Você está na página 1de 279

anais

NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica


Universidade Federal de Santa Catarina
Anais do
IV Encontro de Filosofia
Analítica
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Rodolfo Joaquim Pinto da Luz, reitor

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação


Renato Carlson, pró-reitor

NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica


Alberto Oscar Cupani, coordenador
Cezar A. Mortari
Luiz Henrique de A. Dutra
(orgs.)

Anais do
IV Encontro de Filosofia
Analítica

NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica


Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis, 1998
© 1998, NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica

ISBN: 85- 87253-01-8

UFSC/ CFH/ FIL


Cx. Postal476, 88010-970
Florianópolis, SC
Fone/fax: (048) 33 I .9248
Home page: http://www.cfh.ufsc.br/-nel

Editoração Eletrônica: NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica


Impressão e Acabamento: Imprensa Universitária, UFSC

Ficha Catalográfica
(Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina)

E56a Encontro de Filosofia Analítica (4. : 1997 :Florianópolis, SC)


Anais do IV Encontro de Filosofia Analitica I Cezar A. Mortari, Luiz
Henrique de A. Dutra, organizadores. -Florianópolis : Núcleo de
Epistemologia e Lógica, UFSC. 1998.
276p. : tabs.

Inclui bibliografia.
ISBN: 85-87253--ül-8

I. Filosofia- Congressos. 2. Lógica - Congressos. I. Mortari. Cezar


A. LI. Dutra, Luiz Henrique de A. ILI. T ítulo.

CDU: I

Reservados todos os direitos de reprodução total ou parcial


por NEL -Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC
Impresso no Brasil
IV Encontro de Filosofia Analítica,
em homenagem a Tlzomas S. Kuhn

realizado em Florianópolis, SC
de 6 a 9 de outubro de I 997

promovido por
Sociedade Brasileira de Análise Filosófica
e NEL -Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC

apoio:
CNPq, CAPES, F APESP
Departamento de Apoio a Eventos, UFSC
Departamento de Filosofia, UFSC

comissão científica:
Luiz Henrique de A. Dutra (UFSC), presidente
Danilo Marcondes de Souza Filho (PUC-RJ)
Luiz Paulo de Alcântara (UNICAMP)
Pablo Rubén Mariconda (USP)
Paulo Roberto Margutti Pinto (UFMG)

comissão organizadora:
Sara Albieri (UFSC), presidente
Alberto O. Cupani (UFSC)
Cezar A. Mortari (UFSC)
Maria Cecília M. de Carvalho (PUCCAMP)
Notícia sobre os Encontros de Filosofia Analítica

Realizado em homenagem a Thomas S. Kuhn, o IV Encontro de filosofia


Analítica se inclui em urna série iniciada em 1991. Os dois primeiros en-
contros foram realizados em Valinhos, SP, com organização da prof'. Maria
Cecília M. de Carvalho, da PUCCAMP. O primeiro encontro homenageou
Rudolf Carnap. O terceiro encontro, também realizado em Florianópolis, em
1995, teve como homenageado Karl R. Popper.
Previsto para setembro de 1999, o quinto encontro desta série deve-
rá ser organizado por professores dos departamentos de filosofia da
UNlCAMP, UNESP (Maríl ia) e PUCCAMP, em local ainda a ser determi-
nado, na região sudeste do país, tendo como homenageado Willard van Or-
man Quine.
Ao longo destes anos, os encontros de filosofi a analítica se torna-
ram o segundo maior evento de filosofia do Brasil. Desde os primeiros, eles
abrigaram uma grande variedade de abordagens e temas, não se restringindo
à tradição analítica, em sentido mais estrito, nem a seus temas privilegiados,
mas permitiram o diálogo com outras tradições em filosofia.

Notícia sobre o
NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica, da UFSC, e sobre
Principia - Revista Internacional de Epistemologia

Criado pela portaria 480/PRPG/96, de 2 de outubro de 1996, o NEL tem por


objetivo integrar grupos de pesquisa nos campos da lógica, teoria do conhe-
cimento, filosofia e história da ciência, sejam da UFSC, sejam de outras uni-
versidades. Um primeiro resultado expressivo de sua atuação é a revista
Principia, que se iniciou em julho de 1997 e já possui três números publica-
dos e mais um em preparação. Possui corpo editorial internacional e aceita
artigos inéditos, além de resenhas e notas, sobre temas de epistemologia e
filosofia da ciência, em português, espanhol, francês e inglês.
Sumário

Apresentação 8

Marcos Barbosa de Oliveira - Lógica Formal/Lógica Informal 9


Arno Aurélio Viero- Os Paradoxos e a Teoria de Conjuntos 21
Jorge A. Molina - Gentzen y el Problema de los Fundamentos 33
de ta Matemática: de la Filosofia a Ia Metamatemática
Javier Legris- Sobre la Idea de una Semántica Procedimental 48
para la lnferencia Lógica
Arthur Buchsbaum & Tarcisio Pequeno - A Introdução da 61
Implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos
Cezar A. Mortari- Modalidades em Lógicas de Conhecimento 79
e Crença
Mário A. Guerreiro- A Natureza da Crença 106
Alexandre M. Luz- Crença Verdadeira Justificada é 138
Conhecimento? Uma Introdução ao Problema de Gettier
Arley Moreno- Conseqüências Epistemológicas da Terapia !57
Wittgensteiniana: Pragmática Filosófica
Nelson G. Gomes- Racionalidade e lndecidibilidade: 177
Nota sobre as Raízes do Decisionismo de Otto Neurath
Maria Cecília M. de Carvalho- John Stuart Mill e os J91
Ingredientes da Felicidade
Rita de Cássia Lana- "De Rerum Natura": Observações sobre a 213
Moral Epicurista e Alguns Desdobramentos
Alcino Eduardo Bonella -Hegel e a Crítica ao Historicismo 224
Jurídico
Renato Scbaeffer- O Problema Ontológico da lntersubjetividade: 234
Contra o Solipsismo Social
Luiz Hebecbe- Sobre o Pensamento 251
Sara Albieri - O Modelo Detenniniata do Universo na Filosofia 262
Moderna-
Apresentação

Os textos reunidos neste volume foram apresentados no IV Encontro de Fi-


losofia Analítica, realizado em Florianópolis, de 6 a 9 de outubro de 1997,
em homenagem a Thomas S. Kuhn.
Alguns dos trabalhos apresentados no encontro, que estavam mais
diretamente ligados à linha editorial da revista Principia, foram para ela
encaminhados. Eles estão sendo publicados nos dois números que compõem
o volume 2, de 1998, junho e dezembro, respectivamente.
O presente volume contém outros trabalhos apresentados no en-
contro, mas que não se adequavam inteiramente ao perfil de Principia. Dada
a variedade de temas e abordagens que os encontros de filosofia analítica
admitem, o leitor notará que este volume é bastante heterogêneo, tanto nos
assuntos de que seus textos tratam, quanto na forma de fazê-lo.
Infelizmente, nem todos os participantes puderam enviar seus tex-
tos. Muitos deles já estavam destinados a outros veículos. De qua lquer ma-
neira, o presente volume resgata urna parte de toda a riqueza contida na pro-
gramação do IV Encontro de Filosofia Analítica, e esperamos que o leitor
possa encontrar aqui contribuições de valor para seus interesses acadêmicos.
Devemos agradecer, em primeiro lugar, aos organizadores do en-
contro, assim como aos participantes, em especial, àqueles que enviaram
seus textos e que estiveram sempre dispostos a colaborar com os organizado-
res deste volume, por exemplo, fazendo as modificações e revisões que se
mostraram necessárias.
Expressamos também especial agradecimento a colegas do Depar-
tamento de Filosofia da UFSC, do NEL, e aos amigos e colegas de outras
universidades, em particular, aqueles q ue integraram as comissões organ iza-
dora e científica.
Por fim , gostaríamos de agradecer o apoio finan ceiro do CNPq, da
CAPES, e da FAPESP, que viabi lizaram a realização do evento. Agradece-
mos também ao Departamento de Apoio a Eventos, da UFSC, ligado à Pró-
Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. e à administração do Centro de Filo-
sofia e Ciência Humanas e do Departamento de Filosofia, em cujas instala-
ções o encontro realizou seus trabalhos.

Cezar A. Mortari
Luiz Henrique de A. Dutra
organizadores
LóGICA FORMAL I LóGICA INFORMAL*

MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA


Universidade de São Paulo

Este trabalho tem um duplo objetivo: primeiro, fazer uma rápida apresenta-
ção do movimento denominado Lógica Informal. ainda pouco conhecido em
nosso país; segundo, extrair das constatações que deram origem ao movi-
mento algumas conseqüências referentes ao estatuto da lógica formal , espe-
cialmente no que diz respeito ao conceito de razão. Nossa tese será a de que,
embora tais constatações não constituam por si só uma crítica, elas abrem
caminho para um questionamento da concepção ortodoxa formal da racio-
nalidade.
Nosso interesse pelos temas em pauta deriva em parte de estudos no
campo da ciência cognitiva e, embora isto não seja essencial para a argu-
mentação a ser formulada, vamos tomar como ponto de partida o conceito de
razão pressuposto nesta nova área de pesquisa. A ciência cognitiva, pode-se
dizer, identifica lógica e razão: de seu ponto de vista, ser racional é pensar
de acordo com os princípios da lógica - devendo-se entender por ' lógica'
nestes enunciados os domínios que tratam tanto das inferências dedutivas
quanto das indutivas, ou probabilísticas. Tal concepção de racionalidade
evidentemente não se restringe à ciência cognitiva; na verdade, e la deriva de
sua matriz teórica, a saber, a tradição filosófica anglo-saxônica, onde cons-
titui a concepção predominante. Recapitular sua história, e determinar os
limites precisos de sua aceitação no momento não se encontram contudo
entre objetivos deste trabalho.
Uma das mais conhecidas introduções à ciência cognitiva é o livro de
Gardner A nova ciência da mente. Um de seus capítulos leva o título 'Quão
racional é o ser humano?', e resume uma série de pesquisas empíricas da
ciência cognitiva cuja implicação, segundo Gardner, é a de que não somos
tão racionais quanto os filósofos e psicólogos supunham e desejavam. A
natureza das investigações é evidência para a alegação feita acima, a res-
peito da concepção cognitivista de racionalidade: o que procuram estabele-

• Agradeço aos amigos Paulo C. Abrantes e João de Fernandes Teixeira lllle, entre
outras coisas. me ajudaram a conseguir o material bibliográfico necessário para a
pesquisa em que se baseia esta comunicação.
Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de
Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 9-20.
lO Marcos Barbosa de Oliveira

cer, em todos os casos, são incapacidades dos sujeitos de realizar certos tipos
de inferência, algumas dedutivas, outras indutivas. Tais pesquisas deram
origem a uma viva polêmica, e os títulos de algumas das intervenções tam-
bém confirmam nossa interpretação, por exemplo, 'Pode a irracionalidade
humana ser experimentalmente demonstrada?', de L. J. Cohen. e ' Poderia o
homem ser um animal irracional?', de S. Stich: em ambos os casos, irracio-
nal = incapaz de pensar de acordo com os princípios da lógica.
Para dar uma idéia do tipo dos experimentos relatados por Gardner,
vejamos dois exemplos. um envolvendo inferências dedutivas, outro inferên-
cias indutivas. O primeiro é o experimento das quatro cartas, idealizado por
Peter Wason, e realizado por ele em colaboração com P. Johnson-Laird 1; foi
uma das pesquisas que despertaram maior interesse. O problema apresenta-
do a cada sujeito consiste no seguinte. Dispõem-se diante dele quatro cartas,
como as de baralho, cada uma com um dos símbolos E, K, 4 e 7 estampados
em sua face superior, visível. O sujeito é informado que cada carta tem uma
letra numa das faces e um número na outra, e a seguir enuncia-se a regra: Se
uma carta tem uma vogal em uma face, então terá um número par na outra.
A tarefa do sujeito é testar a regra, com a condição de poder virar apenas
duas cartas. Praticamente todos os sujeitos percebem que, das cartas com
letras na face visível, a que tem o E deve ser virada e a que tem o K não. A
armadilha encontra-se nas cartas com números. A relevante, tendo em vista
a regra sendo testada, é a que tem o 7, pois se houver uma vogal na outra
face, ficará claro que a regra não é válida. A grande maioria dos sujeitos,
entretanto, seleciona. na segunda opção, a carta marcada com o 4. Se esta
escolha representa de fato um equívoco é algo que tem sido contestado por
alguns críticos. 2 Para nossos objetivos, entretanto, não é necessário entrar
nesta polêmica.
Para descrever o segundo exemplo, que envolve uma inferência probabi-
lística, passemos a palavra ao próprio Gardner:

finalmente, conheça Linda. Tem trinta e um anos. é solteira. desembaraçada


c muito inteligente. Formou-se em filosofia. Quando era estudante. preocu-
pava-se muito com questões de discriminação c justiça social e também par-
ticipava de manifestações antinuclcarcs. Agora você deve classificar, do mais
provável para o menos, uma série de oito enunciados. Constam da lista os
seguintes enunciados: ··Linda é uma assistente social psiquiátrica", " Linda é

I. Cf Wason e Johnson-Laird. Psychology o[ reasoning: slructure and contem.


2. Referências a tais críticas são feitas por Johnson-Laird (que as rejeita) em Mental
models, p. 31.
Lógica Formal/ Lógica Informal li

bancária.. c ·'Linda é bancária e militante do movimento feminista." Em


qualquer julgamento racional. é mais provável que Linda seja bancária do
que ao mesmo tempo bancária c militante do movimento feminista. A proba-
bilidade de x. afinal de contas. é sempre maior do que a probabilidade do
evento independente x e do evento independente y. No entanto, mais de 80
por cento dos sujeitos. inclusive aqueles com conhecimento sofisticado de
estatística. concordam mais prontamente com o enunciado de que Linda é
bancária e feminista do que com o enunciado de que Linda é bancária.
Por que este claro desprezo da racionalidade-f

As inferências indutivas, entretanto, não são relevantes para o que vem a


seguir. No centro da discussão estará a tese de que a capacidade de realizar
corretamente inferências dedutivas é um atributo necessário da racionalida-
de. Em função disso, até segundo aviso o termo ' lógica' será usado com o
sentido de ' lógica dedutiva·. Nosso objetivo imediato é o de estabelecer que,
sendo aceita esta concepção parcial de racionalidade, existe uma via mais
interessante e mais profunda de mostrar que os seres humanos não são tão
racionais quanto se supunha. Este percurso tem seu ponto de partida nas
constatações que deram origem ao movimento da Lógica Informal, e conti-
nuam formando o núcleo de seu ideário.
A Lógica Informal nasceu há vinte e poucos anos como um movimento
pedagógico, e nos últimos tempos vem lutando para conquistar espaço no
mundo acadêmico na qualidade de uma nova área de especialização. É parti-
cularmente forte nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. O aspecto
pedagógico da Lógica Informal reflete-se no fato de que boa parte da litera-
tura produzida em seu nome é constituída de livros-texto (uma descrição
recente avalia o número de obras nesta categoria em dúzias, ou mesmo cen-
tenas). 4 O parágrafo inicial do prefácio de um deles, The logic ofrea/ argu-
ments, de Alec Fisher é bem ilustrativo do espírito que animou o movimento
em seus primórdios. Diz o autor:

Este li vro originou-se em minha experiência de ensinar lógica. Como muitos


outros. eu tinha esperança de que o ensino da lógica fosse ~judar meus alu-
nos a argumentarem melhor e mais logicamente. Como muitos outros, fiquei
frustrado. Alunos que dominavam sem dificuldade as técnicas da lógica pa-

3. Cf Gardner. A nova ciência da mente, p. 39 1. O experimento descrito é de autoria


de Tversky e Kahneman. Cf 'Extensional vs. intuitive reasoning: the conjunction
fallacy in probability judgemcnt'.
4. Groarke. 'Logie, informal'.
12 Marcos Barbosa de Oliveira

reciam julgá-las de muito pouca valia no tratamento dos argumentos reais.


As ferramentas da lógica clássica - a formalização. as tabelas de vo:rdade. os
tab/eaux semânticos. etc. - não pareciam de maneira alguma diretamente
aplicáveis aos raciocínios com os quais eles tinham de lidar em cursos que
não os de lógíca. Ao mesmo tempo tinha o sentimento de que deveria ser
possível fornecer aos alunos alguma orientação- algum procedimento- que
os ajudasse a extrair c avaliar argumentos de textos escritos e a produzir seus
próprios bons argumentos. Desejava que o procedimento fosse não-formal
mas que incorporasse os insights da lógica tradicional. Este livro é uma ten-
tati va de atingir tais objetivos. (p. vii).

O conceito de argumento real usado por Fisher nesta passagem e no


próprio título do livro é bastante significativo: de certa forma encapsula as
motivações que impulsionaram o movimento. Por 'argumento real ' entende-
se aqueles que ocorrem - ou poderiam plausivelmente ocorrer - na vida real,
mais precisamente, nas esferas da atividade humana em que o debate de-
sempenha um papel central, ou seja, na política, na filosofia, nas ciências,
no direito, etc. A definição exclui apenas os argumentos artificiais, inventa-
dos para servirem de exemplos no contexto da própria lógica. A relevância
da distinção reside no fato de que, como diz Fisher, as técnicas da lógica
tradicional aplicam-se aos argumentos artificiais- o que não é de surpreen-
der, dados os propósitos com que são criados - mas não aos argumentos
reais.
E de onde provêm esta diferença? Ela decorre de ser a lógica tradicional
em pauta uma lógica forma/, uma lógica que toma como pressuposto o prin-
cípio de que a validade de um argumento depende apenas de sua forma, e
não de seu conteúdo. Em decorrência de tal princípio, para determinar se um
dado argumento é válido ou inválido, a primeira tarefa então consiste em
extrair sua forma. É aí que se concentram as dificuldades. Um modo conve-
niente de caracterizá-las é descrever uma experiência que acreditamos ser
bastante comum entre professores de lógica, especialmente os responsáveis
'·-por esta disciplina em cursos de humanidades como os de filosofia e de pe-
dagogia.
Na passagem citada, Fisher refere-se à inutilidade das técnicas da lógica
para o estudo dos argumentos reais. O domínio de tais técnicas, por outro
lado, exige o exercício de uma forma de pensamento rigoroso semelhante à
mobilizada no estudo da matemática, e para a qual os alunos de humanida-
des de maneira geral têm pouca inclinação. Resultam daí os bem conhecidos
problemas enfrentados pelos professores: as dificuldades que os alunos en-
contram para assimilar a matéria, o desinteresse, a resistência. Reagindo a
Lógica Formal/Lógica Informal 13

tal situação, o professor faz um diagnóstico que atribui a origem dos pro-
blemas aos exemplos de argumentos utilizados: em virtude de sua artificiali-
dade, eles dificultariam a percepção por parte dos alunos da suposta relevân-
cia da lógica para os debates da vida real. O remédio então consiste em mu-
dar os exemplos, em passar a trabalhar com argumentos reais, de preferência
aqueles cujos conteúdos fazem parte da vida intelectual quotidiana dos alu-
nos, como os encontrados nas páginas de opinião dos jornais.
O professor seleciona então um editorial conveniente, e dá início à sua
análise. Textos deste tipo contêm argumentos, mas envolvem também idéias
de outra natureza, de tal maneira que a primeira tarefa consiste em destacar
de seu contexto o argumento a ser estudado. Isto implica não apenas em
fazer um recorte, determinando onde o argumento começa e onde acaba,
mas também em eliminar os elementos extralógicos que ocorrem no interior
da passagem. Já as decisões envolvidas nesta etapa nem sempre são muito
fáceis. Em seguida deve-se investigar se o argumento não contém premissas
implícitas, e então os problemas começam a ficar mais sérios. Com relação
aos termos e expressões em que se expressa o argumento, é necessário de um
lado determinar os que são sinônimos - ou no contexto devem ser tomados
como tal - , de outro identificar os que são polissêmicos, aparecendo com
sentidos diferentes em cada ocorrência. Quem quer que tenha passado por
uma experiência como esta sabe como são problemáticas todas estas etapas,
e a quantidade de decisões mais ou menos arbitrárias que elas freqüente-
mente exigem. Os problemas envolvidos são essencialmente problemas de
interpretação, para cuja solução a lógica formal tem pouco a contribuir. Mas
vamos supor que o professor consiga superar todos os obstáculos, chegando,
depois de muito debate a uma representação da forma do argumento. O que
acontece com grande freqüência, nesta etapa que representaria o coroamento
do processo, é que tal forma se revela trivialmente válida, ou inválida.
O exercício feito com o objetivo de demonstrar a relevância da lógica
para a vida real termina assim estabelecendo exatamente o oposto do que se
pretendia.
Foram experiências como esta que motivaram a formação da Lógica
Informal como um movimento pedagógico. 5 Constatada a pouca utilidade da

5. Em que pese a enorme diferença de pontos de vista, não há como não reconhecer
que Heidegger tinha pelo menos certa razão ao afirmar: ''Esta lógica ensinada peJos
professores de filosofia não fala a seus alunos. Não apenas é seca como pó; no fim
ela os deixa perplexos. Eles não encontram conexão alguma entre esta lógica e seu
próprio estudo acadêmico, e certamente nunca se torna claro a que uso se destina, a
não ser que seja algo tão banal e basicamente sem valor quanto o uso como material
14 Marcos Barbosa de Oliveira

lógica formal para a avaliação dos argumentos reais, a tarefu passou a ser a
e laboração de programas e métodos a lternativos para os cursos que se atri-
buem o objetivo de fazer com que os alunos pensem melhor. Houve no início
uma grande ênfase no estudo das falácias informais, para o que contribuiu o
livro Fallacies, de Charles Hamblin, publicado em 1970. Outras obras muito
influentes, que podem ser consideradas precursoras do movimento são: Be-
ardsley, Practica/ logic, de 1950, Toulmin, The uses ofargument, de 1958, e
Scriven, Reasoning, de 1976. Não se pode deixar de mencionar neste con-
texto, pelos elementos em comum com a Lógica Informal, e pela repercussão
que alcançou na filosofia como um todo, o Tratado da argumentação: a
nova retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca.
No que se refere aos programas alternativos, de maneira geral eles não
excluem totalmente a lógica formal , porém limitam seu estudo aos princípi-
os fundamentais, deixando de lado os desenvolvimentos mais técnicos.
Grande parte das energias, por outro lado, é dedicada aos problemas de
interpretação, e desta forma o ensino da lógica informal adquire mais um
caráter de treinamento do que de transmissão de teorias, como é o caso dos
cursos tradicionais de lógica. Muito se poderia dizer ainda sobre os métodos
desenvolvidos pelos adeptos da Lógica Informal para a avaliação de argu-
mentos reais; um relato sobre eles entretanto já se situa fora do âmbito do
presente trabalho.
Dois dos líderes do movimento são Ralph Johnson e Anthony Blair,
ambos professores de filosofia na Universidade de Windsor, Canadá. Foram
eles os organizadores do Primeiro Simpósio Internacional de Lógica Infor-
mal, realizado em sua universidade em 1978. Um dos resultados do simpósio
foi a criação do Informal Logic Newsletter, que em 1984 transformou-se na
revista Informal Lagic, da qual Johnson e Blair são os editores. Eles têm
produzido inúmeros trabalhos em colaboração, dentre os quais se destacam
dois artigos que proporcionam uma visão panorâmica sobre o movimento:
' Informal logic: the past five years 1978-1983 ' , e 'Informal logic: past and
present', incluído na coletânea New essays in informal logic, da qual
Johnson e Blair são também os organizadores.
A Lógica Informal nasceu como um movimento pedagógico mas, como
se observou acima, passou aos poucos a almejar o status de uma área de
especialização dentro dos domínios da filosofia. Deste ponto de vista,

mais ou menos conveniente para avaliações. Tal lógica técnica e acadêmica também
não fornece uma concepção de filosofia. Seu estudo deixa o aluno fora da filosofia,
quando não efetivamente o afasta dela'·. (Heidegger. The metaphysica/ foundations
oflogic.)
Lógica Formal/ Lógica Informal 15

Johnson e Blair registram a existência de programas de mestrado em lógica


informal em algumas universidades, porém não de doutorado - algo que
consideram explicitamente como uma limitação a ser superada. Esta mudan-
ça no caráter do movimento não é vista unanimemente com bons olhos;
alguns participantes lamentam o relativo afastamento dos ideais pedagógicos
que inspiraram sua fundação. Johnson e Blair reconhecem em parte a proce-
dência das críticas levantadas, porém enfatizam os beneficios da institucio-
nalização da Lógica Informal como uma área do saber: o estímulo ao desen-
volvimento teórico rigoroso, e à interação com outras áreas, particularmente
a ciência cognitiva, para a qual, eles sustentam, a lógica informal tem uma
importante contribuição a dar. 6
Um dos problemas enfrentados pela Lógica Informal é a falta de uma
delimitação precisa em relação a domínios vizinhos, particularmente o mo-
vimento denominado pensamento crítico (criticai thinking) e a tradição
holandesa de pesquisa sobre a argumentação associada aos nomes de Frans
van Eemerem e Rob Grootendorst. Quanto ao primeiro, a dificuldade é tanta
que muitos autores usam as expressões 'lógica informal ' e ' pensamento
critico' como sinônimas. 7 Este, contudo, é outro tópico em que não podemos
nos aprofundar.
Para completar este esboço, e trazer à tona a conexão com o tema da
racionalidade, vejamos corno Johnson e Blair caracterizam, em termos mais
amplos, os objetivos do movimento:

Vivemos em tempos conturbados. Mais que nunca é necessária, na comuni-


dade humana. a discussão cooperativa racional sobre os problemas que en-
frentamos. Precisamos de mais razão c racionalidade, assim como de uma
sociedade bem-educada nos métodos e hãbitos da argumentação racional.
Esperamos que ao estimular o interesse tanto pelo estudo quanto pela prática
da argumentação como um empreendimento racional, os lógicos informais
tenham uma contribuição a dar para a lógica c a filosofia de maneira geral,
para a educação das gerações futuras. c para a sociedade como um todo. 8

***
Voltemos agora à linha de pensamento a que havíamos dado início. Afir-
mamos que, sendo pressuposto o conceito ortodoxo, formal , de razão, as

6. Cf Johnson e Blair. ·Jnformallogic: past and present'. pp. 4-5.


7. Cf ibid., pp. 11-12.
8. lbid., p. 15.
16 Marcos Barbosa de Oliveira

constatações da Lógica Informal fornecem um caminho mais interessante e


mais profundo que o da ciência cognitiva para se estabelecer que os seres
humanos não são tão racionais quanto se supunha. Vamos agora justificar
esta afirmação.
De acordo com a concepção formal de racionalidade, ser racional é pen-
sar de acordo com os princípios da lógica formal. A constatação básica da
Lógica Informal é a de que tais princípios não se aplicam aos argumentos
utilizados nos debates da vida real. Este 'não se aplicar' é claramente uma
questão de grau: podemos dizer que a aplicabilidade da lógica a um argu-
mento é tanto menor quanto maior forem as dificuldades de interpretação,
quanto mais decisões arbitrárias tiverem de ser tomadas para se extrair a
suposta forma do argumento. Mas, por enquanto, este aspecto de graduali-
dade não é relevante, podemos ficar apenas com a asserção genérica de que,
de maneira geral, os princípios da lógica não são aplicáveis aos argumentos
reais. Uma evidência suplementar para ela é o fato de que, mesmo em textos
filosóficos, e entre os autores em que a concepção formal de racionalidade é
mais arraigada, embora haja abundância de argumentos, raramente se extrai
e representa explicitamente sua forma com o objetivo de determinar sua
validade.
Bem, se os princípios da lógica formal não se aplicam aos argumentos
reais, então que sentido tem dizer que pensamos de acordo com eles? Não há
como não concluir que não somos tão racionais quanto se supunha.
E por que seria tal demonstração mais interessante e profunda que a
fornecida pelas pesquisas da ciência cognitiva? Primeiro, por se referirem a
todo o conjunto de inferências que fazemos, não apenas a alguns tipos bem
determinados. O problemas colocados para os sujeitos nas investigações
empíricas da ciência cognitiva têm na verdade certo caráter de " pegadinha",
de questão que envolve uma armadilha em que caem os desavisados. Em
segundo lugar, porque a irracionalidade em pauta, no caso da Lógica Infor-
mal, é atribuída a todos os seres humanos; no caso da ciência cognitiva,
apenas à categoria da qual os sujeitos dos experimentos constituem uma
amostra. Embora os cognitivistas ressaltem que entre os sujeitos que falham
nos testes se encontram não apenas leigos, mas também pessoas com certo
estudo de lógica, eles próprios ficam excluídos do conjunto dos deficientes
em racionalidade. Isto porque os experimentos, por sua própria natureza,
assentam-se sobre o pressuposto de que o pesquisador sabe as respostas cor-
retas, racionais, para os problemas apresentados.
Passemos agora ao tópico da articulação entre a lógica e a racionalidade.
À primeira vista, pode parecer que as constatações da Lógica Informal colo-
cam em xeque a concepção formal de racionalidade. Na verdade, isto não
Lógica Formal/Lógica Informal 17

acontece, e não acontece porque o conceito de razão é, por sua própria natu-
reza, normativo. Afirmar que ser racional é pensar de acordo com os princí-
pios da lógica formal não implica dizer que pensamos, mas sim que devemos
pensar desta forma. Com efeito, os lógicos sempre souberam que as pessoas
nem sempre raciocinam e argumentam corretamente do ponto de vista lógi-
co; para eles, é evidente que ocorrências concretas de desrespeito a um prin-
cípio da lógica não implicam sua refutação - da mesma maneira em que o
mandamento 'Não matarás' não é refutado pelo fato de que os homens se
mataram, e continuam se matando uns aos outros.
A Lógica Informal, por outro lado, leva a um aprofundamento das idéias
a respeito da normatividade da lógica. O tradicional, quando se pensa na
lógica como uma doutrina normativa, é concebê-la como determinando as
inferências que podem e as que não podem ser feitas. Sob esta luz, a lógica
aparece como uma norma proibitiva -já que estipula não as inferências que
devemos, mas apenas as que não devemos fazer. Seu mandamento básico é:
'Não cometerás inferências inválidas'.
Por trás desta formulação encontram-se as pressuposições de que pode-
mos distinguir as inferências válidas das inválidas e, o que é mais impor-
tante, que a validade depende apenas da forma. O estudo da lógica formal
fica caracterizado, nesta perspectiva, como uma prática que nos ajuda a
observar o mandamento básico - que nos permite ser mais lógicos e, em
conseqüência, mais racionais.
Os princípios da lógica formal, porém, como ficou estabelecido, de ma-
neira geral não se aplicam às inferências que fazemos. A conclusão é para-
doxal, pois aniquila o conteúdo normativo a ela atribuído. Uma regra de
boas maneiras que prescrevesse a maneira educada de bater as asas eviden-
temente não se aplicaria aos seres humanos, desprovidos que somos de tais
apêndices. Se os princípios da lógica formal não se aplicam às nossas infe-
rências, então seu conteúdo normativo é igualmente inócuo.
A saída do paradoxo - é o que iremos sugerir agora - consiste em atri-
buir à lógica, além do mandamento 'Não cometerás inferências inválidas',
um outro ainda mais fundamental. Para isso vamos definir com a precisão
necessária o conceito de formalizar um argumento. A aplicabilidade dos
princípios da lógica aos argumentos reais é, como vimos, uma questão de
grau. Além do mais, é fácil perceber que um argumento pode ter várias
formulações diferentes, tais que a aplicabilidade da lógica é maior em umas
que em outras. Na verdade, o processo de extrair a forma de um argumento
pode ser pensado como uma série de reformulações operadas em seqüência
sobre o argumento original, de tal maneira que a aplicabilidade da lógica
aumenta a cada reformulação, e termina com a representação puramente
18 Marcos Barbosa de Oliveira

simbólica da forma. Vamos chamar de formalizaçao de um argumento o


processo de reformulá-lo no sentido de incrementar a aplicabilidade da lógi-
ca a ele. ' Formalizar um argumento', de acordo com a definição proposta,
refere-se a um processo gradativo, não a uma operação binária, que ou bem
se realiza ou bem não.
Podemos agora enunciar o outro mandamento da lógica, qual seja,
'Formalizarás tuas inferências'. Uma outra maneira de representá-lo con-
siste em dizer: ' Quanto mais formal melhor'. Ele constitui o primeiro man-
damento da concepção formal de racionalidade, em cuja ausência o segundo
mandamento - Não cometerás inferências inválidas - perde o sentido.
Afirmamos que as constatações da Lógica Informal não constituem uma
crítica ao conceito formal de razão. Chegou agora o momento de declarar-
mos que, a nosso ver, tal crítica deve ser empreendida. E para tal empreen-
dimento - é o que procuraremos mostrar - as constatações da Lógica Infor-
mal abrem caminho.
Em sua disputa com outras concepções de racionalidade, a concepção
formal ortodoxa adota uma estratégia de enclausuramento; tal como o tatu-
bola, ela se fecha em si mesma envolvendo-se em uma carapaça protetora
que a toma imune a todos os ataques. A operação consiste em fazer com que
qualquer questionamento da lógica apareça como necessariamente irracio-
nal, incongruente, e isto se consegue não enfatizando, deixando no escuro,
por assim dizer, tanto o fato de que a lógica não se aplica aos argumentos
reais quanto o primeiro mandamento, que prescreve sua formalização. Sendo
o cerne da lógica reduzido.ao segundo mandamento, fica parecendo que o
único questionamento possível implicaria uma defesa das inferências inváli-
das, da prescrição de que devemos, ou no mínimo podemos fazer inferências
inválidas.
Sem um critério normativo para a correção de argumentos, entretanto,
fica difícil conceber uma crítica que possa se apresentar como racional. É
como se, ao negar o segundo mandamento, o crítico caísse no vazio, faltan-
do-lhe um ponto de apoio para que o ataque pudesse ser desfechado.
A contra-ofensiva consiste em, a partir da explicitação do primeiro man-
damento como verdadeiro cerne da concepção formalista, identificar dois
tipos diferentes de forma de pensamento que não estã~ submetidos a ela: o
pensamento alógico - ao qual os princípios da lógica formal não se aplicam
-, e o pensamento ilógico - que está em desacordo com \eles, sendo consti-
tuído de inferências formalmente inválidas. Uma manifestação de uma for-
ma de pensamento só pode ser ilógica na medida em que não for alógica.
Sendo reconhecido o fato de que a lógica formal não se aplica aos argu-
mentos reais, a única maneira de não condenar como irracionais todos os
Lógica Formal/Lógica Informal 19

debates realizados ao longo da história na ciência, na filosofia, na política,


etc., ou seja, em toda a história da cultura ocidental, consiste em reconhecer
a racionalidade de formas alógicas de pensamento. Tal reconhecimento
fornece a plataforma necessária para o questionamento do conceito formal
de razão.
A estratégia de enclausuramento da lógica é praticada desde a antigUida-
de, como se depreende do conhecido episódio do qual Epíteto é o protago-
nista:

Quando um dos presentes disse: ..Convença-me de que a lógica é necessá-


ria", ele respondeu: "Queres que te prove isto?" A resposta foi .. Sim." ·'Então
devo usar a forma demonstrativa de linguagem." Tendo o interlocutor con-
cordado, Epíteto lhe perguntou: ·'Como então saberás que não te estou enga-
nando com meus argumentos?" O interlocutor ficou em silêncio. "Percebes",
disse Epíteto, "que tu próprio estás admitindo que a lógica é necessária, se
sem ela não podes saber nem mesmo isto, se a lógica é ou não neccssária?" 9

Já se observou que, de acordo com os termos da situação, se o interlocu-


tor não fosse competente em lógica, não poderia apreciar a força do argu-
mento de Epíteto, que deste modo cairia no vazio. Contudo, ainda que o
argumento não fosse eficaz no sentido de persuadir o interlocutor a estudar
lógica, ele ainda teria o poder de reduzi-lo ao silêncio. Isto se evita através
do recurso à concepção de uma forma de pensamento que é alógica porém
não irracional.

Referências bibliográficas

Arrian, 1952. Discourses of Epictetus. Great Books of the Western World,


vol. 12. Chicago: Encyclopredia Britannica.
Beardsley, M. 1950. Practicallogic. Englewood Cliffs, Prentice-Hall.
Cohen, L. J. 1981. "Can human irrationality be experimentally demon-
strated?" The behavioral and brain sciences, 4: 317-70.
Cole, M. e Scribner, 1974. Culture and thought: a psychological introduc-
tion. Nova York: Wiley.
De Oliveira, M. 8. 1997. "O naturalismo no estudo dos conceitos." Da ciên-
cia cognitiva à dialética. Trabalho de livre-docência, Faculdade de Edu-
cação, Universidade de São Paulo, pp. 86-111.

9. Arrian. Discursos de Epiteto, livro n, cap.25.


20 Marcos Barbosa de Oliveira

- . 1996. "O que todo cientista cognitivo deve saber sobre a Lógica". In
Gonzales, M. E. Q. et a/. (orgs.), Encontro com as Ciências Cognitivas:
Anais do I Encontro Brasileiro-Internacional de Ciência Cognitiva, vol.
I. Marília, Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, pp. 15-26.
Fisher, A. 1988. The logic of real arguments. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press.
Gardner, H. 1995. A nova ciência da mente: uma história da revolução
cognitiva. Trad. de Cláudia Malbergier Caon. São Paulo, EDUSP.
Groarke, L. Logic, informal. Verbete da Stanford Encyclopedia of Philoso-
phyem h ttp ://pl ato . s ta nford. edu/entries/logic-informal/logic-
i nformal .html. (18/9/97)
Hamblin, C. L. 1970. Fallacies. Londres, Methuen.
Heidegger, M. 1992. The metaphysical foundations of logic. Bloomington:
Indiana University Press,
Johnson, R. H. e Blair, J. A. 1994. " Informal Logic: past and present". In
Johnson e Blair (orgs.) New essays in informallogic. Windsor, Informal
logic: University ofWindsor, pp. 1-19.
Johnson, R. H. e Blair, J. A. 1985. Informallogic: the past five years 1978-
1983. American Philosophical Quarterly 22(3): 181-96.
Johnson-Laird, P. N. 1983. Mental models: towards a cognitive science of
language, inference and consciousness. Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press.
Luria, A. R. 1990. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e
sociais. Trad. de Luiz Mena Barreto et ai. São Paulo, Ícone .
Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca, L. 1996. Tratado da argumentação: a
nova retórica. São Paulo: Martins Fontes.
Scriven, M. Reasoning. 1976. Nova York: McGraw-H.ill.
Stich, S. P. 1985. "Could man be an irrational animal?" Synthese, 64: 115-
35.
Toulmin, S. E. 1958. The uses ofargument. Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press.
Tversky, A. e Kahneman, D. 1983. "Extensiona1 vs. intuitive reasoning: the
conjunction fallacy in probabi1ity judgement". Psychological review, 90:
293-304.
Wason, P. C. e Johnson-Laird, P. N. 1972. Psychology ofreasoning: struc-
ture and content. Cambridge (Mass.): Harvard University Press.
Os PARADOXOS E A TEORIA DE CoNJUNTOS

ARNO AURÉLIO VIERO


Universidade Federal Fluminense

Uma das características mais marcantes da teoria de conjuntos, como ela é


desenvolvida atualmente, reside na utilização da noção de sistema axiomáti-
co formalizado para a obtenção de seus principais resultados. Contudo, nem
sempre foi assim. Os primeiros desenvolvimentos da teoriá de conjuntos,
feitos por G. Cantor e R. Dedekind, deram-se de uma forma não axiomática.
O conceito de método axiomático começou a desempenhar um papel central
em tais investigações a partir do trabalho de E. Zermelo, intitulado
"lnvestigations in the Foundations of Set Theory 1" 1, no qual, pela primeira
vez, a teoria de conjuntos foi apresentada de acordo com os preceitos do
método axiomático.
A adoção de tal postura iniciou uma verdadeira revolução no desenvol-
vimento da teoria de conjuntos. Contudo, vários aspectos desta transforma-
ção permanecem, ainda hoje, bastante obscuros do ponto de vista conceitual.
Qual a finalidade da adoção do método axiomático em tais investigações?
Como entender a natureza e a finalidade dos vários elementos constitutivos
do método axiomático? Quais as conseqüências de se adotar tal postura no
desenvolvimento da teoria de conjuntos? O propósito central deste trabalho é
o de tentar obter respostas satisfatórias a estas várias questões.
No ano de 1908, Zermelo publicou dois artigos que tinham uma relação
direta com o seu trabalho no âmbito da teoria de conjuntos. O primeiro de-
les, intitulado "A New Proof of the Possibility of a Well-Ordering", tinha
como finalidade principal a apresentação de uma nova prova do teorema de
boa ordem obtido por ele, pela primeira vez, em 1904. Além disto, o artigo
possuía uma parte polêmica na qual Zermelo defendia a utilização do axio-
ma da escolha na demonstração de seu teorema contra as críticas de Borel,
Peano, Poincaré, Kõnig, Jourdain, entre outros.
As lnvestigations foram publicadas no mesmo ano e tinham um objetivo
distinto, se bem que o dominio de problemas era o mesmo, a saber, a teoria
de conjuntos. Neste trabalho, é apresentada, pela primeira vez., de uma for-

1
Doravante, o tenno lnvestigations será utilizado para designar este trabalho de
Zennelo.
Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de
Filosofia Analítica. Florianópolis: NEL, pp. 21-32.
22 Arno Aurélio Viero

ma axiomática, a teoria dos conjuntos infmitos, desenvolvida, anteriormente,


por Dedekind e Cantor. Este trabalho de Zermelo está dividido em três par-
tes. A primeira delas examina, de uma forma bastante sucinta, alguns as-
pectos gerais de sua proposta. A segunda, intitulada "Fundamental Defmiti-
ons and Axioms", é a mais conhecida. Nela são apresentados os axiomas que
se tornariam o núcleo da teoria axiomática de conjuntos: o axioma da exten-
sionalidade; o axioma dos conjuntos elementares; o axioma da separação; o
axioma do conjunto potência; o axioma da união; o axioma da escolha e o
axioma do infinito. Na terceira e última parte, intitulada "Theory of Equi-
valence", Zermelo trata da noção de equivalência, absolutamente central
para a teoria cantoriana. Ali ficou estabelecida uma série de resultados da
teoria de conjuntos, tendo como base as definições e os axiomas apresenta-
dos na segunda parte.
A teoria apresentada nas Invesligations é distinta de ZFC, que é a forma
como a teoria de conjuntos é estudada atualmente, em vários aspectos. ZFC é
uma teoria formalizada; a sua lógica subjacente é a lógica de primeira or-
dem; e ela possui dois axiomas que não se encontravam presentes na for-
mulação original de Zermelo: o axioma de regularidade e o axioma de subs-
tituição.
Das três partes das Jnvestigations, aquela que possui maior relevância
para o nosso propósito é a primeira. Ali Zermelo adota três pressupostos que
são vitais para que se possa avaliar corretamente os vários aspectos de sua
proposta de axiomatização da teoria de conjuntos: I) a teoria de conjuntos
seria a disciplina matemática básica, responsável pelo desenvolvimento dos
"fundamentos lógicos de toda a aritmética e da análise" (Zermelo, 1908a, p.
200); 2) o advento dos paradoxos, pdncipalmente do paradoxo de Russell,
havia colocado em xeque aspectos muito importantes da teoria cantoriana de
conjuntos. Em particular, a definição de conjunto proposta por Cantor2 deve-
ria ser revista; e, 3) a estratégia a ser adotada, na axiomatização da teoria de
conjuntos, é de caráter essencialmente pragmático, ou seja, a de restringir os
princípios desta disciplina de forma a excluir as contradições e, ao mesmo
tempo, preservar tudo aquilo que fosse importante.
No que diz respeito, especificamente, às concepções de Zermelo a res-

2
A definição é aquela apresentada por Cantor no parágrafo inicial de seu trabalho
intitulado Contribuitions to the Founding of the Theory of Transfinite Numbers:
"Por agregado (Menge), entenderemos qualquer coleção M, considerada como totali-
dade, de objetos definidos c separados m, da nossa intuição ou pensamento. Estes
objetos são chamados de 'elementos' do conjunto. De forma simbólica: M = {m}"
(Cantor, 1955, p. 85).
Os Paradoxos e a Teoria de Conjuntos 23

peito da natureza dos diversos elementos constitutivos do método axiomáti-


co, as Investigations não trazem nenhum pronunciamento explícito de seu
autor. Ao contrário, em uma passagem logo no início do texto, Zermelo
deixa claro que ele não pretende discutir, em momento algum, os aspectos
conceituais relativos ao método axiomãtico tais como a origem e a validade
dos axiomas utilizados em seu trabalho. Desta forma, o problema de se ten-
tar entender a natureza e a finalidade da utilização do método axiomático
nas Jnvestigations não é facilitado, em momento algum, por qualquer tipo de
discussão por parte de seu autor. Assim, a tentativa de se entender tais pro-
blemas deverá ser, até certo ponto, um processo de reconstrução, através de
evidências indiretas, das concepções de Zermelo.
O caminho natural, e que tem sido utilizado freqüentemente na literatura
especializada3 no que diz respeito a tentativa de se entender a utilização do
método axiomático nas lnvestigations, é a sua comparação com o livro de D.
Hilbert, publicado em 1899, The Foundations ofGeometry. Contudo, tal tipo
de abordagem para esta questão, geralmente, é feita de uma form a não críti-
ca, não se extraindo todas as conseqilências que são possíveis de serem esta-
belecidas através deste tipo de comparação. O resultado da adoção de tal
postura é um entendimento extremamente superficial dos vários aspectos do
trabalho de Zermelo, no qual o conceito de método axiomático desempenha
um papel central. A única salda para este problema é adotar o trabalho de
Hilbert como ponto de partida, levando em consideração, contudo, o signifi-
cado e os desdobramentos que a adoção da concepção de método axiomático,
presente em The Foundations ofGeometry, acarretam.
No final do século XIX, graças a certos desenvolvimentos em várias
disciplinas tais como a álgebra, a geometria projetiva, a análise e, princi-
palmente, ao advento das geometrias não-euclidianas, criou-se um consenso
na comunidade matemática, de que a concepção clássica do método axio-
mático deveria ser radicalmente alterada. Tal concepção, no entender de
vários matemáticos importantes da época\ não era capaz de satisfazer os

3
Ver o livro de G. Moore, por exemplo: ''Na Alemanha, o movimento axiomático
culminou com a obra de Hilbert, intitulada Grundlagen der Geometrie, ( ...) Cada um
desses aspectos dos Grundlagen de Hilbert - o uso de um domínio de objetos com
uma relação primitiva, a apresentação explícita de todas as suposições como axio-
mas, e o interesse pela sua independência e consistência - iriam influenciar a axio-
matização da teoria de conjuntos realizada por Zermelo" (p. 150).
4
Neste sentido, a escola italiana integrada por matemáticos tais como Peano, Vero-
nese, Pieri, Burali-Forti, Betazzi, Fano, entre outros, desempenhou um papel decisi-
vo.
24 Arno Aurélio Viero

requisitos de rigor que as investigações matemáticas da época exigiam.


A concepção clássica da axiomática é aquela apresentada em duas obras
centrais da antigUidade, a saber, Os Elementos de Euclides e os Segundos
Analíticos de Aristóteles. Nestas obras, é possível encontrar uma concepção
bem definida do que seria o método axiomático: a estruturação de um con-
junto de proposições, relativas a um domínio específico, através das relações
de demonstrabilidade e defmibilidade. Na base do sistema estariam enuncia-
dos que não poderiam ser demonstrados (os postulados e os axiomas) e ter-
mos que não poderiam ser definidos (os termos primitivos). O fato de que,
dentro de um dado sistema, nem tudo pudesse ser demonstrado e definido
estava longe de ser um fato desabonador, ao contrário, era visto como uma
decorrência natural de certas limitações intrínsecas das relações constitutivas
do sistema.
Tal forma de se entender a estrutura de um sistema axiomático mudou,
drasticamente, no final do século XIX. A descoberta de certos problemas em
algumas demonstrações de Euclides (a íntrodução de certas pressuposições
durante a execução de várias de suas provas5) e a insatisfação com algumas
definições dadas por ele em Os Elementos (p. ex., ponto é aquilo que não
possui partes), levaram a uma nova forma de se entender a estrutura de um
sistema axiomático. A esta nova conce pção costuma-se denomínar de axio-
mática formal. 6
A solução que começa a se delinear para estes problemas, pouco a pouco,
através dos trabalhos de vários matemáticos da época, é, aparentemente,
simples: colapsar as bases das relações de demonstrabilidade e definibilida-
de, concebendo os axiomas como tendo um caráter fundamentalmente defi-
nitório. Com isto, os problemas detectados na axiomatização euclidiana
pareciam receber soluções simples e eficientes. O controle das suposições
iniciais do sistema ficava garantido (uma vez que a adoção da concepção dos
axiomas como definições permitia a certeza de que toda a informação rele-
vante para os procedimentos demons trativos estaria presente na base do
sistema) sendo que, desta forma, o recurso à noção de evidência parecia ser
completamente desnecessário. Este fato foi visto com muita simpatia pelos
matemáticos da época que não podiam deixar de considerar o recurso a este

5
Uma delas é a prova I 2 1 de Os Elementos que somente é possível de ser rigorosa-
mente demonstrada através do auxílio dos axiomas de ordem, que em momento
algum são assumidos de forma explícita por Euclides.
6
Este termo foi tomado da obra Los Fundamentos de la Matemática de Hilbert e
Bemays. Ele também é utilizado por Kleene, no capítulo ill, de seu livro /ntro-
ducción a la Metamatemática.
Os Paradoxos e a Teoria de Conjuntos 25

tipo de expediente como sendo de natureza extremamente duvidosa, princi-


palmente depois do advento das geometrias não-euclidianas.
Outra vantagem, na adoção deste tipo de expediente, era tomar desneces-
sário o tipo de "definição" utilizada por Euclides na base de seu sistema.
Definições como a de ponto, apresentadas em Os Elementos, pareciam ser
um despropósito completo. Isto não seria mais necessário, uma vez que
ponto, por exemplo, passaria a ser qualquer coisa que satisfizesse certas
exigências básicas estipuladas pelos axiomas.
O que é importante perceber é que, no momento em se adotava este tipo
de manobra estava se alterando, radicalmente, a forma de se entender a
natureza e a função dos diversos elementos constitutivos de uma teoria axi-
omática. Assim , por exemplo, quando se considera os axiomas como sendo
definições, a rigor, não faz o menor sentido colocar a questão acerca da
verdade de tais "enunciados", uma vez que é um fato amplamente conhecido
que definições não são nem verdadeiras, nem falsas. Com a adoção da nova
concepção do método axiomático, em um certo sentido, a noção de verdade
desaparece. Este é um fato extremamente inquietante a respeito desta nova
concepção e que parece ter passado completamente desapercebido pelos seus
autores. 7
É dentro de todo este contexto de transformação do método axiomático
que o trabalho de Hilbert deve ser localizado e entendido. Sem este fato
presente, é impossível avaliar o real significado desempenhado por seu livro
nos vários desdobramentos que a adoção da postura recém descrita acabaria
gerando.
Um rápido exame em The Foundations of Geometry é suficiente para
mostrar que Hilbert adotava a nova concepção do método axiomático. Os
axiomas são concebidos como definições dos termos e das relações primiti-
vas do sistema. É claro que, a partir do que foi anteriormente exposto, isto
não chegava a se constituir em uma novidade. Vários matemáticos da época,
tais como Pasch e Peano, haviam se utilizado deste mesmo expediente na
axiomatização da geometria euclidiana. O que realmente era inovador, no
livro de Hilbert, era a formulação e a solução satisfatória de um problema
extremamente importante para a nova concepção do método axiomático, a
saber, o da consistência de seus axiomas. Na medida em que as definições
que estariam na base do sistema seriam estipulações arbitrárias, o que ga-

7
Isto é facilmente compreensível, na medida em que os matemáticos que na época
introduziram tais inovações estavam preocupados, fundamentalmente, com o desen-
volvimento técnico de suas disciplinas e tinham pouco apreço pelos aspectos con-
ceituais desta questão.
26 Amo Aurélio Viero

rantiria que elas seriam compatíveis entre si? Em outras palavras, o que
garantiria que os conceitos gerados a partir dos axiomas não seriam contra-
ditórios? O que Hilbert percebeu foi que as vantagens propiciadas por esta
nova concepção de método axiomático exigiam, em contrapartida, uma de-
monstração da consistência dos axiomas.
Neste momento, é importante perceber como a postura metateórica, tão
cara ao moderno estudo das teorias formalizadas, surge naturalmente a par-
tir desta nova concepção do método axiomático. Uma vez que se concebe os
axiomas como sendo definições, a questão da consistência coloca-se imedi-
atamente. Ora, a própria natureza deste tipo de questão nos remete para um
nível de investigação no qual a teoria se apresenta como objeto de estudo.
Com isto, um importante passo foi dado no sentido de se admitir vários
níveis de linguagem, bem como no de reduzir os axiomas e teoremas a ob-
jetos ''tratáveis" a partir desta perspectiva. A postura metateórica contempo-
rânea tem a sua origem no advento da axiomática formal e, somente dentro
deste contexto, ela pode ser adequadamente entendida .
Tendo presente o que acaba de ser considerado, voltemos às lnvestiga-
tions. Toda a estrutura do trabalho de Zermelo indica que a concepção de
método axiomático adotada por ele não é a concepção clássica. Em particu-
lar, logo no início de sua exposição, Zermelo parte da existência de um do-
mínio B, constituído por certos elementos, entre eles, conjuntos. Para alguns
destes elementos, a relação de pertinência 'E' se verificaria. Os axiomas ou
postulados seriam restrições a esta relação que é considerada como um pri-
mitivo do sistema. Em momento algum Zermelo tenta fornecer uma defini-
ção de conjunto, nem uma definição da relação de pertinência, o que indica,
evidentemente, uma opção pela nova concepção de método axiomático.
A partir desta perspectiva, a saber, que a estrutura axiomática subjacente
às lnvestigations é a mesma adotada por Hilbert em seu livro que trata da
geometria euclidiana, é possível entender, entre outras coisas, quais os reais
motivos que teriam levado Zermelo a axiomatizar a teoria de conjuntos. A
concepção mais difundida, até alguns anos atrás, era a de que o esforço no
sentido de evitar o surgimento de paradoxos, dentro da teoria de conjuntos,
teria sido o motivo principal do surgimento...--· das Investigalions. No entanto,
G. Moore, em seu livro Zennelo 's Axiom of Choice. lts Origins, Develo-
pment, and lnjluence, não somente discordou de tal concepção como propôs
uma alternativa, a saber, a axiomatização de Zermelo faria parte de uma
estratégia que tinha por fmalidade assegurar a legitimidade de sua demons-
tração do teorema de boa ordem, em particular garantir a validade do axio-
ma da escolha. Este é um assunto que merece algumas considerações envol-
vendo os paradoxos e a nova concepção do método axiomático.
Os Paradoxos e a Teoria de Conjuntos 27

