, a actual designação do referido fenómeno é a
de «fonte» ou «origem de rádio». (N. da T.)
Uma tal teoria, não obstante todo o seu
superficial carácter atraente e enorme
simplicidade, apresenta dificuldades de aplicação
ao método científico. Em primeiro lugar,
confunde condições psicológicas com condições
lógicas da ciência. Como é evidente, o sinal
característico que distingue o cientista é o de ser
capaz de abandonar qualquer teoria ou qualquer lei
quando a evidência se acomula fortemente contra
elas, muito embora, claro está, se deva ter em
conta que muitos conhecimentos científicos
frutuosos se ficaram devendo à persistência em
querer explicar evidências contrárias e em manter
certas leis e teorias.

112
Com efeito, nem os cânones de aceitação nem os
cânones de rejeição de leis, de hipóteses e de
teorias são tão simples que possam exprimir-se
nas rudes relações da lógica aristotélica. O
método conjunto de confirmação e de falseamento
tem constituído um lugar-comum do método
científico, desde pelo menos, o século XVI. Neste
século, sublinhou-se mesmo com ênfase particular
que a evidência experimental só por si não era
suficiente quer para confirmar quer para refutar
teorias ou hipóteses e que deveriam procrar-se
outros procedimentos racionais de decisão. Além
disso, em muitos casos, o passo adequado a dar,
face à evidência antagónica a determinada
hipótese, é o de reinterpretá-la como evidência
favorável por meio do desenvolvimento da teoria
relevante, de modo a que os factos embaraçosos
passem a ver-se como concordantes com a teoria.
Mas as condições em que isto constitui a maneira
certa de proceder terão de ser estudadas com
cuidado e distinguidas dos casos assaz raros em
que a evidência desfavorável exige a rejeição da
teoria ou da hipótese.
O conflito entre a teoria de Popper e a prática
científica assume a sua agudeza máxima no campo
da classificação dos enunciados existenciais. É
devido precisamente à forte ligação lógica deste

113
com a evidência que eles desempenham papel tão
importante na ciência. Na verdade, é nos
enunciados existenciais que se salvaguardam do
fundo movediço das hipóteses os avanços
científicos mais significativos. O conhecimento da
existencia dos átomos químicos, das bactérias, dos
genes, das partículas subatómicas, etec., etc.,
constitui o núcleo do conhecimento científico
enquanto as nossas ideias acerca da constituição e
da capacidade dessas entidades se vão
desenvolvendo aos poucos, crescendo e
modificando. Os enunciados existenciais
exprimem a faceta empírica permanente da
ciência. O seu estudo é feito de subtilezas e
nem todas as entidades atrás referidas
possuem o mesmo estatuto. Mas é certamente
um erro negar aos enunciados existenciais o seu
lugar entre a comunidade das verdades
científicas.
Para finalizar, diremos que o aspecto mais
perturbador de tal teoria da ciência é a
consequência a que chega; os processos
intelectuais que conduzem à descoberta das
hipóteses e à formulação das teorias apenas
revelam capacidade para os estudos psicológicos;
ou seja, em ciência, não exitam processos
racionais de descoberta.

114
São bastante desparatadas, por certo, as ideias
simplistas dos partidários do indutivismo quanto
aos princípios racionais da descoberta científica,
mas delas não se segue a inexistência da base
lógica da descoberta e da criação intelectual.
Quanto à isto, farei apenas alguns comentários,
mas veremos como os prolongamentos profundos e
subtís da lógica tradicional, em partícular no
campo dos modelos e das analogias, podem
proporcionar a base racional da criação e da
descoberta e fazê-lo precisamente de modo
concordante com a prática científica. A
falseabilidade, por consequência, não fornece o
único ideal da razão.

Positivismo

Rejeitada a ideia de que a única função das teorias


é a de conseguir conjecturas a falsear,
consideremos agora outra teoria intimamente
relacionada com a de Popper, poder-se-á chamar-
lhe, de facto, uma teoria gémea.
Trata-se de um dos aspectos do positivismo, o
seu aspecto lógico, na verdade. À semelhança de
Popper, os positivistas concebem as teorias
organizadas apenas segundo os cânones da lógica
dedutiva, a das matemáticas e da taxonomia. O

115
efeito disto obriga-os a formar uma imagem muito
acanhada da teoria e da sua lógica ideal.
Torna-se difícil estabelecer os aspectos lógicos
do positivismo sem referência às suas facetas
epistemológicas e metafísicas, coisa que me sinto
obrigado a fazer em termos breves.
Para o positivista, o ideal supremo da razão é
o de que a teoria seja uma estrutura dedutiva
(fornecendo disso exemplo a geometria) e de que
exista igual estrutura numa explicação científica e
numa teoria sobre qualquer reino do conhecimento
humano. Não é impar a ideia de que a ciência e
as metafísicas devam compartilhar o mesmo
ideal de razão, mas foi-lhe dado novo impulso
em tempos recentes devido ao grande progresso
da lógica nas matemáticas ultimamente ocorrido.
O ponto de partida de que a estrutura dedutiva
representa o ideal de razão na teoria nem sempre
esteve associado à visão positivista; foi
sustentada por Descartes, por exemplo. Este
ponto de vista tem dois aspectos: um quadro de
teorias e um quadro de explicação. Suponhamos a
existência de três leis – L1, L2, e L3 – conhecidas
através da experiência e válidas em determinado
campo de fenómenos; suponhamos também que se
imagina uma teoria para explicá-las. Da visão
positivista e dedutivista da teoria, segue-se que

116
esta foi construída com êxito quando se
arquitectou uma hipótese H, ou várias hipóteses
H1, H2, etc., das quais possam deduzir-se L1, L2 e
L3. As hipóteses funcionam como axiomas e
postulados de um sistema matemático, e as leis
como teoremas. A cinemática fornece um exemplo
da tal coisa. A partir da hipótese (postulado) de
que a aceleração de um corpo é uniforme
H 2

d s
-----= a
dt 2
poderemos deduzir diversas leis de movimento:

L1 ds
----= at + k
dt
at2
L2 s = ----- + kt + j
2

Trata-se de uma estrutura dedutiva, onde H


implica L1 e L1 implica L2.
Se o único objecto da teoria for o de fornecer
a base dedutiva das leis, daí resultarão
consequências importantes.
Muitas teorias, senão todas elas, contêm
conceitos importantes. Na teoria da
hereditariedade, por exemplo, há o conceito de
«gene» ou de «factor genético»; na química, o de
«átomo», e de «valência», etc.; na dinámica, o de
«força». A teoria que explica as leis de Mendel
117
quanto à estatística da destribuição de caracteres
de pais para filhos faz uso da concepção de factor
genético e da de genes dominantes e de genes
recessivos. A partir de tal teoria é possível
derivar as leis de Mendel, visto que as leis que
regem o comportamento dos génes são
formalmente análogas as leis de Mendel.
Para muitos positivistas, a obtenção da relação
dedutiva representa tudo quanto é necessário.
Que é então o estatuto de gene e a sua dominância
e recessividade? Tais concepções, encaradas sob o
ponto de vista dedutivo, transformam-se em
valores nulos dentro do sistema lógico que
desempenha o papel formal de ligação das leis no
seio desse sistema. Será erro querer saber o
significado empírico de gene como entidade
independente, pois a sua função é puramente
lógica. Qualquer outro significado que, por
ventura, se lhe atribua, apenas ajudará os
pensadores dotados de lógica pobre a formar
uma ideia das relações racionais existentes na
teoria.
Em paralelo com o que atrás foi dito, encontra-
se a ideia dedutiva da explicação. É suficiente,
garantem os indutivistas, explicar um
acontecimento, um facto, ou seja lá o que for, se a
descrição da ocorrência puder ser deduzida de

118
uma lei «de cobertura». Mas que será uma «lei de
cobertura»? Esta fica mais clara recorrendo a um
exemplo. Suponhamos que ofacto a explicar é o de
que o cobre é condutor electrico. De acordo com
tal teoria, a explicação obtém-se deduzindo que o
cobre é condutor eléctrico a partir da proposição
de que todos os metais são condutores electricos
e do facto de o cobre ser metal. Destes dois
enunciados, pode deduzir-se que o cobre conduz
electricidade. O enunciado geral «todos os metais
são condutores electricos», constitui a lei de
cobertura.
De modo semelhante, se se descrever assim a
ocorrência «Este pedaço de metal é condutor
electrico» e se soubermos que se trata de um
pedaço de cobre, a ocorrência é explicada pela
afirmação de que «o cobre conduz electricidade»,
tornando-se esta, assim, a lei de cobertura.
Destes pontos de vista derivam consequências
muito importantes. Duas delas advêm
directamente da ideia dedutivista sobre a teoria.
Dado ser possível arquitectar teorias em número
infinito, das quais se segue dedutivamente o
mesmo conjunto de leis, somando-lhes alguns
termos adicionais, deverá haver alguma maneira de
distinguir as boas das más teorias, para além de

119
afirmar simplismente que elas implicam as leis. Se
a lei for, por exemplo,
Todos os metais são condutores eléctricos
Então, uma teoria poderá ser
Todos os metais que tenham electrões livres
são condutores electricos
Todos os metais têm electrões livres

Por conseguinte

Todos os metais conduzem electricidade.


Mas outra teoria seria:

Todos os objectos de madeira são


condutores
Todos os metais são de madeira

Por conseguinte

Todos os metais são condutores

Do ponto de vista dedutivo, ambas as teorias


implicam que a lei seja igualmente válida! Dizer que
a primeira teoria é verdadeira e que a segunda é
falsa é introduzir um considerando que está para
além das possibilidades da conexão dedutiva. Em
tais circunstâncias, os dedutivistas batem em

120
retirada para outro famoso princípio,
aconselhando-nos a optar pela teoria mais simples.
Mas nem sempre é fácil distinguir a teoria mais
simples nem se torna transparente que a
simplicidade tenha o mérito de ser uma marca de
verdade. Mesmo sem penetrar de novo no âmago
deste último problema, será óbvio que, como
ideal de razão, a mera dedutibilidade é
equívoca e insatisfatória quando considerada por
si só.
O segundo ponto importante a notar é que
esta teoria implica a simetria da previsão e da
explicação. É sem dúvida verdade que a previsão
de, pelo menos, algumas leis novas e por certo que
de todos os novos factos específicos se faz por
dedução. Para prever que o cúrio é condutor
eléctrico, por exemplo, tudo quanto é preciso
fazer é constatar que o cúrio é metal e que todos
os metais são condutores, podendo prever-se
assim, por dedução lógica, que esse elemento é
condutor eléctrico.
Sob o ponto de vista do dedutivismo, a mesma
estrutura é também própria para a explicação.
Deste modo, a previsão e a explicação são, na
realidade, o mesmo porcesso lógico e apenas
diferem pelo facto de aquilo que se prevê estar
ainda para acontecer, ao passo que o que é

121
explicado já aconteceu. Isto implicaria também
que cada previsão contasse como explicação
depois do acontecido e que cada explicação
contasse como previsão antes do acontecimento.
Nenhum destes princípios é verdadeiro.
Considerando-se o desenrolar de uma doença, por
exemplo. Muito antes de qualquer explicação
daquilo que sucede, já se despõe do conhecimento
empírico de médicos experimentados,
conhecimento esse que lhes dá a possibilidade de
prever, com grande precisão, o desnrolar da
enfermidade a partir dos sintomas. Dificilmente
poderemos chamar à descrição dos sintomas a
explicação das últimas fases da doença. Nem, em
boa verdade, diremos que as explicações feitas a
partir de almanaques náuticos sejam a explicação
do nascimento e do desaparecimento e das
conjunções de corpos celestes.
Característicamente, dar uma explicação
consiste em descrever um mecanismo, por via
de regra o mecanismo causal, responsável por
uma série de ocorrências e isso pode revelar-se
insuficiente para predizer o que irá passar-se.
O mecanismo causal da mudança evolutiva é assaz
bem conhecido, mas, até que consigamos observar
de facto o que acontece, não teremos
possibilidade de prever a parência das novas

122
formas de plantas e de animais, devido à presença
no sistema do elemento aleatório (imprevisível) da
mutação. A explicação é sempre possível, mas
não a previsão.
Dificilmente se considerará legítimo defender a
posição dedutivista afirmando que a previsão se
tornará possível se acaso se conhecesse a mutação
específica. Esta não é conhecida nem poderá sê-lo
antes de verificar-se.
A inferência dedutiva de leis a partir de
axiomas e de postulados obtém-se com
demasiada facilidade se a considerarmos apenas
como desiderato. Os axiomas e os postulados
deverão ter melhor direito ao nosso crédito e ao
nosso interesse do que o de meramente implicarem
as leis. Mas qualquer tentativa para específicar
esse direito afasta-nos do indutivismo, porque o
significado e oconteúdo empírico das hipóteses da
teorias se torna preponderante sobre os seus
poderes lógicos.
As formas ideias de raciocínio que examinamos
neste capítulo são insatisfatórias quando
propostas como valores exclusivos e acabados da
parte lógica, racional, do método científico. Os
cânones de Mill e o método indutivo fornecem,
de facto, uma forma de proceder preliminar
racional, torna possível formular hipótese

123
quanto às leis dos fenómenos. Mas não
proporcionam um método completo, pois não
possibilitam nem a verificação das hipóteses
nem a explicação dos factos. Em última análise,
a decisão quanto àquilo que são, de facto, as
leis depende grandemente de qual das hipóteses
possíveis parece estar ligada a um mecanismo
capaz de produzir algo de semelhante ao modelo
que descreve. As leis da combinação química
relacionam-se com a teoria de que o mecanismo
das reacções químicas é um rearranjo dos
átomos que ocorre nas moléculas dos reagentes
interactuantes. Rciocina-se da seguinte
maneira: se este é o mecanismo da reacção
química, neste caso os modelos de
comportamento das substâncias quimicamente
activas terão de conformar-se a esta ou àquela
lei – à lei das proporções definidas, por
exemplo.
Adoptar, em véz dos princípios do indutivismo, o
princípio da falseabilidade, constitui um progresso,
pelo facto de dirigir a nossa atenção para os casos
em que a evidência desempenha função negativa,
mas não serve como dado completo do método
científico. Deixa no escuro o processo da
descoberta científico, e n amelhor das hipóteses,
matém-no como tópico de investigação para

124
psicólogos e sociólogos, como se não existissem
cânones de raciocínio por meio dos quais fosse
possível dominar métodos racíonais para atingir
teorias e melhores hipóteses.
Também o dedutivismo, tal como dissemos,
fomenta um quadro parcial e, portanto, irrealista
da ciência, quando tomado como cânone exclusivo
da teoria. Como adiante se verá, ao chegarmos ao
exame minucioso do processo racional da
descoberta das teorias, existem formas ideais de
raciocínio funcionando na área do pensamento
humano. Têm a ver com os cânones da construção e
da concepção de modelos, dependendo, assim, dos
princípio que regem o modo racional de
estabelecer comparações, de julgar probabilidades
contra improbabilidades. Conduzem a ideia de
estrutura mais complexa do que as relações
dedutivas que operam nos sectores organizados
das matemáticas.

RESUMO DO ARGUMENTO

1. A lógica representa a tentativa para especificar as regras


do raciocínio correcto, onde este é, tipicamente, uma
passagem do pensamento de uns enunciados dados ou
supostos para outros. O carácter complexo da ciência
traduz-se no número e na diversidade das formas ideias de
raciocínio que têm sido propostas.

2. Exemplos de raciocínio extraídos da história da ciência


125
(a)As leis de Mendel
Tal como foi oficialmente estabelecido por Mendel, o
enunciado geral sobre as proporções de caracteres
dominantes e recessivos inferem-se do conjunto de
proporções achadas num dado número de experiências, por
arrendamento ao número inteiro mais próximo. Há motivos
para pensar, contudo, que o processo de raciocínio de que
Mendel se serviu foi mais elaborado, compreendendo uma
fase como a citada, seguida da aplicação da lei hipotética
aos resultados experimentais, a fim de eliminar casos
aberrantes.
(b) Kepler e a órbita de Marte
Após repetidos insucessos da tentativa de, das posições
observadas, inferir uma «bela» lei, Kepler imaginou que a
órbita do planeta era eliptíca e utilisou as observações para
verificar a lei.
3. O caso (a) tem sido apresentado como exemplo do método
«indutivo» e o caso (b) como exemplo do método «dedutivo-
hipotético». Devemos notar que o tipo de «indução»
advogado por Francis Bacon não é o mesmo do do caso (a).

4. Os canones de Mill

(a) a exposição classíca do método indutivo é fornecida


pelos cânones de Mill, sendo os mais importantes os
dois que se seguem:
O «canone da Concordância», segundo o qual seja o que
for que existe em comum entre as antecedentes condições de um
a causa do fenómeno.
Na prática, tal coisa tem de ser completado com o «Cânone da
Diferença», o qual estabelece que as diferenças nas condições
em que um efeito ocorre e aquelas sob as quais tal não acontece
devem ser a causa ou relacionadas com a causa desse efeito.

126
(b) Estes cânones exprimem, de facto, um tipo de método,
mas:
(i) Dependem do pressuposto de que conhecemos a
totalidade das causas possíveis de um fenómeno.
(ii) No caso em que o factor causal revelado for
complexo, torna-se necessário efectuar novas e
inúmeras experimentações, afim de destinguir as
causas determinantes dos efeitos colaterais.
(iii) As dificuldades existentes em (i) e em (ii)
solucionam-se apenas por referência a uma teoria
que descreva o mecanismo causal envolvido no
processo.
(iv) Assim, as leis causais enferidas não se reconhecem
como verdadeiras. Qualquer tentativa para
estabelecer a verdade de um enunciado inferido de
factos especificos com o seu apoio envolve a
avaliação da evidência histórica quanto à sua eficácia
no passado O emprego desta evidência destinada a
fornecer um justificativo para os cânones de Mill
terá de envocar esses mesmos cânones.
(v) Soluciona-se esta célebre dificuldades quando se
admite que os cânones de Mill são apenas algumas
das formas de raciocínio e que não podem
funcionar como prova. Particularizam as fases
preliminares da ciência.
5. Indutivismo
A ideia de que algo como os cânones de Mill esgote as
possibilidades do método científico em filosofia da ciência
completa o indutivismo, são os seguintes os seus princípios:
(a) Princípio da Acumulação, de acordo com o qual o
conhecimento científico cresce pela soma dos factos
independentes descobertos.
(b) Princípo da Indução, que afirma existir uma forma de
inferência por meio da qual, inequivocamente, as leis
se podem inferir de factos específicos.

127
(c) Princípio da Confirmação por Exemplos, segundo o qual
o grau de credibilidade da verdade de uma lei é
proporcional ao número de exemplos favoráveis à lei.

6. Objecções ao Indutivismo
(a) As teorias determinam, em parte, quais os factos; por
exemplo, a hipótese de Prout e as descrepâncias dos
pesos atómicos inteiros.
(b) Os dados são transformados em factos através da
expressão em termos provenientes da teoria e, deste
modo, mantêm-se ou caiem com a teoria – exemplo, os
pesos atómicos.
(c) Pode inferir-se uma quantidade infinita de leis a
partir de um conjunto de dados, utilizando uma
qualquer forma conhecida de indução. Tipicamente os
indutivistas invocam um «princípio de simplicidade»
para decidir de qual de entre as possiveis leis é
correcta.
(d) Exame do princípio da simplicidade:
(i) Por cada indice de simplicidade, continua a
existir um número infinito de leis de igual
simplicidade.
(ii) A história da ciência evidencia leis
progressivamente mais complexas em cada
sector de fenómenos.
(e) O Indutivismo não deixa à ciência funções centrais de
poder explanatório, considerando-a tipicamente, como
fenómeno psicológico. Segundo o princípio indutivista,
será dificil conceber de que maneira a astronomia
grega representa um progresso em relação à
astronomia babilónica, a qual se servia de leis
indutivas simples para inferir futuros acontecimentos
astronómicos. Os astrónomos gregos elaboraram as
mesmas previsões empregando porém, no raciocínio,
no maior dos casos, um modelo realista do Universo.

128
(f) A objecção fundamental ao indutivismo é a de pouco
se indentificar com a prática científica.

7. Popper e a doutrina da fasificabilidade


(a) Princípio Conservador: As leis exprimem correlações
entre fenómenos.
(b) Princípio Radical: a evidência só é importante devido ao
seu poder de falsear hipóteses.
(c) Princípio de Demarcação Radical: apenas os enunciados
gerais falseáveis se deverão classificar como enunciados
cinetíficos genuínos.
(d) Consequências da adesão a (a), (b) e (c):
(i) Os princípios da lógica são os do «quadrado da
oposição» aristotélico.
(ii) A elaboração de hipóteses não está sujeita a
princípios racíonais e é um tópico da psicologia.
(iii) Não existem relações lógicas entre a evidência
favorável e as hipóteses para além do facto de
um dado de evidência favorável representar uma
falha em falsear a hipótese e de contar, deste
modo, como a sua passagem no ensaio. Note-se
que a estrita adesão a tais princípios transforma
em processo irracional a extracção numérica de
«melhor» valor dos dados, por exemplo, no
cálculo médio.
(iv) Do princípio da Demarcação Radical segue-se
que tanto os enunciados existenciais gerais como
os enunciados de probabilidade específicos não
têm carácter científico. Isto é um paradoxo na
medida em que, em cada um dos casos, se podem
inferir com rigor dedutivo enunciados das classes
proibidas a partir de enunciados que, de acordo
com o critério, são científicos.
(e) Critica do falsificasionismo

129
(i) Os enunciados existenciais gerais exprimem a
parte permanente do conhecimento científico.
(ii) Terá de acomular-se evidencia contrária antes de
se convir que uma hipótese é falsa.
(iii) Dados especificos de evidência contrária
representam um desafio ao trabalho explicativo
do teórico.
(iv) Pode construir-se a base lógica da elaboração da
hipótese, desde que se confira o peso adequado
às teorias.

8. Positivismo
(a) O ideal positivista de razão é o de que uma teoria
deverá ter estrutura dedutiva – a forma de raciocínio
em matemática -, ou seja, a teoria deverá ter a forma
de teorema.
(b) A consequência mais importante deste ponto de vista
é a de tendo significado apenas em virtude do lugar
que ocupam na teoria como dispositivos lógicos.
(c) A explicação consegue-se pela dedução, a partir de
uma «lei de cobertura», daquilo que há para ser
explicado, em conjunto com premissas ancilares.
(d) Desde o século XVI que se faz notar que a adesão
estrita a (c) implica que a teoria falsa constitua uma
explicação tão válida como a teoria verdadeira.
Segue-se que (c) terá de ser completado com outro
princípio, em geral o «princípio da simplicidade»,
examinado já no contexto indutivista.
(e) A previsão e a explicação deverão ter a mesma forma
lógica, se acaso aceitarmos (a), (b) e (c). Mas algumas
etruturas preditoras não têm poder explicativo, por
exemplo, a sindrome de uma doença; e algumas
explicações têm pouco ou nenhum poder de previsão –
por exemplo, as explicações da evolução.

130
(f) A principal falha na visão positivista é a de que a sua
defesa de uma estruturação dedutiva simples da
teoria se consegue com demasiada facilidade para
servir de desiderato à explicação, a qual apenas se
concretiza quando os termos na teoria dizem respeito
à mecanismos causais em funcionamento para a
produção de fenómenos. O indutivismo, o
falseabilismo e o positivismo exprimem, cada um
deles, um complexo de formas úteis de raciocínio.
CAPITULO III
O CONHECIMENTO CIENTÍFICO
Neste capítulo, trataremos das teorias que dizem
respeito à natureza e ao estatuto do conhecimento
científico. Relativamente a este assunto,
examinaremos teorias acerca do significado de
determinados vocábulos incluídos nas teorias
científicas.
A ciência é um conjunto de teorias bem
verificadas, que explicam padrões de
regularidades e irregularidades entre
fenómenos cuidadosamente estudados.
Isto sugere duas principais linhas de
investigação: uma delas visando saber
qual o estatuto dos fenómenos acerca dos
quais se supõe saber algo e a outra
apontando para a matéria e para o
conteúdo do conhecimento teórico.
Principiarei por descrever cinco exemplos
considerados como susceptíveis de fornecer

131
modelos de investigação científica e que
suscitarão determinados problemas
epistemológicos. Veremos depois a maneira como
quatro famosas teorias epistemológicas se
enquadram em tais exemplos.

OS átomos químicos

Misturando duas soluções, deposita-se um


precipitado de cor branca no fundo do tubo de
ensaio. O líquido restante reduz-se gradualmente
por meio de aquecimento e, após a sua evaporação,
obtem-se outra substância branca. As amostras
das substâncias de partida, que se dissolveram
para formar duas soluções, tinham sido
previamente pesadas e, quando se pesa o
precipitado e a substância resultante da
evaporação constata-se que o peso total do
material antes e após a reação é aproximadamente
o mesmo.
A teoria quimica do átomo fornece a explicação
deste e de multíplos fenómenos semelhantes. As
moléculas são as mais pequenas porções
independentes de matéria. A molécula é
constituida por grupos de átmos dispostos no
espaço, dotados de poderes característicos para
se reunirem, de tal forma que, por exemplo, um

132
determinado tipo de átomo se liga tipicamente a
dois outros átomos de outro tipo e assim por
diante.
Durante a recção quimica, os átomos mantêm
sempre inalterados os seus pesos relativos. A
reacção química consiste, na totalidade, no
rearranjo dos átomos originais em novos
agrupamentos, originando assim, por mudança das
moléculas presentes, a alteração das substâncias
implicadas no processo.
No período clássico da química, quando nela
principiaram a surgir tais conceitos, a única
técnica de pesquisa de que se dispunha era a da
identificação qualitativa das diversas substâncias,
em parte por meio da respectiva aparência e em
parte pela capacidade reactiva ou pela origem ou
pelos resultados de pesagem cada vez precisa dos
reagentes e dos produtos da acção química. Nesta
base, qual será o estatuto do nosso pretenso
conhecimento acerca do comportamento ou mesmo
da existência dos átomos químicos?
Para uma panoramica histórica sobre argumentos
acerca do átomo químico e sobre as tentativas
para substituir este conceito por algo diferente,
consulte-se Knight, Brock e Dallas e a obra The
Atomic Debates(1).

133
OS raios luminosos

Quando se procura compreender de que maneira


as lentes e os espelhos curvos formam as imagens
e como as imagens formadas em espelhos planos se
relacionam com a posição ou quando se tenta saber
como se criam as sombras ou conhecer a
explicação de inúmeros de outros fenómenos,
torna-se conveniente supor que algo vindo do
objecto atravessa o vidro do espelho ou da lente é
reflectido pela superfície espelhada ou desviado
no percurso pela lente, para, por fim, atingir o
olho. Qualquer que seja esse algo, desloca-se em
linha recta.
Estas linhas rectas são os raios de luz, que
constituem a base da óptica geométriaca.
Antigamente, julgou-se que representassem o
percurso de crepúsculos; mas tarde pensou-se
tratar-se de abstracções geométricas de frentes
de ondas em movimento; hoje em dia, os raios de
luz conservam algo de cada uma destas concepções
clássicas.
No entanto, os raios luminosos não se vêm na
Natureza; exprimem-se apenas no papel. Qual o
estatuto deste ramo do nosso conhecimento em
matéria de óptica, que é o estado do
comportamento dos raios luminosos?

134
O calor

A fim de tornar inteligíveis os resultados de


experiências simples no capítulo do calor – como
aquelas em que um pedaço de metal, cujo peso e
temperatura foram determinados, é colocado
dentro de uma conhecida quantidade de água, a
que também se mediu a temperatura, registando-
se-lhe as temperaturas subsequentes- terá de
partir-se do princípio de que o calor perdido pelo
objecto metálico é igual ao calor absorvido pela
água, quando ambas atingiram a mesma
temperatura.
A possibilidade de cálcular o resultado de tal
experiência, depende do emprego desta concepção
de calor e da conservação deste. Mas, o que é o
calor? Acaso algo flui do metal quente para a água
tépida, aquecendo-a? Tratar-se-á da mesma coisa
que mana do Sol para a Terra, aquecendo-nos nos
dias quentes? Qual o estatuto do nosso alegado
conhecimento sobre o calor em contraste com o
que sabemos acerca de pesos, quantidades e
temperaturas relativas?
Ao estudarmos com minúcia a maneira como
funciona o conseito de calor em calormetria
elementar e em muitas coisas mais, aliás,

135
verificamos que, quando efectuamos medições,
mede-se sempre a temperatura, a massa ou o
volume e nunca a quantidade de calor; aquilo a que
se dá o nome de «quantidade de calor» é sempre
resultante de um cálculo. O calor anula-se a si
mesmo, por assim dizer, em muitos casos. Não em
todos, porém, pois não existe equivalência apenas
entre calor e calor, mas também entre calor e
movimento, calor e electricidade, etc., etc. Nestes
casos, pelo menos à primeira vista, o calor não
pode ser claramente eliminado da equação.

A força mecânica

O conceito de força parece desempenhar para a


mecânica um papel semelhante ao do calor para a
calorimetria. Sempre que surge o conceito de força, é
possível aboli-lo substituindo-o por conceitos menos
misteriosos, em regra, quer pelo o de tensão quer
pelo o de aceleração da massa.
A terceira lei de Newton constitui o paradigma desta
possibilidade de eliminação. A acção iguala sempre a
reacção e ambas podem exprimir-se em termos de
massa e de mudanças no movimento; nenhuma força
existe que se manisfeste de forma diferente. Mas,
ao contrário do calor, a força não tem relações
fora da mecânica capazes de lhe conferir género

136
de estatuto independente. Pelo menos como conceito,
a força é perfeitamente eliminável da mecânica.
Como exprimir o estatuto do nosso conhecimento
sobre força? Veremos como se manifestou a tendência
para considerar a força um caso típico e como, em
algumas epistemologias, outros conceitos tais como de
calor, de átomo e de raio luminoso, foram tratados
segundo o modelo da força e encarados como
absolutamente dispensáveis em ciência.

Os vírus

A idéia de que a doença é provocada por


organismos hostis que invadem o corpo surgiu no
século XVII e foi ganhandoe terreno aos poucos,
acabando por ser aceite por quase todos aqueles
que se dedicavam à prática médica, bem como
pelos investigadores, nos finais do século XVIII.
Contudo havia determinadas doenças cujos
agentes bactérianos não se conseguiam isolar ou
identificar. No entanto, a teoria da infecção
implicava que também essas enfermidades tinham
os respectivos agentes; porém, julgaram-se
demasiado pequenos para serem vistos com a ajuda
de microscópios ou para serem isolados por
filtração. Deu-se-lhes o nome de vírus.
Seriam os vírus exactamente como as bactérias,
embora mais pequenos, ou viveriam e actuariam de

137
acordo com princípios biológicos diferentes? Aos
poucos, acabou por se descobrir que não se
tratava de organismos realmente independentes;
sustentavam-se dominando algumas das funções
celurares vitais do respectivo hospedeiro e
orientando-as segundas as suas próprias
necessidades.
Esta ideia aparecerá também no século XVII,
introduzida por Van Helmont com a sua teoria da
arche, embora pouca importância se lhe tivesse
atribuído consequentemente. Não passando de
conjecturas na época – uma quanto à existência do
vírus, a outra quanto à maneira como viviam –
revelaram-se verdadeiras mais tarde.
Qual o estatuto epistemológico do nosso
conhecimento das causas da doença visto à luz
deste episódio? De certa maneira, o exemplo
citado parece contradizer o respeitante à força,
atrás referido, e fornecer talvez um modelo
diferente de estrutura ideal da teoria.

As hipóteses planetárias

No decorrer do século XVI, fez furor uma


importante controvérsia epistemológica a
propósito do estatuto a atribuir às hipóteses
arquitectadas para explicar a maneira como os

138
planetas, o Sol, a Lua e as estrelas se moviam e
como se dispunham no espaço. O caso proporciona
um exemplo bastante instrutivo e, para
compreendê-lo, teremos de passar em revista as
diversas hipóteses sustentadas quanto ao assunto.
Aludimos atrás à astronomia babilónica que se
socorria apenas de hipóteses matemáticas,
limitando-se a ligar os fenómenos uns aos outros
sem apresentar conceitos para além dos
puramente matemáticos.

As teorias geocêntricas

Na teoria de Eudoxo, a Terra era o centro de um


sistema de aglomerados de esferas, existindo três
ou quatro esferas por cada planeta. Essas esferas
ligavam-se de modo tal que cada uma delas se
deslocava sobre um eixo no interior da seguinte
(veja-se na figura 2 o diagrama desse aglomerado
de esferas). As rotações e contra-rotsções das
esferas, a inclinações diferentes, dentro dos
referidos aglomerados provoca
* *

* * *

139
vam o movimento do planeta em causa tal como era
visto da Terra.
Isto explicava a peculiaridade mais flagrante do
movimento errante dos planetas, os quais, quando
considerados contra o fundo das estrelas fixas,
interrompiam o seu curso, descreviam uma curva e
voltavam para trás. O movimento de rotação diário
da abóbada celeste era produzido pela rotação de
estrelas fixas.
O sistema de Eudoxo comcebia as esferas como
concêntricas e foi considerado por Aristóteles
como uma teoria física realística, muito embora
alguns estudiosos se inclinem para a hipótese de,
com tal sistema, Eudoxo apenas ser querido
significar uma análise geométrica.
Na teoria de Ptolomeu, as esferas eram
substituídas por círculos, existindo entre eles uma
relação geométrica complicada. O circulo
deferente tinha o respectivo centro deslocado do
centro do universo e também quanto à Terra se
verificava uma ligeira deslocação desse ponto. O
movimento epicíclico para trás em consequência do
movimento do deferente explicava o modo peculiar
como os planetas se deslocavam. Cada um deles
possuia o seu próprio sistema de excêntríco, de
deferente e de epicíclo.

D Planeta

140
Epiciclo

!C Equanto
terra
Deferente

Fig. 4- O sistema de Ptolomeu

Saturno
Júpiter
Marte
Vénus
Sol Mercúrio
Terra

Fig. 5 – O sistema de Ursus e de Tycho Brahe

A teoria de Ursus e de de Tycho Brahe dizia


respeito a um sistema de órbitas circulares de
planetas em redor do Sol e toda essa estrutura
heliocentradada girava à volta da Terra.

141
Semelhante concepção só seria possível,
porventura, na ausência de um sistema de
conceitos dinámicos que permitisse o ensaio da sua
plausibilidade física. É significativo que tenha
surgido no interregno entre o declínio da física
aristotélica e o nascimento das modernas noções
da dinâmica.

As teorias heliocêntricas

Foram duas as princípais. As propostas por


Copérnico serviam-se de uma complexa série de
movimentos circulares para cada planeta, incluindo
um movimento da Terra à volta do Sol.

Planeta

Sol

F1 F2

Fig. 6 – A elipse de Kepler

A teoria de Kepler concebia as órbitas como


elípticas, com o Sol em um dos focos. Esta teoria
incrustava-se em ideias peculiares acerca da
estrutura harmoniosa do mundo, ideias em que,

142
embora fascinantes, nelas não nso poderemos
deter. Para a sua consulta pormenorizada, veja-se
o livro de A. Koestler, The Watershed (1).
Procurarei explicar as diferenças existentes
entre as diversas teorias epistemológicas
recorrendo a estes e aos outros exemplos
anteriores. Todos os pontos de vista neles
referidos consubstânciam tentativas de definir a
forma ideal do conhecimento científico.

O fenomenismo pleno

Este grupo de teorias assenta no princípio de que


apenas proposições acerca dos fenómenos
observados deverão ser incluídas na categoria
de conhecimento. Por conseguinte, a ciência,
com rigor, ocupar-se-ia apenas da
identificação, da classificação e da relação dos
fenómenos.
As diferentes teorias sustentadas pelos
fenomenistas estritos resultam, em boa verdade,
de diferenças de opinião quanto àquilo que se deve
considerar como fenómeno último. Restringindo-se
aos fenómenos, os fenomenistas esperam atingir
certezas e obter assim o conhecimento
permanente. Tudo se passa como se os factos
fossem identificáveis para todo o sempre e

143
fornecessem uma perpáctua reserva de
conhecimento, ao passo que a teoria funciona como
dado temporário eliminável, de valor psicológico
apenas, qual mnemónica destinada a armazenar e a
rememorar os factos.
Grosso modo, existem dois géneros de teorias
fenomenistas, dependendo de os fenómenos, que
constituem a única verdadeira e real matéria de
estudo da ciência, serem considerados quer as
coisas vulgares tal como são percebidas, dotadas
das suas usuais qualidades e relações, quer de as
próprias percepções deverem ser ainda
decompostas nas sensações elementares nas quais
pretensamente se baseiam.
Descreverei e criticarei três importantes teorias
inseridas em cada uma destas duas correntes.

Os fenómenos são o que vulgarmente


percebemos

Patrício

Patrício foi um bem conhecido escritor dos finais


do século XVI, que se debruçou sobre problemas e
métodos científicos. A sua adesão ao fenomenismo
inspirou-se e foi resultante da confusão existente
no panorama astrnómico da época, altura em que

144
estava em voga um amplo léque de teorias (cf. «As
teorias científicas», atrás. Nesse tempo, pouca
probabilidade havia de se destinguir entre elas
com objectividade.
Na sua obra Pancosmia, datada de 1591, Patrício
perfilha a ideia de que, para fins científicos, é
necessário deixar de estabelecer a distinção antre
aquilo que um planeta é realmente e aquilo que
parece ser. Se Deus pode criar um universo de
epicíclos e de excêntricos – interroga Patrício –
porque motivo não terá também podido arquitectar
um universo em que os planetas se movam através
dos céus e regressem sobre a sua trajectória,
como parecem fazer?
No capitulo 18 de Pancosmia, Patrício comenta:
«Dizemos que os planetas são ´errantes´ porque
se desviam da elipse e tanto se deslocam a
diversas velocidades, umas vezes para a frente,
outras vezes para atrás, como permanecem
estacionários. Mas, muito embora pareçam vaguear
pelos céus, não o fazem de modo algum . Isto
porque obdecem às ordens do criador…» Patrício
prossegue, dizendo: «[…] quanto às suas
distâncias, posições e percursos relativos, toda a
discordância que se verifica acerca deste assunto
provém do facto de os astrónomos pensarem que
os planetas, tal como as estrelas fixas, são

145
arrastados presos a ´esferas´. Qual a nossa
opinião sobre a matéria? Acreditar na evidência
sob os nossos olhos […] Estes nada nos dizem
acerca da presença de esferas; portanto, elas não
existem.»
Na sua Scholae Mathematicae, de 1569,
Ramus expressa um ponto de vista semelhante,
observando que a astronomia se processava na
ausência de hipóteses, antes das ideias de
Eudoxo principiarem a expandir-se, mas que
nada perdera com isso.

Berkeley

Uma versão mais perfeita e elaborada desta teoria


da ciência foi a proposta por George Berkeley,
sobretudo na obra Principles, publicada em 1710 (1).
O seu interesse pela metodologia científica
foi suscitado por dois aspectos da ciência
newtoniana que considerava repugnantes. Parecia-
lhe suspeito o estatuto epistemológico de
conceitos de força, como de atracção e de
repulsão e igualmente duvidosa a condição de
conhecimento atribuída aos conceitos de Newton
de espaço e tempo absolutos.
A teoria da ciência por Berkeley defendida
eliminava tanto a força como o espaço e o tempo

146
absolutos, o que derivava da sua atitude filosófica
geral. Trata-se de um ponto de vista filosófico
muito importante, pelo que tentarei explicá-lo com
algum pormenor.
A filosofia de Berkeley principia por negar que a
noção da percepção de um objecto seja algo de
diferente do próprio objecto, o qual não vemos
realmente. Berkeley toma como ponto de partida o
princípio do senso comum: a cadeira que vemos, por
exemplo, é a cadeira real, sendo as suas qualidades
também reais. Não existe uma misteriosa cadeira
material que origine as percepções, mas que seja
diferente delas. Existir é ser percebido ou
percebível e daquilo que, sob quaisquer
circunstâncias, não se pode perceber, não poderá
afirmar-se-lhe a existência, excepto Deus
(segundo Berkeley). Por via de regra, as coisas no
mundo são percepções de Deus e é tão grande o
seu poder que também nós somos sujeitos
percipientes. Não se trata de Deus pensar uma
cadeira fazendo-a existir e tornando-no-la então
perceptível, mas sim de ser tão poderoso o
pensamento de Deus sobre a cadeira que provoca a
percepção que dela temos. Tais percepções são
ordenadas e processam-se em sequência racional
porque as ideias divinas são também ordenadas. A
ciência é a tentativa de ler a mente de Deus

147
pelo discernimento dos modelos regulares das
sequências de percepções ocorridas na nossa
experiência.
Mesmo os cépticos concordarão, porventura,
com parte desta teoria, nomeadamente quando
afirma não existirem causas ocultas na percepção.
As coisas reais são as que percebemos. Mas,
tendo negado a diferença entre o que é
percebido o que existe realmente, Berkeley dá
um passo crucial para a filosofia.
A específica que Berkeley contradiz é a de
Locke, que estabelece nitida distinção entre os
objectos – as coisas que têm a faculdade de
afectar-nos – e as ideias, sensações e percepções
provocadas em nós pela acção das coisas. As ideias
– que para Locke incluíam as sensações – e as
percepções, consideradas grupos de sensações,
são mentais ou «existentes na mente». Aqui,
Berkeley, reforçando a sua negação da diferença
existente entre ideias e coisas reais com a
referência ao senso comum, opta pela
supreendente e pouco sensata alternativa de pôr
em oposição as ideias e as coisas reais, para dizer
o que são tais entidades. Cadeiras, mesas,
estreças e assim por diante tornam-se para
Berkeley não apenas reais como são percebidas,
mas são também elas próprias ideias. Esta jogada

148
confere importantes conotações metafísicas à sua
filosofia e representa uma maneira de fazer que a
presença de Deus se torne necessária em tal
sistema. Todas as causas adequirem o mesmo
género das causas mentais e todos os agentes se
tornam espiritos. A fonte das ideias é tanto o
próprio homem como Deus.Apenas temos razões
para acreditar na progressão ordenada das ideias
de Deus, de modo que as ideias progressivas e
ordenadas, que nós consideramos resultantes de
um mundo regular e coerente, Berkeley encara-as
como provenientes de Deus.
Mas a filosofia da ciência de Berkeley deriva
directamente da sua epistemologia e pode
entender-se mesmo sem a superestrutura
metafísica divina. As nossas experiências do que
acontece no seio das coisas reais representam
para ela apenas experiências da sucessão das
ideias e não agentes que actuem de modo
causal. Estes dois pontos são referidos por
Berkeley na secção cvii dos Princípios, da seguinte
maneira:

É manifesto que os filósofos se recreiam em vão ao interrogarem-se


acerca de uma causa natural eficiente diversa na mente ou do espirito […]
[…]das premissas estabelecidas, não há qualquer razão para concluir que a
história da Natureza não deva continuar a ser estudada e para que se não
realizam observações e experiências, que são úteis à humanidade e que nos
permitem tirar conclusões gerais, causa essa que não é resultado de hábitos

149
imutáveis ou das relações entre as próprias coisas, mas da bondade de Deus
e do seu amor pelos homens na regência divina do mundo[…]
[…] através da diligente observação dos fenómenos que se produzem sob os
nossos olhos é possível descobrir as leis gerais da Natureza e deduzir delas
os outros fenómenos; não direi demonstrar, porque todas as deduções deste
género dependem do suposto de que o Autor da Natureza opera sempre de
maneira uniforme e em constante observância das regras que tomamos por
princípios, as quais não podemos conhecer como evidência.