Afirmar que os paradoxos nunca preocuparam Zermelo parece ser, no


mínimo, uma afirmação temerária por parte de Moore (p. 158). Nas Investi-
gations, existem vários lugares em que Zermelo procura mostrar, de uma
forma bastante cuidadosa, que os vários mecanismos adotados por ele na
axiomatização da teoria de conjuntos não permitira o surgimento dos para-
doxos mais conhecidos na época. Em um primeiro momento, ele trata de
demonstrar que o domínio B, de sua teoria, não seria um conjunto (1908a,
p. 203). Com isto, a possibilidade do surgimento do paradoxo de Russell
estaria eliminada de uma vez por todas. Além disso, Zermelo indica como os
paradoxos de todos os ordinais (atualmente conhecido pela denominação de
paradoxo de Burali-Forti) e o paradoxo de Richard, entre outros, são blo-
queados pela forma como os conjuntos são definidos através do axioma de
separação. Assim, nas Investigations, é possível detectar uma preocupação
nítida, por parte de Zermelo, no sentido de mostrar de que forma os parado-
xos mais conhecidos poderiam ser evitados, assumindo alguns dos expedi-
entes sugeridos por ele.
É claro que neste momento surgem, naturalmente, duas questões: 1. de
que natureza, exatamente, era o tipo de preocupação que Zermelo nutria em
relação aos paradoxos; e 2. dado este tipo de preocupação, é justificado to-
má-la como sendo a razão principal que teria levado Zermelo a axiomatizar
a teoria de conjuntos?
Do ponto de vista conceitual, é possível perceber que, no entender de
Zermelo, o que a teoria de Cantor necessitava era de certos ajustes em rela-
ção à definição básica de conjunto (apresentada na nota 2) e que uma das
finalidades de sua teoria seria a de estabelecer "( ...) um substituto para a
noção geral de conjunto citada na introdução( ...)" (Zermelo, l908a, p. 202).
É claro que este tipo de postura, por parte de Zermelo, acabará conduzindo a
concepções um tanto quanto equivocadas a respeito, tanto do trabalho de
Cantor, como a respeito da finalidade de se axiomatizar uma teoria mate-
mática.
No entanto, do ponto de vista conceitual, Zermelo nunca acreditou que
os paradoxos representassem uma ameaç.a séria à teoria de conjuntos. Ao
que tudo indica, Zermelo conhecia o paradoxo do conjunto de todos os con-
juntos que não contém a si mesmo como elemento, muito antes de sua des-
coberta por Russell. No entanto, sua reação a este respeito sempre foi de
muita tranqüilidade, considerando tal resultado, inclusive, como sendo ma-
tematicamente positivo. O que tal paradoxo mostrava era que nenhum con-
junto poderia conter todos os seus subconjuntos como elementos (aliás, o que
lhe permitiu demonstrar nas Investigations que o domínio B não seria um
conjunto).
28 Arno Aurélio Viero

Em relação ao paradoxo de Burali-Forti, a sua postura é ainda mais radi-


cal. Segundo Zermelo, o fato de W (o conjunto de todos os ordinais) não
existir era algo tão evidente que ele sequer havia se dado ao trabalho de
apresentar urna prova deste fato no seu trabalho de 1904. Tal prova é esbo-
çada no artigo de 1908 que tem como idéia central o fato de que, dado qual-
quer conjunto bem ordenado M, sempre seria possível adicionar um ele-
mento b a ele e, com isto, gerar um outro conjunto bem ordenado, no qual o
primeiro estivesse contido. Em outras palavras, nunca poderia existir o con-
junto de todos os ordinais, uma vez que, dado um ordinal qualquer, sempre
se poderia gerar um maior. 8
Desta forma, existem indícios bastante claros de que a preocupação de
Zermelo com os paradoxos não era de natureza conceitual. O problema era
de outro tipo. No caso do paradoxo de Burali-Forti, o que preocupava Zer-
melo é que um grupo bastante significativo de matemáticos, que havia tra-
balhado ativamente no desenvolvimento da teoria de conjuntos (F. Bernstein
e Jourdain, entre outros), devido a um equívoco grosseiro, criavam proble-
mas para uma teoria que já possuía problemas suficientes com a comunidade
matemática da época.9
Além disso, os paradoxos haviam adquirido uma importância bastante
grande nas mãos dos ferrenhos adversários da teoria de conjuntos. Talvez o
mais ilustre, nesta época, fosse o matemático francês H. Poincaré. Em 1906,
ele declarava: ''Não existe infinito atual; os cantorianos esqueceram disto e
acabaram gerando contradições" (p. 316). É bem possível que, devido ao
grande prestígio que Poincaré tinha junto à comunidade matemática, as suas
opiniões acabaram influenciando boa parte dos matemáticos da época, e,
com isto, o problema dos paradoxos foi, pouco a pouco, ganhando importân-
cia na discussão envolvendo a teoria de conjuntos. 10
Desta forma, é possível perceber que as evidências, tanto de caráter his-
tórico, como de caráter conceitual, indicam que a principal preocupação de
Zermelo, nas lnvestigations, não era com os paradoxos, se bem que, naquele

8
Ao que Zennelo acrescenta: " ... Esta prova, que eu somente não incluí em meu
trabalho de 1904 pelo fato de ela ser trivialmente simples, também assegura, como
foi dito anteriormente, a não existência de W, e todas as conseqüências. obtidas a
partir de W, se tornam inócuas" ( 1908, p. 195).
9
Estes problemas não tinham a sua origem em nenhum tipo de paradoxo. Eles dizi-
am respeito à demonstração do teorema de boa ordem, através do recurso ao axioma
da escolha, e o problema da hipótese do contínuo, que permanecia sem solução.
10
Posteriormente, com o avanço crescente do intuicionismo, os paradoxos acabariam
por ocupar um lugar central na investigação dos fundamentos da matemática.
Os Paradoxos e a Teoria de Conjuntos 29

momento, algum tipo de esclarecimento a respeito de tais problemas era


vital para o estabelecimento da legitimidade da teoria junto a uma parte da
comunidade matemática. Contudo, se o problema não era com os paradoxos,
por que o problema da consistência era tão importante para Zermelo? 11
A resposta a esta questão deve ser buscada na concepção de método axi-
omático adotada por Zermelo que, como foi visto anteriormente, ao conceber
os axiomas com sendo definições arbitrárias, colocava o problema da com-
patibilidade destas estipulações, ou seja, da sua consistência, como um pro-
blema central na axiomatização de sua teoria. No entanto, apesar de tal
resposta permitir compreender por que o problema da consistência era im-
portante para Zermelo, sem nenhum apelo ao problema dos paradoxos, ela
não dá uma resposta à questão de por que ele teria axiomatizado a teoria de
conjuntos.
O que é importante perceber, neste momento, é que, dentro do âmbito da
axiomática formal , o problema da axiomatização e da consistência estão
intimamente ligados. O que Zermelo fez foi tirar proveito desta ligação para
tentar obter a legitimação da teoria cantoriana de conjuntos. Ora, dentro da
nova concepção da axiomática, a consistência era, antes de mais nada, um
critério de verdade e de existência. 12 Obter uma prova de consistência de
uma teoria axiomática de conjuntos, significaria, entre outras coisa, legiti-
mar o conceito de infinito atual que, naquela época, era a grande questão
ligada à teoria de Cantor. Uma prova de consistência do sistema das Jnvesti-
gations equivaleria a uma demonstração da existência de conjuntos infinitos,
o que, em um importante sentido, complementaria a tarefa iniciada por
Zermelo com a obtenção do teorema de boa ordem, quatro anos antes, e
poderia, eventualmente, fazer progredir a questão relativa ao problema da
hipótese do continuo. 13
Desta forma, o conceito de axiomática formai se apresenta como sendo a
categoria chave para se entender o real s ignificado das Jnvestigations. Isto
significa, entre outras coisas, entender o trabalho de Zermelo de axiomatiza-
ção da teoria de conjuntos a partir de uma perspectiva completamente dis-
tinta daquela que havia guiado Euclides na elaboração de seu livro Os Ele-

11
Assim, é possível ler no início das lnvestigations: " ... Ainda não consegui obter
uma prova rigorosa da consistência dos meus axiomas, embora, isto seja de uma
importância fundamental ... " (p. 200-1).
12
Esta é urna posição que Hilbert deixa bastante clara em sua correspondência com
Frege a respeito de seu livro The Foundations ofGeometry.
13
O que, em um certo sentido, acabou acontecendo através dos resultados de inde-
pendência de Gõdcl e de Cohcn.
30 Arno Aurélio Viera

mentos.
As conseqüências da adoção deste tipo de postura não são nada desprezí-
veis quando o que está em questão é o entendimento de certos aspectos con-
ceituais do trabalho de Zermelo. O resultado é que, pouco a pouco, vai sur-
gindo, na obra de Zermelo, uma concepção extremamente confusa acerca da
natureza do método axiomático, bem como da finalidade de sua utilização.
Tal confusão colaborou, de forma decisiva, para uma série de equívocos
envolvendo esta noção e que iria se agravar, posteriormente, com o advento
da noção de sistema axiomático formalizado.
Assim, por exemplo, com a sua recusa em discutir a natureza e a origem
dos axiomas da teoria de conjuntos, bem como com sua adoção da concepção
formal 14 do método axiomático, Zermelo contribui para urna dissociação
entre o método axiomático, de um lado, e o conceito de evidência, de outro.
Um dos problemas que surge com este tipo de postura é quando o método
axiomático é utilizado dentro de um contexto de fundamentação, como era o
caso de Zermelo. Neste caso, é impossível não se apelar, em um momento ou
outro, à noção de evidência. O resultado disto é uma postura completamente
incoerente por parte de Zermelo que, ao mesmo tempo em que adotava a
concepção formal do método axiomático (que havia expurgado completa-
mente a noção de evidência da base do sistema), lançava mão da noção de
evidência para justificar o emprego do axioma da escolha na demonstração
do teorema de boa ordem. 15
Além disso, Zermelo vai se enquadrar dentro de um movimento muito
forte, desde o início do século passado, e que iria conceber o método axio-
mático como sendo um instrumento de fundamentação, de justificação de
teorias. O fato de se passarem sete anos entre a axiomatização da teoria de
conjuntos e a primeira descoberta 16 de um resultado envolvendo a axiomati-
zação de Zermelo parece ser bastante s ignificativo a este respeito. Posteri-

14
Quando o termo formal é utilizado deve-se manter em mente o seu significado
sempre como qualificador do novo tipo de concepção do método axiomático. Caso
contrário, dúvidas de natureza extremamente elementares podem acabar surgindo. É
claro que é possível atribuir um determinado significado à palavra formal, de tal
forma que toda teoria matemática (ou mesmo empírica) é, em maior ou menor grau,
formal. Além disso, formal e formalizada são dois qualificativos que, apesar de
manterem uma relação bastante estreita entre si, devem ser, cuidadosamente, distin-
guidos.
15
Ver o artigo de Zermelo {1908, p. 187)
16
Em 1917, Hartog demonstrou que o princípio da tricotomia dos cardinais implica-
va o teorema de boa ordem.
Os Paradoxos e a Teoria de Conjuntos 31

ormente, com o advento do programa formalista de Hilbert, este problema


somente iria se agravar. O resultado disto foi uma dificuldade crescente de
se entender as outras finalidades da axiomatização de uma teoria que não
fosse a da sua legitimação ou justificação.
E, finalmente, ao adotar a nova concepção de método axiomático em seu
trabalho, Zermelo, involuntariamente, contribuiu, de maneira decisiva, para
o surgimento, anos depois, da posição relativista defendida por Skolem du-
rante toda a sua vida. O relativismo de Skolem foi gerado a partir de três
pressupostos específicos: a crença de que uma teoria matemática deve ser
apresentada, necessariamente, de forma axiomática; de que o método axio-
mático deve ser entendido de acordo com os preceitos da axiomática formal
(o que se adequava particularmente bem ao seu estudo de modelos para a
teoria de conjuntos); e, finalmente, a crença de que a lógica, de uma forma
geral, deveria ser identificada com a lógica de primeira ordem.
Esta última observação não deixa de ter relevância, uma vez que "os
skolemitas" 17, para usar um termo de P. Benacerraf, continuam ocupando
um lugar de destaque na discussão de várias questões filosóficas ligadas à
lógica e à matemática. É de se esperar que uma revisão na forma de se en-
tender a noção de sistema axiomático possa permitir o avanço de várias
questões extremamente importantes nesta área. Questões ontológicas e epis-
temológicas ligadas à teoria de conjuntos, à relação da matemática com a
lógica, da lógica com a teoria de conjuntos, bem como do estatuto da lógica
de segunda ordem, são apenas a lgumas das questões cujo avanço dependem,
de uma forma essencial, da melhor compreensão da noção de método axio-
mático, bem como de sua formalização. Entender, adequadamente, as con-
cepções de Zermelo a respeito do método axiomático não deixa de ser um
passo muito importante neste sentido.

Referências bibliográficas

Aristóteles. 1985. The Complete Works of Aristotle. (ed.). J. Barnes, Prin-


ceton: Princeton University Press.
Benacerraf, P., 1996. " What Mathematical Truth Coul Not Be, 1". In Mor-

17
Skolcmita seria todo aquele disposto a sustentar teses do tipo: uma vez que nossas
formalizações da teoria de conjuntos sempre possuem modelos enumeráveis elas não
capturam o conceito de não-enumcrabilidade; uma vez que não possamos capturar tal
conceito, através das axiomatizações de primeira ordem, tal conceito não existe, etc.
(ver Bcnacerraf, p. 30-1 ).
32 Arno Aurélio Viero

ton, A. & Stich, S. (eds), Benacerraf and His Critics. Oxford: Blackwell,
pp. 9- 59.
Cantor, G. 1955. Contribuition to the .Founding of the Theory of Transfinite
Numbers. New York: Dover.
Euclides. 1956. The Elements. New York: Dover.
Frege, G. 1980. Philosophical and Mathematical Correspondence. (ed.) G.
Gabriel, Chicago: The University ofChicago Press.
Hilbert, D. 1971. The Foundations of Geometry. La Salle: The Open Court.
Hilbert, D. e Bernays, P. 1958. Los Fundamentos de la Matematica.
(manuscrito), trad. José Goldstein.
Kleene, S. C. 1974. Jntroducción a la Metamatemática. Madrid: Tecnos.
Moore, G. 1982. Zerme/o's Axiom ofChoice. Its Origins, Deve/opment, and
lnjluence. New York: Springer-Verlag.
Poincaré, H. 1906. " Les Mathématiques et la Logique". Revue de Méta-
physique et de Mora/e, 13: 815- 35.
Zerme1o, E. [1904) 1981. "Proofthat E very Set Can Be Weii-Ordered." In
Heijenoort, J. van., (ed.). From Frege to Gode/. Cambridge: Harvard
University Press, pp. 139-41.
- - . [1908a] 1981. " lnvestigations in the Foundations ofSet Theory 1." In
Heijenoort, J. van., (ed.). From Frege to Godel. Cambridge: Harvard
University Press, pp. 199- 2 15.
- -. [1908] 1981. "A New Proof ofthe Possibility of a Well-Ordering." In
Heijenoort, J. van., (ed.). From Frege to Godel. Cambridge: Harvard
University Press, pp. 183- 98.
GENTZEN Y EL PROBLEMA DE LOS FUNDAMENTOS DE LA
MATEMÁTICA: DE LA FlLOSOFÍA A LA METAMATEMÁTlCA

JORGE ALBERTO MOLINA


Universidade Católica de Pelotas

1. Tránsito de la Fundamentación filosófica de la Matemática a una


Fuodamentación interna de la Matemática

Un filósofo actual. interesado en Filosofia de la Matemática, se encontrará


probablemente con la situación siguiente: es probable que pueda enteder
obras como Los Fundamentos de la Aritmética de Frege, y hasta quizás
buena parte de los Principia Mathematica de Russell-Whitehead, así como
las reflexiones de Wittgenstein sobre la Matemática contenidas en el Trac-
tatus. Estamos suponiendo que nuestro hipotético filósofo tenga algún cono-
cimiento de Lógica Simbólica y hasta podríamos suponer que conociera
bastante de esa disciplina. Por ejemplo, podríamos atribuirle un conocimi-
ento adecuado de lo que se denomina Lógica de primer orden. Pero, si nues-
tro hipotético filósofo intentara leer alguna de las obras que figurao en la
Colección Estudios en Lógica y Fundamentos de la Matemática de Ia Edito-
rial North-Holland, o si intentara abordar alguno de los artículos que han
aparecido en los últimos treinta anos en el Journal of Symbolic Logic, o en
general, si quisiera leer alguno de los múltiples trabajos sobre Fundamentos
de la Matemática editados después de la 2" Guerra Mundial, en muchos
casos, se encontrará con que no consigue entender lo que allí se expone. De
hecho muchos de esos líbros y artículos no pareceo ser líbros de Filosofia,
aún considerando el término ''Filosofia"en sentido amplio, sino simplemente
libros de Matemática. Ya para entender esos trabajos no es suficiente cono-
cer Lógica de primer orden sino también tener conocimientos de ramas de la
Matemática como la Topologia. Intente el Jector de estas Hneas leer, si le es
desconocido, el libro La Matemática de la Matemática de Rasiowa-Sikorski.
Parece ser que la disciplina que llamamos Fundamentos de la Matemáti-
ca ha dejado de pertenecer a la Filosofia para convertirse en una rama de la
Matemática. En Frege encontramos referendas a toda la tradición filosófica.
Frege discute y critica los términos de la..distinción kantiana entre enuncia-

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 33-47.
34 Jorge Alberto Molina

dos analíticos y enunciados sintéticos, afirma que los enunciados de la Arit-


mética son analíticos en contra de Kant, pero coincide con Kant en que los
enunciados de la Geometria euclideana están basados en la intuición del
espacio y por consiguiente son sintéticos. También discute la tentativa
leibniziana de derivar todos los enunciados de la aritmética del principio de
identidad. 1 En Russell, en su obra Los Princípios de la Matemática, encon-
tramos referencias a las concepciones de Kant, de Leibniz y de Frege.2 Este
tipo de referencias filosóficas casi no se encuentran en los trabajos actuales
sobre e! área conocida como Fundamentos de la Matemática. En lugar de
referencias filosóficas encontramos referencias a otras disciplinas matemáti-
cas.
l,Cómo se dió este tránsito de una fundamentación filosófica de la Mate-
mática a una fundamentación matemática de la Matemática misma, esto es,
a una fundamentación interna de la Matemática, o a una autofundamenta-
ción, si se prefiere llamarla así. l,Cómo se llegó a la consideración de los
Fundamentos de la Matemática, como una rama de la Matemática más, a!
lado por ejemplo del Algebra o la Topologia? Este trânsito está ligado fun-
damentalmente a dos nombres: Tarski y Gentzen. Ellos son los que dieron
impulso decisivo a dos de las teorias más importantes de la Lógica Matemá-
tica actual: La Teoria de Modelos y la Teoria de la Demostración. No son
strictu sensu los creadores de estas dos disciplinas mas tuvieron un papel
destacadísimo en su desarrollo. Al caracterizar de forma precisa el concepto
de verdad en los sistemas formates, esto es, el concepto de verdad de una
fórmula cerrada en un modelo 91, Tarski dió el impulso decisivo para la
Teoría de Modelos. Y cuál fue el aporte de Gentzen? Éste está ligado a la
demostración de la consistencia de la Teoria formal de números o aritmética
formal.

2. El programa de Hilbert

Gentzen no fue el creador de la Teoria de la demostración. En verdad fue


Hilbert, pero lo que Hilbert presentó de forma programática, fue Gentzen
quien lo realizó. El programa de Hilbert consistia en justificar las diferentes
teorias matemáticas por medio de una prueba de que, basándose en los
axiomas de esas teorias, no se puede derivar una contradicción. Ese tipo de
prueba se llama prueba de consistencia. El origen de las pruebas de consis-

1
Ver Frege, 1950. Cap I, parágrafo 5.
2
Sobre Leibniz ver el capítulo I de Los Princípios de la Matemática, sobre Kant el
capítulo LD, y sobre Frege el Apéndicc A de la misma obra.
Genlzen y e/ Problema de los Fundamentos de la Matemática 35

tencia está en Ia aparición de las llamadas Geometrias no euclideanas. Como


estas Geometrias parecían no tener una interpretación fisica como si Ia tiene
la Geometria euclideana, surgió Ia sospecha sobre si a partir de los axiomas
de estas nuevas Geometrías no podria algún día demostrarse una contradic-
ción, esto es un enunciado de la forma A " .A. 3 Era preciso pues encontrar
una prueba de consistencia de estas Geometrias alternativas.
Para realizar la prueba de consistencia de una teoría matemática era r
preciso, pensaba Hilbert, encontrar en primer lugar un sistema formal o
formalismo r que representara a r.
Un formalismo está compuesto por fór-
mulas y regias de inferencia que permiten pasar de una fórmula a otra.
Dentro de esas fórmulas hay una clase de fórmulas escogidas que se llaman
axiomas. Por este uso de sistemas formates, la fundamentación propuesta
por la escuela hilbertiana de Matemática se conoce como fundamentación
formalista, y la escuela hilbertiana es llamada escuela formalista. Decimos
que en r demostramos (derivamos es el término técnico) una fórmula rp
cuando a partir de los axiomas de r usando las regias de inferencia de r
llegamos a rp. Qué quiere decir que derivamos rp en el formalismo r? Signi-
fica que podemos encontrar una secuencia de fórmulas A 1,A 2, ••• ,An tal que
A11 = rp, y cada A;, i< n, o es un axioma de r, o se infiere de las anteriores
usando alguna de las regias de inferencia propias de! formalismo.
r en principio fue construído para representar a T, pero las fórmulas de r
podrían ser interpretadas también de forma de simbolizar otra teoria mate-
máticaS distinta de r. En sí mismas las fórmulas de r no tienen significado,
son meros signos. Lo que es importante destacar es que cualquier demostra-
ción que pueda realizarse en r debe poder ser representada por una deriva-
ción en el sistema formal r. Luego para demostrar la consistencia de T es
suficiente probar que en r no puede derivarse ninguna fórmula dei tipo A "
.A.
Hay dos formas de demostrar la consistencia de un sistema formal r. La
primera consiste en encontrar un sistema formal ó. cuya consistencia ya haya
sido probada, o cuya consistencia se acepte por el hecho de que el formalis-
mo ó. represente una teoria matemática que tenga una interpretación física, y
una función de traducción S entre las fórmulas de r y las fórmulas de ó., con
la propiedad de que si A " ...,A es derivabJe en r entonces S(A) " -,S(A) es
derivable en ó.. Tal prueba de consistencia se llama prueba de consistencia
relativa. Fue una prueba de ese tipo la usada para probar la consistencia de
las geometrias no euclideanas, relativa a la geometria euclideana. La otra

3
Sobre las interpretaciones filosóficas de las geometrias no euclideanas ver Torretti,
1984.
36 Jorge Alberto Mofina

forma de probar la consistencia de un sistema formal r consiste en conside-


rar r en sí mismo, independientemente de otros formalismos, examinar la
estructura de las derivaciones en r, y usando herramientas tan simples y
formas de razonamiento tan evidentes que no puedan ponerse en duda,
mostrar que en r no puede derivarse ninguna contradicción. Esos métodos
son llarnados por Hilbert métodos fin itarios. Es razonable aceptar que para
que la prueba de consistencia sea realmente significativa del punto de vista
fundacional, ella deba ser efectuada usando modos inferenciales más simples
que aquellos que el sistema formal r intenta expresar.
Pero cuáles eran las teorias cuya consistencia se deseaba demostrar?
Principalmente dos: el Análisis y la Teoria de Conjuntos. En el Análisis nos
ocupamos con conjuntos cuyos elementos son conjuntos infinitos, porque
cada número real puede representarse como un conjunto infinito de racio-
nales. En la Teoría de Conjuntos nos ocupamos de conjuntos de conjuntos de
números reates, esto es, conjuntos de conjuntos cuyos elementos son con-
juntos infinitos. En general en la Teoria de Conjuntos podemos iterar tanto
como deseemos la noción de conjunto y tener así conjuntos de conjuntos de
conjuntos de conjuntos de... ad libitum. Sin embargo esta iteración irres-
tricta origioaba paradojas que ya eran conocidas por Hilbert, lo que colocaba
en jaque toda la teoria. En cuanto ai Análisis resultaba más confiable que la
Teoria de Conjuntos, no porque sus fundamentos fueran más confiables que
los fundamentos de la Teoria de Conjuntos, sino por el hecho de tener apli-
cación en la Física. De cualquier modo faltaba tener la certeza de que algún
dia no surgiria dentro del Análisis una contradicción. Sobre todo ya era
discutido en la época de Hilbert el problema de las defmiciones impredicati-
vas, un tipo de definciones en cierta forma circulares que son de uso ineludi-
vel en el desarrollo del Análisis. Eran ese tipo de definiciones las que según
Russell (y Poincaré) originaban las Antinomias de la Teoria de Conjuntos
asi corno tarnbién las paradojas semânt icas, como la paradoja del mentiroso. 4
Era necesaria pues una justificación de ambas teorias, del Análisis y de la
Teoria de Conjuntos.
Hilbert afmnaba que tanto el Análisis como la Teoria de Conjuntos per-
tenecen a la parte ideal de la Matemática, esto es, a aquella parte de la Ma-
temática que contiene elementos ideales. El término "elemento ideal" tiene
su origen en las investigaciones de los algebristas sobre cuerpos numéricos.
Al considerar un polinomio P(x) con coeficientes sobre un cuerpo a lgebraico
F, puede suceder que las raíces de este polioornio no se encuentren en F,

4
El lcctor interesado en la cuestión de las definiciones impredicativas puede ver
Poincaré.l946, Russell, 1908 y Molina, 1986.
Gentzen y e/ Problema de los Fundamentos de la Matemática 37

esto es que P(x), en la terminologia de los algebristas, no sea factorizable


sobre F. Si .; es una raíz que no pertenece a F, esto es, si P(Ç) = O, podemos
formar el cuerpo F(Ç), el menor cuerpo algebraico que contiene a F y a .;. Eo
ese caso decimos que .; es un elemento ideal. As i, por cjemplo, x2 - 2 = O no
tiene raíces en Q el cuerpo de los racionales. Formamos Q(..f2) el cuerpo
cuyos elementos tienen la forma a + b..f2, donde a y b pertenecen a Q. ..f2 es
un elemento ideal, agregado con la intención de hacer completamente facto-
rizable e! polinomio x 2 - 2 =O. La geometria proyectiva nos da otro ejemplo
de elemento ideal: el punto impropio y la recta impropia. Los geómetras
querían mantener la vigencia dcl llamado principio de dualidad. Según ese
principio si A es un enunciado verdadero que contiene los términos ''punto"
y "recta", e! enunciado A* que resulta de sustituir " punto" por "recta" y
"recta" por "punto" será también verdadero. Así, según este principio el
enunciado verdadero "dos puntos determinao una única recta" debería
transformarse en el enunciado "dos rectas se cortan en un único punto". Sin
embargo este último enunciado no es siempre verdadero, ya que sabemos
que las rectas paralelas no se cortan en ningún punto. Para salvar la vigencia
de este principio de dualidad, se determina que las rectas paralelas también
se cortan, en un único punto, el llamado punto impropio o punto ai infinito.
La recta formado por los puntos impropios se Jlama recta impropia y tambi-
én es un elemento ideal.
Los elementos ideales, y las Teorias que los contienen son contrapuestas
por Hilbert a las partes reales de la Matemáticas. Estas son dos: la aritmética
elemental y la Geometria euclideana. Las partes reales son para Hilbert las
partes confiables de la Matemática, aquellas que no precisao de una justifi-
cación por medio de una prueba de consistencia. Por el contrario son las
Teorias ideales como la Teoria de Conjuntos y el Análisis las que precisao
de una prueba de consistencia. Las Teorias ideales no son consideradas so-
lamente para redondear las partes reales de la Matemática, sino también
para facilitar la demostración de enunciados pertenecientes a la parte real de
la Matemática. Puede suceder que una proposición F referente a la parte real
de la Matemática no pueda ser demostrada por medio de un razonamiento
que contenga solamente enunciados de la parte real, y que en su demostra-
ción sea necesario considerar enunciados pertenecientes a la parte ideal de Ia
Matemática. Ilustraré esta situación mediante el ejemplo siguiente, que creo,
ejemplifica el pensarniento de Hilbert: un problema tradicional de la geome-
tria euclideana es el de la trisección del ángulo. Se trata de ver si en todos
los casos es posible dividir un ángulo en tres partes iguales usando regia y
compás. El enunciado "el ángulo rt/3 no puede ser dividido en tres partes
iguales usando regia y compás" pertenceria, según Hilbert, a la parte real de
38 Jorge Alberto Mofina

la Matemática. Para demostrarlo se necesita de la Teoria de Galois, teoría


algebraica de gran generalidad y que, por su naturaleza, puede ser conside-
rada como perteneciente a la parte ideal de la Matemática. 5 Es así que no
podemos prescindir de la parte ideal de la Matemática.
Las regias de inferencia usadas en la parte real de la Matemática, son,
según Hilbert, muy simples. Se reducen ai principio de inducción y a las
regias de inferencia lógicas usadas en Ia parte constructiva de la Matemáti-
ca. El conjunto de tales regias lógicas, da origen a una Lógica más débil que
la Lógica clásica, ya que no contiene la regia de Reductio ad absurdum, esto
es Ia regia expresada en e! siguiente esquema inferencial

(I)
ABS

regia que permite inferir A derivando una contradicción a partir de suponer


la negación de A. También en esta lógica más débil no está contenida la
regia

(2)
3x B(x)

que permite afirmar la existencia de un elemento que satisface la propiedad


B a partir de haber probado que no se da el caso que todo elemento no satis-
faga la propiedad B.

3. Cómo entendía Gentzen el programa de Hilbert?

Para Gentzen la controversia sobre los fundamentos de la Matemática en-


volvía dos diferentes concepciones sobre el infinito. Gentzen distinguía entre
la Matemática actualista y la Matemática constructiva. 6 Estas dos divisiones
coinciden con lo que Hilbert denominaba parte ideal de la Matemática y

s Ver Stewart, 1973.


6
Ver el artículo de Gentzen "Dic gegenwãrtige Lage in der mathematischen Grun-
dlagenforschung". (Gentz.en, I 969, pp. 235-51 ).
Gentzen y el Problema de los Fundamentos de la Matemática 39

parte real de la Matemática respectivamente. En la Matemática actualista


consideramos el infinito como una totalidad dada, en la Matemática cons-
tructiva lo consideramos solamente en sentido potencial. La distinción entre
infmito actual e infinito potencial ya era tradicional entre los filósofos. Pue-
de ser encontrada, por ejemplo, en Descartes y en Spinoza7, cuando ellos
contraponen la intinitud de Dios a la infinitud de la serie de los números
naturales. El infinito potencial es algo inacabado, algo a lo que se pueden
agregar indefinidamente nuevos elementos. Por el contrario el infinito actual
es algo acabado. Su infinitud, como la de Dios, no puede ser acrescentada
por nada más.
Según Gentzen estas diferentes concepciones sobre el infinito están a la
base de la elección de determinadas formas de inferencia y del rechazo de
otras. Así, por ejemplo, quien considere conjuntos actualmente infinitos, esto
es, quien considere que pueden existir ya dados conjuntos infinitos, y razone
sobre ellos, aceptará la evidencia de determinados esquemas inferenciales
que son válidos para conjuntos finitos, dado que los conjuntos finitos son
completamente dados. Así no dudará en aceptar el esquema inferencial

(2)
3x B(x)

Habiendo demostrado que la suposición de que todos los elementos de un


domínio infinito dado no tengan la propiedad P nos lleva a una contradic-
ción, inferimos que en "algún lugar" de esa totalidad dada hay un elemento
que tenga la propiedad P.
Este modo de razonar que es válido cuando razonamos sobre conjuntos
finitos parece aceptable ai razonar ahora sobre conjuntos infinitos, siempre
que éstos se consideren como totalidades dadas. Pero si negamos la existen-
cia de conjuntos actualmente infinitos, y pensamos lo infinito como algo
potencial, y no dado, entonces el esquema inferencial (2) expuesto arriba
deja de ser legítimo.
Si fuéramos matemáticos puros, esto es, personas interesadas solamente
en la Matemática, deberíamos quedamos con la Matemática constructiva y
rechazar la Matemática actualista, afirma Wey1. 8 Pues la Matemática cons-
tructiva es la parte confiable de la Matemática, o usando la terminologia de

7
Princípios de la Filosofia, art.XXVU de Descartes y Etica 1, Escolio de la Proposi-
ción XV de Spinoza.
8
Weyl, H., 1931. Die Stufen der Unendlichen, p. 17.
40 Jorge Alberto Molina

Hilbert, es la parte real de la Matemática. Pero debido a las múltiples aplica-


ciones de la Matemática actualista a la Física, y a la necesidad de usar enun-
ciados de la Matemática actualista en la demostración de enunciados perte-
necientes a la parte real de la Matemática, debemos intentar conservar la
Matemática actualista. Sin embargo, para ello precisamos una justificación
de la Matemática actualista. Esa justificación, piensa Gentzen dentro de los
moldes dei programa de Hilbert, sólo puede obtenerse por medio de una
demostración de la consistencia de la Matemática actualista. Pero esa de-
mostración debe ser realizada usando los modos de inferencia aceptables
dentro de la Matemática constructiva.

4. La prueba de Gentzen

El programa de Hilbert exigia que fuese demostrada la consistencia dei


Análisis y de la Teoría de Conjuntos. Pero para realizar ese programa era
preciso demostrar en primer lugar la consistencia de la Teoria Formal de
Números también conocida como Aritmética formal clásica o Aritmética
formal de Peano PA. En qué consiste esta Teoría? La Teoria Formal de
Números es un formalismo que intenta representar la Aritmética elemental.
Pero además de representar los modos de razonamiento propios de la Arit-
mética elemental, ella contiene todos los esquemas inferenciales aceptables
dentro de Lógica clásica de primer orden, entre e!los los esquemas ( 1) y (2).
En suma, PA se obtiene agregando a la Lógica clásica de primer orden:

a) Los axiomas de Ia igualdad:


a=a
a = b~b = a
a = b, b = c ~ a = c

b) Los axiomas específicos de Ia aritmética de Peano:


a' = b' ~a = b
-.a' = O
a= b~ a'= b'

c) El esquema de inducción completa,

d) Las definciones recursivas elementales de suma y producto.

Dentro de Ia prueba de consistenca de PA que deberá ser realizada den-


tro de la Matemática constructiva no podrán ser usados ni (1) ni (2).
Gentzen y e/ Problema de los Fundamentos de la Matemática 41

Gõdel demostró dos resultados que, según la opinión de Paul Bernays9,


limitao por lo alto y por lo bajo el grado de complejidad de los argumentos
que pueden aparecer en una prueba de consistencia de la Teoria Formal de
Números. Esta prueba debe ser efectuada, como ya dijimos antes, dentro del
âmbito de lo que Gentzen denominaba Matemática constructiva. Por lo bajo,
los medios através de los cuales podemos efectuar una prueba de consisten-
cia de la Teoría Formal de Números deben ser más complejos que aquellos
que pueden ser representados en dicho formalismo. Esto es una consecuen-
cia dei célebre Teorema de Gõdel que establece que la consistencia de la
Aritmética formal no puede ser demostrada dentro dei propio formalismo.
Como consecuencia de ello se deduce que no puede haber una prueba finita-
ria de la consistencia de PA dado que cualquier razonamiento finitario pue-
de ser representado en PA. Luego una prueba de consistencia de PA no
puede ser finitaria, pero por pertenecer a la parte constructiva de la Mate-
mática debe contener métodos que se asemejen en algún sentido a los méto-
dos finitarios. Esos métodos, usando la term inolgía de Gõdel, deben consistir
de una extensión del punto de vista finito.
Por lo alto, los medios de prueba deben ser menos complejos que aque-
llos expresables dentro de la Aritmética intuicionista. Esto último merece
una aclaración. Podemos hablar de una Aritmética intuioionista que difiere
de la clásica, entre otras cosas, por no aceptar como regias válidas de infe- ,
rencia los esquemas (I) y (2). A esa aritm ética intuicionista corresponde un
formalismo, la llamada Aritmética formal intuicionista o Aritmética de
Heyting HA. HA es como i>A, con la'diferencia de que en lugar de contener
la Lóg ica clásica de primer orden, contiene la Lógica intuicionista de primer
orden. 10 Consecuentemente los esquemas inferenciales (I) y (2) no son
aceptados dentro de HA. Gõdel demostró que es posible construir una inyec-
ción ôde PA dentro de HA con la propiedad siguiente: si una fórmula A es
demostrable (esto es, derivable) dentro dei formalismo PA, entonces ~A)
será derivable dentro de HA. La inyección ô es la siguiente:

IJ.p) =p
~A A B) = ~A) A ~B)
~-,A) = .~A)
~V'xA(x)) = V'x~A(x))
~A v B) =-,(-,~A) A ...,~B))

9
Ver Bemays, 1941.
10
Para una exposición introductioria de los problemas filosóficos relacionados con la
Lógica lntuicionista ver Molina-Legris, 1997.
42 Jorge Alberto Mofina

~A :::> B) =-.(~A) 1\ -.9._B))


9._3xA(x)) = -.(V'x--,~A(x))

De las propiedades de ô resulta que si una contradicción A 1\ -,A es deri-


vable en PA su imagen ~A) 1\ -.~A) que es también una contradicción será
demostrable en HA. Lo que equivale a decir que si PA no fuese consistente
tampoco lo sería HA o, en otras palabras, PAes tan confiable como HA. El
resultado de Gõdel desvanece así la suposición, en un tiempo bastante ex-
tendida, de que la aritmética intuicionista es más segura que la aritmética
clásica. Ahora bien, qué significaria tener una demostración de la consisten-
cia de PA usando los medios de razonar de la aritmética intuicionista?.
Como todo razonamiento en la aritmética intuicionista puede ser representa-
do en HA y HA no es más confiable que PA no habríamos, desde el punto
de vista hilbertiano, ganado gran cosa.
Según Bernays la prueba de Gentzen de la consistencia de la aritmética
elemental debe situarse en un punto intermedio entre los métodos finitarios
de Hilbert y los métodos de la matemática intuicionista, aunque Gentzen no
fuese enteramente consciente de ello. Pero, l,existe en verdad ese punto me-
dio entre los métodos finitarios y los métodos intuicionistas? Es claro que las
ideas de Gentzen pareceo constituir una extensión dei punto de vista finito
êle Hilbert. Lo que, sin embargo es dificil determinar es cuáles son las dife-
rencias entre las ideas y métodos propuestos por Gentzen para demostrar la
consistencia de PA y las ideas y métodos de los intuicionistas.
Daremos un bosquejo de la prueba ofrecida por Gentzen sin entrar en los
detalles. 11 Para probar la consistencia de la aritmética formal es suficiente
probar que ninguna derivación fi en PA puede terminar coa la fórmula O =
l. Gentzen asocia a cada derivación fi un número ordinal. Hay un proceso
de reducción que transforma toda derivación f1 en una derivación con un
ordinal menor. Se demuestra que si en toda derivación con ordinal a no
aparece la fórmula O = I entonces en toda derivación con ordinal a + I no
aparece Ia fórmula O = 1. De ahí, usando el principio de inducción transfi-
nita inferimos que dada una derivación asociada con cualquier ordinal P ella
no puede contener la fórmula O = 1. La prueba de Gentzen usa pues in-
ducción transfinita sobre ordinales. l,Pero sobre qué ordinales? Justamente es
ese uso del principio de inducción transfinita lo que parece objetable, y lo
que hablaría en contra de la afirmación de Gentzen de que su prueba tiene

11
En verdad Gentzen presenta dos demonstraciones de la consistencia de la Aritmé-
tica formal de Peano PA. La primera se encuentra en Gentzen, 1936 y la segunda en
Gentzen, I938b.
Gentzen y el Problema de los Fundamentos de la Matemática 43

un carácter finitario, o por lo menos que sus métodos extienden natural-


mente los métodos finitarios.
Aqui conviene hacer algunas precisiones. Generalmente se asocia la
Teoria de los Números ordinales con ]a Teoria de Conjuntos de Cantor.
Gentzen introduce los ordinales de forma independiente de la Teoria de
Conjuntos, librándose así de aceptar la jerarquia cantoriana de conjuntos
infinitos actuales. La definción inductmva de los ordinales propuesta por
Gentzen es Ia siguiente: Definese la clase a0 cuyo único elemento es O.
Además en esa clase se define la igualdad y la relación de menor dei sigui-
ente modo: O = O y -,0 < O. Supongamos haber sido definida la clase ap y la
relación de igualdad entre elementos de esa clase, así como la relación de
menor entre dos elementos de esa clase. Esto es, supongamos haber definido
cuándo dos elementos de <Tp son iguales y cuándo un elemento de esa clase
es menor que un elemento de esa misma clase. La clase a p+ 1 está formada
por todos los elementos de la forma 0Ja1 + 0Ja2 + ... a>a v donde cada ai está en
<Tp y a 1 ~ a2 • .. a .. Podemos definir de manera puramente fÓrmal cuándo
dos elementos p y r de a p+1 son iguales. Decimos que p = r si sus represen-
taciones como sumas de potencias de a> coinciden. También podemos definir
cuándo p < y. p < r si el primer exponente no coincidente de p es menor que
e! correspondiente exponente no coincidente en r. Observamos que cada
clase op está contenida en la clase <Tp+J· Si relacionamos los ordinales así
definidos por Gentzen con los ordinales de Cantor podemos formar la sigui-
ente tabla

ao = o
a, = a>
Oi = OJ(J)
a3 = (a>~(J)

y as! sucesivamente. Por ejemplo, la clase a 2 está formada por O, 1,2, ... a>,
ar, ...
a>+- I, ... &2,0>2+ l , ... ai... EI ordinal limite de las cIases a, es denomi-
nado por los conjuntistas &o·
Vemos entonces que la prueba de Gentzen usa inducción transfinita
hasta &,. Si una inducción de ese tipo constituye una extensión natural de los
métodos finitarios de Hilbert, como pensaba Gentzen, es asunto muy discuti-
ble. Hablarla en favor de Gentzen, el hecho de que él introduce los ordinales
de forma puramente constructiva, sin precisar de la Teorfa de Conjuntos de
Cantor que envuelve la aceptación de conjuntos infinitos actuales. Por otro
lado, el conjunto de los ordinales usados en la inducción de Gentzen está
44 Jorge Alberto Mofina

bien ordenado, después de cada segmento de! conjunto viene un elemento


también perteneciente a él que sigue inmediatamente ai segmento. Intuiti-
vamente vemos que podemos alcanzar cada ordinal usado en la inducción de
Gentzen en el proceso de recorrer ese conjunto desde su comienzo, del mis-
mo modo que podemos alcanzar cualquier número natural ai recorrer el
conjunto de los números naturales desde O. Así Gentzen puede decir que su
demostración de la consistencia de la aritmética formal PA usa el tipo de
razonamiento aritmético propio de los métodos finitarios, que se distinguen
de los métodos geométricos usados en el Análisis.

S. Métodos finitarios y métodos intuicionistas

Independientemente de cual sea el resultado de la evaluación sobre si en-


contramos una extensión de los métodos finitarios en la demostración de
Gentzen de la consistencia de PA, podemos preguntarnos sobre la diferencia
entre los métodos de demostración finitar ios y aquellos usados por los intui-
cionistas de la escuela de Brouwer. En el artículo "Sur les questions métho-
dologiques actuelles de la théorie hilbertienne de la démonstration" Paul
Bernays intentó responder esta pregunta. Devemos decir que Gentzen no fue
preciso ai intentar caracterizar esta diferencia. Hay algunas indicaciones de
Gentzen en su artículo "Die Wiederspruchsfreiheit der reinen Zahlentheo-
rie" sobre la diferencia entre el condicional intuicionista y el condicional
fintario (Ver Gentzen [1 969] pp. 167-70). Es claro que los objetivos de la
escuela de Hilbert y los de la escuela de Brouwer eran diferentes. En cuanto
los matemáticos pertenecientes a la pri:mera escuela buscaban salvar toda Ia
matemática clásica, aquellos pertecientes a la segunda escuela buscaban
reformular toda la matemática eliminando aquellas partes de la matemática
clásica, como la Teoría de Conjuntos, que no les parecfan ser contiables. El
problema es determinar si aquella diferencia de objetivos, puede traducirse
en una diferencia en cuanto a los métodos que deben ser empleados en una
demostración matemática.
Los intuicionistas no admiten expresiones del tipo \ixA(x) v ..., \ixA(x).
Los formalistas ya ab initio evitao por principio emplear la negación de toda
proposición general, así como su uso como antecedente de una proposición
hipotética. En general para los finitistas la negación de una proposición
tiene sentido si equivale a una proposición afumativa. Así la proposición
-.3a,b,c,n > 2, a.b.c :t: O tales que cl' + b" =c", no tiene sentido finitario pues
ella equivale a afirmar la existencia de una demostración cualquiera de
\ia,b,c,n (si a.b.c :t: Oy n > 2 entonces d' + b" :t: c''). Por el contario, la aseve-
ración de que en un sistema formal D existe una demostración (derivación)
Gentzen y el Problema de los Fundamentos de la Matemática 45

de \:fa,b,c,n (a.b.c ~O 1\ n > 2 ::> d' + b" ~c") tiene sentido afirmativo, pues
dado un determinado sistema formal D podemos imaginar cual seria la posi-
ble estructura de una derivación II de la fórmula anterior. Bemays presenta
un ejemplo para ilustrar la diferencia entre los modos de razonar de los
formalistas de la escuela de Hilbert y de los intuicionistas. Considérese un
sistema formal D que sea suficiente para la formalización de la Aritmética.
Esto es cualquier demostración dentro de la Aritmética podrá ser represen-
tada por una derivación en el formalismo O. Supóngase además que (i) te-
nemos una demostración (metamatemática) de que el forma lismo D es con-
sistente, esto es, en D no puede derivarse ninguna contradicción y (ii) tene-
mos una derivación II en D de la fórmula \:fx\:fy\:fz\:fn(x.y.z ~ O 1\ n > 2 ::> x"
+ j' i: i"). El siguiente razonamiento finitario probaría, según los formalis-
tas, el teorema de Fermat: es suficiente demostrar que no pueden ser dados
cuatro números p ,q,r,n (p,q,r > O y n > 2) tales que la ecuación p" + q" = /'
sea verificada. Ahora bien, dado que O representa cualquier demostración
aritmética, la verificación de aquella ecuación deberá poder ser representada
en D. Es decir en D tendremos una derivación 1: cuya última fórmula será p"
+ q" = r". Por otra parte a partir del supuesto (i i) podemos deducir la fórmula
p" + q" ~r". Luego en D se podría derivar una contradicción, lo que no pue-
de ser en virtud del supuesto (i). Debemos concluir entonces que la ecuación
p" + q" = r" no tiene solución para p.q.r ~ O y n > 2. Mas este último es jus-
tamente el enunciado del teorema de Fermat.
Los intuicionistas no aceptarían una demostración como aquella expuesta
en el parágrafo anterior. No verían la necesidad de recurrir al formalismo O.
Con Abs F expresamos que una contradicción se sigue se suponer la verdad
dei enunciado F del Teorema de Fermat. F expresa que cs imposible encon-
trar cuatro números p,q,r,n que estén en la relación G(p,q,r,n) definida así:
cuatro números naturales p,q,r,n están en esa relación si y só lo si p.q.r ~ O, n
> 2 y p" + q'' = r'. Tenemos entonces que

F ::> Abs G(p,q,r,n).

Usando la regia de inferencia intuicionista

A ::> Abs B

B ::> Abs A

deducimos
46 Jorge Alberto Mofina

G(p,q,r,n) ::::> Abs F

aplicando la regia de inferencia intuicionista

A::::>B

Abs B::::>AbsA

obtenemos

Abs Abs F::> Abs G(p,q,r,n)

Si por consiguiente Abs Abs F fuese intuicionistamente aceptable deduciría-


mos Abs G(p,q,r,n) que es justamente el enunciado F dei teorema de Fermat.
Esta sería uma demostración dei Teorema de Fermat en concordancia con
los modos de razonar aceptables desde un punto de vista intuicionista.
Veamos las diferencias entre las dos demostraciones ofrecidas. La prime-
ra depende de la existencia de un formalismo D con las propiedades (i) y
(ii). La segunda es más directa porque no precisa de hacer un rodeo por e!
sistema formal D, depende solamente de haber demostrado (intuicionista-
mente) Abs Abs F.

Referências bibliográficas

Bemays, P. 1938. "Sur les questions actuelles de la théorie hilbertienne de la


démonstration". Les entretiens de Zurich sur les fondements et la métho-
de des sciences mathématiques, pp. 6-9. Exposés et discussions, publi-
cados por F. Gonseth, Zürich (Leeman) 1941, pp. 144-52.
Frege, G. 1950. The foundations of arithmetic. A logico-mathematical en-
quiry into the concept ofnumber. Oxford: Basil Blackwell.
Gentzen, G. 1936. "Die Widerschprucbsfreiheit der reinen Zahlentheorie".
Mathematische Annalen, 112: 493- 565.
- - . 1938a "Die gegenwãrtige Lage in der mathematischen Grundlagen-
forschung". Forschungen zur Logik und der Grundlegung der exakten
Wissenschaften, nueva serie, n. 4, .ILeipzig (Hirzel), pp. 5- 18.
- -. 1938b. Neue Fassung der Widerspruchsfreiheitsbeweises filr die rei-
nen Zahlentheorie. lbid, pp. 19-44.
- -. 1969. The Collected Papers ofGerhard Gentzen. Comp. por M. Sza-
bo. Amsterdam, London: North-Holland.
Gentzen y e/ Problema de los Fundamentos de la Matemática 47

Hilbert, O. ''Über das Unendliche". MathematischeAnnalen, 95: 16 1- 90.


Molina, J. 1986. ''Definiciones impredicativas". Revista de Filosofia, 2: 43-
66.
Molina, J., y Legris, J., 1997. Lógica /ntuicionista. Uma Abordagem Filo-
sófica. Pelotas: Educat.
Poincaré, H. 1946. La ciencia y la hipótesis. Buenos Aires: Austral.
Rasiowa, H. y Sikorski, R., 1963. The mathematics of Metamathema-
tics. Varsovia.
Russell, B. 1908. "Mathematical Logic as Based on The Theory o f Types".
American Journal ofMathematics, 30: 222-62.
- - . 1967. Los princípios de la Matemática. Traducción de Juan Carlos
Grinberg, Madrid:Espasa-Calpe.
Stewart, I. 1973. Galois Theory, London : Chapman and Hall.
Torretti, R. 1984. Philosophy of Geometry from Riemann to Poincaré. Dor-
drecht: D. Reidel.
SOBRE LA IDEA DE UNA SEMÁNTICA PROCEDIMENTAL PARA
LA INFERENCIA LóGICA

]A VlER L EGRlS
Universidad de Buenos Aires y Conicel

La investigación en inteligencia artificial realizada en los últimos aftos no


sólo ha generado nuevos problemas y perspectivas en la lógica simbólica,
sino que también ha repercutido en la manera de entender la relación de
inferencia lógica o deductiva. Las constantes y la consecuencia lógicas pue-
den ser interpretadas en términos de una semántica procedimental, que se
caracteriza por incluir mecanismos computacionales de control y procedimi-
entos de búsqueda de demostraciones en el análisis semántico. En lo que
sigue me voy a ocupar de este nuevo enfoque mostrando cómo se vincula con
los análisis semânticos que parten dei concepto de demostración constructiva
(u otro análogo) y con ideas de la ciencia cognitiva, que llevan a considerar
a la lógica como la teoría de los procesos inferenciales deductivos. Final-
mente, también llamaré la atención sobre algunos problemas que apareceo
dentro de este enfoque.

El análisis de la relación de la consecuencia lógica es la tarea esencial de la


filosofia de la lógica (la verdad lógica puede considerarse un caso límite de
esta relación). Desde Aristóteles, esta relación ha sido tematizada de dife-
rentes maneras. Se debe a Bernhard Bolzano la formulación , en su Teoría de
la ciencia de 1837, de una caracterización de la consecuencia lógica que
ejerció posteriormente una enorme influencia. Esta caracterización remitía a
los conceptos de forma lógica y de constante lógica, y se servia del concepto
de verdad, los cuales se convirtieron, por así decirlo, en los actores princi-
pales de la filosofia de la lógica contemporânea. La consecuencia lógica era
aquella relación que transmitia la verdad de un conjunto de enunciados a
otro enunciado. En la década de 1930, Tarski, de manera independieote,
reformuló esta idea de forma más sistemática, con relación a lenguajes for-
malizados, y, utilizando herramientas algebraicas y de la teoría de conjuntos,
desarrolló su concepto de modelo o realización dando lugar a la teoria de

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analltica. Florianópolis: NEL, pp. 48-60.
Sobre la idea de una semantica procedimental ... 49

modelos (véase, por ejemplo, Tarskj 1936), que acepta el uso de princípios
matemáticos no constructivos.
La concepción propuesta por Bolzano estaba dentro de la una tradición
objetivista que se continuaria también en Tarski. La relación de consecuen-
cia lógica podía ser caracterizada con independencia de sujetos de conocimi-
ento y sus procesos inferenciales. La dis.cusión semântica recurría a concep-
tos ontológicos.
De todos modos, toda teoría de la coosecuencia lógica debe ser coherente
con los diferentes métodos que los sujetos de conocimiento utilicen para
afirmar y justificar que un enunciado es consecuencia lógica de otros. Estos
métodos que estructuran los procesos inferenciales de sujetos de conocimi-
entos dan lugar a demostraciones. En el caso de la lógica moderna, estos
métodos de demostración se han sistematizado en sistemas de deducción
relativos a lenguajes formates que constao esencialmente de regias y res-
pecto de los cuales se definen relaciones de derivabilidad (versión dei con-
cepto de demostración relativo a sistemas específicos). La determinación de
las propiedades de esta relación de derivabilidad formal en los diferentes
sistemas se convirtió en la tarea central de la teoria de la demostración.
Ahora bien, hay un sentido en el que se habla de consecuencia lógica en
el cual la mera preservación de verdad no es suficiente para afirmar la exis-
tencia de una relación de consecuencia lógica entre un enunciado y un con-
junto de enunciados. Se pretende además haber comprendido o entendido
que efectivamente se puede afirmar la existencia de esa relación de conse-
cuencia lógica. Por ejemplo (y el ejemplo está pensado a propósito, véase
Prawitz 1978, p. 26), nadie concederia que el teorema de Fermat es conse-
cuencia de los axiomas de Peano para la aritmética, incluso en el caso de que
el teorema de Fermat sea realmente una verdad aritmética (lo que, ai pare-
cer, no se ha podido determinar todavía). Se exigiria además una demostra-
ción de tal hecho, que permitiera un entendimiento dei mismo
(demostración que no está relativizada a un sistema formal).
Este sentido de consecuencia lógica tiene también una larga historia, y
sus orígenes bien pueden encontrarse en la caracterización aristotélica de la
lógica como ciencia demostrativa (Anal. Pr. I 124al0). No obstante, los
primeros esbozos de una presentación sistemática se encuentran en las con-
diciones de demostrabilidad propuestas por Arendt Heyting en relación con
la fundamentación de la lógica intuicionista y en la "lógica de problemas" de
Andrei Kolmogorov. En ambos autores se encuentran las bases para desar-
rollar una semántica constructiva.
En síntesis, hasta aquí quedao claramente delineadas dos tradiciones
diferentes en cuanto a la justificación fi losófica de la consecuencia lógica.
50 Javier Legris

Una es la semântica de raigambre tarskiana, afin a justificaciones ontológi-


cas y vinculada en el plano formal con la teoría de modelos. La otra es la
semântica oonstructiva, afio a justificaciones gnoseológicas de Ia conse-
cuencia lógica y vinculada en el plano formal con la teoría de la demostra-
ción. La mayor parte de la discusión filosófica en torno de la consecuencia
lógica se ha desarrollado, puede decirse, dentro de estas dos tradiciones.
La suscripción a una u otra tradición depende de Ias propias convicciones
filosóficas acerca de las herramientas metateóricas que se adopten. Puede
decirse que la tradición tarskiana admite un ámbito de verdades que está
más aliá de los limites de las capacidades cognoscitivas humanas. Por el
contrario, la segunda tradición no se expide ai respecto, sino que se limita a
la obtención de verdades efectivamente asequibles por medio de los métodos
de demostración a disposición de los seres humanos. La verdad queda ligada
a los métodos de demostración.

En nuestra época, gracias a los avances de Ia lógica matemática, se pudo


cumplir el "sueõo de Leibniz" de desarrollar "máquinas de razonar" que
fueran realizaciones concretas de un ca/culus ratiocinator. Los sistemas
deductivos pasan a estar ''realizados", por así decirlo, en estas máquinas que
poseen determinados procedimientos computacionales. Las deducciones o
demostraciones en los sistemas deben llevarse a cabo, entonces, de una ma-
nera efectiva, bajo la forma de algún algoritmo y conforme a los recursos de
los que disponga la máquina. Esto lleva a tomar seriamente en cuenta, ade-
más de los métodos de demostración según diferentes sistemas deductivos,
los mecanismos de búsqueda que permiten a Ia máquina construir efectiva-
mente demostraciones. Aqui juegan un papel importante aspectos como la
fàctibilidad y la eficiencia y conceptos cuantitativos de constructibilidad. (La
situación es análoga a Ia que preseota la "matemática computacional", en la
que, por ejemplo, es importante especificar aquellas funciones computables
que sean realmente fàctibles.)
Todas estas cuestiones que se acabao de mencionar pueden agruparse
genéricamente bajo el rótulo dei problema de la automatización de la de-
ducción, y la solución de este problema es la tarea de la deducción automáti-
ca, considerada como una disciplina dentro de la inteligencia artificial.
El fundamento de la deducción automática está dado por el corpus teóri-
co de la teoria de la demostración. Esto se hace evidente a través de los si-
guientes hechos. En primer lugar, la teoria de la demostración estudia el
proceso de razonamiento (representado en el desarrollo de una derivación
Sobre la idea de una semantica procedimental ... 51

formal) y no meramente el resultado de ese proceso que son los teoremas, de


modo que importa especialmente cómo se llega ai resultado que son los
teoremas. En segundo lugar, los sistemas formates que se proponen y se
analizan en la teoría de la demostración pretendeo además representar for-
malmente el "conocimiento lógico", por así decirlo, que tienen los razonado-
res naturales (los seres humanos). Estos dos rasgos se perfilan muy nítida-
mente en, por ejemplo, los sistemas de secuentes y de deducción natural
debidos a Gerhard Gentzen.
En definitiva, son estos dos rasgos los que condujeron a la teoria de la
demostración a formular sistemas cuyas demostraciones fueran normales
(canónicas), es decir demostraciones elementales e irreductibles para todo
teorema, y este es el sentido dei célebre Hauptsatz o teorema fundamental de
Gentzen. Y también son los que la condujeron a elaborar métodos pura-
mente mecânicos de demostración y refutación para los teoremas de la lógica
de primer orden, y este es el sentido del teorema de Herbrand. Como es
sabido, los resultados de indecidibilidad obtenidos en la década de 1930 por
Alonzo Church, entre otros, hacían imposible la construcción de algoritmos
que decidieran si una derivación en la lógica de predicados de primer orden
es correcta o no. Sin embargo, el teorema de Herbrand mostraba la posibili-
dad de construir un algoritmo para demostrar que toda derivación válida
efectivamente lo es.
Ahora bien, la teoria de la demostración no tematizaba los procesos de
búsqueda de demostraciones en sistemas formates específicos; tan sólo se
hacían vagas referencias a ellos, de carácter puramente intuitivo. Es decir,
no se indicaban de manera explícita y formal las estrategias a seguir en cada
caso ni se indicaban órdenes de aplicación de las regias dei sistema en cues-
tión. Todo esto quedaba librado a la inventiva de quien hiciera uso dei sis-
tema.
Sin embargo, desde el punto de vista de una máquina de razonar, la mera
posesión dei sistema formal, dado por el conjunto de regias (y, eventual-
mente, axiomas), a partir de los cuales se define el concepto de derivación en
el sistema, no son condición suficiente para poder efectuar demostraciones.
Esto se hace evidente, por ejemplo, en sistemas de deducción natural, donde
sin una guía para efectuar demostraciones, las regias no aseguran en abso-
luto llegar ai objetivo deseado. En general, sucede que un conjunto de regias
no suministra un algoritmo de demostración, ya que no establece el orden en
que deben ser aplicadas las diferentes regias. Es sabido que a partir de un
sistema de regias, se puede producir una pluralidad de derivaciones. Sin
embargo, puede construirse un algoritmo que conste de las regias dei sistema
de deducción, junto con un conjunto de instrucciones que especifique el
52 Javier Legris

orden de aplicación de regias. Este algoritmo constituirá un mecanismo


automático de demostración dei que dispondrá la máquina.
Con el fin de ilustrar el problema, daré un ejemplo de una derivación que
emplea secuentes múltiples. Tomaré el sistema de secuentes para la lógica
de prirner orden tal como aparece en Gentzen 1935. Los secuentes son ex-
presiones de la forma

A., ... ,Am : B., ... ,B,.,

siendo A J. ...,Am,B ., ...,Bn fórmulas dei lenguaje de primer orden.


Supóngase que se quiere demostrar el secuente

(I) Pa v Pb: 3xPx

y supóngase además que se emplea un método reductivo o analítico de deri-


vación en el cual se parte dei secuente que se quiere demostrar llegando,
mediante las regias del sistema (concebidas de manera invertida), a los se-
cuentes básicos (de la forma A: A). La obtención del secuente final (1) im-
plica una eleccióo del orden de las regias a emplear. En efecto, se puede
proceder aplicando primero la regia de introducción del cuantificador uni-
versal en el antecedente o la de introducción de la conjunción en el suce-
dente. Si se elige este último camino se obtiene la derivación

Pa:Pa Pb :Pb

Pa: 3xPx Pb: 3xPx

Pa v Pb : 3xPx,

la cual al terminar en secuentes básicos, constituye una demostración de (1).


No obstante, si se adopta el primero de los caminos, se obtiene la deriva-
ción

Pa:Pb Pb :Pb

Pav Pb: Pb

Pav Pb: 3xPx

que, ai no llegar en ai menos un caso a un secuente básico, no es una de-


Sobre la idea de una semantica procedimental ... 53

mostración de {1). Como consecuencia, la adopción de este orden en la apli-


cación de las regias podría llevar a la falsa impresión de que el sistema de
secuentes es incompleto respecto de la lógica clásica de primer orden.
Debe observarse que la posibilidad de esta derivación incorrecta no se da
si se emplea un método sintético, que parte de los secuentes básicos para
llegar ai secuente a demostrar, pues, junto con la regia estructural de con-
tracción, se obtiene la siguiente derivacmón

Pa:Pa Pb :Pb

Pav Pb: Pa, Pb

Pa v Pb : Pa, 3xPx

Pa v Pb : 3xPx, 3xPx

Pav Pb: 3xPx

que constituye una derivación de {1). Sin embargo, la derivación exige el


empleo de regias estructurales mientras que la anterior no, y, además, la
automatización de un método sintético presenta, en comparación con la de
un método analítico, un número mayor de dificultades {debido a que no
parte de un objetivo que se pueda descomponer unívocamente).
Claramente, lo que está en discusión aqui es la permutabilidad de las
regias dei sistema de secuentes. En realidad el problema no era desconocido
dentro de la teoria de la demostración, y, de hecho, se propusieron cambios
en la formulación de las regias cone! fin de solucionarlo {véase la discusión
en Curry 1952). De todos modos, nunca se consideró que el sistema origina-
rio de Gentzen fuese incompleto ni se puso eu duda que sirviera para carac-
terizar enteramente la lógica clásica de primer orden. Pero, lo cierto es que,
tal como muestra el ejemplo, estipulaciones diferentes para la aplicación de
regias y la adopción de diferentes métodos de derivación sobre la base dei
mismo sistema de regias, puede hacer que un sistema deje de caracterizar
una lógica determinada. El hecho de que e! problema pueda mostrarse fá-
cilrnente en el contexto de derivaciones secuenciales es particularmente
revelador, pues los sistemas de secuentes han mostrado ser muy aptos para
analizar la estructura de demostraciones y para formalizar el modo en que
los razonadores naturales realizao demostraciones.
En resumidas cuentas, entonces, debfan especificarse mecanismos de
búsqueda de demostraciones, lo que implica cosas como un indicar un orden
54 Javier Legris

en la aplicación de regias. De acuerdo con esto, debería diseõarse una heu-


rística para la búsqueda de demostraciones, es decir un método práctico que
para el caso de un teorema determinado permita seleccionar la aplicación de
regias que permite construir una demostración (y, cabría agregar, la demos-
tración más breve). Pero, más aun, los procedimientos de búsqueda deberían
quedar totalmente determinados, dando lugar a un algoritmo para generar
demostraciones. Por ejemplo, en e! caso recién visto, una solución consiste
en establecer relaciones de interdependencia entre las constantes de indivi-
duo, de modo que no pueda aplicarse irrestrictamente la regia de intro-
ducción del cuantificador existencial en el sucedente (véase Wallen 1990).
De este modo, el sistema deductivo debe quedar caracterizado por el
conjunto de sus regias y un algoritmo de demostración, pasando a ser siste-
mas automáticos de demostración. Sistemas de este tipo han sido denomina-
dos sistemas algorítmicos de demostración por Dov Gabbay (véase Gabbay
1994a, p. 185). Cada conjunto de regias puede dar lugar a una ilimitada
cantidad de sistemas algorítmicos. A su vez, cada sistema algorítmico de
demostración genera los teoremas de una lógica determinada, la cual puede
ser expresada mediante una relación de consecuencia. Gabbay defme un
e.
sistema algorítmico de demostración como un par ,s), donde :1... es una
relación de consecuencia formalmente caracterizada y S un sistema para la
lógica definida por esa relación de conscuencia. Cambios en el algoritmo
pueden hacer que el sistema no genere todos los teoremas de esa lógica
(incompletud) o genere teoremas de otra lógica (divergencia).

IIl

En tomo de las consideraciones que se acabao de hacer, puede analizarse


también el caso de la programación lógica. La idea central de la programa-
ción lógica consiste en ver a la lógica de primer orden (o fragmentos de la
misma) como un lenguaje de programación. Así, un programa estaria for-
mado por un conjunto de enunciados y los mecanismos computacionales
efectuarían inferencias lógicas. En este aspecto, la programación lógica
difiere de la programación tradicional, que considera a un programa como
un conjunto de instrucciones.
Ellenguaje de programación lógica por excelencia es Prolog (apócope de
''programación en lógica"). No es difícil ver en quê medida Prolog explota
ideas de la deducción automática. Pero obviamente no se trata de un demos-
trador de teoremas, sino de un /enguaje de programación cuya peculiaridad
consiste en que las computaciones que efectúa se interpretao como inferen-
cias lógicas. Las regias de inferencia adoptan la forma, entonces, de regias
Sobre la idea de una semantica procedimental ... 55

de computación. Así, Prolog no es otra cosa que la inferencia lógica auto-


matizada.
Un programa Prolog está formado por un conjunto de expresiones que
representa un tipo de enunciados llamados cláusulas, y además un conjunto
de instrucciones para efectuar inferencias que es llamado el intérprete Pro-
log. Las preguntas que el intérprete responde afirmativamente son conse-
cuencias lógicas del programa.
La aplicación de estas instrucciones o regias de computación debe darse
en un orden que está predeterminado y en el lenguaje deben incorporarse
ciertos procedimientos con el finde representar información de control acer-
ca de cómo se llevan a cabo las computaciones, limitándolas. Esto es lo que
denomina contrai.
Así, Prolog es una aplicación de la deducción automática: el mecanismo
computacional tiene un componente lógico y otro de control, de modo que
cristaliza computacionalmente un sistema algorítmico de demostración, en
el sentido de Gabbay. Este es el significa de la conocida ecuación formulada
por Robert Kowalski:

Algoritmo= Lógica + Computación,

donde por "algoritmo" se entiende aqui el procedirniento computacional de


un lenguaje de programación lógica (véase Kowalski 1979, p. 125).
Ahora bien, los aspectos ligados al control afectan seriamente la lógica
que Prolog pretende reflejar computacionalmente. Una breve muestra de ello
la da el siguiente programa Prolog, cuyas cláusulas son:

(PI) p.
(P2) p :-p.

p se interpreta como un enunciado atómico cualquiera y el símbolo :- es un


símbolo incorporado de Prolog que se puede interpretar como una versión
computacional del símbolo secuencial, pero invertido en el orden. Una cláu-
sula de Prolog de la forma

q :- pl, ... ,pn.

se puede hacer corresponder con el secuente singular

pl,...,pn: q.
56 Javier Legris

Dado este programa y frente a la consulta acerca de si p se sigue del


programa, el intérprete Prolog responde afirmativamente, tal como es de
esperar, si Prolog reproduce al menos características fundamentales de la
lógica clásica. (En efecto de los secuentes : p y p : p se deriva p mediante
aplicación de la regia de corte.)
Si se invierte el orden de las cláusulas, se obtiene el nuevo programa P'

(P'I) p :-p.
(P'2) p.

y puede comprobarse que, frente a la misma consulta, Prolog entra esta vez
en un loop, no comportándose de la manera deseada.
Sin entrar en detalles acerca de los procedimientos computacionales de
Prolog (los que, justamente, se corresponden con la regia de corte), puede
decirse que este comportamiento no esperado de Prolog tiene su causa en Ia
manera en que Prolog "lee", por así decirlo, Ias cláusulas de un programa y
opera sobre ellas. Las versiones usuales de Prolog permiten que una cláusula
sea leída más de una vez, produciendo un círculo en la lectura de las clásulas
dei programa P'. En otras pai abras, Prolog puede ''volver hacia arriba" en la
lectura de las cláusulas.
El problema podría solucionarse haciendo que Prolog lea las cláusulas en
una única dirección, de arriba bacia abajo, sin poder volver atrás. Sin em-
bargo, en ese caso apareceo otros problemas. Tómese el siguiente programa
P"
(P"l) q :- p.
(P"2) r.
(P"3) p :-r.

Frente a la pregunta acerca de si q se sigue del programa, el intérprete Pro-


log, modificado de la manera recién indicada, responderia negativamente,
contrariamente a lo que sería deseable (y esperable), ya que luego de leer la
cláusula (P"2), Prolog no puede volver sobre la cláusula (P"l) (véase Gabbay
l994b, pp. 395 y ss.).
Problemas como estos conciemen exclusivamente ai control y han dado
lugar a lo que Gabbay ha designado como "lógica de la prioridad" (priority
logic, véase Gabbay loc. cit.). Se ha argumentado que también la negación
en Prolog debe entenderse únicamente en términos de los mecanismos de
control (véase, por ejemplo, Gillies 1996, p. 91 ).
En general, entonces, resulta que la lógica computacionalmente cristali-
Sobre la idea de una semantica procedimental ... 57

zada que es Prolog muestra la necesidad de especificar aspectos dei control


de la información ai caracterizar un sistema lógico. Así, podría decirse que
Ia lógica es inferencia más control (una idea semejante se encuentra en Gi-
llies 1996).
Esta idea se acerca a la tesis de Oabbay de que un sistema lógico se defi-
ne en función de una relación de consecuencia y un algoritmo de demostra-
ción y resume bien lo que he planteado hasta ahora en los dos casos de la
deducción automática y de Ia programación lógica. La pregunta que queda
por responder es en qué medida estas tesis repercuten en Ia concepción filo-
sófica de Ia inferencia deductiva.

IV

Los comentarios que se acabao de hacer en tomo de la deducción automática


y Ia programación lógica sugieren la idea de lo que puede denominarse una
semántica procedimental para Ia relación de consecuencia lógica, en la cual
esta queda caracterizada en términos de regias de computación.
En ellenguaje Prolog mismo encontramos un ejemplo de esta idea. Las
regias de Prolog, de la forma

se interpretao procedimentalmente del s iguiente modo: Si se quiere estable-


cer el subobjetivo de demostrar B, demuéstrense primero los subobjetivos
A~, ... ,A,.
Entendida filosóficamente, esta semántica está claramente emparentada
con la segunda de las tradiciones mencionadas ai comienzo, a saber, Ia tra-
dición de Ia semântica constructiva basada en el concepto de demostración.
Más aun, podría decirse que es heredera de esta. Hay varias razones que
avalan esta afirmación. Antes que nada, es inmediata la asignación de un
carácter constructivo de cualquier procedimiento aigorítmico (y esta sería
una razón bastante obvia, pero no la más interesaote). Las demostraciones
algorítmicas, como las que realiza un demostrador de teoremas son casos
ejemplares de demostraciones constructivas. No seria posible que la máquina
demostrara de una modo no constructivo.
Además, en esta concepción procedimental los procesos inferenciales
constituyen una forma de obtener información a partir de información dada,
de modo que tienen un claro valor cognoscitivo. En efecto, las máquinas de
razonar son un tipo de máquinas inteligentes. Es usual pensar que estas
máquinas tienen un conocimiento de su entorno, expresado mediante con-
58 Javier Legris

juntos de enunciados. Este sería un conocimento declarativo (véase Nilsson


1991, pp. 38). Cada estado de la máquina estaría dado por un conjunto de
enunciados. Las transiciones entre un estado y otro está dado por funciones
que le permiten manipular símbolos, tomar dccisiones c intcractuar con el
medio ambiente. Este sería un conocimicnto procedimental. Dentro de este
conocimiento procedimental se ubican los mecanismos inferenciales. La
máquina, ai emplear sus procedimientos de inferencias para obtener un
enunciado, hace algo que se interpreta como unajustificación de ese enunci-
ado. Dicho de otro modo, la relación de consecuencia lógica se caracteriza
de manera relativa a un agente de conocimiento.
Ahora bien, (,CO qué sentido podría decirse que la máquina debería
"entender" el significado de las constantes lógicas? La máquina debería
hacerlo en términos de las instrucciones que Je permiten construir demostra-
ciones. Una vez más, la idea de una intuición que le permita acceder a mé-
todos de demostración no constructivos le debería ser ajena, imposible inclu-
so.
De todos modos, deben distinguirse aquí algunos matices y deben seí'la-
larse algunas dificultades importantes. En primer lugar, pareciera aqui que
esta concepción procedimental es una variante de la concepción sintactista
acerca de la relación de consecuencia lógica, pues se la caracteriza en rela-
ción con un sistema concreto de regias y procedimientos (los que caracteri-
zao a la máquina), es decir, se la caracteriza en relación con un lenguaje de
programación determ inado. Como es sabido, la concepción sintactista define
la consecuencia lógica como derivabilidad en un sistema formal, con las
serias conocidas lirnitaciones que esto acarrea, y además deja de lado aspec-
tos relativos ai contenido de los enunciados, lo que parece contrario a la idea
misma de una semântica.
En realidad, la concepción procedimental debe formularse en términos
gcnerales, sin depender de un lenguaje de programación determinado y a la
manera de una teoria acerca dei concepto de demostración algorítmica o
efectiva. E! problema es semejante ai que se plantea entre la teoría de la
demostración y la semántica constructiva. Quico pretende dar una semântica
basada en el concepto de demostración no desea limitarse a un sistema for-
mal determinado, sino construir una teoria acerca dcl concepto de demos-
tración. Esto originó una ''teoria acerca de demostraciones" (en el sentido
propugnado por Georg Kreisel) o una "teoria general de la demostración"
(en el sentido de Dag Prawitz), las cuales se inspirao en las ideas de Arendt
Heyting y Andrei Kolmogorov mencionadas más arriba, y también en las
ideas de Gerhard Gentzen acerca de definir las constantes lógicas en térmi-
nos de regias de inferencia (véase ai respecto Legris 1996).
Sobre la idea de una semantica procedimental ... 59

Siguiendo esta comparación, se trata aquí de desarrollar una teoría algo-


rítmica general de la demostración, que debería dar condiciones y procedi-
mientos generales acerca de la construcción de demostraciones antes de dar
regias para las constantes lógicas. El programa recuerda bastante a la
"lógica operativa" de Paul Lorenzen (véase Lorenzen 1955), donde se consi-
dera una serie de regias "protológicas" referidas a un "operar esquemático"
(inversión de regias, inducción, etc.) que son anteriores a la formulación de
toda regia lógica; algo así como sus "condiciones de posibilidad".
Por ejemplo, estas condiciones deberfan ~onsiderar el problema de la
necesidad de un orden o prioridad en la aplicación de regias de cierto tipo lo
cual daría apoyo, por ejemplo, a la idea de una temporalidad previa a (como
"condición de posibilidad" de) toda demostración.
Obviamente, en la medida en que cambiara el concepto de algoritmo
tarnbién cambiaria esta semântica procedimental.
En resumen, esta concepción procedimental trae como novedad que no
basta formular regias para las constantes lógicas a fin de caracterizar plena-
mente la relación de consecuencia lógica, sino que es necesario explicitar
además operaciones y procedimientos externos a la lógica. La consecuencia
lógica así caracterizada seria la consecuencia lógica de cualquier ser inteli-
gente. Sin embargo, naturalmente surge aquí la pregunta de si este concepto
de consecuencia lógica agota todas las posibilidades de inferencia deductiva.
Por ejemplo, puede plantearse el caso de inferencias deductivas que no sa-
tisfagan el requisito de compacidad. Los límites aquí establecidos son los
límites de la demostración algorítmica (tal como están indicados en el teo-
rema de Herbrand), de modo que el concepto que corresponde discutir es el
concepto mismo de algoritmo.

Referências Bibliográficas

Curry, H. B. 1952. "The Permutability of Rules in The Classical Inferentia l


Calculus". Journal ofSymbolic Logic, 17: 245- 8.
Gabbay, Dov M. l994a. "What is a Logical System?". What is a Logical
System? comp. por Dov M. Gabbay, Oxford: Clarendon Press, pp. 179-
216.
- - . 1994b. "Classical vs Non-Classical Logics (The UniversalitY of Clas-
sical Logic)". Handbook of Logic in Artificial Intelligence and Logic
Programming, v. 2, Deduction Methodologies, comp. por Dov M. Gab-
bay, C. J. Hogger y J. A. Robinson. Oxford: Clarendon Press, pp. 359-
500.
60 Javier Legris

Gentzen, G. 1935. ''Untersuchungen über das logische Schliel3en". Mathe-


matische Zeitschriji, 39: 176-210 y 405- 31.
Gillies, D. 1996. Artificial lnte//igence and Scientific Method. Oxford:
Oxford Un iversity Press.
Kowalski, R. 1979. Logicfor Problem Solving. Nueva York: North-Holland
Legris, J. 1996. " Observaciones sobre el desarrollo de la teoría de la demos-
tración y su relevancia para la filosofia de la lógica" . Tercer Coloquio
lntemaciona/ Bariloche de Filosofia. S. C. de Bariloche (Argentina), 29-
31 de agosto de 1996.
Lorenzen, P. 1955. Einführung in die operative Logik und Mathematik.
Berlin: Springer.
Nilsson, N. J. 1991. "Logic and Artificial Intelligence". Artificial lntelli-
gence, 47: 31 - 56.
Prawitz, D. 1978. " Proofs and The Meaning and Completeness ofThe Logi-
cal Constants". Essays on Mathematica/ and Philosophical Logic comp.
por J. Hintikka, I. Niiniluoto y E. Saarinen. Dordrecht: O. Reidel, pp.
25~0.
Tarski, A. 1936. "Über den Begriff der logischen Folgerung". Actes du
Congrés fnlernational de Philosophie Scientifique, vol. 7, Paris, pp. l -
li.
Wallen, L. A. 1990. Automated Proof Search in Non-Ciassical Logics. Lon-
dres: The MIT Press.
A INTRODUÇÃO DA IMPLICAÇÃO
EM CÁLCULOS AXIOMÁTICOS ABERTOS

ARTHUR B UCIISBAUM
Universidade Federal de Santa Catarina

T ARCISIO P EQUENO
Universidade Federal do Ceará

l. Introdução
Podemos observar dois tratamentos clássicos distintos dados em Lógica para
a implicação material:
12) a regra para a introdução da implicação não apresenta restrições, mas
existem limitações para a introdução do quantificador universal e outras
regras análogas, como se dá nas lógicas ditas fechadas [1,3,4,5];
22 ) a introdução da implicação é feita com restrições, mas há liberdade in-
condicional para a introdução do quantificador universal e outras regras
análogas, como ocorre nas lógicas ditas abertas [6,7,9].
A primeira abordagem tem sido adotada em sistemas de dedução natural
[3,8] c cálculos de scqüentes [4], enquanto que a segunda, por questões de
elegância, tem sido vista em cálculos axiomáticos abertos1 [6,7,9].
As formulações para o Teorema da Dedução referentes a cálculos axiomáti-
cos, representando lógicas abertas, que temos encontrado na literatura, pade-
cem de algumas deficiências, tais como:
• uso explícito do conceito de demonstração, ao invés de uma idéia de ni-
vel mais alto versando sobre conseqüência sintática;
• falta de um rastreamento adequado que acompanhe o uso de objetos vari-
antes em regras de generalização, dificultando possfveis reaplicações do
Teorema da Dedução após uma primeira aplicação.

1
Os cálculos axiomáticos fechados não são convenientes para representar
lógicas possuindo objetos variantes distintos de variáveis, tais como
as lógicas modais.
Morta ri, C. A & Outra, L. H. de A (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de
Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 61-75.
62 Arlhur Buchsbaum e Tarcisio Pequeno

Além disto, consideramos essencial , para uma compreensão mais pro-


funda deste assunto, um levantamento c estudo das propriedades básicas das
relações de conseqüência envolvidas. Descobrimos, neste estudo, duas rela-
ções de conseqüência relevantes. com sistemas distintos de rastreamento
para objetos variantes, chamadas adiante de "dependência" e de " sustenta-
ção", as quais, sob certas condições que estabeleceremos a seguir, são equi-
valentes, e daí podemos utilizar as propriedades relevantes de ambas. Esta-
belecemos uma série de resultados concernentes a objetos variantes e intro-
dução da implicação, para cada uma das classes de cálculos axiomáticos
abordadas.
Damos a seguir dois exemplos de formulações do Teorema da Dedução,
comumente encontradas na literatura, que sofrem dos defeitos citados:
• "Para o cálculo de predicados (ou o sistema formal da teoria dos núme-
ros), se r,A r B, onde as variáveis livres na suposição A são mantidas
constantes, então r f- A--)' B." Conforme [6, p. 97].
• "Se r ,A f- B, onde, na dedução, nenhuma aplicação de Gen 1 em urna
fórmula que dependa de A tem como sua variável quantificada uma vari-
ávcllivre em A, então r f- A--)' B." Conforme [7, p. 63].
Neste trabalho encontramos formulações para o Teorema da Dedução
que superam os problemas citados, em urna generalização abrangendo um
amplo espectro de lógicas.

2. Variação, Dependência e Sustentação


Deste ponto em diante, consideramos C um cálculo axiomático, a.,f3;y fór-
mulas em C, e r,s,ç coleções de fórmulas em C; as mesmas convenções
continuam valendo se usarmos os sinais citados acrescidos de índices ou
plicas.
Pré-Definição 2.1: Para cada aplicação de uma regra de inferência r em C,
consideramos como previamente conhecidos os objetos variantes em C
desta aplicação. Se r é uma regra em C cujas aplicações não possuem obje-
tos variantes, dizemos que r é uma regra constante em C, caso contrário
dizemos que r é uma regra variante em C. Dizemos que o é um objeto vari-
ante em C se existe uma aplicação de uma regra em C tal que o é mn objeto
variante desta aplicação. Consideramos também como previamente conheci-
do quando um objeto variante o é livre em urna dada fórmula a.; e quando a. está

1
Gen é a regra de generalização para a quantificação universal, adotada
em [7].
A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos 63

no escopo de o. Se C é um dos cálculos quantificacionais definidos neste


trabalho, antecipamos que toda variável em C é um objeto variante em C.
As seguintes condições adicionais devem ser cumpridas:
• o número de objetos variantes de toda aplicação de alguma regra variante
em C é finito e não vazio:
• todo objeto variante de uma aplicação de regra variante não é livre na
conseqüência desta aplicação.
Exemplo 2.2: Na prática, encontramos os seguintes objetos variantes:
• variáveis usadas na quantificação universal;
O Exemplo: x é um objeto variante da aplicação
. l vxa
-.!f--
da regra da ge-
nera lização uruversa :
• variável "oculta" usada na introdução de conectivos associados a modali-
dades tais como necessidade, plausibilidade cética [2, capítulo 5], etc.; a

;a.
mesma pode ser indicada pelo próprio sinal introduzido pela regra;
O Exemplo: "n" é o objeto variante da regra

Definicão 2.3: Seja V = (a••... ,<X.n) uma demonstração em C. Dizemos


que O.i é relevante para a.j em 'D (i,j E {l, ... ,n}) se uma das seguintes con-
dições for cumprida:
• i = j e a.j é justificado em V como uma premissa;
• a J é justificado em V como uma conseqüência de uma aplicação
f3t,~,~p de uma regra em C e existe uma hipótese da aplicação J3k
(k E { 1, ... ,p}) tal que a.i é relevante para J3k em V.
Definição 2.4: Dizemos que uma demonstração V em C depende de uma
coleção1t de objetos variantes se 1t contém a coleção dos objetos variantes
o de aplicações de regras em V possuindo alguma hipótese na qual o seja
livre tal que há uma fónnula, justificada em V como uma premissa, na qual
o também seja livre, relevante em V para esta hipótese. Se existir uma de-
monstração em C de a a partir de r tal que esta dependa de 'V; dizemos que
a. depende de 1t a partir de r em C, e notamos isto por r ft- a. Se
"TY = {q, ... , ~} e D~
lY..
1, DOtamos r fC a. também por r
I~ , ,On
C a. ...
Se 1t = 0, dizemos que V é uma demonstração invariante em C. Se a. de-
pende de 0 a partir de r em C, dizemos que a é uma conseqaência invari-
ante de r em c.
64 Artlwr Buchsbaum e Tarcisio Pequeno

Teorema 2.5: Uma fórmula ex depende de "Y a partir de r em C se, e so-


mente se, pelo menos uma das seguintes condições for cumprida:
• ex é um axioma de C;
• ex E r ;
• existe urna aplicação ex•. -~,<x.n de uma regra em C tal que
r ft- a. 1, . . . ,r ft- <Xn e, para todo objeto variante o desta aplicação tal
que o ~ Y e para todo <X.i (1 ~ i ~o), se o é livre em <x.j, então existe
r ' ç; r tal que o não é livre em r · e r' Jf-a.j.
Se "Y = 0 , podemos substituir a terceira cláusula pela seguinte condição:
• existe uma aplicação de uma regra a.,, .~,<X.n em C, tal que
r ~ <X.t. . •. ,r ~ <X.n e, para todo objeto variante o desta aplicação e
para todo <X.i (I ~ i ~o), se o é livre em <X.i, então existe r ' ç r tal que
o não é livre em r· c r· ~ <l.j.
Exemplo 2.6: Em um cálculo axiomático aberto possuindo as regras da ge-
neralização universal c da necessidade, temos os seguintes exemplos de de-
pendência:
p(x,y) ~Vx\iy p(x,y);
px~ OV'xpx.

Teorema 2.7: As seguintes propriedades são válidas para a relação" ft-":


(i) se existe uma demonstração 'D em C de a. a partir de r cuja coleção de
objetos variantes de aplicações de regras de C em 'D é 'V,
então r Jf a.;
(ü) ft- a. então r h: a.;
se r
(üi) se r h: a., então existe uma coleção "Y de objetos variantes tal que
r ft- a.;
(iv) h: a. sss ~a.:
(v) se r ft- a. e Y ç; Y', então r ~ a.;
(vi) se r Jt- <x. e r ç; r', então r' Jf ex.;
(vii) se r Jf a , então existe "Y'ç "Ytal que "Y' é finito e r Jf a.;
(vüi) se r Jf <X., então existe r 'ç r tal que r· é finito e r·Jf a.;
(ix) se r Jf a. e, para cada o 1-v, o não é livre em r, então r I"\:"W a.;
E
A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos 65

{
•r~a
(x) se * para cada o E W, existe r· ç r tal que o não é livre em r '
e r'lf u.
então f~ a.

Teorema 2.8: As seguintes asserções não são válidas para a relação " J-t-":
L]_ ~ f Qf_ . _ ~~ v... v ~ v tv A
• se r rc- a~, ... ,r rc- an, \<X.J , ... ,an} rc-13. então r c ...,;
* r lf a~, ... ,r J-t- ap
.....
l '
~ ~
* {ar, ... ,ap} c 13
• se *para todo i E {l, ... ,n} e para todoj e {l, ... ,p}, se OJ e;Y
e Oj é livre em a j,então existe r ' ç r tal que OJ não é livre em r '
e r ' ft-aJ

então r J-t- 13.


Prova:
Seja C um cálculo cujos axiomas são dados pelos esquemas "a ~ a v 13"
e "V'x a~ a(xit)", e cujas regras de inferência são a, a.l3~ 13 e V';a ,
de modo que a primeira é uma regra constante e a segunda é uma regra vari-
ante cujo objeto variante de cada aplicação é a variável quantificada corres-
pondente.

Temos que {{V'y ~(y,z), Q(y,z) ~ Ry} ~ Ry , contudo não é verdade


Ry ~ V'z (Ry v Sz)

que {V'y Q(y,z), Q(y,z) ~ Ry} ~ V'z (Ry v Sz)}, daí temos um contrae-
xcmplo para a primeira proposição.
{ V'y Q(y,.z), V'y (Q(y,z) ~ Ry)} ~ Ry
Da mesma forma, temos que { R 1.1'_ ""' '"'- R S , todavia
Jl rc- vy w. ( J1 v z)

não é verdade que {V'y Q(y,z), V'y Q(y,z) ~ Ry} ~ V'yV'z (Ry v Sz)}, daí
temos um contraexemplo para a segunda proposição.

Definicão 2. 9: Dizemos que uma demonstração 'D em C é sustentada por
uma coleção Y de objetos variantes se Y contém a coleção de objetos vari-
66 Arthur Buchsbaum e Tarcisio Pequeno

antes de aplicações de regras em 'D tais que, para cada conclusão de uma
destas aplicações, há urna premissa relevante para esta em 'D. Se existir uma
demonstração em C de a a partir de r tal que esta seja sustentada
por 'Y, dizemos que a é sustentada p or 'V a partir de r em C, e notamos
isto por r I~ <X.. Se )r= { ~ ' .. . ' l\t} e D ~ 1, notamos r I~ (X. também por
'D
r 11 Ot •••• ,Or, "\, .
c · a . Se ..- = 0, dtzernos que é uma demonstração estável em
C. Se a é sustentada por 0 em C, dizemos que a é urna conseqüência está-
vel de r em C.
Teorema 2.10: Se 'V é uma coleção de objetos variantes em C, a é susten-
tada por 'V a partir de r em C se, e somente se, pelo menos urna das se-
guintes cláusulas for cumprida:
• a é um axioma de C;
• a e r;
• existe uma aplicação <X.t, .~,<X.n de uma regra em C tal que
r ~~ a~> ... ,r ~~ <X.n e, se existe um objeto variante o desta aplicação
tal que o E 'V, então h: <X.t. . •. , h: <X.n·
Se 'V= 0, podemos substituir a terceira cláusula acima pela seguinte condi-
ção:
• existe uma aplicação <X.t, ·~,<X.n de urna regra em C tal que
r ~~ a 1, . .. ,r ~~ <X.n e, se existe um objeto variante o desta aplicação,
então h: a 1, .. . , h: <X.n·
Exemplo 2.11: Em um cálculo axiomático aberto possuindo as regras da
generalização e da necessidade, temos o seguinte exemplo de sustentação:
Opxl~ 0\fy Opx.

Teorema 2.12: As seguintes propriedades são válidas para a relação " ~~ ":
(i) se existe uma demonstração 'D em C de a a partir de r cuja coleção
de objetos variantes de aplicações de regras de C em 'D é 'Y,
então r ~~ a ;

(ü) se r ~~ a , então r h: a;
(iii) se r h: a , então existe uma coleção 'V de objetos variantes tal que
A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abenos 67

rlft-a;
(iv) h: ex. sss ~~ ex.:
(v) se r IJf a e 'V ç 'V', então r IFc-a;
(vi) se r 1ft- ex. cr ç r ', então r'llf ex.;
(vü) se r 1ft- a, então existe 'V'ç 'V tal que 'V' é finito e r lffa;
(vili) se r 1ft- a , então existe r'ç r tal que r' é finito e r ' 1ft- ex.;
.
(IX) r ll_l ll_]h_
Se fCat, ... ,f fC a n, {at, ... ,CX.n} ~~A
fC ,_..,então r ~~ ~ v ... vC"" v 'W f3 .
O teorema abaixo descreve uma forma de expansão para a relação " em ft-"
um cálculo genérico.

Teorema 2.13: Se r LX_c,


17'""" <X.t , ••• ,r
então r
I "\'J v ...v "" v 'W
c
A
,.....

Lema 2.14: Se r lrf ex., então r ft- a.


Prova:
Se a é axioma de C ou a e r, não há o que provar.
Suponhamos então há uma aplicação CX.t,-~,an de uma regra de C preen-
chendo as condições do teorema 2.10. Por hipótese de indução, temos que
r ft- cx.~, ...,r J-t- an. Dado um objeto variante o desta aplicação tal que
o e 'V, temos que h: a 1 , •.• , h: an, e daí h: ex., o que é, segundo o teore-
ma 2.7, uma condição suficiente para concluirmos que r J-t- a .

3. Cálculos Axiomáticos Especiais

Definição 3.1: Um cálculo C é dito semiestáve/ se as seguintes condições


forem válidas:
• toda regra variante de C é unária, o seu dominio é a coleção de todas as
fórmulas em C, e cada aplicação da mesma possui exatamente um objeto
variante;
• para cada aplicação ~· de uma regra variante em C, se o seu objeto vari-
ante não é livre em a', então cx.' ~~ cx.;
68 Arthur Buchsbaum e Tarcisio Pequeno

• para cada aplicação ai, ·;·an de uma regra constante em C, se


«i, ...•~, e1.' são respectivamente conclusões de aplicações de uma regra
variante a partir de a" ... ,an, o. usando os mesmos objetos variantes, en-
tão ai, ... ,a~ ~~ a'.

Lema 3.2: Se C é semiestável er ~~ «, então, para toda aplicação :, de


uma regra variante em C, se o seu objeto variante não for livre em r ,
ri~ a·.
Prova: é semelhante à prova do lema 3 .11.

Teorema 3.3: Se C é scmicstávcl, então r ~a sss r ~~ a.


Prova: é semelhante à prova do teorema 3.12.

Teorema 3.4: Se C é semiestávcl. então " I~· possui a seguinte proprie-


dade adicional:

* r l~ aJ, ... ,r j~«p

l
•... ,0.,
1
,~
• se * {o.t·····O,} c P
*paratodo i E {l, ... ,n}eparatodoj E {l, ... ,p}, se,é livreemaJ,
então existe r' ç r tal que Dj não é livre em r' e r ' ~ aJ

entãof j~p.
Prova: é semelhante à prova do teorema 3. 13.

Corolário 3.5: Se C é scmiestável, então valem as seguintes propriedades


adicionais para a relação"~":
• ser ~ a . .....r ~ap, {a., ... ,ap} ~fj, cntãof ~f3;
*r ~ a.., ... ,r ~ a p

l
1 ~ •... ,Ot,
• se * {«t , ... ,a,} 1 c B
* para todo i E { 1, ... ,o } e para todo j E { 1, ... ,p }, se Of é livre em a J,
então existe r' ç r tal que Oj não é livre em r ' c r' ~ a.J
então r ~ fj.
Prova: basta usar o teorema 3.3, a nona proposição do teorema 2.12 e o teo-
rema 3.4.
A Introdução da Implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos 69

Definição 3.6: Um cálculo C é dito sem ifvrte se as seguintes cláusulas fo-


rem satisfeitas:
(i) h: (J. ~ a.;
(ii) BI~ a.~ P:
(iii) para cada aplicação f3t,.i;' ~~~~ de uma regra constante de C.
{ex.~ p.,... ,a. ~ Pn} ~~a.~~~.
Teorema 3.7: As seguintes proposições são equivalentes:
(i) C é um cálculo scmifortc;
(ii) para quaisquer r e ex. tais que r é wna coleção de fórmulas em C c a. é
uma fórmula em C, r u {a.} ~~ f~ implica em r I~ a.~~.
Prova: é semelhante à prova do teorema 3 .I 6.
Definição 3.8: Um cálculo C é dito quaseforte se C é serniforte c semiestá-
vel.

Teorema 3.9: Se C é um cálculo quascforte, então ru {a.} ~f~ implica


em r ~a. ~ p.
Prova: basta usar os teoremas 3.3 e 3.7.
Definição 3.10: Um cálculo semiestável C é dito estável se este possuir a
seguinte propriedade adicional:
• para cada aplicação ~ de uma regra variante em C, onde o é o seu ob-
jeto variante, se P' e a.' são respectivamente conclusões de aplicações de
uma regra variante em C sobre p,a. usando o mesmo objeto variante,
então P' ~~ a.' .

Lema 3.11: Se C é estável c r ~~ a., então, para toda aplicação ~· de


uma regra variante em C, se o seu objeto variante não for livre em r,
r i~ ex.·.
Prova:
Se a. é um axioma de C, então h: ex., e daí h:
ex.', e portanto r ~~ a.' .
Se u. E r , então o objeto variante da aplicação considerada não é livre em a.,
e dai, como c é estável, a. I~ a.·. c portanto r 1~ a.·.
Se existe uma aplicação de uma re1:,rra constante a.•• ·;.;, .a.n em C tal que
70 Arlhur Buchsbaum e Tarcisio Pequeno

r ~ a.J, ...•r ~ <X.n.


r1Jf- a.j, ... ,r 1ff- a.;.,
temos. por hipótese de indução. que
onde a.i, ... ,cx~ são respectivamente conseqüências de
a.., ... , CJ.n pela mesma regra em que a.• é conseqüência de a.. Como C é está-
vel, temos que ui, ... ,a.~ ~~ a.', e daí r ~~ a.' .
Suponhamos então que existe uma aplicação ~ de uma regra variante de C
tal que r~~ f3, e, se o seu objeto variante não pertence a Y, então ~a..
Seja o o objeto variante de ~ . Se o ~'V, ~a., daí lc a.', e portanto
r ~~ a.•. Considere f3' conseqüência de f3 pela mesma regra em que a.' é
conseqüência de a.. Se o e Y, como f} ~~ f3', rlff-
P', e dai, como C é es-
tável temos que f3' ~~ a.', e portanto t·jJf-
a.' .

Teorema 3.12: Se C é estável, então r Jf-
a. sss r lff- a..
Prova:
Pelo lema 2.14, temos que r lff-
a. implica em r Jf- a., dai resta provar a
recíproca.
Suponhamos que r Jf- a..
Sejam 1J uma demonstração em C de a. a partir de r dependente de Y, f3 a
primeira ocorrência de uma fórmula em 1J justificada como conseqüência de
uma aplicação de regra variante f
tal que o seu objeto variante não perten-
ce a 'V e f3' depende em 1J de alguma premissa. Seja o o objeto variante
desta aplicação.
Se o não é livre em f3', então, como C é estável, temos que f3' ~~ f3, e daí,
como a ocorrência considerada de f3' precede f3 em 1J, temos que r f3', eIJf-
portanto, pela transitividade de .. IJf-... r IPc"- p.
Se o é livre em f3', então, como o ~ 'Y, existe r' ç; r tal que o não é livre
em r• r'Jlf
e f3', e daí, como C é estável e pelo lema 3.11, r'IJf-
f3, e
portanto r lff- f3.
Em qualquer caso, existe uma demonstração VJJ em C de f3 a partir de r
sustentada por 'Y. Substituindo a ocorrência considerada de f3 em 1J por
Vp , obtemos, dado 1J, uma demonstração em C de a. a partir de r possuin-
do uma aplicação de regra variante a menos cujo objeto variante não perten-
A lntroduçilo da lmplicaçilo em Cálculos Axiomáticos Abertos 71

ce a Y e cuja hipótese depende de alguma premissa. Repetindo o mesmo


processo um número finito de vezes, obtemos uma demonstração em C de a.
a partir de r sustentada por Y, ou seja, r I~ a..

Teorema 3.13: Se C é estável, então" ~~ " possui a seguinte propriedade
adicional:

* rJ~a. .....,rUfa.P
,o,.
Oj,...
* {a.., ...,Ct.p} 11 c p
• se *para todo i E {l, ... ,o} c para todo j E {l, ... ,p}, se Oj e )f
[ e Oj é livre em Ct.J, então existe r ' ç r tal que Oj não é livre em r '
e r· J~a.J
entãor J~p.
Prova:
Sejam V 1 , . . . , Vp respectivamente demonstrações em C de a.~. ... ,a.p a partir
de r sustentadas por Y, e seja 'E uma demonstração de p a partir de
{a.h ... ,a.p} sustentada por {Ot , ... ,O,.}. Concatenando 1J1, ... , Vp, 'E, obtemos
uma demonstração V de p em C a partir de r.
Seja y a primeira ocorrência de uma fórmula em 1J justificada como conse-
qüência de uma aplicação ~· de regra variante, tal que o seu objeto variante
não pertence a ')I e y' depende em 'D de algum· elemento de r. Como
V 1, ... ,Vp são demonstrações sustentadas por Y, temos que a ocorrência
considerada de y' figura em 'E, c daí, considerando o o objeto variante da
aplicação, temos que o E { q , ... , o,.}.
S . {.S = {Ct.J I j E {l, ... ,p} c o é livre em Ct.J}
eJam ç= {Ct.J 1j E {l, ... ,p} e o não é livre em Ct.J}
É fácil verificar que existe r · finito tal que r ' ç r, o não é livre em r · e,
para todo 8 E .S, r· I!Fõ, e portanto, pela construção de Ç,
r · v c; I!Fa.~ •... ,r· v c; lffa.p. e o não é livre em r· v c;.
Como a ocorrência considerada de y' precede y em 'D, temos que
{a.l·····Ct.p} lrcr·. e dai, pela transitividade de "lfF", temos que
72 Arthur Buchsbarmr e Tarcisio Pequeno

r'uç l~r·. e portanto, pelo lema 3.11 , r 'u çj~y.


Para cada 8 e r' u Ç, temos que r ~~ 8, e dai, novamente pela transitivida-
de de " ~~ ", r l~r- Ou seja, existe uma demonstração 'Dy
em C de y a partir de r sustentada por 'V. Substituindo a ocorrência consi-
derada de y em 'D por 'Dy, temos uma demonstração 'D' em C de p a partir
de r possuindo uma aplicação a menos de uma regra variante cujo objeto
variante não pertence a 'V e cuja hipótese dependa de alguma premissa. Re-
petindo o mesmo processo um número finito de vezes, obtemos uma de-
monstração em C de p a partir de r sustentada por 'Y, ou seja,
rlrf- p.

Corolário 3. 14: Se C é estável, então valem as seguintes propriedades adi-
cionais para a relação"~":

• se r L]_
rc Cl t, ... ,r ili_
rc Clp, {Clt, ... ,Clp} rc p, então r
l}f_ I~ v ... v~ v1V A-,
p

* r ~ o.1, ... ,r ~ o.p


Io,_,c•••• o.;

l
* {o.l, ... ,Clp} p
• se *paratodoie{ l , ... ,n} eparatodoj e {l ,... , p} , seo.~'V
e Ot é.Vvre em O.J, então existe r ' ç r tal que Ot não é livre em r '
e r' ~ Clj

então r~ j3.
Prova: basta usar o teorema 3.12, a nona proposição do teorema 2.12
e o teorema 3.13.
Defmicão 3. 15: Um cálculo semiforte C é dito forte se este possuir a se-
guinte propriedade adicional:
• para cada aplicação Ptp ..
,Pn de uma regra variante de C,
{o.~ Pt. ... ,o. ~ Pn} lrf- o.~ p, onde 'V é a coleção de objetos varian-
tes da aplicação e nenhum elemento de 'V é livre em o..
Teorema 3.16: As seguintes proposições são equivalentes:
(i) C é um cálculo forte;
A lmroduçiJo da lmpllcaçiJo 11m Cálcu/(u A.rJomátlco1 Abertos 73

"' {ru lfe- ~Y,


{ex.}
(li) para quaisquer l c a, 80 paro cndn 0 C! 0 n4o é livre 0111 ex.
,cntlJo
ri~ ex~ f~.
Prova do (l) implica (U):
Suponhamos quo c ó um cálculo forte, r u .(o.} Uf
~c, para cada o . 'v,
o nllo é livre em o.
Se ~ ó axioma de C, cnUio h; fl, e dllJ, pela cláUJula (il) da deOnlçlo'i.G,
~ ex.~ 1~. c portanto r I~ o.~ j3.
Se 13 C! r, cntao r I~ ~. c dai. pcln. cláusula (H) da dc11nlçtlo 3. 16,
r lfi- a ... ~ .
Se ~ • ex, crltao, pela cláusuln (I) da dcfiniç!o 3. 16, ~ ex._., "'• o portanto
rlfi-a-+ ~.
Se existe wna aplicaçao l~ .... ,f~n de wna rcsra de C tal que
r u (o. drt 11,, ... ,r v <a.>1~ ~~ temos, por hipótese de tnduçao, que
r IJf o._. ~~ · ....r ~~ ex-+ ~n· Se existe um objeto variante desta aplica·
ç!lo quo nao pertence a Y, cntao, conforme o teorema 2. 10, ~ ~. e dai,
novamente pela cláusula (li) dD dcflnlçao 3.6. ~ex.-+~~ c, portanto,
r ~~ o.-+~. Se todo objeto variante desta apllcaçllo pertence a Y, cntllo,
como C é forte, concluhuos quo r ~~ <x. -+ ~.
Prova do (ii) implica (i):
Suponhamos (li).
Como o. ~ a, temos que ~ <x. -+ ex..
Como {~.a} ~~~ temos que~ I~ ex.-+~.
Finalmente, seja ~ •.~.r~n uma apücaçllo de uma regra de C cuja coleçllo
de objetos variantes é Y, e o. uma fórmula de C onde nenhum elemento de
'V é livre.
Temos que
{ex. -+ f.it. ... ,a -+ f3n,C.X.} ~~ ~" ... , {<X. -+ Pt. .. .,ex. -+ Pa,a} ~~ Pn,
e dai, como {~~o ... ,Pn} Uf p, temos que {a-+ P11 ... ,a -+ Pn,a} ~~ p, e
portanto {a-+ Pt.····cx.-+ Pn} ~~ ex.-+ p.

74 Artlwr Buchsbaum e Tarcisio Pequeno

Definição 3. 17: Um cálculo C é dito superforte se C é forte e estável.


· {C é um cálculo supcrforte
Teorema 3.18: Se r u {a.} pJf , então r Jf a. -+ p.
para cada o e Y, o não é livre em a.
Prova: basta usar os teoremas 3. 16 e 3. 12.
Definição 3.19: Notamos por C[r] o cálculo aplicado obtido de C acres-
centando r como postulado. Se r é um conjunto unitário da fonna {a.}, en-
tão notamos C[r] também por C[a.].
Teorema 3.20: As seguintes asserções são válidas para C[r] :
• r'u r rc a. sss r' IcrrJ a.;
• r· u r l-E- a. sss r· IcfrJ a.;

• se r' u r Jf a.:então r ' IcYrJ a.;


• se r' l cYrJ a., então exist~ 'W 2 Y tal que r'u r ~ a.;
• se r·u rUfa., então r · llcYr1 a.;
• se r·llcYr~ a., entao existe )y.2., tal que r ·u r 1~ a.;
• se C é seaúestável, então C[r] é scmiestável;
• se C é semiforte, então C [r] é semiforte;
• se C é quaseforte, então C[r] é quaseforte;
• se C é estável, então C[r] é estável;
• se C é forte, então C[r] é forte;
• se C é superforte, então C[r] é superforte.
Teorema 3.21: C[r] possui as seguintes propriedades para a introdução da
implicação:
• se C é semiforte e r' u {a.} llc~rJ ~. então r' llc~rl a.-+ P;
• se C é quasefortc e r' u {a.} c r i If f3, então r' l cfri a. -+ P;

• se C é forte e {r' u {a.} llcYrJ p, ,. 'então r ' llcYrJ a.-+ J3;


para cada o e Y, o não e hvre em a.

• se
·u {a.} ~r
c é superforte e {rpara c r1
p, . LJ::_
' . 'então r rarra.-+ p.
cada o e Y, o não e hvre em a.
A Introdução da implicação em Cálculos Axiomáticos Abertos 75

4. Conclusões
Encontramos formulações otimizadas do Teorema da Dedução para uma
ampla classe de cálculos axiomáticos abertos, as quais superam todos os
problemas que inicialmente apontamos, para uma ampla classe de lógicas,
em todo um espectro de possíveis restrições em seu funcionamento dedutivo.
Desde os cálculos semiestáveis e semifortes, até os cálculos superfortes.
A formulação mais fraca da Teorema da Dedução dá-se para os cálculos
quasefortcs. Um exemplo de cálculo deste gênero pode ser visto em [2],
p. 133, o qual é uma tradução para uma linguagem de primeira ordem da
Lógica da Dedução Cética, definida no mesmo trabalho, no capítulo 5. Este
cálculo foi essencial para a prova de completude desta lógica.
A formulação mais fort.e do mesmo teorema dá-se para os cálculos su-
perfortes, os quais constituem a grande maioria dos cálculos axiomáticos
abertos, concernentes à implicação material, encontrados na literatura.
Nossa motivação inicial foi a busca de uma base conceitual para uma prova
de completude abstrata com respeito a uma classe abrangente ·de cálculos, o
que foi realizado em [2), pp. 72-88. Uma exposição concisa desta prova será
objeto de um futuro artigo. ·

Referências
[1) Bell, J. L. & Machover, M. 1977. A Course in Mathematical Logic.
North-Holland Publishing Company.
(2] Buchsbaum, Arthur. 1995. Lógicas da Inconsistência e da Jncomp/etu-
de: Semântica e Axiomática. Tese de Doutorado, Pontificia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
[3] van Dalen, D. 1989. Logic and Stntcture. Springer-Verlag.
[4] Ebbinghaus, H. D. & Flum, J. & Thomas, W. 1984. Mathematical Logic.
Springer-Verlag.
[5] Enderton, Herbert B. 1972. A Mathematical Jntroduction to Logic. Aca-
dcmic Press.
[6] K.Jccne, Stephen Cole. 1971. Introduction to Metamathematics, North-
Holland Publishing Company.
[7] Mendelson, Elliot. 1979., Introduction to Mathematical Logic, D. Van
Nostrand Company.
[8] Prawitz, Dag. 1965. Natural Deduction -A Proof-Theoretica/ Study,
Almqvist & Wiksell.
[9] Shoenfield, J. R. 1967. Mathematical Logic, Addison-Wesley Publishing
Company.
MODALIDADES EM LÓGICAS DE CONHECIMENTO E CRENÇA

CEZAR A. MORTARl
Universidade Federal de Santa Cararina

1. Introdução

Neste artigo apresentamos resultados com respeito ao número de modalidades


distintas (í.e., não-equivalentes) em algumas lógicas proposicionais de conhe-
cimento e crença. Usaremos uma linguagem proposicional que também inclui
operadores para saber que e acreditar que. Letras minúsculas (p, q, ... ) serão
usadas como variáveis proposicionais, e letras gregac; <p, llf, . .. , como variáveis
sintáticas para fórmulas. Letras gregac; maiúsculas r . .ó.,. . . representarão con-
juntos de fórmulas. Dado que vamos nos limitar ao cac;o de um agente único,
K <p e 8<p serão usadas como abreviações de KA <p ('o agente A sabe que <p')
e 8AlfJ ('o agente A acredita que <p'), respectivamente. Os operadores ..., e -4
são introduzidos como primitivos; "• v, and H podem ser definidos através
deles do modo usual. Além disso, para preservar algumas similaridades com
as lógicas modais aléticas, vamos introduzir ac; seguintes abreviações:
Def M. M<p =c~r•K•<p
Def P. P<p =ctt -,8-,<p
Uma possível tradução de M<p é 'é possível, tanto quanto o agente A saiba, que
<p'; e, de P<p, 'é compaúvel com tudo o que A acredita, que <p' (cf. Hintikka
1962, p. 3).
Vamos iniciar considerando uma lógica epistêmica básica, que chamare-
mos de X, e que tem os seguintes axiomas e regras de inferência:
PC. Todas as tautologias clássicas.
K1c.K(<p -4 llf) -4 (K<p -4 Kllf)
T. K<p-4<p
Kb. 8( <p -4 llf) -4 (8<p -4 8llf)
D. 8<p -4 -,B-,<p
M . K<p -48<p
MP. 1- <p, 1- <p -4 li' I 1- li'

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analltica. Florianópolis: NEL, pp. 76-101.
Modalidades em l6gicas de conhecimento e crença 77

RK. 1-cp I 1--Kcp


Além das regras de inferência primitivas MP e RK, as regra~ seguintes,
entre muitas outras, também são admissíveis em X:
RB. I- cp I I- Bcp
R*C. I- cp ~ 'I' I I-*({!~ *'I'· onde* E {K,B.P,M}
R*E. I- cp H 'I' I I-*({! H *V', onde* E {K,B,P,M}
Vamos agora considerar rapidamente a semântica padrão para X (c f. Meyer
& van der Hoek 1995, Fagin et al. 1995, por exemplo).