De tudo isto, Berkeley retira outras conclusões,


bastante típicas da visão fenomenista. Argumenta
não só que apenas não é dado a conhecer as
relações de ideias («[…]o conhecimento dos
fenómenos […]consiste não no conhecimento mais
exacto das causas que os produzem[…]mas apenas
na maior amplitude da compreensão[…]» - secção
cv).
Berkeley argumenta também que o próprio
significado dos termos teóricos que parecem
referir-se a algo diferente dos meros fenómenos
tem, na realidade, uma significação fenomenal. Na
secção ciii, Berkeley discute o significado de dois
termos newtonianos básicos – repulsão e atracção
– inquirindo:
«A palavra ´atração` significará modo ou
tendência?» E prossegue: «Mas […] não consigo
perceber que signifique qualquer outra coisa que
não o próprio efeito; porque, quanto ao modo da
acção pela qual é produzida ou à causa que a

150
produz, estas não podem ser tais como são
referidas.»
Em resumo: as leis da Natureza descrevem
simplesmente uma sucessão de fenómenos e
reduzem-se a regras gerais, por meio das quais é
possível elaborarem-se conjecturas com bastante
probabilidade acerca de futuras experiências; não
são leis causais. Tal como Berkeley argumenta na
secção lvx:
«O fogo que vejo não é a causa da dor que sinto
quando dele me aproximo, mas sim sinal que dele
me adverte.»
Tanto para Patrício como para Berkeley, não
existe diferença entre coisas tal como são e
coisas como parecem ser e, para ambos, a via
científica adequada é a tarefa babilónica de
formular regras de sucessão das experiências
comuns. Berkeley, no entanto, não sustenta que
seja falso ou destituído de significado falar-se de
outras coisas, afirmando, pelo contrário, que os
termos teóricos terão de compreender-se como
referindo-se de facto a coisas do sentido comum.

A teoria de Brodie
Uma teoria muito semelhante quanto ao
significado dos termos teóricos e quanto à ciência
surgiu durante a tentativa de reformar a química

151
no século XIX. Nesse período, a química sofreu os
tormentos da dúvida a respeito da concepção
atómica da Natureza mas, ao mesmo tempo, esta
concepção revelou-se um guia seguro da
experimentação e proporcionou certo
entendimento dos fenómenos.
Sir Benjamim Brodie, professor de química na
Universidade de Oxford, foi não só químico
distinto como também matemático de grande
craveira e um dos poucos cientístas dos meados do
século XIX que apreciou o significado das
descobertas de George Boole no capitulo da
matemática.
Brodie decidiu meter mãos à tarefa de conseguir
uma química matemáticamente organizada e
fenomenista, tão frutuosa como a teoria atómica,
mas sem o seu carácter vago e pouco plausível.
Quais os fenómenos químicos característicos? –
Foi a pergunta que Brodie fez a si mesmo. Há as
operações por meio das quais se preparam as
substâncias, e os pesos relativos que originam. As
reacções químicas são, na verdade, mudanças de
destribuição de pesos, provocadas pelas operações
químicas. Estritamente considerado do ponto de
vista do fenómeno, o elemento químico é um
simples peso, isto é, uma espécie de ocupante do

152
espaço, submetido a qualquer operação química
mantem sempre o mesmo peso.
Portanto, fora como toda essa verborreia
atómica! As leis da química nada mais são do que
regras de cálculo das relações ponderais
observadas após a realização de certas operações
químicas!
De acordo com semelhante critério, o
hidrogénio, por exemplo, não é um tipo
característico de átomo, ligado aos pares, em
moléculas, milhões das quais formam uma amostra
de gáz; transforma~se em um espaço hidrogenado,
sempre dotado do mesmo peso elementar
conhecido. O método de preparação do hidrogénio,
não deverá entender-se como a maneira de
separar os seus átomos de outros átomos, mas sim
como um modo de hidrogenar o espaço. Esta teoria
conheceu certa voga e originou grandes
discussões, mas sofreu o destino comum às teoias
fenomenistas: acabou esquecida em favor da
hipótese atómica.
Para pormenores sobre o cálculo de Brodie e
sobre o seu método de definição operacional,
consulte-se Knitht, Brock e Dallas, em The
Átomic Debates – já referido -, editado por W. H.
Brock.

153
Patrício, Berkeley e Brodie compartilhavam a
opinião de que o conhecimento científico diz
respeito àquilo que podemos perceber; qualquer
coisa ou qualquer processo supostamente
insusceptível de ser percebido não podia
considerar-se existente para a ciência. O
significado de expressões que pareçam referir-se
ao que não pode existir deve encarar-se como
realmente respeitante aos fenómenos. E a ideia de
que termos como «átomos químicos» dizem
respeito a coisas que não fazem nem podem fazer
parte da nossa percepção constitui apenas um erro
quanto ao seu estatuto epistemológico. As leis da
Natureza e as teorias científicas não passam, por
conseguinte, de registos de experiências passadas,
utilizáveis para antecipar futuras experiências.
O segundo grupo de teorias fenomenistas
compartilha, em parte, estas opiniões, mas
distingue-se do anterior pelo facto de não aceitar
o princípio de que os fenómenos últimos são aquilo
que vulgarmente percebemos. Debruçar-me-ei
sobre três famosas versões desta teoria.
Os fenómenos analisam-se a partir da
percepção vulgar
Mach e a teoria dos elementos

154
A opinião de Mach quanto às leis da Natureza não
difere das dos fenomenistas a que me referi
anteriormente. A função das leis da Natureza
continua a ser, neste caso, a «reprodução
mnemónica dos factos no pensamento», isto é, os
factos são resumo do que já se experimentou.
Devido ao seu carácter geral, apontam para outras
experiências semelhantes que possam surgir-nos
no caminho. Visto serem de natureza aditiva e
resumível, a sua vírtude tem de residir no grau de
aditividade e de rsumibilidade, ou seja, na
simplicidade e na economia. Uma boa teoria
adiciona os factos de maneira económica; uma má
teoria fá-lo extravagantemente.
Mach despendeu esforços consideráveis a
reduzir o número dos conceitos independentes
exigidos pela mecânica. Na sua obra Ciência da
Mecânica (1), demonstra com algum sucesso que
tanto o conceito de massa como o de força
mecânica não descrevem as experiências, sendo
exprimíveis em termos de aceleração.
A força, como todos sabem, defini-se
quantitativamente em termos de produto da massa
pela aceleração que se pensa que a força origina. A
massa pode ser encarada de modo algo
semelhante, visto que as razões de duas massas

155
são inversamente proporcionais as acelarações que
adquirem sob condições semelhantes.
Mach procura demonstrar que a similitude de
condições pode ser especificada com bastante
objectividade sem que isso acarrete a ideia de
similitude de força. Termos como «massa» e
«força», que parecem dizer respeito a qualidades
e a agentes e que, em si, não são objectos
perceptíveis, podem ser despensados – segundo
Mach pensava. A sua função, tal como a das leis em
aparecem, é aditiva e simplificadora.
Assim sendo, que nos resta então?
A análise da experiência – conforme a convicção
de Mach conduz-nos à ideia de que as suas
componentes últimas são elementos sensoriais. Um
exemplo mostrará o que isto quer dizer: ao passo
que Berkeley teria ficado satisfeito ao reconhecer
a existência de uma maçã, Mach vai mais longe.
Pretende considerar a maçã como umgrupo de
elementos sensoriais: formato redondo, vários
tons de cor vermelha e de cor verde, firmeza ao
toque, vincada doçura ao paladar, e assim
sucessivamente. «Maça» é um vocábulo cuja
função na li nguagem exprime de forma resumida,
com clareza e economia, a presença deste e de
outros grupos de sensações semelhantes, ou seja,
de elementos sensoriais. Esta maneira de ver,

156
porém, não transformará as maçãs em grupos de
sensações humanas apenas, o que é absurdo?
Segundo Mach, contudo, as maçãs são mais do
que isso e ele procura conciliar tal opinião com uma
teoria engenhosa. Os elementos – argumenta ele-
aparecem sob diferentes categorias, de acordo
com as relações diferentes que estabelecem. Quer
isto dizer que, quando um dado elemento, a cor
vermelha, digamos, é considerado com respeito ao
percipiente, ao ser humano, por exemplo, que toma
conhecimento da cor, esse elemento se forma
como uma sensação de cor. O formato, o peso, o
cheiro, etc., etc., se considerados relativamente
ao percipiente, são sensações de diversos géneros.
Quando, porém, os elementos se consideram
relativamente uns aos outros, passam a ser aquilo
a que damos o nome de qualidades e, em conjunto,
constituem as coisas.
Apalavra «coisa» representa uma maneira
económica de referênciar um género específico de
grupos de elementos, encarados quer com respeito
uns aos outros,, caso este em que constituem as
propriedades e as qualidades das coisas, quer com
respeito à pessoa que tenha a percepção das
coisas, sendo, neste caso, as sensações que o
sujeito percipiente experimenta ao ter a
percepção das coisas.

157
As experiências, que as leis da Natureza
resumem e que nos permitem elaborar a previsão,
representam, portanto, elementos sensoriais,
sensações, tais como de pressão ou de aspereza,
cheiros, cores no campo visual, etc.
De acordo com tal teoria, não devemos levar
em conta a nossa experiência de percipientes das
coisas nem supor tomamos conhecimento delas,
pois só ficamos a conhecer os elementos e,
considerado relativamente a nós próprios, esse
conhecimento é apenas o da ordem e da sequência
das nossas sensações. Estes constituem os
fenómenos últimos e o conhecimento das
sensações é o único e verdadeiro conhecimento
científico.
A tudo quanto se disse, poder-se-á objectar com
propriedade não nos parecer que os cientistas
actuem em semelhantes moldes. Por via de regra,
não os vemos registando as suas sensações
pessoais e procurando depois nos registos modelos
capazes de funcionar como resumo preciso daquilo
que os seus sentidos captaram. Tipicamente, os
cientistas levam a efeito as suas tarefas
construindo aparelhagem e servindo-se dela.
Muitos trabalhos científicos experimentais
cifram-se em operações de mensuração, que se
exprimem em resultados numéricos. Emgeral, o

158
resultado de uma operação de medida é o produto
de um número por um valor padrão. Medir uma
superficie pode exprimir-se, por exemplo, em 5
vezes 1 metro.
A ideia de que operações de mediçãp podem
representar por si próprios fenómenos científicos
últimos constitui o fundamento da teoria do
operacionismo.

Bridgman e a teoria operacionalista

A origem desta teoria reside no profundo abalo


que certos físico sofreram ao descobrir que
utilizam um sistema de conceitos e uma teoria
conforme com os princípios newtonianos, quando
análise aprofundada de tal teoria lhes teria
patenteado os seus defeitos e limitações. Assim
sendo, como conceber uma ciência alicerçada em
conceitos que se revelassem imunes às grandes
mudanças revolucionárias, tal como a do advento
da relatividade que confundira físicos e
astrónomos?
Pareceu a Bridgman que o único caminho para ai
chegar seria o de cingir a ciência à aplicação de
conceitos entendiveis em termos de operações
experimentais, deste modo, fosse o que fosse que

159
sucedesse à teoria, o conteúdo do conhecimento
científico verdadeiro permaneceria intacto.
Tal coisa coisa seria garantida – acreditava
Bridgman – recorrendo ao expediente de definir o
significado de todos os conceitos empregues na
ciência apenas em termos das operações por meio
das quais efectuavam medições (1). «comprimento»
deixaria de ser, portanto, um atributo dos corpos,
definindo-se como o conjunto de operações de
réguas de cálculo, o registo de coincidências e a
contagem dessas operações. A sua descrição
constituiria a definição completa e final de um
termo. Na realidade, de acordo com tal teoria, se
acso de tornassem possíveis dois conjuntos de
operações na medição de uma quantidade, daí
resultariam dois conceitos distintos que, até
então, teriam sido considerados errandamente em
conjunto.
Quanto ao que representava a teoria, o problema
submeti-se também análise operativa, visto que a
teoria nada mais era que um meio para determinar
os resultados de um novo conjunto de operações
com base em um outro conjunto.
As operações de cálculo, operações de «papel e
lápis», passavam a constituir o significado empírico
completo da teoria. Esta, em vez de fornecer uma
imagem da ciência como aquilo que descreve as

160
coisas, as propriedades, as potencialidades e
interações, transformou-se na descrição das
operações levadas ao cabo nos laboratórios e nos
gabinetes. Só estas constituiam o objecto da
ciência e eram os fenómenos últimos.
Tal como foi dito, Brodie antecipara em espirito
– e mesmo em muitos pormenores – esta teoria, ao
pretender reformar a química. Como se verá, o
operacionalismo possui vários aspectos
insatisfatórios, em alguns dos quais já o leitor
atentou, por certo, no decurso da leitura da
exposição dos seus princípios básicos. Debaterei
agora esta teoria como importante exemplo que é
de um ponto de vista específico sobre a natureza
do conhecimento científico.
Uma vez mais, se tudo quanto os vocábulos
científicos segnificam se terá de fornecer em
termos de descrição de conjuntos ou sequências
de operações, nesse caso, tudo quanto o
conhecimento científico poderá abranger resume-
se ao conhecimento da sequência de operações.
Não incluirá, por exemplo, o conhecimento das
razões explicativas das operações. «Teoria»
significa apenas as operações de papel e lápis por
meio das quais se determinam os valores
numéricos dos resultados de sequências de
operações.

161
A visão operacionalista exerceu também certa
influência sobre a psicologia. No seu empenho em
pôr de lado juízos subjectivos e falíveis, os
psicológos acolheram com prazer o
operacionalismo na qualidade de ensaio avaliador
de viabilidade científica de conceitos empíricos.
Se não era possível descrever as operações pelas
quais se podesse determinar objectivamente a
presença, a ausência e a avaliação qualitativa ou
quantitativa de uma qualidade, propriedade, ou
estado, pensou-se ser preferível que tal qualidade,
propriedade ou estado não figurasse na psicologia
científica. Deste modo, com o emprego do ensaio
da definição operatória, esperava-se que todos os
conceitos utilizados em ciência adquirissem
objectividade automática. Neste, tal como em
outros ramos científico, o efecto do
operacionalismo foi o de tornar trivial a teoria e,
em última análise, o de triviar a própria ciência.
Faz-se notar com frequência que existe notável
diferença de valor entre diversas experiências.
Algumas promovem o avanço dos conhecimentos;
outras não o fazem, não obstante o carácter de
rigor e de minúcia com que tenham sido realizadas.
A maneira habitual de decidir se a experiência é
valiosa compreende a sua referência a uma teoria.
Porém, se esta não for mais do que um auxiliar do

162
cálculo de operações laboratoriais, não pode
constituir um guia quanto ao valor ou – como
poderia sustentar um critico pouco simpático –
quanto à falta de valor das experiências. Deste
modo, quaisquer operações descritíveis seriam
encaradas, porventura, como possuidoras de algum
valor científico, pois, visto serem operações, a sua
descrição definiria, de acordo com Bridgman, um
conceito ou conceitos descritivos.
No entanto, é evidente que muitas operações
dão resultados completamente triviais e, muitas
vezes, destituídos de sentido; de facto, não é
dificil emcontrar a reductio at absurdum da
teoria. Qualquer montagem ao acaso de um
conjunto aleatório de equipamento poderá ser
descrita, e o uso, seja ele qual for, que se lhe der
pode descrever-se, nesta atmosfera tão
permissiva, como «operação». E assim se originará,
de modo trivial, um número infinito de conceitos
empíricos «científicos», um para cada diferente
grupo aleatório de equipamento, quer este produza
ou não resultados, visto nem sequer existir na
teoria operacionalista a exigência de que qualquer
montagem experimental funcione de facto.
Eddington e o observador último

163
Uma concepção de fenómeno último ainda mais
estranha aparece aqui e acolá nos trabalhos
filosóficos do grande matemático e astronómo
Eddington(1).
As suas ideias dir-se-ão imanar de dois
princípios fundamentais. Afirma o primeiro que os
dados mais seguros são de carácter numérico e o
segundo assevera que a verdadeira tarefa do
observador, pelo menos no campo da física, é a de
verificar a coincidência do ponteiro com a escala
graduada. Daqui até à opinião de que as leituras
numéricas de escalas graduadas constituem os
fenómenos básicos vai apenas um passo. Neste
brve trecho sobre uma atitude mental, o leitor
terá notado, porventura, um característico pendor
para o fenomenismo.
Não será despropositado argumentar que os
dados fundamentais sejam leituras numéricas de
instrumentos graduados. Mas a conclusão a tirar
do que se disse é a de que os fenómenos
fundamentais são as leituras numéricas das
escalas; transita-se de n ser a medida de uma
qualquer propriedade, potencialidade ou estado P,
para a opinião de que o próprio n é o fenómeno, e P
é eliminado do sistema de conceitos. Sem P,
porém, não se consegue explicar qual o proposito
de obter a medição n.

164
O argumento pormenorizado aduzido por
Eddington principia pelo desenvolvimento da ideia
de que «os dados iniciais da física são sinais
nervosos». O carácter humano descodifica tais
sinais e forma uma imagem ou arquitecta uma
concepção das causas deste padrões de sinais.
Todo o processo é percepção.
Eddington parece então recorrer à analogia
entre, por um lado, impulsos nervosos e cérebro e,
por outro, estimulos sobre instrumentos e
instrumentos lidos pelos físicos, concebendo
praticamente tal analogia como uma identidade. A
leitura dos instrumentos fornece os dados como se
de impulsos nevosos se tratasse e o físico
interpretá-os construindo assim a imagem do
mundo, à semelhança de uma percepção.
Esta confusa analogia não é propriedade
exclusiva da mente de Eddington. Para alguns
físicos, trata-se de um lugar-comum e aparece
com frequência nos debates a proposito da
filosofia da mecânica quântica, em particular na
relatividade. Surge, por vezes, nas observações
que afirmam ser a física moderna ser diferente da
física antiga devido à inclusão do observador
dentro do sistema. Isto não é verdade, claro. Na
base desta crença errada encontra-se, em certos
casos, a analogia que induziu Eddington em erro;

165
em outros trata-se de uma apreciação confusa do
facto de muitas observações e acções de
mensuração interferirem, às vezes
irreversivelmente e outras vezes
imprevesivelmente, no sistema que é objecto de
estudo. Considerarei aqui apenas a alegada
analogia entre impulsos nervosos e cérebro e
leituras e observadores.
Após breve exame, a analogia desfaz, visto o
cérebro não tomar conhecimento dos impulsos
nervosos do mesmo modo que o observador
apreende os dados. Quando as pessoas tomam
conhecimento das coisas, a consciência que delas
têm não é, de forma alguma, mediada por qualquer
processo de entendimento dos impulsos nervosos.
A consciência das coisas e dos processos não é
afectada pelo conhecimento ou pela ignorância dos
mecanismos psicoquímicos da percepção. Não
existe aqui analogia absolutamente nenhuma. É a
pessoa que toma conhecimento, não o seu cérebro
ou qualquer outro órgão, e os dados da sua
experiência são aquilo que ela percebe e não uma
parte do mecanismo através do qual se dá a
percepção.
O físico que procede a leitura de um
instrumento é tanto o sujeito percipiente como a
pessoa que olha através da janela e vê a cena

166
exterior. Mas, ao contrário da pessoa percipiente,
não infere dos impulsos nervosos, nem mesmo das
simples sensações, aquilo que os provoca; percebe
o que existe no mundo sem necessitar de
intermediários sensoriais ou nervosos.
Na realidade poder-se-á virar o feitiço contra
Eddington assinalando muitos casos em que o
imediatismo reactivo de certos instrumentos é tão
flagrante que lhes confere, em física um carácter
semelhante à percepção. Em vez de falar-se, por
exemplo, de «assinalar um campo magnético» ou de
«percurso de um electrão», referimo-nos a isso,
por vezes, como se o modelo da limalha de ferro
fosse o campo magnético tornado visível e como
se, na camara de nevoeiro, o traço de gotículas
condensadas sobre iões fosse a verdadeira
trajectória do electrão.
Em certo sentido, o tratamento conceptual dado
à aparelhagem de detecção não é destituído de
mérito. Aquilo que não tem mérito algum, pelo
contrário, é a transferência de uma falsa imagem
de percepção inferêncial para o entendimento
epistemológico da maneira como operam os
instrumentos.
O fenomenismo não é uma teoria válida e
todas as formas e disfarces de que se reveste
aumentam a nossa insatisfação. Não existem

167
dados reconhecíveis como básicos e nada se
ganha com a mutilação drástica de uma ciência
que interpreta todos os termos, incluindo os que
figuram na teoria explanatória, como
construções destituídas dos termos necessários
aos dados básicos ou fenómenos e como se nada
mais significassem do que isso.
O termo «átomo» não quer dizer «proporção
de substância reagente» nem «gene» significa a
relação invariante entre certos aspectos
estatísticos da distribuição dos caracteres em
gerações sucessivas de organismos adultos.
Portanto, há que encarar com desconfiança o
modelo de força mecânica que se utiliza para
compreender a estrutura de todas as teorias
científicas, dando preferência a outros
modelos, tais como os de «bactéria», «gene»
ou «átomo químico». Harvey encarou os
capilares como necessários à viabilidade da sua
teoria, mas estes só foram vistos aquando das
experiências realizadas por Malpighi, após a
morte de Harvey.
Ateoria continua a ampliar a nossa concepção
dos fenómenos e do que existe no mundo.

As hipóteses enquanto ficções

168
Em vez de procurarem transformar todas
as espécies de conhecimento em uma
espécie única, visando um muito pouco
plausível ideal reducionista, a maioria dos
filósofos e dos cientistas limita-se a
aceitar o facto de que existem, pelo
menos, dois tipos de conhecimento
científico: o conhecimento dos factos e das
teorias.
Tal como teremos oportunidade de
compreender aos poucos esta distinção não
constitui uma dicotomia, ou seja, é
impossível traçar uma linha divisória rígida
que separe os factos da teoria. Não
obstante isso, conseguimos reconhecer a
diferença existente entre frases tais como:
«Formou-se um precipitado azul a
temperatura de 28ºC» e «Os átomos com
seis ou sete electrões a nível superior
tendem a formar moléculas covalentemente
ligadas». Apesar de a teoria do presente e
os fantasmas da teoria do passado
contaminarem a primeira expressão, os
factos não são irrelevantes na segunda.
Mas sob que ângulo deverá entender-se tal
diferença?

169
Passarei a considerar a ideia de que as
teorias são ficções, ou seja, que estão para
os factos mais ou menos como os romances
estão para a História; interpretam-se como
relatos factuais e funcionam ostensivamente
de acordo com a lógica da discrição e da
referência, mas nada mais são do que obras
imaginativas.
Para tornar-se plausível, o romance recorre
a um acervo de informes históricos que, na
vida real, se submetem ao domínio da
verdade, o que não acontece na obra de
ficção. Por vezes, os episódios do romance
são coerentes e mesmo bastante
convincentes, neles ecoando o som da
verdade. A diferença capital, porém, está
em que as personagens não são gente real;
os seus nomes e moradas não correspondem
aos de pessoas e de lugares que
verdadeiramente existam.
A arte romanesca consiste em criar
personagens e em revesti-las de
características tão plausíveis que o leitor as
confunde de bom grado com pessoas reais,
isto é, que lhe não suscitam incredulidade.
O romancista gera assim as suas obras, em
parte com fins lúdicos e em parte pela

170
visão que obtem do carácter, pois, por
assim dizer, as leis da Natureza de acordo
com as quais se traçam as personagens
fictícias terão de representar verdades
acerca das características dos seres
humanos reais.
A visão ficcionalista das teorias transfere
tudo isto para a ciência. Como auxiliar do
processo mental, uma teoria plausível
revelar-se-á, porventura, um instrumento
muito poderoso e, quando se utilizam
conhecidas leis da Natureza para descrever
o comportamento e a qualidade das
entidades de que a teoria se ocupa, esta
ganhara plausibilidade. Mas, para o
ficcionalismo, tais entidades não são mais
verdadeiras do que as personagens
fictícias, e os termos que descrevem as
entidades e que, em particular, as
referenciam assemelham-se aos nomes e às
moradas das personagens dos romances.
Esta ideia surge frequentemente na
história da Filosofia da ciência e torna-se vulgar,
em especial quando algum tipo de crise se
manifesta num qualquer ramo cientifico, onde
existe abundância de teorias, parecendo
impossível solucionar o conflito entre elas. Em

171
muitos filósofos e cientistas contemporâneos de
um período de crise, dir-se-á verificar-se então
forte tendência para suplantar as dificuldades
geradas pela situação, e deste modo, classificando
de ficções todas as teorias concorrentes. E para
tentar estabelecer entre elas uma distinção,
apenas pragmática ou heurística. O conhecimento
teórico ideal, transforma-se então no melhor
conjunto de ficções e, destas, preferem-se as
mais agradáveis, as mais suscintas, e as mais
elegantes. Abandona-se a procura da verdade, a
busca da confirmação de uma teoria a expensas de
outras. Afirma-se que a verdade reside apenas nas
relações dos fenómenos.
Sustentam-se assim dois objectivos e dois ideais
diametralmente opostos e, portanto, critérios de
excelência também radicalmente díspares.
Na história da ciência, ocorreram três
importantes episódios deste género:
1- Trataremos do conflito que dividiu a astronomia
no século XVI, divulgadas que eram as teorias
rivais de Eudoxo, de Ptolomeu, de Tycho Brahe, de
Copérnico e de Kepler, tendo todas elas os seus
adeptos apaixonados.
Uma maneira de escapar ao beco sem saída criada
pela circunstância de o conflito parecer insolúvel
por meio de novas observações, consistiu ni ponto

172
de vista de que as referidas teorias não
rivalizavam entre si na qualidade de imagens da
verdadeira estrutura do Céu, mas sim na de
ficções concorrentes, cujas vantagens deveriam
avaliar-se apenas quanto a sua utilidade e beleza.
2- Um outro caso importante e idêntico, verificou-
se na Ciência Química. Centrou-se no problema do
estatuto das teorias atómicas e gerou um debate
que se prolongaria desde 1810 até ao início do
século XX. Diversos Químicos sustentavam que a
teoria atómica não passava de um conjunto de
ficções úteis, embora ela não devesse ser
considerada nem verdadeira nem falsa.
3- O terceiro episódio, deste mesmo género,
passou-se nos nossos tempos e diz respeito à
Física Fundamental.
Dir-se-ia ser cada vez mais difícil em encontrar
uma imagem apropriada à natureza das entidades
que, mais tarde, seriam encaradas como
constituintes básicos da matéria; em certas
circunstâncias, tais entidades pareciam partículas,
em outras dir-se-iam ondas.
Uma visão ficcionalista ganhou corpo quando se
supôs cada vez mais infrutífera a tentativa de
conciliar estes dois quadros: chamou-se-lhe
«complementaridade». Os electrões que em
determinadas circunstâncias surgiram sob a forma

173
de partículas, podiam ser difractados quando
existentes num feixe em número suficiente. A luz,
considerada desde o século XVIII, por consenso
geral, um movimento ondulatório, teria de ser
encarada, para determinadas finalidades, como um
conjunto de partículas. Supunha-se que ambas as
imagens (onda e partícula) fossem complementares
e fictícias. Preservava-se a consistência deste
ponto de vista por não haver necessidade de
aplicar em conjunto as duas facetas incompatíveis.
Até ao certo ponto, esta atitude ficcionalista
quanto ao problema de descobrir a natureza das
entidades subatómicas, perdurou até ao
presente. Sem dúvida, tais opiniões parecerão
tão abusivas aos cientistas do século XXI como
nos parecem a nós as dos astronómos rivais do
século XVI.
Um exemplo bastante típico da atitude
ficcionalista pode ler-se no Fundamentum
Astronomium, de Nocholas Reimarus Ursus,
publicado em 1588. A brindo o capítulo com uma
citação de Oseias, 13,8 - «Eu lhes sairei ao
encontro como uma ursa…», referência ao seu
próprio nome -. Ursus oferece-nos o relato do
papel das ficções na teoria astronómica, dizendo o
seguinte:
Uma hipótese ou pressusposto fictício é um quadro imaginário de certos
círculos imaginários de um modelo também imaginário do sistema do

174
Universo, capaz de conciliar as observações dos movimentos celestes,
hipótese inventada, pressuposta e introduzida com o fim de sustentar e de
justificar os movimentos dos corpos celestes e de exprimi-los em termos
quantitativos. Trata-se, como disse, de u,m quadro imaginário de um modelo
imaginário do sistema do Universo, e não verdadeiro e genuíno, ao que se
saiba. É um quadro não do próprio sistema, mas sim de um seu determinado
modelo que a mente consegue imaginar e abranger conceptualmente.
As hipótese que inventamos nada mais são do que fábulas que se
arquitectam a respeito do sistema do Universo. Por conseguinte, é
desnecessário e não deverá exigir-se aos inventores de hipóteses que estas
sejam totalmente concordantes, em todos os pontos e facetas, com o
verdadeiro sistema do Universo (este género de hipótese não pode ser
idealizado, penso eu) e aceita-se que, por toda a parte e sejam quais forem
os modelos de hipóteses construídos, hipóteses que poderão imaginar-se e
apresentar-se sob inúmeras formas, sempre nelas se mantenham certas
absurdidades bastantes ineptas, sendo apenas necessário que concordem e
que correspondam aos aspectos qualitativos dos movimentos e não aos
próprios movimentos e desde que as relações quantitativas dos movimentos
celestes se possam preservar e garantir através delas. De outro modo, não
seriam hipótese ou (o que é a mesma coisa) supostos fictícios; seriam, pelo
contrário, verdadeiras (não inventadas) representações da forma real (e não
imaginária) do sistema do Universo.
Assim, as hipóteses não podem culpabilizar-se pelo facto de se pressuporem
contrariando os comuns princípios das outras artes e ciências, nem mesmo
quando os seus pressupostos são contrários à mui certa e infalível
autoridade das Sagrdas Escrituras.
É função das hipóteses investigar, perseguir e descobrir a resposta
verdadeira a dar à pergunta, fazendo-o por meio de supostos fictícios ou
falsos. Aos astronómos, numa espécie de licenciosidade astronómica, é
concentido e permitido inventar hipóteses, quer verdadeiras quer falsas ou
fictícias, de género tal que bastem aos fenómenos e às aparências dos
movimentos celestes e que possam evidênciar de modo adequado as suas
relações quantitativas e, desta forma, atingir a meta e a finalidade de tal
técnica. Isto, da mesma maneira exacta que se pratica na maioria dos outros
ramos do conhecimentos, nos quais, na maior parte dos casos, se não
pressupõem verdades nem mesmo probabilidades, asseguro-vos, não
obstante os pressupostos se gerarem com sensatez e darem resultados
muito úteis.
Ao anterior, associa-se um outro ponto de vista
ainda mais extremo. Quando nos podem a opinião

175
quanto à verdade ou à falsidade de um romance,
teremos de admitir que, em certo sentido ele é
falso. Mas existem alguns teóricos lógicos
sofisticados capazes de criar um limbo de «nem
vedadeiro nem falso» no qual se encaixem as
ficções e, conquanto isso seja, em última análise, a
melhor maneira de lidar com palavras as quais
nenhuma realidade corresponde, muitas pesoas
gostariam de dizer, em boa verdade, que as
ficções são falsas.
Esta ideia veio do exterior para os debates da
filosofia da ciência. o modelo lógico da teoria
assume uma forma semelhante a esta:
1. Todas as aves são mamíferas
2. Todos os mamíferos têm penas
3. Todas as aves têm penas
Os números 1 e 2 constituem a teoria que
explica o facto de todas as aves terem
penas e tratar-se-á de uma boa teoria por
implicar uma conclusão verdadeira. As duas
premissas, no entanto, são ficções, visto
serem falsas.
Aqui o critério da teoria torna-se lógico,
não empírico. E tanto melhor se formos
capazes de idear uma teoria que satisfaça o
critério lógico de vincular legitimamente leis e
factos conhecidos e de validamente implicar

176
consequências que a observação reconheça
como verdadeiras e que, além do mais, seja
também simples, elegante, económica e bela!
Foi assim, que em astronomia, visto existirem
cinco teorias, todas elas baseadas em factos
conhecidos (isto é, de acordo com a teoria,
partindo de condições iniciais conhecidas,
podem inferir-se as passadas e as futuras
posições dos corpos celestes) e todas elas
satisfazendo o critério lógico, a única escolha
possível entre essas teorias terá de assentar
na respectiva beleza e simplicidade. De
conformidade com tal ponto de vista, se
quisermos saber qual a teoria verdadeira e
qual a falsa, é porque não compreendemos o
assunto, dado que o objectivo de teorizar é
produzir as ficções mais satisfatórias.
CHRISTOPHER CLAVIUS CONTRA OS
FICCIONALISTAS
A ideia ficcinalista foi objecto de forte controvérsia
durante o século XVI e escolhi Chtistopher Clavius como
porta-voz dos critérios da época. Eis aquilo que tem para
dizer-nos contra os ficcionalistas, extraido da obra In
Sphaeram Ionnes Sacro Bosco (Lião, 1602), pp. 518-20:
Por fim concluamos este tópico da maneira seguinte: à semelhança da física,
onde se chega ao conhecimento das causas através dos efeitos, também em
astronomia, a qual lida com os corpos celestes, situados a enormes
distâncias de nós, só é possível chegar ao conhecimento desses corpos,
saber a meneira como se dispôem e como são constituídos, por meio do
estudo dos seus efeitos, ou seja, através dos respectivos movimentos tal
como os refridos corpos no-los exibem.

177
Do mesmo modo que os físicos inferiram – Aristóteles entre eles – da
alternância dos processos de nascimento e morte que ocorre na Natureza, a
existência da matéria-prima, em conjunto com dois princípios de
modificação natural e tantas outras coisas, também os astronómos,, através
do estudo dos movimentos variáveis que se verificam nos céus desde o
nascer ao pôr do Sol e desde o pôr ao nascer do Sol, descobriram um
número fixo de esferas celestes. Afirmam alguns serem oito, pois
constataram apenas oito tipos de movimento diferentes; outros asseveram
que se trata de dez, havendo observado dez tipos diferentes. Do mesmo
modo, valendo-se de outrasa observações, determinaram a maneira como se
dispõem tais esferas, o que se explicou em pormenor no capítulo I.
Assim, é próprio e inteiramente razoável que os astronómos investiguem os
movimentos específicos dos planetas e os diversos fenómenos, para que
trnsmitam aos físicos e o conhecimento do número de esferas específicas
que levam os planetas a descrever círculos de conformidade com os vários
movimentos, do seu arranjo nos céus e das suas formas. Isto, porém, com
uma condição: a de que, por esse meio, sejam adequadamente estabelecidas
as causas de todos os movimentos e de todos os fenómenos e que daí se não
infira nada de absurdo ou incompatível com a física.
Por conseguinte, visto que os epicíclos e as esferas excêntricas permitem
aos astronómos justificarem sem esforço todos os fenómenos, o que, em
parte, transparece do que se disse e se entenderá talvéz melhor atravéz
das suas teorias e visto que, delas, não advém nenhuma absurdidade nem
incompatibilidade com a física, tal com dentro em breve se concluirá ao
ocuparmo-nos das objecções que os opositores levantam contra a existência
de tais esferas, os astronómos concluiram justificadamente, portanto, que
os planetas se deslocam em órbitas excêntricas e em epicíclos e não em
órbitas concêntricas, dado que estas não permitem concentrar a multipla
variedade de movimentos exibida pelos planetas.
COMO OS ADVERSÁRIOS PROCURAM SAPAR O NOSSO ARGUMENTO
Todavia, os nossos adeversários procuram sapar este argumento dizendo
que, embora concordem ser possível explicvar os fenómenos postulando
epicíclos e esferas excêntricas, não se csegue daí que tais esferas se
encontrem na Natureza; pelo contrário, são totalmente fictícias. Em
primeiro lugar, talvez seja possível explicar tais fenómenos de modo
mais adequado, embora este se não tenha ainda descoberto; além disso,
talvez eles se justifiquem por meio das ditas esferas sem que estas
nada tenham de fictício e constituam a verdadeira causa dos
fenómenos, da mesma maneira que se pode chegar a uma conclusão a
partir de falsas premissas, tal como se prova na dialéctica de
Aristóteles.
Poder-se-ia conferir mais peso a estas objecções por meio dos
considerandos seguintes: Nicolau Copérnico, no seu livro de
Revolutionibus, justifica todos os fenómenos de uma outra maneira,
postulando, claro está, que o firmamento é fixo e estacionário, que o

178
Sol também é fixo no centro do Universo e conferindo à Terra, no
terceiro céu um movimento triplo. Assim, no caso dos planetas, os
epicíclos e as esferas excêntricos não são necessários para apoiar os
fenómenos.
Também Ptolomeu, por meio dos epicíclos, fornece uma causa dos
fenómenos, no caso do Sol, e justifica-os por meio do excêntrico. Do nosso
terceiro argumento, não poderá concluir-se, portanto, que o Sol se desloque
excentricamente, pois talvez se mova em epicíclo.
Não obstante, deve dizer-se que o nosso terceiro argumento conserva a sua
força e que é inconclusiva a objecção dos nossos opositores. Em primeiro
lugar, se acaso sabem de uma maneira mais adequada para justificar os
fenómenos, então que no-la apresentem; isto dár-nos-a enorme prazer e
ficar-lhes-emos muito gratos. Pois que a grande preocupação do astronómo
é a de que todos os fenómenos celestes sejam justificados o mais
convenientemente possível, quere isto se consiga através de esferas
excêntricas quer de epicíclos ou de outra forma qualquer. E porque, para
além de excêntricos e de epicíclos, nenhuma outra forma se descobriu até
agora que melhor os justifique, será certamente crível que as esferas
celestes se compôem de círculos desse género.
Porém, se os nosos adversários forem incapazes de fornecer-nos uma ideia
mais apropriada, então que, pelo menos, aceitem a que lhes propomos,
fundamentada que está em grande variedade de aparências; isto, caso não
se achem empenhados não só em aniquilar a física, tal como é explicada
nas academias, mas também em impedir o acesso a todas as outras
artes que estudam os efeitos afim de descobrirem as causas. De facto
sempre que alguém infere uma causa a partir dos seus efeitos visíveis, dir-
vos-ei aquilo que os meus opositores objectam: «Sem dúvida, poderá
encontrar-se uma outra causa, até agora desconhecida, correspondente a
tais efeitos.»
Ora, se se é forçado a aceitar que o que se descobriu é a causa verdadeira,
dado apresentar conexões com efeitos dos quais ela se inferiu, nesse caso,
também as esferas excêntricas e os epicíclos deverão admitir-se como
causas, ao constatar-se que é tamanha a sua relação com os fenómenos que
a todas elas justificam facilmente por meio dos movimentos. Se não for
legítimo concluir dos fenómenos que os excêntricos e os epicíclos existem
nos céus, pelo facto de ser possível extrair uma conclusão verdadeira de
premissas falsas, toda a física estará condenada. Pois que, do mesmo modo,
quando alguém tirar uma conclusão de um efeito observado, também eu,
poderei dizer: «Não é a sua causa real. Não é verdade, pois pode extrair-se
uma conclusão verdadeira de premissas falsas.»
E asssim se destruirão todos os princípios genuínos descobertos pelos
filósofos. Por se absurda tal coisa, é errado supor que a força e o peso do
nosso argumento se vejam enfraquecidos pelos nossos opositores. Poderá
dizer-se também qiue é irrelevante a regra dialéctica segundo a qual a
verdade resulta da mentira, visto que uma coisa é inferir uma verdade

179
de uma premissa falsa e outra completamente diferente é justificar os
fenómenos por meio de excêntricos e de epicóclos; pois, no primeiro
caso, é por virtude da estrutura silogistica que a conclusão verdadeira
se extrai da premissa falsa.