Definição 1. Um modelo de mundos possíveis M para X é um temo (S,/C,B),


onde:
(a) S::~=0;
(b) cada sE S ~uma atribuição de valores de verdade às fórmulas atómicas;
(c) Bç;JCç;,SxS;
(d) JC é reflexiva;
(e) B é serial.

O conjunto S pode ser entendido como um conjunto não-vazio de "mundos",


ou "pontos", ou "estados". Para simplificar um pouco as coisa~. eles estãó
sendo aqui caracterizados como atribuições de valores de verdade às variáveis
proposicionais. A relação B é a relação de acessibilidade para crença, e JC, para
conhecimento.
Podemos agora definir, para cada fórmula cp, em que condições cp é ver-
dadeira em um modelo Me em um estados de M (o que denotaremos por
(M.s) I= cp):

Definição 2. Seja M = (S, JC, B) um modelo, e s um elemento de S:

i. (M,s) I= cp sse s(cp) = 1, se cp for uma variável proposicional;


ii. (M,s) I= -,cp sse (M,s)Y. cp;
iii. (M,s) I= <p ~ 'I' sse (M,s) Y. <p ou (M,s) I= 'lf;
iv. (M,s) I= K<p sse para cada tE S tal que JCst, (M,t) I= <p;
v. (M,s) I= B<p sse para cada 1 E S tal que Bst, (M,t) I= (/).

As definições semânticas usuais são como segue: uma fórmula cp é verda-


deira em um modelo M (i.e., M I= cp) se, para cada sem M, (M,s) I= cp. Dizemos
que ({J é válida (I= cp) se, para cada modelo M, M I= ({'. Se r é um conjunto
de fórmulas, M I= r se, para cada 'I' E r, M I= 'I'· Finalmente, <pé uma con-
seqü~ncia semdntica de um conjunto r de fórmulas se, para cada M tal que
78 Cezar A. Monari

M I= r, temos que M I= <p. Com estas definições podemos facilmente provar


teoremas de correção e completude (ver, por exemplo, Lenzen 1980, Fagin et
a/. 1995).
Vamos agora considerar brevemente as razões pelac; quais X está sendo
tomada como a lógica básica de conhecimento e crença. Em primeiro lugar,
neste artigo estamos fazendo a suposição de que os agentes são logicamen-
te OT}iscientes, i.e., eles sabem todac; as conseqüências lógicas de seu conhe-
cimento. (Esta propriedade é algumas vezes chamada fecho dedutivo.) Os
agentes são também logicamente onicredentes, i.e., eles acreditam em todac; as
conseqüências lógicas de suac; crenças.
Estas duas propriedades são, supostamente, uma Coisa Ruim, porque as
pessoas não são logicamente oniscientes; há ~ários contra-exemplos. Contu-
do, pode-se argumentar razoavelmente em favor da onisciência c onicredência
lógicas. Por um lado, podemos considerar que lógicas são prescritivas, ao invés
de descritivas: assim, a onisciência lógica não é realmente um defeito, mac;
um objetivo a ser atingido pelo raciocinador virtuoso. Ou podemos defender
que lógicas como X estão formalizando as noções de conhecimento imp/feito e
crença implícita (cf. Levesque 1984, Lakemeyer 1986). Finalmente, há muitas
aplicações em Inteligência Artificial, por exemplo, para lógicas oniscientes (cf.
Fagin et ai. 1995). (Não obstante, planejar sistemas lógicos que não requeiram
a onisciência lógica é muito desejável. Ver Fagin et ai. 1995, cap. 9, onde
algumas alternativas são apresentadas.)
Assim, por ora teremos onisciência e onicredência lógicas, o que significa
que Kt, Kb e RK são válidos. Se adicionarmos apenas estes postulados à lógica
proposicional clássica (PC, MP), obteremos um sistema bi-modal que poderia
ser chamado K-K. Contudo, esta caracterização de conhecimento e crença é
muito fraca. Devemos ter ao menos T para conhecimento- correspondendo à
idéia de que, se uma proposição é conhecida, então ela é verdadeira Em outras
palavras, que não se pode saber proposições falsas. Por outro lado, um agente
pode acreditar em tudo o que quiser - ainda que talvez obedecendo a algumas
restrições, como não poder acreditar em contradições. Esta é a razão pela qual
temos D , o axioma característico da crença. Estamos postulando, portanto, que
agentes não possam ter crençac; contraditórias. (É claro, por outro lado, que
podemos rejeitar D e trabalhar com o subsistema de X resultante como a lógica
epistêmica básica.)

2. Axiomas com os quais estender X

Nesta seção vamos considerar o problema de estender X pela adição de um ou


mais axiomas novos. Obviamente, a primeira coisa a fazer é identificar que
Modalidades em /6gicas de conhecimento e crença 79

novos axiomas estão disponíveis.


As lógicas epistêmicac; são usualmente construídas por analogia a lógic~
modrus aléticas. Assim, vários axiomas conhecidos na literatura sobre lógica
moda! são simplesmente transportados para a lógica epistêmka, substituindo-
se O por K, digamos. Para dar alguns exemplos, Oq> -4 OOq>, o axiomacarac-
terísticodeS4, toma-seKq> -4 KKq>, ou Bq> -4 BBq>, enquanto que Oq> -4 DOq>
(SS) toma-se -,Kq> -4 K -,Kq>, ou -,Bq> ---7 8-.Bq>. Muitos destes axiomas têm
a forma x"'q> -4 y" q>, onde xm e yn são modaJjdades, i.e., seqüências de opera-
dores unários, cujo comprimento é, respectivamente, m e n.
Uma das coisas que podemos fazer, obviamente, é testar fórmulas tendo es-
ta estrutura para ver se são aceitáveis como axiomas. Assim, vamos gerar can-
didatos a axioma dando valores param e n no esquema xmq> -4 y"q>. Faremos,
apenas nesta seção, a restrição adicional de que x"' e y" sejam modaJjdades
afirmativas, ou seja, cujos únicos operadores são K, B, M, P.
Começamos com modalidades de comprimento zero: isto corresponde a
x0 q> -4 y0 q>, que é simplesmente q> -4 q> e já um teorema. A seguir temos
as fórmulas 1-0 (x1 q> -4 y0 q>): há apenas quatro delas. Elas.são: Kq> -4 q>,
Bq> -4 q>, Pq> -4 q>, e Mq> -4 q>. A primeira é nosso axioma T; as outras três
fórmuJac;, claro, não são intuitivamente válidas, e não se qualificam. portanto,
como axiomas aceitáveis.
(Um aviso a respeito de intuições. Obviamente, ao se construir algum sis-
tema lógico - como para a crença, por exemplo - temos que fazer algum
tipo de idealização; isso já acontece na lógica proposicional clássica. A razão
primafacie para rejeitar, digamos, Bq> ---7 q>- a saber, que ela vai contra nos-
sas intuições - deve ser examinada com algum cuidado. Ocorre com muita
freqüência que noções tidas intuitivas e "obviamente verdadeiras" acabam por
mostrar-se errôneas. Contudo, há provavelmente uma gradação de "aceitabi-
lidade"; assim, devemos prosseguir usando algum senso comum. Algumas
fórmulas serão totalmente inaceitáveis - com elas não há problema. Outras
serão inteiramente aceitáveis -nenhum problema aqui também. Sobre os ca-
sos difíceis pode-se argumentar, e aceitar - ou rejeitar - provisoriamente.
Como com relação a qualquer coisa, o tempo, ou um argumento melhor, dirá.)
As fórmulas 0-1 , claro, (x0q> -4 y 1 q>), são apenas as contrapositivas das
1-0. q> -4 Mq> é um teorema, seguindo-se facilmente de T. As demais, nova-
mente, não são intuitivamente válidas.
Temos a seguir x1 q> -4 y1 q>. Há 16 destas fórmulas, e nós as encontramos
na Tabela 1:
Esta é uma maneira compacta de apresentar Kq>·-4 Kq>, Kq> ---7 Bq>, e ac;sim
por diante. Algumas das fórmulas são classicamente válidas, como K q> ---7 K q>;
e algumas são teoremas de X - estac; estão assinaladas com '•', com exceção
80 CtJf!lr A. Mortarl

~ Klp Bcp Plp Mcp


Klp • M D• •
Hcp - • •
Plp - - • •
Mip - - - •

dos nos808 axiomas M e D (também teoremas de X, 6 claro). Plnalmcnte, aJ.


gumas 8Ao con11ideradas inválidas, como Hcp ~ Klp, e 8!J fórmulas que o acar-
retam: Pip ~ Klp e Mip ~ Klp. Estas estao as11inalada8 com '- '. Pcp ~ Hlp
também é inaceitável. pois, CMO contrário, terlamos Bcp ~ Plp. Por razOei! so-
melhantell, Mli' ~ Blp eMli' ~ Plp nao sAo intuitivamente válidas. No final du
conta.'!, nada de novo por aqui.
Vamos entao passar às fórmulas da forma '!f.0lp ~ y2cp, ou 8Cja, li' ~ yzlp.
Temos outra vez 16 tais fórmulas, que podem ser vJstas na Tobela 2.

I; IK~lp IB~lp IP~lp IM:p IK~p IB~ IP~p IM~cp I


Tabela 2: As 16 fónnulaslp ~ y2((J
Doze fórmulas (novamente, aquelas marcadas com '- ') sfto claramente Ina-
ceitáveis. Por exemplo, nfto deveria absolutamente seguir-lle, da verdade de lp,
que um agente sabe que acredita que cp -ele poderia igualmente acreditar que
-,cp, ignorando completamente que li' 6 verdadeira. A mesma coisa pode ser
dita a respeito das outras fórmulas. li' ~ MM ((J, por outro lado, é um teorema
de X (é a contrapositiva de KKlp ~ qJ), e é o dnicocaso onde faz sentido lnforir
conhecimento a partir da verdade de alguma proposiç!o cp: a saber, que nAo é
o caso que um agente sabe que sabe que -,cp, Em outras palavras, tpAKK-,tp
nlio pode ser o caso- caso contrário, os agentes acabariam sabendo -,tp, e nDo
estamos supondo que eles possam saber falsidades.
As três fórmulas r~m~ID~~çcnu;~, !1". Bb c 8 111 , agora. silo casos mais difíceis:
elaiJ sAo inválida.'i, ffiM, em ql'fl ccrtg !!Ç~tido, "menos i!'lV!1fJdos" que as outra.'
As reta~~ Á" f\eorr~fmllm!Q ~ntr@ ~1M, em ?', sP.o
t~lf>.~/1" !
MotkzlldtJdl!s 11m lóslcas dlt conluu:lmtmto I! r.~nça 81

Yamo11 examinar Hk, l.e., <p ~ KM<p, <m, allemativarnento, <p -+ K-,K-,qJ.
(Esta fórrnulo corro11ponde ao Hrouwer.vche Axiom B da lógica moda! alética.)
Isso 8ignlflca que, 110 qJ é verdadeiro, enttio um ogento sabe que nAo sabe -,fP.
Ora, um agente certamento nflo sabe - nem pode saber - -,fP, mas será que
ele 11abe IHHo? Nflo necossorlrunenr.e, porque ele poderio acreditar que sabe
que -,<p: BK-,<p. Como K-,K-,({J acarreto 8-,K-,<p, este agente teria crenças
contraditória.~. o que é cxclu(do por D. Portanto esta fónnu la é claramente
Inválido: por que e11tarnos perdendo tempo discutindo-a aqui?
O problema é que nossas lnmiçOeH para aceitar/rejeitar candidatos a axio-
mas e11tllo "sintoni1.ada.1" com racioclnadorcs humanos, ainda que algo ideali-
zados. Nilo podemos aceitar o Brouwersche Axlom dizendo que, como Kk c
a onisciencia lógica, estamos apena11 formalizando conhecimento e crença im-
pHcltos. Isto nAo vai funcionar aqui: agentes nllo acreditam em contradiçOc.o;,
nem mesmo implicitamente. O que esta fórmula realmente diz, no fim das
contas, é que, 11e fP é verdadeira, entno um agente nunca vai acreditar que sabe
que -,qJ; ele nunca comer.erá um tal erro. E isto nao é mais uma idealizaçAo
razoável.
Por outro lado, na lógica modal aléúca, lógicas diferentes capturam di-
ferentes noçOes de ncce11sidade e posHibllidade - nAo poderíamos fazer um
paralelo com a presente situaçao e pretender que estamos, com um princípio
tal como Bk, modelando um diferenr.e tipo de agento?
De fato, nós podemos. A verdade é que muitoll pesquisadores em IA usam
S5 como lógica de conhecimento, da qual Bk acima é um teorema (além de
alguma.'! outras fónnula.'l problemáticas). S5 é dtil, por exemplo, para modelar
conhecimento em ambienr.es distribuidoR, e a.CJ pesROa.'l estilo conscienteR de que
11eus agentes nllo 11110 humanos (ver, e.g., Halpem & Mose11 1984, p. 1). Assim,
se J)k é válida em uma lógica que é reconhecidamente dtil, podemoR aceitá-lo
aqui como um princípio epiHt~mico. (É claro que esta é uma decisAo puramen-
te pragmática; nllo pretendemos afirmar que haja agenteHque se comportam
epistemicamente como em B.)
O dltimo caso que consideraremos ne11te artigo silo a'i fónnulas x1fP-+ y1 qJ
(e, implicitamente, x2 <p-+ y 1<p, 11uaq contra,posilivM). Temos 64 tais fónnula.'!,
que estilo apresentada.'! na Tabela 3.

-+ KK_q>_ BK<p PK<p MKtp KB({J BB<p PBqJ MB({J


Ktp 4K w WP • M~ M/} L •
Blp_ - c CP C'" p 4b y •
P<p - - - - - - - -
M<p - - - - - - - -
82 Cezar A. Monari

-4 KP<p BP<p PP<p MP<p KM<p BM<p PM<p MM<p


K<p J JP U' • • • • •
B<p PP A 4.P • R • • •
P<p Q so SP • F E • •
M<p - - - - s.t v VP •
Tabela 3: As 64 fórmulas x 1<p -4 y 2 <p

Entre estas fórmulas nós encontramos outra vez teoremas de X, assinala-


dos com '•' como anteriormente, e algumas fórmula~ inválidas ('-'). Mais
uma vez, há fórmula<; "mais inválidas" e "menos inválidas". Consideremos
M <p -4 K K <p, por exemplo: como <p ~ M <p e K K <p -4 K <p são teoremas de X,
ela tem <p -4 K <p como conseqüência. E isto é obviamente demais: não ape-
na<; são os agentes logicamente oniscientes, mas, dada uma proposição e sua
negação, eles sempre saberão qual delas é verdadeira. (Se <p é verdadeira, K <p
segue-se imediatamente. Se <pé falsa então -,<pé verdadei.ra, e temos K-,<p.)
M<p -4 KK<p, portanto, se adicionada a X causa um colapso de X na lógica
proposicional clássica, uma vez que <p H K <p passa a ser um teorema Assim,
podemos esquecê-la.
Além destes ca<;os óbvios, temos algumas fórmulas "não tão inválidas",
como M<p -4 KP<p, ou, equivalentemente, -,K<p -4 K-,B<p. Ora, esta fórmula
seguramente não é válida, porque um agente pode não saber que <p e, contu-
do, acreditar que <p, e saber disso também (KB<p). De qualquer maneira, esta
fórmula seria válida apenas em uma lógica onde K e B fossem equivalentes
(B<p -4 K <p segue-se dela). Não conseguimos ver a utilidade de uma tal lógica
- ela é a mesma coisa que a versão epistêmica de SS - mas, enfim, talvez
haja uma ontologia inteira de agentes lá fora com capacidade de memória ili-
mitada e poderosa capacidade de raciocínio. Em tais casos, a equivalência de
conhecimento e crença poderia fazer sentido. Contudo, tal situação seria mais
simplesmente modelada por uma lógica pura de conhecimento.
De volta às nossas fórmula<;, entendemos que aquelas acarretando B<p -4
K <p, e que, portanto, eliminam a distinção entre conhecimento e crença, são
inteiramente inaceitáveis como axiomas legítimos da lógica epistêmica. Há,
contudo, alguns casos fronteiriços: as fórmulas "menos inválida<;" como o
conhecido axioma característico de S5, 5* (P<p -4 KP<p ou, alternativamente,
-,K<p -4 K-,K<p). Para seres humanos, ou agentes não ideais, isto é indubita-
velmente falso (a mesma história de "podemos não saber e mesmo ao;sim acre-
ditar" vista acima). Contudo, como mencionamos, há aplicações para lógicas
contendo este axioma. Assim, apesar da invalidade (geralmente aceita) de 5*,
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença 83

vamos incluHo entre os axiomas adequados para estender X. 5* tem, contudo,


algumas conseqüências estranhas (como BK~ ~ K~) que, junto com alguns
outros princípios, vão causar problemas.
As fórmulas remanescentes na Tabela 3 (aquelas não a~sinaladas nem com
'•' nem com '- ')são aquelas que podemos, baseados em nossa intuição, ad-
mitir como novos axiomas. Estão assinaladas com rótulos como P, Q, Mb, e
assim por diante. Há 27 destes axiomas, e podemos dividi-los em dois grupos:
os não-seriais (16 fórmulas) e os seriais (11), como segue.

Axiomas não-seriais: 4*, Mk, P, W, C, Mb, 4b, 5*, Q, F, V , Sb, E, SP, A, JP


Axiomas seriais: R, PP , J, VP, WP, CP, C"', L, Y, U, 4P

Há uma razão para esta divisão: se removermos o axioma D de X, e introduzir-


mos em seu lugar qualquer um dos axioma<; seriais, digamos, J, então D será
um teorema desse novo sistema (o que não acontece se acrescentarmos um dos
axiomas não-seriais).
Para dar um exemplo, vamos mostrar como a adição de V a X-{D} per-
mite derivar D:

L K(-,p v p) ~ PP(- w v p) v
2. • PVP PC
3. K(-,pv p) 2RK
4. PP(-,pvp) 1,2PC
5. P(-,pv p)~ (-,pv p) ZPC
6. PP(-,pv p) ~ P(-,pv p) 5RPE
7. P(-,pv p) 4,6MP
8. P(-,p v p) ~ (P•pv Pp) teorema
9. PopvPp 7, 8MP
10. •Bpv•B•p 9Def. P, PC
11. Bp~•B•p 10 Def. v

(Tanto RPE quanto o teorema usado na linha 8 da demonstração acima valem


em X-{D}.)
Algumas das fórmulas na Tabela 3 são bem conhecidas na literatura, tais
como 4k, ou 5b, que caracterizam, respectivamente, a K-introspecção positi-
va, e E-introspecção negativa. Na verdade, todac; ela~ poderiam ser chamadac;
de axiomas "introspectivos"; elas representam diferentes graus de introspecção
com respeito às diferentes noções epistêm.icas. Inventamos nomes para os de-
mais axiomas, como P, Q, porque, tanto quanto sabemos, eles não têm nenhu-
ma denominação padrão. Entre eles nós encontramos, por exemplo, C - i.e.,
84 C~ar A. Monari

Brp ~ BK rp -, que é o axioma da convicção. Ou seja, ele pode ser aceito como
válido apenas se interpretannos B como convicção (crença forte), e não como
uma crença "geral", mais fraca. (Ver, p. ex., Lenzen 1980 a este respeito.)
A Figura 1 mostra as relações entre os 30 axiomas identificados até agora
(Tabelas 2 c 3).

Figura 1: Axiomas epistêmicos

O próximo passo seria considerar as fónnulas com a estrutura x2 rp ~ y2 rp.


Nilo faremos isto aqui, deixando-as para trabalhos futuros. Porém, há, de fato,
algumas fórmulas interessantes entre elas; por exemplo, MKrp ~ KMrp, que
é a versao epistêmica do axioma G da lógica moda! alética (0Drp ~ D0rp),
e considerada um princípio válido da lógica epistêmica. Por exemplo, afinna-
se que S4.2 (i.e., KT4kG) é a lógica do conhecimento (cf. Lenzen 1980). G,
contudo, terá que esperar outra oportunidade.
Quanto à semântica para os axiomas apresentados, as restrições necessárias
nas relações de acessibilidade x:, e B para obter modelos caracterizando cada
axioma podem ser facilmente obtidas através de resultados da teoria da cor-
respondência (cf. van Benthem 1984, van der Hoek 1993). À gujsa de exem-
plo, vamos apresentar aqui (Tabela 4 abaixo) apenas as restrições para alguns
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença 85

axioma<;, já que faremos uso dela<; nas demonstrações de alguns teoremas nas
próximas seções.
4Jc se X:st e X:t r, então X:sr;
4b se Bst e Btr, então Bsr;
sk se X:st e X:sr, então X:t r;
sb se Bst e Bsr, então Btr;
p se X:st e Btr, então Bsr;
c se Bst e X:tr, então Bsr;
Q se Bst e JCsr, então Brt;
v se Bst e X:sr, então X:tr;
Bk se X:st , então JCt s.
Tabela 4: Restrições nas relações de acessibilidade

3. Extensões de X

Tendo escolhido um conjunto de axiomas epistêmicos com os quais trabalhar,


deveríamos investigar agora que lógjcac; podemos obter adicionando um ou
mais destes axiomac; a X. Neste artigo, contudo, estamos interessados apenas
no número de modalidades, portanto, não vamos examinar todos os sistemas.
É claro que, se todos os axiomas fossem independentes, teríamos algo co-
mo 230 novas lógicas. Contudo, uma vez que alguns axiomas acarretam outros,
nem toda combinação de axiomas é uma nova lógica. Por exemplo, sabemos,
das lógicas modais aléticas, que Sk acarreta 4k; a<;sim, a lógica X5k4k é na
verdade simplesmente xsk. o primeiro passo, portanto, é identificar possíveis
relações de acarretamento entre pares de axiomas - o ·que foi parcialmen-
te indicado na Figura 1 acima (uma seta de um axioma x para um axioma y
significando que x acarreta y em X). Além dessas relações, temos ainda as
apresentadas na seguinte proposição, que estamos enunciando sem provar. (As
demonstrações, contudo, não são difíceis.)
Proposição 1.

1. Xu {C, VP} f- Bq> ~ Kq> 10. Xu {VP,R} f- LP


2. Xu{cP,V}f-Bq>~Kq> 11. Xu{F, V} f- Mb
3. Xu{C,BP} f- Bq> ~ Kq> 12. Xu{F, W} f- M*
4. Xu{P,W,E}f-F 13. Xu{Q,V} f- P
5. Xu{4k,F, V} f- Sk 14. Xv{C,E} f- 5b
6. Xu{Q,W,V} f-S*,P 15. Xu{P,W,V}f-Sk,Q
86 Cezar A. Monari

7. Xu{4b,Q} 1- P 16. Xu{Q,Mb} 1- M.t


8. Xu{Sb,P} 1- Q 17. Xu{P,S.t} 1- Q
9. Xu{F,C} 1- P,Q 18. Xu{C"} 1- CP

O que ( l) realmente mostra é que os axiomas C e V P - este último sendo


uma versão mais fraca de 5* - são, em certo sentido, incompatíveis. Basi-
camente, o problema surge se supomos que algum agente tem a convicção de
saber algo, sem realmente sabê-lo (Bp e • Kp). Ora, Bp gera, através de C,
BKp. Por outro lado, VP requer, de proposições que um agente não sabe, que
ele não acredite que as sabe (oKp ~ •BKp). Isso traz uma inconsistência,
pois ficamos com BKp e • BKp. É claro que esta situação nunca ocorre se
C e VP valem, justamente porque, para esta espécie de superagente, acreditar
que uma proposição é verdadeira implica que ela é mesmo verdadeira. Isto
certamente não é nada realista. Se houvesse tais agentes, não seria possível
distinguir, para eles, conhecimento e crença e, neste ca~o. não é necessário ter
dois operadores para a mesma atitude.
Pela mesma razão, (2) e (3) mostram que CP e V , e C e eh são incom-
patíveis. (CP c VP, por outro lado, não são.)
Esta incompatibilidade entre C e VP (e, assim, entre C, e s.t e V, que acar-
retam VP), junto com os outros acarretamentos listados na proposição, acima
reduz em muito o número de extensões de X. Mesmo assim, é um n6mero ba'i-
tante grande. As lógicas mais fortes que podemos ter são XQS.t e XC4*Q. É
fácil verificar, na Figura 1, que XQS* 1- P , e que, portanto, os únicos axiomas
que ainda não são teorema~ desta lógica são cP e C- que são incompatíveis
com s.t. Por outro lado, XC4kQ 1- P, e os únicos axiomas que não são teoremas
desta lógica são BP e a<; fórmulas que o acarretam. Porém, C é incompatível
com todas elas. Assim, qualquer axioma que adicionarmos a uma das duas
lógicas produz o mais forte sistema de todos, onde B e K são equivalentes,
sistema que já decidimos desconsiderar.
Não vamos, portanto, nos ocupar neste artigo de todas a'i extensões pos-
sfveis de X através do uso de um ou mais dos 30 axiomas apresentados. O
que nos interessa aqui são as modalidades; assim, vamos identificar primei-
ro a lógica mais fraca com um número finito de modalidades distintas não-
equivalentes, e considerar então suas extensões.

4. Modalidades e leis de redução

Vamos agora discutir a questão de se o número de modalidades não-equivalen-


tes em nossas lógicas epistêmicas é finito (e, nesse caso, quantas modalidades
há), ou se é infinito. Vamos falar sobre este assunto nesta seção, e fazer uso de
Modalidades em l6gicas de conhecimento e crença 87

alguns resultados da lógka modal alética.


Recordemos que uma modalidade é uma seqüência finita de operadores
unários (incluindo • ), como KB• K ou KK-,-,K. Uma modalidade yn de com-
primento n é redut(vel, numa lógica L, a urna modalidade xm de comprimento
m < n se yn q> H xm q> é um teorema de L. Este teorema é então chamado uma lei
de redução. Duas modalidades x e y são ditas distintas, ou niüJ-equivalentes,
em uma lógica L, ser'L x<p H y<p.
Em alguns sistema<; de lógica moda! alética, em SS para citar um, te-
mos apena<; um número finito de modalidades distinta<;. Por exemplo, em SS,
DODD<p é equivalente a Oq>. Por outro lado, muitos sistemas, como T, têm
um número infinito de modalidades distintas, ou seja, para cada n, há uma mo-
dalidade de comprimento n que não pode ser reduzida a uma modalidade de
comprimento m < n.
Em lógicas epistêmicac; multi-agentes, não é possível ter um conjunto fi-
nito de modalidades distintas, por uma razão muito simples. Ainda que, por
exemplo, tenhamos Kt K2<p ~ Kt q>, não é o cac;o que K1 <p ~ K1K2q>. Por isso,
estamos nos concentrando aqui em sistemas para um agente único.
Ora, o ramo de conhecimento de X - o conjunto daquelas fórmulas em
que nem B nem P ocorrem - corresponde a T, c uma vez que esta lógica,
não tendo axiomas de redução como 4 (D <p ~ DD<p) ou 5 (O<p ~ DO<p), tem
um número infinito de modalidades, poderíamos suspeitar que isto também
será o caso com respeito a X. Significando que, sem um axioma como 4*,
provavelmente teremos um número infinito de distintas K-modalidades. Claro,
devemos verificar se a presença de axiomac; mistos altera este quadro. Ainda
que não tenhamos, como em KT4, K <p ~ K K q> como teorema, poderíamos
ainda obter, devido a axiomac; de crença, algo como, digamos, KBq> H K K K <p,
que permitiria a redução de modalidades a um número finito.
De modo similar, o ramo de crença de X corresponde a KD, e sabemos
que mesmo em KD4 o número de modalidades é infinito também; assim, pre-
cisaremos ter ao menos o axioma 5b (KDS de fato tem um número finito de
modalidades não-equivalentes). Não obstante, mesmo que os ramos de co-
nhecimento e crença tenham um número finito de modalidades, precisamos
também mostrar que o número de modalidades mistas também é finito, o que
não é necessariamente o caso.
Com relação à primeira parte, podemos mostrar que, de fato, as lógicas
(neste artigo) que não têm 4* c 5b como teoremas têm um número infinito
de modalidades distintas. Examinaremos quatro lógicac;: XCQ e XQVB*, ac;
lógicas mais fortes sem 4*, e X4b5k e XPC4k. as lógicas mais fortes sem 5b. A
razão de termos duas lógicas para cada um dos axiomas deve-se à incompati-
bilade entre o axioma C e seus derivados, por um lado, c 5k e seus, por outro.
88 Ce:..ar A. Monar/

Ou seja, XCQ é a lógica mnis forte, contendo C, do qual ~ nllo 6 teorema;


XQVB*, a mais forte contendo V c ~, ma.9 nAo 4*. (Se Sk fosse um teorema,
4.t seria demonstrável, claro).
Para demonstrar que estas lógica.~ silo. de fato, a.~ mais fortes sem~ ou 511,
basta conferir na Figura 1 c, com auxflio da Pmpo~~içllo 1, verificar que, om
cada caso, qualquer um dos axiomas faltantes leva à derivoÇIIo, na lóglcn em
questão, de 4* ou Sb.
Consideremos, por exemplo, XCQ. A ProrsiçAo 1. Item 7, nos diz que
X4bQ f- P. E, na Figura 1, vemos que C f-x 4 . Assim, os dnicos axiomas a
não serem teoremas de XCQ silo Bb e as fórmulas que a acarretam. Já sabemos,
porém, que C e IJb são incompatíveis. Logo, nada há que possamos acrescentar
a XCQ que não acarrete 4*.
Para mostrar que 4* nllo é um teorema de XCQ, consideremos o modelo
Ma seguir. SejaM= {(a,b,c,d).~,8}, tal que~ é reflexiva em M. Além
disso, ~ab. ~bc, e, para todo estados em M, ~sd c Bsd. Finalmente, seja
a(p) = b(p) = d(p) = 1, e c(p) =O. É fácil verificar queM 6 um XCQ-modolo,
que (M,a) F Kp, mas que (M,a)Jo! KKp. Logo, 4* nlo é teorema de XCQ.

Thorema 1. O número de modalidades distintas em XCQ e XQVB* I i'lfinito.

Prova. Vamos considerar XCQ primeiro. Vamos mostrar que, para qualquer n.
modalidades consistindo de n Ks não podem ser reduzida.c; a modalidades mais
curtas. Em outras palavras, não há um teorema da forma Kn cp H x'" q>, onde n >
m, ex'" é uma modalidade de comprimento m. Suponhamos que houvesse, para
algum m, n, um tal teorema. Em primeiro lugar, podemos supor que x'" é uma
modalidade afirmativa (i.e., onde-, não ocorre). Se xm contém-,, podemos
mover os sinais de negação para dentro, eliminando as duplas negações. No
final, ou r" é afirmativa (contém K, B, P, M apenas), ou xm = ym-1-,. Neste
último caso, uma vez que K-,qJ implica 8-,q>,P.q>, e M-,q>, Knq> ~ Km-1-,q>,
e portanto KnqJ ~ •(/), também seria um teorema de XCQ. O que é absurdo.
Logo, x'" é afirmativa. Se há agora um teorema da forma Knq> H xmcp, segue-
se entAo que Pq> ~ Knq> também é um teorema de XCQ. Mostramos que
não é, construindo um modelo que falsifica P p ~ Kn p, uma instância desta
fórmula. Seja M=({ao, ... ,an,b}.~.B), tal que:
(a) b(p)= ao(p)= ... =an-t(P)= 1, an(P) =O;
(b) VxJCx:x;
(c) VxJCxb;
(d) VxB:xb;
(e) Vi<n:~a,a;+t·
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença 89

É óbvio que a relação /C é reflexiva, e que B é serial, e que B ç /C. Não tão
óbvio é o fato de que as condições para C e Q valem, mas o leitor pode fa-
cilmente verificar isso. Além disso, uma vez que a,(p) = O, (M,a,_1)Jz! Kp, e,
finalmente, (M,a0 )Jz! K"p. Por outro lado, uma vez que cada estado dá 1 a p,
exceto a,, e uma vez que a, não é /C-accessfvel a ao, (M,a0 ) I= Km p. Logo,
P p ~ K" p é falsa neste modelo, e não é, portanto, um teorema. Segue-se
que, para qualquer n, há uma modalidade de comprimento n consistindo ape-
na<; de Ks. Isso é suficiente para mostrar que XCQ tem um número infinito de
modalidades distintas.
Uma variação no modelo anterior mostra que P<p ~ K"<p também não é um
teorema de XQVBk: ba<;ta substituir os requisitos (c) e (e) acima por
(c) '1'/x(JCxbA/Cbx);
(e) "i/i< n: (JCa;ai+tAICa,+la,).
É fácil verificar que o modelo satisfaz as condições necessárias para os axiomas
de XQVB·\ contudo, Kmp ~ K"p é falsa nele. •

Thorema 2. O número de modalidades distintas em XPC4k e X4b5k é infinito.

Prova. Suponhamos que houvesse um teorema da fonna <p =B" p H x"' p, onde
n > m, e xm é uma modalidade de comprimento m. Por razões análoga<; às
apresentadas no teorema anterior - teríamos B" p ~ JC-1-,p, e assim B" p ~
•P como teoremas - podemos supor que xm é uma modalidade afirmativa
Vamos examinar alguns casos para ver que forma esta modalidade pode tomar.
(I) xm contém apenas ocorrências de B. Se cp fosse um teorema, então B" p ~
sm p também seria um teorema. Vamos mostrar que não é. Para isto, conside-
remos um modelo M =({ao, ... ,a,},JC,B), tal que:
(a) ao(p)= ... =am(p)=O, am+t(P) = ... =a,(p) =1;
(b) '1'/x"i/y/Cxy;
(c) Ba,a,;
(d) '1'/i,j,i < j ~ n, Ba;ai.
É fácil ver que JC é uma relação de equivalência, que B é serial e transitiva, e
queB ç;, /C. Também é fácil de verificar que (M,ao)Jz! Bmp, e que (M.ao) I= B" p,
e B" p ~ sm p é assim falsa; logo, <p não é um teorema. Segue-se que, para
qualquer n, há uma modalidade de comprimento n consistindo apenas de Bs, e
não-redutível a uma modalidade de comprimento menor.
Substituindo, no modelo acima, o requisito de que IC seja uma relação univer-
sal (de equivalência) pelo requisito de que seja apenas reflexiva e transitiva,
90 Cezar A. Monari

veremos que as condições para C e P também são satisfeitas, e que, portanto,


8" p ~ Bmp também não é um teorema de XPC4k.
(2) x'" não contém ocorrências de K nem de M, mas apenas ocorrências de
B, e ao menos uma de P. Suponhamos que a primeira ocorrência (a mais à
esquerda) de P esteja na posição k. Se ({J fosse um teorema, então x"'p ~ B" p
também seria. Vamos mostrar que esta última fórmula não é teorema de X4bs.t.
SejaM = ({ao, ... •an,b},JC,B), tal que:
(a) ao(p) = ... = an(P) = O, b(p) = 1;
(b) Vx'Vy/Cxy;
(c) Banan; Bbb; Ba.tb;
(d) Vi,j, i < j ~ n, Ba;aj.
É fácil ver que JC é uma relação de equivalência, que 8 é serial e transitiva, e
queB ç;;, JC. Também é fácil de verificar que (M,ao)Jt B" p, e que (M,ao) I= xm p,
e, em conseqüência disso, que ({J é fal.<;a.
Substituindo a exigência de ser relação de equivalência por refl exividade c si-
metria, o modelo resultante também falsifica a fórmula para XPC4Jc, como
podemos facilmente verificar.
(3) xm contém ao menos uma ocorrência de K e/ou M. Vamos considerar dois
subcasos:
(3a) O operador de conhecimento mais à direita (ou seja, K ou M) em xm é
K. Bem, uma vez que ({J é um teorema, por hipótese, B" p ~ xm p também é.
Suponhamos que o operador K mais à direita está localizado na posição k. Seja
agoraM =({ao.... ,an.b},JC,B), tal que:
(a) ao(p) =... = On(P) = 1, b(p) =O;
(b) Banan; Bbb; ICa~cb;
(c) Vi,j,i<j~n. Ba;aj.
Ou seja, temos uma sucessão linear de mundos a;, dando 1 a p, e, na posição
k há uma "bifurcação" para um mundo b, /C-acessível a a~;, e 8-acessível a si
mesmo, onde p leva O, da mesma maneira que todas as subfórmulas à direita de
K em r". Se fizermos o requisito de que JC seja uma relação de equivalência,
teremos um X4bs.t-modelo falsificando B" p ~ x"'p. Se exigirmos de JC ape-
nas reftexividade e transitividade, veremos que temos um XPC4.t -modelo (as
condições para P e C são automaticamente satisfeitas) falsifi cando B" p ~r" p.
(3b) O operador de conhecimento mais à direita é M , na posição k. Por um
raciocínio análogo ao do caso precedente, analisando a estrutura de r", vemos
que, se ({J é um teorema, x"' p ~ B" p também deve ser um. E podemos construir
um modelo, análogo ao caso anterior, mostrando que isto não é o caso.
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença 91

Segue-se que X4b5J: e XPC4* têm um número infinito de modalidades distin-


~. .
Corolário 1. Qualquer extensão de X q11e não tenha Kcp --7 KKcp ou -,Bcp --7
8-,8cp como teoremas tem um ruimero infinito de modalidades distintas.

O que este corolário mostra é que precisamos ter ao menos 4.t e 5b em


nossas lógicas, para que haja uma possibilidade de ter um número finito de
modalidades distintas. A lógica mais fraca contendo ambas as fórmulas como
teoremas é, obviamente, X4k5b. Ora, um resultado em lógica modal alética
nos diz que o ramo de conhecimento desta lógica tem as modalidades de S4
(í.e., KT4), que são catorze, enquanto que o ramo de crença tem as mesmas
modalidades de KDS, que são dez (ver, e.g., Chellas 1980). Não se segue
ainda que o número de modalidades de X4k5b é finito, porque poderíamos ter
algo como (K8)"cp, para qualquer n, que poderia ser irredutível a modalidades
mais curtas. Vamos mostrar que isto não é o caso, c que X4.tsb tem, de fato,
finitamente mui~ modalidades distintas.
Thorema 3. Em X4k5b há 114 modalidades distintas, a saber • (a modali-
dade imprópria), K, 8, P, M, KB, KP, KM, MK, M8, MP, 8KIPK, B8/P8,
8PIPP, 8M/PM, KMK, KM8, KMP, K8KIKPK, K8P/KPP, MKB, MKP, MKM,
M88/MP8, M8MIMPM, 8K8/PK8, 8KP/PKP, 8KMIPKM, 8MKIPMK, 8M-
8/PM8, 8MPIPMP, KMKB, KMKP, K8KPIKPKP, KM88/KMP8, MKM8, M-
KMP, MKBPIMKPP, M8M8/MPM8, 8KMKIPKMK, 8KM8/PKM8, 8KMPJP-
KMP, 8K8PIPKBP/8KPPIPKPP, 8MK8/PMKB, 8MKPIPMKP, 8MKMIPM-
KM, 8M88/PM88/8MP8/PMP8, KMK8PIKMKPP, MKM88/MKMP8, 8K-
MK8/PKMK8, 8KMKPIPKMKP, BKM8B/PKMBB/8KMP8/PKMP8, BMK-
M8/PMKMB, 8MKMPIPMKMP, 8MK8PIPMK8PIBMKPPIPMKPP, 8KMK-
8PIPKMK8P/BKMKPNPKMKPP,8M~88/PMKM88/BMKMP8/PMKMP-
8, e, é claro, suas negações: -,•, -,K, e ass.im por diante. As implicações entre
as modalidades afirmativas podem ser vistas na Fig. 4 (no final do artigo).
Prova. A prova é bastante longa, mas relativamente sem problema~. Em pri-
meiro lugar, como mencionamos acima, o ramo de conhecimento de X4*5b
corresponde à lógica modal alética S4, que tem apenas dez modalidades. Al-
gumas modalidades, como o leitor pode ter notado, foram colocadas juntac;
na lista acima, como 8K8/PK8: isso significa que elas são equivalentes (po-
deríamos remover uma dela~ do par), mesmo que não sejam mais redutíveis a
modalidades mais curtas.
Assim, o que temos que fazer é mostrar que temos um número finito de mo-
dalidades onde aparecem tanto operadores de conhecimento quanto de crença
92 Cezar A. Monari

Faremos isto usando a seguinte lista de equivalênciac;, que são teoremac; de


X4*Sb. (Para apresentar uma lista completa, estamos listando também as equi-
valencias entre as modalidades só de conhecimento, ou só de crença).

1. KKqH~K<p 19. BBP<p H BP<p 36. KMKB<p H KM<p


2. MM<pHM<p 20. BPP<p H BP<p 37. KMPM<p H KM<p
3. BB<p H PB<p 21. PBP<p H PP<p 38. BKBK<p H BK<p
4. BP<p H PP<p 22. PPP<p H PP<p 39. PKBK<pH BK<p
5. BK<p H PK<p 23. BBM<p H BM<p 40. BKPK<pHPK<p
6. BM<p H PM<p 24. BPM<p HBM<p 41. PKPK<p H PK<p
7. KBB<p H KB<p 25. PBM<p HPM<p 42. BMBM<p HBM<p
8. KPB<p H KB<p 26. PPM<p HPM<p 43. PMBM<p HBM<p
9. KBM<p H KM<p 27. MBK<p HMK<p 44. BMPM<p H PM<p
10. KPM<p H KM<(J 28. MPK<p HMK<p 45. PMPM<p HPM<p
11. BBK<p H BK<p 29. MBP<p HMP<p 46. MKBK<p H MK<p
12. BPK<p H BK<p 30. MPP<p HMP<p 47. MKPK<pHMK<p
13. PBK<p H PK<p 31. KBKB<p H KB<p 48. MKMK<pHMK<p
14. PPK<p H PK<p 32. KPKB<p H KB<p 49. MBMK<p HMK<p
15. BBB<p H BB<p 33. KBKM<p H KM<p 50. MPMK<p HMK<p
16. BPB<p H BB<p 34. KPKM<p H KM<p 51. MBMP<p HMP<p
17. PBB<p H PB<p 35. KMKM<p H KM<p 52. MPMP<p HMP<p
18. PPB<p H PB<p

Vamos começar com as modalidades de comprimento 2, que são as moda-


lidades mistas mais curtas, e considerar apenas os casos afirmativos, uma vez
que as modalidades negativas podem ser tratadas da mesma maneira.
(i) Temos oito modalidades mistas possíveis de comprimento 2: KB, KP,
BK, PK, BM, PM, MB, e MP. As equivalência'> (5) e (6) mostram que, por
exemplo, BK e PK são equivalentes, mesmo que não sejam mais redutíveis.
A'iSim, temos de fato 6 modalidades de comprimento 2.
(ü) Se agora prefixarmos (ou sufixarmos) estas modalidades com um K , B,
P, ou M , obtemos 24 modalidades mistas de comprimento 3. Algumas delas
-como KKB e MMP - podem ser imediatamente reduzidas a modalidades
de comprimento 2. Ac; equivalências (7)-{14) e (23)-{30) acima permitem a
redução de outras oito, enquanto que, usando mais uma vez (5) e (6), nós colo-
camos algumas das remanescentes em pares. Feito isto tudo, terminamos com
16 modalidades de comprimento 3, aquelac; listadas no enunciado do teorema.
(iii) O próximo passo é prefixar as modalidades assim obtidas com um K ,
etc., para obter modalidades de comprimento 4, o que nos dá 64 possibilidades.
Usando todas as equivalências acima, reduzimos este número a 16 (listadas
acima).
Modalidades em lógicas 'de conhecimento e c rença 93

(iv) Repelimos o procedimento para obter modalidades de comprimento 5.


As 64 possibilidades obtida~ podem ser reduzida<; a 8 modalidades, listadas
acima, que não podem ser adicionalmente reduzidas.
(v) tomando as 8 modalidades recém obtidao;, c repetindo o procedimento,
obtemos 32 possíveis modalidades de comprimento 6. O uso das equivalência-;
mais uma vez reduz este número a 2: BKMKBP e BMKMBB, e, claro. todos
os seus equivalentes.
(vi) É fácil ver agora que não podemos obter modalidades adicionais que
não sejam redutíveis por uma das 52 equivalência-;. Vamos tomar BKMKBP
como exemplo: prefixando-a com um K, B, P, ou M, obtemos KBKMKBP,
BBKMKBP, PBKMKBP, e MBKMKBP. Ora, (33) nos diz que a primeira
destas é equivalente a KMKBP; por (11), a segunda é equivalente a BKMKBP;
por (13), a terceira é equivalente a PKMKBP; finalmente, (27) reduz a quarta
a MKMKBP- e uma aplicação de (48) nos dá MKBP. .De fonna similar
para BMKMBB. Assim, não há modalidades irredutíveis de comprimento 7 ou
maior.
Portanto, X4k5b tem no máximo 114 modalidades distintas. Para provar a
outra direção (que não podemos reduzir mais estas modalidades) necessitamos
mostrar, para cada par de modalidades, que elas não são equivalentes, o que po-
de ser feito construindo modelos que verificam uma e falsificam a outra. Não
faremos isto aqui, contudo, devido ao grande número de testes necessários.
Um pouco de engenhosidade pode reduzir esse número, claro. Por exemplo,
ao invés de comparar, digamos M com todas as outras modalidades, apenao;
necessitamos mostrar que Jz! Mcp ~ MBMcp e que Jz! Mcp ~ cp. Uma vez que,
para toda modalidade x, xcp acarreta Mcp (cf. Fig. 4. p. 96), se x fosse equiva-
lente a M, Mcp teria que acarretar MBMcp, e isto não é o caso, como se pode
facilmente verificar. •
Assim, fica demonstrado que X4k5b é a menor das extensões de X a ter
um número finito de modalidades distintas. A questão que gostarfamos de
considerar, agora, é: quantas extensões temos de X4tsb, e que modalidades
cada uma dela-; têm?
Como 4.1: e Sb acarretam alguns dos axiomas da Figura I, o número de axio-
mas dispon1veis será menor que os 30 lá representados. Além disso, em X4k5b
temos ainda alguns outros acarretamentos. A proposição seguinte resume isto:

Proposição 2.

I. X4t5bu{PP}I-F 5. X4.1:5bu{Y} 1- 4b
2. X4k5bu{R} 1- F 6. X4.1:5bu{BP} 1- sh
3. X4.1:5bu{CP} 1- C 7. X4.t5bu{sh} 1- V
94 Cezar A. Mortari

Em conseqüência da proposição acima, ficamos, para fazer extensões de


X4k5b, apenas com os axiomas apresentados na Figura 2 abaixo.

Figura 2: Axiomas para estender X4k5b

Combinando estes axiomas, e observando as relações de acarretamento in-


dicadas na~ Figuras 1 e 2, e nas Proposições 1 e 2, chegamos ao número de
14 extensões possíveis de X4k5b, todas elas, claro, com um número finito de
modalidades distintas. (X4tsb e sua~ extensões estão representadas na Fig. 3.)

Figura 3: Sistemas com um número finito de modalidades

Os teoremas a seguir, agora, dizem respeito ao número de modalidades nas


remanescentes 141ógicas. (Lembramos outra vez que modalidades equivalen-
tes, mas não adicionalmente redutíveis, estão colocadas juntas.)
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença 95

Thorema 4. Em X4k5b4b há 82 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,


KB, Kl~ KM, MK, MB, MP, BKIPK, BMIPM, KMK, KMB, KMP, KBKIKPK,
MKB, MKP, MKM, MBMIMPM, BKB/PKB, BKP/PKP, BKMIPKM, BMKIP-
MK, BMBIPMB, BMP/PMP, KMKB, KMKP, MKMB, MKMP, BKMKIPKMK,
BKMBIPKMB, BKMPIPKMP, BMKB/PMKB, BMKPIPMKP, BMKMIPMKM,
BKMKB/PKMKB, BKMKPIPKMKP, BMKMB/PMKMB, BMKMP/PMKMP, e
suas negações. (Relações de acarretamento entre as modalidades afirmativas
podem ser vistas na Fig. 5.)

Teorema S. Em X4ksby há 58 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,


KB, KP, KM, MK, MB, MP, BB/PB, BP/PP, KMK, KMB, KMP, KBP/KPP,
MKB, MKP, MKM, MBBIMPB, KMKB, KMKP, KMBBIKMPB, MKMB, MK-
MP, MKBPIMKPP, KMKBPIKMKPP, MKMBB/MKMPB, e suas negações (ct
Fig. 8).

Teorema 6. Em X4k5b4bV há 42 modalidades distintas, a saber •, K, B, P,


M, KB, KP, KM, MK, MB, MP, KMK, KMB, KMP, MKB, MKP, MKM, KMKB,
KMKP, MKMB, MKMP, e suas negações (cf. Fig. 9).
Teorema 7. Em X4k5bF há 34 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,
KB, KP, MB, MP, BKIPK/MK, BBIPB, BPIPP, KMIBMIPM, KBPIKPP, MBBI
MPB, BKPIPKPIMKP, KMBIBMBIPMB, e tambbn suas negações (ct Fig. 6).

Thorcma 8. Em X4ksbpp há 30 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,


KB, KP, MB, MP, BKIPKIMK, BBIPB, BP/PP, KMIBMIPM, BKPIPKPIMKP,
KMB/BMBIPMB, e também suas negações (ct Fig. 6).

Teorema 9. Em X4*Sb4bF há 26 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,


KB, KP, MB, MP, BKIPKIMK, KM/BMIPM, BKP/PKP/MKP, BKP/PKPIMKP,
KMBIBMB/PMB, e suas negações (ct Fig. 8).
Thorema 10. Em XSkSb há 26 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,
KB, KP, MB, MP, BBIPB, BP/PP, KBP/KPP, MBBIMPB, e suas negações ( ct
Fig. 9).

Teorema 11. Em X4bs.l:sb há 18 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,


KB, MB, KP, e suas negações (ct Fig. 7).

Teorema 12. Em X4tcsb há 18 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,


KB, KP/KM, MK/MB, MP, e suas negações ( cf. Fig. 7).

Teorema 13. Em XSksbpp há 18 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,


KBIBBIPB, KP, MB, BP/PP/MP, e suas negações ( ct Fig. 6).
96 Cezar A. Monari

Thorema 14. Em XP4kQ há 14 modalidades distintas, a saber •, K, B, P, M,


BK/PKIMK, KMIBM/PM, e suas negações (cf. Fig. 7).

Thorema 15. Em XC41Q e também em XQSic, há 10 modalidades distintas,


a saber •, K, B, P, M, e suas negações (cf. Fig. 7).

S. Observações finais

O objetivo deste artigo era investigar o número de modalidades distintas não-


equivalentes em alguns sistemas de lógica epistêmica. Isto foi feito para a
lógica básica X e suas extensões através de um número razoável de possíveis
axiomas que identificamos. Mas este trabalho ainda pode ser ampliado: po-
deríamos examinar lógicas formadas usando-se outros axiomas (fórmulas com
a estrutura x 2 q> ~ y2 q>, por exemplo) que não foram discutidos aqui, e que
ficam para trabalhos futuros.

Referências

Cbellas, B. 1980. Moda/ Logic. Cambódge: cambridge University Press.


Fagin, R.; Halpero, J .; Moses, Y.; Vardi, M. 1995. Reasoning about knowledge.
Cambridge: MIT Press.
Halpem, I. & Moses. Y. 1984. "Towards a theory of knowledge and igno-
rance". IBM Research Report RJ 4448 (48136).
Hintikka, I. 1962. Knowledge and belief. Ithaca, N.Y.: ComeU University
Press.
Lakemeyer, G. 1986. "Steps toward a first-order logic of explicit and implicit
belief'. In: J. Halpero (ed.) Proceedings ofthe Conference on Theoretical
Aspects of Reasoning abolá Knowledge. Los Altos, Ca.: Morgan Kauf-
mann, 325-40.
Lenzen, W. 1980. Glauben, l*ssen und Wahrscheinlichkeit. Wien, New York:
Springer Verlag.
Levesque, H. J. 1984. ''A logic of explicit and ímplicít belief". Proceedings of
the National Conference on Artificial lntelligence, 198-202.
Meyer, J.-J. Ch. & van derHoek, W. 1995. EpistemiclogicforAI andcomputer
science. Cambridge: Cambridge University Press.
Van Benthem, J. 1984. "Correspondence theory". In D. Gabbay & F. Guenth-
ner (eds.), Handbook of Philosophical Logic, vol. 2. Dordrecht: D. Reidel.
Van der Hoek, W. 1993. "Systems for Knowledge and Belief'. Journal of
Logic and Computation, 3(2): 173- 95.
Modalidi:Jdes em lógicas de conhecimento e crença 97

KBK"

KB
~KMK BK"

KP BKB* KMKB BKMK"

BMKM* MKMP BMP* MB

MKM BM* MP

~
M

Figure 4: Modalidades em X4"'5b


98 Ct!Zar A. Monari

KBK' /(

KB
~
BK" KMK BK"

/1><><1
KP BKir KMKB BKMK"
I
KB

I
ss·
~
8KMir

• 1'----J
KP MB

1'----J
BKP P

BMKM" MKMP BMP MB


~
BP

t><><I/
MKM BM MP
I
MP

~ I
M M
Modalidades em lógicas de conhecimento e c rença 99

BK"

I
KB K


~
KP B KMB• MBB•
KB•

l
B

~
KBP* BKP*
P MB
l
MB

v MP

I
• I
KP

I
p

I
KM' BP*

M M

Figure 6: Modalidades em X4k5bF e em xsksbpp

K K K

ô á ~ ~ (r K

~· ~~ \~
(1
• I
lJ
p p

M M M M
100 Cezar A. M onari

K K

KB BXO

~
KP
Blr KMKB MK KB
I
~8
KP

• BKv-18'
v
P MB

KM MKMP BP MB MP

~ I
M M
Modalidades em lógicas de conhecimento e crença 101

K K

KB

~-~
KP 8 MBB•

• ~
p
KBP"MB

~~
M M
A NATUREZA DA CRENÇA
MÁRIO A. L. G UERREIRO
Departamento de Filosofia da UFRJ

No contexto da filosofia analítica, podem ser encontradas ao menos três


destacadas concepções a respeito do status ontológico da crença: (1) como
ocorrência consciente, (2) como disposição e (3) como estado. Pode ser que
haja outras, mas são justamente estas que tematizaremos na presente abor-
dagem. Tentaremos mostrar que nenhuma destas concepções por si só pode
dar conta inteiramente do caráter complexo do conceito de crença, embora
cada uma delas chame a atenção para um particular aspecto que não deve ser
negligenciado.
Ao que tudo indica, a concepção (I) remonta ao pensamento de
D. Hum e. No Treatise of Human Nature (livro 1, parte 3, seção 7), ele se
voltou para a natureza das crenças indutivamente adquiridas concernentes às
questões de fato e apresentou uma concepção da crença como uma idéia
vívida associada a uma impressão presente. Desse modo, transpondo a lin-
guagem humeana para um fraseado contemporâneo, dizer que a tem a cren-
ça x equivale a dizer que a está de posse da idéia vívida x. Do modo como
Hume se expressou, o que estava em jogo era uma relação entre a (um indi-
víduo humano qualquer) e x (uma idéia vívida qualquer), não uma relação
entre a e p (uma proposição qualquer), coisa que caracterizaria uma especial
atitude proposicional simbolizada na lógica epistêmica de J. Hintikka (1962)
pela expressão Bap (a crê que p).
Contudo, antes de discutir se a crença pode ser tratada de outra maneira
que não uma atitude proposicional, há um ponto para o qual devemos cha-
mar a atenção. Embora a concepção de Hume possa estar adequada a uma
situação tal em que um indivíduo tem uma crença aflorada na sua consciên-
cia, ela não está adequada a outra situação em que cabe dizer que um indiví-
duo tem uma crença qualquer, porém esta apresenta um caráter imanifesta-
do. Um indivíduo desacordado ou em sono profundo pode ter a crença de
que, por exemplo, corpos físicos não se interpenetram. Esta crença não está
aflorada na sua consciência, mas quando ele acordar e se dirigir para a por-
ta, de modo a sair do quarto em que se encontra, podemos afirmar que ele
agiu sob esta crença, ainda que não tenha se dado conta disto. (Supondo que

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV En~ojltro de


Filosofia Anal/fica. Florianópolis: NEL, pp. 102-32. ''-··:
A Natureza da Crença 103

ele não a tivesse, ele poderia tentar sair do quarto atravessando a parede,
coisa que só um demente tentaria).
Se reduzirmos a crença à sua atualização, mediante esta ou aquela idéia
ou mesmo mediante a consideração desta ou daquela proposição, ficaremos
em urna situação dificil para compreender uma série de crenças que estão
alojadas na memória, que - por diferentes motivos ou razões - não se
manifestam em um determinado momento, mas podem se manifestar em um
momento subseqüente. Por exemplo: um indivíduo pode ter a crença imani-
festada de que, caso ele despenque do décimo andar de um edificio, seu
corpo se esborrachará no chão. Não é dificil imaginar situações em que esta
mesma crença passe de um estado latente a um manifesto. Suponhamos, por
exemplo, que ele esteja lavando a janela de um apartamento e uma das cor-
das que o prendem se rompa.
Levando em consideração esta possibilidade de um indivíduo ter uma
crença imanifestada, G. Ryle (1949) deixou de lado qualquer consideração
da crença como um conteúdo de consciência (seja a de uma idéia vívida de x,
a aceitação tácita de que p, etc.) e passou a conceber como uma disposição
para a ação. Na linguagem coloquial, a noção de disposição costuma ser
usada em relação a seres animados (pessoas ou animais). Diz-se, por exem-
plo, que determinada raça de cães é facilmente irritável ou que determinada
pessoa é confiável. A irritabilidade e a confiabilidade são consideradas dis-
posições. Um animal irritável se mostrará irritado diante de tais e tais estí-
mulos e uma pessoa confiável se mostrará uma pessoa de confiança em tais e
tais situações. Termos tais como "irritado", "deprimido", "eufórico" expres-
sam estados afetivos, porém termos tais como "irritável," "deprimlvel",
"excitável" não expressam estados: expressam disposições afetivas passíveis
de se manifestarem ou não.
Desconsiderando inteiramente quaisquer conteúdos de consciência e
levando em consideração tão-somente a noção de que está em jogo uma
propensão para alguém agir de tal modo, ou uma coisa se mostrar de tal
modo, Ryle pôde tratar disposições humanas do mesmo modo que se poderia
tratar disposições de seres inanimados. Desse modo, a elasticidade e a que-
brabilidade passaram a ser consideradas disposições de determinados mate-
riais como a borracha e o vidro. A disposição passou a ser considerada uma
propriedade especial, mas uma propriedade cuja caracterização independia
de estar em jogo a noção de consciência. A vantagem mais óbvia e imediata
desta concepção é que se entendemos a crença como uma disposição para
agir ou se mostrar em tal estado, podemos falar de "crenças" em relação a
animais ou computadores, sem estar incorrendo no menor risco de estar
usando uma linguagem antropomorfizante, pois tanto os primeiros como os
104 Mário Guerreiro

segundos não só costumam apresentar propensões para se comportar de


determinados modos, como também podem ser induzidos a substituir tais
propensões por outras.
À primeira vista, tudo indica se tratar de uma concepção bastante fértil e
promissora para um esclarecimento disto que chamamos de "crença", desde
que se tenha em mente a distinção entre: (a) uma disposição de uma coisa
(animada ou inanimada) e (b) a manifestação de um estado correlacionado a
esta disposição (por exemplo: a quebrabilidade de um pedaço de vidro co-
mum e este mesmo pedaço se quebrando em determinada circunstância).
O fato de x possuir a disposição DI não implica a manifestação de DI,
embora implique a possibilidade fisica da manifestação de D1 e a impossibi-
lidade fisica da manifestação de, digamos, D2. Supondo, por exemplo, que x
seja uma xícara de porcelana, x possui D1 (quebrabilidade), que poderá se
manifestar ou não, porém, neste caso, x não possui m (digamos, a maleabi-
lidade) cuja manifestação constitui uma impossibilidade fisica. Supondo que
x seja uma borracha de apagar coisas escritas, x possui m, que poderá se
manifestar ou não, mas x não possui DI cuja manifestação constitui uma
impossibilidade fisica. Usando uma linguagem aristotélica, isto consiste em
dizer que só pode se atualizar uma propriedade de uma coisa que está na
potencialidade desta mesma coisa, embora não seja necessário que ela se
atualize nem que não se atualize.
Brevemente delineadas as concepções da crença como (I) ocorrência
consciente e (2) como disposição, podemos passar agora para a concepção da
crença como (3) estado. D. M. Armstrong (I 981) procurou argumentar no
sentido de que (2) é uma visão mais satisfatória do que (1), porém (3) pode-
ria fornecer uma complementação capaz de preencher uma lacuna deixada
por (2). Armstrong começa examinando a situação em que está em jogo uma
crença manifestada, porém, diferentemente de Hume, não converge sua
atenção para nenhum conteúdo de consciência, mas sim para uma condição
tal em que um indivíduo manifesta uma especial atitude proposicional. As-
sim sendo, dizer que a crê que p é, para todos os efeitos, dizer que a está em
determinado estado continuado, ou seja: um estado que perdura ao longo de
todo o tempo em que um individuo mantém tal crença.
No caso das crenças adquiridas, a atitude de a crer que p é, para Armos-
trong, uma questão de a mente de a estar carimbada ou impressa de algum
modo. De acordo com a imagem tradicional sugerida por Platão no Teeteto
(191, c-e), trata-se de algo análogo a uma impressão feita por um carimbo
em um bloco de cera - uma marca capaz de durar por um tempo maior ou
menor. Indo um pouco além da sugestão platônica, ele acrescenta que não é
de nenhum modo necessário que a esteja consciente de que tem a crença de
A Natureza da Crença 105

que p. Se entendêssemos a crença como uma idéia vívida, a afirmação acima


seria nitidamente contraditória; mas, se a entendemos como um estado, não
é de nenhum modo contraditório dizer que um individuo se encontra em
determinado estado, mas sua atenção não está convergida para o estado em
que ele se encontra. Neste sentido, "estar consciente de" para todos os efei-
tos, equivalente a "estar atento em relação a" e "não estar consciente de",
"estar desatento em relação a".
Há uma série de coisas que fazemos de um modo automático, sem que
estejamos nos dando conta de que as fazemos no momento em que as faze-
·mos. Porém, ao simplesmente fazer tal coisa deste ou daquele modo, agimos
sob esta ou aquela crença que comanda nossa ação. Por exemplo: um indiví-
duo que passa por um pedágio em uma estrada, enfia seu bilhete em uma
máquina e desencadeia a abertura de uma cancela. Se perguntarmos a ele se
ele tem a crença de que toda vez que fizer tal coisa obterá tal efeito, ele cer-
tamente dirá que sim. Porém o fato de ele possuir esta crença, e até mesmo o
fato de desempenhar uma determinada conduta orientada por esta mesma
crença, não implica de nenhum modo que em uma determinada situação
específica ele esteja consciente de que (ou atento para o fato de que) a tem.
Mais que isto: podemos ter uma série de crenças, agir sob estas mesmas
crenças, porém nunca termos considerado o fato de que as abrigamos. Como
propõe J. Searle:

Tenho muitas crenças que não estou pensando nelas no momento e


que posso jamais ter pensado. Por exemplo: acredito que meu avô
paterno passou toda a sua vida nos Estados Unidos, mas até este mo-
mento nunca formulei conscientemente nem considerei esta crença.
Tais crenças inconscientes, diga-se de passagem, não precisam ser
instâncias de qualquer tipo de repressão, freudiana ou de outro tipo;
são simplesmente crenças que se tem e que normalmente não se pen-
sa sobre elas. (Searle, 1983, p. 2).

Como já propusemos em um trabalho anterior (Guerreiro, inédito, 1996),


uma análise da ação humana não pode deixar de levar em consideração que
as crenças acionadas por um agente humano, digamos A I, estão em função
do(s) objetivo(s) al.mejado(s) por ele. Desse modo, se AI visa ao objetivo 01,
as crenças b 1, b2 e b3 que estavam adormecidas e arquivadas na sua memó-
ria, podem ser acionadas e as crenças b4, b5 e b6 podem ser narcotizadas.
Isto não quer dizer que A I, ao visar a 02, não tenha b l ,b2 e b3, mas sim que
elas não estão ativas e não são tomadas conscientemente em consideração na
ação específica desenvolvida por ele.
Armstrong afirma que a noção de estado de um objeto requer alguns
106 Mário Guerreiro

esclarecimentos. Dizer que um objeto x está em em estado EI é para todos os


efeitos atribuir uma propriedade a este mesmo objeto. Trata-se de uma pro-
priedade não-relaciona! do objeto. Temos de distinguir o estado de um objeto
das circunstâncias em que ele se encontra. É claro que o estado pode por si
próprio envolver relação, quer dizer: o estado pode ser uma propriedade
estrutural. Costumeiramente, o conceito de estado de um objeto é associado à
estrutura interna do objeto, mas cabe pôr em dúvida se a noção de estrutura é
parte do conceito de estado. Por exemplo: o conceito de temperatura não
implica que o objeto - quente ou frio - esteja estruturado deste ou daquele
modo.
Todavia nem toda propriedade não-relaciona! de um objeto define um
estado de objeto. Por exemplo: uma coisa é um cavalo em virtude de uma
conjunção de propriedades não-relacionais, e uma conjunção de proprieda-
des é também uma propriedade, mas não podemos dizer que o vencedor do
Grande Prêmio Brasil há dez anos está no estado de ser um cavalo. Isto
indica que quando falamos de um estado de um objeto sempre temos em
mente uma classificação deste mesmo em relação à qual o estado é uma
feição acidental ou mutável do objeto. Pode-se supor evidentemente o caso
de um objeto sempre possuindo determinadas feições, mas, ainda assim, não
se pode rejeitar a suposição de que ele possa perder estas mesmas. Desse
modo, admitindo que crenças sejam estados, elas constituem feições aci-
dentais ou mutáveis das mentes ou, caso se queira, das pessoas portadoras
das mentes. (Armstrong, 1981, p. 9-l 0).
Armstrong admite que a concepção acima apresentada é demasiadamente
ampla. Embora possa constituir um fraseado não-coloquial e até soar de
modo estranho, tal concepção permite dizer que um homem correndo está no
estado de correr. Mas como poderia ser excluído este ato ou estado?
Armstrong entende que a resposta talvez esteja no fato de que o conceito de
correr é um conceito de um processo e por "processo" ele entende algo cujas
diferentes fases apresentam diferenças de natureza, de modo tal que concei-
tos como o de movimento retilíneo uniforme - considerado um "estado natu-
ral" dentro do quadro de referência da mecânica clássica - não podem ser
considerados processos. Contudo, um estado não tem de envolver necessari-
amente um processo. Ele pode ser um processo, mas não está implicado que
é. Crenças podem ser concebidas como processos. Supondo que o fisicalismo
fosse uma visão adequada, as crenças seriam circuitos reverberativos. Porém,
diferentemente do conceito de correr, não é parte do conceito de crença que
ele seja ou tenha de envolver um processo.
O próprio Armstrong admite ser possível encontrar um contra-exemplo
para o que foi proposto acima. Referimo-nos a uma pessoa ou a um líquido
A Natureza da Crença 107

como estando em um estado agitado, e a agitação parece envolver um pro-


cesso. Porém o que quer que se queira dizer com um "estado agitado" é este
mesmo estado que é responsável pela agitação de uma pessoa ou de uma
coisa. Neste ponto, ele introduz uma distinção entre (a) "uma pessoa estando
agitada" (a person being agitated) e (b) "seu ser em um estado agitado" (his
being in an agitated state). À primeira vista, parece que estamos diante de
mera diferença de fraseado sem relevância conceitual. Armstrong procura
esclarecer sua distinção dizendo que a primeira expressão se refere a uma
condição particular e passageira, ao passo que a segunda se refere a uma
condição continuada e de natureza não-especificada, que costuma produzir
uma razoável quantidade de comportamentos agitados. Com este esclareci-
mento ele acredita que o contra-exemplo é derrubado.
Segundo ainda Armstrong, a polêmica entre as concepções do status
ontológico da crença como disposição ou como estado está repleta de mal-
entendidos produzidos pelos defensores de ambas as posições. Diante disto,
ele adota o seguinte procedimento: Primeiramente, ele apresenta três propo-
sições tendo um caráter de quase-postulados. Em seguida, desenvolve um
argumento em sete etapas, destinado a sustentar a concepção de crença como
estado. As três proposições são:

(l) Embora nem todos os estados sejam disposições, disposições são


sempre tipos de estados.
(2) Há uma espécie de crença (as crenças gerais) que podem ser plausi-
velmente concebidas como disposições.
(3) No que diz respeito às outras espécies de crenças - apesar das ine-
gáveis semelhanças entre estados-disposições e estados-crenças - há
significativas diferenças. Estas fazem com que seja bastante desnorte-
ante dizer que crenças não-gerais são espécies de disposições.
(Armstrong, 1981 , pp. 11 0-1).

Podemos passar agora ao argumento elaborado por Armstrong visando à


sustentação das proposições elencadas acima.
(I) Para cada proposição contingente verdadeira tem de haver algo no
mundo que faz com que ela seja verdadeira. Se considerarmos uma proposi-
ção deste tipo e imaginarmos como ela poderia ser falsificada, teremos de
imaginar automaticamente uma diferença no mundo. Isto não implica que,
para cada proposição contingente verdadeira diferente, há algo no mundo
que faz com que ela seja verdadeira.
(2) Como corolário de (1), temos: onde um predicado F não é aplicável a
um objeto x até um tempo t - mas é aplicável após t - então tem de ser o
108 Mário Guerreiro

caso de que x sofreu uma transformação em 1. Não é dificil imaginar uma


falsificação deste corolário. Suponhamos o caso de um homem que não tem
cem anos de idade até antes de f, mas completa cem anos em t. Anterior-
mente, o predicado "cem anos de idade" não era aplicável a ele, mas passa a
poder ser aplicado em 1. Apesar de ele não ter experimentado nenhuma
transformação de nenhuma das suas propriedades não-relacionais, pode-se
dizer que ele experimentou uma transformação de. ao menos uma das suas
propriedades relacionais (a da sua relação com a sua idade). Armstrong
entende que uma transformação de uma propriedade relacional de um objeto
é, para todos os efeitos, uma transformação do próprio objeto.
(3) Segue-se imediatamente de (2) que, se uma propriedade disposicional
não é aplicável a um objeto antes de f, porém aplicável após 1, então tem de
haver uma transformação do objeto em 1. Por exemplo: se um pedaço de
vidro não era de fato quebrável antes de 1, mas se mostrou quebrável em 1
(em virtude de um impacto muito mais forte do que seu limite de resistência)
então este mesmo pedaço de vidro tem de ter se transformado no tempo.
Segundo pensamos, o exemplo é infeliz e a idéia de que uma transformação
de uma propriedade relaciona) do objeto é uma transformação do próprio
objeto fica seriamente comprometida.
O termo " inquebrabilidade" é notadamente ambíguo, pois pode ser usado
para fazer referência a (l) uma disposição não-encontrável em um objeto em
virtude da sua própria estrutura (por exemplo: a inquebrabilidade de uma
substância pastosa) e (2) uma disposição encontrável em virtude da sua es-
trutura e de um possível grau de impacto exercido sobre ela. Um objeto pode
ser inquebrável, caso se choque contra o chão a uma distância de 2 metros,
mas pode se quebrar caso se choque contra o chão a uma distância de 200
metros. Neste caso, pode-se dizer que sua inquebrabilidade é relativa à in-
tensidade de um impacto sofrido por ele. Ele pode ser inquebrável até um
determinado grau de impacto e passar a ser quebrável diante de um impacto
mais intenso. A ponte Rio-Niterói foi construída com uma estrutura maleá-
vel de aço, de tal modo que pode balançar sem se quebrar sob o impacto de
ventos de 120 km/h; mas, se ela recebesse o impacto de ventos de 400 kmlh,
é bastante provável que ela se partiria.
Desse modo, predicados tais como " quebrável" e " inquebrável" estão em
uma condição semelhante à dos predicados criados por N. Goodman (1965,
pp. 72-83) quando da apresentação daquilo que ele considerava o novo
enigma da indução. Neste contexto, ele pedia que considerássemos "grue"
(que é verde até 1 e azul após 1) e "bleen" (que é azul até I e verde após t). É
como a história do pente " inquebrável" vendido pelo camelô. Se ele fosse
colocado no bolso de trás, um indivíduo podia se sentar que ele não quebra-
A Natureza da Crença 109

va, porém submetido a fortes torções - como um camelô às vezes fazia para
persuadir os possíveis compradores do pente de sua resistência - ele acabava
se quebrando, pois não tinha s ido fabricado para resistir a isto.
(4) Armstrong se dá conta da dificuldade apontada e procura encontrar
uma saída dizendo que pode ser levantada uma objeção à idéia de que a
transformação tem de ser uma transformação nas propriedades não-
relacionais de um objeto. Estabelecido isto, ele pede que consideremos uma
determinada ocorrência em que uma disposição se manifesta. Por exemplo:
um pedaço de vidro quebrável é atingido por uma pedra e, em conseqüência
disto, se quebra. Nesta, como em qualquer outra relação de natureza causal,
a natureza do efeito depende de três fatores: (1) a natureza da causa, (2) a
natureza das circunstâncias em que ela atua e (3) a natureza das coisas sobre
as quais atua. O vidro em questão se quebrou, porque foi atingido pela pe-
dra; ele não recebeu um tratamento técnico especial conferido aos vidros
inquebráveis: ele é um vidro quebrável.
Do modo como Armstroog se expressa, dá a entender que propriedades
como a quebrabilidade podem ser concebidas como propriedades não-
relacionais. Mas o problema é que a quebrabilidade não depende apenas da
estrutura de um material mas também da intensidade de uma pressão ou um
impacto exercidos sobre ele. O vidro inquebrável de uma janela de avião
provavelmente resistiria ao impacto de uma pedra, mas talvez não resistisse
ao impacto de um tiro de bazuca. O vidro quebrável da janela da minha casa
não resistiria ao impacto de uma pedra, mas poderia resistir ao impacto de
uma bola feita com papel amassado. E se é assim, a quebrabilidade tem de
ser pensada como uma propriedade relaciona) em que está em jogo a estrutu-
ra do material e a intensidade de um impacto ou pressão exercidos sobre ele,
ou seja: x é inquebrável até um impacto de intensidade i3, mas passa a ser
quebrável sob um impacto maior que i3; y é inquebrável até um impacto de
intensidade i8, mas passa a ser quebrável sob um impacto superior a i8, etc.
Todavia, este impasse não afeta a fórmula proposta por Armstrong:

causas de determinada natureza + circunstâncias de determinada


natureza+ disposição= efeito de determinada natureza

Para Armstrong, uma disposição é algo que a coisa que a possui retém,
tanto na ausência de uma causa inicial adequada, como na das circunstânci-
as adequadas para a atuação desta mesma causa. Um vidro quebrável conti-
nua sendo um vidro quebrável, mesmo quando não é atingido pelo impacto
de um objeto duro e mesmo quando protegido para não ser atingido por
nenhum objeto (por exemplo: uma tela de arame protegendo o vidro de uma
110 Mário Guerreiro

janela). Contudo, a presença ou a ausência de uma causa inicial, assim como


a presença ou a ausência de circunstâncias adequadas para a sua atuação,
são as únicas propriedades não-relacionais do pedaço de vidro consideradas
relevantes para seu quebrar ou não quebrar. Admitido isto, Armstrong passa
a admitir que a posse da disposição tem de depender das propriedades não-
relacionais do vidro. (Armstrong, 1981, p. 12).
lodo um pouco mais longe, Armstrong admite que o argumento acima
pode ser posto em questão, a partir das possibilidades das circunstâncias
envolvendo o pedaço de vidro - circunstâncias que formam uma unidade
indissolúvel, juntamente com o próprio vidro, e que desempenham um im-
portante papel causal na quebra do vidro. Sem dúvida. Estamos de pleno
acordo com sua ressalva. Parece difícil conceber qualquer disposição (tanto
de objetos como de indivíduos humanos) sem considerar ao menos a possi-
bilidade da sua manifestação. Quando ela se manifesta, não podemos dizer
que foi acionada unicamente por fatores internos (a estrutura de um material
ou um mecanismo da mente humana), mas também por fatores externos
(ação de forças fisicas sobre o material ou ação de estímulos sobre a mente
humana).
Um individuo irritável não se torna um indivíduo irritado simplesmente
pela posse desta disposição, mas também pela atuação de fatores externos
que a acionam. Mutatis mutandis, o mesmo pode ser dito de um objeto que-
brável. Objetos ou pessoas podem ter ou não ter disposições para isto ou
aquilo, mas, supondo que tenham determinada disposição, esta pode envol-
ver uma questão de grau. Algumas pessoas são mais irritáveis do que outras,
assim como determinados materiais são "mais quebráveis" do que outros, ou
seja: quebram-se com mais facilidade ou não resistem a pressões ou impac-
tos que outros resistiriam com facilidade.
(5) Segundo Armstrong, a disposição implica não só a presença ou a
ausência das propriedades relacionais do objeto, mas também a idéia de que
o objeto está em determinado estado. Embora os estados dos objetos sejam
propriedades não-relacionais dos objetos, nem todas estas propriedades são
estados dos objetos. Para Armstrong, as características especiais destes esta-
dos são: (a) Se um objeto de determinado tipo está em um estado, é sempre
possível que cesse de estar, porém continue sendo um objeto do mesmo tipo.
(b) Embora estados possam envolver processos (como é o caso do circuito
reverberativo) o conceito de estado nunca implica a existência de um proces-
so.
Para Armstrong parece claro que a ausência ou a presença de proprieda-
des não-relacionais implicadas pela posse de uma disposição podem ser
apropriadamente consideradas corno sendo um estado do objeto, porque cabe

\
A Natureza da Crença 111

sempre fazer a suposição de que uma coisa que é quebrável ou elástica perca
uma ou outra destas propriedades, mas não deixe de ser a mesma coisa. E
uma vez que os conceitos disposicionais nos deixam na ignorância no to-
cante às propriedades do objeto que lhes fornecem essa disposição, segue-se
que a atribuição de disposições não implica um processo tendo lugar no
interior do objeto.
(6) A atribuição de uma disposição a um objeto implica o objeto estando
em um determinado estado. Cabe indagar, portanto, qual a real natureza
deste mesmo estado. Armstrong considera impossível fornecer uma resposta
de caráter apodítico. Para ele, a resposta mais plausível é: Qualquer estado
que os cientistas apontem como o responsável pela manifestação da disposi-
ção quando uma causa inicial atua sobre o objeto. Assim sendo, no caso da
quebrabilidade, a causa apontada é uma desagregação da estrutura molecular
do objeto quebrável (Armstrong, 1981, pp. 12-13).
(7) Concluindo seu argumento, Armstrong assevera que, se as disposi-
ções são estados do objeto, elas são destacadas claramente de outros estados
pelo modo como são identificadas. Assim sendo, quando falamos da quebra-
bilidade de um objeto, estamos identificando um estado do objeto em relação
ao que a coisa neste mesmo estado é capaz de produzir em conjunção com
uma causa ativa, não identificando este mesmo estado em virtude da sua
natureza intrínseca. Resta acrescentar que isto, por sua vez, está intima-
mente ligado ao papel desempenhado pelos conceitos disposicionais no nos-
so pensamento.
Costumamos empregar este tipo de conceito quando descobrimos que um
objeto de determinado tipo, acionado por uma determinada causa, comporta-
se de modos inusitados, além dos costumeiramente conhecidos e esperados.
Desse modo, creditamos a responsabilidade por estes modos de comporta-
mento a um estado não-corriqueiro do objeto. Todavia, como não sabemos
qual é a natureza deste estado, anteriormente a penosas pesquisas científicas,
nós o nomeamos pelos seus efeitos. O próprio Armstrong reconhece que sua
explicação está correndo o sério risco de ser tomada como uma explicação
vazia e exposta ao ridículo, semelhantemente à fornecida pela conhecida
personagem de Moliere - o médico que, quando indagado por que razão
uma determinada droga farmacêutica produzia sono, disse prontamente que
ela possuía uma vis dormitiva (força adormecedora).
Assumindo sua própria defesa, Armstrong alega ter ao menos estabeleci-
do a estrutura formal de uma explicação, que pode se mostrar posteriormente
proveitosa. Ele se declara satisfeito em parte com seu argumento, à medida
mesma que este, entre outras coisas, alcançou a idéia de que disposições são
conceitos primitivos - conceitos de estados especificados pelo que a coisa,
112 Mário Guerreiro

neste ou naquele estado, é capaz de produzir como efeito. Investigações


cientificas costumam conduzir à identificação contingente da natureza des-
tes mesmos estados. (Armstrong, 1981, pp. 15-6).
Para Armstrong, os conceitos de disposição e de estado são bastante
distintos, mas não incompatíveis. À primeira vista, uma crença pode ser
concebida como uma disposição e ao mesmo tempo como uma impressão
marcada na mente. Ele entende que as crenças particulares devem ser con-
cebidas como estados, mas as crenças gerais devem ser concebidas como
disposições. Para ele, há fortes diferenças entre disposições e crenças parti-
culares. Uma destas diferenças entre disposições (como a solubilidade) e
crenças particulares (como a de que a Terra é redonda) é que o conceito de
disposição tem de envolver uma causa inicial de determinado tipo, que acio-
na o gatilho da manifestação. Um tablete de açúcar é considerado solúvel,
porque se dissolve quando colocado em um líquido como a água. Porém o
conceito de crença não parece envolver qualquer causa inicial responsável
pela manifestação de uma crença determinada. Não há dúvida de que causas
iniciais estão sempre presentes quando uma crença se manifesta, porém tais
causas não desempenham nenhum papel especial relativamente ao conceito
de crença. (Armstrong, 1981 , p. 16).
Armstrong lembra que há muito tempo N. Chomsky tem chamado a
atenção para a natureza independente de estímulos das sentenças produzidas
pelos falantes. Para o mencionado lingüista, quando um falante produz uma
sentença bem-formada e significativa, geralmente não há nenhum estímulo
externo que tenha causado seu ato de produção desta mesma sentença. O que
o falante costuma dizer é na maior parte das vezes determinado por seus
particulares interesses e finalidades. As disposições são também indepen-
dentes de estímulos, mas as manifestações das disposições dependem de
estímulos, à medida mesma que dependem do acionar de uma causa inicial.
As crenças gerais, no entanto, não dependem de quaisquer estímulos.
Armstrong pede que consideremos a crença de que o arsênico é venenoso.
Trata-se de uma crença geral, pois o termo do sujeito faz referência a uma
substância (no sentido químico do termo). Nomes de substâncias químicas
como o arsênico ou o cloro ou nomes de materiais como a madeira ou o ferro
são considerados por P. F. Strawson (Guerreiro, 1986, pp. 97-9) como uni-
versais de massa. Na sua teoria dos universais (Armstrong, 1978) não em-
pregou este termo técnico, nem defendeu o nominalismo mitigado proposto
por Strawson, mas o fato de ele considerar uma proposição tal como "o arsê~
nico é venenoso" como uma proposição geral ou universal só pode ser justi-
ficado tendo como pressuposto que o termo sujeito, "o arsênico" é conside-
rado como um universal de massa ou outro tipo de universal bastante seme-
A Natureza da Crença I 13

lhante.
Armstrong diz que se a tem a crença geral de que o arsênico é venenoso,
isto pode ser tratado como uma disposição de a. A causa inicial da manifes-
tação desta mesma crença consiste em a crer que determinada substância
diante dele é arsênico. Esta crença em uma particular matter offact aciona o
gatilho de uma outra manifestação determinada: a adquire a crença de que a
substância diante dele é venenosa (Armstrong, 1981, pp. 1Cr7). Com isto,
Armstrong chama a atenção para o aspecto de que ao menos um tipo de
crença não é inata nem obtida pela mera observação, mas sim adquirida e
obtida mediante inferência. Podemos reoonstitui-la nos seguintes termos:

(1) O arsênico é venenoso (crença abrigada por a anteriormente a t)


(2) Esta substância é arsênico (crença adquirida por a em t)

(3) Esta substância é venenosa (crença adquirida após a


constituição de (2) em t)

Não há a menor dúvida de que o esquema inferencial acima é de nature-


za dedutiva. (3) foi corretamente deduzida das premissas (1) e (2). Supondo
que (2) fosse uma proposição falsa decorrente de uma identificação equivo-
cada da substância observada por a, a conclusão (3) teria de ser também
falsa. A crença de que o arsênico é uma substância venenosa (uma crença
geral) parece só poder ter sido obtida mediante observação e indução, mas a
crença de que determinada substância se apresentando para a percepção é
arsênico (uma crença particular) é urna inferência dedutiva podendo ser
reconstituída assim:

(I) O arsênico tem as características F, G, H, etc.


(2) Esta substância tem as características F, G, H, etc.

(3) Esta substância é arsênico

Supondo que (!) fosse uma proposição falsa, o que estaria falsificado
seria a crença geral de que o arsênico é venenoso, mas supondo que (2) fosse
uma proposição falsa, o que estaria falsificado seria a proposição particular
de que determinada substância observada era de fato arsênico. Ora, a falsifi-
cação de (I) implica a falsificação de (3). mas a recíproca não é verdadeira,
pois um equívoco de identificação de uma instância de uma substância não
afeta a caracterização da própria substância qua ta/e. Deixaremos de lado as
importantes conseqüências podendo ser extraídas dessa diferença entre a
114 Mário Guerreiro

natureza das crenças gerais e a das particulares, para retomar a argumenta-


ção de Armstrong.
Ele põe em destaque outra importante di ferença. Supondo que uma dis-
posição como a quebrabilidade se manifeste, ela só pode se manifestar de um
único modo: o objeto quebrável se :fraccionando em pedaços maiores ou
menores quando do impacto com outro objeto ou com a ação de uma força
física (ultrasons, por exemplo) capazes de promover uma desagregação mo-
lecular. Não há, no entanto, um só modo mediante o qual uma crença (a de
que a Terra é redonda) se manifesta, supondo evidentemente que ela venha a
se manifestar. E também não é de nenhum modo necessário a manifestação
assumir formas de aquiescência tácita ou explícita.
Armstrong reconhece que G. Ryle (1949, pp.43- 5) estava plenamente
consciente disto, tanto que tentou superar a dificuldade envolvida para seu
conceito de disposição recorrendo a uma distinção entre: (a) disposição de
trilha única (sing/e-track disposition) e (b) disposição de trilha múltipla
(many-track disposition). Desse modo, para ele a quebrabilidade, a elastici-
dade, a solubilidade, etc. constituíam disposições do tipo (a), ao passo que
crença - como a crença de Pedro de ·que a Terra é redonda - constituíam
disposições do tipo (b), porquanto podiam se manifestar de diversas manei-
ras. Considerando maneiras diretas e indiretas, Ryle chegou mesmo a admi-
tir um número potencialmente infinito de maneiras (Armstrong, 198 I, pp.
I 6-7). De nossa parte pensamos que, embora haja quase sempre uma grande
diversidade de maneiras, não estamos tão seguros quanto ao seu caráter
potencialmente infinito.
Arrnstrong considera que a distinção de tipos introduzida por Ryle é
bastante esclarecedora, porém, por si só, insuficiente para superar a dificul-
dade envolvida. Para ele, qualquer pessoa que compreenda o uso lingOístico
da palavra breakable (quebrável) compreende automaticamente o que é a
manifestação da quebrabilidade: o ato de se esfacelar após o recebimento de
um impacto. Contudo, esta última noção pode ser perfeitamente compreen-
dida sem que haja qualquer apreensão da noção de quebrabiHdade (enquanto
uma especial forma de disposição). Contrastantemente, as manifestações
características da crença só podem ser identificadas por uma referência re-
troativa à própria crença.
Armstrong reconhece que o contraste estabelecido por ele não é sufici-
entemente claro (Nós mesmos o apresentamos sem ter compreendido seu
sentido). Diante deste franco reconhecimento, ele não vê outra alternativa
senão recorrer a exemplos. Por exemplo: se a acredita que a Terra é plana e
se a é anglófono, ele poderá manifestar a sua crença mediante o proferi-
mento da sentença inglesa: "The earth is flat." Esta manifestação tem de
A Natureza da Crença 115

estar elencada em qualquer lista das possíveis manifestações de crenças de a.


Mas o que faz com que e la seja uma manifestação de uma das crenças de a?
A resposta de Armstrong é surpreendentemente simples: unicamente o fato
de que as regras de construção de sentenças da língua inglesa são de tal
natureza que o ato de proferir a seqüência de fonemas ou de escrever a se-
qüência de sínais apresentada acima constitui o modo natural de expressar
tal crença.
Cabe observar aqui que se a fosse um falante da língua portuguesa, o
mencionado modo natural seria "A Terra. é plana." Porém, temos de admitir
que em ambos os casos está em jogo a expressão da mesma crença, apesar
das diferenças de fonemas ou de letras. Evidentemente, Armstrong pretendia
algo mais do que apontar uma convenção lingüística. Ele se apressa em
tentar esclarecer o exemplo acima proposto. Se tomarmos os possíveis mo-
dos de expressão de uma crença de que é o caso de p , o único fator unifi-
cante podendo ser detectado neste mesmo conjunto é que todas as expressões
brotam de uma mesma crença. Isto mostra que, ainda que não consideremos
as disposições como estados reais da coisa, teremos de considerar as crenças
como estados reais da mente do indivíduo que as abriga, pois somente quan-
do ele está em um estado em que, dentro de circunstâncias adequadas, gera
todas essas manifestações, podemos compreender o fator aglutinador que as
agrupa em determinada classe.
Desta vez, Armstrong recorre a um exemplo extremamente esclarecedor.
Ele pede que imaginemos uma casa em que a janela foi aberta, cinzas de
cigarro foram jogadas no chão, há um copo com um pouco de uísque em
cima de uma mesa, etc. Ele observa que não há nada nos eventos assinalados
capaz de unificar isto que se apresenta como uma coleção heterogênea de
ocorrências. Todavia, um princípio unificante desponta imediatamente, caso
façamos a conjetura, bastante provável, de que todos estes eventos díspares e
isolados foram causados pela ação de um indesejável intruso. (Armstrong,
1981 , p. 18). De fato, os diferentes efeitos parecem só poder ser atribuídos a
uma única causa.
A diferença entre uma crença imanifestada e uma crença manifestada
torna-se, ao menos para determinados propósitos, uma diferença entre: (a)
um estado causalmente inativo e (b) um estado causalmente ativo. Isto
posto, Armstrong faz uma analogia com uma situação corriqueira no campo
da computação. Uma coisa é uma informação inativa registrada em uma das
seções da memória de um computador, outra, notadamente distinta, é esta
mesma informação desempenhando um papel causal no processamento de
um texto e culminando em um print out. (Armstrong, 1981, p. 18).
Embora Armstrong tenha proposto a analogia acima visando à exempli-
116 Mário Guerreiro

ficação e sem conferir grande peso a ela, temos boas razões para acreditar
que - juntamente com o já mencionado processo inferencial de aquisição de
crenças - estamos diante de tópicos merecedores de considerações mais
aprofundadas, pois estas podem nos fornecer importantes pistas para um
esclarecimento maior da concepção de crença como disposição e, mais espe-
cificamente, como disposição para a ação.
Admitamos que em algum ponto da minha memória está registrada a
crença de que p. A situação com a qual estou envolvido em 11 apresenta
aspectos bastante distanciados do conteúdo significativo de p, de tal modo
que não há nenhuma razão nem nenhum motivo para p aflorar à minha
consciência. Contudo, em 12, ocorre algo inesperado e faz com que p aflore à
minha consciência e eu tome uma importante decisão baseada em p. Tudo
indica que em situações deste tipo a crença se apresenta como uma disposi-
ção para a ação seguida da manifestação desta mesma. Ela passa de um
estado causalmente inativo para um ativo, de modo que, ao menos à primei-
ra vista, não parece diferir do que pode ser encontrado no comportamento de
animais ou computadores. Não há dúvida de que há fatores de caráter estru-
tural marcando a diferença entre a consciência humana, de um lado e a dos
animais e dos dispositivos computacionais de outro, porém não devemos
desprezar as semelhanças.
Novamente as crenças gerais despontam como uma marcante exceção em
relação ao que foi dito sobre crenças particulares e disposições. É plausível
dizer que a crê que p (por exemplo: "O arsênico é venenoso"), se, e somente
se, a aquisição da crença particular de que uma determinada substância é
arsênico faz com que a adquira a subseqüente crença particular de que esta
mesma substância é venenosa. Seria incongruente, caso a aceitasse as pre-
missas (1) e (2) do esquema inferencial já apresentado, mas recusasse (3) a
conclusão. Supondo que a se recusasse a aceitar (3), a estaria desempenhan-
do um comportamento tão irracional quanto o de b, admitindo que b abrisse
sua boca para formular a seguinte hipótese: "Se a Terra é plana, a navegação
na direção do Ocidente tem de conduzir ao Oriente." Tal hipótese é mani-
festamente incongruente. A idéia de que a referida navegação conduz ao
referido objetivo não é compatível com nenhuma propriedade do plano, mas
sim com uma propriedade topológica da esfera.
No caso das crenças pensadas em contraposição a disposições (como a
solubilidade do tablete de açúcar, por exemplo), parece que os estados en-
volvidos têm de apresentar uma determinada estrutura interna. Suponhamos
que a creia que p (O gato está deitado no tapete), creia que q (O gato está
dormindo) e que r (O gato é preto). Embora p, q e r sejam crenças distintas,
elas envolvem claramente um núcleo comum, pois são crenças a respeito de
A Natureza da Crença 11 7

aspectos de um particular gato. Ora, se tomarmos as crenças como estados


do crente, não teremos de assumir que estes mesmos estados apresentam
uma estrutura interna, de modo tal que aos elementos comuns nas coisas
acreditadas correspondem elementos comuns no estado que é a crença? Não
há dúvida de que temos de fazer uma distinção entre: (a) o ato de a crer que
p e (b) o objeto da crença de a. Se é assim, cabe levantar a hipótese de que a
estrutura interna do estado doxástico reflete a estrutura da proposição acre-
ditada, pois, supondo que assim não fosse, como poderiam crenças com
diferentes conteúdos dar lugar a diferentes mani festações?
Cabe alegar que a noção de estrutura interna de um estado não é de ne-
nhum modo uma noção clara. Não é dificil conceber que um objeto ou um
evento tenham uma estrutur a, mas como pode um estado - que é um tipo de
propriedade - ter uma estrutura? Armstrong admite que a noção de
"estrutura de um estado" é prima facie algo bastante estranho; porém, esta
noção, uma vez bem esclarecida e compreendida, pode ser aplicada sem
dificuldade. As moléculas de um pedaço de vidro estão articuladas de modo
especial. Este é para todos os efeitos o estado em que o vidro está. Uma vez
que este estado envolve determinado tipo de arranjo das moléculas Consti-
tuintes do vidr o enquanto material, não é incongruente dizer que este mesmo
estado possui uma estrutura. Para Armstrong, a noção crucial neste contexto
é a de "elementos articulados em uma relação." Desse modo, faz sentido
dizer que os estados doxásticos têm urna estrutura, porque eles apresentam
de fato elementos articulados em uma relação.
Segue-se dai que a diferença entre os conceitos de disposição e crença
não é uma diferença de natureza, porém, de grau. Além da noção de
"estado," o conceito de crença envolve a noção de "estrutura", e isto tanto no
que se refere às crenças particulares como no que se refere às gerais. Há,
contudo, uma diferença entre os mencionados conceitos: a manifestação de
uma disposição é diretamente observável (Podemos observar o açúcar se
dissolvendo na água ou um copo de vidro se quebrando), mas a disposição
qua ta/e não é observável. Ela só pode ser indiretamente observável ou, para
dizer de outro modo: alcançável por meio de uma inferência partindo da sua
manifestação. O mesmo pode ser dito no tocante à atribuição de crenças a
outras pessoas. Porém, no que diz respeito às nossas próprias crenças, po-
demos ter um acesso privilegiado a elas, independentemente das suas possí-
veis manifestações. No entanto, quando indagamos como conceber esse
conhecimento das nossas próprias crenças, a questão toma-se complexa.
Caso este conhecimento seja concebido como indubitável e incorrigível -
enquanto conhecimento privilegiado - abre-se uma fenda intransponível
entre crenças e disposições naturais, pois é inteiramente despropositado falar
118 Mário Guerreiro

em conhecimento privilegiado em relação à quebrabilidade de um copo de


vidro ou em relação à solubilidade de um tablete de açúcar.
Em um trabalho anterior, Armstrong (1968, 6, lO) tinha desenvolvido
um argumento destinado a refutar a tese de que temos de fato um conheci-
mento privilegiado dos nossos próprios estados mentais. Mas no presente
trabalho ele admite que, uma vez rejeitado tal tipo de conhecimento, passa a
ser um fato meramente contingente o de que temos um conhecimento direto
ou não-inferencial de alguns dos nossos estados mentais, inclusive de a lguns
dos nossos estados doxásticos. Porém, não dispomos de um conhecimento
deste tipo no que se refere a disposições naturais como a maleabilidade e a
solubilidade. (Armstrong, 1981, p. 20).
Como vimos, Armstrong rejeitou a concepção humeana de acordo com a
qual as crenças são ocorrências. Elas podem se apresentar assim, mas não
são necessariamente assim. Indo um pouco mais longe, ele rejeitou a identi-
ficação da crença com qualquer tipo de conteúdo de consciência. Elas podem
se manifestar assim, mas não é necessário que elas se manifestem tout court.
Não obstante, ele está disposto a reconhecer que uma crença pode se apre-
sentar sob a forma de um conteúdo de consciência, pois ela pode estar
"diante da nossa mente." Mas qual o significado preciso desta expressão? De
saída, cabe reconhecer que ela não é de nenhum modo uma expressão unívo-
ca. (Armstrong, 1981, p. 2 1).
Como vimos também, Armstrong fez uma distinção entre crença cau-
salmente ativa e crença causalmente inativa, e isto reforçou a idéia de que
uma crença nesta segunda condição é incompatível com uma crença en-
quanto conteúdo de consciência. Armstrong vai agora um pouco mais longe,
afirmando que muitas das crenças que orientam nossa ação jamais afloram à
consciência, no momento preparatório em que uma ação é ainda um projeto.
Algumas vezes, uma crença confiantemente sustentada revela-se falsa e, em
conseqüência disto, a ação baseada nela fracassa completamente. Porém, é
somente com a apreensão do fracasso que nos tomamos conscientes de que
estivemos a todo tempo assumindo a veracidade de uma falsa crença.
Quanto à elucidação do sentido de " diante da nossa mente", Armstrong
assevera que não é possível dar uma resposta satisfatória, a não ser no inte-
rior de uma teoria da consciência, e não resta dúvida de que a análise da
mencionada expressão constitui uma das mais dificeis tarefas de uma psico-
logia filosófica. Ele tinha tentado isto em um livro anterior (1968) em que
tinha se comprometido com a idéia de consciência como "sentido interno"
na acepção kantiana, ou seja: como percepção dos conteúdos da nossa men-
te. Nesta perspectiva, dizer que uma c rença está "diante da consciência" é
algo análogo a dizer que um objeto está no nosso campo visual. Contudo,
A Natureza da Crença 11 9

Armstrong vê-se forçado a reconhecer que isto remete o pensamento a uma


questão não menos espinhosa: a da natureza da percepção. (Armstrong,
1981, p. 22).
Apesar dessas observações, o desenvolvimento posterior do pensamento
de Armstrong ( 1981, pp. 38-219) revelou que ele não estava interessado na
investigação de quaisquer tópicos de psicologia filosófica, mas na problema-
tização de um tópico clássico na epistemologia desde Platão: as relações
entre crença e conhecimento. Contudo, antes de ter abordado a questão
epistemológica propriamente dita, ele considerou oportuno oferecer uma
resposta para outra questão considerada prioritária. Qual o status ontológico
da crença?
Sua resposta, como vimos, pode ser resumida nos seguintes termos: de
um ponto de vista formal, nossas crenças têm um caráter proposicional,
coisa que pode ser expressa - na lógica epistêmica de Hintikka (1962) - e no
seu próprio texto (I 981) pela fórmula Bap (em que a (um indivíduo humano
qualquer) crê que p (uma proposição qualquer)). Como as de qualquer outro
tipo, as proposições doxásticas podem ser universais ou particulares. Para
Armstrong, as universais são disposições e as particulares são estados. To-
davia, esta diferença não decorre da diferença da quantificação lógica, que
nos permite reconhecer como universais crenças encabeçadas pelos quantifi-
cadores naturais ("O", "Todos", etc.) ou por universais de massa ("A madei-
ra", "A água", "O arsênico", etc.).
Como vimos, Armstrong considérou que era plausível dizer que a acre-
ditava que p (por exemplo: "O arsênico é venenoso" - uma crença geral)
se, e somente se, a aquisição da crença de que a substância x é arsênico fi-
zesse com que a adquirisse a crença posterior de que aquela substância di-
ante dele era venenosa. Como observamos em seguida, isto era uma evidên-
cia da necessidade de aprofundar o aspecto inferencial envolvido com as
crenças, pois parece não haver dúvida de que - de acordo com a formulação
avançada por Armstrong - parece só haver duas maneiras de afrrmar com
segurança que a possui a referida crença: (1) Caso a a expresse explicita-
mente mediante o proferimento da asserção universal afirmativa p "O arsê-
nico é venenoso" ou (2) caso nos permita inferir esta asserção universal
afirmativa de duas asserções particulares afirmativas: q "Esta substância é
arsênico" e r "Esta substância é venenosa." Mas por que precisa razão
Armstrong considera que p é ontologicamente uma disposição, ao passo que
q e r são estados?
De acordo com Armstrong, tudo começou quando ele se deparou com um
artigo de F. P. Ramsey (1931). Neste artigo, Ramsey tinha apresentado uma
sugestiva definição de caráter metafórico: "Crenças são mapas por meio dos
120 Mário Guerreiro

quais navegamos" (Belieft are maps by which we steer). Armstrong disse


que de saída levantou a suspeita de que a analogia metafórica proposta por
Ramsey tinha se inspirado na conhecida comparação de sentenças com figu-
ras tal como feita por Wittgenstein no Tratado Lógico-Filosófico.
Armstrong entende que, se concebermos as crenças como mapas, poderemos
conceber a totalidade das crenças de um homem, em um determinado mo-
mento, como um único e grande mapa em que as crenças particulares são
submapas. Contudo, não seria adequado imaginá-lo como uma carta geo-
gráfica moderna feita por um cartógrafo tecnicamente qualificado - uma
imagem mais adequada como analogia com o conhecimento - porém como
um mapa antigo contendo diversas imprecisões, lacunas, acidentes geográfi-
cos imaginários, etc.
Diante disto, Armstrong pondera que - no caso dos mapas propriamente
ditos- há que distinguir: (1) o próprio mapa enquanto representação e (2) as
possíveis leituras feitas por seus possíveis leitores. Não obstante, esta distin-
ção não pode ser estendida às crenças, porque não fazemos nossa representa-
ção da realidade a partir dos dados fornecidos pelas nossas crenças: para
todos os efeitos, nossas crenças são nossa interpretação da realidade. Assim
sendo, devemos concebê-las como mapas trazendo em si mesmos sua inter-
pretação da realidade. Elas apontam para a existência de estados de coisas,
ainda que não haja um só dos estados por elas apontados. Falsas crenças não
deixam de ser crenças. Independentemente da sua adequação ou inadequa-
ção com estados de coisas, as crenças possuem um poder intrínseco de re-
presentação (Armstrong, 1981, p. 4).
De acordo ainda com Armstrong, há que distinguir ainda as crenças de
meros pensamentos e o ato de pensar em p do ato de crer que p. A princípio,
nada há contra a idéia de se conceber também pensamentos como mapas,
porém há uma crucial diferença entre mapas-pensamento (thought-maps) e
mapas-crença (belief-maps). No Tratado da Natureza Humana (1, 3,7), D.
Hume talvez tenha sido - como de resto reivindicara - o primeiro filósofo a
descortinar a diferença entre: (I) ''pensar em algo" e (2) "crer que é o caso
de algo." Armstrong afirma que Ramsey forneceu uma resposta para o pro-
blema vislumbrado por Hume. Ao propor que "crenças são mapas por meio
dos quais navegamos", ele sugeriu que - diferentemente de proposições
meramente entretidas pelo pensamento - as crenças são orientadoras da ação
(action-guiding). As crenças são mapas do mundo à luz dos quais tornamo-
nos preparados para a ação. (Armstrong, 1981, p. 4).
Pode-se fazer uma conseqüente ressalva à referida analogia de Ramsey, a
partir da restrita abrangência desta mesma, pois, quando muito, ela pode dar
conta de crenças relativas a lugares e tempos particulares, porém não pode
A Natureza da Crença 121

dar conta de crenças sob a forma de proposições universais com quantifica-


dores irrestritos. Chegamos assim ao ponto em que queríamos chegar: É
justamente na passagem que se segue que Arrnstrong teve seu primeiro in-
sight de que crenças gerais não podem ser estados, mas disposições:

Penso que a objeção é justificada e que estas crenças requerem uma


explicação diferente. O próprio Ramsey reconheceu a necessidade de
uma explicação diferente ( ... ) Ele sugeriu que tais "crenças gerais"
( ... )eram "hábitos de inferência", que nos dispõem a nos deslocarmos
de uma crença sobre uma particular questão de fato para uma crença
posterior sobre outra questão de fato (matter offact). Crenças gerais
são disposições para que estendamos o mapa-crença original e assim
o façamos de acordo com certas regras. (Arrnstrong, 1981, p.5.)

De acordo com Arrnstrong, Ramsey estava seguindo urna orientação


fornecida· por C. S. Peirce (1940) em seu conhecido ensaio The j'lXation of
belief, porém, advertido por O. Gasking, Ramsey foi provavelmente levado à
sua visão da crença impulsionado por uma visão das dificuldades suscitadas
pela concepção wittgensteiniana de proposições universais com quantifica-
dores irrestritos como conjunções infinitas de proposições particulares.
Arrnstrong considera que qualquer tentativa de explicação das crenças gerais
através desta concepção enfrenta obstáculos intransponíveis.
Examinando melhor a crítica endereçada por Amstrong a Ryle, podemos
constatar que esta se resume em sustentar que este último tomou ambas as
crenças particular e geral como disposições, ao passo que ele, Armstrong,
entende que somente as crenças do segundo tipo podem realmente ser consi-
deradas disposições, porque, como vimos, apresentam duas características
básicas: (1) Acionam o gatilho de um mecanismo inferencial e (2) ao acio-
nar este gatilho, permitem que partamos de crenças particulares já incorpo-
radas ao nosso acervo de crenças e cheguemos à aquisição de novas crenças
particulares. Em uma passagem em que Ryle estava interessado em distin-
guir asserções legalóides (law statements) de asserções fatuais (statements of
fact), ele diz o seguinte:

Asserções legalóides são verdadeiras ou falsas, mas não assentam


verdades ou falsidades do mesmo tipo das assentadas pelas asserções
de fato às quais elas se aplicam ou ao menos se supõe que sejam apli-
cáveis. Elas têm diferentes tarefas. A diferença crucial pode ser esta-
belecida da seguinte maneira: Ao menos parte da atividade de tentar
estabelecer leis consiste em descobrir como fazer inferências de parti-
culares questões de fato a outras particulares questões de fato e como
122 Mário Guerreiro

explicar particulares questões de fato a outras ( ...) Uma lei é usada,


por assim dizer, como um bilhete-inferência, que dá permissão aos
seus possuidores de se deslocarem de uma asserção fatual à afirmação
de outras. (Ryle, 1949, pp.Il6-7).