CEPTICISMO QUANTO AS HIPÓTESES


O principal motivo que leva a encarar as
hipóteses como ficções sempre foi a alegada
impossibilidade de se distinguirem as hipótese
falsas das verdadeiras. De facto, é possível
aventar um sem-número de conjuntos
diferentes de hipóteses das quais se podem
deduzir enunciados que descrevem factos
conhecidos, de modo que qualquer critério com
base no poder lógico da hipótese está
destinado a ser equívoco. Todavia, em vez de
irem tão longe afirmando que todas as
hipóteses são fictícias, alguns filósofos e
cientistas situam-se na posição de
considerarem que, embora seja judicioso
admitir como verdadeira uma hipótese de um
conjunto de hipóteses rivais, não faz sentido
procurar saber qual delas é.
Conforme advogam os ficcionalistas, a escolha
entre diversas hipóteses será feita com
referência ao seu poder lógico, à coerência
com as teorias, à simplicidade, economia,
elegância, beleza e assim por diante. A melhor
hipótese, de acordo com tais critérios,
poderá ser, por acaso, verdadeira, mas
180
poderá igualmente não o ser. As expressões
de referência – os substantivos, os nomes,
etc. – que, no discurso usual, se referem a
entidades existentes, não podem distinguir-
se das ficções, as quais apenas fingem
referir. É tão impossível resolver o
problema da existência das coisas, das
qualidades e dos processos a que a hipótese
se refere como é impossível solucionar a
questão da sua verdade. Para se
estabelecer a verdade de uma hipótese, há
que se saber se existem as coisas que ela
nomeia, pois que, só existindo, estas
poderão ser estudadas, a fim de verificar
se as suas qualidades, natureza e
comportamento coincidem com os
reclamados na hipótese.
No aceso debate astronómico ocorrido no
século XVI, não foi invulgar a atitude céptica
e a sua mais célebre exposição encontra-se no
prefácio do livro de Copérnico De
Revolutionibus. Kepler, apaixonado adversário
do cepticismo, descobriu que o referido
prefácio não fora escrito por Copérnico mas
sim por um tal Osiander, responsável pelas
fases finais de impressão da citada obra.
Copérnico era realista, o que se depreende

181
das opiniões que lhe foram atribuídas, sem
dúvida com agudeza, por um discípulo,
Rheticus, no seu livro Narratio Prima.
Fornecemos de seguida um resumo do
contributo de Osiander, consubstanciado no
prefácio que lhe não fora pedido. Kepler achou
uma carta escrita por Osiander, onde este
confessa o seu propósito de acalmar a
excitação das mentes conservadoras,
chocadas pela defesa de uma teoria
heliocêntrica. O resumo é da autoria de Ursus
e surgiu no seu Fundamentum Astronomium:
É função do astrónomo comparar a história dos movimentos celestes por
meio de diligente e cuidadosa observação; terá, em seguida, de idear e
inventar causas ou hipóteses de todos os géneros, as que mais lhe agradem,
pois ser-lhe-á impossível, seja porque meios for, chegar às verdadeiras.
Pressupondo tais hipóteses, calculará correctamente ditos movimentos, de
acordo com os princípios da geometria, tanto no que respeita aos futuros
como aos passados. Isto porque não é necessário que as hipóteses sejam
verdadeiras nem mesmo, na realidade, que sejam prováveis; bastam que
forneçam um cálculo compatível com as observações, pois torna-se claro
que a astronomia ignora totalmente e absolutamente as causas dos
movimentos desiguais dos corpos celestes.
Sejam quais forem as hipóteses que o astrónomo imagine (e imaginará, por
certo, O MAIOR NÚMERO POSSÍVEL), sem dúvida o não faz com o fim de
persuadir os outros de que são verdadeiras, mas sim com o simples intuito
de que proporcionem relações numéricas correctas.
Visto, de tempos a tempos, se proporem diversas hipóteses
respeitantes a um único movimento (o movimento do Sol, a hipótese da
excentricidade e dos epiciclos), o astrónomo preferirá a mais fácil de
compreender. Porém, o filósofo exigirá, por ventura a probabilidade.
Nenhum deles, todavia, terá do assunto uma compreensão total ou
proporá como certo, a não ser que lhe tenha sido revelado por
inspiração divina. E, no que diz respeito as hipóteses, nenhuma pessoa
deverá esperar que a astronomia lhe ofereça certezas, dado que esta
arte é incapaz de encontrá-las, para que se não dê o caso de essa
pessoa tomar as ficções por verdade e, ao adaptá-las a outros fins,

182
abandonar tal ciência com o espírito ainda mais insenssato de que
quando nela se enfronhou.

Posição algo semelhante é assumida por


certos filósofos em épocas mais recentes e
deu-se-lhe o nome de «instrumentalismo».
Este defende o ponto de vista de que as
teorias não deverão apresentar-se a
julgamento rotuladas tanto de verdadeiras
como de falsas, mas sim, serem julgadas na
qualidade de «instrumentos» de pesquisa
bem ou mal sucedidos.
É interessante notar que tal ideia,
precisamente a mesma, em boa verdade,
aparece já na teoria da ciência de
Gassendi, no seu Syntagma, de 1658, onde
o autor declara que todos os enunciados
hipotéticos ou condicionais deverão
considerar-se como «instrumentos
naturais», isto é, como dispositivos capazes
de tornar mais ordenado e penetrante o
conhecimento.
O SIGNIFICADO DOS TERMOS NAS
TEORIAS
Quanto ao significado dos termos
existentes nas teorias, o ponto de vista
céptico pouco difere do ficcionalista. Em
nenhuma destas visões da ciência, os
termos teóricos respeitam a algo com

183
existência independente dos fenómenos que
a teoria explica. Mas mesmo que o céptico
não pretenda que alguns termos possam
referir-se de facto a processos e a
entidades reais, não deixa de insistir na
impossibilidade de saber-se quais – se é que
alguns – se lhes referem. Deste modo, quer
um termo teórico se refira ou não a algo de
real, nunca será algo que de qualquer modo
intervenha no significado do termo.
O cepticismo, tanto quanto é dado
entender-se, compartilha com o
ficcionalismo a ideia de que os termos
incorporados nas teorias extraem o
respectivo significado do papel que
desempenham num enredo. O termo «átomo
químico», por exemplo, adquiria o seu
significado exactamente do mesmo modo
que o nome do senhor Pickwick. Os átomos
químicos são coisas de uma certa classe,
dentro de um dado enquadramento fictício,
tal com o senhor Pickwick é um determinado
tipo de homem desempenhando um certo
papel de ficção.
É impossível imaginar-se o ficcionalismo
tomando para modelo de significado os
Pickwick Papers e o céptico considerando

184
Homero do mesmo modo; Ulisses terá
existido, porventura, mas aquilo que dele
sabemos provém da epopeia homérica e não
de conhecimento pessoal.
Os exemplos comparados com as teorias
filosóficas
Se fizermos a retrospectiva dos exemplos
descritos no início deste capítulo, torna-se
manifesto que uns se encaixam em algum
destes três pontos de vista irrealista
acerca das hipóteses, enquanto o mesmo
não sucede a outros. A teoria da força
mecânica é, talvés o exemplo mais adquado
e um modelo de construção teórica plausível
para algumas dessas mentes e, em
particular, para os adeptos do
«fenomenismo pleno». Dir-se-á que força
nada mais é do que uma «força» de
expressão a respeito da aceleração da
massa.
Também «raio de luz» parece, à primeira
vista, convir à ideia das «hipóteses como
ficções», visto tratar-se obviamente de
uma ficção e ser necessário aprofundar
bastante o domínio da óptica para encarar
o assunto como algo mais do que isso.

185
Por fm, o termo «calor», empregue em
calorimetria, parece fornecer um modelo
plausível ao ponto de vista ceptíco. Tal
como «força», também «calor» poderá ver-
se como uma maneira de fazer referência à
produção de calor específico da massa e às
variações de temperatura ou, por outro
lado, ver-se, à semelhança do raio da luz,
como uma entidade fictícia, uma especíe de
fuído imponderável que permite que as
experiências façam sentido; ou ainda, a sua
existência poderá ser objecto de
tratamento idêntico àquele que se dava à
posição do Sol no sistema de Copérnico:
algo susceptível de ser verdadeiro e capaz
de ser descrito, mas quanto ao qual não
havia probabilidade de decisão. Deste
modo, só se chega ao significado de «calor»
considerando o papel que desempenha numa
história.
O realismo
A escolha de um outro género de exemplo
conduz-nos a nova ideia acerca das teorias.
Nem o Fenómenismo nem o ficcionismo nem
o cepticismo parecem minimamente
plausíveis para a história dos vírus.

186
Mas há um quarto ponto de vista quanto a
teorias, segundo o qual faz sentido a teoria
sobre os vírus: os enunciados das teorias
são verdadeiros ou falsos e têm existência
muitas das entidades referidas nas teorias.
Estas entidades pertencem tanto ao mundo
real como os seres humanos, as casas, as
rochas, as estrelas e assim por diante.
Chamarei «realismo» a este ponto de vista.
O realista não afirma a existência de todas as
entidades hipotéticas nem que os enunciados
de uma teoria devam ser apresentados a
julgamento imediato quer como verdadeiros
quer como falsos; tudo quanto precisa de
sustentar é que são reais algumas entidades
hipotéticas e que, dados alguns enunciados
teóricos terem sido considerados verdadeiros
ou falsos, outros poderão, em princípio, sofrer
o mesmo tipo de julgamento.
Para que a posição realista se torne clara, há
necessidade de introduzir dois importantes
conceitos: o de referência e o de
demonstração.
Ter-se-á uma ideia da noção de «fazer
referência» socorrendo-nos do exemplo do
emprego dos nomes próprios. Um nome
próprio, tal como «Henrique», por exemplo,

187
utiliza-se para referir alguém, quer esse
alguém se emcontre ou não presente. Com
efeito, a utilização da existência de nomes
próprios na linguagem é, em parte, a do seu
emprego na conversação, quando se quer
nomear uma terceira pessoa ausente. O
mesmo se passa com outros géneros de
palavras. Os substantivos, por exemplo,
inserem-se em frases cuja função é a de
indicar as coisas, quer estas estejam ou não
presentes. Portanto, quando nos referimos as
entidades, fazemo-lo recorrendo às palavras.
Visto estas serem compreensíveis mesmo
exoladas das entidades que especificam, é
possível fazer referência verbal às coisas,
tanto quanto são ou não observadas ou quando
se acham diante de nós, desde que
entendamos o significado das palavras
empregues para fazer essas referências.
Tipicamente, demonstração e a sua parente
chegada indicação são actos executados com
ou através de gestos que indicam entidades.
Não se pode indicar uma entidade na ausência
desta, o que só acontece quando ela está
presente. Um gesto indicativo tipíco é o de
apontar. Ser-se capaz de indicar algo constiui
a prova final e incontroversa da existência

188
desse algo. Deve ficar claro o facto de nos ser
possível fazer referência a muitas coisas que
não podemos indicar, mas que se formos
capazes de demonstrar uma coisa a que
anteriormente nos referimos, nessa ou em
outras ocasiões, teremos a prova de que tal
coisa existe.
Numa teoria, há certos termos teóricos
utilizáveis para referência verbal à entidades
hipotéticas, quer seja ou não possível observá-
las ou quer se exibam ou não à nossa
experiência. Mas nem todos os termos
teóricos são o que parecem ser. Alguns deles
não passam de formas pitorescas ou
abreviadas de expressões complexas com
significados diferentes daqueles que, à
primeira vista, julgaríamos terem. «Força»
representa o melhor exemplo do que acabamos
de dizer. Mas se a referência verbal for
acompanhada de um acto de demonstração,
por meio do qual se aponte ou indique uma
entidade hipotética, terá de afirmar-se que
essas entidades existem. Depois deste
preâmbulo, estabelecemos de forma
esquemática a posição realista, que se baseia
nos seguintes princípios:

189
1. Alguns termos teóricos podem servir
para fazer referência (verbal) a
entidades hipotéticas.
2. Agumas entidades hipotéticas são
canditadas à existência (isto é, algumas
delas têm possibilidade de ser coisas,
qualidades e processos reais).
3. Algumas candidatas à existência, à
realidade são demonstráveis, ou seja,
podem ser apontadas por meio de um
qualquer gesto que as indique, nas
condições apropriadas.
A fim de ilustrar os pontos atrás referidos,
consideremos o relato lógico de algumas
teorias acerca da doença. A partir do século
XVII, principiou a ganhar terreno com
firmeza a ideia de que a doença é provocada
por infecções. Na origem, surgiram duas
diferentes teorias sobre isto, a de Van
Helmont –a teoria da arche-e a teoria dos
vapores deletérios.
Segundo a teoria de Van Helmont, a doença
era provocada por uma arche (princípio
físico operante) estranha que dominava ps
órgãos e o corpo do hospedeiro, obrigando-o
a funcionar à sua própria maneira. A arche
estranha era inalada ou ingerida sob a forma

190
de microrganismos. Na teoria dos vapores
deletérios, o agente causador dos maus
cheiros era, quando inalado, responsável pela
doença. Qualquer destas teorias tinha um
sentido realista e tanto a «arche» como o
«vapor deletério» constituíam termos
substancialmente referentes a entidades
que de facto existem.
No século XIX, ficou demonstrado que a
presença do vapor deletério não era
condição necessária nem suficiente para que
a doença ocorresse. Com as investigações
clássicas no capítulo da malária, caiu o
último baluarte desta teoria, por meio da
aplicação de métodos de pesquisa como os
de Mill. Não havia dúvida quanto à existência
de gases responsáveis pelos maus cheiros,
mas não eram eles as causas das doenças.
Por esta altura, já a teoria de Van Hemont
se transformara na teoria das «bactérias».
Estes eram consideradas pequeníssimos
parasitas que invadiam o corpo e
desorganizam o metabolismo, assim
provocando sintomas de doença. Tornou-se
possível a referência verbal a esses agentes
putativos pela introdução de termos como o
de «bactéria», mas a sua existência só se

191
estabeleceu de modo conclusivo ao ser
demonstrada com o microscópio, aparelho
por meio do qual se verificou tratar-se, de
facto, de microrganismos.
As minuciosas experiências efectuadas
por Pasteur e por Koch provaram que a
presença de microrganismos era a causa de
muitas doenças comuns; não de todas elas,
porém. Relativamente àquelas cujo agente
bacteriano continuou desconhecido,
adaptou-se uma palavra já antes empregue,
mas agora exprimindo um conceito novo- o
vírus, concebido segundo o modelo da
bactéria, tornou-se o agente putativo
responsável pelas doenças quanto às quais
não fora possível encontrar causas
microbianas. A presença da palavra «vírus»
na linguagem possibilitou a referência verbal
a essas entidades hipotéticas. Por fim, com
o invento do microscópio, instrumento de
enorme poder de ampliação e de resolução,
provou-se a existência dos vírus; de
candidatos à realidade, estes adquiriram o
estatuto de coisas reais. Por conseguinte,
como se vê, por duas vezes ocorreu na
história das teorias sobre a doença o

192
processo que os realistas consideram como
típico.
Se a mecânica, com o seu eliminável
conceito de «força», fornece aos
fenomenistas um paradigma da ciência,
também a teoria dos vírus, no capítulo da
doença, proporciona aos realistas um
contramodelo. Dir-se-á, assim, que a ciência
engloba ambos os tipos de teoria. A solução
de tal conflito, porém, fica para lá do âmbito
deste livro. Identificaremos teorias de
muitos géneros diferentes, desde as
inteiramente fenomenistas até às
totalmente realistas.
É de notar a ocorrência de um certo grau
de mudança do estatuto dos conceitos
empregues nas teorias. Um conceito novo
não é introduzido e depois fixado com
carácter permanente em determinado
estatuto lógico e epistemológico. Pode
acontecer que se considere que o novo
termo se refira a uma entidade
eventualmente tomada como candidata à
realidade, isto é, que se, tome a sério a
questão da sua existência e que mais tarde,
o referido termo se veja privado desse
estatuto devido a uma mudança de

193
organização das teorias na matéria
científica em causa.
«Mas quê?», dirão os leitores. «Por certo
que o autor não leva a sério o conceito
freudiano do inconsciente, que não passa de
uma metáfora da ideia de hábito
emocional?!»
Verifica-se, de facto, este género de
mudança de estutato de ficções para
candidatas à realidade, em parte quando se
dá uma mudança de clima na opinião, uma
mudança no conceito do possível e, em parte,
devido a alterações nas teorias
circunvizinhas.
A troca de estatuto da ficção de Mendel-
o facto genético fixo-com o de candidato à
realidade-o gene-deu-se, parcialmente,
devido ao progresso da teoria celular e à
aquisição de maiores conhecimentos sobre
os processos de divisão das células, tudo
isto completado por uma crescente listas de
teorias bioquímicas culminando em
descobertas que permitiram a identificação
do gene com determinada estrutura
molecular localizada no interior dos
componentes da célula.

194
Segundo penso, foram também mudanças
na concepção do possível que modificaram o
estatuto conferido ao elixir da vida,
fazendo-o transitar de candidato à
realidade (concebia-se como um fluído que
merecia a pena investigar) a ficção (não
corresponde a coisa alguma existente). Por
estranho que pareça, alguns conceitos do
mundo antigo, ainda julgados possíveis na
Idade Média, mas que deixaram de ser
considerados como tal na era newtoniana,
transformaram-se, de facto, em realidades.
A transmutação dos elementos- a produção
de oiro a partir de metais vis- constitui um
processo hipotético que foi atingido, embora
não como empreendimento comercial. E
talvez-quem sabe? -o progresso da
bioquímica conduza à obtenção do elixir da
vida.
Embora sob influências bastantes
diferentes, também a fronteira que separa
candidatos à realidades demonstráveis de
candidatos não demonstráveis é susceptível
de mudar. Uma vez que certas entidades
tenham adquirido o estatuto de candidatas à
existência, o próximo problema que se põe é
o de como identificá-las. O facto de

195
determinada coisa, processo ou qualidade
ser ou não identificável e deminstrável a sua
existência depende do estado de progresso
atingido pela tecnologia instrumental. Há
duas possíveis linhas de desenvolvimento.
Em primeiro lugar, aparelhos de sonda
cada vez mais precisos apuram o sentido do
tacto, amplificadores aumentam a audição e
microscópios potentes ampliam a visão.
Alguns candidatos à realidade tornaram-se
demonstráveis devido aos progressos
introduzidos nos instrumentos deste género.
Os vasos capilares que completam a
circulação sanguínea, postulados por William
Harvey, puderam demonstrar-se em
consequência do desenvolvimento do
microcóspio electrónico.
Em segundo lugar, quando uma nova
entidade que não pertence ao género de
coisas susceptíveis de serem captadas pelos
sentidos se apresenta como candidato à
realidade, não se deduz que, por tal motivo,
seja indemonstrável, pois há possibilidade
de conceber-se um instrumento que a
detecte. O electroscópio, por exemplo, é um
aparelho que assinala a presença de cargas
eléctricas, e a divergência das suas duas

196
folhas de oiro demonstra que tais cargas
existem. Estas, porém, são algo que nunca
esperaríamos observar do meio da aplicação
dos sentidos. Quando muito, sentiremos a
sensação de formigueiro ocasionada por
pequenas descargas eléctricas. Tratando-se
do campo magnético, contudo, até mesmo
esse pequeno bónus sensorial nos é negado,
embora a maneira como os ímanes se
orientam no campo magnético torna a sua
demonstração tão segura quanto poderia
desejar-se.
Semelhantes desenvolvimentos da ciência
dependem também do génio inventivo dos
que concebem os instrumentos como da
existência de teorias de acordo com as quais
se criam aparelhos apropriados. A detecção
das fontes de rádio resultou não só do
engenho dos inventores de rádiotelescópios
como também da teoria da radiação
electromagnética, segundo a qual a reacção
dos instrumentos é interpretada como
devida à radiação proveniente de fontes
particulares existentes no espaço.
Muitas vezes, porém, a ampliação bem
sucedida dos sentidos contribui, por assim
dizer, para eliminar a teoria. A existência de

197
bactérias, tal como o demonstra o
microscópio óptico em pouco é afectada por
alterações na teoria do instrumento. No
entanto, mesmo no caso dos instrumentos de
detecção, nem tudo depende por inteiro da
teoria. Se, em muitas situações, o
instrumento permanece em repouso para
depois entrar em súbita actividade (a
divergência das laminas de oiro, por
exemplo, ou a mudança de cor do papel de
tornassol de azul para vermelho) é porque
alguma coisa actua sobre ele. Há, de facto,
carga eléctrica e a água contém certa
quantidade de ácido (iões de hidrogénio).
Mas que é um campo eléctrico, qual a sua
«essência e quididade»? -tal como Bacon se
exprimia. Que é um ácido? As respostas a
tais perguntas sujeitam-se a mudanças e a
flutuações, à medida que as teorias se
desnvolvem ou declinam ou se altera a
opinião geral quanto àquilo que é possível na
Natureza e se modificam as ideias sobre o
que são as estruturas básicas das coisas.
Os pólos da epistemologia da ciência, o
Fenómenismo e o Realismo, distinguem-se pelo tipo
de conhecimento que aceitam como conhecimento
científico. Os fenomenístas encaram a ciência

198
como consistindo, em exclusivo, nas leis gerais
dos fenómenos, segundo o modelo de «todos os
acontecimentos de determinado tipo são
seguidos por acontecimentos de outros
determinado tipo», como por exemplo: «toda a
colisão de partículas é secundada por mudanças
de velocidade de acordo com a lei de
conservação de momento.»
Os realistas, consideram como conhecimento
científico aquele que é basicamente formado pelo
conhecimento da existência das coisas e de
substâncias de determinados géneros e também
pelo conhecimento das suas contribuições e
naturezas. Fluem desse conhecimento as leis do
comportamento das coisas, ou seja, as leis
empíricas. Quanto à maior parte do
conhecimento científico, os realistas têm por
certo razão em encarar o seu alargamento
alternadamente como uma dilatação do nosso
conhecimento sobre as suas naturezas.
Neste capítulo, observamos a variedade de
ideias de conhecimento e aprendemos não
apenas a conveniência das hipóteses
existenciais, mas também a maneira como elas
se determinam. Prenetramos num dos
preliminares dos sectores mais profundos e
difíceis da filosofia da ciência. Pusemos em

199
confronto dois grandes sistemas de pensamento
– positivismo e antipositivismo – e inteirámo-nos
do modo como eles, em conjunto, proporcionam
um espectro das formas e do conteúdo do
conhecimento.
RESUMO DO ARGUMENTO
1. Exemplos da ciência.
(a) Emprego do conceito de «átomo químico» para
explicar o comportamento observado das
substâncias.
(b) Uso do conceito de «raio luminoso» para dar forma
geométrica às descobertas da óptica. Atribuíram-
se a este conceito duas interpretações distintas,
dependentes da teoria geral preponderante quanto
à luz.
(c) Utilização do conceito de «calor» na explicação da
calorometria.
(d) Emprego do conceito de «força mecânica» na
formulação de princípios da mecânica de estilo
newtoniano.
(e) Uso do conceito de «vírus» para explicar o
aparecimento de doenças sem causa bacteriana
aparente.
(f) Diversas teorias sugidas pretendendo explicar o
movimento retrógrado dos planetas:
(i) As funções ziguezague dos Babilónios
(ii) A teoria das esferas concêntricas de
Eudoxo e de Aristóteles.
(iii) A teoria epicíclica de Ptolomeu.
(iv) A teoria de Ursus e de Tycho Brahe,
segundo a qual os planetas constituíam um
sistema heliocêntrico, cuja totalidade
girava em redor da Terra.

200
(v) A teoria de Copérnico: os planetas movem-
se à volta do Sol em órbitas circulares
sobre centros excêntricos.
(vi) A teoria de Kepler, segundo a qual os
planetas se deslocam em redor do Sol em
órbitas elípticas.
Nota: todas estas teorias forneceram a base
matemática adequada da determinação de tábuas
astronómicas, ou seja, justificaram os fenómenos e
expliocaram a retrogradação. Nenhum processo
empírico podia então ser utilizado para se optar
por uma delas.
A nossa linha de rumo é a de descrever as
principais teorias epistemológicas, examinando-as à
luz daquilo que sopomos saber relativimente a cada
um dos exemplos científicos atrás referidos.
2. Fenomenismo Pleno
Apenas as proposições quanto a fenómenos observados
têm estatuto de conhecimento genuíno. Segundo tal
teoria, a ciência deverá ocupar-se somente da
identificação, da classificação e da codificação dos
fenómenos.
(a) Os fenómenos são as relações e o comportamento
das coisas vulgares.
(i) A teoria de Patricio: É insensato procurar
manter a distinção científica entre aquilo que de
facto acontece e o que parece acontecer. A
alegada distinção é combatida pelo princípio de
que «só o que pode ser observado existe». É
interessante notar que, nos tempos modernos,
este princípio resurgiu no positivismo lógico
através da teoria de verificação do significado e
aplica-se para defender a «interpretação de
Copenhaga» da mecânica quântica.

201
(ii) A teoria de Berkeley, fundamentada num certo
número de princípios:
(A) Não é possível estabelecer a distinção entre as
coisas reais e a percepção que delas temos ou as
ideias que a mente concebe a seu respeito.
Abolindo tal situação, Berkeley sustenta que toda
a experiência é a das ideias.
(B) Visto a causação requerer actividade, apenas a
mente é a causa e, assim, não existe estrutura
causal para as ideias que experimentamos. A sua
causa terá de encontrar-se na actividade de Deus,
quando aquelas são regulares e na nossa própria
actividade, quando o não são.
(C) Por conseguinte, a ciência deverá limitar-se a
identificação de sequências regulares de ideias.
Destes três princípios, segue-se que, os conceitos
teóricos, que parecem descrever causas – tais como o
de «força de atracção» - redescrevem meramente os
fenómenos.
(iii) A teoria de Brodie: os fenómenos consistem que
nas mudanças quantitativas e qualitativas
ocorridas na Natureza, de modo natural ou por
manipulação, quer nas operações necessárias
para dar origem a essas mudanças. Portanto, na
realidade as leis da Natureza nada mais poderão
descrever do que as sequências de operações
requeridas para que se verifiquem nas
substâncias mudanças específicas de qualidade e
de peso. Termos teóricos como «átomo» são
apenas, de facto, despositivos para redescrever
fenómenos de modo suscinto, não tendo qualquer
outro significado.
(b)Os fenómenos são decompostos a partir do que
ordinariamente se percebe.

202
(i) A teoria de Mach: Mach compartilha do ponto de vista dos
adeptos do fenomenismo quanto à função das leis da
Natureza, nomeadamente da descrição económica dos
fenómenos, reduzindo ao máximo o número de conceitos
independentes requeridos. Os fenómenos, contudo, são
elementos sensoriais ou qualitativos. Tais elementos são as
sensações, quando consideradas com respeito à pessoa
percipiente, e as qualidades, quando consideradas
relativamente umas às outras. Os conceitos de «coisas»
servem apenas para exprimir regularidades de coexistência e
de co-presença de «elementos».
(ii) A teoria de Bridgman: tal como Brodie, também Bridgman
pretende incluir operações manipulativas na base da ciência.
Porém, ao contrário de Brodie, não as concebe como
modificadoras desta ou daquela qualidade, mas sim como
fornecedoras de conjuntos de valores numéricos. A qualidade
ou propriedade de que o conjunto de números produzido
constitui a medida, é definida por Bridgman pelo conjunto das
operações. Os conceitos teóricos são eliminados em favor das
«operações de papel e lápis» com os conjuntos de números
fornecidos pela leitura dos aparelhos.
Exame da teoria de Bridgman: o facto de certos conjuntos
de operações darem conjuntos de valores semelhantes
representa uma coincidência misteriosa e, segundo a estrita
interpretação da teoria, não pode ser explicado pela hipótese
de que ambos são medidas da mesma propriedade de uma
determinada coisa.
Segue-se também que qualquer montagem de equipamento ao
acaso e sequência aleatória de operações define um conceito
empírico.
(iii) A teoria de Eddington: os factos últimos são sequências
de números produzidos por simples observações de palpites
coincidentes. Com base nisto, o observador forma um quadro
mental do mundo. A teoria fundamenta-se na pretensa
analogia entre, por um lado, os impulsos nervosos e a sua

203
transformação em percepção pelo cérebro e, por outro, a
observação de coincidências e a sua transformação em dados
pelo físico.
Exame da teoria de Eddington: a analogia falha, porque o
cérebro não faz inferências sobre o mundo, a partir de
impulsos nervosos, nem as pessoas inferem o mundo a
partir das suas sensações.Torna-se mais necessária uma
teoria sobre a percepção dos instrumentos do que uma teoria
instrumental da percepção.
3. As hipóteses enquanto ficções
Os enunciados teóricos não são redutíveis a enunciados
descritivos de observações, sendo o seu papel apenas o de
conferir ordem e sistematização aos enunciados sobre
observações, e os conceitos neles empregues são semelhantes
aos usados em obras de ficção.
(a)Os conceitos exclusivamente utilizados na teoria servem-se
da mesma gramática dos conceitos empregues para descrever
observações, mas não se referem a coisas e a processos
reais.
(b) As ficções terão de ter determinado grau de
plausibilidade e adquirem-na ao serem arquitectadas à
semelhança das coisas reais.
(e) É impróprio exigir que as hipóteses teóricas sejam
verdadeiras.
(d) Não existe conflito genuíno entre diversas teorias
diferentes para explicação dos mesmos factos, por exemplo,
entre as várias teorias astronómicas do século XVI ou entre
as concepções da complementaridade de ondas e de
partículas, adequadas a diferentes situações em física
subatómicas – consulte-se N. Ursus, Fundamentum
Astronomium, N. Born, etc.
(e) Em termos rigorosos, são falsos todos os enunciados, das
obras de ficção, segundo se argumentam. No século XVI,
isto conduziu ao ponto de vista de que a forma lógica

204
de uma teoria científica é o silogismo de premissas
falsas, mas de conclusão verdadeira.
Exame do ponto de vista ficcionalista:
(a) O método geral da ciência é a descoberta das causas
através do exame dos seus efeitos. A aplicação do
ficcionalismo à astronomia conduzirá a um
ficcionalismo generalizado.
(b) A teoria mais ampla e conveniente terá direito a
considerar-se representativa da realidade, a não ser
que se demonstre de modo positivo que assim não é.
(c) Há leis físicas causais que, a partir daquilo que a
teoria reclama ser o caso, conduzem aos fenómenos,
ao passo que o falso silogismo tem uma conexão
interna apenas formal.
4. Cepticismo quanto às hipóteses
O absurdo de afirmar-se que nenhum enunciado teórico
pode, de facto, referir-se e descrever coisas e processos
reais é mitigado admitindo que os enunciados teóricos não
são verificáveis, mas defendendo o realismo putativo das
teorias. Esta posição foi adoptada por Osiander no seu
apologético prefácio do De Revolutionibus de Copérnico.
(a) O ressurgimento da teoria de Gassendi, sob a
designação de «instrumentalismo», conduziu ao ponto
de vista de que as teorias devem ser julgadas
segundo a respectiva eficácia como instrumentos de
inferência dos enunciados.
(b) O céptico e o ficcionalista atribuem à ciência a
mesma condição, dado não fazer sentido perguntar
qual é a verdadeira imagem do mundo.
5.Os exemplos comparados com as teorias filosóficas
(a) A teoria sobre a força mecânica parece encaixar-se
bem na teoria fenomenista, visto «força» poder ser
encarada como segnificando apenas «aceleração da
massa».

205
(b) Dir-se-á que a óptica geométrica se adapta à posição
ficcionalista, pois o raio luminoso parece não passar de
uma ficção, enquanto o conceito de «calor» se adapta, por
ventura, ao ponto de vista céptico, pois, mesmo no seu
actual disfarce de energia, será tão difícil negar-lhe a
possibilidade de existência, como conceber a maneria de
prová-la.
6. Realismo
O caso dos vírus dir-se-á sugerir que, por vezes, os
enunciados teóricos se referem, de facto, às coisas reais,
coisas cuja existência acaba por ser demonstrada.
(a) A teoria realista da ciência distingue «referência» -
pela qual as palavras se referem às coisas, na
presença destas. A primeira sugere hipóteses de
existência e a segunda constitui prova de existência.
(b) Três princípios realistas.
(i) Alguns termos teóricos referem-se a entidades
hipotéticas.
(ii) Algumas entidades hipotéticas são candidatas à
existência.
(iii) Algumas candidatas à existência existem de facto.
Podem ilustrarem-se tais princípios por meio das teorias
sobre a doença surgidas desde 1600 até ao presente.
7. Nenhum conceito permanece fixo num estatuto
epistemológico definido.
(a) É possível verificar-se a sua passagem de ficção para
existência putativa, pelo facto de se alterar o clima
metafísico geral.
(b) Pode ocorrer também a mudança de mero candidato à
existência quer para a coisa real (os vírus), quer para a
ficção (os poros de septo cardíaco).
8. A determinação de problemas existenciais depende, em
parte, dos instrumentos.
(a) Podem empregar-se instrumentos de amplificação dos
sentidos para provar a existência de entidades hipotéticas.

206
(b) Os instrumentos de detecção são capazes de provar
existências, dentro do quadro de uma teoria . A reserva
que aqui se põe tem a ver com aquilo que se diz existir, não
negando que algo existe – por exemplo, o electroscópio como
detector de um campo eléctrico.
9. O realismo e o fenomenismo representam os pólos da
epistemologia da ciência.
O realismo parece aplicável à ciências como a anatomia, a
fisiologia e a química, enquanto, no seu âmbito mais
fundamemental, a física dir-se-á a ciência arquetípica
positivista e fenomenista. Isto porque, na fronteira do
conhecimento, os fenómenos constituem os limites do
concebível.

CAPÍTULO IV
TEORIAS METAFÍSICAS

A metafísica é o estudo das categorias mais


gerais segundo as quais se processa o
pensamento. Houve diversos sistemas
metafísicos importantes, isto é, sistemas de
conceitos exprimindo essas categorias, que
desempenharam funções na organização do
conhecimento científico. Ficaremos a
compreendê-los melhor à medida que, atrávez
de diversos estádios, nos forem surgindo
gradualmente os pormenores das respectivas
estruturas.
Evitaremos questões quanto à origem das
categorias e quanto ao modo concreto como elas
207
se inserem no pensamento, ou seja, não
debateremos o problema da origem e do
desenvolvimento dos conceitos.
As categorias mais gerais intervêm de diversas
maneiras no pensamento, e nelas se incluindo a
maneira como efectumos a percepção do mundo,
o modo como se organiza a linguagem e como se
procede à escolha das alternativas linguísticas
com as quais se descreve e teoriza aquilo que é
percebido.
As categorias sobre as quais nos de bruçaremos
são a de substância, a de qualidade e a de
relação. De certo modo, as categorias
constituem o reflexo dos tipos de perguntas que
se formulam acerca da Natureza. A categoria
de substância, diz respeito às «coisas» e
reflecte questões por ventura suscitadas pelos
objectos materiais e pelas coisas individuais, isto
é, problemas tais como o que é e que coisa é ou
ainda como poderá dizer-se, a categoria de
substância ocupa-se da classificação e da
identificação das coisas – eis o Koh-in-noor,
uma coisa individual, que é um diamante, uma
forma da substância a que se dá o nome de
carbono.
Ao aplicarmos tais categorias, quer na sua
forma geral quer específica, isso permite-nos

208
ordenar o mundo percebido, mundo muito
complexo tanto na estrutura como no
comportamento. Será fundamental a enorme
variedade das coisas ou estas são na realidade,
variedades de uma matéria básica? Serão
colonias de individuos as coisas singulares que
identificamos no mundo vulgar e prosseguirá
indefinidamente este processo de subdivisão
ordenada? Ou tratar-se-á de individuos
últimos, indivisiveis mas não infinitesimais, de
átomos? Serão as qualidades que as coisas
exibem à nossa percepção as suas qualidades
reais? Será destituida de sentido a ideia de
qualidade não percebida?
Semelhantes perguntas não obtêm respostas
satisfatórias através da pesquisa exaustiva do
mundo; trata-se de problemas metafísicos e
referem-se aos conceitos a utilizar nas
tentativas de compreensão das coisas e dos
processos.
Considerando a questão da existência de
indivíduos últimos ou átomos que resistam a
deomposição por meio de todos os métodos
analíticos. Suponhamos que se esgotaram já
todos os métodos de análise conhecidos e que
os resultados do seu emprego forneceram uma
classe de indivíduos que se opõe a todos os

209
esforços de análise subsequentes. Para se ter a
certeza de tratar-se de átomos, haveria
necessidade de saber com segurança que
nenhuns outros meios de análise mais potentes
seriam descobertos. Mas como saber tal coisa?
Utilizar o conceito de átomo relativamente a
entidades que resistem à análise representa um
comprometimento execessivo com o que é
possível estabelecer como matéria de facto; um
comprometimento com uma determinada posição
metafísica, ou seja, a opção por um conceito e
por um sistema de conceitos que a acompanham
para com eles lidarem ante o mundo. Não se
trata de concordar com uma hipótese acerca de
uma possível descoberta. Quando assumimos
uma posição metafísica atomista, a análise dos
átomos por outra pessoa não constitui o refutar
da nossa posição; conduz-nos simplesmente a
fazer nova identificação daquilo que poderá ser
atómico.
É meu desejo apresentar o tema da metafísica
da ciência observando algumas opções
específicas de entre conceitos possíveis capazes
de operar sob as diversas categorias, antes de
debater os grandes sistemas articulados que
até agora imperaram na ciência. Dentro da

210
categoria de substância, temos os conceitos de
um «material» e o de um «indivíduo».
Material
É obvio que muitos materiais comuns são
descontínuos, Isto é, constituídos por grânulos.
Embora, quando misturados com água, a areia e
o cimento se aglomerem para formar betão, a
areia mantém a sua natureza granular. A água
dir-se-á que é um material contínuo, pois,
conquanto possa dividir-se em gotas, estas
parecem, ainda assim, contínuas e coalescem em
vez de se aglomerarem, formando aquilo que se
vê como material contínuo.
Qual o estado último – a continuidade material
que a água parece exibir, ou a descontinuidade
material da areia?
A maneira como se decide em casos como estes
não tem nada a ver com a experiência; decisões
como estas transcendem a experimentação.
Representam actos de aderência a sistemas
metafísicos. Podem adiantar-se argumentos a
favor ou contra as escolhas específicas feitas
entre as diversas alternativas possíveis. A
incoerência de uma opção pela descontinuidade
última, assentará, por ventura, sobre
argumentos como: sendo descontínua a matéria
última, deveremos chegar a grânulos finai que

211
não sejam eles próprios aglomerados de
grânulos. Por conseguinte, dentro dos seus
limites, a matéria terá de ser contínua e assim,
em última análise o material será forçosamente
contínuo.
São nos também familiares as técnicas por
meio das quais diversos materiais se nos
patenteiam sob diferentes formas de um só
constituinte básico: gelo, água e vapor; carvão,
diamante e grafite, que representam exemplos
bastante comuns. Dar-se-á o caso de toda a
diversidade do material não passar da alotropia
de uma única substância básica? Como
solucionar tal questão?
Identificam-se aqui dois problemas diferentes.
O do entendimento do conceito filosófico de
substância, a que todas as propriedades são
atribuídas. Este conceito desenvolve-se no
pensamento da seguinte maneira: consideremos
uma bola de ténis; quer a brancura, quer a
forma esférica são atributos do objecto de
borracha. E o que dizer da sua natureza de
borracha? A que pertence esse atributo?
Poderá argumentar-se que existe uma
substância básica geral, uma matéria
primordial, a que correspondem todos os
atributos, tais como brancura e esfericidade

212
correspondem à borracha e ao algodão de que a
bola é feita. Um tal argumento levar-nos-ia a
pensar que a diversidade de substância, tão
nossa conhecida, resultasse da diversificação de
uma única substância última.
Também nas ciências se observa um género
diferente de progressão rumo a uma teoria
unificadora das substâncias. A sua diversidade
torna-se mais clara quando se considera tal
característica como resultante de diferenças de
estrutura existentes num reduzido número de
substâncias básicas. A doutrina dos elementos,
em química, dá disso exemplo.
A diversidade dos materiais explica-se através
da teoria de que cada um deles se compõe de
moléculas, as quais são combinações diferentes
de átomos de um número mais pequeno de
materiais básicos. Assim, o gás metano é uma
substância cujas moléculas, ou partes mais
ínfimas, são formadas pela combinação de
quatro átomos de hidrogénio com um átomo de
carbono, enquanto o octano é uma substância
cujas moléculas são constituídas pela
combinação de dezoito átomos de hidrogénio e
oito átomos de carbono.
Existem milhares de hidrocarbonetos
diferentes, cuja diversidade é possível explicar,

213
como devendo-se quer as diferentes proporções
dos átomos de hidrogénio e de carbono em
combinação nas respectivas moléculas, quer às
diferenças de arranjo, no espaço, dos átomos
constituintes. Deste modo, a multiplicidade de
milhares de substâncias transforma-se na
multiplicidade de outros milhares de
combinações de dois materiais apenas.
De maneira semelhante, os físicos justificam a
diversidade de centenas de elementos químicos,
como provenientes, não da multiplicidade de
substâncias, mas sim do facto de haver uma
centena de arranjos diferentes de uma
diversidade de três únicos materiais básicos:
protões, neutrões e electrões.
Talvez encorajados pelo argumento filosófico da
unidade da matéria e quase que por instinto, os
cientistas procuram transferir a diversidade
das substâncias para a diversidade de estrutura
de uma menor quantidade de substâncias.
Esperarão, por ventura, reduzir, ao fim e ao
cabo, toda a diversidade à diversidade
estrutural de combinações de um único tipo de
matéria última.
A EXPERIÊNCIA COMUM, dir-se-á oferecer-
nos de modo natural uma diferença profunda e
aparentemente irredutível entre espaço e

214
matéria. Parece evidente a existência de
espaços vazios entre pedaços de matéria,
espaços nos quais a presença desta se não
verifica. Depressa ficamos a saber, porém, que
o ar preenche os espaços entre paredes e os
intervalos entre objectos sólidos. Que escolha
fazer para concretizar ideias sobre as
entidades últimas? Será o ar um conjunto de
partículas com espaços vazios entre elas?
Haverá espaço vazio entre as estrelas? Ou será
o mudo um espaço pleno, cheio de substância,
dando-se o caso de parte dele ser constituído
por matéria leve que quase não ofereça
resistência ao movimento das suas partes mais
pesadas?
A despeito de parecer óbvia a existência do
espaço dentro do qual as coisas dir-se-ão
existir, grande parte da história intelectual da
humanidade decorreu na convicção do espaço
pleno. Segundo tal teoria, o mundo está cheio
de matéria. <<A natureza tem horror ao
vácuo>> é um lema com um longo passado de
assentimento. Os argumentos em favor do
espaço pleno vão desde a controvérsia de
Descartes, que afirmava que se nada existe, de
facto, entre as paredes de um recipiente, elas
terão de estar em contacto, até a sofisticada

215
<<urdidura espacial>> da teoria einsteiniana da
gravidade.
Os argumentos em favor do vácuo, do espaço
vazio, assumem duas formas distintas: Numa
delas, o conceito de vácuo desenvolve-se como
conceito empírico explicativo do movimento
aparentemente sem impedimento dos corpos
celestes. Tal teoria porém debate-se com
certas dificuldades. Estas surgem com as
tentativas de explicar a acção exercida pelos
corpos sobre outros corpos à distância, em
particular a acção da gravidade e a das forças
eléctricas e magnéticas. Estas parecem poder
agir através do vácuo, de actuar à distância.
Isto constitui profunda violação dos modelos de
movimento que a experiência comum nos
proporciona, pois só por contacto poderemos
agir sobre as coisas. Haverá dois tipos de
acção, por contacto e à distância? Nos últimos
trezentos anos, fizeram-se todos os esforços
possíveis para eliminar a acção à distância como
modo de acção fundamental. O conceito de
«campo» é o mais profundo jamais encomtrado
para lidar com o problema.
Uma outra corrente intelectual afasta-se do
vácuo para apoiar o espaço pleno. É objectivo
da ciência procurar a unidade do mundo, a

216
conexão de todas as coisas com todas as
coisas, acreditando que a acção prolifera no
Universo. De alguma forma o mundo terá que
ser concebido como uno. As forças que actuam
de umas para as outras coisas agem sobre tudo
quanto existe. Os poderes de todos os corpos
são, de certo modo, universais. Coisa alguma
pode existir no isolamento total.
Veremos este conceito de «unidade do mundo»
surgir sob diferentes formas. Acaso
descobrimos que o mundo é uma unidade? Não;
trata-se de uma forma que impomos ao
conhecimento do universo.
INDIVÍDUOS
Considerada a natureza da experiência vulgar,
não é de surpreender que o conceito de
indivíduo desempenhe papel tão subtil no
pensamento e na percepção como o conceito de
(substância) material. Os indivíduos ou entes
singulares podem ter nome, podem, por vezes,
ser mostrados, referidos por meio de palavras
ou caracterizados pela descrição.
Pode haver três possíveis e mais importantes
tipos de indivíduos, três subespécies da
categoria metafísica de indivíduo. Como
paradigmas destes três tipos citarei os casos
do diamante, do ser humano e do relâmpago.