Importante frisar que embora a caracterização feita por Armstrong não


difira essencialmente da feita por Ryle, há uma significativa diferença entre
ambas: Ryle não estava atribuindo esta mesma caracterização a asserções
doxásticas (belief-statements), porém a asserções legalóides (/aw-
statements). Desse modo, ficou bastante claro na supracitada passagem que
seu interesse não era a investigação da crença, mas do conhecimento. Assim
sendo, supondo que ambos estejam corretos nas caracterizações dos seus
respectivos objetos, pode-se questionar a pretensão de Arrnstrong de que sua
caracterização seja uma peculiaridade das crenças gerais, assim como pode
ser questionada uma possível pretensão de Ryle de que sua caracterização
seja uma peculiaridade das asserções legalóides como universais nomotécni-
cos. E ao mesmo tempo cabe levantar a hipótese de que a referida caracteri-
zação endossada por ambos seja, na realidade, uma peculiaridade de quais-
quer proposições gerais (universais) funcionando em quaisquer mecanismos
inferenciais.
No que diz respeito às inferências indutivas, é impossível conceber qual-
quer esquema inferencial sem a presença de uma proposição geral
(universal) ocupando o lugar da conclusão. Não há indução sem generaliza-
ção empírica, e não se pode expressar o produto desta mesma generalização
sem uma proposição geral (universal). Certamente, há casos especiais de
generalizações não-empíricas, como é o caso da assim chamada
"generalização existencial" que, diga-se de passagem, não é um esquema
inferencial indutivo, porém dedutivo e, além disso, não é uma inferência
mediada - como são todas as indutivas - mas uma inferência imediata de
uma proposição singular a uma particular. No que diz respeito às inferências
dedutivas, pode-se afirmar com segurança que, ao menos as da forma si lo-
gística são inconcebíveis sem a presença de uma proposição universal, figu-
rando como uma das premissas ou ocupando o lugar da conclusão. Não é de
surpreender, portanto, que todos os modos de silogismos na silogística aris-
totélica apresentem ao menos uma proposição deste tipo, embora tenhamos
de reconhecer outras formas de dedução em que não há proposições univer-
sais. (Skirms, 1971, p. 4).
Não há dúvida de que as crenças gerais - justamente por se apresentarem
sob a forma de proposições universais, independentemente da sua quantifi-
cação universal restrita ou irrestrita - costumam desempenhar o papel que
A Natureza da Crença 123

lhes é atribuído tanto por Ryle como por Armstrong. Não obstante, dando
por assentado que não estão em jogo quaisquer disposições inatas do sujeito
da crença - coisa que dificilmente poderia ser aceita - cabe indagar como
este mesmo as adquire. Tudo leva a crer que o modo mais comum de aquisi-
ção (ou ao menos o mais estudado por filósofos) se faz por meio de generali-
zações empíricas em esquemas indutivos, que Hume remeteu pura e sim-
plesmente aos hábitos e Ramsey qualificou como "hábitos de inferência."
Contudo, não se pode sustentar que este seja o único meio de aquisição.
Alguém pode adquirir a crença de que p (por exemplo: de que "o arsênico é
venenoso") simplesmente por ouvir dizer que assim é e conferir plena credi-
bilidade ao que ouviu ou lhe foi dito, seja porque o foi por seu professor de
química, seja porque assim leu em uma revista de divulgação científica, seja
de qualquer outro modo em que a crença foi adotada por pura credibilidade
sem nenhuma investigação ou questionamento. Para todos os efeitos, o que
importa neste contexto não são os motivos nem as razões que levam a, b ou
c, etc. a acreditarem em p, q ou r, etc., mas o fato de a, b ou c, etc., conferi-
rem sua adesão a p, q ou r, etc., e confiarem na veracidade de p, q ou r, etc.
Não importando se uma crença foi obtida por indução ou por alguma
forma de ouvir dizer, ela só é incorporada ao repertório de crenças do sujeito
caso desperte nele credibilidade, o que nada tem a ver com seu caráter pos-
sível ou imposslvel, racional ou irracional, pois o que está realmente em jogo
não é o conteúdo da crença, mas uma atitude proposicional assumida pelo
sujeito da crença. Este é um aspecto da questão que não foi levado em consi-
deração por Armstrong, mas foi levado seriamente em consideração por
outros autores, como é o caso de R. Needham ( 1972, pp. 64-1 08). À primei-
ra vista, isto não é incompatível com com a concepção de Armstrong, mas
abre uma importante perspectiva não descortinada por ele. Não iremos ex-
plorá-la antes de examinar mais alguns aspectos da concepção de
Armstrong.
Embora Armstrong tenha insistido em manter sua distinção entre cren-
ças gerais como disposições e crenças particulares como estados, na sua
posterior explicitação dos princípios de inferência que nos permitem o des-
locamento de uma crença particular a outra, Armstrong ( 1981, pp. 99-11 O)
assume que, para todos os efeitos, as expressões doxásticas são atitudes pro-
posicionais. E ele mantém este mesmo pressuposto mais adiante - no capi-
tulo 10 de Belief, Truth and Knowledge - em que tematiza a fórmula clássi-
ca da epistemologia desde Platão a Hintikka, de acordo com a qual o conhe-
cimento implica a crença, porém a recíproca não é procedente. Como é sabi-
do, no Teeteto (20Ic-d) Platão apresentou uma definição do conhecimento
em termos de crença: Episteme esti a/ethe doxa meta logou (O conheci-
124 Mário Guerreiro

mento é a crença verdadeira aceita por razões, ou contraidamente: a crença


justificada). Arrnstrong faz farto uso da lógica epistêmica de Hintikka em
que a referida definição platônica está implícita nos seus dois axiomas:

(I) Kap ::> Bap


(2) - (Bap ::> Kap)

(em que a representa um indivíduo humano qualquer enquanto sujeito cog-


nitivo, K (de ''knowledge") é o functor epistêmico, B (de "beliet'') é o functor
doxástico e::> é o conectivo de implicação material no sistema de Russell &
Whitehead. Desse modo, ( I) deve ser lido como: "a sabe que p implica a crê
que p" e (2) "a crê que p não implica a sabe que p").
Pode-se dizer que expressões tais como: (a) a crê que p, (b) a sabe que p,
(c) a tem certeza de que p, (d) a duvida de que p, (e) a supõe que p, etc.,
caracterizam diferentes atitudes, podendo ser assumida por um indivíduo
diante de uma mesma proposição. O conteúdo proposicional não sofre ne-
nhuma alteração, mas a atitude diante da proposição se modifica. Em uma
análise das diferenças entre atitudes proposicionais, o conteúdo proposicio-
nal não tem a menor importância. O que importa é a diferença qualitativa
entre as atitudes proposicionais. Por exemplo: em (a) está em jogo uma ade-
são não-justificada ou até mesmo não-justificável, em (b) está em jogo uma
adesão justificável, em (d) uma incapacidade de tomar uma decisão quanto
a uma adesão ou não.
Desse modo, cabe levantar a hipótese de que a caracterização da crença
como um tipo de atitude proposicional de adesão é válida tanto para as cren-
ças particulares como para as gerais, pois parece independer de a crença ser
concebida como estado ou como disposição. Embora não possamos aceitar a
identificação da crença como urna ocorrência consciente (concepção de Hu-
me), temos de admitir que ele tocou em um ponto importante para a caracte-
rização da natureza da crença. Além de ter surpreendido a crucial diferença
entre "pensar em algo" e "crer que a lgo é assim" - em que estão em jogo
respectivamente a ausência e a presença de uma atitude de adesão - ele
afirmou explicitamente que, admitindo que esta diferença nada tem a ver
com uma idéia vívida associada a urna impressão presente, segue-se que esta
diferença tem de estar na maneira como a concebemos. Desse modo, após ter
chegado bastante perto do conceito de atitude proposicional, Hurne (1978, I,
3,7, p. 95) colocou uma excelente questão para a qual forneceu uma resposta
insatisfatória: "Onde está a diferença entre acreditar em uma proposição ou
desacreditar desta mesma?"
Uma das possíveis respostas seria: acreditar em uma proposição consiste
A Natureza da Crença 125

em aderir a uma proposição (independentemente de ela ser verdadeira ou


falsa, plausível ou implausível, possível ou impossível, etc.) e desacreditar
de uma proposição é não aderir a uma proposição (independentemente do
seu conteúdo significativo). l-lume, no entanto, provavelmente impulsionado
por um empirismo radical, voltou-se para os conteúdos de consciência, para
as impressões, e concluiu seu pensamento com a definição de crença como
"uma idéia vívida relacionada com, ou associada a, uma impressão presen-
te." E dando por assentado que "crença é um termo que todo mundo com-
preende muito bem na vida comum," julgou que não podia ir mais longe
além de dizer que a crença é:

Algo sentido pela mente, que distingue as idéia de ')uízo" e de


"ficções da imaginação", dá às primeiras mais força e influência, as
imprime na mente e as torna o princípio regente de todas as nossas
ações. (l-lume, 1978, p. 629).

De fato, é bastante dificil compreender a gênese de uma ação humana


sem incluir as noções de vontade e crença situadas entre o pensamento e a
ação propriamente dita. Mas se é assim, tudo leva a crer que Ramsey - na
sua concepção de mapa-crença- partiu mesmo de l-lume, pois admitiu expli-
citamente que as crenças são orientadoras da ação (action-guiding).
Armstrong, por sua ve:z., malgrado ter manifestado sua concordância com
l-lume, Ramsey e Ryle neste particular, não desenvolveu nenhuma idéia
sobre as relações entre crença e ação. Em Belief. Truth and Knowledge, ele
se concentrou inteiramente sobre as relações entre crença e pensamento.
De acordo com S. Hampshire, este procedimento gera uma imperdoávei
lacuna, pois ele considera que, assim como o pensamento não pode ser pen-
samento a menos que direcionado para uma conclusão, crenças que não
orientam jamais a ação não contam como crenças. Dito explicitamente: "Se
um homem consigna qualquer significado às alternativas de acreditar ou não
acreditar, ele deve (he must) em cada caso considerar as possíveis conse-
qüências" (Hampshire, 1959, p.I59). Temos a impressão de que Hampshire,
ao dizer isto que disse, abrigava tacitamente uma diferença entre crenças
sérias e crenças tolas, assim como Wittgenstein estabelecia explicitamente
uma diferença entre dúvidas relevantes que se mostram de algum modo na
prática e dúvidas irrelevantes que não se mostram:

Se alguém duvidasse disto, como sua dúvida se mostraria na prática?


Deveríamos deixá-lo duvidar sossegado, uma vez que sua dúvida não
faz a menor diferença? (Wittgenstein, 1969, ítem 120).
126 Mário Guerreiro

Embora sob determinado aspecto sejamos levados a concordar com


Hampshire e com Wittgenstein, sob outro somos compelidos a admitir que
crenças e dúvidas - relevantes ou irrelevantes- não deixam de ser crenças e
dúvidas pura e simplesmente. Desse modo, entendemos que a questão da
natureza da crença qua ta/e é independente da sua possível relevância teóri-
ca ou prática, embora a determinação do status ontológico da crença não
possa ser considerada irrelevante para a do seu possível papel nos processos
do pensamento e da ação. Supondo que assim não fosse o caso, a crítica
desta ou daquela determinação do seu status ontológico perderia inteira-
mente sua razão de ser, pois o que se pode criticar - e de fato o foi - é jus-
tamente a impossibilidade gerada por esta mesma determinação por não ter
se mostrado capaz de dar conta de coisas tais como crenças imanifestadas e
estados causalmente inativos. Pode-se dizer assim do conceito de crença -
como talvez se possa dizer de outros da mesma família - que a determinação
do seu status ontológico delimita as possibilidades de determinação do seu
status epistemológico, que, por sua vez, delimita as possibilidades de deter-
minação do seu status praxiológico.
Tendo isto em mente, concordamos quase inteiramente com a estratégia
de Armstrong quando ele aborda primeiramente a questão ontológica, para,
posteriormente, abordar a epistemológica (em que as observações de Ram-
sey, Wittgenstein e Hampshire passam a adquirir grande relevância como
oportunas advertências). Só não conseguimos entender a razão pela qual
Armstrong (1981, p.4)- após endossar plenamente a concepção de crenças
como orientadoras da ação (action-guiding), "mapas do mundo à luz dos
quais tomamo-nos preparados para a ação" - não dedicou nenhum espaço à
investigação do papel praxiológico da crença. Diversas suposições podem ser
aventadas, mas estas não são relevantes para a nossa hipótese de trabalho.
Cabe apenas assinalar de passagem - para retomar mais adiante a questão -
que, embora não possa ser negado o papel crucial desempenhado pelas nos-
sas crenças, tanto no que se refere à ação racional como no que se refere à
irracional, não conseguimos vislumbrar nenhum critério plausível para uma
concessão de uma primazia praxiológica às crenças. Assim como elas podem
ser concebidas como orientadoras da ação (action-guiding), podem igual-
mente ser concebidas como orientadoras do pensamento (thought-guiding),
mesmo quando aquele que pensa não esteja envolvido imediatamente com
nenhuma ação atual ou futura.
A definição platônica de episteme, tal como já apresentada, desempe-
nhou e ainda desempenha um papel crucial na epistemologia, principal-
mente pela ênfase que enseja nos procedimentos de justificação e apesar da
séria objeção feita por E. Gettier (1963, pp. 121-3). Hintikka (1962) a tomou
A Natureza da Crença 127

como base sólida para a construção de uma lógica epistêmica e Popper


( 1972) partiu dela para uma problematização de uma lógica da justificativa
(ars probandi), não conferindo importância a uma lógica da descoberta (ars
inveniendi). Sua conhecida afirmação de que "Eu não sou um filósofo da
crença" deve ser entendida como "Eu não estou interessado na crença qua
ta/e, mas sim na justificativa da crença'', pois seu declarado interesse deve
ser visto como uma questão de preferência por um determinado domínio do
saber- o da filosofia da ciência- em que a crença enquanto tal não parece
ter a mesma importância que assume nos domínios da filosofia da mente e
da filosofia da ação.
Dizemos isto, porque a grande aceitação conferida ao conhecimento
como crença justificada, embora tenha sido bastante fértil para os domínios
da filosofia da ciência e da epistemologia, gerou também um desprestígio no
tocante à tematização da crença qua ta/e. Não há a menor dúvida de que
crenças injustificadas e injustificáveis não podem ser consideradas conheci-
mento no sentido rigoroso do termo, mas nem por isto deixam de ser crenças
e de exercer uma considerável influência tanto sobre o pensamento como
sobre a ação humanos. Em um trabalho já citado, R Needham dá ínício a
um capítulo sobre critérios de abordagem da crença fazendo uma observação
que nos parece correta e relevante:

A crença não depende necessariamente da possibilidade; algo pode


ser acreditado mesmo quando é reconhecidamente impossível.
(Needham, 1972, p. 64).

E após algumas considerações sobre a posição fideísta de Tertuliano


(Credo quia impossibile) Needham faz uma observação em que não está em
jogo nenhuma questão de caráter teológico, mas o conhecimento comum.

Na realidade, não é somente no discurso teológico que a crença e a


impossibilidade são conjugadas. Um homem poderia muito bem di-
zer: "Acho que ele acreditava que seu filho já falecido estava presen-
te, mesmo que ele soubesse que tal coisa era impossível." E outro
homem poderia dizer que acreditava que sua esposa voltaria para ele,
apesar de todas as circunstâncias conhecidas por ele fizessem com
que tal coisa fosse impossível. (...) Devemos observar que este uso
lingüístico não faria nenhum sentido em contextos triviais. Por
exemplo: um homem não comunicaria nenhuma coisa inteligível, se
ele dissesse que o motor do seu carro pegaria sem combustível, ainda
que ele soubesse que isto era impossível. (Needham, 1972, p.65.)
128 Mário Guerreiro

Assim como a expressão de uma impossibilidade lógica, a de uma im-


possibilidade fisica tem como conseqüência imediata o não-fornecimento de
qualquer informação de caráter objetivo, mas isto não quer dizer que tais
expressões não sejam informativas tout court, pois elas podem fornecer
informações sobre aquele que as profere, sobre condições mentais em que se
encontram aqueles que as proferem. A existência de crenças injustificadas
ou irracionais sugere uma independência da "doxologia" em relação à
"epistemologia", se é que podemos dizer assim. Onde não há razões para
crer pode haver motivos para crer ou, como dizia Pascal, "O coração tem
razões que a própria razão desconhece." Ora, desde o momento em que uma
investigação filosófica apresenta como seu objeto a crença qua ta/e, não
vemos nenhuma razão plausível para excluir as assim chamadas crenças
injustificáveis ou irracionais - crenças que teriam de ser excluídas caso o
objeto de investigação fosse o conhecimento (episteme) concebido como
crença verdadeira aceita por razões (alethe doxa meta logou).
Caso aceitemos esta definição platônica reforçada pela lógica epistêmica
de Hintikka, pensamos que estamos plenamente autorizados a extrair dela
um corolário não muito agradável para os racionalistas empedernidos: Não
dependemos necessariamente da posse deste ou daquele conhecimento para
aderir a esta ou àquela crença, mas dependemos necessariamente da adesão
a esta ou àquela crença, para justificá-la e apresentá-la como conhecimento
no sentido rigoroso do termo. Além disso, devemos estar preparados para
lidar com determinados tipos de crença que, embora não possam ser consi-
deradas absurdas, irracionais ou injustificáveis, não podem ser consideradas
justificadas em determinado momento histórico do conhecimento humano,
pois não podem ser confirmadas, tampouco fa lsificadas.
Consideremos, por exemplo, a crença na existência de outros seres inte-
ligentes em distantes pontos da Via Láctea ou mesmo em galáxias bastante
distantes da nossa. Caso a transformássemos em uma proposição existencial
afirmativa tal como "Há seres inteligentes em outros planetas fora do siste-
ma solar", e indagássemos sobre sua condição de verdade, teríamos de acei-
tar que ela não é verdadeira nem falsa, porém indeterminada. Contudo, não
é de nenhum modo irracional ou absurdo supor que um dia uma expedição
enviada ao espaço sideral viesse a descobrir seres inteligentes. Uma proposi-
ção deste tipo não pode ser falsificada, a menos que o ser humano venha a
esquadrinhar todos os pontos do universo - coisa que se afigura como uma
remotíssima probabilidade - mas, apesar disto, pode ser confirmada, bastan-
do para tal que seja descoberto em algum planeta um ser capaz de fazer
inferências dedutivas e indutivas, de construir argumentos e resolver equa-
ções (coisa que é muito mais provável do que esquadrinhar todos os pontos
A Natureza da Crença 129

do universo e descobrir que defmitivamente somos os únicos seres pensantes


em todo este vasto cosmos, que não sabemos sequer se é fi nito ou infinito).
A. P. Griffiths (1967, pp.l27-l43) entende que o ato de crer é um modo
de consciência, assim como os de desejar, imaginar, etc. Apesar de usar esta
expressão proveniente do jargão da fenomenologia, ele não é levado à tese
de que toda consciência é intencional. Prefere se limitar à constatação da
existência de verbos intencionais. De fato, trata-se muito mais de uma ques-
tão de gramática do que de qualquer outra coisa. Quem crê em alguma coisa,
assim como quem deseja ou imagina alguma coisa. J. Searle colocou isto de
modo bastante claro:

Em primeiro lugar, somente alguns, nem todos, estados e eventos


mentais têm intencionalidade. Crenças, temores, esperanças e desejos
são intencionais; mas existem formas de nervosismo, euforia e ansie-
dade indireta que não são intencionais. Uma chave para esta distinção
é fornecida pelas restrições sobre o modo como esses estados são co-
municados. Se digo para você que tenho uma crença ou um desejo,
sempre faz sentido você perguntar: "Em que exatamente você acre-
dita?" ou "Qual o seu desejo?" E não faz sentido eu dizer: "Ah, ape-
nas tenho uma crença e um desejo sem crer em nada e sem desejar
nada." Minhas crenças e meus desejos tem de ser sempre de alguma
coisa. (Searle, 1983, p. I).

Admitindo que os atos de crer, desejar e imaginar são diferentes modos


de consciência e que em todos estão em jogo verbos intencionais, Griffiths
detem-se particularmente sobre o ato de crer é diz que a tentativa de estabe-
lecer a natureza deste mesmo costuma esbarrar em dois tipos de obstáculos:
(I) O conceito de crença não pode ser explicado por meio de outros tais
como "asserção", "ação", "evidência", etc. Trata-se de um conceito primiti-
vo como, por exemplo, o de valor. (2) O conceito de crença apresenta as
mesmas dificuldades apresentadas por outros que estão ligados a estados
privados (dificuldades estas já apontadas por Ryle (1949) quando da sua
crítica do dualismo cartesiano e do que ele próprio chamou de "mito do
fantasma dentro da máquina").
Desse modo, Griffiths é levado à idéia de que resta apenas uma pista a
ser investigada: a de que deve haver uma conexão entre crença e conheci-
mento, embora a natureza específica desta conexão seja dificilmente expli-
cável. Não obstante, ele pensa poder afirmar que a crença é apropriada à
verdade. Mas em que sentido? Ele diz que afirmar isto não é dizer o que é a
crença, tampouco estabelecer qualquer conexão necessária entre a crença e
uma condição real qualquer. Trata-se de estabelecer um elo que não se sus-
130 Mário Guerreiro

tenta necessariamente, mas que deve se sustentar. Como assim? Griffiths


entende que a grande vantagem dessa concepção da crença como algo apro-
priado à verdade é que ela permite r esponder a dificil questão de como a
crença pode ser identificada com um conceito público. Nas suas próprias
palavras: "Somente esta tênue conexão estabelece um vinculo entre um não-
analisável estado mental privado e o mundo público." (Griffiths, 1967, p.
140). Desse modo, para Griffiths, o conceito de crença só se torna objetiva-
mente manejável, caso pressuponhamos " padrões de propriedade" (patterns
ofappropriateness).
A princípio, somos levados a encarar com simpatia o esforço feito por
Griffiths para contornar as dificuldades apresentadas, mediante seu recurso à
concepção de que a crença é apropriada à verdade. Mas que queria ele dizer
precisamente com isto? Ele não prestou maiores esclarecimentos, mas, ape-
sar disto, tocou em um ponto para o qual já havíamos chamado a atenção: o
ato intencional de crer e o objeto deste ato constituem uma relação indisso-
lúvel e revelam a estrutura de uma atitude proposicional. De um ponto de
vista formal, não há nenhuma diferença estrutural entre as diferentes atitu-
des proposicionais de crer, conhecer, saber, duvidar, etc. Não é surpreen-
dente que os predicados "é verdadeiro" e "é falso" tenham sido usados em
relação a sentenças, proposições e crenças. Mas não estamos seguros de que
este uso seja unívoco e não sabemos qual o sentido preciso de expressões tais
como "crença verdadeira" e "crença falsa."
Se o que Griffiths estava procurando era contornar a dificuldade de falar
na terceira pessoa de um estado privado, pensamos que ele teria feito melhor
caso abandonasse seu conceito de "modo de consciência" e adotasse o de
atitude proposicional. A vantagem é que se trata de uma espécie de concei-
to-ponte, uma vez que tem um pé no domínio privado e outro no público.
Toda atitude é uma maneira de um indivíduo humano se colocar diante de
alguém ou de algo. E se é o caso de uma atitude proposicional, trata-se de
uma maneira de um indivíduo se colocar diante de uma sentença ou de um
enunciado, que não pertencem ao domínio privado dos estados de consciên-
cia, porém ao domínio público da linguagem. ''Não há linguagem privada,
uma vez que a linguagem é poder institucionalizado, uma vez que, a partir
de um princípio, ela é o elemento da praxis vital comum." (Wittgenstein,
1969, item 243).
Como já propusemos, cabe fazer uma distinção entre: (1) a atitude de
crer e (2) o objeto da crença. Se a crença é pensada como uma atitude propo-
sicional, seu objeto não é uma coisa nem um estado de coisas, mas uma
proposição que não tem de fazer necessariamente referência a um estado de
coisas, uma vez que proposições falsas podem ser acreditadas como verda-
A Natureza da Crença 131

deiras e verdadeiras como falsas. A distinção entre (l) e (2) mostra-se opor-
tuna também quando reconsideramos a natureza das crenças absurdas ou
irracionais. Suponhamos que alguém dissesse que acredita na existência de
um círculo quadrado. O suposto objeto da sua crença não pode ser percebido,
imaginado nem concebido, pois sua descrição constitui uma autocontradição.
Nem mesmo de um ponto de vista fenomenológico, cabe falar em um objeto
"intencional", pois, para o próprio Husserl, trata-se de uma intenção signifi-
cativa que não adquire preenchimento e que, por isto mesmo, não se trans-
forma em uma intuição.
Mas, como observou Needham ( 1972, p. 64), um indivíduo pode perfeita-
mente crer em algo absurdo ou impossível. Desse modo, se ele diz que acre-
dita na existência de um círculo quadrado, sua atitude doxástica não pode
ser considerada impossível: o que é impossível é o suposto objeto da sua
crença, uma vez cjue constitui uma impossibilidade lógica (algo mais forte
do que a impossibilidade fisica). Mas, se é assim, como podemos dizer que
crer é um verbo intencional e que toda crença é uma crença em alguma
coisa? Temos uma situação aparentemente paradoxal em que há (1) mas não
há (2), ou seja: há a crença, pois a restrição imposta pelo princípio de não-
contradição não afeta em nada a possibilidade de crer, mas não temos o ob-
jeto da crença, pois, para todos os efeitos, "círculo quadrado" é um nome va-
zio que não designa nenhum objeto em nenhum mundo possívelleibniziano.
A expressão "objeto impossível" é perigosa e escorregadia, pois pode dar
a entender que "impossível" está qualificando um tipo de objeto, quando o
que se pretende dizer é que se trata de algo não podendo ser pensado como
um objeto. Dizendo de outro modo: a descrição "figura geométrica de quatro
lados iguais e cujos pontos ao longo do perímetro são equidistantes do cen-
tro" é uma descrição vazia, não descreve nenhum objeto. Assim sendo, te-
mos de considerar que a proposição "Há zero círculos quadrados" (o mesmo
que: ''Não há nenhum círculo quadrado") é verdadeira. Negá-la seria admitir
que há ao menos um; considerá-la indecidível seria colocar uma dúvida tola
a respeito do indubitável caráter autocontraditório da descrição correspon-
dente ao nome "círculo quadrado".
Não nos interessa aqui problematizar a questão da quantificação lógica
em relação aos supostos objetos correspondentes a descrições autocontraditó-
rias, mas chamar a atenção para o abismo que se abre entre crença e conhe-
cimento. Ninguém pode fazer uma alegação séria de conhecimento, caso esta
envolva impossibilidade lógica; mas no que se refere à crença, parece não
haver qualquer restrição lógica relativa à atitude de crer. Parece que pode-
mos crer em qualquer coisa, assim como podemos desejar qualquer coisa. Se
há algum limite, este nada tem a ver com qualquer restrição de caráter lógi-
132 Mário Guerreiro

co nem ontológico, mas com os limites da nossa imaginação e da nossa


capacidade de adesão a esta ou aquela proposição, ou seja: só não podemos
desejar aquilo que desconhecemos totalmente e só não podemos crer naquilo
cuja existência nos é ignorada ou naquilo que nossa vontade se recusa a crer,
ainda que se apresentem fortes motivos ou razões para a promoção de uma
adesão.

Referências Bibliográficas

Armstrong, O. M. 1981. Belief, Truth and Knowledge. Oxford: Oxford Uni-


versity Press.
- - . 1978. Universais and Scientific Realism. Cambridge Un iversity Press.
Gettier, E. I 963. "ls justified true beliefknowledge?" Analysis, 23.
Goodman, N. 1955. ''The new riddle of induction". Fact, Fiction and Fore-
cast. Indianapolis: Bobbs-Merrill.
Griffiths, AP. 1967. "On belieP'. In Griffiths (org.), Knowledge and Belief
Oxford: Oxford University Press.
Guerreiro, M. A. L. 1986. "Sobre o Nominalismo de Strawson." in D. M.
Souza Filho (org.), Significado, Verdade e Ação. Niterói: EDUFF.
- - . 1997. O Problema da Ficção na Filosofia Analítica. Londrina: Edito-
ra da Universidade Estadual de Londrina (no prelo).
Hampshire, S. 1959. Thought and Action. Londres: Chatto & Windus.
Hintikka, J. 1962. Knowledge and Be/ief Ithaca: Comell University Press.
Hume, D. 1978. A Trealise of Human Nature. Oxford: Oxford University
Press.
Needham, R. 1972. Be/ief, Language and Experience. Oxford: Blackwell.
Popper, K. 1972. The Logic ofScientific Discovery. Londres: Hutchinson.
Ramsey, F. P. 1931. The Foundations of Mathematics. Londres: Routledge.
Ryle, G. 1949. The Concept ofMind. Londres: Hutchinson.
Searle, J. 1983. Intentionality: An Essay in The Philosophy of Mind. Cam-
bridge: Cambridge University Press.
Skirms, B. 1971. Choice and Chance: An Introduction to Jnductive Logic.
Belmont, Cal.: Dickinson.
Wittgenstein, L. 1969. On Certainty I Über Gewissheit (edição bilíngile).
Oxford: Blackwell.
CRENÇA VERDADEIRA JUSTIFICADA É CONHECIMENTO?
UMA INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DE GEITrER

ALEXANDRE MEYER LUZ


Fundação Educacional de Brusque

I A Definição Tradicional de Conhecimento

Tem sido consenso entre os epistemólogos 1 que têm se dedicado em al-


gum grau à pesquisa em história da filosofia - o que não é o nosso caso
- aceitar que já no Ménon e no Teeteto de Platão2 aparece a seguinte
definição de conhecimento, que permaneceu ilesa por mais de dois milê-
nios:
3
(DT) S sabe que p se e somente se
(i) S crê que p;
(i i) p é verdadeiro;
(iii) S está justificado em crer que p;

1
Seguindo a tradição de língua inglesa, utilizaremos aqui "epistemologia'· (e
correlatos) como sinônimo de "teoria do conhecimento".
2
Cf. Shope, Robert K., The Analysis of Knowing. Princeton: Princeton Univer-
sity Press, 1983, p. 12- 19. Shope apresenta-nos, por exemplo, uma passagem do
Ménon em que a definição platônica de conhecimento é explicitada, quando
Sócrates, procurando distinguir opinião verdadeira de ciência, diz a Ménon que
opinião verdadeira é comparável à estatua de Dédalus, a qual, se não amarrada,
escapa, e que é necessário, por isso, 'amarrá-la' através do uso da razão (97e-
98a). Citando Richard Aaron, Shope apresenta-nos também uma passagem da
Crítica da Razão Pura na qual Kant parece referendar a definição platônica
(A822, B850).
3
O termo 'saber', equivalente à 'conhecer', tem sido utili1..ado em diversos
sentidos - correlatos mas não idênticos - ao longo da tradição filosófica: i)
saber como ter habilidade para, como em "O Palmeiras sabe jogar bem"; ii)
como familiaridade, como em "Pedro sabe o caminho para casa" ou em "Antônio
conhece Maria"; iii) como possuir informação com, digamos temporariamente,
certa propriedade, como em "José sabe que 'dois mais dois são a quatro' é ver-
dadeiro". Este trabalho restringirá seu escopo apenas ao último destes sentidos,
que designaremos 'proposicional'.

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Anal/fica. Florianópolis: NEL, pp. 133-52.
134 Alexandre Meyer Luz

onde:
a) Sé um sujeito epistêmico qualquer (ou seja, um sujeito capaz deter
estados mentais aos quais atribuímos o status de 'epistêmicos', como, por
exemplo, crer, suspender o juízo, etc.); -
b) p representa uma proposição4 qualquer;
c) 'S crê que p' afirma que pé uma proposição que faz parte do con-
junto que contém todas as proposições da mente de S 5 ;
d) 'pé verdadeira' afirma simplesmente que é o caso que p;
e) 'S está justificado em crer que p' nos informa que S tem, falando
provisoriamente, boas razões (aquele raciocínio que, como nos falava
Platão, "amarra" a mera crença verdadeira).

A essa definição, por razões evidentes, deu-se o nome de Definição


Tripartite (DT). Passaremos agora a reconstruir as razões que levaram ao
abandono da mesma.

2 O Problema de Gettier

Depois de termos revisitado a definição tradicional de conhecimento,


(DT), trataremos agora (i) brevemente do histórico dos ataques à (DT),
(ii) do ataque particularmente feliz de Edmund Gettier, que deu origem
ao assim conhecido ''Problema de Gettier" e (iii) da discussão gerada a
partir do texto de Gettier 6 •

2.1 Dois Antecedentes Históricos do Ataque à Definição Tripartite

Alguns autores apontam para certas descrições de situações hipotéticas,


imaginadas já bem antes do artigo de Gettier, as quais pareciam atacar
(DT) (apesar de não existir consenso entre os críticos sobre se realmente

4
Tomaremos aqui 'proposição' como sinônimo de 'enunciado'.
5
Aí incluídas aquelas crenças das quais S tem atualmente consciência (crenças
'ocorrentes') e aquelas com as quais ele atualmente não se preocupa, mas podem
ser por ele acessadas a qualquer instante (crenças 'disposicionais').
6
Gettier, Edmund. "Is Justified True Belief Knowledge?" In Analysis, 23: pp.
121- 3, 1963. Esse artigo tem sido constantemente reimpresso em inúmeras
coletâneas. A mais recente delas talvez seja On Knowing and the Known -
lntroductory Readings is Epistemology, editada por Lucey, Keneth G. (Nova
York: Prometheus Books, 1996).
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 135

tinham a intenção específica de realizar tal ataque). Vejamos as duas


mais conhecidas.
Segundo Israel Scheffier7, já B. Russell, teria elaborado a seguinte
descrição de caso na qual poderíamos identificar um ataque a (DT):

(R) O Relógio Parado: S tem uma crença verdadeira, p , sobre o horário


daquele instante, mas somente porque ele está olhando para um relógio
que ele imagina estar funcionando, mas que está. de fato, parado.8

Russell pretendia mostrar, com (R), apenas, que poderia existir uma
crença verdadeira sem, no entanto, conhecimento. Scheffler, porém,
sustenta que (R) pode ser considerado um ataque a (DT) se supusermos
que S tem bons motivos (evidências, boas razões, etc.) para acreditar que
o relógio está funcionando.

Também Roderick Chisholm9 pretendeu ter encontrado um caso que,


antes dos de Gettier, atacaria (DT). Chisholm propôs que o seguinte
caso, elaborado por A. Meinong, escondia um ataque à definição tripar-
tite:

(M) A Alucinação Auditiva: Há um sino num jardim próximo. S costu-


mava escutar o badalar do sino, que tocava balançado pelo vento. Agora,
porém, S desenvolveu um tipo de surdez que é acompanhada por alucina-
ções auditivas. Devido a essas alucinações, S ad~uirc o que, por acaso, é
uma crença verdadeira, p,: "o sino está tocando". 0

Existem aqui contra-exemplos (DT)?

É importante percebermos o que é tentado através dos dois exemplos


acima: apresentar-nos casos-modelo, intuitivamente aceitáveis, nos quais
a crença do Sujeito Epistêmico, mesmo sendo verdadeira e justificada
(satisfazendo, assim, (DT)), não mereceria o título de 'conhecimento', ou
seja, apresentar-nos um contra-exemplo (DT).

7
Scheffier, Israel. Condilions of Knowledge. Chicago: Scott, Foreman ed., 1965,
p.ll2.
8
In Shope, 1983, p.l9.
9
Chisholm, Roderick. Theory of Knowledge. z• cd. Englewood Cliffs: Prentice-
Hall., 1977, p.l04.
10
In Shope, 1983, p. 20.
136 Alexandre Meyer Luz

A nosso ver, porém, nem (R) nem (M) estabelecem-se como contra-
exemplos (DT); 11 isso porque, nos dois casos, S não está adequadamente
posicionado para saber que p. Isso é evidente em (M): claramente S não
tem um aparelho auditivo minimamente competente (e isso é relevante
nesse caso, haveríamos de conceder) para que possamos atribuir-lhe
conhecimento.
No caso de (R) isso é menos evidente, mas também detectável. S pode
aqui ser acusado de desleixo intelectual, deixando de executar uma tarefa
tão relevante quanto simples: avaliar o funcionamento do relógio. Assim,
apesar de p ser verdadeira e de S crer em p, não concordaríamos muito
facilmente em atribuir a S justificação para tal crença, já que podemos
facilmente concordar que uma condição a ser cumprida para que S esti-
vesse efetivamente justificado, nesse caso, é a que ele consultasse as
horas num relógio que funcionasse.
Mas podemos descrever mais minuciosamente a situação que tornaS
um sujeito epistemicamente atacável: em ambos os casos a justificação de
p depende de uma outra crença, q, que, por sua vez, não está justificada.
Vejamos então:
- Em (M) a crença p ('o sino está tocando') depende, para sua justifi-
cação, da crença qm ('ouço o som do sino tocando no jardim'), clara-
mente não justificada.
- Em (R) a crença p ('são x horas') depende, igualmente, de uma
outra crença, q, ('segundo. tal relógio são agora x horas'), à qual não
atribuímos justificação, dado que, nesse caso, o relógio não é um instru-
mento fidedigno para indicar o horário atual.

2.2 Os Exemplos de Gettier

Como vimos, os casos apresentados por Russell e Meinong parecem não


servir como contra-exemplos à definição tripartite, enquanto existem
problemas claramente detectáveis na justificação das crenças que sus-
tentam a crença p e, assim, não sabe que p (e (DT) continua de pé).

11
Seguimos aqui a posição de Shope, contra Scheffier e Chisholm. À margem de
tal discussão, porém, o fato é que, mesmo que (R) e (M) possam ser considera-
dos já como ataques à (DT) (ao acrescentarmos às situações ali descritas aquele
plus ausente, que nos impede de atribuir justificação aos sujeitos epistêmicos de
tais casos), Gettier merece os méritos por, pelo menos, ter tomado explícito o
problema.
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 137

Os exemplos propostos por Gettier em 1963 tiveram sorte bastante


diferente. Vamos agora reapresentá-los e demonstrar as razões de seu
sucesso, em comparação com o fracasso dos de Russell e de Meinong.
Gettier, no seu artigo "ls Justified True Belief Knowledge?" (já cita-
do), nos propõe dois exemplos semelhantes, que podemos assim esque-
matizar:

2.2.1 Brown em Barcelona

(G I) Brown em Barcelona: Smith tem fortes evidências a favor de uma


proposição que ele não imagina ser falsa, a saber, f 'Jones tem um
Ford'. Ele toma aleatoriamente o nome de um lugar, 'Barcelona', e
constrói a proposição p: 'ou Jones tem um Ford ou Brown está em Bar-
celona'. Não tendo a menor idéia do atual paradeiro de Brown, Smith
aceita p tendo por base f Acontece porém ~ue, por coincidência, Brown
está em Barcelona e, assim, p é verdadeira. 1

Sendo aqui, (por definição):

f = Fj: Jones tem um Ford


p = Fj v Bb: Ou Jones tem um Ford ou Brown está em Barcelona
E temos ainda que:
i) Para Smith, Fj é verdadeira e ele está justificado em aceitar Fj (já
que as evidências para ela podem ser de tal grau que garantam a justifi-
cação). Se Fj é verdadeira então Fj v Bb também o é e, já que Fj está
justificado e a dedução é um transmissor de justificação13, está também
justificada para Smith.
ii) É o caso, porém, de Fj ser de fato falsa: Fj v Bb seria, também,
então, falsa, já que os dois lados da disjunção mostram-se falsos. Porém,
por sorte (ou má sorte), Brown está em Barcelona (Bb é verdadeira), o
que acarreta a verdade de Fj v Bb.
iii) dados i) e ii), percebemos que Smith tem crença verdadeira justi-
ficada (e, se aceitamos (DT), conhecimento) devido, porém, apenas a um
enorme golpe de sorte, do qual ele não faz a menor idéia, de modo tal
que não nos disporíamos a atribuir a ele conhecimento nesse caso. Ele
teve apenas, diríamos, sorte, um grande golpe de sorte.

12
Este é o exemplo esquemático apresentado em Shopc, 1983, p. 23.
13
Assumimos aqui a suposição de que justificação pode sempre ser transmitida
via dedução.
138 Alexandre Meyer Luz

2.2.2 Smith com dez moedas

Vejamos, agora o segundo contra-exemplo original de Gettier:

(G2) Com novo emprego e dez moedas no bolso: Smith tem forte evidên-
cia a favor da seguinte conjunção, d: 'Jones será indicado para o emprego
e tem dez moedas no bolso', da qual deduz a proposição e: ' O homem
que será indicado para o emprego tem dez moedas no bolso' . Acontece
que, sem que Smith o saiba, ele é que será o indicado para o emprego e,
14
coincidentemente, tem dez moedas no seu bolso.

Temos em (02):
d = Ej & Mj: Jones será indicado para o emprego e tem dez moedas
no bolso.
e = 3x(Ex & Mx): existe um homem que será indicado para o empre-
go e que tem dez moedas no bolso.
O problema aqui se instala de um modo semelhante ao do primeiro
caso: existe uma proposição justificada para Smith (Ej & Mj), da qual ele
deduz uma nova proposição (3x(Ex & Mx)), que também está justificada
para ele. Acontece, porém, que a proposição original (Ej & Mj) é, de
fato, falsa, mas a deduzida (3x(Ex & Mx)) é, por um golpe de sorte, ver-
dadeira.
Devemos notar que o sujeito epistêmico desses problemas não padece
das mesmas debilidades daqueles dos exemplos (R) e (M). O sujeito
epistêmico dos casos de Gettier tem aqui "forte evidência" para crer no
que crê. Os exemplos de Gettier supõem que S possa dispor de um núme-
ro virtualmente infmito de evidências relevantes que justificariam as
crenças de Smith de modo aceitável para a maior parte dos indivíduos
numa situação real semelhante. Os exemplos de Gettier não são passíveis
dos mesmos ataques dirigidos aos de Russell e Meinong; o sujeito epis-
têmico dos exemplos de Gettier, diríamos, num primeiro momento, está
em 'posição para saber', 'tem boas evidências ou razões para o que crê'
ou, em outras palavras, está justificado em crer no que crê.

Qual é, então, o problema de Gettier?

O problema posto através dos exemplos de Gettier é, agora, facilmente

14
Esse é novamente um exemplo esquemátiCfl
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 139

detectável: S tem crença verdadeira justificada, f, após cumprir um nú-


mero altamente razoável de obrigações para com uma crença original d
- da qualfé deduzida. d é falsa (apesar de S o desconhecer):/, porém,
por um golpe de sorte igualmente desconhecido por S, é verdadeira.
Dadas tais condições, S tem crença verdadeira justificada de que f, mas
não tem conhecimento. Assim, a definição tripartite imp/ode! E mais,
isso vai se dar porque descobrimos o real caráter da justificação: cria-se
ser a justificação algo sempre sólido e suficiente para garantir aquela
conexão entre nossa razão e o verdadeiro que se julgava necessária para
garantir o título de 'conhecimento' a uma opinião verdadeira. Gettier
veio, com seus exemplos, nos mostrar a falsidade dessa suposição, nos
ensinando que podemos obter justificação para uma crença (verdadeira)
e, mesmo assim, em certas situações, falharmos em obter conhecimento
em relação a tal crença.
O problema de Gettier vai consistir, então, em um ataque mortal à
antiga definição tripartite de conhecimento proposicional, acertando-a no
coração: na noção-chave de justificação, que passa a ser, então, desde
1963, o principal objeto de investigação dos epistemólogos. Resolver o
problema de Gettier passa a andar de mãos dadas com a reforma da no-
ção de Justificação, tentando, com isso, bloquear a porta de entrada dos
ataques de Gettier.
Antes de seguirmos adiante resta ainda uma questão a ser respondida:
qual a relevância filosófica do problema de Gettier? Não poderíamos
simplesmente requerer que um sujeito epistêmico soubesse utilizar o
conceito de 'conhecimento'? Tal (pertinente) questão pode ser respondi-
da ao nos lembrarmos do status especial de tal conceito: 'conhecimento'
é um termo com caráter normativo 15 ; o caso não é apenas o de sabermos
utilizar o conceito, mas em descobrirmos os requisitos que devem ser
preenchidos por alguém que pretende atribuir tal título meritório (de
'conhecimento') a uma sua proposição. E para isto faz-se necessária uma
análise rigorosa do conceito. 16

15
Tal afirmação, porém, não caracteriza um compromisso com as teorias da
virtude epistêmica (sobre tal grupo de teorias consulte, por exemplo, Montmar-
quet, Jarnes. Epistemic Virtue and Doxastic Responsability. Lanhan: Rowman &
Littlefield, 1993.)
16
Uma discussão mais detalhada pode ser acompanhada em Conee, Earl. Why
Solve the Gellier Problem?, in. Moser, Paul (Ed.). Empirical Knowledge -
140 Alexandre Meyer Luz

2.3 Um Ataque aos Exemplos de Gettier: a Presença de Falsidades

Em paralelo ao imaginável espanto causado pelo pequeno artigo de Get-


tier, multiplicaram-se as tentativas de descaracterizar os exemplos ali
apresentados como contra-exemplos. Vejamos uma dessas primeiras
réplicas.

A presença de falsidades

Na análise dos exemplos de Gettier podemos facilmente detectar, nos


dois casos, o seguinte movimento:

I - S tem justificação para crer que p;


2 - pé falsa (apesar de S não o saber);
3 - de p se chega, através de dedução, a f
4 - f é verdadeira, e S tem, então, crença verdadeira justificada.

O argumento contra os exemplos propostos por Gettier 17 apoiava-se


exatamente na passagem de 2 para 3, ou seja: os exemplos de Gettier
supõem que a justificação de f está apoiada em uma proposição, p , que é
de fato falsa. Ora, poderíamos alegar que uma dedução a partir de pre-
missas falsas não é um processo transmissor da justificação, já que, como
sabemos, não nos fornece nenhuma garantia de preservação da verdade
contida nas premissas (e o que desejamos com a cláusula de justificação é
que, no que depende de nós, permaneçamos o mais próximo possível da
verdade- e longe do erro). Teríamos, então, um bom motivo para não
considerar S justificado em crer que f, dissolvendo, assim, os contra-
exemplos originais de Gettier. 18

Readings in Contemporary Epistemology. Lanhan: Rowman & Littlefield, 2•


ed., 1996.
17
Tais argumentos contra os contra-exemplos podem ser acompanhados em
··Know1edge without Paradox" de Robert Meyers e Kenneth Stem (The Journal
of Philosophy 70 (março 22, 1973), pp. 147-60) c em Belief, Truth and
Knowledge, de David Armstrong (Cambridge: Cambridge U.P., 1973)
18
Cf., por exemplo, Shopc, 1983, p. 24, assim como o artigo "An Alleged Defect
in Gcnier Countcrexamples," de Richard Feldman (in Lucey, 1996). A despeito
da discussão sobre o assunto, aceitamos aqui que justificação se transmite via
implicação, mesmo nos casos em que o antecedente da implicação é falso (como
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 141

2.4 Superação do Problema: Exemplos de Tipo-Gettier

Após a publicação dos contra-exemplos de Gettier e dos ataques a esses,


foram desenvolvidos inúmeros novos contra-exemplos, inspirados nos
dois originais, trazendo, porém, em relação àqueles, pequenas alterações
que permitiram superar ataques como os apontados acima, e que nos
permitirão falar de exemplos de tipo-Gettier.
Listas extensas de exemplos deste tipo podem ser conferidas no livro
já aqui citado de R. Shope, e em Furman, 1992 19• Apresentaremos, aqui,
apenas alguns exemplos que demonstram a extrema - e problemática
(pelo menos para aqueles que pretendem definir 'conhecimento') -
adaptabilidade de exemplos semelhantes aos de Gettier (de tipo-Gettier,
já podemos dizer) a novos contextos. Assim, vejamos o seguinte exem-
plo, criado por Keith Lehrer:

(TG I) Mr. Nogot (versão não-discussiva): Um funcionário no escritório


de S, Mr. Nogot, deu a S a evidência e, da qual S inferiu diretamente p:
'alguém no escritório possui um Ford'. Mas, sem que S o suspeitasse, é
Havit quem tem um Ford, e não Nogot. 20

Este exemplo tem um endereço certo: procura superar a crítica - já


apontada (da presença de falsidade) - dirigida aos exemplos originais
de Gettier. 21 Podemos observar neste exemplo que Lebrer apresenta uma
versão ligeiramente modi ficada dos exemplos originais, tentando estabe-
lecer uma ligação direta entre as evidências e a conclusão ('alguém no
escritório tem um Ford'). Ele é, porém, igualmente atacável pelo argu-
mento da existência de premissas falsas: o crítico poderá alegar que uma
premissa do argumento ('Mr. Nogot tem um Ford' ) - que é falsa - não
está dada explicitamente, sendo, porém, suposta.
O próprio Lehrer apresentaria posteriormente um novo contra-
exemplo que continuava a evitar o envolvimento de premissas falsas,

nos casos originais de Gettier). Como veremos, porém, existem casos de tipo-
Gettier que não vão utilizar condicionais com o antecedente fàlso.
19
Furman, Michacl T; Living in the Gettier Fallout. Santa Barbara, 1992. Tese.
University ofCalifornia.
20
In Shope, 1983, p. 24.
21
Cf. também Feldman, Richard. "An Alleged Dcfect in Gcttier Counterexam-
ples" (in Moser, 1996).
142 Alexandre Meyer Luz

mas sem padecer do mesmo mal que (TGI):

(TG2) The C/ever reasoner: Um aluno da classe de S. Mr. Nogot deu aS


evidência e, suficiente para justificar a crença q paraS: ' Mr. Nogot tem
uma Ferrari'; S não tem evidências que sustentem r: 'Mr. Havit tem uma
Ferrari'. O professor não está in~eressado em quem possa ser na classe o
proprietário da Ferrari, mas somente se p é verdadeira, onde p é a propo-
sição 'alguém na classe tem uma Ferrari'. As razões do professor para in-
ferir que a evidência e apóia q são as de que (dado e) é possivel que al-
guém na classe tenha uma Ferrari.

Algumas variações desse contra-exemplo são particularmente dano-


sas. Vejamos, por exemplo, a seguinte versão proposta por Paul Moser,
conhecida também como Jones sob Hipnose, na qual apenas proposições
verdadeiras aparecem justificando a crença em questão:

(TG3) Jones sob Hipnose: Suponhamos que uma pessoa, S, sabe a se-
guinte proposição verdadeira, M: o Sr. Jones, um colega de trabalho que
S sempre tomou como alguém confiável e em relação ao qual S não tem,
no presente, nenhuma razão para nutrir desconfiança, disse a S que P:
Ele, Jones, possui um Ford. Suponhamos também que Jones disse P a S
somente devido ao estado de hipnose em que Jones se encontra, e que P é
verdadeira unicamente porque, sem que o próprio Jones o saiba, ele ga-
nhou um Ford na loteria no instante em que entrou no estado de hipnose.
E suponha ainda que S deduz de M a generalização existencial Q: Há al-
guém, o qual S sempre considerou confiável e em relação ao qual S não
tem nenhuma razão para começar a desconfiar no presente, que disse a S,
seu colega de trabalho, que ele possui um Ford. S, então, sabe que Q,
desde que ele deduziu corretamente Q de M, o qual ele também sabe.
Mas suponhamos também que, baseado em seu conhecimento de que Q,
S acredita também em R: Alguém no escritório possui um Ford. Nestas
condições S tem uma crença verdadeira;ustificada de que R. conhece sua
evidência para R. mas não sabe que R. 2

Este caso nos mostra a dramaticidade do Problema de Gettier: tal


caso, enquanto não envolve nenhuma crença falsa, serve como contra-
exemplo a tentativas (como a do próprio Shope em 1983) de propor urna
condição adicional à (DT) que servisse exatamente para desvelar aquela

22
Moser, Paul. Knowledge and Evidence. Cambridge: Cambridge University
Press, 1989, p. 237.
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 143

fa lsidade oculta no processo de justificação da crença (como nos casos


orig inais de Gettier). Tal proposta, como podemos bem notar, não dá
conta de Jones sob Hipnose pela simples razão de tal contra-exemplo
não envolver, como bem vimos, falsidades.

2.4.1 Tom Grabit

O contra-exemplo conhecido como Tom Grabit foi publicado pela pri-


meira vez por Peter Klein, em 1971. Sua particularidade consiste, exa-
tamente, em demonstrar que a adição de novas evidências pode solapar a
justificação de S para uma crença p , mesmo que estas novas evidências
não sejam diretamente contra p. Eis a apresentação clássica:

(TG4) Tom Grabil: S acredita que se u vizinho, Tom Grabit, roubou um


livro na livraria, enquanto S viu Tom fazendo isto. Porém, sem que S o
saiba, Tom tem um irmão gêmeo idêntico que estava na livraria no mo-
mento do roubo. 23

Podemos notar que, como já apontamos, existe uma informação adi-


cional (sobre a existência do irmão gêmeo de Tom) que não é contra-
evidência ao enunciado em questão (o de que Tom roubou o livro), mas
que, quando adicionada a esse enunciado, solapa a justificação que S
para ela possuía. Vejamos agora a seguinte variação do caso:

(TG5) A louca Sra. Grabil: S acredita que seu vizinho, Tom Grabit, rou-
bou um livro na livraria, já que S viu Tom fazendo isto. A mãe de Tom,
em estado de demência, diz aS que T<>m tem um irmão gêmeo cleptoma-
níaco (o que é fruto de sua imaginação perturbada) e que 'o irmão gêmeo
de Tom estava na livraria na hqra do roubo, enquanto Tom estava a mi-
lhares de quilômetros de distância dali.' 24

O que temos de novo aqui? Algo que nos revela mais uma caracterís-
tica que uma nova definição (é adequada) de justificação deve possuir: a
capacidade não só de explicar como a adição de novas evidências pode
solapar aquela base possuída para a crença, mas também que essa evi-
dência adicional pode, por sua vez, ser derrotada por uma nova informa-
ção, que funciona, no caso acima, como contra-evidência à essa evidên-

n mShope, 1983, p.49.


24
Id., p.53.
144 Alexandre Meyer Luz

cia. Ou seja, uma definição adequada para 'conhecimento proposicional'


deve dar conta não apenas de apontar situações nas quais (e apenas nas
quais) o título de 'conhecimento' pode ser atribuído a uma proposição
mas também prever a possibilidade deste título poder ser perdido (através
da adição de nova informação) e reconquistado (idem), e assim sucessi-
vamente.

2.4.2 O Líder dos Direitos Civis

O próximo contra-exemplo, chamado de o líder dos direitos c1v1s


(também conhecido como do jornaf), foi apresentado pela primeira vez
por Gilbert Harman em 1968, e traz à discussão aquelas situações em que
S, levando apenas em conta as evidências para ele disponíveis para uma
crença p, encontra-se justificado, vindo a perder, porém, tal justificação a
partir do momento em que é levada em conta a comunidade na qual ele
se insere. Eis o contra-exemplo, na versão de Shope:

(TG6) O Jornal: S acredita no assassinato de um famoso líder dos direi-


tos civis, após ter lido uma matéria em um jornal geralmente confiável. A
matéria foi escrita por um jornalista que foi testemunha ocular do fato.
Sem que S o saiba, as pessoas de sua comunidade não sabem o que pen-
sar, enquanto eles possuem a informação adicional fornecida por novas
noticias que apontam para o contrário da crença de S. Estas outras notici-
as, porém, foram divulgadas apenas devido a uma insuspeita conspiração
por parte das outras testemunhas, que visam evitar uma crise racial. 25

Podemos perceber que, neste contra-exemplo, temos um problema


diferente daquele apresentado com o contra-exemplo anterior, a saber: a
justificação de Sé solapada pelo acréscimo de nova informação verdadei-
ra (a de que os outros jornalistas, baseados em testemunhas, afirmaram
que o líder dos direitos civis não havia sido assassinado), como no caso
de Tom Grabit, mas essa informação adicional, por sua vez, tem por
evidência uma outra informação, essa sim, falsa (as testemunhas, que
presenciaram o fato, estão descrevendo fidedignamente o ocorrido). Se
esse contra-exemplo (que a nosso ver tem sido indevidamente negligen-
ciado) de fato se instala (como nos parece ser o caso), somos conduzidos

2
s Id., pp. 33-4. Variações podem ser conferidas também nas páginas 229, 230 e
232.
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 145

a uma situação, no mínimo, estranha: não apenas informação verdadeira


pode destruir a justificação que possuíamos para uma crença; também
crenças falsas o podem.
Estes contra-exemplos mostram bem o campo minado em que
Gettier nos deixou: um conjunto de condições necessárias e suficientes
para uma definição de conhecimento proposicional adequada requer
muito mais do que apenas supor um certo 'encadeamento racional' adi-
cionado à crença verdadeira. Requer - e aqui já se revela preliminar-
mente nossa simpatia na disputa acerca desse plus - também que esse
encadeamento racional seja de um tipo resistente a diferentes 'acidentes
epistêmicos' , como os ocorridos com os sujeitos epistêmicos das situa-
ções descritas nos casos recém-apresentados.
Não é de estranhar, pois, que o conceito de justificação ocupe o lugar
central na disputa. Crer é algo que depende apenas de nós; a verdade de
uma proposição (pelo menos das com conteúdo empírico), por outro lado,
absolutamente não depende de nós como sujeitos; estar justificado é,
então, aquilo que aproxima estes dois extremos (crença e verdade). Estar
justificado é aquilo que podemos fazer para nos aproximarmos da verda-
de. E o problema de Gettier veio exatamente nos mostrar que não sabe-
mos a real natureza do conceito de justificação. O que liga intimamente
tal problema à discussão acerca das teorias da Justificação, que apresen-
taremos rapidamente a seguir, de modo generalíssimo.

3 As Teorias da Justificação: Quadro Geral da Disputa

Enquanto as tentativas de refutação do caráter de contra-exemplo dos


casos de tipo-Gettier não alcançam sucesso, qualquer nova proposta de
definição de conhecimento proposicional deverá levar em conta a neces-
sidade de escapar ilesa de qualquer potencial ataque de casos deste tipo e,
além disso, deverá satisfazer a diferentes intuições aparentemente aceitá-
veis, mas não imediatamente compatíveis.
Apresentaremos agora, aqui, rápida e esquematicamente, algumas
das principais tentativas de solução engendradas pelos especialistas. Elas
têm todas em comum pelo menos uma característica: todas se fundam
sobre teorias da justificação, o que não é, de modo algum, surpreenden-
te; primeiro porque, como vimos, é exatamente através da noção de jus-
tificação que os contra-exemplos se instalam; segundo, porque não temos
muito mais com que trabalhar. Mesmo considerando algumas tentativas
de apresentar definições adequadas manipulando não o conceito de justi-
146 Alexandre Meyer Luz

ficação, mas os de crença e de verdade26, nos parece que, de fato, o nó da


questão (e a sua possível solução) encontra-se apenas em um lugar: como
era de se esperar, no conceito de justificação. Isto não causará estranheza
ao nos lembrarmos, primeiro, do papel central de tal conceito em qual-
quer teoria do conhecimento: ela media a subjetividade da condição de
crença e a objetividade da condição de verdade, caracterizando exata-
mente o nosso esforço de aproximarmo-nos da verdade (afastando-nos do
erro); segundo porque é no conceito de justificação que reside o caráter
normativo do conceito de conhecimento, ao qual nos referimos anterior-
mente
Vamos, então, ao quadro geral das principais intuições envolvidas no
debate.

3.1 Teorias da Justificação Externalistas

O primeiro grande grupo de teorias da justificação é constituído pelas


teorias de tipo externa/isto. O Dicionário Cambridge de Filosofia27 apre-
senta o confiabilismo28 (reliabilism) (o principal tipo de teoria externa-
lista) como ''um tipo de teoria em epistemologia a qual defende que o que
qualifica uma crença como conhecimento ou como epistemicamente
justificada é uma ligação confiável com a verdade" e apresenta uma
conhecida analogia de David Armstrong: uma crença que conjiave/-
mente indica a verdade é como um termômetro que, conjiavelmente,
marca a verdade.
K. Lehrer, de modo análogo, fala de tal grupo de teorias como uma
tentativa de definir conhecimento que tem como principal doutrina que
"o que devemos adicionar à crença verdadeira para obter conhecimento é
uma conexão apropriada entre crença e verdade ( ...) A tese central do

26
Cf. um recente e instigante artigo de Sartwell, Crispin. "Why Know1edge is
Merely True Belief." The Journal of Philosophy, LXXXIX, 4, pp. 167-80, 1992.
27
Audi, R. (Ed.) The Cambridge Dictionary of Philosophy. Cambridge: Caro-
bridge University Press, 1996, p. 693.
28
O principal tipo de teoria extemalista. A definição, porém, pode ser estendida
a qualquer tipo de externalismo. Podemos encontrar as raízes do projeto exter-
nalista na proposta quineana de transformar a Epistemologia em ' um capítulo
das ciências naturais'. Alguns artigos já clássicos sobre o externalismo podem
ser encontrados em Komblith, Hilary (Ed.). Naturalizing Epistemology, 2' ed.
Cambridge: The MIT Press, 1994.
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 147

extemalismo é a de que alguma relação com o mundo externo é o sufici-


ente para converter crença verdadeira em conhecimento, mesmo que nós
não façamos nenhum idéia sobre essa relação. Não é nossa ciência do
como estamos relacionados com um fato que garante conhecimento, mas
simplesmente o (fato de, n.a.) estarmos ao fato relacionado" 29 •
A parte em itálico da citação acima nos remete à analogia de
Armstrong: falamos aqui de "externalismo" porque do sujeito epistêmico
não se espera outra coisa senão essa conexão com os fatos; dele não se
espera sequer consciência dessa conexão. A noção de justificação -
como já vimos, a noção central em nossa discussão - será definida de
um modo muito particular: como algo em termos de 'estar próximo da
verdade', assim como a temperatura indicada pelo termômetro está rela-
cionada aos fatos (mesmo que o termômetro mesmo não o saiba).
Vejamos agora o grupo das teorias adversárias.

3.2 Teorias da Justificação lnteroalistas


As teorias intemalistas da justificação apoiam-se, como veremos rapida-
mente, em algumas das mais antigas intuições em filosofia. Para W.
Alston (um autor que procura absorver intuições tanto intemalistas
quanto externalistas),

( ...) como o nome implica, uma posição "intemalista" restringirá os justi-


ficadores a coisas que estão dentro de algo, mais especificamente, dentro
do sujeito. Mas, é claro, nem tudo que está "dentro" do sujeito conhece-
dor será admitido como um possível justificador por um intemalista. Pro-
cessos fisiológicos que ocorrem dentro do sujeito e dos quais esse não
sabe nada, não serão admitidos. Então, em que sentido algo deve estar
"no sujeito" para atender aos desejos do intemalista?
Temos duas respostas diferentes na literatura: primeiro, há a idéia de
que, para conferir justificação, algo deve estar dentro da "perspectiva" ou
"ponto de vista" do sujeito, no sentido de ser algo que o sujeito sabe,
acredita ou justificadamente acredita. ( ...) Segundo, há a idéia de que,
para conferir justificação, algo tem que estar acessível ao sujeito de um
modo especial, por exemplo, diretamente acessível ou infalivelmente
30
acessível .

29
Lehrer, 1990 (grifo nosso).
30
Alston. Willian P. lnternalism and Externalism in Epistemology. In Alston.
Willian P. Epistemic Justijication- Essays in the Theory of Knowledge. lthaca:
Comell University Press. 1989, p. 185.
148 Alexandre Meyer Luz

Utilizemos a analogia de Armstrong, descrita anteriormente, para


melhor esclarecer a noção aqui: uma exigência internalista ao termôme-
tro seria algo como "estar ciente da relação entre sua afirmação e os
fatos" ou, pelo menos, "ter capacidade de se dar conta dessa relação, se
necessário."

3.2.1 Dois Grandes Tipos de "lnteroalismos"

No final da citação acima, ao nos apresentar a posição internalista sobre


justificação, Alston nos falava sobre justificadores "internos ao sujeito",
que poderiam ser crenças justificadas ou conhecidas a dar justificação a
outras crenças. Essa formulação nos põe diante de um problema de ex-
trema relevância: se uma crença justificada é justificada por outra, e
assim adiante, como evitar que caiamos em um regresso infinito epistê-
mico?31
A resposta ao problema será dado, a grosso modo, de duas maneiras
distintas, que caracterizarão as duas grandes doutrinas internalistas: i)
por um apelo à noção de coerência entre as crenças (imaginemos aqui
um círculo, ou uma rede), noção central do coerentismo, como veremos;
e ii) por um apelo à noção de uma crença de status especial, que, de al-
gum modo, não necessita de outra crença para tornar-se justificada, o que
caracteriza a posição jimdacionista.32

3.2.1.1 O Coerentismo

O coerentismo, uma família de teorias da justificação, da qual podemos


encontrar raízes em filósofos tão dis6ntos quanto Hegel e Bosanquet de
um lado e Neurath e Sellars de outro, consiste em uma posição interna-
lista que vai definir o conceito-chave de justificação apelando para a
noção de mútuo suporte entre crenças. R Audi apresenta-nos o modelo

31
Sobre esse problema c suas conseqüência confira, p. ex., Audi, Robert. Beliej.
Justification, and Knowledge. Califomia: Wadsworth Publishing Company,
1988, pp. 83ss.
32
Uma reconstrução mais detalhada de uma teoria coerentista (a de K. Lehrer),
assim como a de uma teoria fundacionista (de Paul Moser), pode ser acompa-
nhada em Luz, Alexandre Mcyer. A Análise do Conhecimento: O Problema de
Gellier e Três tentativas lnternalistas de Solução. Porto Alegre, 1997. Disserta-
ção. Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 149

de justificação coerentista do seguinte modo: "A idéia central a guiar o


coerentismo é a de que a justificação de uma crença emerge de sua coe-
rência com as outras crenças aceitas por um sujeito epistêmico. O con-
junto das crenças coesas pode ser tão largo quanto a totalidade das cren-
ças desse sujeito epistêmico".33 Ou seja, o regresso ao infinito é evitado
enquanto não temos uma reta, mas, antes, um círculo ou uma rede.

3.2.1.2 O Fundacionismo

O segundo tipo de resposta para o problema do regresso epistêmico vem


do grupo de teorias da justificação denominadas defundacionistas (e este
termo nos parece bem adequado, lembrando-nos das fundações a susten-
tar todo o prédio). Essas apelam para uma intuição bastante antiga em
filosofia (que tem seu início com Aristóteles, passando por Descartes,
pelos empíristas34 e, no nosso século, por Russell, Carnap, etc.): a de que
existiriam crenças com status especial que, de algum modo, não neces-
sitariam de justificação fornecida por outras crenças, interrompendo,
assim, o regresso3 ~ .

33
Cf. Audi, 1988, p. 87. Notemos que "coerentismo" aqui se refere a
"coercntismo epistemológico", sem relação com a mesma expressão utilizada em
outros casos como, por exemplo, nas "teorias da verdade coerentistas". Além do
livro de Lehrer que aqui será apresentado adiante, como dissemos, outras leitu-
ras interessantes para um panorama mais detalhado são o livro de Laurence
Bonjour (talvez, com Lchrer, um dos mais importantes coerentistas), Bonjour,
Laurence, The Structure of Empirical Knowledge. Cambridge: Harvard Univer-
sity Press, 1985, e a coletânea de artigos crfticos editados por John Bender:
Bender, John (Ed.). The Current State ofThe Colzerence Theory: Criticai Essays
on lhe Epistemic Theories of Keith Lehrer and Lawrence Bonjour with Replies.
Doordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989.
34
Descartes e os empiristas clássicos podem ser considerados fundacionistas,
apesar da aparente divergência em seus projetos. Ambos apelam para crenças
que, de um modo particular para cada um, se auto-sustentam: para Descartes, as
crenças que sustentam as demais crenças devem ser indubitáveis; para os empi-
ristas clássicos, o papel de sustentação das demais crenças é executado pelas
crenças com conteúdo empírico.
35
Uma primeira consulta pode ser feita rapidamente no já citado The Cambridge
Dictionary of Philosophy, no verbete ' Foundationalism', redigido por Paul K.
Moser.
150 Alexandre Meyer Luz

3.3 lnternalismo e Externalismo

Antes de caracterizarmos melhor as duas posições, vale lembrarmos o


contexto da disputa em que essas posições se inserem: a tentativa de
apresentar uma definição de conhecimento que não sucumba a ataques de
contra-exemplos de tipo-Gettier36• Muitos autores referem-se à questão
como a busca pela quarta condição, supondo que conhecimento deva ser
definido como crença verdadeira justificada mais... ; alguns outros auto-
res, porém, tentam trilhar um caminho diferente, atacando uma das três
condições classicamente estabelecidas37 • Posicionamo-nos aqui, desde já,
junto com o primeiro grupo, assumindo que uma definição adequada
para o conceito de conhecimento dar-se-á através do acréscimo de uma
quarta condição (e veremos algumas propostas para tal) às três propostas
por (DT).
Seguindo, então, o caminho para estabelecer o complemento invencí-
vel à definição tradicional de conhecimento podemos identificar dois
grandes grupos, (num recorte extremamente grosseiro, enquanto temos
em cada grupo inúmeras posições diferentes e divergentes sob diversos
aspectos) caracterizados a grosso modo anteriormente: o dos externalis-
tas e o dos intemalistas. A diferença entre ambos38 talvez tique melhor
caracterizada através de um exemplo.

Suponhamos uma criança bastante pequena, C, filha de mais eminente


astrofisico vivo, autor de uma teoria plenamente aceita e - para fins de
exemplo - verdadeira39• Essa criança nos repete uma afinnação qual-
quer decorrente da teoria astrofisica elaborada por seu pai. Suponha ain-
da que essa criança não sabe nada sobre a profissão de seu pai nem de
sua competência como pesquisador.

36
Em Luz, 1997, demonstramos dois casos de teorias sendo derrotadas por con-
tra-exemplos: as de Paul Moser e Keith Lehrer.
37
C f. Shope, 1983,cap.6.
38
Uma boa introdução à disputa internalismo x externalismo pode ser encontra-
da sob o verbete ' internalism/externalism' do execelente dicionário editado por
J. Dancy e E. Sosa, A Companion to Epistemology (Oxford: Blackwell Pu-
blishers Ltd, 1996).
39
Notemos que não nos importa aqui se é possível tennos efetivamente proposi-
ções verdadeiras ou qualquer outras questão do gênero. Como já apontamos,
apesar da proximidade, a questão da definição do conhecimento não depende
diretamente da questão do ceticismo.
Crença Verdadeira Justificada é Conhecimento? 151

Essa criança tem conhecimento?


Um extemalista não teria muitas dúvidas em afirmar que sim, já que
40
ela tem crença verdadeira e justificada (e imune a acidentes epistêmi-
cos; mas vamos nos furtar neste instante, a acrescentar qualquer condi-
ção às três tradicionais) enquanto essa crença foi obtida através de um
método confiável (um apelo legitimo à autoridade).
Um intemalista, ao contrário, teria sérias restrições em atribuir co-
nhecimento à criança, enquanto essa não passaria no principal teste
intemalista: ser capaz de defender a justificação de sua crença, ou seja,
de explicar o como se dá sua justificação, se para isso for requisitada.
Notemos aqui que as duas correntes trabalham com intuições básicas
que parecem ser igualmente plausíveis, as quais teríamos todo interesse
em preservar: os externalistas nos lembram de que a justificação deve ser
algo de algum modo ligado à verdade; os intemalistas, que estar justifi-
cados é um título meritório que serve exatamente para premiar indivídu-
os que cumprem requisitos para ter conhecimento (que é a lgo diferente
da mera posse de in formação).
Mas a discussão não se situa apenas no nível das intuições, enquanto
existem argumentos bastante fortes a favor das duas posições. Vejamos
alguns deles:

a) Regresso ao infinito: alguns extemalistas acusam o internalismo


do seguinte pecado: se o intemalista exige que o sujeito conhecedor es-
teja justificado em crer que está justificado (que saiba porque sabe, etc.),
não podemos exig ir que ele tenha justificação (ou saiba) num terceiro
nível e, assim, sucessivamente, caindo num regresso ao infinito?

40
Não é dificil supor que, para um extemalista radical, a justificação não será
um requisito de algum tipo de ' ação racional' em relação à crença, mas um mero
requisito de proximidade entre o conteúdo da crença e a verdade. Alvin
Goldman, por exemplo, definia justificação do seguinte modo: "Se a crença de S
em p em t resulta de um processo cognitivo confiável, e se não há nenhum
[outro] processo confiável ou condicionalmente confiável disponível para S, o
qual, se tivesse sido utilizado por ele junto com o processo atualmente utilizado,
resultaria na sua descrença em relação a p em t, então a crença de S em p está
justificada". (Goldman, Alvin. " What is Justified Belief?'' In Pappas, G. S. (ed.)
Justification and Knowledge. Dordrecht: D. Reidel, 1979. ).
152 Alexandre Meyer Luz

b) Separação entre justificação e verdade: esse argumento faz


apelo a uma intuição bem aceita: justificação, de algum modo, deve ser
definida em função da verdade, os extemalistas acusam o intemalismo
de não conseguir realizar uma definição de conhecimento que conecte, de
modo satisfatório, justificação e verdade; estar justificado, em um sentido
internalista, não nos diria nada em relação à verdade ou falsidade de uma
crença

c) Dificuldades em definir "processo condutor à verdade" (truth-


conducive): esse conceito, caro aos externalistas, padeceria, segundo
muitos internalistas, de uma debilidade grave. Vejamos: enxergar algo é
um processo condutor à verdade? Bem, teríamos que aí definir distância
do objeto, seu tamanho, condições de visibilidade, condições do observa-
dor...e n outras variáveis, de tal modo que não poderíamos apresentar
uma resposta universalmente válida.

4 Considerações Finais

Existem muitos outros argumentos, postos de modo muito mais sofistica-


do que os apresentados acima. O que gostaríamos de ressaltar, aqui,
porém é o fato de: a) termos boas intuições em ambos os lados; b) termos
dificuldades de formalizar teorias em ambos os lados. É isso que tem
garantido a continuidade da discussão, principalmente na direção de uma
tentativa de conciliar as diferentes intuições.
O mais importante aqui, porém, consiste em que percebamos que,
para qualquer teoria (seja qual a inspiração a lhe mover), temos já um
critério de sucesso bem estabelecido: a sua capacidade de sobrevivência
diante dos contra-exemplos de tipo-Gettier. É esse critério comum que
garante rigor à discussão; mesmo que, de saída, estejam em jogo intui-
ções radicalmente diferentes, o critério continua sendo único e implacá-
vel. Em compensação, porém, depois de cada derrota poderemos apren-
der a lidar melhor com o conceito de conhecimento e simultaneamente,
esclareceremos passo a passo tal conceito que, hoje, se encontra ainda em
lusco-fusco.
CONSEQÜÊNCIAS EPISTEMOLÓGICAS DA TERAPIA
WriTGENSTEINIANA: PRAGMÁTICA FILOSÓFICA.

ARLEY MORENO
Unicamp

Gostaria, inicialmente, de delimitar dois elementos do tema geral proposto-


epistemologia e pragmática -, para melhor situar as observações que apre-
sentarei a seguir. Do conceito amplo de pragmática, restringir-me-ei a
salientar o aspecto pragmático da significação lingüística, a saber, as formas
de produção da significação que envolvem as circunstâncias da enunciação e
das aplicações das palavras- como, por exemplo, as situações de interlocu-
ção, os diferentes processos para a atribuição de nomes, as diversas ligações
entre palavras e técnicas de organização da experiência, etc. Do conceito de
epistemologia, salientarei o aspecto de interpretação filosófica das condi-
ções gerais dos mecanismos lingüísticos de construção de conceitos - as-
pecto este que se distingue muito claramente de uma explicação através de
modelos lingüísticos: não se trata, como veremos adiante, de tomar a lin-
guagem como fenômeno empírico e de explicar seus processos, mas de pes-
quisar as condições simbólicas propriamente lingüísticas que estão supostas
e que determinam a organização do conhecimento através de conceitos. É
assim que uma pragmática da significação lingüística pode ser entendida
como uma Pragmática filosófica.

Em seguida, gostaria de salientar, ainda que esquematicamente, a filiação da


proposta que farei a seguir, para bem situar seu contexto filosófico. Em pri-
meiro lugar, a passagem gradualmente realizada pelos filósofos do chamado
empirismo lógico da idéia kantiana de transcendental - como condição a
priori para a representação dos objetos - à idéia de forma lógica. Esta pas-

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analltica. Florianópolis: NEL, pp. 153-74.
154 Arley Moreno

sagem permite que o centro de interesses passe a incidir, cada vez mais clara
e sistematicamente, sobre os mecanismos do simbolismo lingüístico como
uma forma filosoficamente mais adequada de interpretação do conhecimen-
to. Ao criticar a tese de que o pensamento é autônomo ao elaborar juízos
sintéticos a priori, e, pelo contrário, ao assumir a tese de que a experiência
empírica fornece um modelo indispensável para o conhecimento - que não
devemos descartar, sob o risco de reincidirmos nos tradicionais sistemas
metafisicos -, os filósofos do empirismo lógico, desde Russell até Carnap,
esclarecem-nos, cada um à sua maneira, a função constitutiva desempenhada
particularmente pelo simbolismo lingüístico na construção do conhecimento
conceitual: os próprios fatos coincidem com sua expressão língilistica em
algo que lhes é comum, sua forma. Ora, esta forma possui propriedades
lógicas que podem ser exploradas e explicitadas, e é a este trabalho que se
dedicam os empiristas lógicos.
Em segundo lugar, gostaria de ressaltar o alargamento da concepção
kantiana da Lógica proposto por G.-G. Granger. A Lógica, segundo Kant,
deve fornecer exclusivamente as formas legítimas do pensamento em geral,
independentemente de seus eventuais conteúdos. A Lógica não legisfera,
neste sentido kantiano, sobre o pensamento de objetos e, por isto, não possui
a função transcendental que é atribuída à Estética. Ora, Granger (1968 e
1994, cap. 2), ao reconhecer a importância do simbolismo lingilfstico na
constituição do conhecimento conceitual, é levado a propor a idéia de que a
Lógica já legisfera a respeito da organização perceptiva da experiência,
enquanto experiência a ser expressa lingilisticamente. Em outros termos, a
Lógica já é transcendental porque fornece as formas mais primitivas do
pensamento de objetos, a saber, do pensamento simbólico. E encontramos,
aqui, uma situação equivalente àquela com que se defronta o jovem Wi-
ttgenstein do Tractatus: a Lógica é transcendental e fornece as condições
para o pensamento objetivo.
Em terceiro lugar, neste ponto, acompanhamos Wittgenstein nas dificul-
dades encontradas para a caracterização do conceito de objeto e a passagem
à segunda fase de sua atividade filosófica (Moreno 1995). Após o Tractatus,
ao indagar a respeito de quais são os objetos, Wittgenstein percebe que a
Lógica oferece as condições a priori para o pensamento do objeto, mas,
apenas do ponto de vista daquilo que é denominado de modelo referencial,
ou agostiniano, nas Investigações Filosóficas. Pode-se afirmar, após o
Tractatus, que as formas primitivas da experiência expressa lingilistica-
mente, fornecidas pela Lógica, são relativas ao modelo referencial, e, por-
tanto, limitadas a uma determinada concepção de linguagem, a qual, nessa
Conseqüências epistemológicas da terapia wiltgensteiniana 155

obra de juventude, havia sido indevidamente generalizada. Ao recusar o


exclusivismo desta concepção, Wittgenstein percebe que as formas primiti-
vas da experiência expressa se multiplicam, extravazando o modelo referen-
cial - ao qual se aplica, adequadamente, está claro, a Lógica transcendental
- :tais formas serão encontradas aquém da Lógica, em situações pré-lógicas,
mas já de natureza lingtiística, nas quais intervêm diversificados aspectos
pragmáticos, como diz Wittgenstein, de uso das palavras.

Esta breve exposição, para indicar a filiação e o contexto da proposta de uma


pragmática filosófi ca. Tendo como pano de fundo o deslocamento das for-
mas puras da intuição para as formas lóg icas de organização lingilística da
experiência, nossa proposta consiste apenas em sistematizar alguns concei-
tos envolvidos naqui lo que poderíamos denominar de "terapia gramatical"
do pensamento, exercida por Wittgenstein após o Tractatus, e mais exausti-
vamente a partir do final da década de 30. Neste percurso terapêutico, Wi-
ttgenstein explora aspectos do simbolismo lingtiístico que são tradicional-
mente considerados processos de natureza extra-lingüística, como por exem-
plo, as diversas técnicas de ensino para a aplicação das palavras, as diversas
instituições sociais e as convenções que orientam tanto a aplicação das pala-
vras quanto a própria compreensão da significação, as ligações entre a ex-
pressão lingüística de nossas ações e as próprias ações, através dos hábitos e
das convenções, o papel desempenhado pela simples suposição da existência
de entidades mentais, matemáticas ou lógicas nos usos que são feitos dos
respectivos conceitos. O domínio do lingüístico é consideravelmente expan-
dido, ao serem incorporados elementos pragmáticos diversos enquanto esti-
verem envolvidos com a linguagem. O grau desse envolvimento consiste em
que tais elementos possam ser considerados como exercendo a função de
regras lingüísticas, i.e., regras permitindo que sons sejam usados como
palavras, que palavras sejam aplicadas a diversas situações, que objetos
existentes ou supostamente existentes sejam investidos da função de conteú-
dos de expressões lingüísticas - para que possamos com a linguagem, por
exemplo, comunicar pensamentos sobre objetos em geral, mas também ape-
nas exprimir esses pensamentos, sem comunicá-los, como, ainda, realizar
operações de cálculo, construir objetos, aplicar técnicas as mais diversas,
elaborar novas técnicas, ou, simplesmente, jogar com palavras. E, para tudo
isto, lançamos mão de gestos ostensivos, modelos de objetos, tabelas, gráfi-
cos, técnicas de medida, suposições, hábitos comunicativos, expressivos ou
156 Ar/ey Moreno

de puro contato, etc.


No percurso terapêutico de Wittgenstein, podemos encontrar uma con-
cepção de linguagem claramente estabelecida e mais um conjunto bem arti-
culado de conceitos que a sustenta. Entretanto, a natureza da atividade filo-
sófica proposta, de acordo com o próprio Wittgenstein, impede que teses
sejam avançadas, que um conjunto de conceitos seja organizado sob a forma
de sistema de teses e este apresentado como solução às dificuldades sobre as
quais se debruça o filósofo; essa atividade limitar-se-á a uma descrição dos
diversos usos das palavras e deverá ter como resultado a cura do pensamen-
to, ao esclarecer a origem lingüística daquelas dificuldades. Assim sendo, a
concepção de linguagem e os conceitos que a articulam encontram-se, em
Wittgenstein, dispersos entre as diversas anotações, pouco sistematizados
através de um discurso teórico que os tematize, uma vez que são parte natu-
ral dessa atividade mais voltada para a prática, e menos para a teoria. Ora,
nada nos impede de conceber, entretanto, contrariamente a essa concepção
da atividade filosófica, uma teoria a respeito do conhecimento inspirada,
precisamente, nos conceitos e na concepção de linguagem presentes na prá-
tica terapêutica de Wittgenstein. Sem negar ou excluir o caráter curativo da
terapia, nem, tampouco, o caráter prático desta filosofia, uma tal epistemo-
logia consistiria em sistematizar os conceitos e aplicá-los a questões filosófi-
cas precisas. Haveria lugar para a análise de relações simbólicas elementares
- tal como, por exemplo, a relação de reenvio- assim como para a pesquisa
das condições que estão supostas pelas formas elementares de organização
simbólica da experiência - as condições, por exemplo, daquelas atividades
acima mencionadas, que permitem a Wittgenstein expandir o domínio do
lingüístico. Esta epistemologia deveria apresentar, como um de seus princi-
pais instrumentos de análise, uma teoria da repr~sentação em geral, e lin-
güística em particular.

Gostaria, a seguir, de indicar alguns elementos pragmáticos que me parecem


importantes para orientar a construção de uma tal teoria da representação.
Em primeiro lugar, a idéia de contexto e, em segundo lugar, seguindo a
terminologia de Wittgenstein, a idéia de uso (Gebrauch), com as devidas
especificações a seguir.
A idéia de contexto, da maneira como procuro introduzi-la, é recoberta
pelo conceito de sistema estrutural, a saber, a situação em que um conjunto
de elementos quaisquer permite que sejam estabelecidos critérios de fecha-
Conseqüéncias epistemológicas da terapia wittgensteiniana 157

mento para o conjunto. Em outros termos, o conjunto é organizado através


de relações internas de co-determinação entre seus elementos, e os critérios
de fechamento permitem identificar os respectivos elementos, incluindo ou
excluindo-os do conjunto. Tais critérios podem ir dos mais rígidos - como os
que se aplicam a conjuntos formalmente organizados- até os que se aplicam
a conjuntos cujo fechamento é apenas virtual, permitindo a identificação de
elementos não previstos inicialmente- a exemplo das línguas naturais, com
seus neologismos, e dos sistemas s imbólicos não-lingüísticos.
A partir desta idéia geral de contexto, enquanto sistema estrutural, seria
preciso ressaltar, em seguida, seu aspecto pragmático: cada contexto é um
sistema determinado por elementos circunstanciais que passam a agir ao
serem aplicados - a exemplo do sentido lingUístico que depende das situa-
ções de sua enunciação efetiva. Esta determinação apresenta, pelo menos,
dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, o caráter aberto dos conjuntos
assim constituídos: seus limites não são exaustivamente determináveis, pelo
contrário, são sempre provisórios, uma vez que relativos às circunstâncias
regionais de aplicação dos elementos do conjunto. Assim, tomando um
exemplo de Wittgenstein, a aplicação de uma regra não se realiza no vazio,
da mesma maneira como, podemos acrescentar, o próprio pensamento da
regra também não se realiza no vazio: aplicar uma regra e compreendê-la
supõe que seja possível pensar um contexto determinado, permitindo preci-
sá-la - para que se torne possível compreendê-la e, consequentemente, apli-
cá-la. Sendo este processo indefinidamente reiterável, pode-se afirmar, gene-
ralizando, que a aplicação e a compreensão de um significado supõem e
correspondem à capacidade de inseri-lo adequadamente em diferentes con-
textos, inclusive em contextos inicialmente imprevistos. Daí surgirão, natu-
ralmente, os limites entre o possível e o impossível para o pensamento, ou
melhor, os limites entre as aplicações conceituais que admitimos e as que
rejeitaremos, os critérios de identidade que estaremos dispostos a ampliar ou
não, conforme as circunstâncias. Situamo-nos, então, deste ponto de vista,
muito aquém das condições fornecidas pela Lógica transcendental, no senti-
do acima indicado - a forma lógica, o princípio de não-contradição, o mo-
delo referencial - uma vez que passam a entrar em consideração as múlti-
plas atividades estreitamente ligadas à manipulação de palavras. Não so-
mente o caráter virtual, mas, principalmente, o contexto circunstancial de
aplicação e compreensão das regras ficam , assim, acentuados e assumidos.
O segundo aspecto, complementar ao anterior, consiste na inseribilidade
de cada contexto particular em outros sempre mais amplos, através de sua
composição com outros contextos particulares - sem que se possa determinar
158 Arley Moreno

a priori um limite superior para este processo de complexificação contextu-


al. Este aspecto não é apenas complementar ao anterior, mas, principal-
mente, tem a função de interromper a cadeia indefinida de novos contextos
particulares que podem ser apresentados como legítimos candidatos à apli-
cação de um conceito. Trata-se de um princípio holístico que permite indicar
um conjunto de hábitos e convenções como critérios suficientes para identi-
ficar a aplicação correta ou adequada de uma regra, ou melhor, que permite
decidir qual é o contexto geral suficiente para que a aplicação do conceito
possa ser julgada como correta ou adequada Se cada contexto particular
permite sempre a criação de novas ambigüidades, sua inserção em um con-
texto mais rico poderá levar à desambiguação. É este aspecto, aliás, que
permite descartar a observação do cético kripkeano (Kripke 1982) - segundo
a qual nunca será possível decidir se uma regra está ou não sendo seguida,
um conceito corretamente aplicado - ao situá-la na posição do olhar divino,
i.e., ao caracterizá-la, contraditoriamente às próprias pretenções do ceticis-
mo, como essencialista. Frente a situações-limite, em que não mais é possí-
vel fornecer razões para a ação, deve-se apenas reconhecer, como diz Wi-
ttgenstein, que é assim que agimos- e procurar, se for o caso, fornecer cau-
sas para a ação, mas não mais fundamentos. É este aspecto complexo das
relações entre os diferentes contextos que Wittgenstein indica através de
uma metáfora ainda muito vaga: "formas de vida".
A segunda idéia que gostaria de introduzir é a de uso, para salientar dois
aspectos importantes da significação conceitual: a construção e a aplicação
do signo. No caso da construção do signo, trata-se de investigar, em primei-
ro lugar, as condições das formas elementares de organizar a experiência em
objetos do reenvio. Quaisquer que sejam essas formas elementares de orga-
nização, devem elas supor situações tornadas típicas através de sua repeti-
ção, de sua constância. Para melhor esclarecer esta idéia, proporemos a
seguinte distinção: por um lado, o que podemos denominar de "situação": é
simplesmente um conjunto de ações e hábitos diversos; por outro lado, um
ou vários fragmentos da situação que são eleitos como elementos pertinentes
para certas finalidades - o que podemos denominar "aspectos" da situação.
Assim, a organização simbólica da experiência incide sobre as situações,
destacando nelas os aspectos considerados pertinentes para a realização de
determinadas finalidades; são as finafidades que permitem fixar, em cada
caso, os critérios de pertinência para a seleção dos aspectos. Em nosso caso,
trata-se de investigar as condições das formas elementares de se atribuir a
função de objeto do reenvio do signo aos fragmentos da experiência que são
os aspectos. Em segundo lugar, a construção do signo permite também uma
Conseqüências epistemológicas da terapia wiltgensteiniana 159

pesquisa a respeito das condições para a atribuição da função significante do


signo aos aspectos. Neste último caso, deve-se colocar a questão da relevân-
cia das condições pragmáticas para a constituição do significante: em que
medida a independência relativa do significante com respeito ao objeto do
reenvio não o torna autônomo e, assim, livre, em princípio, das determina-
ções pragmáticas? Note-se que o aspecto pragmático da construção do signi-
ficante é, indiscutivelmente, relevante para as diferentes descrições semiló-
gicas empíricas, mas coloca-se, pelo contrário, sob a forma de um problema
para a atividade reflexiva, como o é a pragmática filosófica. Ora, a comple-
xidade da função significante coloca, como sabemos, questões também em
outro nível, quando se trata de focalizar a construção das combinações entre
os significantes. Mais uma vez, pode-se indagar sobre a independência das
regras de combinação dos significantes com respeito aos aspectos pragmáti-
cos, assim como, sem dúvida, com respeito à própria relação de reenvio
semântico. Em outros termos, e evocando conceitos de Peirce: em que medi-
da a Gramática seria independente com respeito tanto à Lógica quanto à
Retórica - ou, ainda, em que medida a construção das combinações entre os
significantes seria autônoma com respeito às construções semânticas de
reenvio e também às construções pragmáticas de significação?- autonomia
para criar, inclusive, objetos do reenvio próprios. Ora, de nosso ponto de
vista, trata-se de indagar se as condições pragmáticas permitem dizer apenas
quais são os significantes em tais e tais casos - assim como nas descrições
empíricas- ou se, previamente a isto, permitem, também, legislar a respeito
de um campo de possibiliddes operatórias, i.e., se impõem a priori condições
reguladoras de operações possíveis sobre os aspectos enquanto significante.
Seria preciso, pois, distinguir os diferentes níveis de abordagem. Por um
lado, a independência relativa dos significantes com respeito aos objetos do
reenvio situa-se em um nível empírico do uso das palavras, a saber, diz res-
peito ao caráter arbitrário de sua associação com os objetos do reenvio. Por
outro lado, a construção do significante enquanto função correlativa à do
objeto do reenvio: trata-se de interpretar a relação de codeterminação entre
essas duas funções diferentes, e, neste caso, de saber em que medida a rela-
ção é pragmaticamente regulada. Ora, a riqueza e complexidade expressiva
da função significante é tal que, como sabemos, sempre é possível impor a
qualquer objeto do reenvio particular a função expressiva do significante,
assim como tomar um significante particular e atribuir-lhe a função objeto
do reenvio. Parece-me que é, justamente, a natureza pragmática da função
objeto do reenvio que irá permitir uma interpretação clara e simples da
construção da correlação de reenvio simbólico. E finalmente, como conse-
160 Arley Moreno

quência, é possível ainda indagar sobre a presença de aspectos pragmáticos


na formulação das regras sintáticas de combinação dos significantes- tarefa
que não nos cabe aqui abordar, mas que permanece no horizonte de preocu-
pações de uma pragmática filosófica.
Finalmente, quanto à aplicação do signo, temos o campo de investigação
mais tradicionalmente voltado para as condições pragmáticas em que as
circunstâncias e os hábitos comunicativos são princípios para a criação de
novas convenções podendo, a todo momento, contrastar e até mesmo contra-
riar as convenções anteriores. A grande novidade, no nível da aplicação do
signo, é que as formas elementares de organizar simbolicamente a experiên-
cia são inteiramente lingüísticas, uma vez que têm como fundamento o signo
já bem estabelecido enquanto instrumento simbólico. É, aliás, por esta via
que transita a atividade terapêutica de Wittgenstein. Todavia, a aplicação do
signo pressupõe sua prévia construção. É por esta via que procuraremos, por
nossa parte, prosseguir.

li

Vejamos, agora, mais precisamente, em que sentido uma pragmática filosó-


fica poderia corresponder à sistematização e desenvolvimento de alguns
conceitos presentes na atividade terapêutica proposta por Wittgenstein, no
que diz respeito à dimensão construtiva do uso da linguagem.
Gostaria de introduzir a idéia de "aspecto", a partir da equivalente noção
wittgensteiniana de "perceber um aspecto" (PU, em particular, parte li,
assim como no texto das BPP), com as devidas precisões e desenvolvimentos
a seguir. Esta noção corresponde a um tema recorrente nas anotações •de
1
Wittgenstein, cujas origens parecem remontar à época do Tr, no contexto da
crítica às teorias do juízo de Russell, começa a ser retrabalhada durante os
anos 30 e vai ganhando amplitude em seu pensamento até os escritos finais.
Wittgenstein apresenta inicialmente esta noção no contexto das experi-
ências com a percepção de figuras ambíguas realizadas pelos psicólogos da
Gestalt. Interessa-lhe, nestas experiências, as mudanças do olhar que focali-
za diferentes aspectos presentes em uma mesma figura, vendo, assim, obje-
tos diferentes. Trata-se, para Wittgentein, de descrever a gramática do con-
ceito de ver e de seu correlato ver como. Esta discussão é rapidamente in-
troduzida por Wittgenstein nos contextos ético e mentalista, ao ser sublinha-
da, respectivamente, a presença da vontade e da representação mental
Conseqüências epistemológicas da terapia wíllgensteiniana 16 1

(Vostellung) na gramática do ver como e sua ausência na do ver.


A primeira precisão que sugiro para a noção de aspecto consiste em des-
vinculá-la do contexto perceptivo. É que a percepção contém um pressuposto
que conviria eliminar, a saber, o da existência prévia dos aspectos percebi-
dos: perceber aspectos de uma mesma figura corresponderia à exploração
das diferentes facetas que ela já possui, mas que não são percebidas imedia-
tamente, de um só golpe, pelo olhar. Esta desvinculação é, de certa maneira,
sugerida pelo próprio Wittgenstein ao introduzir, como salientamos, a von-
tade e a representação mental como elementos da gramática do ver como.
De fato, ao introduzir estes elementos no uso do conceito, expande Wi-
ttgenstein, agora por sua própria conta, o ver como, aplicando-o como con-
ceito operatório do próprio método terapêutico: a exemplificação, enquanto
etapa essencial da terapia filosófica, encontra seus limites não nas próprias
situações confusas que são o ponto de partida para a criação de outras situa-
ções àquelas ligadas por laços de parentesco, mas, sim, na disposição da
vontade - relativamente ao contexto ético - ou na capacidade, em princípio,
ilimitada, para se representarem novas aplicações aos conceitos confusos -
no contexto prático dos usos das palavras, ou mentalista, que interpreta o
ver como através da presença de uma atividade espiritual especifica. As
situações consideradas confusas não contêm em si próprias, contrariamente
ao que parece ocorrer com as figuras ambíguas da percepção, o conjunto
acabado das ligações de semelhança com outras situações: os limites depen-
dem exclusivamente da vontade e da capacidade imaginativa do interlocutor.
Assim sendo, desvinculada da percepção, a noção de aspecto deixa de supor
a existência prévia do conjunto de aspectos no que é percebido, ou visto
como, e passa a depender de fatores de natureza pragmática. Desvinculada
da percepção, a noção de aspecto adquire, em Wittgenstein, o mesmo esta-
tuto operatório que a exemplificação na prática terapêutica, a saber, os
exemplos apresentam novos conjuntos de regras de uso, inusitadas até, para
os conceitos geradores de confusão - inclu sive para os conceitos introduzi-
dos através da percepção, ver e ver como -com a finalidade de introduzir
novos aspectos, novas perspectivas, a respeito das situações inicialmente
confusas dada a unilateralidade com que eram consideradas. Ora, as pala-
vras não contêm previamente o conjunto dos usos possíveis que delas pode-
mos fazer, assim como nem a significação dos conceitos e nem a compreen-
são da significação contêm o conjunto de aplicações possíveis dos conceitos.
São fatores pragmáticos, como a vontade e a imaginação, entre outros, que
orientam criterialmente os usos diversificados e novos da linguagem.
162 Arley Moreno

Prosseguindo e desenvolvendo esta sugestão de Wittgenstein, proponho


aplicar a noção de aspecto como conceito que permite definir procedimentos
operatórios para a identificação de objetos. Quais seriam a natureza e o
estatuto teórico deste conceito?
Em primeiro lugar, gostaria de salientar a natureza formal da definição
do objeto obtida através dos procedimentos operatórios que permitem sua
identificação, i.e., dos aspectos. Uma das tarefas da pragmática filosófica
seria, como dissemos, a de indicar formas elementares de se atribuir dife-
rentes funções simbólicas aos aspectos. Note-se, pois, que os aspectos serão
concebidos como fragmentos de situações às quais são atribuídas funções
simbólicas elementares, a saber, aquelas funções do signo que caracterizam
o objeto enquanto expressão ou enquanto objeto do reenvio da expressão.
Assim, por exemplo, tal aspecto, ou ftagmento de situação, é instituído en-
quanto critério para identificar fragmentos da experiência como unidades
expressivas - o significante do signo - ou como unidades de reenvio das
expressões - o objeto do reenvio do signo. Este som que agora ouço e inter-
preto como uma palavra era um ruído antes de ser constituído a priori atra-
vés de procedimentos operatórios, ou aspectos, em urna palavra possível: um
ruído foi selecionado como um candidato a objeto do reenvio possível para o
conceito palavra. Em segu'ida, na qualidade de objeto do reenvio possível
para esse conceito, é instituído empiricamente pela percepção e pelo uso
material em uma determinada palavra da língua portuguesa, por exemplo, a
palavra "mesa". Da mesma maneira, este objeto à minha frente, sobre o qual
escrevo nesta folha de papel, era um algo antes de ser constituído a priori
através de procedimentos operatórios, ou aspectos, em um objeto possível:
um algo foi selecionado como um candidato a objeto de reenvio possível
para o conceito mesa. Em seguida, na qualidade de objeto do reenvio possí-
vel para esse conceito, é constituído empiricamente pela percepção e pelo
uso material em uma determinada peça de mobiliário, a saber, urna mesa. A
percepção e o uso material são orientados, neste nível simbólico elementar,
pelos conjuntos de ações habituais instituídos em procedimentos operatórios
normativos, i.e., enquanto aspectos do objeto. São os aspectos que, neste
sentido, permitem que se formule uma definição, prévia à percepção e ao uso
material, da forma geral do objeto palavra ou mesa, operando, assim, à
seleção entre os legítimos candidatos, e excluindo todo o resto. Perceber ou
usar este ruído ou este algo enquanto uma palavra ou uma mesa supõe, desta
perspectiva, a aplicação de determinados procedimentos operatórios, ou
Conseqüências epistemológicas da terapia wittgensteiniana 163

aspectos, como critérios para a identificação de ocorrências possíveis da


forma geral da objetividade em questão. Assim, por exemplo, no primeiro
caso, como diz o próprio Wittgenstein, são as ligações regulares entre sons e
ações que caracterizam aquilo que denominamos "linguagem" (PU § 207):
são estas ligações, em sua regularidade, que nos permitem julgar que tais e
tais sons são palavras possíveis, assim como descartar outros sons como
ruídos. Não basta, pois, ouvir sons para julgar; é preciso levar em conta,
fundamentalmente, os critérios que permitem identificar a objetividade con-
cernida: neste exemplo, as ligações regulares entre sons e ações enquanto
norma para a organização da experiência em sons de uma lingua. É preciso
sublinhar que este ruído ou este algo, ainda sem qualificação, não contêm,
previamente à percepção, todo o conjunto possível de aspectos; pelo contrá-
rio, um tal conjunto é sempre aberto e imprevisível, seu fechamento é sem-
pre virtual, uma vez que os aspectos são construídos no interior das situações
em função de circunstâncias pragmáticas. Assim, aspectos são instituídos
enquanto critérios normativos que permitem indicar a priori aquilo que pode
ser um objeto determinado em geral: por exemplo, expressões como "ser
som de uma língua é apresentar tais e tais aspectos", "ser palavra da língua
portuguesa é apresentar tais e tais aspectos" e "ser mesa é apresentar tais e
tais aspectos" correspondem a definições da forma de objetos determinados,
correspondem a princípios constitutivos transcendéntais de objetos; em
seguida, estes objetos serão constituídos empiricamente pela percepção e
pela prática em suas diversas ocorrências.
Fica assim, pois, salientada a natureza formal da identificação que os
aspectos introduzem: não se trata de indicar empiricamente objetos através
dos aspectos, mas de indicar formas de objetos. A este respeito, poderíamos
retomar a afirmação feita por Wittgenstein de que a definição do objeto é
dada pela gramática, e, por nossa conta, sugerir uma precisão a ela: é no
interior de cada situação que conjuntos de elementos pragmáticos permitem
selecionar aspectos para indicar formas específicas do objeto; em outros
termos, cada situação organiza pragmaticamente a experiência instituindo
regras mais ou menos restritivas para o uso das formas expressivas que são
as palavras e, consequentemente, organiza a experiência nos respectivos
objetos do reenvio dessas palavras. É no interior das situações que, na ver-
dade, serão desenvolvidos e praticados os jogos de linguagem a que se refere
Wittgenstein.
Em segundo lugar, seria importante sublinhar a natureza pragmática dos
aspectos: é que a noção de forma será entendida como correspondendo ao
resultado da aplicação de procedimentos operatórios, de ações habituais, à
164 Arley Moreno

experiência, ou, em outras palavras, de aspectos instituídos como critério


normativo. A forma do objeto mesa corresponde à aplicação de tais proce-
dimentos operatórios que, no interior de uma situação, foram instituídos
como os critérios pertinentes para a organização da experiência segundo tal
objeto, ou melhor, corresponde à aplicação daqueles conjuntos de aspectos
considerados necessários, ou apenas suficientes, ou ambos, para solecionar -
i.e., admitir e excluir - os diferentes candidatos a tal objetividade. Não te-
mos ainda, neste nível, manifestações individuais ou ocorrências, de mesas
ou cadeiras, nem de triângulos; temos apenas a definição de formas, ou de
condições gerais, para identificar ocorrências de diferentes objetos. É so-
mente no nível empírico da percepção e do uso material que serão indicadas
as ocorrências da objetividade anteriormente definida a priori através da
instituição de aspectos. A noção de forma perde, assim, sua origem a priori,
conserva sua aplicação transcendental, e adquire uma dimensão pragmática.

Gostaríamos de salientar, em seguida, uma conseqüência do que precede: o


domínio pragmático comporta condições de natureza a priori para a indica-
ção da objetividade na medida em que as ações habituais, instituídas en-
quanto critérios normativos, passam a legislar sobre a forma da objetividade,
tornando-se, assim, independentes da experiência. Esta atribuição de função
normativa ou criterial às ações é operada por convenções e instituições cuja
complexidade empírica pode ser descrita e analisada por uma ciência socio-
lógica ou antropológica, mas que se situa fora do âmbito da pragmática
filosófica. Retornando a Kant, devemos reconhecer que, embora tendo como
solo de origem a experiência, uma regra normativa é um princípio de orga-
nização da experiência pelo pensamento que independe da própria experiên-
cia. Uma tarefa da pragmática filosófica seria, pois, a de distinguir, cuidado-
samente, e nunca confundir, a origem empírica de um princípio organizador
do conhecimento e sua aplicação transcendental. Em outros termos, aquilo
que denominamos de aspectos deve interessar e ser descrito em sua função
criterial a priori na constituição da objetividade, independentemente de suas
origens empíricas. A definição, por exemplo, da forma triangular lança mão
de ações e hábitos que são instituídos como critério normativo para a identi-
ficação a priori de ocorrências desta forma da objetividade: dentre as diver-
sas ações que permitem interseccionar fragmentos de retas ou de superficies
planas, segundo várias posições, assim como aplicar operações aritméticas
sobre figuras geométricas, serão selecionadas e instituídas como norma
Conseqüências epistemológicas da terapia willgensleiniana 165

aquelas, por exemplo, que permitem construir formas triangulares; a aplica-


ção desta norma define a forma triangular da objetividade, i.e., o que é ser
triângulo - independente da experiência, a norma organiza a experiência
segundo esta forma. Da mesma maneira, as ações habituais que exprimem
natural e espontaneamente sensações doloridas são instituídas, no interior de
certas situações, como norma para a definição de tais sensações através da
aplicação da palavra "dor", assim como os frutos que vejo neste conjunto de
árvores, para a palavra "pomar", ou, ainda, a prática de colher frutos, o
conhecimento de que frutos alimentam e de que seu gosto é apreciado, a
apresentação de diferentes frutos, etc. , para a palavra "fruto"; formas da
objetividade psicológica e empírica são, deste modo, introduzidas através de
fragmentos da linguagem e de fragmentos das diferentes práticas envolvidas
com a linguagem. Em todos estes casos, aspectos de situações são instituídos
enquanto norma regulativa para a organização da experiência através de
signos, independentemente, pois, da própria experiência assim organizada,
i.e., de minhas dores, de meu pomar e de seus apetitosos frutos.

Finalmente, quanto ao estatuto teórico do conceito de aspecto, trata-se, em


nosso caso, de aplicá-lo, em primeiro lugar, à descrição das form as elemen-
tares de organização simbólica da experiência do ponto de vista pragmático,
a saber, tomando como ponto de partida os fragmentos da experiência que
denominei situação- i.e., conjuntos de ações e hábitos - formular normas e
critérios colhidos em outros conjuntos de ações e hábitos - i.e., os fragmen-
tos de situações que denominei aspectos - e descrever sua função simbólica.
Em outros termos, trata-se de descrever, antes de tudo, os princípios que
permitem organizar a priori conjuntos de ações e hábitos em aspectos com
função simbólica, i.e., com as funções expressiva e semântica. Ficam, pois,
excluidas outras formas de organização simbólica por incidirem direta e
exclusivamente sobre os conteúdos das ações e hábitos, como, por exemplo,
a organização perceptiva pré-conceitual. O ponto de vista pragmático aqui
apresentado, seleciona apenas a etapa lingüística do processo mais amplo de
organização simbólica da experiência, a saber, os fragmentos de ações e
hábitos instituídos como norma das funções expressiva e semântica, e, em
seguida, conseqilentemente, a percepção exprimível lingüisticamente, que é
a etapa inicial do conceito. Assim, por exemplo, o objeto do reenvio de uma
expressão consiste em um complexo de ações habituais, ou operações, inci-
dindo ou não sobre entidades empíricas; ao incidirem sobre tais entidades, o
166 Arley Moreno

objeto do reenvio é o resultado destas operações sobre as entidades, a saber,


tais entidades investidas da função criterial: os modelos-padrão, as amostras,
as tabelas para testagem, etc.; ao não incidirem sobre entidades empíricas, o
objeto do reenvio será, igualmente, critério normativo cujo conteúdo consiste
exclusivamente nas próprias operações investidas da função criterial: as
operações que permitirão construir o sentido dos conceitos, ou melhor, que
definem as condições formais para os candidatos à objetividade conceitual,
por exemplo, os aspectos da objetividade enquanto dor ou triângulo. O objeto
do reenvio de uma expressão é um tal critério, seja para a aplicação das
palavras "dor" e "triângulo", seja para a indicação das ocorrências conside-
radas legítimas a partir de objetos-padrão, de amostras e da aplicação de
tabelas. Note-se que, em nenhum destes casos, o objeto do reenvio será assi-
milado à referência das respectivas expressões: a referência é o caso parti-
cular de reenvio simbólico em que a expressão reenvia a ocorrências empíri-
cas do conceito. De fato, o reenvio referencial supõe, de nosso ponto de vista
pragmático, a ligação simbólica prévia e a priori entre as formas lingüísti-
cas, por exemplo, as palavras "dor" e ''triângulo", e os conjuntos de opera-
ções - ações e hábitos - que, no interior das diferentes situações, interessa
fixar através da linguagem na qualidade de critérios normativos da objetivi-
dade. A referência pode estar ausente sem que, por isto, deixemos de aplicar
as palavras, por exemplo, com as mais diferentes forças ilocutórias, para
pedir perdão ou perdoar, ajudar ou pedir ajuda, ou, ainda, supor, implicitar,
exprimir e comunicar estados mentais privados, e, mesmo, indicar a forma
lógica geral da proposição! Assim sendo, os casos exemplares que tomam
clara a natureza operatória do objeto do reenvio são aqueles em que este já é
um signo ou uma operação: os diversos códigos de sinais - como luzes,
bandeiras, ou o Morse - reenviam normalmente a palavras ou letras do alfa-
beto, assim como as diversas formas de transcrição da fala oral, e, por outro
lado, as operações de soma, radiciação, exponenciação, etc., são os objetos
do reenvio dos respectivos símbolos matemáticos: em todos os casos, os
objetos do reenvio são operações, lingüísticas ou matemáticas, ações institu-
cionalizadas, sobre a própria linguagem ou sobre quantidades quaisquer.
Retomando, mais uma vez, a expressão de Wittgenstein, poderíamos
precisar, desta vez, que a definição da objetividade é fornecida no interior
das situações pela seleção de fragmentos e pela atribuição a eles da função
criterial e simbólica de identificação dos objetos do reenvio. O estatuto teóri-
co do conceito de aspecto é, pois, de nosso ponto de vista, o de fornecer a
forma da objetividade pela aplicação constitutiva a priori de e lementos de
natureza pragmática.
Conseqüências epistemológicas da terapia wittgensteiniana 167

Ora, não seria demasiado insistir, neste ponto, sobre a natureza não-
empírica da descrição das ações e hábitos instituídos da função simbólica e
criterial. Mais uma vez, é o próprio Wittgenstein quem nos fornece indica-
ções a este respeito. Uma das principais fontes de mal-entendidos na com-
preensão do pensamento do filósofo reside em atribuir-se uma natureza
sociológica, psicológica ou antropológica às descrições que faz de jogos de
linguagem, de formas de vida - e isto, apesar das constantes advertências
feitas pelo próprio Wittgenstein no sentido de evitar tais interpretações. Ao
descrever situações efetivas - reais, possíveis ou, mesmo, inusitadas - de
jogos lingUísticos, Wittgenstein não se interessa em descrever situações
empíricas ou estados de coisas possíveis, mas, exclusivamente, a capacidade
expressiva da linguagem quando as palavras são aplicadas a tais situações e
estados de coisas. Não são, por exemplo, os processos de ensino e aprendi-
zado ostensivo que concentram o interesse da descrição gramatical e tera-
pêutica, nem tampouco os processos psicológicos subjacentes às respectivas
expressões lingUísticas - assim como não são entidades matemáticas, men-
tais ou metaflsicas que permitem compreender a significação dos conceitos
matemáticos, psicológicos e metafísicos. Afasta-se, Wittgenstein, do idea-
lismo realista tanto quanto do empirismo, ao descrever situações efetivas de
uso das palavras, uma vez que a finalidade da descrição gramatical é a tera-
pia do pensamento aprisionado pelo modelo referencial. Este modelo carac-
teriza-se, segundo Witgenstein, por apresentar ao pensamento seja entidades
abstratas autônomas, seja processos empíricos, ambos na qualidade de objeto
da designação ou da referência da significação conceitual. Não há, pois,
qualquer ambigüidade na prática descritiva de Wittgenstein: através da cria-
ção de experimentos de pensamento, que são os jogos de linguagem, trata-se
de indicar o poder expressivo ilimitado, em princípio, da linguagem - ape-
nas limitado, de fato, pelos usos particulares a cada situação de jogo-, e sua
autonomia de direito com respeito à referência extralingülstica para a cons-
tituição da significação conceitual. Não se trata, pois, para Wittgenstein, de
explorar situações ou processos empíricos, mas de descrever condições lin-
güísticas para a significação.
Assim, também, em nosso caso - ainda que deixando em suspenso o
projeto terapêutico, como salientamos, sem, todavia, negá-lo nem exclui-lo-
trata-se de conceber os aspectos enquanto unidades pragmáticas complexas,
envolvendo interlocutores de ações lingüísticas, envolvidos, por sua vez, em
circunstâncias empíricas de comunicação, sem que esta complexidade empi-
168 Arley Moreno

rica seja relevante para a interpretação filosófica. fmporta situar essas uni-
dades pragmáticas enquanto operadores que permitem organizar a experiên-
cia em fragmentos com a função criterial tanto para a identificação de obje-
tos do reenvio quanto para a aplicação das respectivas form as expressivas.
Assim, retomando o exemplo anterior, segundo Wittgenstein, as manifesta-
ções naturais e espontâneas de dor juntamente com as vivências da sensação,
ambas no interior de situações em que palavras são usadas para exprimir e
comunicar sensações, são tomadas como critério para a aplicação da palavra
" dor" da mesma maneira que a palavra " certeza" é aplicada a determinadas
situações, entre outras, tomadas como critério para a aplicação da palavra
"dor" - a saber, situações de relato da sensação no corpo próprio. Podemos
acrescentar, a partir daí, e independentemente, agora, da atitude terapêutica,
que as unidades pragmáticas, a que nos referimos, são complexos heterogê-
neos compostos por indivíduos, ações, vivências, processos empíricos, psi-
cológicos, sociais, culturais e outros, e, até, por suposições a respeito da
existência de entidades abstratas, mentais, matemáticas, lógicas e mesmo
empíricas - corno o centro da massa do sistema solar no instante th ou a
outrora face desconhecida da Lua, etc. - que são propostas como explicação
para a significação de determinados conceitos. Seria inútil pretender analisar
tais unidades em elementos simples, urna vez que sua composição é mani-
festamente detérminada por circunstâncias empíricas. Todavia, o que inde-
pende das determinações empíricas, e é o ponto que nos importa, são os
critérios ou normas construídos e instituídos através das unidades pragmáti-
cas. Por exemplo, o uso de um fragmento de cor enquanto amostra-padrão
de uma cor, mais o uso de um gesto ostensivo, ambos ligados à pronúncia de
uma palavra poderão ser selecionados como critério normativo para a apli-
cação da palavra a diferentes situações envolvendo cores, e, conseqilente-
mente, para a identificação dessa determinada forma da cor; as diversas
cores apresentadas poderão ter, ainda, como critério normativo para sua
identificação, por exemplo, a transparência ou a opacidade, a luminosidade,
o brilho, a composição que admitem com outras cores ou sua s implicidade, e
tantos outros aspectos que podem ser propostos.