217
Qualquer destas três entidades é um indivíduo.
É-nos possível assinala-las, referimo-nos a elas
verbalmente e existem no espaço e no tempo
sem que ocupem todo o universo. E, mais
importante que tudo, cada uma delas é tal que,
onde quer que esteja, nenhum outro indivíduo da
mesma espécie pode estar.
Citaremos um princípio geral que rege o conceito
de individuação: dois indivíduos da mesma
espécie não podem estar no mesmo lugar ao
mesmo tempo. Será isto um facto? Alguém o
descobriu à muito? Não. Se dois indivíduos
estivessem ao mesmo tempo no mesmo lugar,
são necessariamente de espécie diferente. A
dor está onde está o alfinete e, por
consequência, a dor tem de ser um indivíduo de
espécie diferente do alfinete.
De preferência a exprimirem factos, estas
observações ilustram a maneira como se deve
usar o conceito de indivíduo. O diamante, o ser
humano e o relâmpago são, pois, cada um de
sua espécie, indivíduos. Mas o diamante
perdurará para sempre se não sofrer
interferências, o ser humano tem princípio e
fim, embora viva um certo período de tempo,
ao passo que o relâmpago é uma ocorrência

218
momentânea e efémera - acontece, para logo
desaparecer.
A estes três exemplos darei o nome de
indivíduo parmenidiano, aristotélico e
heraclitiano, respectivamente.

OS INDIVÍDUOS PARMENIDIANOS

Segundo parece, Parménides, um filósofo grego,


sutentou que o mundo autêntico era permanente
e inalterável, que era impossível a verdadeira
mudança, que nada podia perecer ou vir a ser
realmente. A geração e a corrupção, todas as
modificações de que nos apercebemos eram, na
verdade, apenas ilusões e meras aparências.
Num mundo inalterável, como será possível a
própria ilusão de mudança?
Uma maneira de tornar possível a mudança
seria se todos os indivíduos existentes no mundo
fossem entidades parmenidianas, imutáveis, mas
capazes de intervir em multíplas combinações
para formar e reformar diferentes estruturas.
Deste modo, os átomos seriam pamenidianos em
estruturas temporárias o que conduziria à
aparência de mudança.
As coisas vulgares existentes no mundo que
surgem e que são certamente perecíveis teriam

219
de ser, de acordo com este ponto de vista,
aglomerações temporárias de átomos
parmenidianos. Tal ideia fez eco na filosofia
corpuscular do século XVII e ocupar-nos-emos
dela mais adiante.

OS INDIVÍDUOS HERACLITIANOS

Atribui-se a Heraclito, contemporâneo de


Parménides, o aforismo que diz ser impossível
tomar banho duas vezes no mesmo rio;
impressionou, como é óbvio, a natureza
transitória e a mutabilidade das coisas. Embora
poucos pormenores se conheçam sobre as suas
ideias, usar-lhe-emos o nome para qualificar
indivíduos verdadeiramente efémeros, as coisas
destituídas de durabilidade, que existem apenas
uma vez, num só instante. Mas mesmo o
relâmpago não constitui o perfeito paradigma de
indivíduo heraclitiano porque dura um certo
tempo, embora muitissímo curto. O verdadeiro
indivíduo deste modelo seria representado quer
pelo início quer pelo fim do relâmpago.
Tavez que a semipermanência das coisas seja
apenas aparente, devendo-se à sequência de
múltiplos sucessos muito semelhantes. Falamos
já de uma teoria bastante famosa, a do

220
fenomenismo, que parece implicar um conceito
de individuação não diferente do da teoria
heraclitiana. Recordemos que segundo o
fenomenismo, os elementos básicos da
experiência são as sensações momentâneas,
cujas regularidades estatísticas é suposta
função da ciência descobrir. A sensação
momentânea constitui uma aproximação do
indivíduo heraclitiano, visto também durar um
ínfimo intervalo de tempo.
Alguns filósofos procuram reconstruir o
mundo vulgar a partir das sensações
momentâneas, pressupondo que as coisas
semipermanentes da experiência comum
constituem agregados de sensações possíveis e
concretas. Os elementos básicos da sensação –
clarões coloridos ou sensações de tacto, por
exemplo – são por eles denominados «dados dos
sentidos» para assim sublinhar o alegado papel
fundamental no conhecimento. Não restam
dúvidas de que a concepção heraclitiana se
tornou bastante popular.

OS INDIVÍDUOS ARISTOTÉLICOS

Aristóteles referiu-se com frequências às


coisas como dotadas de potencialidades de

221
mudança. Insistiu em que eram capazes de
transformar-se em outras coisas diferentes do
que eram. Supôs que a geração e a corrupção
eram verdadeiros processos básicos ocorridos
no mundo responsáveis pela criação e pela
destruição das entidades de que o mundo se
compõe.
De facto, a maioria das plantas nasce todos os
anos na Primavera e no Verão, morrendo
durante o Outuno ou no Inverno.
Identicamente, - embora com maior duração -,
também com os seres humanos e com os animais
se verifica um processo semelhante, o mesmo
se podendo dizer de tudo aquilo que
reconhecemos como entidades singulares ou
indivíduos, se os considerarmos em relação a
períodos de tempo suficientemente longos.
Nesse caso, de que dependerá a permanência
do mundo? Para um aristotélico, depende da
matéria indistrutível que transita de indivíduo
para indivíduo.
Uma consequência desta ideia é o refinamento
e a mudança da noção de indivíduo. A
individualidade pode manter-se mesmo na
mudança, mas não em todas elas. O indivíduo
aristotélico não precisa de ser estático para
conservar o mesmo indivíduo. O homem em plena

222
maturidade já foi criança e tornar-se-á senil,
continuando a ser, porém, o mesmo homem.
Antes de ser concebido, não existia como ele
próprio, existindo, contudo, os átomos de que é
constituído, que persistirão mesmo em outros
homens. Todos os seres humanos têm boas
hipóteses de incorporar em si um ou dois
átomos outrora pertencentes ao corpo de Júlio
César.
Parece não haver qualquer especificação geral
dos limites da mudança do indivíduo. Por vezes,
aquilo que conta para ajuizar do facto da
persistência do indivíduo é a nossa posse
continuada de certo conjuto de qualidades
essenciais; uma espada e uma relha de arado
constituem dois indivíduos diferentes, embora
um pudesse ter sido feito de outro, isto é,
sejam feitos do mesmo metal. Outros géneros
de indivíduos, tal como o homem, por exemplo,
dir-se-ão depender da continuidade corporal no
tempo e no espaço e exibem grandes alterações
nas qualidades exteriores, conquanto
permaneçam os mesmos indivíduos.
Por vezes, como ideal, a ciência buscou o
conceito parmenidiano de indivíduo, outras vezes
o heraclitiano. No entanto, seja qual for o que
sirva de modelo de entidade básica individual

223
existente no mundo, na nossa ideia dos
indivíduos que o formam terá de incorporar-se
um ou outro elemento de cada um dos referidos
modelos, visto que as coisas reais existentes,
quer sejam diamantes ou relâmpagos, são
efectivamente indivíduos aristotélicos.
O atomismo é a resposta parmenidiana e o
Fenómenismo a réplica dos heraclitianos à
exigência de uma especificação quanto ao
indivíduo básico e último. A aderência sincera à
ideia aristotélica como especificação do
conceito fundamental de indivíduo talvez consiga
debelar o estado de tensão criado entre as
duas visões extremas da natureza individual.
Talvez que as coisas existentes no mundo
surjam e desapareçam realmente, mas talvez
que também durem certo tempo entre um e
outro acontecimento e talvez ainda que o
carácter permanente derive do facto de nem
todas essas coisas serem criadas e morrerem
em conjunto.
B) QUALIDADES
As substâncias e as entidades individuais
manifestam-se à nossa experiência como
dotadas de certas qualidades – a neve é branca
e fria, Mao é alto e poético, Koh-i-noor brilha
e é valioso.

224
Dependemos das qualidades quer para
identificar uma substância quer para distinguir
um indivíduo. A posse de determinadas
qualidades é essencial à natureza de uma coisa
e determina o género de coisa que ela é.
As coisas, todavia, também possuem
qualidades que não são essenciais, isto é, que
poderão ser outras sem com que isso sejamos
forçados a dizer que se trata de um género
diferente de coisa. Quando se classificam os
animais ou as plantas, incluindo-as em espécies,
em géneros, etc., etc., as diferenças nas
qualidades ds espécimes servem para distinguir
as espécies umas das outras, constituindo as
qualidades essenciais para a definição da
espécie.
O pensamento científico foi dominado por três
principais teorias sobre qualidades:
No sistema aristotélico, consideraram-se as
qualidades como actualizações de formas na
matéria. O modelo de tal teoria será, talvez, o
do canteiro talhando em esfera um bloco de
pedra, do qual, gradualmente, vai retirando
lascas e que vai polindo de modo a libertá-lo do
material desnecessário. A forma esférica,
contida em potência na pedra, concretiza-se
lentamente.

225
Mas já não é tão fácil descobrir o êxito da
citada teoria quando aplicada, por exemplo, à
cor ou ao calor. Segundo a teoria, uma coisa
que se torna quente é também encarada como
actualização gradual do calor na matéria da
referida coisa. Uma coisa é fria quando a
forma de calor está pouco concretizada.
Todas as possíveis qualidades das coisas
foram tratadas segundo a mesma orientação,
estando as mudanças e a aquisição de
qualidades de acordo com o modelo do artista e
do artesão impondo formas à matéria.
Semelhante quadro não nos é familiar nos
tempos presentes, mas imperou na ciência
desde a Antiguidade até ao século XVI.
O aparecimento da ciência moderna está
intimamente associado ao desenvolvimento de
uma outra teoria, também conhecida na
Antiguidade. Trata-se da teoria das qualidades
primárias e secundárias. Assume diversas formas
e procurarei fornecer algo como um denominador
comum das várias teorias.
Sustenta esta teoria que muitas das
qualidades que supomos possuírem em si as
coisas e as substâncias não são de forma
alguma como as percebemos. A sensação de
calor, a experiência da qualidade do calor de

226
um corpo é bastante diferente da qualidade que
esse corpo tem quando o sentimos quente. A
verdadeira qualidade é o suave movimento das
suas componentes. Mas não sentimos o
movimento e sim o calor. Esta é uma qualidade
secundária porque o calor numa coisa é, na
realidade, movimento, ao passo que o calor tal
como o experimentamos o não é.
Determinadas qualidades, porém, são por nós
percebidas na coisa que as possui tal como na
verdade são. Descontando algumas destorções
devidas ao ângulo de visão, permanece como
verdade que, de acordo com a referida teoria,
as formas são percebidas como formas, os
movimentos percebidos são movimentos reais
das coisas e o número de coisas percebidas é,
de facto, o número das coisas existentes. As
qualidades relativas às coisas em que isto é
verdadeiro são as qualidades primárias.
A teoria completa-se pelo princípio de que as
qualidades primárias são as qualidades
essenciais de tudo quanto existe, as qualidades
reais das coisas, de modo que, se acaso
perguntarmos o que é realmente o calor, se
quisermos saber qual a sua «essência e
quididade», a teoria dir-nos-á que é o
movimento. Em resumo: as qualidades

227
secundárias são, efectivamente, as qualidades
primárias de uma coisa, apenas com a diferença
de que as qualidades secundárias se manifestam
à percepção de um modo diferente daquilo que
na verdade são.
Existe ainda uma teoria das qualidades, que
Locke, o defensor da distinção entre qualidades
primárias e secindárias, deixa entrever.
Consiste na ideia de que as qualidades que uma
coisa ou uma substância manifestam são
resultado da sua potencialidade.
Uma coisa é um agente que actua sobre outras
coisas, nelas originando modificações, e fá-lo
por virtude das respectivas potencialidades,
cujo conjunto constitui a sua natureza
essencial. Quando uma coisa actua sobre um
organismo, exibe-se-lhe como dotada de
qualidades, isto é, o organismo vê-a como
vermelha, por exemplo, ou sente-a áspera. Uma
coisa é branca porque tem o poder de reflectir
toda a luz que sobre ela incide e, quando uma
coisa deste género é vista por um organismo
sensível à luz, é vista como sendo branca.
Afirma-se que é branca, porém, isso é dizer
que ela possui o poder de reflectir a luz e não
que tem em si uma certa qualidade de

228
brancura. E sabemos que tem essa
potencialidade porque se mostra branca.
Lentamente a maré das descobertas
científicas foi subindo em direcção a esta
última teoria. Parece-nos agora tão claro que,
muito mais do que oposições de qualidades ou
formas actualizadas, as coisas e as substâncias
sejam receptáculos e portadoras de poderes, o
que leva a encararmos as duas teorias opostas
como irrazoáveis. Porventura, somente através da
tentativa de penetrar na visão aristotélica ou
corpuscular do mundo consigamos reaver o
estado o estado de espírito em que façam
sentido quer a teoria das formas, quer a das
experiências sensoriais das qualidades.
Mais adiante, veremos com algum pormenor a
maneira como uma destas teorias das qualidades, a
teoria das qualidades primárias e secundárias,
determinou um sistema descritivo e explicativo
que sobreviveu na ciência até ao século XX, ao
passo que a filosofia atomista e corpuscular não
vingou.
Em que medida a ciência será entravada pela
entrega a formas ideias que pertencem a
maneiras de pensar antiquadas? É difícil dizê-
lo, generalizando. Os aristotélicos descobriram
coisas de valor permanente e grande parte

229
daquilo que os cientistas aprenderam nos bancos
da escola é um resumo das descobertas
corpusculares. Nem a filosofia aristotélica nem
a corpuscular estão inteiramente erradas. As
ciências biológicas continuam a orientar-se pela
ideia de desenvolvimento rumo à concretização
de um plano apenas latente ou potencial no
início da vida de um organismo; grande parte da
física e da química elementar explica-se pela
combinação e recombinação de corpúsculos, isto
é, de pequenas partículas.
A visão aristotélica do mundo mostra-se
deformada quando procura fornecer a
explicação das substâncias e das coisas
inorgânicas. A filosofia corpuscular oferece-nos
um mau quadro das entidades últimas. Mas,
muito embora ums seja limitada e a outra
superficial, ambas representam poderosas
ferramentas conceptuais e valiosas especificações
da categoria de qualidade.

C) RELACÃO
No mundo, existe mais do que uma coisa
individual e mais do que uma substância
material. Na teoria do espaço e do tempo, este
facto está intimamente ligado à maneira como
individuamos as entidades singulares específicas,
ao apontá-las. Se acaso há dois indivíduos e se
230
existem ao mesmo tempo, então torna-se
possíveis dois actos de indicação, um para cada
um deles. Esta possibilidade tem origem no
facto de os dois indivíduos se acharem
separados no espaço, de modo que se podem
indicar dois lugares simultaneamente.
Já o mesmo não se passa com as substâncias
materiais. Em teoria, um indivíduo, pode ser
apenas um ponto; dois indivíduos serão dois
pontos e, portanto, suceptíveis de serem
indicados separadamente. Para existir, uma
entidade individual não precisa de ocupar
volume, de preencher espaço; tem apenas de
estar num lugar.
Uma substância, porém, é diferente. Não pode
ser apenas um ponto. Ocupa volume, preenche
espaço. E duas ou mais substâncias existirão,
porventura, no mesmo volume, pelo menos até
onde nos conduz a experiência comum. O sal,
por exemplo, pode achar-se dissolvido na água.
Neste caso, sal e água estão no mesmo volume,
no mesmo espaço.
Contudo, os conceitos de espaço, de coisa e
de lugar encontram-se tão entrelançados e o
nosso sistema de conceitos afasta-se de tal
maneira da experiência comum que nos é
impossível acreditar que duas substâncias

231
estejam, de facto, no mesmo lugar ao mesmo
tempo.
Por isso, torna-se necessário explicar como é
possível ao sal e à água ocuparem o mesmo
lugar; a explicação consiste em dizer que são
formados por partículas. Assim, partimos do
princípio de que os referidos materiais são
feitos de corpúsculos entremeados de hiatos,
sendo deste modo viável que, o conjunto de
partículas de uma das substâncias preencha os
espaços vazios existentes entre as partículas da
outra. Não reconhecemos a verdadeira
interpenetração da matéria.
No entanto, o nosso sistema de conceitos não
é o único que jamais existiu. Não é difícil
imaginar-se um sistema em que se verifique tal
interpenetração. Esta foi reconhecida por
Lamarck, que, além de notável biólogo, foi
também um químico distinto, mas que
considerava a modificação química não como o
rearranjo dos átomos no espaço, e sim como a
gradual interpenetração das substâncias umas
pelas outras.
Na nossa maneira de pensar subsiste ainda
algo da concepção lamarckiana das substâncias.
Dois campos magnéticos não se excluem um ao
outro; reúnem-se, formando um campo

232
unificado, cuja energia é a soma vectorial das
energias dos campos originais em cada um dos
pontos. Mas os campos interpenetram-se
genuinamente, constituindo um campo magnético
único. Dentro do produto final, é impossível
encontrar-se uma separação identificável.
A totalidade de identificações possíveis de
coisas que possam existir contemporaneamente
origina o espaço. Este é o conjunto total de
lugares onde as coisas podem estar ao mesmo
tempo. E, se pensarmos que a coisa mais ínfima
é constituída por um simples ponto, então o
espaço é a totalidade dos pontos.
Avançando mais um ponto no curso do
pensamento, temos o espaço como um sistema de
relações.Se quisermos saber como se origina o
sistema de lugares onde as coisas podem estar,
principiemos com uma relação muito simples,
nomeadamente a de «intermediaridade». Se há
três coisas, é possível despô-las no espaço de
modo que C fique entre A e B. Esta disposição
é diferente daquela em que A fica entre B e C.
As três coisas podem ser indicadas tripla e
simultaneamente, constituindo três pontos
ligados pela relação de «intermediaridade».
Prosseguindo de maneira semelhante, podem
dispor-se num sistema de pontos todos os

233
possíveis lugares indicáveis, os quais poderão
ser considerados e estudados abstractamente a
partir das coisas especificas que neles ocupam
os lugares. Este sistema de pontos, ligados por
relações tais como a intermediaridade, constitui
o espaço.
Tal como os conceitos de «substância
material» e de «indivíduo» se entrelaçam com o
conceito de «espaço», também o mesmo sucede
aos acontecimentos com o tempo. Os
acontecimentos, os processos, as mudanças, a
criação e o declínio não se limitam a acontecer,
tendo também duração. Que quer isto dizer? É
possível que dois acontecimentos diferentes
ocorram simultaneamente no mesmo lugar? Sim,
mas apenas se forem de espécies diferentes.
Uma torrada, por exemplo, pode tornar-se ao
mesmo tempo negra e quente. Mas o que não
pode suceder ao mesmo tempo é que ela fique
tanto queimada como tostada de modo
conveniente. Também uma banana não pode ser
madura e verde ao mesmo tempo. Assim sendo,
se for verdade que determinada banana é verde
e madura, tais factos serão verdadeiros
relativamente a esse fruto, mas em tempos
diferentes.

234
Com efeito, é concebivel o tempo como o
conjunto de modificações ocorridas em todas as
coisas existentes no mundo quando se exluem
umas às outras. Dizer que um acontecimento
ocorre no tempo é apenas dizer que se operou
uma mudança numa coisa ou numa substância de
um estado para outro e que este exclui o
primeiro. A totalidade dessas mudanças é o
tempo.
Mas o tempo é também um sistema de
momentos organizados. Ignorando complicações
resultantes da dificuldade em saber-se o que
acontece em outros lugares e em outros
tempos, de que se ocupa a teoria da
relatividade – uma teoria epistemológica -,
muito se pode fazer se se organizarem os
acontecimentos recorrendo a relações de
«antes» (e de «não antes» = depois) e de «ao
mesmo tempo». Quando dois sucessos
incompatíveis ocorrem em algo, então um deles
verifica-se antes ou depois do outro; não
podem ser simultâneos. Mas o que é «antes» e
que é «depois»? Em que é que se baseia o rumo
do tempo?
Trata-se de um tópico pleno de dificuldades
imensas. Certos autores procuram associar a
direcção do tempo a um grande processo

235
cósmico. Transformaram-no nums espécie de
facto que processa a partida no passado e a
meta no futuro, relativamente a uma parte do
próprio processo. Outros encaram como
material conceptual o caso de o início de um
processo ocorrer antes do seu meio e de o
respectivo fim se verificar depois do começo.
Consideram que tais especulações não
constituem factos de modo algum, mas sim
observações acerca da maneira como se
empregam os conceitos de «fim», de «início»,
de «antes», de «depois», etc., e de como eles
se associam uns aos outros.
Para aqueles que seguem esta linha de
pensamento, não só é tremendamente díficil
imaginar a viagem no tempo – por exemplo,
alguém vive no tempo presente «visistendo» um
acontecimento do passado – como também
impossível de modo lógico a ocorrência de
semelhante processo. Para um viajante no
tempo representa uma impossibilidade lógica
assistir um acontecimento do seu passado ou
que tenha ocorrido antes de ele nascer, visto
que a noção de que tal sucesso se verificou
deriva de admitir-se que isso constitui o
passado e reencontrá-lo será apenas

236
experimentar um acontecimento exactamente
igual, embora numericamente diferente.
Se um viajante no tempo deparasse com a
batalha de Hastings, pertencendo esta ao
passado relativamente ao seu nascimento e à
sua existência, não poderia encontrar a mesma
batalha de Hastings em que Harol foi ferido no
olho por uma seta e morreu. Mas se o referido
viajante pensar que se trata dessa batalha, é
porque se encarou com outra precisamente
igual. A individualidade de um acontecimento
consiste, em suma, em ter acontecido.
Mas deixemos este problema e vamos supor
que sabemos dizer quais os acontecimentos que
antecedem outros acontecimentos e que tal
ordem é imutável. Sendo este o caso, é possível
ordenarem-se todos os acontecimentos do
Universo relativamente uns aos outros e por
meio de relações de «ao mesmo tempo» e de
«antes» (ou «depois»), desde que se ignorarem
as dificuldades devidas ao facto de as
indicações através das quais tomamos
conhecimento de sucessos distantes que levaram
certo tempo a chegar até nós.
Se considerarmos de maneira abstracta os
acontecimentos da história do mundo,
enumerando sucessos de relevo, tais como, por

237
exemplo, os dias ou os anos, consiguiremos
idear um sistema de tempo, por meio do qual
ordenar outras ocorrências e que constituirá a
base de um vocabulário sistemático para a
identificação e o estabelecimento do momento
em que terá lugar determinado sucesso.
O tempo difere do espaço num ponto
essencial. Ao passo que existem lugares onde
nada há num dado tempo e actos de indicação
que não localizam coisas ou substâncias, em
resumo, ao passo que pode haver espaços vazios
de coisas ou de substâncias específicas, não
existe tempo vazio. Dado que o tempo consiste
apenas nos acontecimentos e visto que, em
certo sentido, mesmo que nada aconteça, a
mera existência do mundo é, por si própria, um
acontecimento, não é possível haver tempo
vazio.
Não se trata aqui de um facto idêntico ao de
o arsénio não poder constituir um regime
alimentar exclusivo ou ao de não ser possível a
existência da máquina de movimento perpéctuo;
trata-se, pelo contrário, de um facto lógico.
Resulta da natureza intrínseca de conceitos tais
como «tempo» e «acontecimento». É um facto
tal como o facto de não haver um número
inteiro entre 4 e 5.

238
Quando as substâncias e as coisas individuais
se consideram com referência ao espeço e os
acontecimentos e os processos com referência
ao tempo, as relações entre as coisas podem
exprimir-se pelas relações entre os respectivos
lgares, e as relações entre os acontecimentos
pela referência a processos-padrão, tal como o
é o caso do relógio, por exemplo. Por estes
meios, exprimen-se as estruturas.
Dizer que os átomos de hidrogénio se encontram
nos vértices de um tetraedro de que o átomo
de carbono constitui o centro é exprimir a
esturtura do metano, enunciando a existência
das relações espaciais dos seus átomos
constituintes. De modo semelhante, a datação
dos períodos geológicos – Carbonífero,
Pleistoceno, etc., etc. - exprime a estrutrua
do processo geológico. Muitos factos
importantes são factos que dizem respeito às
estruturas e o sistema espácio-temporal
habilita-nos a exprimir esses factos estruturais
em termos de um sistema de relações universal
e abstracto.
Esta matéria é muitíssimo ampla e limitei-me
a aflorá-la ligeiramente. Mas espero dito o
suficiente para demonstrar a importância de tal
tópico e a natureza indespensável das relações

239
espaço-tempo, quando se quer formar a ideia
de um mundo onde existe tão grande
multiplicidade de coisas, tamanha variedade de
substâncias e um fluxo sempre mutável de
sucessos.
As relações de espaço e de tempo não são
relações de conexão entre coisas e entre
acontecimentos. Uma corda estendida entre
duas árvores liga-as e, se pucharmos uma delas
para um dos lados, a existência da ligação
transfere o efeito para a outra árvore. Mas a
relação espacial existe entre lugares vazios e,
portanto, a mera existência de relações de
espaço não contribui para a ligar as coisas.
Quando relacionadas apenas pelo espaço, estas
são independentes e não produzem efeitos umas
sobre as outras.
Também não se acham em conexão os
acontecimentos relacionados apenas pelo tempo.
O acender de um rastillho e a consequente
explosão da carga, constituem sucessos
conexos, desde o processo por meio do qual o
ractlho arde a todo o cumprimento até à ignição
da carga explosiva.
Certas coisas, substâncias e acontecimentos
estão associados, ao passo que outros parecem
ser independentes; mostra-se, pelo menos,

240
suficientemente independentes uns dos outros
para que as mudanças neles ocorridas não
originem efeitos discerníveis em outras coisas.
Em última análise, será talvez verdade não ser
possível colher um narciso sem que se afecte
uma estrela, mas a perturbação ocorrida no
espaço não é assinalável. A garotada poderá
gritar insultos nas costas de um velho surdo
sem o perturbar minimamente.
Certos acontecimentos da existência vulgar
parecem destituídos de ligação; outros não. O
fluxo dos acontecimentos apresenta-se pleno de
consequências enigmáticas: premimos um botão
e a luz surge. Comemos uma maça verde e
seguir-se-lhe-á, por certo, uma dor de
estômago; reincide-se e ser-se-há castigado.
Abre-se uma brecha numa barragem e a água
escapa-se atravéz dela.
O que mais importa é o facto de algumas
conexões serem muito fortes. A água, por
exemplo, é insusceptível de ser empilhada e,
não existindo a parede do reservatório que a
contenha, ela continuará a descer pelo vale. Se
a luz não aparece quando se liga o interruptor é
porque o sistema tem qualquer defeito; se este
estiver em perfeitas condições, a luz surgirá
forçosamente. É possível que uma boa digestão

241
consiga fazer face à maçã verde, mas nenhum
aparelho digestivo humano está habilitado a
enfrentar um grama de estricnina.
Tais conexões são de natureza causal e pelo
facto de se verificarem entre acontecimentos e
estados e através de processos constituem
relações causais. Passarei ao debate geral
deste sistema de relações.
Duas teorias metafísicas de causalidade,
muito diferentes uma da outra, cresceram e
diminuíram no agrado do público. Ambas partem
do facto de algumas sequências de
acontecimentos serem reconhecidas como
sequências causais e outras como sequências
aleatórias ou acidentais. Qual o fundamento e
quais as consequências de semelhante distinção?
Quando se explica a existência de
determinado género de estado de uma qualquer
entidade individual ou quando se explica a
ocorrência de um acontecimento, faz-se
referência a um outro sucesso que se supõe
originar aquele em que se está interessado. Em
regra, inceta-se uma investigação causal apenas
quando algo de invulgar se passa;
habitualmente, não nos empenhamos em
conhecer as causas que digam respeito ao curso
normal das coisas.

242
Parte da função da ciência é empreender
esse passo, investigar as causas das coisas
triviais: porque motivo a Lua continua a girar
em volta da Terra com tamanha regularidade?
Porque melhoramos de uma constipação ao fim
de cerca de três dias? Porque é que as vacas
parem apenas bezerros (ou bezerras)?
Há toda a casta de razões práticas para
que, em geral, nos interessemos apenas pelas
causas daquilo que é fora do comum mas, no
que respeito à metafísica da causalidade do
normal e do aparentemente acidental. Freud foi
um grande cientista porque procurou quer as
causas de acontecimentos corriqueiros, tais
como lapsos de língua, quer as causas de
ocorrências tão pouco vulgares como os ataques
histéricos.
Não apenas a causa e o efeito formam uma
espécie de par, como também a causa é o
elemento do par que surge em primeiro lugar no
tempo ou, se acaso há causalidade entre os
processos objecto de estudo, o processo que
constitui a causa desenrola-se
contemporaneamente ao efeito e não depois
deste. A causa não pode verificar-se após o
respectivo efeito. Passar-se-á isso assim por
nunca se nos ter deparado como facto o

243
processo inverso? Não; o caso é que tal
sequência faz parte da metafísica da
causalidade, pois resulta da maneira como
arquitectámos o conceito de causalidade, que
nos serve de ferramenta intelectual para lidar
com os multíplos e complexos acontecimentos do
mundo.
As duas mais importantes teorias
metafísicas da causalidade retiram a sua
diferença do modo como consideram a
relação entre causa e efeito. Na Teoria
Generativa, parte-se do princípio de que a
causa tem o poder de gerar o efeito e de
que a ele se liga. Na Teoria da Sucessão,
a causa é apenas o que usualmente vem
antes do acontecimento ou do estado,
sucedendo que se lhe dá o nome de causa
por nos acharmos psicologicamente
inclinados a esperar esse tipo de efeito
após a causa.
A diferença existente entre estas duas
teorias é exprimível de outras maneiras: na
Teoria Generativa, a relação entre
acontecimentos ou entre estados com
relação causal é de ordem intrínseca a eles
próprios; causa e efeito não são
independentes um do outro e o efeito não

244
pode ocorrer sem a causa. O efeito não
seria exactamente o que é se acaso fosse
provocado de maneira diferente. E parte
daquilo que virá a ser o acontecimento, que
é uma causa, será precisamente o referido
acontecimento a gerar determinado efeito.
Por outro lado, a Teoria da Sucessão
encara a relação causal como externa à
causa e ao efeito assim relacionados. A
causa pode ser perfeita e cabalmente
escrita sem referência aos efeitos que
produza e o efeito de uma causa é um
acontecimento ou um estado susceptíveis de
serem especificados de maneira
independente e que seriam precisamente o
que são se acaso fossem gerados de modo
espontâneo.
Mas a mais conhecida maneira de
efectuar a distinção entre estas teorias da
causalidade baseia-se na análise do
conceito de «conexão» causal. Sustenta a
teoria generativa existir conexão real entre
causas e respectivos efeitos e, em muitos
casos, isso identifica-se com um mecanismo
causal que, quando estimulado pela causa,
produz o efeito. Se estivermos interessados
nas causas do cancro, por exemplo, a teoria

245
generativa afirma que a história causas não
fica completa quando se citam estatísticas
que demonstrem que ao vício entranhado do
tabaco se segue, com bastante
regularidade, o cancro do pulmão. A teoria
exige que esta relação externa entre o
processo de fumar e o processo
carcinogénico seja completada por uma
explicação, em termos bioquimícos, do
mecanismo que actua entre o estímulo da
inalação do fumo e a génese dos cistos e do
tecido destruidor dos tumores malignos.
A teoria da sucessão não encontra
nenhuma réplica empírica para responder à
conexão entre causa e efeito. Pressupõe
que tanto a primeira como o segundo são
acontecimentos, e os adeptos de tal teoria
debalde procuram outro acontecimento que
represente a ligação entre os dois
anteriores. Desorientados pela tentativa de
transformar a conexão num sucesso
intermédio entre causa e efeito, voltam-se
para uma explicação psicológica da ideia da
conexão entre causa e efeito. Encontram-
na no hábito.
Segundo Hume, grande defensor da teoria
da sucessão, quando obsevamos

246
repetidamente a ocorrência de uma
sucessão regular entre um e outro género
de acontecimentos, formamos uma espécie
de hábito mental e, com a ocorrência de um
deles, esperamos que o outro se verifique
também; declaramo-los conexos – conforme
diz Hume.
Esta ideia de conexão – prosseguem os
adeptos de tal teoria – nada mais é, porém
do que o resultado de um fenómeno
psicológico – a expectativa baseada no
hábito -, não se tratando de forma alguma
de um conceito empírico aplicável ao mundo
real. Neste, não há Senão sucessões de
acontecimentos, alguns dos quais constituem
repetições de outros acontecimentos de tipo
semelhante e é esta similitude na repetição
que captamos como noção de causa.
Como consequência de tal ideia, os
acontecimentos representam as causas e os
efeitos são, segundo os sucessionistas,
independentes uns dos outros; assim sendo,
depois que um dado tipo de acontecimento
se tenha verificado, tora~se possível a
ocorrência de qualquer outro tipo de
sucesso diferente. De acordo com este
ponto de vista, é logicamente falacioso

247
inferir do actual conhecimento que temos do
mundo aquilo que ele será no futuro. Isto
conduz ao célebre problema filosófico da
indução, que já tivemos possibilidade de
verificar.
Contudo, na teoria generativa,
considerando um certo acontecimento e
sendo o mundo o que é, repleto de
mecanismos geradores incluídos na imensa
variedade das coisas e das substâncias
existentes na Natureza, nem todos os
resultados possíveis são igualmente
prováveis. Dada a estrutura do corpo
humano, a sua natureza química e
fisológica, que, em conjunto, constituem um
complexo de mecanismos geradores de
grande sensibilidade, à gestão de meio litro
de de álcool não se seguirá, por certo, com
iguais probabilidades, tanto a embriaguez
como a sobriedade. Dada a natureza do
cloreto de cálcio e do carbonato de sódio, a
mistura das respectivas soluções conduzirá
necessariamente a uma dupla decomposição
e à precipitação de carbonato de sódio.
Tais coisas não acontecem pelo facto de
despormos de estatísticas cheias de
números acerca dos casos em que se

248
observaram estas sequências de sucessos ou
devidos ao hábito mental muito arreigado
que nos leva a esperar tais efeitos, sim
porque fazemos alguma ideia da natureza
das entidades em causa e do modo como
operam. É o conhecimento do mecanismo da
reacção química que nos leva a confiar no
comportamento das duas soluções quando
misturadas. Claro que no caso do álcool,
chegamos a certeza do que acontecerá
mediante a experiência mas, uma vez de
posse dela e tendo conhecimento das
estatísticas e das correlações entre
sucessos e entre estados, o sucessionista
não nos incumbe de deslindar mas nenhum
problema.
Para aquele que acredita na causalidade
geradora, a existência de estatísticas
representa apenas um primeiro passo no
longo processo de pesquisa, o que só
termina quando se descobre a natureza das
coisas envolvidas no caso e se ficam a
saber as razões porque assim foram
elaboradas tais A ciência
estatísticas.
prefere a teoria generativa da
causalidade à teoria da sucessão.

249
A descoberta dos mecanismos por meio
dos quais as causas produzem ou geram os
respectivos efeitos constitui uma parte
fulcral da investigação científica. As
descobertas relativas ao mecanismo das
reacções químicas, da hereditariedade e de
tantos outros mecanismos fornecem
exemplos do conseguimento desta procura.
Porém, há que deixar aqui uma palavra
de aviso quando ao significado do vocábulo
«mecanismo». Em linguagem comum, este
quer dizer duas coisas distintas. Refere-
se, por vezes, a aparelhagem mecânica, a
dispositivos que trabalham com ligações
rígidas, tais como alavancas, engrenagens
dentadas, eixos, tirantes, etc. Em outros
casos, todavia, tem um significado muito
mais amplo, nomeadamente o de qualquer
tipo de conexão por meio da qual as causas
se tornam efectivas.
É neste último sentido que apliquei e
continuarei a aplicar a palavra
«mecanismo». É também neste sentido que,
na generalidade, ela se emprega em
linguagem científica, em expressões tão
diversas como, por exemplo, mecanismo de

250
dispersão das sementes ou mecanismo da
formação das estrelas.
Em qualquer dos referidos casos,
dificilmente se pode dizer que a palavra
«mecanismo» faz referência a aparelhagem
mecânica. Assim dever-se-á ter a ideia
exacta de que nem todos os mecanismos são
de natureza mecânica.

RESUMINDO: na ausência de um conhecimento


completo sobre um fenómeno, o cientista
efectuará um trabalho estatístico das condições
da sua ocorrência, em vez de prosseguir em
total ignorância. Mas a explicação científica
tem por objecto, não só conhecer como as
coisas acontecem e segundo que ordem, ou
seja, conhecer as leis da Natureza, como
também descobrir porque acontecem como
acontecem, isto é, compreender as naturezas
das coisas e dos processos, de modo que
transpareça o motivo pelo qual as leis
descoberta possuem o respectivo conteúdo e a
respectiva forma.
Para que isto se torne bem claro na mente do
estudante, daremos um exemplo de discussão
epistemológica: Mendel descobriu uma série de
leis da Natureza que regem a transmissão de

251
caracteres de uma para outra geração. Estas
leis possuíam natureza estatística e «externa»,
dando-nos a conhecer como os caracteres se
distribuem pelas gerações; mas apenas isso.
Semelhante descoberta, por muito importante
que se revele, não cumpre as exigências da
explicação. Estas só foram satisfeitas quando,
por meio de minucioso estudo do processo
reprodutor e do mecanismo da hereditariedade,
se esclareceu, por fim, o sistema dos genes e
se descobriu a explicação das estruturas
moleculares em hélice dos átomos. Só assim a
explicação se completa.
Em certos casos famosos, porém, o mecanismo
de uma lei continua a escapar-nos mesmo
centenas de anos após a descoberta da lei.
Poderá dizer, assim se pensa, que embora
conheçamos muitíssimo bem a lei da gravitação
mútua, pouca ideia fazemos do mecanismo da
atracção gravitácional.
As causas não agem isoladamente. Actuam num
mundo repleto de mecanismos causais. Para
exprimir esta ideia de modo mais geral, direi
que as causas agem sempre contra um fundo de
condições mais ou menos permanentes.
Observaremos a ideia, derivadas de situações
humanas, de que se procuram apenas as causas

252
relativas àquilo que é invulgar. Nas referidas
situações, as causas de qualquer coisa são as
mudanças ocorridas numa situação bastante
estável que se acredita conduzirem a assuntos
indesejáveis, surpreendentes ou ilegais. É
possível generalizar esta ideia e, em certa
medida, transferi-la para a ciência.
Conquanto os cientistas se dediquem a descobrir
e a descrever os mecanismos causais que, de
vez em quando podem ser estimulados a fim de
provocarem a ocorrência de coisas específicas,
a descobertas destas últimas requer
experimentação. Numa experiência, a maneira
de proceder típica exige condições estáveis e a
mudança de um único facto relevante. Esta
alteração torna-se assim o estímulo, podendo
determinar se o grau de relevância desse
factor relativamente ao resultado total na
Natureza.
Nesta, praticamente tudo quanto acontece é
resultante das multiplas influências que se
exercem sobre um complexo de mecanismos
causais. Consideremos, por exemplo, a pesquisa
dos factores necessários à germinação de
sementes, investigação científica rudimentar
mas não incaracterística. A semente – e o
organismo que dele se desenvolverá depois –

253
constituem o mecanismo que actua sobre
diversos ingredientes retirados do ar e do solo,
ingredientes esses que são reorganizados sob
formas adequados à incorporação na sua própria
substância. Variando-se a temperatura à qual
decorre o desenvolvimento, mas mantendo
estáveis os outros factores – luz, humidade,
oxigénio, dióxido de carbono e minerais –
poderá determinar-se a maneira como a
temperatura contribui para o crescimento da
planta. Emprega-se o mesmo processo para a
determinação de influência de qualquer dos
outros factores referidos.
Hoje em dia, dispondo de técnicas para isolar
os diversos efeitos dos diferentes factores,
mesmo quando, em casos especiais, muitos deles
actuam em conjunto, mas o método de
isolamento de factores e da estabilização de
condições continua sendo útil. Este depende da
distinção entre causas e condições e do factode
constituir a causa, nesse momento, o factor que
não se estabilizou, permitindo-se-lhe a
variação.
As leis da Natureza que, tal como vimos,
descrevem a maneira como os mecanismos
naturais respondem aos estímulos, deverão,
portanto, descrever causas possíveis, podendo

254
assim orientar-nos as expectativas quanto às
respostas a procurar quando o mecanismo se
estimulou de modo específico, partindo do
princípio de que as condições básicas se
mantenham estáveis.
As substâncias e as coisas destinguem-se não
apenas pelas suas qualidades manifestas, mas
também pelas respectivas potencialidades
causais, dependentes das suas constituições
intrínsecas. Uma substância que se diga ser
inflamável, explosiva, venenosa ou doce
descreve-se deste modo porque é susceptível de
arder quando queimada, de explodir quando
detonada, de provocar a doença ou a morte
quando ingerida ou de ter sabor doce quando
colocada sobre a língua. Dizer, porém, que
substâncias tais como a gasolina, a dinamite, a
estricnina ou o açúcar são, respectivamente,
inflamáveis, explosivas, venenosas ou doces, é
dizer algo mais do que aquilo que elas irão ser,
ocasionar ou conseguir sob determinadas
circunstâncias; é dizer que, nesse momento, são
de natureza tal que produzirão tais coisas
mediante circunstâncias adequadas. Para se
inflamável, uma substância terá de ter uma
constituição química e física que a faça arder
quando inflamada.

255
Outra importante distinção a ter em mente é
aquela que existe entre, por um lado, aquisição
e perda de qualidade, ficar vermelho ou ser
esmagado e, por outro possuir continuamente
uma qualidade, permanecer de forma cúbica,
por exemplo. Agora, tendo em mente a
distinção entre potencialidades e qualidades e
entre acontecimentos e estados, é possível
tecer alguns comentários de ordem geral sobre
os tipos de entidades que têm relações causais
umas com as outras.
É um facto que os acontecimentos podem
provocar outros acontecimentos. O choque de
uma pedra que cai origina uma racha no
pavimento. E, depois que este se tenha
fendido, permanece num estado mais ou menos
permanente, dizendo-se que a pedra causou
esse mesmo estado. Por consequência, os
acontecimentos e os estados podem ser efeitos.
Não creio que o nosso sistema conceptual utilize
a noção de causa de modo tal que se diga que
um estado possa ser uma causa. Notámos já
como a causa se coloca perante as condições em
que actua e a diferença entre a causa e essas
condições é exactamente a que existe entre
acontecimentos e estados. As condições são
estados mais ou menos permanentes. Do ponto

256
de vista do fim causal, activo, da relação
causal, os estados são aquilo que constitui as
condições – ou parte delas – sob as quais a
causa actua. Quando se colocam hidrogénio e
oxigénio num eudiómetro e se provoca a
descarga de uma faísca, a mistura arde em
rápido clarão. A causa é a faísca, mas a
explosão só se verificarão se os gases se
encontrarem no estado conveniente antes da
ignição; temos de estar protos para todas as
eventualidades.
AS IDEIAS SUCESSIONISTAS E
GENERATIVAS DA CAUSALIDADE
As ideias sucessionistas e generativas da
causalidade diferem em muito na maneira como
encaram os agentes ou potencialidades causais
nas suas visões do mundo
A) PARA OS SUCESSIONISTAS, as
coisas têm carácter passivo e os
efeitos originados por influências
externas são o que acontece a essas
coisas. Aqui, o paradigma da relação
causal é o constituído pelo choque de
pedaços de matéria contra outros
pedaços de matéria. Suponhamos que
uma bola de futebol se acha no meio de
um revaldo. A bola permanecerá para

257
sempre no mesmo lugar se algo não agir
sobre ela. Um pé ou talvez outra bola –
mais de acordo com este modelo –
caindo sobre a primeira, impele-a para
diante. Segundo os sucessionistas, as
causas nunca actuam partindo do
interior de uma coisa, sendo estímulos
externos. De conformidade com isto,
pode acompanhar-se a cadeia dos
estímulos exteriores recuando
indefinidamente; uma bola colide com
outra provocando um efeito, mas a
segunda foi posta em movimento por
outro estímulo e assim em diante.
B) O PONTO DE VISTA GENERATIVO
encara as substâncias e as coisas
individuais como dotadas de potência
causal, susceptível de ser evocada em
circunstâncias convenientes. Neste
caso, a visão do mundo coaduna-se, de
preferência, com o modelo em que um
explosivo pode permanecer inativo até
que as circunstâncias se proporcionem
de modo tal que o terrível poder da
dinamite seja suscitado pela detonação.
Até ser estimulada, a dinamite é tão
quiescente como a bola de futebol, mas

258
a explosão, isto é, o efeito não se deve
na totalidade à detonação, ao passo
que o movimento da bola resulta
totalmente daquilo que com ela colidiu.
A explosão deve-se à potência da
dinamite e esta possui tal poder em
virtude da sua natureza química. O
ponto de vista gnerativo encara o
mundo mais como o modelo da mola
comprida e pronta a soltar-se ou o do
peso exercido sobre uma gota de líquido
que, em virtude da sua posição, se acha
prestes a cair no solo ao mais ligeiro
toque.
C) Se acaso pretendêssemos solucionar o
problema das diferenças existentes
entre os dois modos de entender a
estrutura causal do mundo e entre as
duas maneiras de encarar a relação
causal, teríamos de argumentar que
parecem descrever-se com mais
propriedade segundo o sucessionismo,
digamos, são igualmente bem descritos
de acordo com o ponto de vista
generativo e vice-versa. Não me
proponho fazê-lo aqui, no entanto, pois
o meu propósito é apenas o de tentar

259
esclarecer os diferentes conceitos de
causalidade capazes de decifrar os
acontecimentos, os estados e os
processos que ocorrem no mundo.
D) Uma importante faceta do conceito de
causalidade e dos conceitos de espaço e
de tempo é a de que as modificações
nas relações espaciais dos indivíduos ou
das substâncias nunca podem ser
causas, mas apenas efeitos.
Imaginemos que uma coisa se modifica ao ser
deslocada. Como se explica tal facto?
Suponhamos que se trata de uma pequena
agulha de bússola montada sobre um eixo. Esta
é deslocada e observa-se que a agulha descreve
um movimento giratório e que, após mover-se
alguns centímetros, roda em outra direcção.
Explicaremos a mudança operada como devida
ao seu deslocamento no espaço? Não o fazemos
porque o nosso sistema de pensamento exige
que procuremos em algo mais do que a simples
mudança espacial a causa da alteração.
Pesquisaremos outras coisas ou outras
substâncias individuais visinhas susceptíveis de
produzir a mudança e cuja relação com a agulha
magnética da bússola se tenha tornado
diferente devido a uma mudança de lugar. Não

260
ficaremos admirados se encontrarmos um íman
próximo da agulha e atribuiremos de imediato a
mudança de direcção da agulha a uma mudançsa
de relação entre a agulha e o íman.
Por outro lado, as mudanças de relação espacial
representam, por vezes, o efeito de
determinada acção. Uma força pode exercer-se
sobre uma coisa individual somente para
alterar-lhe as relações e espaço com outras
coisas. Assim, por exemplo, se encontrarmos
um bloco de pedra no meio da estrada e o
empurrarmos, afastando-o do caminho, a acção
de força que sobre ele aplicarmos, produz o
efeito de alterar as relações espaciais da pedra
com as bermas da estrada.
Claro que esta modificação não constitui o único
efeito do facto de termos afastado a pedra:
exerceu-se pressão sobre as superfícies do
pavimento localizado sob o percurso da pedra à
medida que a fomos deslocando e deixou de
fazer-se sentir pressão nos pontos onde a
pedra esteve anteriormente. Tais modificações
originam mudanças no pavimento da via e
também por debaixo dela. Produziram-se sons
devido ao contacto da pedra com o solo, etec.,
etc.

261
A ordem temporal é totalmente imune à
causalidade. O modificar do tempo não tem
causas tem efeitos. Muito embora, em
linguagem jurídica, se possa falar em
«expiração de prazo» como de uma causa, do
ponto de vista científico trata-se apenas de
uma metáfora. Mas isso não impede que a
substância estável e o indivíduo quiescente
perdurem através do tempo. Nem tão pouco as
relações temporais se modificam por meio de
qualquer acção, actividade ou estímulo. É
impossível transformar em futuro um
acontecimento passado ou alterar a ordem pela
qual dos acontecimentos ocorrem.
No nosso sistema de pensamento, consideramos
ser conveniente fazer a destrinça entre dois
tipos de causalidade: aquela em que as
mudanças se verificam em um ou vários
indivíduos e a de que resulta um indivíduo.
Vimos já que o mundo objecto da ciência é
aquele em que predominam as entidades
individuais aristotélicas, isto é, um mundo de
coisas que começam a existir e que persistem
durante certo tempo para depois atingirem o
fim. Os metafísicos, como também já vimos
podem recomendar que se adopte uma visão
diferente quanto aos constituintes últimos das

262
coisas e das substâncias, que será, talvez, quer
o átomo permanente de Parménides quer a
entidade transitória de Heraclito. Mas o mundo
com que temos de lidar não nos oferece
indivíduos parmenidianos e os que parecem
heraclitianos, tal como os relâmpagos, revelam-
se, de facto, após exame mais aprofundado,
entidades aristotélicas de breve duração. Como
se vê, reconhecemos as modificações das coisas
relativamente permanentes e a sua criação e
desaparecimento.
Contudo, a criação proporciona também modos
alternativos. É possível conceber-se a criação
de maneira tal que um idividuo passe a existir
de repente onde antes não havia fosse o que
fosse. Trata-se da criação a partir do nada, a
criação ex nihilo. Diz a antiga expressão que
Ex nihilo nihil fit, ou seja, «do nada, nada se
cria». Tal máxima nega o modo de criação por
meio do qual uma coisa surge para a existência
onde antes nada havia.
Relativamente à maioria dos casos de criação
com que lidamos, não há dúvida de que a
referida máxima abarque a verdade da matéria.
No nosso mundo, a criação não ocorre a partir
do nada, mas sim através do rearranjo daquilo
que nele já existe. Uma nova planta nasce e

263
constrói a respectiva estrutura com elementos
tirados, da atmosfera, da terra e da água,
segundo um plano delineado pelas plantas
progenitoras. O mesmo acontece com os
animais. Compostos químicos de outro tipo
constituem novos arranjos de anteriores átomos
de elementos permanentes. Uma casa nova é
feita de tijolos e de argamassa e estes não
passam de materiais extraídos de pedreiras e
de escavações, que foram depois processados.
No mundo, criam-se apenas novas formas e não
matéria nova. Na verdade alguns cosmólogos
procuram explicar a densidade das substâncias
bastante constantes na aparência e as
distâncias entre coisas individuais
aparentemente em perpétua expansão,
pressupondo que há uma criação constante e
uniforme de matéria a partir do nada material.
Parte-se da suposição de que nova matéria
adquire existência onde antes nenhuma havia.
Que isto suceda de facto é uma coisa e que
seja concebível é outra coisa bem diferente,
julgando eu que será difícil negar-se que o
seja. Claro que tal modo de criação não é
explicável, visto não ter antecedentes que o
possam explicar.

264
As bibliotecas estão cheias de obras que
defendem e expõem as alternativas metafísicas
que esbocei de maneira tão sucinta. Mas espero
ter dito o suficiente para tornar claro os
motivos que orientam cada uma das mais
importantes maneiras de aplicar e de
especificar as categorias. No entanto, como já
disse, esta matéria metafísica poderá ser
encarada não apenas na qualidade de opções
segundo as quais cada uma das mais relevantes
categorias de coisas e de acontecimentos de
agrupam, se descrevem e são compreendidas,
mas considerada também na de sistema de
conceitos, isto é, como três grandes visões do
mundo.
Desde os seus primódios na Antiguidade que o
conhecimento científico se orientou por um ou
por outro de três sistemas metafísicos de maior
importância, os quais, em cada época,
proporcionam as formas de explicação. Os três
sistemas segundo os quais o mundo científico
viveu até agora, são o sistema aristotélico, a
filosofia corpuscular e a teoria do «pleno».
Mostram um quadro do mundo, respectivamente,
com «matéria diferenciada pelas formas», como
«átomos em movimento no vácuo» e como

265
«campo universal em vários e mutáveis estados
de tensão».
O primeiro sistema dominou o pensamento
científico desde a Antiguidade até ao século
XVII, altura em que, aos poucos, a filosofia
corpuscular o desalojou, brotando do seio das
ruínas da teoria da matéria e da forma. A
filosofia corpuscular principiou a decair
lentamente a partir dos meados do século XIX,
muito embora devido à instituição científica
vigente, mais forte e conservadora, do que a
que existiu no século XVII, o corpuscularismo
tenha demorado mais tempo a ser substituído
pela teoria do campo universal.
Descrevi em termos breves a teoria
aristotélica. Farei dela agora um relato mais
elaborado, de modo a vincar o contraste com a
filosofia corpuscular surgida em sua
substituição. Segundo a visão aristotélica do
mundo, há uma matéria-prima e universal, da
qual se gera tudo quanto existe. Esta matéria
diferencia-se em quatro elementos originais:
Terra, Ar, Fogo e Água. A referida divisão da
matéria exprimir-se-á, melhor, porventura, se
dissermos que a matéria-prima se diversifica
nos materiais sólidos, nos gasosos, nos líquidos
e nos radiantes.

266
Aos quatro elementos correspondem quatro
qualidades primárias ou, melhor dizendo, quatro
naturezas básicas: Calor, Frio, Humidade e
Secura. Por exemplo, as substâncias que, na
forma natural se encontram no estado sólido ou
terroso, têm natureza fria e seca; as de
natureza líquida são frias e húmidas; as de
natureza gasosa, são quentes e húmidas; e as
de natureza radiantes ou ígneas, quentes e
secas.
A natureza exacta de qualquer coisa é
determinada pelas proporções das naturezas
básicas nelas presentes e, por seu turno, isto
resulta da percentagem dos elementos
intervenientes na composição dessa coisa.
No período medieval e nos tempos que se lhes
seguiram, os alquimistas adaptaram tal sistema
aos seus problemas específicos e, em Geber,
colheram a ideia da análise das substâncias
conhecidas por meio do cálculo das proporções
dos elementos primários da sua composição. À
tradição numerológica dos quadrados mágicos e
do gnómones, os alquimistas foram buscar a
proporção numérica dos elementos, que
acreditavam ser a mais exacta. Suponham
obter oiro se acaso descobrissem o equilíbrio

267
entre os elementos indicados por esta
proporção.
Como complemento desta teoria geral da
matéria diferenciada em quatro elementos e
diversificada em quatro qualidades, naturezas
ou formas básicas, nasceu uma teoria das
formas mais específica e, no século XVII, mais
importante. Aristóteles concebe as modificações
que ocorrem no mundo como devidas a processos
por meio dos quais se actualizava o que fora
apenas potencial; e esforçava-se pelo regresso
ao lugar natural aquilo que se não encontrava
onde naturalmente deveria estar.
Tal como pedaços informes de barro adquirem
forma às mãos do oleiro, assim a posse de
qualquer qualidade definida, quer se trate de
formato, de cor, de textura, de poder
medicinal, etc., se explica como o conferir de
uma forma a matéria antes informe. E do
mesmo modo que o oleiro só gradualmente impõe
ao barro a perfeição final da forma definitiva,
transformando a pasta em verdadeiro
recipiente, também só aos poucos a forma se
actualizava na matéria. As formas concretizam-
se gradativamente; e uma coisa pode adquirir
forma em grau mais ou menos elevado. Torna-
se mais quente, mais redonda ou mais áspera

268
alternando-se o grau ao qual a forma
apropriada nela se actualiza.
Tais ideias quanto à natureza da mudança
conduzem áquilo que é para a ciência a mais
importante parte do sistema. Daqui brotou a
visão aristotélica de causa e, por conseguinte,
uma forma de explicação que dpminou a ciência
desde a Antiguidade até ao final da Idade
Média. O cientista confrontado com uma coisa
individual, uma substância ou um processo em
que estivesse interessado incará-los-ia, caso se
trata-se de um adepto do aristotelismo, em
termos derivados da metafísica que acabamos
de esboçar. Considerá-los-ia em termos de
«forma», de «matéria», de «potencialidade»,
de «actualização» e ainda da «perfeição» para
a qual tendem todos os processos.
Deste modo, em qualquer pesquisa científica,
haveria quatro perguntas a responder:
_ Qual a «matéria» envolvida no caso?
_ Quais as «formas» nele implicadas?
_ Qual o «fim» a atingir ou para que «fim» se
encaminha o sistema, caso ele seja inanimado?
_ Qual o responsável, no caso especifico em
investigação, pela existência da coisa, da
substância, do processo ou seja do que for que
se investigue?

269
A este conjunto deu-se tradicional e
erradamente o nome de «teoria aristotélica das
quatro causas». É frequente dizer-se que os
aristotélicos procuram quatro causas: a «causa
material», a «causa formal», a «causa
eficiente» e a «causa final». Observe-se que a
ciência moderna reduziu esta questão quádrupla
a uma única, pois, conforme se diz, reconhece
agora apenas a causa eficiente. Quando muito,
isto não passa de meia verdade, como veremos
adiante.
Todavia, não atingimos ainda o âmago do
sistema aristotélico, pois existe nele uma ideia
mais profunda _ o conceito de natureza
essencial de uma coisa.
Para se abarcar o sentido deste conceito é
necessário compreender a diferença entre
ocorrências que se verificam por necessidade e
as que ocorrem por acaso. Quando se larga uma
pedra a alguma distância do solo, esta cairá
necessariamente para ele; faz parte da
natureza da pedra procurar o seu lugar natural,
que é o de permanecer em contacto com a
terra. Contudo, se, na trajectória da descida,
a pedra embater na cabeça de um velho
filósofo, isso é algo que acontece por acaso,

270
pois não está na natureza essencial da pedra
atingir pessoas idosas e distraídas.
Formulam-se leis da Natureza apenas quanto
ao que dimana das naturezas essenciais das
coisas, não quanto ao que sucede por acaso.
Existe uma lei da Natureza relativa à queda
dos graves, mas não há qualquer lei da
Natureza que diga respeito aos acidentes a que
se sujeitam pessoas descuidadas e destituídas
de sorte, nem a há quanto ao género de danos
que podem advir de pedras que caíam _ estes
serão nulos, porventura, ou, pelo contrário,
ocorrerá uma catástrofe. Seja o que for que
suceda, porém, tal não deriva da natureza
essencial da pedra.
De tudo isto, desenvolveu-se uma forma
explicativa. A explicação científica ficava
completa quando, de tudo quanto era necessário
justificar, se descobrira a causa formal, a
causa material, a causa eficiente e a causa
final, em resumo, quando se respondera a todas
as quatro perguntas referentes à matéria, à
forma, ao modo e à orientação do
desenvolvimento. O mundo era concebido como
um complexo de processos ocorrendo nas coisas
e nas substâncias, que eram consideradas mais
de acordo com o modelo de crescimento das

271
plantas e dos animais ( e com o da produção
das obras de arte e de artefactos) do que
propriamente segundo o modelo dos impulsos e
das colisões de massas inorgânicas informes de
matéria não viva. Não quer isto dizer que os
aristotélicos considerassem como vivo tudo
quanto existe e como orgânicos todos os
processos. Mais exactamente, escolheram para
uso próprio, recebidos de Platão e de
Aristóteles, introdutores desta visão do mundo,
certos paradigmas ou modelos, por analogia com
os quais conceberam todos os processos. Deste
modo, depois de descrita a natureza essencial
de um indivíduo ou de uma substância, por
identificação da respectiva matéria e forma,
era possível descobrir o que necessariamente
aconteceria quando esse individuo ou substância
estivessem submetidos ao estímulo dos
acidentes durante a sua relação com outras
coisas ou substâncias.
Dentro desta tradição, realizaram-se diversos
trabalhos científicos de importância
permanente. Os trabalhos biológicos de grande
relevo efectuados por Aristóteles, as pesquisas
de Teodorico relativas ao arco-íris, as
investigações cinemáticas dos físicos do Merton
College, sob a orientação de Bradwardine, são

272
obras de importância e de influência
permanentes. Em todas elas o cientista
procurou descobrir as quatro causas como
solução do problema e satisfaz-se após as ter
achado, pois, ao encontrar assim o seu ideal de
explicação, sentiu ter concluído a tarefa.
A substituição deste ideal pelo derivado da
filosofia corpuscular foi uma das principais
facetas do progresso intelectual do século
XVII.
Já se falou na maior parte das ideias
corpusculares no momento apropriado, no texto
inicial do presente capitulo. Passarei agora a
resumi-las em conjunto, a fim de mostrar como
derivou do sistema o seu ideal de explicação
específico.
Os corpuscularistas concebiam tudo quanto
existe como formado por partículas ou
corpúsculos, dispostos no espaço vázio ou vácuo.
Alguns adeptos desta ideia eram também
atomistas, ou seja, acreditavam que os
processos de análise que dividiam as substâncias
e as coisas nos respectivos corpúsculos dariam,
eventualmente, corpusculos indivisíveis, miníma
naturalia. Adoptaram a teoria das qualidades
primárias e secundárias como parte essêncial da
sua filosofia da Natureza e encararam os

273
corpúsculos como definidos na totalidade pela
respectiva grandeza (tamanho), pelo aspecto
(formato), pela textura (arranjo mútuo) e pelo
movimento.
A geometria, é o estudo das formas, e a
mecânica, o estudo do movimento e da acção
por contacto representaram para os
corpuscularistas as ciências básicas. As
substâncias distinguem-se pelo formato, pela
dimensão, pelo arranjo e pela densidade dos
corpúsculos de que se compunham. A ocorrência
de mudanças atribuía-se à reorganização dos
corpúsculos constituintes das coisas e das
substâncias.
A maioria dos corpuscularistas não julgava
possível que os próprios corpúsculos se
alterassem; mas se uma partículas parecia
modificar-se – dado a mudança não passar do
rearranjo dos componentes corpusculares de
uma coisa – então o alegado corpúsculo era um
corpo composto. Deste tipo de racíocinio terá
resultado que – mesmo no caso de os
corpúsculos não serem rigorosamente átomos, ou
seja, não decomponíveis por meio de qualquer
método analítico – eram átomos, pelo menos
para todas as finalidades práticas. Foi esta a
opinião de homens tais como Newton, Boyle,

274
Locke, Harriot, Galileu, Descartes e de muitas
outras figuras menores como, por exemplo,
Hooke.
A ideia dos corpúsculos perdurou através dos
séculos, passando por diversas alterações, mas
as moléculas da actualidade, os átomos químicos
e mesmo os protões, os neutrões e electrões
são descendentes em linha recta das pequenas
porções de matéria informe de que o mundo se
constituía, segundo o parece dos
corpuscularistas. A forma das coisas adquiriu
menor importância, tornando-se mais relevantes
certas propriedades desconhecidas dos
corpuscularistas, como a de carga electrica. A
ideia essencial, porém, permaneceu mais ou
menos inalterada.
Actualmente, não é fácil de perceber a maneira
como os corpuscularistas encaravam as relações
causais das mudanças ocorridas no universo de
partículas. Um modo de causação era
claramente sucessionista e, na verdade,
revelou-se a partir daí o modelo desse modo de
causação que ocorre com a mudança de estado
de movimento dos corpúsculos, ocasionada pelo
seu deslocamento uns sobre os outros quer por
contacto, quer por impulso. Um corpo
estacionário só adquire movimento quando

275
impelido por outro corpo imóvel.De maneira
semelhante, se acaso dois corpos se encontrar,
fálo-ão possívelmente segundo um anglo oblíquo
e deslocando-se a velocidades diferentes; em
tais circunstâncias, após terem colidido, cada
um deles mover-se-a à velocidade desiguais e
em diferentes direcções. A explicação para o
estado de movimento do sistema depois de
haver sofrido as colisões, depende, sem dúvida,
do seu anterior estado de movimento.
Contudo, intervem aqui outro factor, mais
parecido com um elemento da teoria generativa,
algo que depende da própria natureza dos
corpúsculos e não daquilo que lhes acontece. Os
corpúsculos diferem intrinsecamente, quanto à
sua grandeza, quanto à quantidade de matéria
ou aquilo a que agora damos o nome de
«massa». A respectiva inércia, a propriedade
que têm de resistir a mudança de velocidade de
movimento e de se conservarem no movimento
adquirido, depende da sua grandeza relativa.
Portanto, quando um corpúsculo de movimento
rápido colide com um mais pesado, este não
será posto em movimento tão rápidamente como
acontecerá a um outro mais leve e estacionário.
Deste modo, o que acontece a um corpúsculo
contra o qual choque outro corpúsculo móvel

276
depende, em parte, do estímulo a que for
submetido e, em parte, da sua natureza
intrínseca, da sua massa. A inércia é o poder
de resistir à mudança de movimento,
propriedade esta que os corpos possuem
intrinsecamente, pelo menos de acordo com a
filosofia corpuscular. Críticos posteriores –
Ernst Mach, por exemplo, - procuraram fazer
da inércia uma característica também
extrínseca das coisas, mas não debaterei aqui
os seus argumentos.
Visto que a única maneira de um indivíduo
afectar outro é por meio de colisão (excluindo o
inigma da gravidade), os corpuscularistas
procuraram reduzir todas as mudanças, fossem
elas de que género fossem, às originadas por
acção mecânica, pelo choque, capazes de
alterar quer o estado de movimento da
totalidade de um corpo quer o das suas partes
componentes – por exemplo ao fazê-las vibrar
com maior ou menor rapidez. Ora, um impacto
pode, de facto, partir pedaços ou provocar
arranjos diferentes no interior dos corpos. Em
resumo, poderia haver apenas mudanças de
estrutura ou mudanças de movimento e,
portanto, em última análise, todas as

277
modificações seriam de estrutura ou de
movimento.
Por consequência, todas as causas da mudança
teriam de ser, na realidade, mudanças de
estrutura ou mudança de movimento. Isto
concorda, é claro com a doutrina das qualidades
primárias e secundárias. Para que as mudanças
numa qualidade secundária se concretizem, visto
a qualidade ser, de facto, uma combunação de
qualidades primárias na própria coisa, tal como
o número de corpúsculos e o seu arranjo, algo
terá terá de suceder tanto à grandeza como ao
aspecto, à textura ou ao movimento da coisa a
afectar ou operar-se uma modificação na
combinação de tais qualidades.
No século XVII, a filosofia corpúscular foi
objecto de estudos aturados. Esta não foi
acolhida sem suscitar oposições, tganto por
parte dos adeptos do aristotélismo como de
figuras tais como Vant Helmont que, muito
embora fosse adversário de Aristóteles,
sustentava de opinião de que os elementos da
Natureza eram dotados de uma espontaneidade,
de um poder de autodesenvolvimento, de que os
corpusculos cafreciam por completo. A sua única
potencialidade intrínseca era o poder passivo de
resistência à mudança de movimento. Não

278
possuíam capacidade de funcionar como agentes,
isto é, como centros de causação de onde
fluíssem efeitos que não fossem apenas passivos
transmissores de impulsos originários de outra
fonte.
Sentiu-se a necessidade de arranjar
argumentos ou «provas» para apoio da filosofia
corpuscular. Alguns pensadores tentaram
desmonstrar por meio de argumentos que a
teoria era verdadeira; outros procuraram
provar que ela era tão real como os factos.
Locke e Descartes constituem exemplos típicos
dos que sustentaram a plausibilidade e mesmo a
necessidade de diferentes versões da filosofia
corpuscular. Gassendi defendeu a possível
genuinidade do sistema e adiantou evidência
factual a favor da sua verdade. Boyle (e, antes
dele, Bacon), partindo do princípio de que a
filosofia corpuscular representa um sistema de
pensamento consistente, defendeu-a
apresentando considerandos empíricos ou
factuais.
Os motivos de Boyle, derivavam, em grande
parte, de tentativas de demonstrar que toda a
gama de mudanças qualitativas suceptíveis de
ocorrer na Natureza e no laboratório era
produzida por modificações que, em última

279
análise, teriam de se conceber como mudanças
de grandeza, de aspecto, de textura e de
movimento das partes insencíveis das
substâncias. Moer vidro constitui um processo
que apenas dimunui um tanto o volume de
pedaços do material e, quando se obtem essa
redução de tamanho, observa-se uma flagrante
mudança qualitativa – o vidro, antes
transparente, tornou-se branco e opaco.
Boyle cita também o exemplo da clara de ovo,
que é limpida e fluída como água. Mas, se for
agitada com um batedor, altera rapidamente as
suas qualidades, tornando-se branca e
aderente. Se se exercer a acção da cicatrícula
ou porção germinativa do ovo, o mesmo exacto
fluído organiza-se nas suas partes mais
diminutas para adquirir, no pinto, qualidades
como a elasticidade dos tendões e a pele
amarela da pele da ave jovem. Boyle observou
que certas qualidades medicinais são adquiridas
deste modo, nomeadamente o poder de curar a
epilepsia que, segundo pensava, constituia uma
propriedade dos pintos da pega. Também na
preparação de determinados produtos químicos
dotados de sabores característicos – o sulfato
de sódio, por exemplo – o novo preparado possui
propriedades bem diferentes das das

280
substâncias das quais foi feito. De acordo com
Boyle, em todos estes casos nenhum agente
operou há não ser o da reorganização. Em
nenhum deles se adicionaram novas substâncias
ou materiais dotados das propriedades recém-
criadas, de modo que a origem das qualidades
não podem encontrar-se fora das substâncias e
dos mecanismos em causa. As qualidades
adquirem existência durante o processo de
preparação de ovos mexidos, de pintos e de
sulfato de sódio. Os próprios processos,
tomando por modelo o preparado químico, são
considerados por Boyle como compreendendo
apenas a separação de partes e sua
recombinação, tal como é o caso da mera acção
mecânica exercida ao misturar o ovo, processos
que a nada mais conduzem do que mudanças de
volume, de aspecto, de textura ou de
movimento das partes do material sobre o qual
se exerceu influência.
Assim, qualquer que seja o carácter dos efeitos
a que chegue a Natureza ou a ciência, as
respectivas causas serão sempre mecânicas.
Daqui até ao ideal de explicação corpuscular vai
apenas um pequeno passo. A explicação
completa e final para a posse de determinada
qualidade e para qualquer espécie de

281
modificação que nela se verifique, quer se trate
de uma mudança singular quer de um processo
compreendendo diversas mudanças específicas,
é sempre possível quando se propõe um sistema
de causas para os efeitos que se cifre em
mudanças de arranjos ou de estados de
movimento, ou em ambos, dos corpúsculos mais
básicos, de que todas as coisas são feitas.
Muito antes de Boyle, já Bacom afirmara ser
viável encontrar desse modo a verdadeira
natureza das coisas e das qualidades e, de
posse desse dado, conseguir a explicação
científica final.
Este sistema de conceitos foi consagrado
por Newton e continua ainda a exercer a
poderosa influência sobre o pensamento
moderno, visto que, como teremos a
oportunidade de observar, no próximo capítulo,
grande parte do modelo do método científico
actualmente em vigor resulta desta visão do
mundo.
A filosofia corpuscular, à semelhança do seu
antecessor, o sistema aristotélico, constitui um
sistema metafísico. É uma maneira de pensar o
mundo e funciona persuandindo-nos a adoptar
determinado modo de especificação das
categorias de substância, de qualidade e de

282
relação, antes mesmo de qualquer experiência
particular. Munidos de tais conceitos,
abordamos então o mundo.
Nenhum facto ímpar e surpreendente
conduziu ao derrube do sistema aristotélico.
Não se inventou de repente qualquer
instrumento capaz de tornar visível, de
imediato, o baílado dos átomos; nem tão pouco
o referido instrumento existe hoje em dia.
Também se não deu o caso de alguém ter
imaginado de súbito um argumento de peso
esmagador susceptível de fazer cair o sistema
aristotélico, ao demonstrar-lhe a inconsistência
interna e ao provar a necessidade da filosofia
corpuscular. Por ironia, existe desde os finais
do século XVIII um argumento, da autoria de
Boscovich e repetido de forma menos clara por
Kant e por outros filósofos, que, de maneira
válida, acusa de inconsistência básica a filosofia
corpuscular, afirmando a sua inutilidade como
sistema explicativo último.
Trata-se de um argumento correcto. Não
obstante isto, não conseguiu afastar a
popularidade do sistema corpuscular como modo
de prover à explicação de acontecimentos e de
processos, nem impedir que muita gente
considerasse o referido sistema como

283
fundamental. A impopularidade da concepção
atomista da matéria, no século XIX, é
atribuível a outras causas e, embora nenhuma
delas seja de facto empírica, nenhuma resulta
de observações. Este interessante capítulo da
história da metafísica da ciência foi tratado de
maneira admirável por D. M. Knight, no seu
excelente livro Atms and Elements.
O que mais poderá dizer-se, na incapacidade de
escrever um tratado sobre cada uma das
mudanças específicas de uns para outros
sistemas metafísicos, pormenorizando todas as
influências (e estas não representam uma
pequena parte da trama completa da vida e da
cultura), é que, quando determinada maneira de
pensar principia a adaptar-se com crescente
dificuldade a certas descobertas, as ideias
começam a fermentar no seio da comunidade
intelectual.
Mas a coumunidade da qual emanam as novas
ideias não se confina à dos cientístas. Algumas
dessas ideias dir-se-ão fornecer maneiras de
pensar acerca de problemas especificos que
representam grande progresso, ou que parecem
representá-lo, em relação as conceptualizações
grosseiras e complexas do sistema anterior. É
muito mais fácil, por exemplo, explicar o

284
funcionamento do coração e do sistema
sanguíneo pela circulação de um líquido único do
que, pela teia e pelo complexo fluxo de vários
fluídos. Mas, por irónico que pareça, a nova e
mais fácil explicação é, com frequência, mais
difícil de aceitar por pessoas treinadas na
forma de pensamento anterior. O êxito
fragmentado obtido num amplo leque de
problemas diferentes dir-se-á então encorajar
os trabalhos de sintese em que as ideias se
sistematizam. Por fim, surge um grupo de
filósofos cujos argumentos soldão entre os
conceitos recem-criado, transformando-os em
sistema coerente e conferindo-lhes uma como
que aparência de necessidade.
Ao longo dos trezentos anos que medeiam entre
1500 e 1800, pode traçar-se a história da
origem da filosofia corpuscular e do derrube
que operou no sistema aristotélico. No entanto,
o nosso sistema intelectual não é corpuscular. A
concepção atómica da Natureza tem vindo a
declinar lentamente desde a época de Faraday,
que nos deu uma outra maneira de encarar o
mundo.
O panorama actual, porém, é diferente do do
século XVII. Muito embora, na maioria dos
processos onde se aplicou o sistema de

285
conceitos aristotélicos, os ocrpuscularistas
tivessem razão ao ver neles partículas em
rearranjo e mudanças de movimento, estavam
errados relativamente à nossa maneira de
pensar faradayana, apenas ao pressuporem que
eram últimas essas partículas.
Deste modo, consagrar-me-ei, no capítulo
seguinte, ao debate de todo um leque de ideias
que influenciam em profundidade o pensamento
actual sobre o mundo e a compreensão dos seus
processos, ideias que derivam com nitidez da
filosofia corpuscularista e que, devido ao facto
de muitos processos, numa primeira fase de
análise, se revelarem, em boa verdade,
corpusculares, continuam a ser válidos no mundo
moderno.

RESUMO DO ARGUMENTO

1. A metafísica é o estudo das cartegorias mais gerais de


acordo com as quais pensamos.
(a) As categorias são reflexo dos tipos de perguntas
que se podem formular a respeito do mundo.
(b) Problemas respeitantes à escolha das categorias,
como as de substância e a de qualidade ou
referentes aos individuos e as potencialidades, não
são questões empíricas, embora não sejam
destituídas de significado e possam discutir-se
racionalmente.
(c) Pode perfilhar-se um sistema de categorias
específico, a despeito de dificuldades empíricas
286
aparentes; por exemplo, um atomista, sustentará,
por ventura, a existência dos indivisíveis últimos,
seja qual for a medida em que se opera a divisão.
2. Substâncias materiais
Cada uma das categorias distinguem-se por variantes,
escolhidas dentro dela.
(a) Os materiais englobados na categoria geral de
«substância» podem ser descontínuos, como a
areia, ou contínuos, como a água. Faz-se uma
escolha metafísica ao decidir-se, em última
análise, todas as substâncias são cpntínuas ou
descontínuas.
(b) As substâncias exibem uma diversidade aparente.
É possível demonstrar de modo empírico que
algumas delas são formas diferentes do mesmo
material básico. Exerce-se uma opção de ordem
metafísica quando se parte do princípio de que
todas as substâncias são formadas de um único
material básico.
(c) Um princípio metodológico importante é o de que a
diversidade de substâncias é explicável como
resultante da diversidade de estrutura de um
número reduzido de materiais elementares, por
exemplo, o princípio sobre que se baseiam as
teorias atómica e molecular da química.
(d) Outra distinção básica é a que se faz entre
substâncias e espaço. Constitui um problema
metafísico saber se se trata aqui de uma distinção
última. Mas esta distinção determina a forma como
se consideram as teorias científicas da acção por
contacto e da acção à distância do campo
electromagnético. Em tal caso, as decisões são
parcialmente determinadas por outros princípios
metafísicos, como o «princípio da unidade do
mundo»

287
3. Indivíduos
(a) Esta categoria metafísica relaciona-se.com os
princípios lógicos que regem a função da referência
na linguagem.
(b) A categoria está também associada aos conceitos
de espaço e de tempo por meio de certos
princípios, como o de duas entidades singulares da
mesma espécie não poderem estar ao mesmo tempo
no mesmo lugar.
(c) Há três principais tipos de indivíduos:
(i) As entidades indivíduais parmenidianas são
imutáveis e permanentes. O atomismo
deriva da ideia de que, se os indivíduos
básicos são parmenidianos, então a
mudança ocorre apenas mediante o seu
rearranjo.
(ii) Os indivíduos heraclitianos são entidades
efémeras e transitórias, que existem
apenas por um instante. Na prática,
nenhuns indivíduos são realmente
heraclitianos, mas duram apenas um tempo
brevíssimo; por exemplo, as sensações
momentâneas.
(iii) Os indivíduos aristotélicos criam-se e
destroem-se e perduram algum tempo,
sendo susceptíveis de mudar, sem perda de
identidade.
(d) A ciência pressupõe que, embora as entidades
indivíduais do mundo sejam aristotélicas, os
indivíduos últimos são quer parmenidianos
(atomismo) quer heraclitianos (fenomenismo).

4. Qualidades
As substâncias e as entidades individuais manifestam-se
à nossa experiência como detentoras de qualidades.

288
(a) As qualidades constituem a base de identificação
das coisas e das substâncias. O conjunto de
qualidades requeridas para este fim é a essência
nominal do indivíduo ou da substância.
(b) Existem três teorias sobre qualidades:
(i) As qualidades aristotélicas são
actualizações de formas na matéria.
(ii) As qualidades primárias são as que
percebemios através dos sentidos nas
coisas e nas substâncias e que estas
realmente possuem – por exemplo, o seu
formato; ao passo que as qualidades
secundárias são as que em nada se
assemelham às que percebemos em
resultados dos efeitos que exercem sobre
nós – por exemplo, o calor não é percebido
do mesmo modo que o movimento. Esta
teoria é desenvolvida com base onde
fundamentar a ciência pelo pressuposto de
que as qualidades secundárias são uma
função das primárias.
(iii) Embora uma coisa ou uma substância se
manifestem qualitativamente, o facto de
elas nem sempre serem percebidas exige
que o poder de manifestarem as qualidades
seja atribuído às coisas e às substâncias.
A ciência moderna serve-se da teoria das
qualidades primárias/secundárias como base
de um primeiro nível de análise e da teoria
das potencialidades como base de teorias
fundamentais.

5. A relação

289
Dado existir mais do que uma coisa, mais do que
uma substância e mais do que um acontecimento,
põe-se o problema das relações entre coisas,
substâncias e acontecimentos.
(a) Espaço
(i) É criado pela possibilidade de actos de
referência independentes a duas coisas que
coexistam.
(ii) As substâncias são contínuas num espaço
definido como tal.
(iii) É uma verdade necessária que dois indivíduos
não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo
tempo, embora pareça ser um facto empírico
que duas substâncias podem ocupar o mesmo
volume ao mesmo tempo; por exemplo, o sal
dissolvido na água.
(iv) O nosso sistema conceptual, empregando um
primeiro nível corpuscular de decomposição de
substâncias em indivíduos, exige a explicação
teórica do facto empírico da alínea (iii) e
consegue-o por meio do pressuposto de que as
substâncias contêm espaços vázios entre as
respectivas partes componentes. Não se trata
da única solução possível. Lamarcke propôs a
teoria da interpenetração genuína da matéria.
Utilizamos tal teoria apenas no caso da
interpenetração dos campos.
(v) A geometria – a matemática do espaço –
resultou do uso do conceito de
«intermediaridade» em conjunto com o
princípio da anterior alínea (i).
(b) Tempo
(i) Criado pela possibilidade de duas verdadeiras, mas
incompatíveis, predicações de propriedades ao mesmo
tempo. Chega-se à soluções por meio da teoria de
290
que elas não existem em conjuto, havendo assim
tempos diferentes.
(ii) O conceito de duração desenvolve-se através da
observação de que algumas coisas e substâncias não
mudam, enquanto outras o fazem.
(iii) A cronometria – a matemática do tempo – deriva
do uso do conceito do «antes» (ou de «depois»).
(iv)Surgem aqui dois profundos problemas metafísicos:
(A) Constituirá a odem dos acontecimentos – o
«rumo do tempo» - matéria lógica e gramatical
ou matéria de facto?
(B) Será a nossa incapacidade concreta em
«revisitar» o passado consequência da faceta
lógica do conceito de «passado», ou tratar-se-á
de matéria empiríca?

6. As relações de espaço e de tempo não são relações de


conexão e as mudanças neles ocorridas representam
sempre efeitos e nunca causas. Este princípio é uma
característica contingente do nosso sistema conceptual,
não verdadeira no sistema aristotélico e que, até certo
ponto, é contestado pelas interpretações geométricas da
teoria da relatividade geral.
7. As relações causais foram objecto de duas teorias
metafísicas incompatíveis:
(a) Na prática, procura-se apenas as causas do
inesperado, mas os cientistas – Newton, Freud, etc. –
buscaram também as causas daquilo que faz parte da
vida comum.
(b) Teoria generativa da causalidade:
(i) A causa produz o efeito através do funcionamento de
um mecanismo.
(ii) Dada a causa, é naturalmente necessário que o
efeito ocorra, isto é, o efeito terá de verificar-se, à
não ser que haja alguma interferência.

291
(iii) A conexão entre causa e efeito é apenas um
fenómeno psicológico.
(d) A teoria sucessionista deriva da anterior teoria
metafísica segundo a qual o mundo consiste apenas em
acontecimentos atómicos. Da alínea (c) (ii) antecedente,
resulta o problema da indução, isto é, o da
impossibilidade do conhecimento racionalmente
fundamentado acerca do futuro curso dos
acontecimentos.
(e) A ciência basea-se na teoria generativa e encara a
evidência estatística da sucessão como base da hipótese
da existência de um mecanismo causal.
(f) isto origina o princípio metodológico de que um
estudo só pode considerar-se completo quando se
identificou o mecanismo causal; por exemplo, as
pesquisas das causas do cancro.
(g) Determina também a estrutura da explicação
científica, que consiste quer nas relações estatísticas
entre fenómenos quer na indicação dos mecanismos
causais – por exemplo, a explicação da hereditariedade.
(h) A potência causal de uma coisa ou substância
relaciona-se com os mecanismos causais que ela contém.
Estes determinam o modo como ela reagirá aos
estímulos.
(i) Em contraste, a visão sucessionista concebe as coisas
como inteiramente passivas e destituídas de
potencialidades. Toda a explicação da mudança terá de
buscar-se no seu exterior.
(j) Visto a causação ser a reacção de mecanismos
causais permanentes, as co causas têm de ser mudanças
das condições em que o mecanismo causal antes existiu.
Os efeitos, porém, podem ser quer mudanças
subsequentes quer o novo estado produzido pela reacção
do mecanismo causal

292
(k) A aparente produção de efeitos pela mudança de
relações espaciais ou temporais explica-se pela
influência de coisas ou de substâncias vizinhas, cujos
efeitos dependem da distância ou do tempo – por
exemplo, campos magnéticos, etc.
(l) A teoria generativa da causalidade não admite a
criação ex nihilo.
8. Desde a Antiguidade que o substracto metafísico da
ciência se articula em três principais sistemas de conceitos:
(a) Sistema aristotélico:
(i) Em última análise, existe apenas uma substância
única, diferenciada em quatro tipos de matéria: sólidos,
liquidos, gasosos e radiantes. As coisas comuns retiram as
suas propriedades das proporções de cada um dos tipos de
matéria existentes em maior quantidade nas respectivas
composições.
(ii) Nos finais da Idade Média, esta teoria foi
completada pela teoria das formas substanciais, segundo a
qual uma multiplicidade de formas buscava a respectiva
corporização na matéria.
(iii) De acordo com esta teoria, a tendência geral das
coisas é a de se desenvolverem rumo à sua mais perfeita
manifestação e isso fornece a dinâmica da mudança, indo do
simplesmente potencial até ao concreto.
(iv)A teoria conduziu a um certo estilo de investigação
científica que procurou responder a quatro perguntas:
A) Quais as substâncias envolvidas no fenómeno?
B) Que formas se actualizam no processo?
C) Qual a perfeição para que tende o processo?
D) Qual o estimulo inicial que o desencadeia?
Erradamente, deu-se-lhe o nome de «teoria aristotélica
das quatro causas»: material, formal, eficiente e final.
(v) A ciência ocupa-se apenas dos acontecimentos que
ocorrem por necessidade e não dos que se verificam por
acaso, isto é, ocupa-se dos que fluem da natureza essencial

293
das coisas, sendo possível, portanto, entendê-los
racionalmente.
(vi) Dentro deste sistema, realizaram-se trabalhos
científicos muito importantes, como, por exemplo, os estudos
biológicos de Aristóteles, as pesquisas de Teodorico sobre o
arco-íris, o ensino da física matemática no Merton College,
etc.
(b) O Sistema Corpuscular:
(i) Em última análise, há apenas uma substância e a
mudança é possível por ela se dividir em unidades,
capazes de movimento e, portanto, de rearranjo.
(ii) O arranjo dos corpusculos constitui a essencia real
dos corpos e define as suas qualidades primárias.
(iii) A geometria, como ciência das formas, e a
mecânica, como ciência do movimento, são ramos
de saber essenciais.
(iv) A motivação das nossas ideias quanto às qualidades
secundárias resulta de mudanças no arranjo e no
estado de movimento dos corpúsculos constituíntes.
(v) Basicamente, os únicos acontecimentos reais seriam
redestribuições de movimentos originadas por
acções por contacto.
(vi) As propriedades últimas dos corpúsculos seriam
constituidas pelo seu poder de prencher o espaço
(extensão) e pelo de resistir a aumentos
instantâneos de movimento (inércia).
(vii) Boyle procurou provar a genuinidade da filosofia
corpuscular utilizando,em especial, o princípio de
que as mudanças de carácter mecânico apenas
originam alterações de grandeza, de aspecto, de
arranjo e de movimento das partes constituintes
das coisas, de modo que se uma mudança
qualitativa se segue a uma acção mecânica, essa
mudança qualitativa deverá ser ocasionada, em

294
última análise, por mudança nas qualidades
primárias.
(viii) R. J. Boscovich demonstrou que a tentativa para
encontrar um sistema consistente de acção
mecânica por contacto entre corpos sólidos e
incompreensíveis era incoerente e envolvia certas
contradições.
(c) As alterações introduzidas num sistema conceptual
derivam de vários factores, tais como aumento de
complexidade das explicações que empregam o sistema
anterior como base, descoberta de inconsistências no
seio desse mesmo sistema, modificações no panorama
geral, etc., etc.
(d) O sistema das potencialidades:
(i) O conceito de campos de potenciais veio substitur
o conceito de corpúsculos móveis.
(ii) O nosso sistema de conceitos deriva da
necessidade conceptual de entender os trabalhos
de pesquisa efectuados por Faraday no domínio da
electricidade, do magnetismo e da luz.

CAPÍTULO V

A HERANÇA CORPUSCULAR
Espero ter tornado progressivamente claro, o

papel construtivo da filosofia da ciência, à

medida que peregrinámos através do

emaranhado das divisões filosóficas

tradicionais: lógica, epistemologia e metafísica.

295
A filosofia da ciência gera e torna explícitos os

modelos ideais para que tendem as formas

descritivas e explicativas sob pressão dos

sistemas, das doutrinas e das teorias que

imperam em cada um dos ramos da filosofia que

lhe é consagrada.

Muito embora tenhamos deixado de aceitar a

filosofia corpuscular como sistema de conceitos

exclusivo, na qualidade de ferramenta útil

destinada a adequirir a compreensão intelectual

do mundo, tal filosofia continua exercendo

poderosa influência sobre as ideias de

conformidade com as quais descrevemos e

explicamos as coisas singulares, as substâncias

e os fenómenos. Pensa-se que derivam

nitidamente da filosofia corpuscular três

concepções sobreviventes da maior importância,

especificadas de maneiras diversas.

296
O PRINCÍPIO DA EXPLICAÇÃO ESTRUTURAL
Em primeiro lugar, para fins científicos, há que
redefinir como relações estruturais entre
indivíduos elementares, tomados como padrão, as
propriedades das coisas individuais e das
substâncias, isto é, as suas potencialidades e
qualidades, incluindo as causas das respectivas
qualidades sensoriais, ou seja, as qualidades que
nos manifestam quando delas tomamos
conhecimentos através da percepção.

A ocorrência de certo método organizativo no seio


das constituintes elementares de uma coisa torna-
se o principal aspecto da explicação das
potencialidades desses indivíduos e dessas
substâncias de manifestarem-nos certas
qualidades e de afectarem outras coisas.

Foi exactamente dentro deste espírito que Bacon,


para fins científicos, defendeu a substituição de
«X é quente» por «há um movimento expansivo,
contido e actuante no seu conflito sobre as
partículas mais pequenas de X». Esta definição foi
apresentada na viragem do Século XVI (1)
É ainda dentro do mesmo espírito que um cientísta
contemporâneo estabelece a diferença entre
grafite, negro-de-fumo e diamante atrvés da
referência às várias maneiras como os átomos de

297
carbono elementar se encontram dispostos no
espaço em cada uma dessas substâncias. Por e
exemplo, o poder da grafite de agir como
lubrificante, exeplica-se pelo arranjo em planos
dos seus átomos componentes, dispostos uns sobre
os outros de modo tal que as forças que mantém
os átomos reunidos nos planos são muito
superíores às forças que actuam entre estes
últimos, permitindo-lhes assim deslizar livremente
uns sobre os outros.
O efeito da desão tácita a esta forma de
análise e de explicação é o de certas maneiras
de descrever e de explicar, tenderem a
sobrepor-se a outras coisas. Manifesta-se tal
coisa no modo de encarar a multiplicidade de
espécies de individuos e de substâncias
conhecidas na Natureza. Há tendência para
reduzir ao mínimo o número de espécies de
entidades individuais e para fazer o mesmo à
multiplicidade das substâncias. Semelhante
tendência caracteriza-se de maneira bastante
particular. Por exemplo, em tempos recentes,
os noventa e dois elementos naturais
diferentes, noventas e duais substâncias
básicas distintas, foram convertidos em
noventas e dois materiais indepentendes e
diversos. A sua diversidade noventa e duas

298
vezes expressa explica-se supondo que cada um
deles é composto por unidades com noventa e
dois arranjos diferentes no espaço, isto é,
diferentes géneros de átomos constituem
sistemas diferentemente relacionados de apenas
três espécies básicas de indivíduos: protões,
neutrões e electrões.
Durante certo tempo, o protão e o electrão foram
considerados as únicas partículas elementares, ou seja, as formas
mais simples de matéria capazes de existência livre. Descobriu-se
depois o electrão e foram preditos teoricamente o positrão, o
mesão,, o neutrino e o ómega-menos por Dirac, Yukawa Pauli e
por Gell-Mann e Néemann, respectivamente, partículas já
assinaladas experimentalmente. Em 1957, eram conhecidas apenas
trinta, mas agora saber-se da existência de cem, embora não
esteja esclarecido até que ponto se trata de partículas
«elementares» ou «fundamentais», podendo constituir
combinações das que já se conhecem ou de outras ainda não
detectadas como, por exemplo, os quarks, aventados por Gell-
Mann. (Harre, Rom: pg. 167, As Filosofias da Ciência).
As diferenças de poderes e de qualidades
das substâncias, atribuem-se, assim, a
diferenças estruturais dos respectivos
constituintes elementares, ou seja, a
diferença qualitativa reduz-se à diferença
das relações entre as partes e é por ela
explicada.
Parece, pois, que houve um progresso no
conhecimento, um passo rumo a uma
compreensão mais profunda, quando noventa
e duas maneiras diferentes de relacionar
três espécies fundamentais de coisas
299
substituíram noventa e duas espécies
distintas de átomos «básicos». A
proliferação de espécies nos ramos
científicos, tal como a de espécies de
átomos conhecidos que se multiplicaram no
século XIX, é incarada como uma
incumbência por aqueles que perfilham o
ideal corpuscular. Trata-se de um desafio
demonstrar que a multiplicidade não passa
da diversidade de substâncias, isto é,
diversidade de espécies de materiais
básicos.
O sistema aristotélico que utilizou a
matéria e a forma como conceitos
fundamentais, não desenvolveu, na prática,
uma perspectiva rdutiva da diversidade, a
despeito do facto de incluir a ideia dos
«quatro elementos». Em vez de tratar a
diversidade das substâncias como
resultantes das diferentes proporções
desses quatro elementos, o que, dada a
teoria, constituiria a atitude mais natural,
os aristotélicos tenderam, na prática, a
aceitar a multiplicidade das substâncias
como irrefutável e a postular uma forma
separada para cada material diferente.

300
Não me parece que isto seja de modo algum
uma faceta essencial do sistema
aristotélico. Mas era uma faceta do
sistema tal como os corpuscularistas o
conheciam e, em boa verdade, foi uma das
características que eles encararam com
maior desprezo. Em The Origins Of the
forms and Qualities e em outros trabalhos,
Boyle, em pespecial, exprobou a maneira
como os aristotélicos tinham permitido a
proliferação de formas independentes com a
rapidez necessária para corresponder à
descoberta de novas substâncias.
Em todas as ciências, tanto na química
como na física ou na biologia, a ideia de
estrutura teve sempre imenso peso:
Os químicos demonstraram com êxito, que nas
moléculas, os átomos constituintes se dispõem
numa configuração espacial definida e que as
suas inter-relações são cruciais para explicar
muitos dos comportamentos dos compostos;
De modo semelhante, também a anatomia,
que é o estudo das relações espaciais dos órgão
e das células dos corpos das plantas e dos
animais, progrediu até ao ponto de chegar ao
estudo da «anatomia» das moléculas

301
constituintes dos materiais orgânicos e da
estrutura ínfima das entidades singulares vivas;
Com efeito, a biologia tem vindo a provar
progressivamente que a diversidade de géneros
não deve ser levada em conta da diversidade
última das substâncias, mas sim da diversidade
de estruturas existentes no seio de um número
bastante pequeno de tipos de átomos, ou seja,
de um número muito reduzido de géneros de
indivíduos de escasso número de materiais
básicos.
O ideal corpuscular de estrutura altera-se
na prática devido a uma tendência
complementar a da diminuição de tipos de
substâncias e de coisas individuais – a tendência
para procurar a reduzir a variedade de
relações, segundo as quais se constroem as
estruturas que se consideram responsáveis pela
diversidade de géneros. As nossas ideias sobre
as relações estruturais e causais parece serem
afectadas deste modo. A perpétua insatisfação
de Newton a respeito da gravidade fornece um
exemplo desta tendência, creio eu. Newton
desenvolveu um sistema mecânico inteligível para
explicar o comportamento de coisas individuais,
baseado na mera relação do choque entre
corpos móveis. As suas leis da colisão

302
descrevem a redistribuição de velocidades e as
mudanças de direcção que se verificam quando
duas ou mais coisas colidem. É esta a
verdadeira essência da «acção por contacto».
Como muitos corpuscularistas, também Newton
acreditou, por certo, que quase toda a acção se
revelava, em última análise, acção por contacto.
No fim, teria de haver, portanto, apenas uma
relação causal entre coisas individuais e entre
substâncias, a relação de contacto, durante a
qual ocorreria o único tipo de mudança
permitido num mundo corpuscular,
nomeadamente, a mudança de direcção ou de
grau de movimento. Toda a mudança vista,
sentida, saboreada, tacteada ou observada de
qualquer outra maneira resumir-se-ia a uma
mudança de direcção ou de grau de movimento
dos corpúsculos em causa.
Mas a gravidade veio desafiar este programa.
A gravidade afectou, sem dúvida, quer o grau
quer a direcção do movimento e, no entanto,
tratava-se da antítese da acção por contanto.
Paradigmaticamente, era a acção à distância,
um modo de causação que dir-se-ia não ter
cabimento na filosofia corpuscular.
Isto desagradava a Newton e o cientista viu-se
em sérias dificuldades para explicar que não

303
considerava a gravidade como um poder primário
da matéria, visto actuar à distância e fazê-lo
com força diversa consoante o grau de
afastamento dos corpos interactuantes. Esperou
que viesse a descobrir-se o resultado do efeito
de um «agente actuando constantemente». E,
de certas notas deixadas na sua
correspondência, parece óbvio que o satisfaria
uma forma de acção por contacto que eliminasse
a falha que sentia existir no seu sistema, ao
admitir dois modos de causalidade
característicos entre coisas e entre
substâncias.
Este ideal corpuscularista, de acordo com o qual
deveriam decompor-se as qualidades, os
poderes, as propriedades, as substâncias, os
estados e os processos, associa-se a uma certa
forma de explicação.
Visto a ideia de estrutura determinar aquilo
que se pensa existir realmente no mundo,
também determina o que se considera aceitável
como explicação. Indica quando esta termina.
todas as noções como a da natureza da
explicação final (Aristóteles), a de quais os
géneros de estados de coisas materiais que são
ultimos responsaveis pelos estados como os
percebemos no mundo (O Corpuscularismo) e das

304
nossas ideias quanto ao que são, de facto, as
coisas ( A Teoria da Relatividade). todas estas
noções encontram-se associadas e especificam-
se através de diferentes aplicações do conceito
de estrutura. A explicação do isomerísmo
constitui excelente exemplo da maneira como
tais noções se entrelaçam. O isomerismo é um
fenómeno no qual duas ou mais substâncias que
possuem a mesma composição química exibem
vincadas diferenças de propriedades químicas e
físicas, sendo estas de tal modo distintas que
impõem que as consideremos como substâncias
diferentes.
a)O isomerismo explica-se pelo facto de
os átomos, cujas propriedades são
idênticas nos isómeros, se encontrarem
dispostos no espaço de maneira diversa,
sendo a diferença entre os isómeros
exclusivamente devida a orientação e
aos arranjos diferentes dos seus
átomos constituintes.
b)A aderência tácita à ideia de que as
substâncias sejam, na verdade,
estruturas está bem patente no facto
de as diferenças da estrutura
geométrica se aceitarem por inteiro
como a explicação verdadeira do

305
isomerismo. Tendo-se fornecido uma
explicação estrutural e demonstrado
como ela funciona em caos específicos,
nada mais há a fazer.
c) Por outras palavras: o relato estrutural
dá conta do que são realmente os
isómeros e do que é realmente a
diferença existente entre eles. Feitas
as contas, é a diferença de estrutura a
responsável por e a causadora das
diferenças entre isómeros.
Considerando esta ideia corpuscular como
definidora da forma explicativa ideal, isso
incitá-nos a explicar as propriedades e as
potencialidades das coisas individuais e das
substâncias como resultantes da sua estrutura
infíma, ou seja, do arranjo e da interação das
suas partes. Poder-se-á chamar-lhe de
microexplicação. Nesta forma de explicação,
as propriedades globais dos indivíduos tornam-
se funções das propriedades das partes
constituintes. A massa de um corpo sólido é a
soma das massas das partes em que ele pode
ser decomposto; massa é uma função aditiva de
micromassas. A carga total num corpo é a
totalidade de cargas eléctriucas elementares

306
nesse corpo; a carga é a função aditiva das
microcargas.
a)Parece perfeitamente concebivel a
existência de relações não aditivas entre
propriedades globais e
micropropriedades, relações essas em
que a propriedade global não é apenas a
soma das micropropriedades. Quando,
por exemplo, se procura determinar a
relação entre o comportamento de uma
amostra de gás, considerada como um
agregado de moléculas, e as
propriedades, a estrutura e o
comportamento das moléculas em si,
nesse caso, as micropropriedades não
são meras funções aditivas das
micropropriedades. A pressão relaciona-
se com as microvelocidades das moléculas
componentes, mas é cálculada a partir
destas de maneira não aditiva e muito
ocmplexa. Na verdade, a amostra de gás
não apresenta velocidade que seja a
soma vectorial dessas velocidades, pois a
amostra de gás não tem qualquer
velocidade.
b)De modo identico se quisermos relacionar
o comportamento de uma multidão, com o

307
ocmportamento dos seus elementos
individualmente, também as
caracteristicas dessa multidão não são
representadas por funções aditivas das
caracteristicas dos respectivos
indivíduos.
Muitos grupos ou agregados exibem
propriedades que não são as mesmas dos
individuos que os constituem; dá-se o nome de
PROPRIEDADES EMERGENTES – São grupos ou
agregados que exibem propriedades que não são
as mesmas dos indivíduos que os constituem.
a)As moléculas singulares não apresentam
pressão ou temperatura, propriedades
próprias apenas dos agregados de
moléculas. As células individuais são
incapazes de falar ou de pensar, mas pode
fazê-lo o conjunto dessas células que é o
ser humano. As propriedades emergentes
são relevantes sobretudo nas ciências
biológicas, embora constituam lugares-
comuns também em outros sectores. Nada
há de misterioso nisso. Resultam de duas
distintas facetas dos agregados:
a.1) O tipo de agregado a que o biologo
presta atenção é o dos organismos e estes
possuem determinada estrutura. São

308
constituidos de modo tal que essa estrutura
é preservada durante toda a vida do
organismoe, se acaso ela se modifica, há
continuidade de estrutura entre as diversas
formas que o organismo porventura exibe no
decurso do seu ciclo vital. Muitas
propriedades emergentes dos organismos
são explicáveis por características da
estrutura e não apenas pelas componentes
que nela tomam parte. A manutenção da
temperatura num organismo complexo é uma
caracteristica emergente porque deriva do
modo como se despõem as partes do
organismo e de como se relacionam entre si
casualmente.
b) Ao contrário do facto de a massa de um
organismo ser função aditiva das massas
que o compõem, a temperatura de um
organismo de sangue quente não é função
aditivas das temperaturas das suas
componentes. Provavelmente, a capacidade
de solucionar problemas manifestada por
organismos mais desenvolvidos e a
capacidade da fala, apanágio dos
organismos superiores, terão de atribuir-se
à maneira como se relacionam as diferentes

309
partes desses organismos e, portanto, à
sua estrutura.
Mas existe uma outra fonte de propriedades
emergentes. É o que se poderá chamar, à falta de
expressão mais apropriada, «o facto de
conjunto». Uma célula única poderá carácterizar-
se pela totalidade das reacções químicas que nela
ocorrem, sendo muitas delas reacções químicas
que nela ocorrem, sendo muitas delas recções
catalíticas realizadas a baixas temperaturas, as
enzimas agindo como catalisadoras. Verifica-se na
célula um conjunto de reacções químicas e toda a
vida celular é determinada por essas reacções e
pela ordem em que ocorrem. Por sua vez, o
processo é regido pelo material genético,
responsável, em última análise, pelas enzimas
sintetizadas na celula e na sequência em estas são
produzidas. Ofacto de certo conjunto de reacções
ocorrer na célula não é, porém, um facto quimico.
A explicação do motivos porque determinada
reacção acontece pode referir-se ao material
genético, e a explicação do porque de este ser
codificado para produzir apenas uma dada enzima
em determinado momento pode ser referida à
história evolutiva do organismo. Mas nem o facto
genético nem o facto evolutivo, explicativo do
facto, são factos químicos. A explicação da

310
estrutrutura exacta da química da célula não se
faz em termos químicos, mas sim biológicos.
Relativamente à química celular, o facto de esta
consistir num determinado conjunto de reacções é
uma propriedade emergente da célula. Não pode
ser expresso por uma lista de factos químicos, por
muito extensa que ela seja.
A explicação, porém, não é necessariamente
microexplicação; não é de todo imprescendível,
do ponto de vista corpuscularista. No nosso
sistema de pensamento, também é admissível a
macroexplicação.
IV.8.3-A MACROEXPLICAÇÃO- isto é, a
explicação da naturerza e da estrutura das
partes de uma coisa individual emtermos das
caracteristicas da totalidade dessa coisa. Isto
é muito comum nas explicações científicas
modernas. É desta maneira, por exemplo, que
se explicam os papeis sociais. Os deveres de
um presidente de direcção explicam-se
referindo-os aos poderes e às funções da
comissão, a qual é um conjunto de individuos
onde o presidente se inclui. «O presidente tem
o voto de desempate a fim de impedir becos
sem saída» é a explicação do seu poder de voto
especifico, dado ser a comissão incapaz de

311
decidir e não qualquer um dos membros
individuais.
Em antropologia, a perspectiva funcionalista
depende em muito do emprego da
macroexplicação. Segundo tal teoria, todos os
fenómenos sociais são entendíveis por
referência à função que desempenham na vida
da sociedade. Deste modo, a explicação para o
costume de se oferecerem cabaças ao chefe da
tribo que, após ter construido com elas uma
espécie de trono, as distribui por determinadas
pessoas, deverá encontrar-se no papel que este
acto desempenha na vida económica e ritual da
comunidade.
Também na física há macroexplicações. Poderá
ser verdade que algum aspecto do todo dote de
propriedades as partes. Esta macroexplicação
encontra-se, por exemplo, na teoria da massa
proposta por Mach, de acordo com a qual a
massa de cada corpo singular existente no
Universo se deve aos efeitos exercidos sobre
aqueles por todos os outros corpos. Num
Universo onde só houvesse um único corpo, este
não teria inércia. Portanto, caso pretendamos
explicar o motivo pelo qual os corpos individuais
dela são dotados, há que buscar essa

312
característica do sistema dentro do qual o
corpo constitui uma parte.
CONCLUSÃO: no primeiro exemplo citado, a
tendência para preferir determinada forma
explicativa iniciou-se na qualidade de exigência
a favor de certo tipo de descrição e, como se
viu, transformou-se gradualmente numa
exigência em prol de um dado género de
explicação. Deu-se preferência a certas
espécies de causas e as explicações surgiram
das causas.
IV.8.4- SUBSTITUIÇÃO DAS DESCRIÇÕES
QUALITATIVAS PELAS QUANTITATIVAS
O princípio que exporemos a seguir faz uma
exigência mais puramente descritiva. É o
seguinte: as descrições qualitativas deverão
substituir-se, sempre que possível, pelas
quantitativas. A fim de esclarecer tal
prtincípio, pô-lo-ei a funcionar em três
manifestações distintas.
A primeira que nos promos discutir é a
preferência dada, para efectuar medições, ao
emprego de unidades-padrão em detrimento de
simples grandezas ordenadas. Preferimos, por
exemplo, utilizar unidades de comprimento, em
vez de meras comparações de comprimento. Um
exemplo disso é o uso do metro para comparar

313
duas piscinas, para pôr em comparação
cinquenta metros de uma com os cem metros de
outra, ao contrário de dizer vagamente que a
segunda é muito mais comprida do que a
primeira. A utilização de unidades fornece-nos
medidas numéricas, pois todo o segredo das
unidades reside no facto de estas serem
contáveis e aditivamente relacionadas com a
quantidade total que medem.
Nos tempos modernos, o uso de unidades e de
medidas numéricas como substituto de
comparações puramente qualitativas resulta do
trabalho de Nicolau Oresme, cientista e
filósofo da época medieval.
Servindo-se do sistema metafísico aristotélico,
Oresme procurou uma maneira de representar o
grau em que uma forma se achava presente ou
se actualizava numa coisa – uma medida da
«latitude das formas». Suponhamos que uma
das extremidades de uma haste de cobre foi
submetida a aquecimento. Como representar o
facto da existência de uma extremidade quente
e de uma extremidade fria e das diversas
gradações de calor em ambas? Surge idêntico
problema de representação quanto a gradação
de cor ou quanto à mudanças de velocidade. A
ideia de Oresme foi a de determinar, ao longo

314
de uma linha básica, a distância a todo o
comprimento do corpo onde ocorriam gradações
de qualidade. Em seguida, traçou
perpendicularmente à linha de base, cujas
alturas representavam o grau a que a forma se
manifestava no corpo a essa distância. Desta
maneira podiam, estabelecer-se facilmente
gradações de qualidade, tais como de calor ou
de cor ou, ainda, do que agora consideramos
como quantidades – a velocidade, por exemplo.
Esta experiência constitui, de facto, o início do
método gráfico. Não podemos deixar de pensar
na influência concreta exercida por Oresme
sobre o desenvolvimento das ideias
quantitativas; basta dizer que, a partir dessa
época, ou seja, desde os começos do século
XIII, se fizeram esforços progressivos rumo à
mensuração numérica.
A essência deste método reside em fazer-se
uso repetitivo de uma unidade-padrão. Uma
subida de calor, por exemplo, cifrar-se-á em
uns quantos aumentos iguais de graus de calor,
de modo a que aquela se descreva como um
acréscimo, digamos, de quarenta e sete graus,
um aumento de quarenta e sete unidades de
graus de calor. Antes de poder empregar tal
método, há, um dulpo problema a resolver:

315
(1) Como definir a unidade?
(2) Como, depois de definida, manter
essa unidade?
Em resumo: como, uma vez criado,
conservar o padrão?
Em primeiro lugar, os padrões são
estabelecidos; não existe nenhum processo para
os descobrir. Todos se relacionam com algo que
é escolhido e que se entendeu convir ao fim em
vista. Tanto melhor se o padrão for expontâneo
na Natureza, muito embora continue a ser
objecto de opção que esta ou aquela coisa ou
este ou aquele processo representem o padrão.
Um padrão natrural e um padrão artificial
diferem apenas pelo facto de o primeiro ser
seleccionado da Natureza e o outro ser
fabricado O padrão do tempo é natural por ter
sido o processo natural do movimento da Terra
à volta do Sol o escolhido como base. O padrão
do comprimento é artificial, pois fabricou-se
uma barra metálica de determinada extensão
que se convencionou constituir o padrão. Hoje
em dia, o padrão do comprimento assemelha-se
ao do tempo porque se fundamenta num
fenómeno natural arbitráriamente escolhido: «o
metro é agora definido como 1 650 763,73

316
comprimentos de onda da risca vermelho-
laranja do crípton-86».
A relação do padrão como processo natural em
que se fundamenta pode revelar-se bastante
complicada. É um facto que «a unidade padrão
de tempo para as ciências físicas é o dia solar
médio»; mas o dia solar médio não passa de
uma abstracção matemática dos movimentos da
Terra e do Sol.
A medida de uma distância é simplificada pelo
facto de quando se utilisa um subpadrão, tal
como uma régua de metro, ser possível deslocá-
lo sobre aquilo que se mede e, teoricamente,
em boa verdade, a mensuração, poderia
efectuar-se apenas com a régua, dede que se
disposesse de uma régua de cálculo e se no
processo de medição se garantisse a invariância
do comprimento.
Mas será possível fazer o mesmo com o tempo?
Imaginemos, por exemplo, que fixamos, em um
segundo-padrão no ano de 1965. Tendo
decidido que este é uma determinada fracção
do dia solar médio, principiamos a fabricar
relógios que dividem em tal fracção essa
quantidade de tempo relativa ao ano de 1965.
No ano seguinte, utilizamos de novo os relógios
e eles definem nessa altura o segundo-padrão.

317
Mas como estar certo de que os instrumentos
não alteraram o ritmo? Os segundos decorridos
em 1965 esvaíram-se para sempre, sendo
lógicamente impossível obter um desses
segundos com o qual comparar os segundos de
1966. Não é dificil comparar uma sociedade em
que os dias e as noites tenham igual duração no
decorrer de todo o ano, mas em que,no verão,
com o tempo mais quente, os relógios trabalhem
mais depressa durante o dia, dando a impressão
de cobrir mais horas, e em que, no inverno,
funcionem mais devagar devido ao frio,
parecendo não contar algumas horas do dia.
De maneira semelhante, todos os processos
naturais se acelerariam durante o calor do
Estío e se atrasariam com o frio do Inverno. A
esta ideia, se convenientemente elaborada, com
dificuldades se apontariam defeitos. Envolveria
algumas novas leis da Natureza mas, tanto
quanto me é dado perceber, essas leis poderiam
ser consistentes.
A nossa crença na regularidade dos relógios e
de outros processos repetitivos é, de facto,
matéria de fé. Claro está que a sustentamos
zelando para que o funcvionamento dos relógios
não sofra interferências externas – poeiras ou
campos magnéticos fortuítos, por exemplo. Mas

318
nada disso nos garante que os relógios, por si,
próprios, não funcionem quer mais depressa,
quer mais devagar, quer mesmo erraticamente.
Há na ciência um princípio com raízes
profundas, uma crença nas proporções
cósmicas, de imenso significado, do qual nos
socorremos em casos semelhantes. É a
convicção de que, a não ser que algo interfira
numa coisa, numa substância ou num processo,
eles permanecerão inalterados. Acreditamos que
as coisas, as substâncias e os processos não
mudam por si próprios.Mas há que introduzir
algumas alterações a este princípio, dado
também considerarmos como bastante
fundamental a categoria de acção,o que se pode
verificar ao debater-se a metafísica da
causalidade, nomeadamente quanto a concepção
generativa da causalidade e a sua concomitante
noção de potencialidade são claramente contra
a ideia de que todas as coisas permanecem
estáveis na ausência de influências externas.
Optamos para fabricar os nossos relógios a
partir de materiais não espontâneos: seria
loucura construi-los com materiais radioactivos,
por exemplo, sabendo como sabemos que, com o
decorrer do tempo, alterariam expontaneamente
a sua natureza, tal como também seria

319
insensato fabricá-los com materiais explosivos.
Escolhemos para tanto joias e metais mais
inertes, ou seja, as substâncias mais
resistentes e menos susceptíveis de fadiga.
Trata-se de uma opção, de uma opção
arbitrária, em última análise, por meio da qual
estabelecemos os padrões por meio dos quais
nos servimos; mas mesmo no caso dos mais
rebeldes – os padrões do tempo -, temos o
cuidado de proceder a uma escolha racional. À
medida que a ciência progride, é possível
constatar que a escolha de certos padrões
simplifica as leis da Natureza, ao passo que a
de outros a complica. Uma visão excelente do
modo como isto se passa é nos dada por H.
Reichenbach no seu livro The Philosophy of
espace and time.
Podem traçar-se unidades dentro de grandezas
contínuas. A temperatura, o comprimento, o
tempo, etc., são grandezas contínuas e as
possibilidades de medição numérica dependem
da divisão dessas grandezas em escalões
contáveis pelo emprego e pela aplicação
repetidas das unidades. Um caso em que a
filosofia corpuscularista se alia à necessidade
da discriminação ou distinção, base justificativa
do método de contagem de entidades individuais

320
pela sua numéração uma a uma. O método
aplica-se, quer a individuos reais – os seres
humanos constituintes de uma população, por
exemplo – quer em casos menos óbvios, criando
uma nova classe de indivíduo, por meio do
estabelecimento de fronteiras inexistentes na
Natureza.
Quando, por exemplo, Mendel levou a efeito as
suas experiências com ervilheiras e contou o
números de indivíduos verdes e lisos,
comparando os valores da contagem com os de
indivíduos amarelos e enrugados, o método só se
tornou possível porque o carácter discriminante
da qualidade de amarelo, cujas manifestações
estavam a ser contadas, foi inserido no
processo ao ignorarem-se as grandes diferenças
de tonalidade da cor amarela, sempre presentes
em conjuntos naturais de coisas; em um ponto
qualquer teria de traçar-se a linha divisória
entre amarelo e verde, linha que possibilitasse
a contagem. Como se vê, até no próprio acto
de contar indivíduos se procede à criação
arbitrária de padrões destinados ao
reconhecimento desses mesmos indivíduos.
Neste caso, pode falar-se da diferença entre
identidade numérica e qualitativa. Duas ervilhas
são qualitativamente idênticas, caso sejam

321
indestinguiveis pela cor, pelo tamanho, pelo
formato, pela textura e pelo peso, de acordo
com critérios de diferença preestabelecidos. É
óbvio que as coisas idênticas em termos
qualitativos podem ser numéricamente diversas,
isto é, podem existir duas ou mais coisas
singulares exactamente semelhantes. Em regra,
para fins científicos, as coisas incidem sobre
indivíduos numéricamente distintos que são
qualitativamente idênticos em certos aspectos
específicos, visto que, claro está, não é
possível encontrar na Natureza e estudar de
modo empírico dois indivíduos exactamente
iguais.
B)Todavia, há uma classe de indivíduos a que
esta verdade se não aplica. Um dos princípios
da física subatómica é o de que todos os
electrões são perfeitamente iguais, ou seja,
diferem apenas em termos numéricos. Nenhum
electrão pode ser rotulado ou marcado seja de
que maneira for que o torne diferente dos seus
congéneres. A inaptidão prática para rotular os
electrões será talvez consequência da nossa
ignorância da sua natureza e não temos motivos
para supor que, se acaso os conseguíssemos
estudar de perto e se se nos revelassem como
coisas individuais, não exibissem caracteristicas

322
identificáveis que os classificariam como
indivíduos. Este caso fornece-nos um exemplo
relevante para considerações de ordem mais
geral.
C) A física é um ramo científico particularmente
propenso a elevar certos factos, considerados
de grande importância pelos físicos, ao estatuto
de princípios, quando tais factos se mostram
imunes à revisão. Mas nenhum princípio está por
completo a ser revisto nem é de necessidade
absoluta. Quando o progresso da ciência
destronar o electrão do seu presente estatuto
de entidade última, será possível individualizá-
lo, sem dúvida, se acaso se revele uma coisa.
Até o princípio segundo o qual duas coisas não
podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo é
susceptível de ser abandonado sob determinadas
circunstâncias.
D) Tendo identificado os indivíduos e
pretendendo contá-los, há ainda outros
presupostos envolvidos no acto de exprimir o
resultado da contagem como resultado numérico
definitivo, com uma verdade acerca da
composição de determinada classe de coisas
qualitativamente semelhantes, sejam de que
genéro forem as que se contam. As coisas reais
principiam a existir, deterioram-se e

323
desaparecem. Assim sendo, como garantir a sua
estabilidade a fim de determinar uma soma? De
nada serve propôr um número como resultado da
adição de um grupo de coisas quando se não
tem a certeza de que existem ainda todos os
indivíduos com que se iníciou a contagem, ou
quando se não sabe se eles continuam a poder
incluir-se como membros da classe que se
inumerou. Deverá ampliar-se o recenciamento
populacional, por exemplo, de modo a estendê-
lo ao cemitério? Deverão as crianças que ainda
não nasceram serem incluídas na contagem da
população? Se não for esse o caso, porque
motivo o não deverão ser? Nenhuma razão
apresntada será conclusiva; os não nados e os
mortos não têm qualquer caracteristica especial
que os impeça de serem contados como parte da
população.
O que fazemos nestes casos é determinar por
decreto, por assim dizer, o que considerarmos
como pessoa para fins de recenseamento. Esta
apreciação, por sua vez, processa-se de acordo
com as finalidades a que o censo se destina. Se
este funcionar como instrumento para
estabelecer a política governativa no capitulo
das necessidades de abastecimento de água e
de géneros alimentícios ou da habitação, não

324
será necessário, neste caso, incluir os mortos.
Se o censo visa o cálculo do número de
mancebos em idade militar e dos indivíduos que
deixarão o ensino nos próximos três anos, então
não faz sentido que nele frigurem os que ainda
não nasceram. Se, porém, como acontece entre
os mórmons, o intuíto é o de baptizar dentro da
fé mórmon toda a agente que alguma vez
existiu, o caso terá de incluir os mortos. Isto
quer dizer que, a finalidade que preside à
feitura de uma coisa qualquer determina os
moldes das nossas actividades. O exemplo mais
flagrante disso é o acto de decidir o que
contar como indivíduos afim de realizar uma
enumeração. Portanto, a estabilidade não se
garante através da contagem de indivíduos
particularmente estáveis, mas sim decidindo de
antemão quais os critérios a satisfazer para
afirmar que um indivíduo surgiu para a
existência ou aque ocorreu nele uma tão grande
mudança que cessou de ser de determinada
espécie.
E)Depois de assegurada a estabilidade por
intermédio de uma convenção, como garantir a
unicidade?
Verificando que o que contámos não deixou de
existir como coisa desse género ou não cessou

325
muito simplesmente de existir, como saber se
não contamos duas vezes a mesma coisa?
Abolidas as diferenças individuais afim de
tornar os indivíduos qualitativamente idênticos e
poder inserí-los como membros da mesma
classe, como recuar na justa medida para nos
certificarmos de que cada indivíduo é contado
uma vez e uma vez só? Para tanto, tomamos
certas precaussões, tanto práticas como
metafísicas. Estas últimas dependem do
importante conceito metafísico que, em parte,
determina o nosso conceito de «coisa
individual»: de que duas coisas não podem estar
ao mesmo tempo no mesmo lugar. Por
conseguinte, contar as coisas no seu lugar
constitui uma precaução metafísica.
F)Outra maneira de garantir o carácter único
de uma coisa, a sua imparidade, também
depende do princípio anterior, é a de fazer a
contagem num único lugar, recorrendo a
recepientes apropriados, dos quais as coisas já
contadas não tenham possibilidades de escapar.
O emprego de receptáculos à prova de fuga
representa parte das precauções práticas, mas
a conveniência em utilizá-los deriva da
metafísica das coisas e dos respectivos lugares.
Se a contagem poder efectuar-se num único

326
acto, tudo ocupará determinado lugar e não o
mesmo de qualquer das coisas e far-se-á uma
enumeração de coisas singulares. Mas contar
leva o seu tempo, resultando daí a necessidade
de se tomarem as precauções de ordem prática,
tal como a do emprego dos já referidos
recipientes à prova de fuga, ou ainda a de
válvulas ou de comportas que verificam a
entrada e a saída da área de contagem e dos
receptáculos e permitam que ela apenas decorra
num sentido. Mas dispositivos como o
constituído por dois redis separados por uma
cancela, empregue por pastores para contar
cabeças de gado, são eficazes apenas quando
se observa uma precaução metafísica. O método
do pastor só é válido porque a coisa pode estar
em dois lugares ao mesmo tempo. Este conceito
metafísico, que é também parte determinante
do conceito de coisa, garante que os métodos
práticos – o do pastor, por exemplo – funcionem
efectivamente.
Verificar-se-á tal coisa por ser um facto que
uma entidade não pode estar em dois lugares ao
mesmo tempo, um facto susceptível de
excepções? Poder-se-á dar o caso de, algures,
algo ocupar dois lugares ao mesmo tempo? De
modo nenhum; trata-se de matéria conceptual,

327
de matéria metafísica. É o reflexo da maneira
como empregamos o conceito de coisa individual.
Se existem dois individuos qualitativamente
idênticos em lugares diferentes ao mesmo
tempo, isso permite-nos dizer que há duas
coisas numéricamente distintas. Enquanto nos
guiarmos pelo vigente sistema conceptual, não
poderemos considerar que tal facto refute o
referido princípio. É impossível fazê-lo por
tratar-se de um princípio metafísico e por
exprimir a maneira como usamos os conceitos
de coisa e de lugar.
A) Ao debatermos o problema do
estabelecimento de um adquado padrão de
identidade qualitativo capaz de tornar
reconhecíveis os individuos de determinada
classe ou conjunto e, portanto, susceptíveis
de contagem, aflorámos o problema das
fronteiras existentes em certos casos. Para
fins de contagem, como decidir se uma
ervilha verde-amarela é verde ou amarela?
A maneira mais óbvia de lidar com certas
características que se esbatem umas nas
outras é optar por um exemplo-padrão da
característica A e um exemplo-padrão da
característica B, de modo a que B exclua A
e A exclua B, prosseguindo de conformidade

328
com graus de semelhança. Portanto, quando
um caso intermédio é mais semelhante a A
do que a B, será classificado como A e
incluindo nesta classe para fins de
contagem – a proporção de A para B num
recenciamento populacional, por exemplo.
Deste modo, se considerarmos que os casos
intermédios entre A e B se podem rpartir
de forma arbitrária quer por A quer por B
afim de eliminar esses casos intermédios,
é-nos possível proceder à contagem.
B)Mas nem sempre as coisas se mostram tão
simples. Há por exemplo, o difícil problema
daquilo que passou a designar-se por
«tríade inconsistente». Surge este caso
quando se tem três objectos –A B e C –que,
se examinados em conjunto, são tais que A
emparceira com B em determinada
característica, a cor, digamos, e B condiz
com C no mesmo particular. Prém, em vez
de constatarmos, como seria de esperar,
que A emparceira com C na cor, verificamos
que tal não sucede. Tais casos não são
invulgares e deu-se.lhes o nome de
«tríades inconsistentes». Tornam impossível
atribuir de modo arbitrário o caso

329
intermédio de B tanto a A como a C; pelo
menos assim se pensa.
C)Para resolver tal problema terá de
perguntar-se que expécie de explicação
dariamos à existência de uma tríade
inconsistente. Porque motivo esta se
verifica? A resposta óbvia e provavelmente
certa, neste exemplo específico, é a de que
a nossa capacidade de resolução de um
comprimento de onda em cor tem apenas
uma dada agudeza. Coseguimos distinguir
como diferença de cor uma diferença de
comprimento de onda da ordem da que
ocorre entre A e C e, embora exista uma
diferença de comprimento de onda entre A
e B e entre B a C, a diferença de
comprimento de onda da luz não é tal que
consigamos captá-la como diferença da cor.
Produz-se o mesmo efeito com diferenças
da intensidade dos sons e mesmo com
diferenças de espaços entre pontos
assinalados pelo tacto. Se acaso não
dispomos de outro guia classificativo,
excepto do que nos parece a tríade
inconsistente, então, seguimos a ideia
subjacente a este género de explicação,
continuemos a solucionar a anomalia

330
atribuindo B arbitrariamente quer a A quer
a C. Diremos, portanto, que é realmente o
caso intermédio de A e C, mas que as
diferenças existentes não são descerníveis
pelos sentidos. No entanto sabemos tratar-
se, de facto, de um caso intermédio devido
à existência da tríade inconsistente.
I) A filosofia corpuscular constitui um
instrumento que orienta os cientistas para um
método específico de lidar com escalões de
qualidade ordenados. Daí que seguimos passos
que tendem para a substituição generalizada
dos meios qualitativos pelos quantitativos para
exprimir diferenças e distinções entre os vários
estados de coisas. Veremos isto acontecer
quando da aplicação das unidades de medida, na
atribuição de critérios discriminantes e veremos
depois a mesma ideia em funcionamento quando
se estabelecem medidas de qualidade por meio
do emprego de analogias.
A medição da temperatura fornece de tal coisa
um exemplo particularmente instrutivo.
Sentimos os objectos mais quentes ou mais frios
em diversos momentos, e objectos diferentes
transmitem-nos ao mesmo tempo diferentes
sensações de calor. Há uma antiga e célebre
experiência que demonstra como são

331
insatisfatórios os resultados das nossas
sensações de calor e de frio. Tomam-se três
tijelas onde se deita, respectivamente, água
quente, fria e morna. Durante alguns instantes,
mantem-se uma mão dentro da primeira tijela e
a outra dentro da terceira: depois mergulham-
se ambas no segundo recipiente. A água dentro
deste parecerá fria à mão que esteve na água
quente e quente a que esteve na água morna.
Como se vê, a sencibilidade dá-nos indicações
contraditórias quanto ao verdadeiro estado da
água. As dificuldades deste género solucionam-
se por meio de outros processos que confrotam
as variações de temperatura de modo menos
anómalo do que as nossas sensações de calor.
Há diversos processos que mudam com a
temperatura, ou seja, com o grau de calor. A
condutividade eléctrica altera-se deste modo,
por exemplo. Mas mais útil para fins simples é
o caso de o comprimento de uma coluna de
líquido ou de gáz se modificar de maneira
constante com a temperatura. O comprimento
da coluna é análogo ao grau de calor; serve
como medida desse grau. E o mais importante é
ser uma medida de comprimento aditiva, com
unidades satisfatórias capazes de dividir sem
ambiguidades uma grandeza contínua. Assim

332
sendo, o aumento da temperatura é assinalado
pela mera soma das unidades de temperatura .
Arbitráriamente, o padrão define-se de
diversas maneiras apropriadas, como, por
exemplo, o valor da expansão da coluna entre
quatro e cinco graus centígrados. A existência
deste instrumento conduz à mudança do
conceito de temperatura alterou-se por
referência à escala e ao processo analógico,
desaparecendo as anomalias quanto ao que é
realmente a temperatura do conteúdo da tigela
intermédia, ou seja, o valor atingido pela
expansão do líquido ou do gáz da coluna do
termómetro.
Mas intervém aqui uma outra fase, quando se
constrói a teoria explicativa do modo como a
coluna liquida ou gasosa expansível aumentou de
comprimento a cada grau calórico. A teoria
introduz um novo conceito teórico de
temperatura. No exemplo em causa, este
conceito tem haver com a energia interna do
material cuja temperatura nos interessa. O
conceito explica não só as leis que descrevem
mudanças de grau de calor nos corpos, mas
também o funcinamento do termómetro. Diz-nos
porque motivo a dilatação de uma coluna liquída
ou gasosa é um processo analógico ao aumento

333
do grau de calor, demonstrando como esta
subida é a causa do aumento de comprimento da
coluna, relacionando-se os dois processos de
modo tal que um possa ser a medida do outro.
Por fim, tratando-se acaso de uma boa teoria,
terá de explicar, tal como fazem todas as
teorias as anomalias ou as excepções a que está
sujeita tal correlação, não só a do paradoxo
das três tigelas, atrás referido, mas também
factos como o aumento de densidade da água,
isto é, a diminuição de volume entre zero e
quatro graus centígrados e a sua perda de
densidade subsequente, ou seja, a expansão.

A DIFERENCIAÇÃO DOS INSTRUMENTOS

O termómetro é apenas um dos milhares de


instrumentos de uso corrente nos laboratórios,
destinado a medir tantas particularidades em
estudo quantas as que se sujeitam aos princípios
aqui expostos e que, por conseguinte, são
numéricamente exprimíveis; em resumo, todas
as características que se podem medir.
Do ponto de vista científico, os instrumentos
são de dois tipos distintos. O primeiro engloba
aqueles a que darei o nome de «automedidores»
e o segundo os que denominarei de «não

334
automedidores». Os motivos que me levam a
designá-los desta maneira tornar-se-ão claros
a seguir.
INSTRUMENTOS AUTOMEDIDORES
Quando se mede um comprimento por meio de
uma régua ou de uma vara de metro, utiliza-se
um comprimento para medir outro comprimento
e, por isso, a vara de metro é um instrumento
automedidor. O mais primitivo instrumento
medida é a vara de metro, que se desloca
repetidas vezes ao longo do espaço a medir, de
acordo com uma regra de mudança de posição.
O comprimento do objecto medido é o número
de vezes que a vara foi deslocada ao longo
dele.
Conceberam-se regras de maneira a garantir
que a medição seja completamente efectuada
num sentido, afim de se evitarem anomalias. A
regra mais simples é a de que a medição
principie em uma extremidade do objecto,
prossiga deslocando-se a vara ao longo da linha
do seu comprimento até que o ocmeço desta
coincida com o ponto que assinalou a anteriror
posição do seu fim.
Porém, é possível imaginarem-se outras regras
capazes de produzir resultados diferentes, mas
que evitam anomalias. Colocar-se-á

335
correctamente uma alcatifa num soalho de uma
sala desde que ambos se meçam de acordo com
a regra que estipula que, após uma série de
deslocamentos da vara na mesma direcção, se
executa a viragem desta no sentido do
movimento dos ponteiros do relógio, no correcto
ângulo da direcção do novo deslocamento e,
depois, rodando-a no sentido inverso dos
ponteiros, se regresse à direcção original do
deslocamento da vara. Não só existem regras
para o emprego de varas de medida, como
há também pressupostos metafísicos e
físicos envolvidos na sua utilização. Um
desses pressupostos é o de que a vara não
varia de comprimento durante o seu
manuseamento sobre o corpo a medir.
Trata-se de um pressuposto bastante grosseiro e
poder-se-á supor o princípio mais medíocre de
que, se acaso se verificarem alterações estas
afectarão de igual modo todos os objectos
presentes; assim, se em uma das extremidades
ocorrer uma força que aumenta o comprimento das
coisas, essa força produzirá iguais efeitos sobre a
vara e sobre o objecto medido. Este princípio
permitiria o emprego de um metro de borracha
para medir objectos do mesmo material, se ambos
fossem submetidos a tensão em conjunto. Mas no
336
âmago de todos os métodos práticos existe o
pressuposto que, em regra, torna possíveis as
medições; a deslocação no espaço de um
instrumento de medida não lhe modifica o
comprimento.
A régua guardada e a fita métrica são
instrumentos de medida bastante mais vulgares do
que a vara. Do ponto de vista lógico, são também
muiot mais complicados. Na essência, combinam
dois dispositivos diferentes. São ambos varas de
medida e cada uma das graduações da régua e da
fita é igual a todas as outras graduações e
equivalente ao deslocamento da unidade original
para a posição seguinte, onde o seu princípio
coincide com o ponto onde antes ficava o fim.
Mas, além de graduados, os dois instrumentos de
medida numeram também as divisões. A existência
dos números permitem a leitura imediata de todas
as unidades. Devido a isto, constituem nada mais
nada menos do que computadores simples que
calculam automáticamente o número de
deslocações em frente que o medidor teria de
praticar se utilizasse uma medida-padrão de
polegada ou de centímetro, até que o extremo
desta coincidisse ou quase com a extremidade do
objecto a medir.

337
O único outro tipo de instrumento automedidor de
uso comum é o relógio e este é também um
aparelho complexo sob o ponto de vista lógico. No
cerne deste instrumento encontra-se o escape,
que com o seu tiquetaque, origina a sequência de
sucessos constituída pela passagem do tempo,
nomeadamente uma translação no espaço, servido-
se do espaço para garantir que um ponteiro de
movimento uniforme descreva espaços iguais em
tempos iguais.
O relógio transforma-se em computador pela
adição de algarismos em redor do quadrante, de
tal maneira que o número de segundos, de minutos
e de horas decorridas seja automáticamente
somado. O relógio vulgar é um instrumento
automedidor, um engenho analógico e um
computador.

INSTRUMENTOS NÃO AUTOMEDIDORES

O termometro fornece um exemplo de


instrumentos deste tipo, visto que a
temperatura ou grau de calor não é medida por
meio de um grau caloríco, mas sim por uma
unidade de comprimento. A escala existente
incorpora nele o computador. Instrumentos
deste género funcionam empregando o

338
comprimento ou o tempo na qualidade de efeito,
cuja causa é aquilo que está a ser medido. O
dinamómetro, por exemplo, mede o rendimento
da energia do motor, computando um dos seus
efeitos, nomeadamente a capacidade de
trabalho no decurso de uma unidade de tempo.
Também funciona nos mesmos moldes o contador
eléctrico, aparelho muito familiar em nossas
casas, computando o total de determinado
efeito produzido pelo tempo – o ritmo da
rotação de um disco – que é o efeito da taxa
de consumo da energia eléctrica, dado este
que, em última análise, nos interessa conhecer.
Por detrás da nossa confiança em tais
instrumentos encontram-se não só todos os
pressupostos observados, quando se falou da
classe dos instrumentos automedidores, visto
um instrumento automedidor de comprimento ou
de tempo constituir o resultado definitivo do
processo, mas pressupõem-se também todas as
teorias que representam a base da nossa crença
em que o efeito pode servir de medida ou de
indicativo da causa. Se não estivermos
convencidos de que o ritmo de rotação do disco
do contador seja o efeito da taxa de passagem
total da corrente eléctrica, dificilmente

339
depositaremos confiança na capacidade do
instrumento para proceder à contagem.
Fornecer-nos-ão tais instrumentos informes
objectivos sobre o mundo, informes esses
independentes da teoria? Claro que não;
«informação independente da teoria» é coisa
que não existe. Com efeito, recolhemos
informações fornecidos por aparelhos de
medição considerados seguros, mas isso sucede
porque o nosso conhecimento se apoia em
fenómenos como o da passagem da corrente
elétrica. Muitoa instrumentos e muitas teorias
convergem para o fenómeno que se pretende
estudar. E são os resultados conciliatórios das
experiências e dos cálculos teóricos que,
convergindo de uma gama de efeitos diferentes,
formam a base da nossa confiança. O que conta
é a maneira como tudo se conjuga.
A história da ciência, porém, demonstra que o
mero facto dessa conjugação constitui um guia
ilusório para a busca da verdade. A perfeição
da concordância terá de combinar-se com o uso
constante dos instrumentos e das respectivas
leituras que, afinal de contas, serão talvez
diferentes do que se esperava. A objectividade
reside na concretização ou na não concretização
das espectativas quanto aos efeitos dos

340
fenómenos sujeitos a estudo, e não nas
medições em si próprias.

DISTINÇÃO ENTRE QUALIDADES


PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS

Uma doutrina fulcral da filosofia corpuscularista


é a distinção feita entre qualidades primárias e
secundárias, ou seja, entre qualidades que, na
percepção, constituem as verdadeiras
propriedades das coisas e aquelas que, na
percepção nos surgem diferentes das suas
causas nas coisas. Os corpos possuem realmente
formato e, muito embora possamos não ter dele
exacta percepção, as coisas que percebemos
têm-na de facto, e a partir das formas
percebidas somos capazes de elaborar
naturalmente, com prontidão, quais os formatos
que as coisas possuem na realidade. O mesmo
se passa no capitulo dos números, do movimento
e do volume. Mas, tal como vimos, aquilo que a
cor é de acordo com a maneira como
percebemos constitui, de facto, uma complexa
propriedade eléctrica das coisas. A causa da
nossa percepção das cores não é a cor ou, por
outras palavras menos paradoxais, a cor de uma
determinada coisa é uma qualidade da cor de

341
género diferente daquele que é percebido. É de
natureza eléctrica nas coisas, mas surge a
nossos olhos como a tonalidade de uma
superfície. O calor é moviemnto mas, na sua
percepção capta-se uma qualidade diferente do
movimento, isto é, percebe-se calor.
Esta distinção coincide, em parte, com uma
outra, também sublinhada pelos corpuscularitas
e que constitui a base da terceira ideia
corpuscular sobrevivente, a que atrás nos
referimos: a de que muitas qualidades variam
com o estado do sujeito percepiente, e que
para fins científicos, devemos escolher
qualidades que sejam invariáveis no sujeito.
Galileu fornece-nos disto um exemplo
particularmente instrutivo: consideremos uma
estatua – diz-nos ele – e comparemo-la com um
homem vivo. Com uma pena, façamos cócegas
tanto à estátua como ao homem. Em certas
partes do corpo, este não sente sesação de
cócegas, mas verifica-se a interação mecânica
de uma coisa material em contacto com outra.
Deste modo, o homem toma consciência do
contacto mecânico, o mesmo género de contacto
que ele constata entre a pena e a estátua.
Mas, em outras partes do corpo humano, é de
cócegas, a sensação provocada pela pena. O

342
homem reage estremecendo ou rindo ou por
meio de qualquer outra resposta indicativa de
que experimenta uma sensação de um tipo
especial. A estátua, não tem tal reacção e não
sente o efeito da pena. Deste modo, as
cócegas experimentadas pelo homem, tipo de
contacto este que ele compartilha com a
estátua e, em parte, também ao facto de o
homem ser um organismo sensível. Portanto,
provocar cócegas não é uma propriedade
objectiva da pena, mas sim o produto das
propriedades objectivas da pena pela
sensibilidade do homem. Além disso, o seu grau
varia consoante as diferentes partes do corpo
humano e os diferentes momentos. A
sensibilidade do homem será talvez menor após
ter ingerido uma boa dose de bebidas
alcoólicas.
Como se vê há qualidades que variam com o
sujeito e outras que não o fazem. As que não
mudam com o sujeito percipiente coincidem com
as que intervêm nas relações causais entre
todas as espécies de corpos, ao passo que as
que se alteram com o sujeito coicidem com as
envolvidas nas relações causais entre corpos,
sendo que um dos quais (ou ambos) é um
organismo sensível.

343
Esta ideia impõe a troca de qualidades que
variam com o sujeito por qualidades invariáveis
e só pode ser conseguida com a substituição das
cdescrições quantitativas por qualitativas, em
particular a substituição de escalões
qualitativos por análogos quantitativos. O grau
de calor é uma escala qualitativa, varia com o
sujeito e é susceptível de parências ilusórias e
mesmo enganadoras, ao passo que a
temperatura, quando medida pelo termómetro,
é uma escala quantitativa e uma qualidade
invariável com o sujeito. Isto porque os erros
devidos ao sujeito, tal como a paralaxe, podem
eliminar-se tendo em atenção as condições sob
as quais se realiza a observação, podendo
fazer-se, a partir dessa aparência, a leitura
correcta da escala.
Estas três ideias corpuscularistas entrelaçam-
se para constituirem uma exigência primordial –
a de que a forma perfeita da descrição do
mundo se faça em termos de geometria métrica
de estruturas de elementos-padrão e que tais
estruturas se considerem como aquilo que são
realmente as coisas existentes no mundo.
DIR-SE-Á que pugnando para concretizar este
duplo ideal afloramos o conhecimento do mundo,

344
ou seja, do mundo tão objectivo e verdadeiro
como conseguimos vê-lo.
DIR-SE-Á também que o verdadeiro
conhecimento consiste no conhecimento das
medidas das relações espaciais entre
corpúsculos últimos. Mas já observamos isto
mesmo na qualidade de um desenvolvimento da
filosofia corpuscularista, associado a
determinada teoria metafísica e, por fim,
inteiramente imbuído de pressupostos e de
convicções em teorias físicas específicas, sem
as quais não faria sentido a maior parte dos
resultados experimentais obtidos.
No cerne das reservas que se põem quanto ao
conseguimento da verdade objectiva, figura o
facto de a ciência depender de observadores
específicos e de teorias particulares. No
passado, fizeram-se duas célebres propostas
para a eliminação das referidas dependências e
em prol de um conhecimento mais objectivo.
Tanto uma como outra eram teorias sobre o
significado das palavras e ambas esperavam
encontrar maneira de atribuir significações às
palavras a figurar no vocabulário descritivo para
uso dos cientistas, vocabulário que preenchesse
um ideal de objectividade plena.

345
A TEORIA DA «DEFINIÇÃO OSTENSIVA»
argumentava que, sendo possível atribuir às
palavras um significado por confronto imediato
com o mundo e em relação directa com as
coisas e com as qualidades, deixaria de haver
ambiguidade no seu emprego e nenhumas
teorias estariam envolvidas na sua aplicação.
Propunha-se, pois, a ideia de que, para um
vocabulário científico realmente básico, se
deveria conferir significado às palavras por
meio de um processo denominado ostensão, isto
é, apontando para um exemplo da qualidade ou
da coisa à qual iria aplicar-se a palavra,
fixava-se assim, objectivamente, a sua
significação. Saber-se-ia o que quer dizer
«vermelho», por exemplo, indicando uma
amostra de cor vermelha e dando-se-lhe desde
modo um significado objectivo. Desta maneira,
segundo se pensava, criava-se todo um
vocabulário descritivo, com o qual se
conctruiriam frases elementares. Era
impossível, supunha-se, surgirem dúvidas
fossem de que tipo fossem quanto à verdade ou
à falsidade da expressão de trais frases em
quaisquer situações especificas.
Se, porem, reflectirmos um pouco nesta teoria,
veremos como é insatisfatória. Claro que o acto

346
de exibir amostras desempenha certo papel na
aprendizagem das palavras. Mas que papel é
esse ao certo? Não é completo, visto que, para
onde quer que o dedo aponte, existem diversas
qualidades, relações, indivíduos e substâncias,
cada um dos quais poderá ser aquele que se
indica. Se formamos já certas ideias acerca do
mundo e se temos algumas concepções da
linguagem e, na verdade, alguns conceitos
metafísicos – categorias de coisas e
propriedades ou qualidades -, nesse caso o acto
indicativo poderá desempenhar certo papel
quando exibe uma amostra daquilo que a palavra
irá descrever. Mas uma palavra não pode
definir-se pelo gesto de apontar, podendo
embora ser apresentada indicando-se um
paradigma do seu emprego. Sabendo-se que
«vermelho» é um vocábulo que exprime cor, se
se apontar para a bandeira soviética fixr-se-á
este conceito ao mostrar-se que cor específica
é o vermelho. Mas não há nenhum gesto
indicativo que traduza o conceito de «cor»,
impossível de apprender ostensivamente; nem se
faz ideia de como se aprende.
Outra célebre tentativa em prol do
conhecimento mais objectivo consiste na teoria
do operacionalismo, com a qual nos

347
confrontamos. Esta teoria foi diversas vezes
proposta no passado, em particular pelo químico
Sir Benjamim Brodie, no século XIX, e também
pelo físico P. W. Bridgman, no século XX.
Na sua essência, a mencionada teoria parte de
um raciocínio sobre a experiência. Qual é a
faceta mais objectiva da experiência –
interrogaram-se Brodie e Bridgman –
independente do género de teoria das quais
depende, por exemplo, o contador eléctrico, ou
do tipo de supostos a que damos o nome de
metafísicos? A resposta de ambos a tal
pergunta foi a de que são as operações que o
investigador executa com o fim de obter o
conjunto de números que constituem o
resultado. Segundo Brodie, um composto químico
não pode descrever-se com objectividade
quando se lhe atribui uma constituição atómica
mítica, inobservável e apenas proposta por meio
de um extenso cortejo de inferências duvidosas
que envolvem não só teorias metafísicas de
ordem geral, mas também muitas teorias
científicas particulares. Só se consegue a
descrição objectiva quando se dá conta das
operações efectuadas em laboratórios que
conduziram à produção desse composto.

348
De maneira semelhante, Bridgman defendeu que
deveria definir-se o vocabulário descritivo, em
física, por meio da descrição das operações
levadas a cabo para realizar uma mensuração.
Tanto para Brodie como para Bridgman, a
teoria desempenha o papel de uma ponte a unir
os diversos conjuntos numéricos ao efectuarem-
se as operações e não podia ser levada a sério
como descrição mais profunda da realidade ou
das causas dos fenómenos em estudo.
Apreciamos já alguns defeitos desta teoria;
mas, neste contexto, existem dois da maior
importância:
O primeiro diz respeito a um dos mais
impressionantes aspectos da ciência, mesmo nas
suas facetas mais rudimentares, nomeadamente
a maneira como tipos de operações muito
diferentes fornecem o mesmo conjunto de
valores ou valores muito semelhantes. Em
ciência, tal coisa explica-se pelo pressuposto de
que, quando tal acontece, é porque se está
medindo a mesma caracteristica objectiva com o
emprego de métodos diferentes. O comprimento
de um terreno, por exemplo, pode medir-se
utilizando a fita métrica ou então com recurso
ao teodolito, à prancheta topográfica e à linha
de base. A coincidência de resultados destas

349
operações de medição tão diferentes explica-se
pelo facto de ambas constituirem maneiras
distintas de se medir a mesma caracteristica do
terreno, isto é, o seu comprimento. Para o
operacionalista, porém, visto tratar-se de dois
conjuntos de operações muito diferentes, estes
terão de definir dois conceitos empíricos
também diferentes e a intíma similitudes de
resultados não passa de natável coincidência.
Dá-se aqui um mistério de esclarecimento
impossível, pois qualquer outro terceiro conjunto
de operações empregue para resolvê-lo definirá
um terceiro conceito empirico, uma terceira
caracteristica do terreno em causa, servido
apenas para tornar o inigma mais impernetrável.
Um dos maiores poderes das teorias na ciência
é o de representar a base da concepção das
experiências. As teorias sugerem quais as
experiências que poderão revelar-se úteis e o
que há a esperar dos seus resultados. Um
operacionalismo desenfreado, no entanto,
permite que qualquer conjunto de operações
defina um conceito empírico e não existe forma
alguma, quer de classificar os referidos
conjuntos de operações, como potencialmente
frutuosos, quer de os pôr de lado como
destituídos de préstimo. Para o operacionalista,

350
seja qual for o conjunto de operações – por
mais aleatória que se mostre a sua génese –
capaz de originar uma colecção de números,
terá de determinar um conceito empírico, uma
faceta objectiva do mundo. Por conseguinte,
uma maneira de encentivar a ciência seria
proceder à montagem aleatória de equipamento
escolhido ao acaso e registar todos os valores
obtidos quando se faz funcionar essa
aparelhagem… Se ela funcionar. E as teorias
arquitetar-se-iam através de métodos
analíticos simples que procederiam à fusão dos
diferentes conjuntos numéricos obtidos,
transformando-os em princípios gerais de
carácter algébrico. Mas tudo isto se cifra numa
proposta ridícula.
Como resultado final, temos de reconhecer a
não existência de um conhecimento puramente
objectivo, se com isto se quiser significar o
conhecimento em que não desempenhem
qualquer papel a metafísica e as teorias
científicas, tanto antigas como modernas. Mas
mesmo nos sectores mais rudimentares da
ciência, temos como o de «corrente», em
electricidade, ou o de «força», em mecânica,
contêm já em si, respectivamente, a sugestão
de fluídos em movimento e de esforço

351
despendido, que são fantasmas de teorias há
muito desaparecidas. Os legítimos ideais de
objectividade não se obterão negando os
elementos a priori da descrissão científica do
mundo, mas tomando-os pelo que de facto são
e, conquanto se reconheça a sua
indispensabilidade, não deixando de entender
também que, quando pressupostos e teorias
específicas constituam impedimentos ao
progresso e à compreensão, estes poderão ser
alterados e corrigidos. O que não pode fazer-
se é descrver o mundo sem previamente se ter
chegado a compreendê-lo sem se despôr de
qualquer teoria.

RESUMO DO ARGUMENTO

1. O princípio da explicação estrutural


As propriedades das coisas e das substâncias deverão definir-se,
tanto quanto possível, em termos das relações estruturais entre um
reduzido número de unidades elementares.
(a) Uma aplicação típica é a definição da qualidade de «calor» em
termo de movimento de partes insensíveis, ou da alotropia, como
resultante da diferença de estrutura molecular de átomos-padrão,
por exemplo, do carbono.
(b) A forma de explicação preferida quanto à multiplicidade
manifesta é a da multiplicidade da estrutura no seio do menor
número possível de géneros de entidades fundamentais – a
explicação dos multiplos elementos químicos existentes, por
exemplo.
(e) A adesão ao princípio da explicação estrutural implica a adesão
ao princípio de escassez de géneros de entidades. Ligado a esta
ideia, mas não sua consequência, existe o princípio da escassez de
tipos de relações entre os elementos, que se encontra, por

352
exemplo, na base da tentativa de Newton de reduzir a gravidade a
acção por contacto.
(d) De (b) pode inferir-se de imediato um critério de explicação
perfeita, isto é, todos os tipos de diversidade se explicam como
casos da diversidade estrutural de apenas uma espécie de
entidade. Idealmente, a estrutura, será uma estrutura de espaço-
tempo. É esta a mais elaborada forma de microexplicação.
(e) São possíveis duas relações diferentes entre as propriedades
das partes e as propriedades do todo:
(i) Aditividade: a propriedade do todo é função aditiva das
propriedades das partes – a massa, por exemplo.
(ii) Emergência: a propriedade do todo é produzida pela
propriedades das partes, mas não é qualitativamente semelhante. –
por exemplo, calor e movimento, capacidade da fala e as
capacidades das células nervosas individuais humanas, etc.
(A) A emergência explica-se por as propriedades holísticas
derivarem da estrutura e não das entidades estruturadas.
(B) A explicação para outras propriedades emergentes tem haver
com o conjunto singular de propriedades mais simples. Os seres
vivos, por exemplo, constituem um complexo de reacções químicas,
mas a sua qualidade de entes animados deriva do conjunto
especifico e reciprocamente apoiado por aquelas recções, cuja
explicação não é de natureza química.
(f) A ciência utiliza também macroexplicações:
(i) Nas ciências sociais, o ocmportamento de um membro do grupo
pode explicar-se por referência a uma função desempenhada pelo
grupo.
(ii) Em física, a explicação da inércia como função do efeito que
todas as massas do Universo exercem umas sobre as outras é uma
macroexplicação.
2. Numa forma descritiva ideal, os termos quantitativos substituem
os qualitativos.
(a) Manifesta-se tal coisa nas medições que utilizam unidades de
preferência ao emprego de simples escalas ordenadas.
(b) Este ideal é anterior à filosofia corpuscularista e aparece na
teoria da «latitude das formas» de Oresme.
(c) O emprego de unidades suscita duas questões:
(i) É necessário resolver o problema prático da definição da
unidade.
(ii) É també necessário solucionar o problema metafísico de
justificar a invariabilidade dessa unidade nas diferentes partes da
escala:

353
(A) Quanto ao comprimento, o problema é resolvido definindo-se
uma unidade abstracta, cumprindo todos os requesitos de
correcção conhecidos.
(B) Quanto ao tempo, opta-se por uma a priori, orientada pelo
conhecimento empírico de possíveis influências desfiguradoras – o
mecanismo dos relógios, por exemplo, é fabricado com materiais
que não se degradem expontaneamente.
(d) Medidas quantitativas podem também obter-se por contagem.
(i) Isto exige convenções quanto aos limites entre tipos e, por
conseguinte, quanto a descriminações entre eles.
(ii) Associadas a isto acham-se as convenções quanto a diferenças
qualitativas a ignorar na identificação da«pura» diferença numérica.
(iii) O emprego do resultado de uma contagem como medida da
composição de uma classe depende de pressupostos quanto à
permanência e à identidade das entidades em causa. Isto deriva da
natureza do problema para o qual a contagem fornece a solução –
por exemplo, deverão os mortos incluir-se num recenciamento
populacional? Note-se que o recenciamento dos mórmons os inclui,
para finalidade do baptismo retroactivo.
(iv) As precauções de ordem prática para impedir que se conte duas
vezes a mesma coisa – ou que deixe de contar-se – dependem de
supostos metafísicos, tais como o princípio de que duas coisas não
podem estar no mesmo lugar ao mesmo tempo.
(v) Resta o problema da «tríade inconsistente», A, B e C, em que A
emparceira com B, B emparceira com C, mas em que A não
emparceira com C.
(e) Este pressuposto está por detrás da troca de escalões
fundamentalmente qualitativos – o grau de calor que sentimos, por
exemplo – por escalões quantitativos, tal como a temperatura.
(i) Este passo implica o facto empirico da analogia entre o processo
da expansão de gases ou de liquidos e o grau de calor sentido,
enquanto se mantem a estabilidade conceptual, isto é, enquanto o
termómetro é concebido como a medida da qualidade de calor.
(ii) Forma-se então um novo conceito à volta do instrumento,
nomeadamente de temperatura, que:
(A) Está implantado na teoria, a qual explica a analogia original (i).
(B) É empregue para elaborar e diversificar o conceito qualitativo
original, como no caso, por exemplo, do aforismo «não é o calor,
mas a humidade»

3. A diferença dos instrumentos


(i) Instrumentos automedidores: o emprego de um comprimento
para medir outro comprimento ou de um processo para medir o

354
tempo implica os pressupostos de invariabilidade atrás debatidos e
uma maneira de proceder normativa que garante a comparabilidade
dos resultados.
Em geral, o instrumento automedidor funciona também como
computador, que fornece automáticamente o resultado de uma
sequência de operações, cada uma das quais teria de ser contada –
a régua graduada, o relógio, por exemplo.
(ii) Instrumentos não automedidores: utilizam analogias entre
processos e aquilo que se pretende medir, fundamentadas no
suposto da relação causal entre o processo empregue e o
instrumento mediador – por exemplo, o termómetro, a calcificação
do pulso para medir a idade biológica, etc.

4. O fundo filosófico do corpuscularismo depende da distinção entre


qualidades primárias e secundárias e esta operou-se diferenciando
as qualidades que pareciam depender do observador das
supostamente independentes dele. Tal distinção não sobreviveu à
critica, embora perdurem as formas descritivas por ela geradas.
(i) A forma ideal de descrição deverá utilizar termos de qualidade
que não variam com o sujeito percipiente, de preferência aos
variantes.
(ii) Nos tempos modernos, esta ideia foi apresentada por Galileu
com um exemplo que distingue o contacto mecânico entre coisas
dos resultados da interação, tal como as cócegas, por exemplo.
(iii) Estes dois ideais estão associados, visto a escolha das
analogias com um processo ser psrcialmente determinada pelo
desejo de eliminar uma qualidade que varia de modo notório
segundo o sujeito percipiente, por exemplo, a sensação de calor.

5. O ideal preponderante que se sobrepõe a estes três ideais


específicos é o de que a forma descritiva por excelência se cifre na
estrutura geométrica de elementos-padrão, cujas propriedades se
reduzem, tanto quanto possível, à mera ocupação de espaço. Tais
estruturas acham-se inseridas num campo de potencial e alteram-
no.

6. O ideal de propriedades que não variam com o precipiente deriva


de um princípio epsitemológico muito enraizado, o da objectividade
total. A escolha de propriedades primárias como base para a
ciência é uma das maneiras de procurar cumprir tal exigência.
(i) A teoria da definição ostensiva visa atribuir significado a todos os
ternos científicos descritivos atarvés da referência à experiência
sensorial imediata, com o fundamento de que não haveria lugar

355
para erros se se conferisse significado aos termos descritivos
apenas segundo as sensações imediatas experimentadas pelos
utilizadores. O exame deste ponto de vista conduz-nos ao
fenomenismo. Falha também como teoria de definição, visto que o
gesto de apontar é insuficiente para distinguir a categoria de
experiência à qual supostamente se refere a palavra proposta.
(ii) A segunda tentativa para atingir a objectividade automática por
meio de uma teoria do significado e da definição dos termos
científicos é o operacionismo, quer segundo a forma proposta por
Brodie quer pela apresentada por Bridgman, já examinadas como
teorias epistemológicas. Como taorias do significado, apresentam
defeitos, dado que:
(A) Se cada conjunto de operações define um conceito empirico
independente, nesse caso as diferentes maneiras de medir aquilo
que, em termos pré-operacionalistas, constitui uma propriedade
física, darão resultados semelhantes, cuja semelhança, segundo o
operacionalismo, será um mistério isolúvel;
(B) A concepção das experiências se desvincula da teoria, pois
qualquer montagem de equipamento e sequência de operações
definem conceito empírico. Deste modo, não existe forma alguma
de distinguir as experiências absurdas das experiências válidas,não
havendo mesmo lugar, em boa verdade, para o estabelecimento da
própria distinção.

CAPÍTULO VI
A EXPLICAÇÃO

Partindo de diversas direcções diferentes,


progredimos rumo ao culminar deste estudo, ou
seja, ao esclarecimento da forma ideal das
teorias. Estas constituem o ápice da ciência,
pois nela se exprime a compreensão do mundo.
A função das teorias é a de explicar, e
identificamos já algumas formas explicátivas.
Deparamos com dois importantes modelos de
teorias e, do seu exame, poderemos tirar
356
conclusões quanto ao que deve ser a teoria.
Regressemos ao debate da matéria versada no
capítulo III. Os dois paradigmas a que me
refiro são-nos fornecidos pela ciência mecânica,
com o seu conceito central de força, e pela
medicina que emprega conceitos, como o de
vírus. Trata-se de modelos opostos, como
tivemos oportunidade de constatar. Tanto do
ponto de vista lógico, como epistemológico e
metafísico, propõem dois diferentes tipos de
teorias. Deveremos aceitar as duas teorias
paradigmáticas? Desempenhará cada uma delas
um papel específico? Serão susceptíveis de
converter-se uma na outra? De algum modo
solucionaremos tais problemas neste capítulo.
O conceito de força e o conceito de vírus dir-
se-á desmpenharem papeis semelhantes, visto
qualquer deles ser empregue para explicar
observações. No primeiro caso relativas ao
movimento e, no segundo, respeitantes ao rumo
e ao desenvolvimento de estados patológicos em
plantas e em animais. No decurso normal dos
acontecimentos, não é possível observar tanto a
força como o vírus, ao contrário do que
acontece com os sucessos que alegadamente
eles explicam. Em última análise, quer a
concepção de força, quer a de vírus se cifra em

357
conceitos construídos por analogia; descrevem
entidades analogas a determinadas coisas que
nos são familiares. As forças são análogas aos
esforços por nós despendidos ao deslocar
objectos contra resistências, e os vírus são
análogos às bactérias que se descobriu serem a
causa de diversas enfermidades. Vimos já
alguns pormenores do desenvolvimento de tais
analogias. Contudo, olhando mais de perto a
ciência da mecânica e confrontando-a com a
patologia, constata-se uma profunda diferença.
O conceito de «força» e, com ele, a analogia
com o esforço físico, não é um dado
imprescendível à mecânica, facto demonstrado
pela possibilidade de a refurmular de diversas
maneiras sem recurso a tal conceito. A sua
função é inteiramente «pragmática».
Desempenha o cargo de auxiliar do
entendimento, de dispositivo por meio do qual
se desperta a intuição para a tarefa de
compreender o movimento. Porém, é
perfeitamente possível compreendê-lo na
ausência do conceito de força. Todos os
fenómenos do movimento se tornam inteligíveis,
recorrendo, digamos, ao conceito de «energia»
e sua redistribuição entre os corpos
componentes de um sistema de partículas

358
móveis, de acordo com determinadas leis; em
mecânica, as analogias não são essênciais.
Comparemos a situação atrás referida com a da
patologia.
Sem o conceito de vírus na sua qualidade de
microrganismo teria de ser bastante diferente
toda a teoria da transmissão da doença e da
causa de uma larga gama de enfermidades. A
teoria é parte essêncial do entendimento das
observações. Uma coisa é a discrição da doença
e outra completamente diferente a sua
patologia. Isto transparece, por exemplo, na
diferença que existe entre a má prática
médica, que cuia apenas de tratar os sintomas
e, a boa prática médica, que diagonostica a
causa da doença e procura eliminar essa causa.
Por fim – e é isto que explica todas as outras
diferenças entre o conceito de força e o
conceito de vírus – faz sentido perguntar se os
vírus existem ou não e a resposta que se der
influênciará decisivamente a medicina.
Mas, não obstante fazer sentido perguntar se
há ou não forças, se as coisas individuais
exercem ou não esforços – tais como fazem as
pessoas – ao provocar movimento, não faz a
minima diferença à mecânica que existam ou não
existam forças; esta ciência seria formulada de

359
outro modo, sem dúvida, mas não se alterariam
minímamente as previsões sobre futuros estados
de sistemas móveis elaborados com recurso a
tal conceito. Qualquer destes dois pradigmas
constitui importante ingrediente da teoria, pelo
menos um ingrediente que terá de existir para
que a teoria seja satisfatória. A ciência
mecânica organiza-se pelo emprego de um modo
de expressão matemática no seio de um sistema
lógico onde há certos princípios básicos dos
quais se deduzem, de maneira lógica e rigorosa,
as leis do movimento.
A possibilidade de exprimir uma teoria dentro
de um sistema lógico tem grandes vantagens de
ordem prática. Os princípios nela formulados
podem compreender resumidamente um vasto
número de leis específicas e mesmo de factos
partículares; a sistematização tem considerável
valor pragmático. No entanto, a teoria não
deixará de ser teoria e de explicar os factos
que explica se as suas leis se encaixarem com
dificuldade ou se de todo se não ajustarem a
um sistema lógico. As leis podem manter-se
unidas apenas por serem leis sobre uma matéria
comum, ou seja, descreverem o comportamento
da mesma espécie de coisas ou de substâncias.
Por exemplo, sabemos o bastante acerca do

360
comportamento humano, mas este
comportamento não pode ser formulado de
maneira e encaixar-se numa estrutura lógica e
dedutiva. A teoria do comportamento humano é
uma manta de retalhos de princípios associados
por virtude do facto de todos eles dizerem
respeito ao mesmo assunto, nomeadamente ao
comportamento das pessoas. É possível que,
meste caso, nunca venhamos a conseguir a
formulação sistemática das leis nem a obter as
vantagens pragmáticas de um sistema.
A explicação científica de acontecimentos,
quer se trate de sucessos individuais, quer das
suas sequências, consiste em descrever o
mecanismo que os produz. Só muito
remotamente poderá dizer-se que a ciência
mecânica explica o curso do movimento. As leis
da mecânica são descritivas e não
explanatórias. À parte o ténue e bastante débil
conceito de força, esta ciência não faz qualquer
tentativa para fornecer um relato dos
mecanismos do movimento, para explicar as leis
da colisão, da conservação do momento, etc.,
etc. Tanto quanto sei, a única tentativa levada
a efeito neste sentido cifra-se no grotesto
conjunto de explicações dados por Descartes no

361
livro II da sua obra Princípios ( Princíples of
Philosophy(1954).
A teoria do vírus, pelo contrário, contém
exactamente tudo o que é necessário à
explicação científica do curso da doença a qual
diz respeito. A presença dos vírus explica aquilo
que se descreve como síndrome ou desenrolar
da doença, e quanto mais soubermos sobre a
natureza e sobre o comportamento dos vírus
mais saberemos acerca da doença. É a
interacção do corpo do hospedeiro e do vírus
seu parasita que origina os sintomas da doença
e que fornece a explicação do seu progresso. A
teoria viral da poliomiliete é, de facto, uma
explicação científica, enquanto as
magnificamente sistemátizadas leis da mecânica
o não são.
Claro que em certos casos, a mecânica de
partículas em movimento esclarece outros
fenómenos, funcionando então as leis da
mecânica como descrições perfeitas de
mecanismos causais em acção. Cita-se, com
frequência, por exemplo, o caso da teória
cinética dos gases, onde a mecânica das
moléculas de gaz actua como mecanismo causal
explicativo da maneira como essas amostras se
comportam sob diversas condições. A teoria

362
cinética constitui uma explicação, uma
explicação científica do comportamento dos
gases, mas segue o paradigma da explicação
viral da poliomielite e não o modelo da
formulação de força da mecânica. O facto de
se utilizarem meios de expressão
matemáticos na teoria cinética e na
mecânica e de isso não suceder na teoria
dos vírus, não deve fazer com que nós,
filosófos da ciência, esqueçamos a
diferença essêncial da primeira e a
semelhança essêncial da segunda.
A gestão do conceito no cerne de uma teoria,
aquilo a que Wheewell chamou a «ideia de
teoria», é matéria analógica, tal como se viu
nos diversos exemplos debatidos no capítulo
III. O edifício teórico é o desenvolvimento por
analogia do conceito apropriado. É este o fulcro
imprescindível da ciência, pois representa a
base da explicação. Porque motivo não é
possível saber de imediato quais os mecanismos
básicos? Por que razão não podemos eliminar a
necessidade da analogia, dirigindo-nos
directamente à Natureza? A resposta à estas
perguntas é a de que os avanços da ciência se
fazem por uma espécie de saltos de rã rumo às
descobertas. Logo que se identifica um campo
363
de fenómenos dignos de estudo e se principia a
investigá-lo, surgem todos os tipos de
regularidades e de esquemas entre fenómenos,
mas, no seio destes, não se patenteiam as
causas respectivas nem os mecanismos
responsáveis pelos moldes de comportamento
descobertos. A quimica prossegue os seus
estudos no que diz respeito ao comportamento
quimico das diversas substâncias e materiais
como no sentido de esclarecer os mecanismos
das reacções. No estudo destas últimas, não se
investiga o seu mecanismo. Em muitos e muitos
casos, descobrem-se imensos factos acerca de
determibados tipos de fenómenos, sem que seja
possível examinar directamente os mecanismos
correspondentes. Nestas circunstâncias, os
mecanismos necessários, têm de ser pensados e
imaginados e de constituir o tema das
hipóteses. E, uma vez estes elaborados pelo
intelecto, fica a saber-se que género de
observações conduzirão à sua descoberta
independente. Por vezes, uma linha de pesquisa,
totalmente distinta leva de maneira indirecta à
descoberta dos mecanismos causais subjacentes
a determinados fenómenos. Foi este o caso, por
exemplo, do estudo da química e da
radiactividade, onde o exame da desintegração

364
de certas substâncias pouco comuns conduziu a
descorbertas de extrema importância sobre a
estrutura das partes elementares dessas
substâncias – os átomos químicos. Lewis e
Langmuir transformaram tais descobertas numa
teoria da recção química, na descrição do
mecanismo de ligação química e das
circunstâncias em que se verificou a
modificação química.
Quando se desconhecem os mecanismos
envolvidos nos processos em estudo, é
necessário imaginá-los e estes terão de
mostrar-se plausíveis, razoáveis e possíveis.
Para se chegar a isso, recorre-se ao método
analógico, pressupondo-se que os referidos
mecanismos sejam idênticos a algo que já se
conhece bastante bem e, com base em tal
conhecimento imaginam-se mecanismos
semelhantes actuando por detrás dos fenómenos
em investigação.
QUE É A ANALOGIA?
A analogia é uma relação entre duas entidades,
entre dois processos ou entre seja o que for
que permita que se façam inferências acerca de
uma das coisas, em regra aquela que menos se
conhece, a partir daquilo que se sabe acerca da
outra. Com efeito, se duas coisas são iguais em

365
determinados aspectos, é razoável esperar-se
que o sejam também em outros, muito embora
possam ainda existir mais facetas em que as
duas coisas difiram. Em geral, há semelhanças
e dissemelhanças entre duas coisas. A arte do
emprego de analogias consiste em saber
contrabalançar o que se conhece das
semelhanças com o que se sabe das diferenças
entre duas coisas entre duas coisas e, de posse
desse equilíbrio, fazer inferência quanto àquilo
a que se dá o nome de «analogia neutra», isto
é, o que se desconhece.
Suponhamos que estabecemos a comparação
entre um cavalo e um automóvel. A smelhança
aqui existente é o facto de ambos servirem de
meio de transporte e de serem dispendiosos
tanto na compra como na manutenção. A
diferença está em que um deles é inteiramente
um artefacto e que, quanto ao cavalo, o homem
apenas intervém na sua produção ao escolher-
lhe os parceiros reprodutores. Os cavalos são
organismos e os automóveis são máquinas. É
possível proceder à reparação destes últimos
substituindo peças gastas por outras novas
provenientes de fontes externas; mas esta
mesma técnica é de aplicação muito restrita no
caso dos cavalos. Imaginemos que os informam

366
que, em determinada classe, se utilizam apenas
cavalos como meio de transporte e que nada
mais sabemos acerca do sistema da rede
transportadora. Faremos então inferências
sobre a densidade do tráfego e partir do que
conhecemos acerca das cidades que utilizam
meios de transporte mecânicos, tomando por
base as semelhanças entre cavalos e veículos na
qualidade de meios de transporte, e outras
inferências ainda sobre poluíção atmosférica,
fundamentadas em quanto sabemos das
diferenças existentes entre os dois. Deste
modo, empregando analogias, penetramos na
nossa área de ignorância sobre cidades cujo
meio de transporte é o cavalo.
Em muitos casos científicos, procede-se apenas
a partir de um termo de analogia. as moléculas
são análogas a partículas em movimento, mas as
primeiras não se conseguem examinar
directamente a fim de verificar-se a extensão
dessa analogia. Visto a molécula ser um
entidade que imaginamos semelhante à partícula
em movimento, somos livres de atribuir-lhe as
características que lhe sejam necessárias para
desempenhar as suas funções como possível
mecanismo explicativo do comportamento dos
gases. A analogia neutra é precisamente a

367
parte do que conhecemos sobre partículas que
ainda não transferimos para a coisa imaginada,
isto é, a molécula. Esta é análoga à partícula
não porque constatamos que assim é, mas
porque a imaginamos como tal.
Mas há outra analogia que completa a teoria.
Um aglomerado de moléculas deve ser análogo
ao gás, visto que, caso contrário, não
poderíamos utilizar o conceito de molécula como
dado explicativo. Na realidade, estas distinções
não são convenientemente apresentadas em
termos de simples noção de analogia. Do ponto
de vista desta noção, são analogias a relação
entre as moléculas e as partículas materiais, a
relação entre as leis que descrevem o seu
comportamento e as leis da mecânica e a
relação entre um aglomerado de moléculas
existentes dentro de um vaso e um gás. Mas,
muito embora uma amostra de gás possa ser
realmente um aglomerado de moléculas e estas
possam ser autênticas partículas materiais, as
relações existentes são bastantes diferentes do
ponto de vista epistemológico.
O MODELO
As distinções que procuramos tornam-se mais
nítidas quando se introduz um novo conceito,
que permite analisar as relações analógicas com

368
bastante mais cuidado e minúcia. Trata-se do
conceito de modelo.
Na literatura técnica sobre lógica, surgem dois
significados distintos do termo «modelo» ou,
falando com maior propriedade, dois tipos
diferentes de modelo. Em certas ciências
formais – a lógica e a matemática, por exemplo
-, um modelo para uma teoria ou de uma teoria
é um conjunto de enunciados capazes de
emparceirar com os enunciados em que a teoria
se exprime, de acordo com uma regra de
emparelhamento. No entanto, não nos
ocuparemos aqui desses modelos formais ou
enunciativos.
O outro significado de «modelo» é o de alguma
coisa ou processo real ou imaginário, que se
comporta de maneira semelhante a outras
coisas ou processos, ou que lhes são
semelhantes em outros aspectos que não no do
comportamento. O referido modelo foi
designado pelo nome de modelo real ou modelo
icónico. A ciência lida, sobretudo, com este tipo
de modelo, ou seja com coisas ou processos
reais ou imaginários semelhantes, em vários
aspectos, a outras coisas e a outros processos
e cuja função é a de aumentar o discernimento.
Muitas vezes, os brinquedos, por exemplo,

369
constituem modelos icónicos, isto é, coisas
similares a outras coisas em várias facetas e
que, com efeito, podem desempenhar, em parte
o papel destas últimas. Com frequência, as
bonecas são modelos de bebés, ou seja, a
boneca é um objecto semelhante ao bebé e,
para determinados fins, é considerada como
tal. Os bebés-modelos utilizam-se para
finalidades sérias, no treino de mães e de
parteiras nos cuidados a ter com crianças de
colo, em casos em que não é conveniente ou se
torne mesmo perigoso recorrer, para tal fim, a
um bebé verdadeiro. Também o automóvel de
brinquedo é muitas vezes um modelo de
automóvel, o avião de brinquedo um modelo de
aeronave.
Usam-se modelos com propósitos definidos e,
em ciência, esses propósitos sâo:
(A) - LÓGICOS – possibilitam certas
inferências, impossíveis de fazer de outro
modo;
(B) - EPISTEMOLÓGICOS – ou seja, exprimem
o conhecimento do mundo e permitem aplicar tal
conhecimento.
No entanto, para separar estes estas
finalidades de modo racional, é necessária uma

370
outra ideia, ou seja, a da diferença entre a
fonte do modelo e o sujeito do modelo.
A boneca, por exemplo, é um modelo de bebé e
é também modelada em bebé. A sua fonte é
uma coisa real – o bebé – enquanto o seu
sujeito, neste caso especifico, é também o
bebé: é o mesmo, a fonte e o sujeito. Modelos
deste tipo tomam o nome de
HOMEOMÓRFICOS.
Quando, porém, se emprega a ideia das
moléculas para base do modelo de gás, a
molécula não é de forma alguma modelada em
gás; é moldada, sim, em algo muito diferente,
nomeadamente, nas partículas materiais sólidas,
cujas leis de movimento constituem a ciência da
mecânica. Os modelos em que a fonte e o
sujeito diferem são chamados MODELOS
PARAMÓRFICOS.
A ciência serve-se tanto dos homeomórfismos
como os de paramórficos e, na realidade, o uso
de modelos constitui a verdade base do
pensamento científico.Frequentemente, a teoria
nada mais é do que a descrição e a exploração
de um dado modelo. A teoria cinética dos
gases, por exemplo, cifra-se apenas no
aproveitamento do gáz modelado em molécula e
concebeu-se tal modelo com referência à

371
mecânica das partículas materiais. Observamos
como a falta de conhecimentos a respeito dos
verdadeiros mecanismos que actuam na
Natureza é suplantada pelo arquitectar de
analogias com mecanismos conhecidos que
existirão porventura na Natureza e que serão
responsáveis pelos fenómenos observados. Tais
mecanismos imaginados são modelos, modelados
pelas coisas e processos conhecidos e modelos
de coisas e processos desconhecidos
responsáveis pelos fenómenos em estudo. Este
facto de grande importância leva-nos a
reconhecer a complicada estrutura da teoria,
estrutura essa onde existem, pelo menos, duas
princípais conexões que, no sentido formal, não
são estritamente lógicas, mas sim relações
de analogia.
A molécula de gáz é analoga a partícula
material sólida e o aglomerado de moléculas é
análogo ao que quer que seja realmente um
gáz e ambas as analogias se avaliam pelo grau
em que o modelo consegue reproduzir o
comportamento dos bazes. As moléculas
destas só são semelhantes a partículas
materiais (em algumas versões da teoria, não
têm volume, por exemplo) e um seu conjunto
372
só é semelhante ao gáz porque nem mesmo as
teorias moleculares mais sofisticadas
apreendem os cambiantes do comportamento
dos gases.
Mas há ainda um último ponto de maior
relevância. Visto não se conhecerem os
constituintes dos gases independentemente
do modelo, será difícil afirmar-se que exista
qualquer analogia negativa entre o modelo e o
gáz de que é modelo. Quaisquer falhas
existentes no conceito de molécula poderão
tornar-se válidas desde queconsigam alterar-
se-lhe as propriedades. Podemos fazer e
refazer a molécula de modo tal que, nos seus
aglomerados, ela se comporte de modo tão
aproximado ao gás como pretendemos.
Quando encaramos o modelo de uma qualquer
coisa que procuramos compreender, revela-
se-nos apenas a analogia neutra e a analogia
positiva. O facto de o modelo ser modelado
em uma coisa que com ela tenha, além de
analogia positiva e neutra, t ambém forte
analogia negativa é um facto inconsequente,
pois significa apenas que o modelo exprime o
conceito de um novo tipo de entidade ou de
373
processo, diferente daquele em que foi
modelado. À medida em que se torna cada vez
mais refinado o modelo de um dado processo,
mecanismo ou substância responsáveis pelo
fanímeno em estudo, surge gradualmente
novo problema. Durante o processo de
refinamento, preocupámo-nos apenas em
ajustar o nosso modelo de modo tal que se
comportasse de maneira a dar conta do
fenómeno. Aos poucos, porém, somos levados
a considerar o problema da realidade daquio
que, até essa altura, funcionou apenas como
modelo do verdadeiro mecanismo existente
na Natureza. Diremos então paranós próprios
que talvés as moléculas de gás não sejam os
modelos do desconhecido mecanismo do
comportamento dos gases, que talvez existam
de facto moléculas de gás e que talvez os
gases nada mais sejam do que aglomerados
dessas entidades.
O MODELO ICÓNICO
Apresentarei alguns casos ilustrativos das
diferentes maneiras de procurar resolver o
problema tão intrincado da realidade do
modelo icónico. A teoria darwiniana da
374
selecção natural fornece excelente exemplo
do emprego do modelo icónico destinado a
conceber um mecanismo hipotético
explicativo de facto de o conhecimento dos
naturalistas. Os investigadores da Natureza
tinham observado que as populações de
animais e de plantas existentes à superfície
da Terra nos tempos modernos eram
diferentes das que haviam existido outrora.
Constataram também que a Natureza assume
enorme variedade de formas de animais e
vegetais intimamente semelhantes. A muita
gente – jardineiros e criadores de gado, em
especial – era familiar a possibilidade de
crescimentos das estirpes. Como explicar a
variedade de espécies de outrora e também a
distribuição da multiplicidade de espécies
vivas? Qual o processo natural responsável
por factos tão notórios? Qual o processo
natural responsável por factos tão notórios?
Seja qual for esse processo, o certo é que se
desenrola tão lentamente que induzira
Aristóteles, um dos maiores biólogos de
todos os tempos, a pensar erradamente que
as espécies animais e vegetais tinham
375
carácter fixo, de tal modo o impressionara a
similitude entre progenitores e progénie.
Mas há também certas diferenças mínimas e
foi sobre elas que incidiu a teoria de Darwin.
O cientísta desconhecia os processos que
originam as alterações ocorridas nos animais
e nas plantas, de modo que arquitectou um
modelo. Estava a par das modificações
sofridas pelos animais domésticos e pelas
plantas cultivadas e sabia que tais mudanças
se deviam ao facto de o cultivador e o criador
seleccionarem as plantas e os animais que
desejavam reproduzir, escolhendo os mais
apropriado ao fim específico em vista; sabia
também que, repetindo-se por várias vezes
tal selecção, era possível originar, apenas por
cruzamento de indivíduos convenientemente
escolhidos, um ser de aparência bastante
diferente. Havia uma variação de natureza e
Darwin concebeu um processo análogo à
selecção dos animais domésticos, susceptível
de revelar-se o modelo do processo que
efectivamente se verificava na Natureza.
Chamou a este processo, modelado pela
selecção doméstica, selecção natural.
376
Se Darwin tivesse que continuado a servir-se
da mesma fonte do modelo para prencher os
pormenores do seu imaginário processo da
selecção natural, talvez tivesse postulado a
intervenção activa de um criador que, a
semelhança do jardineiro ou do criador de
gado, tivesse determinado o objectivo em
mente ao cruzar com intuitos de reprodução
determinadas plantas e animais de onde
proveria a geração subsequente. Mas Darwin
investiga um processo que fosse inteiramente
natural, um processo em que, como parte do
modelo, não figurasse a intervenção divina.
Encontrou uma outra fonte que contribui para
o seu edifício modelas, ou seja, a teoria da
pressão populacinal, da autoria de Malthus e,
depois, elaborada por Herbert Spencer, que
forjara a expressão «sobrevivência dos mais
aptos» como resumo descritivo da
consequência da competição em matéria de
espaço, de luz, de alimento, etc., o que, por
analogia com as condições que Malthus
afirmara imperarem na sociedade humana,
seria susceptível de projectar-se na
Natureza. A teoria darwiniana da selecção
377
natural tornou-se, com efeito, a elaboração
das diversas maneiras como as diferentes
variedades de plantas e de animais eram
levadas a reproduzir-se a ritmos desiguais,
explicando-se assim porque motivo, em cda
geração, certos individuos eram mais
favorecidos e se reproduziam melhor do que
outros. Tudo isto foi o resultado de um
modelo básico daquilo que seria por ventura o
processo efectivamente responsável pela
mudança e pelo desenvolvimento das formas
animais e vegetais da Natureza.
Aconteceriam na natureza, de facto, as
coisas que o modelo de Darwin sugeria? Com
isto, não pretendo perguntar «se a evolução
ocorre». Pergunto, sim, o seguinte: dar-se-á o
caso de alguns indivíduos se reproduzirem
mais fácilmente por se encontrarem melhor
adaptados ao respectivo meio ambiente,
transmitindo à progénie, por consequência, as
características que as favoreceram?
De facto, a realidade dos mecanismos
evolutivos propostos por Darwin representa
uma questão à parte da realidade do processo
evolutivo, ou seja, da mudança gradual das
378
espécies. Hoje em dia, a maior parte dos
biólogos difícilmente concebe que a teoria de
Darwin se iniciasse por um modelo de
processo que de facto ocorre na Natureza,
de tal modo se aceita como verdadeiro que é
real o modelo darwiniano. Todavia, considero
ainda possível, embora extremamente
improvável, que venha a constatar-se a
existência de macanismos muito diferentes
que sejam os verdadeiros responsáveis pela
evolução das espécies.
Em data recente, surgiu na teoria da
condutividade eléctrica um interessante
exemplo de construção modelar. Os electrões
existentes nos metais são, de algum modo,
responsáveis pela condutividade electrica dos
metais. Dudre, arquitectou um modelo bem
sucedido do mecanismo da condução, partindo
do princípio da existência de electrões livres
no metal, que se comportam tal como os
aglomerados de moléculas que vimos
represemtarem, com êxito, um modelo dos
gases. Assumindo que os electrões são
semelhantes ao gás dentro do reservatório,
Dudre, sem recurso a grande número de
379
outros pressupostos adicionais, elaborou uma
explicação das conhecidas leis da
condutividade, ou seja, demonstrou que um
aglomerado de eléctrões que obedecesse às
leis dos gases se comportava de maneira
análoga à de um condutor. O modelo é aqui
formado a partir de outro modelo e é o
modelo de um mecanismo verdadeiramente
desconhecido, isto é, o da condutividade
eléctrica dos metais.
Para se explicar um fenómeno, para
explicar uma característica, é necessário
saber descrever o mecanismo causal por
ele responsável. Para se conseguir explicar a
acção catalítica da platina, por exemplo, há
que estar ao corrente não só dos casos em
que o metal catalisa a recção química, como
também do mecanismo da catálise. Para
esclarecê-lo é preciso conhecer ou ser-se
capaz de imaginar um mecanismo plausível
para a acção catalítica. Idealmente, a teoria
deverá descrever aquilo que é de facto
responsável pelo processo que procura
compreender-se. Raras vezes se atinge esse
ideal, porém. Na prática, passa-se o
380
seguinte: em termos ideais a teoria
conterá a descrição de um modelo icónico
plausível, modelado numa coisa, numa
substância ou num processo já inteiramente
compreendidos, tomado como modelo de um
mecanismo desconhecido e capaz de o
representar em todas as circunstâncias.
Por fim, o ideal de explanação é completado
por uma última exigência. O modelo perfeito
será aquele que permita não só o raciocínio
nos moldes da complexa estrutura da dupla
analogia atráz descrita, como será também
consebido de modo a cifrar-se no mecanismo
hipotético efectivamente responsável pelo
fenómeno a explicar. Isto conduz ao mais
profundo de todos problemas científicos:
Que é que existe realmente no mundo?
Haverá nele, de facto, os mecanismos
hipotéticos que sopomos existirem?
O conhecimento tende a estratificar-se
quando ele se busca em conformidade com
este método. Isto talvez se torne mais
evidente se examinarmos a maneira como
se elaboram as causas. Há duas condições a
preencher para que possa afirmar-se como
381
verdade que existe relação causal entre
acontecimentos ou fenómenos: A primeira,
havendo garantia da evidência prima facie – é
a de que pareça existir um esquema ou
estrutura onde a relação causal se verifique.
Pode tratar-se do esquema simples a que
damos o nome regularidade ou repetição, isto
é, quando determinado tipo de acontecimento
é seguindo regularmente por outros de um
dado tipo diferente – quando, por exemplo,
pessoas que não comem fruta nem vegetais
são atingidas de escorbuto, isso não
sucedendo àquelas que consomem tais
alimentos. Esta evidência prima facie ou
evidência à primeira vista aponta para uma
relação causal entre a falta dos referidos
alimentos e a doença. Mas, para excluir toda
a possibilidade de que algo mais – um terceiro
factor – seja o responsável, tanto pela
carência de vegetais, como pelo escorbuto, é
necessário descobrir qual o mecanismo
envolvido no caso e isso lança-nos no estudo
da química das substâncias alimentares e no
da fisiologia e da química do organismo. Este
estudo fornecer-nos-á uma ideia do
382
mecanismo explicativo do esquema de
acontecimentos que se verificam na presença
ou na ausência de vegetais frescos, no ataque
e na cura do escorbuto. Satisfeita esta
segunda condição, isto é, quando se
descrevem os mecanismos causais, dá-se por
concluído o estudo causal. O conhecimento,
como atrás se disse, consubstância-se aqui
em dois estratos, por assim dizer: no
primeiro, estabelecem-se os factos a
explicar e descreve-se o respectivo
esquema; no estrato subjacente, imagina-
se ou descreve-se o mecanismo causal.
No caso referido, esse mecanismo é descrito
em termos de reacções químicas e de
mecanismos fisiológicos. Estes exibem
regularidades e esquemas característicos
próprios que exigem nova explicação causal.
Há a aduzir agora, porém, outro género de
facto. As reacções químicas explicam-se
através da teoria dos átomos, das moléculas e
da valência química, Por meio de tal modelo,
descreve-se o mecanismo causal das reacções
químicas e considerações semelhantes

383
aplicam-se à explicação dos factos
fisiológicos e bioquimícos.
Chega-se assim a outro estrato. Por seu
turno, prima facie, este estrato dá azo à
hipótese de que também existam relações
causais, de que um dado mecanismo explique
os poderes de combinação química dos átomos
químicos e de que um dado modelo de átomo
explane a diversidade dos elementos
químicos. Este modelo adapta-se à imagem do
electrão/protão/neutrão do átomo e a teoria
electrónica da valência, construindo outro
estrato.
Por fim, e é aqui que presentemente nos
encontramos, se quisermos ser fiéis aos
ideais científicos, devemos procurar saber o
que é responsável pelo comportamento dos
protões, dos neutrões, dos electrões e de
outras partículas subatómicas, tentando
desvendar outro estrato. Tal como se viu no
presente capítulo, isto é tarefa
primeiramente, da imaginação disciplinada,
regida pelos princípios da construção de
modelos, método que nos permitiu progredir
até a exploração dos diversos extratos dos
384
mecanismos e dos processos que formam o
mundo natural.
Em todas as épocas os cientístas se
confrontaram com dificuldades e se
mostraram impotentes para penetrar mais
profundamente nos segredos da Natureza. E
também em todas as épocas explicaram o seu
limite temporário de penetração científica
por meio de uma teoria metafísica na qual
aquilo que é básico para determinado
momento e para uma certa cultura científica
restrita é elevada ao estudo de definitivo.
Como tivemos oportunidade de observar no
capítulo IV, as teorias metafísicas
arquitectadas no passado apresentaram
formas explicativas na qualidade de ideais e
estes, exprimindo modelos de concepção, com
caracteres de supremos para as culturas em
causa, desembocaram num estrato
identicamente impenetrável, no qual termina
a «jazida» do conhecimento.
No entanto, como também vimos, os sistemas
metafísicos não constituem sistemas de
factos. São sistemas de conceitos inventados
pela mente e que podemos ou não adoptar.
385
Sem eles, não seria possível o próprio
pensamento, não obstante ser errado
permitir que um conceito específico se
interponha no caminho do progresso
científico. A ciência chegará, por ventura, a
um fim ao atingir o estrato para lá do qual
não possamos prosseguir por falta de dotes
imaginativos ou dos recursos técnicos
necessários. Tal fim, porém, não será o fim da
Natureza; será, isso sim, a projecção sobre
ela das nossas próprias limitações.
Entrementes, não dispomos de outra
alternativa possível à não ser a de nos
valermos dos métodos científicos, tal como os
conhecemos.

RESUMO DO ARGUMENTO

1.Visto a explicação ser tarefa da teoria, o exame da


estrutura de teorias aceitável fornecerá as formas
explicativas.
(a) Dois paradigmas de teorias:
(i) A teoria mecanica da força introduz uma entidade não
observável, que se supõe provocar os fenómenos mecânicos,
mas que se pode eliminar desta ciência, sem alteração
drástica da teoria. Descobre-se com facilidade que a função
do conceito de força é «pragmática», servindo apenas para

386
que a intuição intervenha no entendimento de certas relações
abstractas.
(ii) A teoria viral da doença apresentou uma entidade
inobservável ao ser proposta pela primeira vez e que
alegadamente provoca os fenómenos observados, mas que não
pode ser abolida da teoria sem que implique concepções de
doença, de cura, etc., radicalmente distintas.
(b) Diferenças concequenciais entre os paradigmas anteriores:
(i) Quando se compreende a ciência mecânica, constata-se
que nela se não apresenta o problema da existência ou não
existência de forças. Pelo contrário, só se entenderá a teoria
dos vírus aceitando a existência putativa destes; isto
sujeita-nos à eventualidade de ter de abandonar a teoria se
constatações posteriores vierem demonstrar que tais
entidades não existem.
(iii) A mecânica é susceptível de elevado grau de organização,
conforme com os princípios da matemática e da lógica
dedutiva. A teoria viral centra-se numa entidade básica – o
vírus – cujas facetas contingentes não são dedutíveis de
nenhum conjunto de princípios iniciais. Em ciência, como a
psicologia social, nem sequer se dispõe, em princípio, de uma
forma de congregar os aspectos gerais do comportamento
humano num sistema apenas dotado de conexões lógicas.
(c)A origem dos conceitos no cerne das teorias:
(i) Em regra, as entidades hipotéticas que constituem os
mecanismos causais objecto de explicações científicas não se
descobrem, de início, por meio de observação.
(i) Os referidos mecanismos são apenas imaginados, de
começo, e os respectivos atributos são lhe conferidos por
analogia com entidades já conhecidas quer por observação,
quer de acordo com outras entidades hipotéticas presentes
em outras explicações.

2.(a) As analogias têm a seguinte estrutura:


(i) Analogia positiva – aquela em que A e B são semelhantes.

387
(ii) Analogia negativa – em que A e B são dissemelhantes.
(iii)Analogia neutra – os atributos ou A ou B acerca do que se
não dispõe de informação quanto a imparceirarem
analogicamente.
(iv) Ao conceberem-se entidades hipotéticas, só é possível
examinar uma das entidades que intervêm na analogia,
nomeadamente aquela de onde deriva a analogia, ou seja, a
sua fonte.
(v) O comportamento da entidade hipotética terá de ser
análogo ao comportamento da coisa real que de facto provoca
o fenómeno em estudo.
(b) O conceito técnico de «modelo» possibilita a pronta
codificação destas condições. A «icónicos», ou seja, análogos
a coisas e a processos.
(c) Em ciência, as duas princípais aplicações dos modelos são:
(i) Heurística, para simplificar o fenómeno ou para o tornar
mais rapidamente manuseável – modelos hidráulicos de redes
eléctricas, por exemplo.
(i) Explicativa, tal como se disse atrás, quando o modelo é um
modelo do mecanismo causal real, desconhecido nesse
momento.
(d) Podem classificar-se os modelos consoante sejam idênticos
a respectiva fonte e o sujeito (homeomórficos) ou diferentes
(paramórficos). Nas teorias explanatórias, a fonte e o
sujeito têm ser diferentes e, por isso, tais teorias utilizam
modelos paramórficos.
(e) O emprego criativo dos paramórficos não envolve analogia
negativa, visto as não analogias desaparecerem simplemente
na definição do modelo.
(f) A aplicação bem sucedida de um modelo icónico principia
por inspirar questões de «realidade».
(i) Pode supor-se que o modelo icónico seja uma
representação boa ou verdadeira do mecanismo causal real.
(ii) Desde que este pinte um mecanismo hipotéctico plausível,
torna-se possível encetar a pesquisa das entidades em causa.

388
Por sua vez, isto estimulará a invenção quer de instrumentos
amplificadores dos sentidos quer de novas formas de
aparelhagem detectora. Como exemplo do primeiro caso,
temos o microscópio electroníco e do segundo, o contador
Geiger.
3. A concepção de modelo paramórfico pode ser empregue na
análise das teorias:
(a) A teoria evolutiva de Darwin pode considerar-se a
descrição de um modelo icónico do processo desconhecido da
evolução, por meio de:
(A) A analogia entre a selecção natural e a selecção
artificial, que explica a variação natural e a variação
doméstica, respectivamente;
(B) Analogia entre plantas e animais existentes no mundo e a
concorrência para a obtenção de recursos entre a população
humana em constante aumento.
(b) A explicação fornecida por Drude das relações entre a
condutividade eléctrica e a condutividade térmica depende da
invenção de um modelo do mecanismo causal destes
fenómenos, modelo derivado da analogia entre os electrões do
metal e as moléculas do gáz, sendo estas últimas, por seu
turno, produto da famosa analogia entre as partículas de gás
e os objectos materiais em movimento.
4. Organizado desta forma, o conhecimento depôe-se em
vários «estratos»:
(a) No estrato da observação, descobrem-se esquemas não
aleatórios que impõem explicação.
(b) Fornece-se a explicação descrevendo os mecanismos
causais, em geral não observáveis, cujo comportamento dá
origem aos esquemas observados.
(e) Este processo de estratificação prossegue até se
atingirem as relações fundamentais reconhecidas em cada
época.

389
Capítulo VII

CIÊNCIA E SOCIEDADE

O debate sobre ciência desenrolado ao longo dos seis capítulos


deste livro baseou-se no pressuposto de que ela se pode totalmente
entender como actividade prática e intelectual sem referência a
forças e a influências sociais seja de que género forem.
No entanto, a ciência é uma actividade social. É levada a cabo por
grupos de pessoas; e os seus resultados ou produtos são utilizados
pela comunidade.
No presente capítulo ocuparme-sei de alguns problemas
filosóficos surgidos quando a ciência é encarada a esta luz. Um tal
debate não só ajudará a dar conta de certos aspectos morais e
éticos, que não transpareceram das análises anteriores, como
também contribuirá para estabelecer com nitidez a diferença entre
problemas filosóficos (e a maneira como procuram resolver-se) e
questões que dizem intrinsecamente respeito à sociologia e à
história.
A primeira diferença a notar-se é a existência entre ciência na
sociedade – e ciência como sociedade. Esta última levar-nos-á aos
problemas filosóficos suscitados quando se consideraram os
cientistas como uma comunidade específica, talvez como uma tribo,
com a sua cultura própria e os seus costumes distintos.
Mas vejamos, primeiramente, as implicações da ciência na
sociedade.

A ciência na sociedade

A que tipo de argumento recorrer para justificar a exigência de que


a sociedade subsidie o trabalho científico? Porque motivo deverão
os governos contribuir financeiramente para conferências
científicas, para as universidades, institutos politécnicos e outros
estabelecimentos que se ocupam da ciência?
A fim de estudar mais de perto este problema, temos de distinguir o
justificativo de uma actividade em relação às suas consequências e
o justificativo relativamente ao seu valor intrínseco. A nossa atitude
face à ciência basear-se-á,por exemplo, na avaliação de uma
melhoria da saude pública derivada da aplicação das descobertas
científicas à vida quotidiana; ou talvez pensemos que a ciência é
boa em si mesma – há pessoas que fundamentam o mérito da

390
pesquisa científica na «beleza» de certas teorias que a ciência
produz.

A ciência como actividade justificativa


Pelo valor das aplicações

Encarando-a desta maneira, considera-se benefica a ciência por ela


representar um instrumento capaz de atingir objectivos que, por seu
turno, possuem valor intrínseco. Francis Bacon, por exemplo,
opinava dever apoiar-se a pesquisa científica por esta se cifrar em
descobertas úteis, contribuindo para a melhoria da saúde, da
riquesa e do bem-estar geral do país. Tomava como certo que tais
progressos eram valiosos por si próprios. Era preferivel ter uma
população saudável do que doente. Para justificar tal afirmação
bastava recuar até um benefício humano último, o da promoção da
felicidade e da irradicação do sofrimento.
Neste tipo de argumento para apoio da ciência, os aspectos
morais e politicos respeitantes ao valor da pesquisa científica
transferem-se desta para a tecnologia que lhe está associada, visto
ser nas aplicações práticas que a ciência revela a sua valia para a
humanidade. A aceitação ou o repúdio de projectos de investigação
científica fundamentam-se nas qualidades morais dos resultados
obtidos quando se aplica concomitante tecnologia. Por vezes, os
próprios cientistas argumentam que os estudos científicos são
neutros do ponto de vista moral e que os aspectos éticos e políticos
só vêm ao de cima quando as descobertas científicas são utilizadas
na prática pelos governos ou pela indústria. Ao apresentarem este
argumento, eximen à critica moral a actividade científica e sentem-
se autorizados a prosseguir os seus programas de pesquisa mesmo
quando pareça evidente que o fruto de tal labor será provavelmente
canalizado para fins moralmente odiosos. Assim, por exemplo,
poderão alegar que o estudo de estirpes mutantes de mudanças
virulenta representa apenas a microbiologia; tal actividade só se
transforma em guerra biológica quando os governos se apropriam
dos resultados deste estudo, convertendo-os em produtos bélicos.
Mas aqueles que se servem desta linha argumentativa para rejeitar
o repúdio à actividade científica terão de admitir que a consistência
exige que eles não validem o seu trabalho citando-lhe como prova
as consequências benéficas.

A ciência como actividade justificada pelo valor intrínseco

391
Muitas pessoas acreditam que os progressos no conhecimento da
Natureza são intrinsecamente meritórios, sem necessidade de
justificativos utilitários. O biólogo Francês Jacques Monot, num
trabalho de grande influência popular – O Acaso e a Necessidade –
defendeu a tese de que o conhecimento científico representa um
bem moral básico e que, portanto, a sua busca desinteressada
constitui matéria de valor ético incondicional.
No entanto, há certa dificuldade em aceitar uma resposta tão
simples ao problema da valia da ciência. Com efeito, as sociedades
despôem de recursos limitados para prosseguimento de todas as
actividades, sejam elas quais forem, o que o Estado se propõe
compreender. De uma ou de outra maneira, terão de estabelecer-se
prioridades quando a tais empreendimentos, todos eles susceptiveis
de se considerarem como possuidores de algum mérito.
Apresentar-se-á à sociedade, porventura, a alternativa entre, por
exemplo, a criação e concepção de apoio financeiro à institutos
científicos que investiguem o sector da doença e a construção de
novos hospitais para tratamento de doentes, hospitais que ponham
em prática conhecimentos já ao nosso despôr.
Ao considerar-se como prioritário determinado bem social, surge o
imperativo de comprovar o princípio que presidiu à determinação da
dita prioridade. Esse princípio global deverá proceder à
classificação das actividades concorrentes, candidatas ao apoio
estatal; seja qual for o princípio que se tome por referência, esta só
pode determinar prioridades estabelecendo categorias de bens
subordinados – decidindo-se, por exemplo, se os progressos no
conhecimento da medicina são mais desejáveis do que uma
melhoria imediata no capítulo da saúde pública.
Em todas as sociedades, parece pouco provável a busca de
conhecimento seja objecto de consumo universal quanto à sua
categoria de bem prioritário a que tenham de sacrificar-se todas as
outras actividades a que também se atribui valor.
O choque de princípios morais é ilustrado pela análise das
objecções postas à busca sem peias do conhecimento no campo
das ciências biológicas e humanas. Por vezes, é necessário ensaiar
hipóteses biológicas em animais vivos ou efectuar experiências
psicológicas que impliquem uma certa dose de sacrifício por parte
das pessoas que a elas se submetem. Deverão os benefícios do
conhecimento científico, por muito seguros que se mostrem,
sobreporem-se sempre ao bem-estar, dos seres sensíveis
individuaís? Este tipo de problema moral é-nos bastante familiar
devido aos debates acerca da justiça da vivissecacção. Os adeptos
do emprego de pacientes vivos, quer de animais, quer de seres

392
humanos, tendem a recorrer ao princípio utilitário do bem-estar da
maioria, em especial se a pesquisa tem implicações medicinais. Os
opositores da vivissecacção evocam um princípio moral superior
que avalie e restrinja a aplicação de princípios morais subordinados,
por exemplo, o de que é meritório qualquer progresso da medicina.
Um princípio moral superior e adequado seria aquele que insistisse
no valor intrinseco e nos direitos invioláveis de todos os seres
sensiveis.
No capitulo da pasicologia, um caso que atrai bastante as
atenções foi a experiência «Milgran». Neste estudo, os pacientes
eram induzidos a supor que os forçavam a manter ou, pelo
menos, a ferir gravemente outro ser humano. Muitos pacientes
sofreram bastante em consequência daquilo que julgavam estar
praticando, não obstante se haverem oferecido como voluntários.
Na referida experiência, o investigador que a conduz ilude aqueles
que, de boa fé, concordam em tomar parte nela. Milgran, o
experimentador em causa, defendeu tal conduta argumentando
que, muito embora os seus pacientes sofressem, houvera um nítido
benefício em se ter esclarecido, por fim, a maneira como um
dirigente injusto consegue dominar os subditos. Os
sofrimentos de alguns trazem benefícios à maioria. Os
adversários de Milgran alegaram ser injusta a busca de
conhecimentos que poderão ser beneficos à custa de sofrimentos
que são certos.
Os dois exemplos atrás mencionados ilustram um conjunto de
princípios morais. Em regra, estes conflitos solucionam-se por
referência a novas considerações que permitem colocar um dos
princípios colidentes acima de outro. Isto suscista o problema de
saber-se se haverá ou não um princípio moral verdadeiro básico ao
qual devam referir-se tais conflitos. Deixo ao leitor a tarefa de
alvitrar alguns destes candidatos, ciente de que, seja o que for que
se proponha, será bastante fácil conceber casos em que se
descubra algum outro princípio de força moral semelhante que com
ele colida. Já vimos como o princípio de que deverá proporcionar-se
o máximo bem-estar à maioria chica com o princípio do valor
intrínseco de cada ser humano.
Dir-se-á que o princípio de que o conhecimento científico é
intrinsecamente valioso não serve de fundamento básico
justificativo da investigação científica.
Mas há um outro género de mérito fundamental ou intrínseco a
procurar no estudo científico: este levar-se-ia a efeito pela beleza e
valor estético dos seus produtos. Os cosmológicos e os fisícos
fundamentais referiram-se frequentemente a ciência como uma

393
espécie de arte. Supõe-se que a ciência proporciona certos
prazeres que resultam da prática das formas artísticas mais
abstractas ou formais, tal como a música. Deste modo, é de esperar
que uma sociedade apoie a física fundamental, a cosmologia
matemática e outras actividades semelhantes apenas pelo mesmo
tipo de razões que se alegarão a favor da música, da literatura, etc.
E o justificativo de tal reivindicação encontrar-se-á no princípio de
que uma sociedade é melhor quando apoia o que se revela
intrinsecamente bom.

A Insteracção da Cultura e da Natureza Humana

CONTINUAR PG.217 EM ROM HARRE

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