Somos conduzidos, assim, à idéia de contexto. Não se trata, cqmÇl salicnm-


mos, de tematizar as unidades pragmáticas enquanto instituições "sociais, o.u
melhor, de descrever os processos sociais que levaram à criação d~ tais in.s-
tituições. Pelo contrário, trata-se, de nosso ponto de vista, de descrever prio-
r:onseqüências epistemológicas da terapia wittgensteiniana 169

cípios regulativos e constitutivos, em sua aplicação transcendental, que essas


instituições impõem à organização lingüística da experiência. Seu poder
criterial e normativo distingue-se claramente, como salientamos, de sua
origem empírica, pois não é daí que extraem sua legitimidade, ou seja, não é
pertinente consultar a experiência para legitimar a aplicação da norma na
organização dessa mesma experiência. As unidades pragmáticas só podem
legislar, na qualidade de aspectos da objetividade, enquanto fizerem parte de
contextos de natureza sistémica: i.e., enquanto forem correlativas a outras
unidades pragmáticas - e se não forem consideradas isoladamente, fora de
um tal contexto. Ora, é o próprio Wittgenstein quem sugere explicitamente
esta idéia, ao frisar a necessidade de se conceber um contexto no qual sejam
inseridas as ações e as palavras para que sua função possa ser compreendida.
É o caso, por exemplo, dos gestos ostensivos, das palavras para nomear
sensações e objetos em geral e dos paradigmas: para ser eficaz, o simples
gesto ostensivo deve ser interpretado de determinada maneira, segundo um
ensino que indicará sua função no jogo de linguagem em que é aplicado;
assim, também, para a função nominativa das palavras: é preciso que um
ensino prévio indique as posições das palavras no jogo da nomeação. Sem as
informações que inserem ações e palavras nos contextos em que serão apli-
cadas, estas unidades dos jogos de linguagem não têm qualquer função lin-
güística, podendo ser, como diz Wittgenstein, qualquer coisa ou nada (PU, §
6, 17, 257). Ora, urna vez que podem ser diferentes os contextos e, conse-
quentemente, as mesmas unidades de ação e de linguagem podendo vir a
exercer funções diferentes entre os vários contextos, daí decorrem, segundo
Wittgenstein, as diferentes classificações, aproximações e distanciamentos
que podem ser estabelecidos entre essas unidades: palavras que possuem
fortes laços de afmidade no jogo da nomeação, como, por exemplo, "lajota"
e "água", podem perder esses laços em outro jogo de linguagem, por exem-
plo, em um jogo no qual a palavra "água" é aplicada como pedido de ajuda
(PU, § 17, 27).
Seguindo, mais uma vez, a sugestão de Wittgenstein, propomos inter-
pretar o poder normativo das unidades pragmáticas que são os aspectos
reenviando-as aos respectivos contextos. Não será, pois, o aspecto social da
instituição normativa que interessa focalizar, do ponto de vista de uma
pragmática 'filosófica, mas, sim, o sistema de oposições, contrastes, seme-
lhanças e proximidades presentes nos contextos. Em outros termos, trata-se
de salientar as condições consideradas suficientes para que urna determinada
correlação seja estabelecida; por exemplo, para que um gesto seja considera-
do adequado para cumprir a função ostensiva de indicar objetos, ou, para
170 Arley Moreno

uma palavra, cumprir a função nominativa. Conseqüentemente, trata-se de


salientar, também, os casos em que condições suficientes não são satisfeitas;
por exemplo, quando o gesto ostensivo for aplicado para indicar entidades
mentais ou matemáticas, ou uma palavra que nomeia objetos for aplicada
para exercer um ato ilocutório performativo. Não é, pois, o aspecto enquanto
instituição que interessa; mas a função transcendental que passa a exercer,
na regulação da experiência e na constituição da objetividade, um tal frag-
mento da própria experiência uma vez instituído enquanto critério normati-
vo. As correlações sistêmicas entre as unidades pragmáticas permitem, pois,
escapar ao sociologismo. Não é outra coisa, aliás, o que faz Wittgenstein,
apesar dos freqüentes mal-entendidos.
Neste ponto, somos levados a abordar, como dissemos no início, os limi-
tes entre o que é considerado possível e impossível para o pensamento. Ora,
de nosso ponto de vista, e, mais uma vez, seguindo o próprio Wittgenstein,
deve-se fazer a seguinte precisão: o pensamento assim como a imaginação
são condicionados pelos usos que fazemos das palavras, i.e., pelos conceitos
e, assim sendo, os limites entre o possível e o impossível nada mais são do
que aqueles entre os usos habituais, os conhecidos, e os usos ínabituais e os
desconhecidos. Ao julgarmos que determinada condição de aplicação de uma
palavra não é suficiente para que possamos identificar seu sentido, este jul-
gamento apenas exprime o fato de que não reconhecemos o aspecto que nos
serviu até então como critério para identificar o sentido; isto não impede que
novos aspectos sejam apresentados como critérios para aplicações desconhe-
cidas e inabituais da palavra, levando-nos, eventualmente, a reconsiderar a
suficiência das próprias condições para sua identificação. É este, aliás, o
procedimento terapêutico de exemplificação, de variação das situações, em-
pregado por Wittgenstein. Gostaríamos, pois, mais uma vez, de salientar e
de extrair deste procedimento algumas conseqüências epistemológicas para
uma pragmática filosófica. É que os conteúdos possíveis para o pensamento
e para a imaginação passam, igualmente, pelo crivo de critérios normativos
que permitem, não somente identificar esses conteúdos como também ex-
primi-los lingüisticamente: exprimir um conteúdo qualquer, de pensamento
ou imaginação, que não possuísse nenhum critério para sua identificação -
por comparação com outros conteúdos- corresponderia a exprimir natural e
espontaneamente sensações privadas - e, talvez, até, com o mesmo senti-
mento de certeza! Isto não implica, todavia, está claro, que não se possa
pensar ou imaginar conteúdos desconhecidos: para tanto, é necessário, além
de ser suficiente, que sejam fornecidos novos critérios de identificação para
que tais conteúdos possam ser expressos lingüisticameote, enquanto conteú-
Conseqüências epistemológicas da terapia wittgensteiniana 171

dos do pensamento ou da imaginação. Pensar um número desconhecido, ou


imaginar uma cor desconhecida, corresponde a fazer comparações com nú-
meros e cores conhecidas, ou melhor, corresponde a operar no interior das
respectivas gramáticas de uso dos conceitos conhecidos para números e
cores, e, dai, extrair novos critérios para a aplicação de palavras, i.e., novos
aspectos que permitam atribuir identidade a números e cores ainda não
pensados e imaginados. Pensar ou imaginar conteúdos no vazio, isolada-
mente, corresponderia a pretender apreender a identidade de um objeto in-
dependentemente de qualquer contexto de outros objetos, ou ainda, como diz
Wittgenstein, a emitir um pedido de socorro no deserto: um objeto isolada-
mente é qualquer coisa ou nada, não é um objeto, assim como um pedido de
ajuda no deserto é apenas um grito, não é um pedido.
Procuramos, assim, salientar a importância da idéia de contexto, en-
quanto sistema estrutural, para a descrição das unidades pragmáticas que são
instituídas e aplicadas como aspectos para a identificação da objetividade.
As vagas formas de vida de que fala Wittgenstein serão concebidas, de nosso
ponto de vista, como contextos mais ou menos complexos cuja unidade é
garantida pelo sistema de suas correlações. À diferença dos sistemas estrutu-
rais formais, os contextos admitem unidades de natureza pragmática, sem
qualquer remissão, todavia, aos aspectos empíricos dos elementos que os
compõem: não são as ações, as expectativas, as suposições, as sensações
privadas dos interlocutores que contam enquanto processos físicos, psicoló-
gicos ou sociais, mas suas combinações diversas em unidades normativas, ou
criteriais, regulando o campo da objetividade e definindo, no interior de
situações específicas de aplicações das palavras, o que é o objeto. Como
conseqüência, à diferença dos sistemas formais, os contextos têm, como
salientamos acima, limites provisoriamente determinados, uma vez que seus
elementos são unidades de natureza pragmática e que, principalmente, cada
contexto comporta diferentes conjuntos de tais unidades. Ora, como frisou
Wittgenstein, as mesmas palavras são aplicadas em diferentes contextos, e é
isto o que caracteriza a inexaustividade da significação conceitual. Daí a
possibilidade, explorada por Wittgenstein, de se realizar experimentos de
pensamento inserindo os conceitos em diferentes contextos para averiguar a
capacidade expressiva da linguagem, i.e., nossa capacidade, ou nossa vonta-
de, de aceitar ou não tais inserções. É esta capacidade da imaginação, ou da
vondade, que permite, finalmente, segundo Wittgenstein, indicar o contexto
no qual serão encontrados os aspectos considerados suficientes para decidir
da aplicação adequada de uma palavra segundo a regra.
Poderíamos, neste ponto, colocar a seguinte questão mais geral: se, de
172 Arley Moreno

fato, parece ser mais prudente duvidar quando for possível duvidar, será
ainda prudente persistir na dúvida quando for possível eliminá-la? Ora, por
que, de nosso ponto de vista pragmático, é possível duvidar? Por duas razões
complementares: por um lado, quando o contexto particular não fornecer
critérios considerados necessários para a aplicação do conceito, e, por outro
lado, quando um ou vários outros contextos fornecerem critérios considera-
dos suficientes para aplicações diferentes do mesmo conceito. Por exemplo,
não temos critérios necessários para a aplicação da palavra "mesa" apenas a
objetos de mobiliário, com quatro pernas e uma superficie plana que sirva
para depositar utensílios em geral, e, ao mesmo tempo, podemos encontrar
critérios suficientes para aplicar a mesma palavra a objetos que não possuem
essas características, ou, mesmo, para não aplicá-la a objetos que as possu-
em. Aliás, é a esta manobra que se resume o argumento de um cético radi-
cal: isolar os diferentes contextos de aplicação das palavras, apresentando
diferentes critérios para sua aplicação e, em seguida, duvidar a respeito de
sua aplicação em um determinado contexto. É o próprio Wittgenstein quem
denuncia a confusão entre as aplicações contextualizadas a jogos de lingua-
gem e a significação conceitual de uma palavra: o conceito não se esgota em
cada aplicação, mas abrange as diversas aplicações consideradas adequadas
das palavras. Ao isolar uma aplicação determinada e julgá-la como insufici-
ente para angariar a certeza - apresentando, para tanto, contextos diferentes
de aplicação da palavra - e, em seguida, ao decretar a dúvida que daí se
segue, está, o cético radical, na verdade, operando no vazio, ou, como diz
Wittgenstein, nos dias feriados da linguagem, uma vez que desconsidera os
contextos complexos de uso das palavras: contextos comportando diferentes
critérios de identificação dos objetos, ou diferentes aspectos, que se entrecru-
zam e constituem, assim, a significação dos conceitos. É a dúvida filosófica,
criticada por Wittgenstein, que procura seus fundamentos fora da vida efeti-
va da linguagem, abstraindo as palavras e suas aplicações dos contextos
complexos em que são efetivamente usados. Ora, pelo contrário, no interior
de tais contextos complexos, apesar de sempre ser possível duvidar, acredi-
tamos! De fato, a dúvida pode ser elinünada quando forem indicados critéri-
os considerados suficientes para julgar a respeito da adequação entre a ação
e uma regra. Pelo menos, pois, neste caso da expressão lingüística do jul-
gamento a respeito da ligação entre a ação e uma regra, a dúvida pode ser
eliminada: haverá pelo menos um contexto complexo que irá fornecer os
critérios suficientes para decidir se a aplicação do conceito é ou não adequa-
da, pertinente ou, até mesmo, concebível. Se ainda restar alguma dúvida,
será ela psicológica - ou, então, filosófica, mas no sentido que leva Wi-
Conseqüências epistemológicas da terapia wittgensleiniana 173

ttgenstein a aplicar a terapia conceitual: os sentidos podem, de fato, enga-


nar-nos; mas, por que, apesar disto, acreditamos neles? Eis a questão filoso-
ficamente interessante, segundo Wittgenstein, e não aquela da dúvida (PU §
354). De qualquer maneira, a dúvida n ão será, em ambos os casos, um em-
pecilho ao julgamento sobre a ação simbólica, nem à legitimidade do julga-
mento. O caráter virtual do fechamento dos contextos, seus limites sendo
sempre provisórios, é, pois, relativo à natureza pragmática das unidades que
o compõem, i.e., dos aspectos. Quando não mais for possível apresentar
razões, ainda que consideradas suficientes, para a ação, apresentar-se-ão
causas empíricas, ou, o que se deve gramaticalmente evitar, razões filosofi-
camente confusas como as que procura eliminar Wittgenstein atrávés de sua
terapia conceitual do pensamento. Ao serem esgotadas todas as razões para
fundamentar a ação, deve-se reconhecer, segundo Wittgenstein, que é assim
que agimos- sem que isto nos faça penetrar na floresta virgem do aleatório
uma vez que, como vimos, as próprias ligações empíricas de causalidade
podem vir a fazer parte de unidades pragmáticas criteriais.
As vagas formas de vida ficam, assim, em uma pragmática filosófica,
desprovidas do que talvez fosse, para Wittgenstein, o mais importante: a
dimensão ética. Concebidas sob a forma de contextos, para a pragmática
filosófica não resta, das formas de vida, senão a dimensão epistêm ica. Po-
demos esperar, todavia, que uma tal pragmática seja, ainda que não o exer-
cício, pelo menos um resultado satisfatório da atividade filosófica tal como
concebida por Wittgenstein: o resultado de um exercício ético que passou
pela terapia filosófica do pensamento confuso.

Ainda que breve e precário, este panorama para uma Pragmática filosófica,
enquanto conseqüência da terapia proposta por Wittgenstein, deve ser, toda-
via, suficiente para situar o seu objetivo: explorar as condições e as formas
pré-lógicas, mas já lingüísticas, que estão na base do uso - construção e
aplicação - dos conceitos, relativamente aos contextos- sistemas imediatos
e mediatos - de sua construção e aplicação. Neste sentido, esta Pragmática é
uma Epistemologia, ou melhor, uma pesquisa a respeito dos fundamentos do
conhecimento, que reconhece a relevância do aspecto pragmático nele en-
volvido.1
1
Para detalhes complementares a respeito desta proposta, reenvio o leitor ao Artigo
"Por uma Pragmática Filosófica," Revista de Estudos Lingüísticos, n° 30. lEL, Uni-
camp, Campinas, S.P., I997.
174 Arley Moreno

Referências bibliográficas

Granger, G.-G. 1968. Essai d'une philosophie du style. Paris: A. Colin,


- -. 1994. Formes, opérations, objets. Paris: Vrin.
Kripke, S. 1982. Wittgenstein - on rules and private language. Cambridge:
Harvard, University Press.
Wittgenstein, L. 1968. Philosophische Untersuchungen. Oxford: Blackwell.
Moreno, A. R. 1995. Wittgenstein: Fenomenologia e problemas fenomeno-
lógicos. Manuscrito, 18: 2.
RACIONALIDADE E INDECIDIBILIDADE:
NOTA SOBRE AS RAÍZES DO DECISlONISMO DE ÜITO NEURATH

NELSON G. GOMES
Universidade de Brasília

I. Neuratb, um pensador peculiar

Em artigo publicado no ano de 1936, Otto Neurath apresentou a sua visão


sobre o desenvolvimento histórico do empirismo, de modo especial na
Áustria. Segundo ele, graças a uma série de contingências históricas, ao
longo de todo o século XIX, o pensamento austríaco teria estado Livre de
influências alemãs, especialmente das de Kant. Dessa forma, poder-se-ia
explicar o surgimento de uma filosofia austríaca autônoma, distante da
especulação metafisica alemã e voltada sobretudo para questões de
conhecimento empírico (Neurath 1936, pp. 676ss) Independentemente do
seu valor histórico-filosófico, este artigo de Neurath é um marco
significativo, numa linha de trabalho contemporâneo que se esforça por
apresentar a filosofia austríaca da segunda metade do século XIX e das
primeiras décadas do século XX como portadora de características
específicas, a ponto de não se enquadrar, de modo algum, como parte do
pensamento alemão daqueles mesmos períodos. Em contraposição ao
idealismo que se instalou firmemente na Alemanha, o realismo seria o traço
mais notável, nas diversas vertentes do pensamento austríaco {Haller 1990,
pp. 18ss).
Otto Neurath foi um dos membros mais destacados e ativos do Circulo de
Viena, mas as posições que ali assumiu eram peculiares e polêmicas, a ponto
de ele sustentar importantes querelas com alguns de seus colegas
positivistas, como Carnap e Schlick. Na verdade, se de fato existiu uma
fi losofia austríaca afastada do pensamento alemão, seguramente, Neurath
terâ sido o seu representante mais típico. O naturalismo fisicista que ele iria
desenvolver, ao longo da década de 30, é uma formulação interessante e
original, cujas origens não podem ser buscadas no pensamento alemão da
sua época. Tal naturalismo, em particular, envolvia a idéia de que certos
procedimentos, como, por exemplo, a escolha de sentenças protocolares a
serem mantidas num sistema, ou a serem dele eliminadas, seriam assunto de

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 175-88.
176 Nelson G. Gomes

pura decisão do cientista (Neurath 1932- 29, pp. 208s). Mas tal decisionismo
pareceu absurdo aos detratores de Neurath, dentre os quais Popper, que o
acusou de defender uma metodologia arbitrária (Popper 1971, p. 63). Sem
qualquer dúvida, o decisionismo neurathiano parece bizarro, de modo que
cabe a pergunta sobre a sua origem, no contexto filosófico da época.
As pesquisas de Haller sobre o assim chamado "Primeiro Círculo de
Viena", que se reuniu regularmente entre 1907 e 1912, apresentam
evidência suficiente acerca da influência que os grandes convencionalistas
franceses, Duhem e Poincaré, exerceram sobre Neurath (Haller 1985, pp.
354s, e 1993, pp. 56ss). Não obstante, tal influência não basta para explicar
a formação de teses neurathianas que teriam, mais tarde, um papel central
nas idéias do autor sobre ciência e conhecimento. Tais teses começaram a
esboçar-se nos primeiros trabalhos filosóficos de Neurath. No presente
artigo, a partir de conferências proferidas em 1912 e em 1913, procuraremos
caracterizar as premissas do futuro decisionismo de Otto Neurath. Nos seus
trabalhos mais tardios, ele evitou discussões propriamente "filosóficas", de
modo que um recuo histórico tomar-se necessário, para que possamos
reconhecer fontes que aquele autor, posteriormente, preferiria não mais
mencionar.

2. O problema do "prazer máximo" e a indecidibilidade do cálculo


utilitarista

Em palestra proferida frente à Sociedade Filosófica da Universidade de


Viena, no dia 1° de junho de 1912, Neurath chamou atenção para o curioso
fato de que a idéia de um "prazer máximo" não desempenha papel
significativo na ciência econômica, apesar de estar a ela ligada através de
textos dos grandes utilitaristas ingleses. Ele põe, a partir daí, a questão
esquecida: como calcular o que seja o prazer máximo de uma comunidade?
Será que tal pergunta chega mesmo a ter sentido?
Segundo Neurath, ao menos em alguns casos muito simples, a questão é
plenamente razoável. Assim, por exemplo, se temos um gramofone e um
quadro, a serem distribuídos a um cego e a um surdo, obviamente, o
gramofone será mais prazeiroso para o cego e o quadro para o surdo.
Representando-se por "(Mm)" o prazer que o objeto m causa ao sujeito M, a
relação ora descrita pode ser expressa com o auxílio das seguintes fórmulas:

I. (Aa) > (Ab)


2. (Bb) > (Ba)
Racionalidade e lndecibilidade 177

(I} estabelece que o gramofone (a) causa ao cego (A) maior prazer do que o
quadro (b). (2) afirmar que o quadro causa ao surdo (B) maior prazer do que
o gramofone. Nestes limites, podemos distribuir os objetos em questão de
duas maneiras, dando o gramofone ao cego e o quadro ao surdo, ou o quadro
ao cego e o gramofone ao surdo:

3. (Aa) + (Bb)
4. (Ab) + (Ba)

Obviamente, porém, a distribuição (3) produz mais prazer do que (4), de


modo que vale:

5. (Aa) + (Bb) > (Ab) + (Ba)

A fórmula (5) cinge-se a expressar aquilo que ninguém colocaria em


dúvida. Porém, esta relação singela não se deixa generalizar para outros
casos. Se dois homens normais têm igual predileção pelo mesmo objeto,
como efetuar a distribuição? Por exemplo, se ambos preferem o quadro,
como escolher entre as mencionadas alternativas (3) e (4), de sorte a
alcançar prazer máximo para ambos? Neste caso, estamos numa situação de
indecidibilidade:

6. (Aa) + (Bb)? (Ab) + (Ba).

Lógica e matemática em nada nos ajudam, até mesmo neste universo


deveras restrito (Neurath 1912, pp. 47-50).
Neurath faz ver que o problema em exame se complica
extraordinariamente se aumentarmos o número de pessoas envolvidas e se
modificamos as relações de preferência e as possibilidades de distribuição.
Além disso, prazer e dor não se deixam medir em metros ou quilômetros, e
tampouco há como estabelecer o que seria o prazer de todo um grupo
humano, na falta de um correspondente "sensorium." Por fim, a simples
escolha de um indivíduo para servir de parâmetro, no contexto do seu grupo,
seria arbitrária: por que privilegiar suas preferências ou intuições?
Conseqüentemente, assevera Neurath, o conceito de "prazer maior" não se
deixa operacionalizar nem calcular, de sorte que ele de nada serve para a
definição de uma teoria social aceitável (op. cit., pp. 52-55). Destarte, tal
conceito tampouco pode ter qualquer significação para a ciência econômica.
Esta palestra de 1912 é dominada por um tom cético, quanto ao alcance
da moral, da filosofia uti litarista e da metafisica. Sem entrar em
178 Nelson G. Gomes

minudências, Neurath é explícito em afirmar que a escolha de princípios


relativos a exigências morais é assunto de opção individual, não havendo
provas, neste tipo de questões (op. cit., p. 52). Ele conclui a sua fala com
uma posição radical: se não queremos definir a vida de um grupo humano
através de uma única ordem, para a qual não teríamos critérios, restam-nos
duas possibilidades: I. recurso a uma metafisica insuficiente; 2. tomar
decisões com o auxílio do "cara ou coroa" ("Knopfabzlihlen"), isto é, do jogo
ao acaso. Para Neurath, esta última alternativa seria, de longe, a mais
honesta (op. cit., p. 55). O jogo ao acaso, apesar da sua gratuidade, leva
vantagem moral sobre a metafísica.

3. Perdidos no bosque

A indecidibilidade do cálculo utilitarista deixa claro não ser possível


qualquer tomada de decisão social fundamentada em operações formais,
relativas ao prazer e à dor dos membros de grupos humanos. Mas, o que
dizer das decisões puramente individuais? Qual a sua natureza, qual a sua
racionalidade, quais os seus mecanismos?
A resposta a estas questões está numa conferência que Neurath
apresentou frente à mesma sociedade filosófica vienense, no dia 27 de
janeiro de 1913. Nesta segunda palestra, ele abandona qualquer preocupação
formal e passa a mover-se, explicitamente, no sentido de uma psicologia da
ação. Seu diálogo agora não é mais com o utilitarismo, mas com René
Descartes.
Neurath não está interessado em descobrir a estrutura da ação e das
decisões humanas, consoante o tipo de indagação metafisica das assim
chamadas psicologias filosóficas. Tampouco está preocupado em delinear os
componentes de qualquer sujeito transcendental, à maneira do idealismo.
Ele procura, isto sim, descrever uma situação extrema, porém realmente
possível, de modo a nela encontrar os elementos presentes nos processos
concretos de decisão e ação humanas. Como modelo para a sua análise,
Neurath escolhe uma conhecida passagem do Discurso do Método, terceira
parte, na qual Descartes fala sobre a necessidade da tomada de decisões,
mesmo à luz de in formações insuficientes.
Preparando a análise de Neurath, recordemos as grandes linhas do texto
cartesiano: os viajantes perdidos no bosque não podem andar erraticamente,
ora numa direção ora noutra, mas devem caminhar sempre o mais reto
possível para o mesmo lado, sem vacilações. Isto não os levará ao lugar
originalmente desejado, porém, poderá tirá-los do meio da floresta.
Descartes acentua que muitas ações humanas não admitem delongas, de
Racionalidade e lnde.c ibilidade 179

sorte que o agente é obrigado a decidir-se, mesmo quando incapaz de


reconhecer as opiniões verdadeiras ou sequer as mais prováveis: alguma
escolha deve ser feita e realizada sem hesitações.
No plano moral, segundo Descartes, estas idéias implicam a necessidades
de se perseverar numa linha de ação previamente selecionada, ainda que
deveras duvidosa. A consciência da correção deste procedimento liberta o
espírito de arrependimentos e remorsos, de vez que há aí uma certa
racionalidade, devidamente atestada pela falta de alternativas. Tudo isto
enquadra-se no contexto das regras cartesianas para a moral provisória: 1.
adaptar-se aos costumes e à religião da sociedade; 2. agir sem hesitações,
mesmo sob poucas luzes do intelecto; 3. tentar mudar a si mesmo e não o
mundo. Neurath chama esta moral provisória de resignação cartesiana, em
virtude do reconhecimento nela contido da necessidade de agir, mesmo sem
o conhecimento do verdadeiro (Neurath, 1913, p. 58). A esperança de
Descartes, porém, estava em fundamentar mais tarde uma ética definitiva, à
luz de princípios irrefutáveis.
Sabidamente, Descartes distingue de modo radical pensamento de ação.
As regras provisórias dizem respeito tão-somente ao âmbito prático, vale
dizer, moral. No plano do pensamento, entretanto, não há princípios
provisórios. A partir do momento no qual o filósofo formula o seu "Cogito,
ergo sum," ele está em condições de deduzir de forma linear uma série de
princípios luminosamente verdadeiros, fundamentando o conhecimento em
bases defmitivas, a partir de um princípio necessário e básico. Tal
conhecimento tudo pode abarcar e nada é tão escondido que não possa ser
por ele descoberto. O âmbito do pensamento não conhece qualquer
resignação, mas apenas ampla e ilimitada confiança, como o reconhece
Neurath (ibidem).
Diante destas idéias cartesianas, Neurath começa a apresentar seus
próprios argumentos, cuja conclusão final será uma forma generalizada de
resignação, aplicável a ambos, agir e pensar. Para tanto, ele polemiza com
Descartes, sobretudo a respeito de quatro tópicos basilares: 1. a diferença
entre pensamento e ação; 2. a verdade e linearidade dos princípios
cartesianos; 3. a inexistência de regras provisórias para o pensamento; 4. a
psicologia cartesiana. Vejamos estes tópicos, caso por caso.

4. Pensar e agir

A concepção cartesiana que separa rigidamente pensamento de ação é um


erro fundamental, aos olhos de Neurath, embora ele reconheça que ambos
não se identifiquem: um pensamento, em princípio, pode ser repetido, mas a
180 Nelson G. Gomes

ação é única, irreversível; podemos interromper um pensamento, mas cessar


de agir já é uma ação. Não obstante, a verificação das conseqüências de um
único raciocínio poderia tomar toda a vida do indivíduo; por outro lado, a
construção de uma casa (que é uma ação) pode ser interrompida e retomada.
Consoante tais fatos, Neuratb classifica pensamento e ação como formas de
atividade humana, embora o faça sem analisar em pormenor a natureza de
cada uma delas. Não obstante, ele conclui que elas se diferenciam quanto ao
seu grau, ou seja, pensamento e ação seriam atividades gradualmente
distintas entre si (op. cit., pp. 59s).
Ao estabelecer uma categoria ontopsicológica comum ao pensamento e à
ação (ambos são atividades), Neurath fixa a primeira premissa do
argumento através da qual generalizará a resignação cartesiana. Se
pensamento c ação pertencem à mesma categoria, não há por que, "a priori",
tratar cada um deles segundo regras estanques. Entre eles deve haver alguma
forma de proximidade.

5. A rede do saber

A suposta verdade e linearidade do discurso construído a partir de um


princípio é objeto do mais vigoroso ataque por parte de Neurath. Ele entende
que o "Cogito, ergo sum" seria uma espécie de "tabula rasa", vale dizer, um
pretenso sustentáculo inamovível para todo o saber humano, sob o qual
haveria nada e a partir do qual tudo se estabeleceria, numa perfeita
seqtienciação de sentenças verdadeiras. Ora, obtempera Neurath, deixando
clara a sua dívida para com os convencionalistas franceses: o conhecimento
humano não é uma cadeia de verdades translúcidas, mas um complexo de
sentenças interligadas entre si, de sorte que a verdade de cada uma delas
depende da verdade de todas as demais. Os fenômenos com os quais nos
defrontamos são a tal ponto complexos e inter-relacionados que não nos é
possível comparar isoladamente uma sentença com algum fato, porquanto
cada asserção está, ainda que implicitamente, conectada com uma infinidade
de outras diversas. Isto é verdade tanto sincrônica quanto diacronicamente,
ou seja, cada sentença que enunciamos agora está ligada a todo o complexo
conceptual que lhe é anterior e no contexto do qual ela foi gerada. Não há
como livrarmo-nos deste opaco complexo judicativo, mesmo porque até
mesmo a decisão de começar tudo de novo tê-lo-ia como pano de fundo. Em
cada questão cognitiva, entra em jogo o complexo judicativo como um todo,
de sorte que, a cada vez que se coloca um problema científico, não apenas
uma, mas todas as sentenças cognitivas são desafiadas (op. cit., p. 59).
Racionalidade e lndecibilidade 181

Esta firme posição neurathiana nada mais é do que uma forma de


holismo epistemológico. Mas este holismo é conectado por Neurath com
uma certa forma de ceticismo quanto aos poderes da razão, na medida em
que ele afirma ser impossível o trabalho sem premissas dúvidosas (ibidem).
Se não podemos selecionar uma sentença basilar verdadeira, uma "tabula
rasa," e raciocinar linearmente a partir dela, sempre trabalharemos com um
complexo ilimitado e pluridimensional, onde falsidades estarão inseridas,
sem que possamos identificá-las e corrigi-las. Este adendo cético ao holismo
neurathiano é de importância essencial para o entendimento das suas
primeiras idéias epistemológicas.

6. A resignação generalizada

Depois de afastar-se radicalmente das certezas cartesianas, não foi dificil


para Neurath retomar as regras da moral provisória e generalizá-las em
direção ao campo do conhecimento. O homem de ciência não se assemelha
ao solitário, recolhido na intimidade de uma alcova bem aquecida, livre do
inverno que reina lá fora e dotado de confortáveis certezas definitivas. Muito
ao contrário, o investigador está perdido no frio bosque, em busca de sinais
que o orientem. Já que ele não pode evitar o trabalho com premissas
duvidosas e já que a sua ciência é um vasto conjunto de sentenças
interrelacionadas de modos mui variados, então o manual de emergência que
o cartesianismo produziu para situações de ação sob incerteza há de ser
definitivo e não provisório, de vez que só há situações de incerteza (op. cit.,
p. 58). Entre as incertezas da ação e as do pensamento hão de existir, no
máximo, diferenças de grau, mas não de natureza. A confiança que
Descartes tenta imprimir na sua filosofia primeira é ilusória. A resignação
como princípio está inevitavelmente presente no agir e no pensar humanos.
No contexto desta sua terceira crítica a Descartes, Neurath introduziu um
curioso conceito que iria empregar ao longo de todo o seu desenvolvimento
intelectual posterior: o pseudo-racionalismo. Para Neurath, pseudo-
racionalismo é a simulação de um conhecimento racional rigoroso,
estabelecido pelo pensamento individual e capaz tudo entender, de resolver
quaisquer problemas. Em contraposição a isto, o verdadeiro racionalismo é
o saber ciente dos seus limites e livre de simulações. Obviamente, o pseudo-
racionalismo transmite um sentimento de acentuado poder pessoal e envolve
desonestidade e arrogância. Já o verdadeiro racionalismo está isento de tais
desvantagens morais, em virtude da sua modéstia intelectual (op. cit., pp.
63s).
182 Nelson G. Gomes

Neurath aplica estes conceitos a Descartes, num ato de simultâneo louvor


e crítica ao Filósofo. Segundo Neurath, o Descartes da moral provisória seria
um verdadeiro racionalista, enquanto que o postulador do "Cogito" seria um
pseudo-racionalista. O pseudo-racionalismo presta um desserviço ao
verdadeiro racionalismo, uma vez que o grande triunfo deste último é,
precisamente, a clara e distinta consciência dos seus próprios limites
(ibidem).

7. Uma psicologia com pretensões empíricas

No seu exame da descrição cartesiana do pensamento, Neurath percebeu,


corretamente, que Descartes não estava tratando da maneira segundo a qual
as pessoas exercem suas capacidades intelectuais, mas que ele se limitou a
analisar e desenvolver um sistema de puras relações lógicas (op. cit., p. 60).
Contra este abstracionismo cartesiano, Neurath afirma uma psicologia de
relações reais e não apenas idealizadas, relações estas que ocorrem no plano
do pensamento, expandindo-se, a partir daí, ao plano da decisão e da ação.
O pensamento humano, consoante Neurath, deve ser entendido como
uma unidade psicológica que se mantém ao longo de toda a vida do
indivíduo. O holismo epistemológico acima referido tem a ver com as
experiências reais da mente humana, porquanto os fenômenos que nós
vivenciamos são tão entrelaçados entre si que é impossível descrevê-los por
urna série unidimensional de sentenças (op. cit., p. 59). Idéias e relações
lógicas existem no pensamento real das pessoas, nunca em si mesmas (op.
cit., p. 60). Com estas teses, Neurath afasta-se da construção cartesiana de
um pensamento puramente idealizado, e volta-se para uma psicologia da
cognição empírica.
Entretanto, a psicologia que Neurath assume, na sua conferência de
1913, apesar do mencionado traço anticartesiano, é mais tradicional do que
poderia parecer. Isto porque Neurath concebe o pensamento como um
conjunto de complexos processos empíricos, mas continua a aceitar o
modelo herdado dos séculos anteriores, segundo o qual, após o ato de pensar,
ocorre a interferência da vontade que, finalmente, impulsiona a ação
humana numa direção específica. Nestes termos, a decisão do homem é o
ponto final de um processo que começa na mente, com o ato de pensar, e que
passa por uma outra faculdade psíquica, a vontade. A psicologia que
Neurath aqui representa, como era comum na época, enquadra-se na grande
família das concepções mentalistas, de vez que entende a ação humana como
resultado de uma série de processos que se desenrolam no interior do
homem, na sua mente ou psiquismo. Quase duas décadas mais tarde,
Racionalidade e lndecibilidade 183

Neurath iria identificar psicologia e comportamentalismo, afastando-se das


suas posições originais (Neurath 1931, pp. 413s). Em 1913, porém, a
primeira proposta de uma psicologia comportamental com pretensões
científicas ainda estava em fase de formação, muito longe de Viena.
A psicologia mentalista que Neurath representou continha um elemento
essencial para a sua teoria da decisão: é a idéia de que decidir implica a
eliminação de um sentimento de desprazer. Enquanto o homem delibera,
reflete sobre alternativas, procura pelo melhor caminho, ele, de alguma
maneira, sofre, está sujeito a formas aversivas de vivências psicológicas. Ao
decidir-se, porém, o sentimento de desprazer é removido, o que, por si só, já
é um fato psicológico positivo (Neurath 1913, pp. 62s). É interessante
observarmos, neste particular, que também Descartes associa decisão e
eliminação de "arrepedimentos e remorsos", precisamente na mesma
passagem do Discurso do Método tomada por Neurath como ponto de
partida para a sua conferência de 1913. Isto mostra que a crítica de Neurath
dirige-se à teoria cartesiana do pensamento, mas não se estende à sua
psicologia da vontade e da decisão.
Um último ponto deve ser aqui agregado, apesar da extrema brevidade
com a qual Neurath o trata: ciente da limitação do seu tempo de vida, o
homem tem o desejo de elaborar uma visão completa de mundo, num tempo
finito e previsível ("in absehbarer Zeit," op. cit., p. 59). Este desejo,
obviamente, seria um simples fato da psicologia humana, mas um fato com
importantes conseqüências epistemológicas. A finitude do tempo humano e
o desejo de conhecer implicam a aceitação de regras provisórias também no
plano do pensamento, tornando-as uma necessidade (ibidem).
Na conferência de 1913, Neurath não aprofunda este tópico, de vez que
seu tema é a psicologia das decisões. Não obstante, ele já fornece elementos
para a derivação unívoca de conseqüências epistemológicas. Assim como as
regras provisórias da ação obrigam o agente desorientado a tomar decisões
firmes, até em estado de ignorância, o mesmo há de valer relativamente a
problemas teóricos, visto que não há qualquer abismo entre pensamento e
ação, mas apenas distinções de grau. O investigador, muitas vezes, não
dispõe de elementos para resolver seus problemas, imerso no cipoal de
complexas experiências interconectadas, de sentenças holisticamente
interrelacionadas, trabalhando com múltiplas premissas tacitamente
pressupostas e admitindo inapelavelmente algumas hipóteses falsas. Apesar
disto, ele quer chegar a resultados ainda ao longo da sua vida, de sorte que
lhe resta apelar arbitrariamente para alguma decisão metodológica e levá-la
adiante. Assim, quem sabe, ele sairá do espesso bosque de problemas
teóricos no qual se perdera.
184 Nelson G. Gomes

O decisionismo neurathiano aparece, então, claramente, como resultado


de dois itens: 1. a generalização do princípio cartesiano da resignação, que
Neurath estendeu ao plano do pensamento; 2. a valorização do suposto fato
psicológico do desejo humano de elaborar uma cosmovisão completa, ao
longo de uma vida não apenas finita, mas também curta. Este fato
psicológico ganha, por assim dizer, uma surpreendente dimensão
epistemológica.

8. O processo empírico das decisões e o Motivo Auxiliar

Ao estabelecer suas regras para uma ética provisória, Descartes enfatiza a


perseverança com a qual se deve caminhar sempre para o mesmo lado,
sabedor como era de que a reta é a menor distância entre dois pontos.
Complementando a regra cartesiana, Neurath se pergunta sobre como se dá,
empiricamente, a tomada de decisões, em condições de radical incerteza.
Suponhamos que alguém tenha de decidir algo, sem encontrar qualquer
indício que tome uma das suas alternativas mais provável do que as demais.
Suponhamos ainda que o indeciso não consiga fazer progressos, por mais
que se esforce, refletindo sobre suas alternativas. O que poderá ele fazer,
visto que tem de agir, de alguma forma? Neste caso, responde Neurath,
sendo incapaz de encontrar dentro de si a solução para o problema, o
indeciso poderá lançar mão da loteria, do "cara ou coroa", do puro jogo de
azar para, finalmente, obter alguma indicação sobre o caminho a tomar (op.
cit., pp. 60s). Com este tipo de solução, Neurath retomou a mesma idéia com
a qual concluíra a sua palestra de 19 12, sobre a indecidibilidade do cálculo
utilitarista do prazer máximo.
Ao propor a loteria como método de escolha para o indeciso radical,
Neurath tenta situar-se numa espécie de campo neutro, pois, para aquele
cujas alternativas rigorosamente se equivalem, qualquer escolha é tão boa
quanto as demais. Ao jogar "cara ou coroa", lançar dados ou recorrer a
algum artificio do mesmo tipo, o indeciso tem, aos olhos de Neurath, a
grande vantagem moral de reconhecer as limitações do seu saber. Sua
escolha é racional e se enquadra naquilo que Neurath chama de verdadeiro
racionalismo, pela sua modéstia e ausência de simulação.
Quando o agente indeciso lança mão de uma alternativa qualquer, ao
acaso, e emprega um princípio de t ipo mais geral, ele estará gerando um
motivo para a sua ação que Neurath chama de Motivo Auxiliar e ao qual
atribui grande importância (ibidem). Se o indeciso abandona à moeda
lançada ao acaso a opção sobre o caminho a tomar, ele estará escolhendo um
Racionalidade e lndecibilidade 185

juiz exterior despretensioso e realmente imparcial. Pois bem, isto é fazer uso
do Motivo Auxiliar neurathiano, em condições de incerteza extrema.
Neurath manifesta a sua crença de que o homem sábio, esgotadas as
possibilidades do seu raciocínio, poderá encontrar no Motivo Auxiliar uma
força motriz capaz de fortificar sua vontade e de conduzi-lo à ação,
libertando-o do sentimento aversivo que a indecisão acarreta (op. cit., p. 65).
Mas, a sabedoria é para poucos. Em geral, os seres humanos empregam
sucedâneos do Motivo Auxiliar, que não têm as suas vantagens.
Usualmente, o instinto e o recurso à autoridade são os sucedâneos preferidos.
O instinto, segundo Neurath, é rápido e objetivo, oferecendo ao agente
uma alternativa sem hesitações, de modo a libertá-lo quase que
instantaneamente do incômodo causado pela indecisão. O instinto parece
preferível, numa análise superficial, em virtude da sua naturalidade e
eficiência. Porém, embora reconheça no instinto um precioso recurso para o
homem primitivo, Neurath duvida que ele possa ser útil nas sociedades
complexas, dominadas pela técnica, pela organização social e pelos
processos mediatos de raciocínio (op. cit., pp. 6l s).
Nas sociedades modernas, consoante a análise de Neurath, há múltiplas
formas de sucedâneos para mecanismos neutros de decisão. Muitos preferem
recorrer à autoridade supersticiosa de magos, de cartomantes, de médiuns
espíritas ou algo parecido. Com isto, eles conseguem alguma forma de
alívio, ainda que provisório. Outros apelam para a autoridade de terceiros,
supostamente mais sábios do que eles, como o seriam os confessores ou
vários conselheiros. Em qualquer destes casos, o ponto fundamental é a
necessidade de decisão, sem a qual não se remove a sensação aversiva na
qual se encontra o indeciso. Sabedor desta necessidade tão humana, o
político demagogo faz dos seus discursos um teatro, no qual ela simula uma
racionalidade que, de fato, não existe. Neste contexto, estabelece-se uma
desonesta relação de cumplicidade entre o demagogo que engana e seus
ouvintes, que se deixam enganar, pois, dessa maneira, liberam-se de certas
pressões psicológicas. O orador demagogo é o melhor exemplo de pseudo-
racionalista, que Neurath repudia com vigor (op. cit., pp. 63s).
Neurath valoriza a tal ponto a neutra pureza do Motivo Auxiliar que
chega mesmo a propor toda uma interpretação da história humana em
termos de instinto, autoridade e decisão ao acaso. No passado, o homem
teria sido dominado pelo instinto, nas formas simples de organização
humana. Hoje, nós viveríamos uma época de autoridade, nas sociedades
complexas, quando o homem moderno crê na força ilimitada da sua razão
individual e na sua capacidade de resolver todos os problemas, através de
raciocínios abstratos. No futuro, porém, o homem dar-se-á conta, mais
186 Nelson G. Gomes

honestamente, das suas próprias limitações e fará uso concreto do Motivo


Auxiliar, tanto na sua vida privada, quanto em assuntos públicos (op. cit.,
pp. 66s).
É interessante observarmos que Neurath vê no instinto um processo
insuficiente de decisão, ao menos em fases mais avançadas de evolução
humana. Não obstante, ele não condena o instinto. Muito diferente, porém, é
a sua posição quanto aos diversos tipos de recurso ã autoridade, assim como
quanto ã crença na força ilimitada da razão individual. Nestes casos,
Neurath vê apenas desonestidade, superstições ou simulação pseudo-
racionalista. Sem qualquer dúvida, o pseudo-racionalismo foi escolhido por
Neurath como o seu grande adversário intelectual e moral. Sua crença num
progresso humano sob o signo do Motivo Auxiliar é, ao fim e ao cabo, uma
esperança de aperfeiçoamento moral do homem (ibidem).
Concluindo o seu texto, Neurath retomou a comparação cartesiana e
imaginou quatro viajantes perdidos no bosque e igualmente indecisos, de
forma extrema. O primeiro deles poderá apelar para o instinto, de modo a
definir um caminho; o segundo invocará algum espírito; o terceiro
pretenderá raciocinar, pesando cuidadosamente várias razões, até, em
supostas bases lógicas, orgulhosamente, apontar para uma direção; o quarto,
finalmente, reconhecerá seu pouco s aber e decidirá para aonde ir a partir do
"cara ou coroa". Segundo Neurath, o pesquisador da verdade repudiará o
terceiro dentre estes e olhará para o quarto com simpatia. Entretanto, as
chances de sucesso de qualquer dos quatro, quanto a sair do bosque, poderão
ser exatamente as mesmas (op. cit., p. 66).
Este último ponto merece nossa atenção, porquanto evidencia que o
recurso ao Motivo Auxiliar, em condições de incerteza extrema será
vantajoso tão-somente sob o ponto de vista moral. Se as alternativas postas
ao indeciso têm rigorosamente o mesmo valor, sob o ponto de vista do
sucesso da ação a ser .realizada, pouco importa uma decisão a partir do
instinto, da magia, do conselheiro religioso, do demagogo ou da loteria. As
alternativas irão equivaler-se, e as decisões liberarão os agentes dos seus
desconfortos psicológicos, da mesma maneira. A loteria, porém, não envolve
simulação de conhecimento, e esta é sua única vantagem. Em casos de
tomada de decisão sob incerteza extrema, a tese neurathiana é a de que a
moral deve servir de apoio para a definição de um rumo.

9. Algumas conclusões

A leitura cuidadosa das citadas conferências de 1912 e 1913 torna manifesta


a intrincada raiz do decisionismo neurathiano que começa a se caracterizar
Racionalidade e Jndecibilidade 187

como uma espécie de apêndice à análise do cálculo utilitarista,


desenvolvendo-se na querela com Descartes, mas com o acréscimo de uma
premissa específica da filosofia de Neurath. A separação cartesiana entre
pensamento e ação, a seqüência linear de luminosas certezas (objeto de
plena confiança), além da concepção do pensamento como um conjunto de
processos lógicos foram teses cartesianas vigorosamente repudiadas por
Neurath. Ele escolheu o intelectualismo da ordem das razões como seu alvo
preferencial e manteve-o, assim, ao longo de toda a sua vida. Não obstante,
Neurath também teve a sua face cartesiana, ao aceitar parte da psicologia do
filósofo francês e, sobretudo, ao valorizar a moral provisória, cujo caráter de
resignação ele tratou de generalizar.
Mas a querela com Descartes não é tudo. Para estabelecer o seu
decisionismo, Neurath careceu de uma premissa essencial, que foi a tese
psicológica de que o homem deseja constituir uma cosmovisão completa, ao
longo da sua curta vida. Ora, tal desejo ilimitadamente amplo jamais
encontrará apoio nos modestos recursos intelectuais humanos. Portanto, a
única alternativa de "realizá-lo" será o recurso decisionista a escolhas
metodológicas arbitrárias. No caso-limite de caminhos intelectuais diversos,
mas indecidíveis, resta o recurso moralmente honesto do "cara ou coroa", o
que situa a moral na base dos processos de decisão, em situações extremas.
Um tópico importante merece atenção, no contexto do debate de Neurath
com Descartes. Se, consoante Neurath, o homem decide sobre algo a respeito
do qual não tem informações bastantes, movido pelo seu desejo de completar
sua cosmovisão, ele estará sujeito a erro, visto que, ao decidir, dará um salto
no escuro. Mas esta é também a conhecida tese de Descartes: a vontade
humana é livre e infinita e o homem engana-se quando estende-a àqui/o que
não entende. Neurath deve concordar com Descartes, no que diz respeito à
razão do erro, ao menos nos casos-limite de tomadas de decisão. Em
qualquer hipótese, a semelhança entre as teses da expansão da vontade
(Descartes) e o desejo de uma cosmovisão completa (Neurath) é grande
demais, para ser simples coincidência. Há aqui uma clara influência
cartesiana sobre Neurath.
. Para o filósofo leitor de Neurath, urna pergunta importante fica sem
resposta: por que o homem não modera a sua pretensão de formular uma
cosmovisão completa, reconhecendo honestamente os modestos limites da
sua razão? Neurath não nos deu elementos para resolver estes singelo
problema, pois, para tanto, deveria acrescentar uma nova premissa
ontopsicológica, estabelecendo o caráter absolutamente necessário da
tendência humana à cosmovisão completa. Visto que tal premissa não consta
nos textos ora examinados, o decisionismo permanece como tese
188 Nelson G. Gomes

problemática, carente de justificação, mesmo no contexto puramente


imanente à filosofia de Neurath. Para o historiador da filosofia, as
conferências de 1912 e 1913 evidenciam: a) o interesse crítico de Neurath
relativamente ao utilitarismo britânico; b) a conhecida influência dos
convencionalistas franceses sobre aquele autor; c) o vivo debate de Neurath
com Descartes, debate este no qual o primeiro opõe-se radicalmente ao
segundo, sob vários aspectos, mas deixa-se influenciar pelo seu adversário,
em outros tópicos. De qualquer maneira, Kant e o idealismo alemão estão
ausentes de todos os questionamentos aqui elaborados. Nestas palestras, os
interlocutores de Neurath estão na Grã-Bretanha e, sobretudo, na França,
mas não na Alemanha.

Referências bibliográficas

HaUer, R. 1985. "Der erste Wiener Kreis." Erkenntnis, 22(1, 2 e 3): 341- 58.
- - . 1990. Wittgenstein e a filosofia austríaca: questões. Tradução de
Norberto de Abreu e Silva Neto. S. Paulo: EDUSP.
1993. Neopositivismus; Eine historische Einführung in die
Philosophie des Wiener Kreises. Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft.
Neurath, O. 1912. "Das Problem des Lustmaxirnums." In Neurath 1981: 47-
55.
- -. 1913. "Die Verirrten des Cartesius und das Auxiliarmotiv (Zur
Psychologie des Entschlusses)." In Neurath 1981: 57-66.
- -. 1931. "Physikalismus: Die Philosophie des Wiener Kreises." In
Neurath 1981:413-416.
- -. 1932/33. "Protokollsãtze." Erkenntnis, 3: 204-14.
- -. 1981. Gesammelte philosophische und methodologische Schriften,
vol. 1, edição de R. Haller e H Rutte. Wien: Verlag Hõlder-Pichler
Tempsky.
Popper, K. 1971. Logik der Forschung. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul
Siebeck). 1a. edição em 1934.
JOHN STUART MILL E OS INGREDIENTES DA FELICIDADE

MARJA CECÍLIA M. DE CARVALHO


PUCCAMP/CNPq

1. O utilitarismo miJieano: um novo olhar

Objetivo primeiro deste trabalho é dar notícia acerca de alguns resultados


recentes da investigação que tem por objeto a filosofia moral e social de John
Stuart Mil! e sugerir a possibiüdade de um outro olhar sobre sua filosofia.
Estudiosos recentes do opus milleano' destacam sua organicidade, origina li-
dade e sutileza, contra o que se convencionou chamar de leitura clássica ou

1
O autor mais prestigiado é sem dúvida Fred R. Berger, que escreveu Happiness,
Justice and Freedom. The moral and po/itical phi/osophy of John Stuart Mil/
( 1984). No mundo de fala espanhola, destaca-se Ana de Miguel Alvarez, eminente
conhecedora da filosofia milleana. com quem muito aprendi através da leitura de
suas obras: Elites y parlicipación política e" la obra de John Stuart Mil/, tese de
doutoramento, defendida na Universidad Autónoma de Madrid em 1990 e que per-
manece inédita, e Cómo /eer a Jolm Stuart Mil/. (1994). Ainda na Espanha, Es-
peranza Guisán, com extraordinária competência e imaginação, tem defendido a
filosofia moral milleana, contribuindo para a necessária difusão e revitalização da
obra deste importante filósofo. De sua autoria, gostaria de mencionar sobretudo o
capítulo "EI Utilitarismo", publicado no segundo volume da coletânea dirigida por
Vietoria Camps, intitulada História de la ética, o capítulo "Utilitarismo", escrito
para o Vol. 2, intitulado "Concepciónes de la ética", que compõe a Enciclopedia
Jberoamericana de Filosofia, organizada por Victoria Camps e Oswaldo Guariglia,
assim como a "Introdução", escrita para a tradução espanhola de sua autoria do en-
saio Ulilitarianism de J. S. Mil!. Brilhantes são seus livros Razón y pasión en la
ética (1986), Manifiesto hedonista (1990) e Jntroducción a la ética ( 1995), dentre
muitos outros, igualmente valiosos e de apaixonante leitura. Outro respeitável leitor
de J. S. Mill é John GRAY, autor de Mil/ on liberty: a defence. ( 1983). Indispen-
sável para quem deseja se introduzir no pensamento de Mill é a leitura da extensa e
minuciosa monografia de John Skorupski: John Stuart Mil/, publicada em 1989. No
espaço de lingua alemã, destacam-se Jean-Ciaude Wolf. autor de John Stuart Mills
"UtiliJarismus". Ein krilischer Kommentar ( 1992) c Ralph Schumacher, John Stuart
Mil/, 1994.

Mortari, C. A. & Outra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 189-21 O.
190 Maria Cecília M. de Carvalho

ortodoxa, que imputava a Mill uma série de falácias e incoerências. A inter-


pretação tradicional veria John Stuart Mil! como um pensador menor, ecléti-
co, de transição, que desejava ardentemente, até mesmo doentiamente, con-
ciliar demandas tidas como inconciliáveis. Por ser um pensador que buscava
restaurar a dignidade de um Utilitarismo, acusado de ser uma filosofia para
suínos, Mill teria acolhido valores alheios à indole da vertente utilitarista
sem o perceber; teria, de fato, abandonado os axiomas fundamentais utilitá-
rios, voltado as costas para o hedonismo sem se dar conta de sua apostasia.
Existe atualmente um movimento na direção de se recuperar o pensamento
de John Stuart Mill, de divulgá-lo e propor-lhe uma leitura que se presume
mais adequada. Não há de minha parte o propósito de endossar tacitamente
a assim chamada nova interpretação; com todo o distanciamento crítico que
julgo salutar manter com relação a qualquer proposta de leitura, não se pode,
todavia, deixar de reconhecer que se trata de uma interpretação que é, no
mínimo, instigante e desafiadora, convidando-nos a uma releitura da obra
deste importante pensador do século XlX.
John Stuart MiH é um autor que continua a suscitar polêmica em torno
de sua filosofia. A publicação de suas obras completas tem dado ensejo, nas
últimas décadas, a incontáveis estudos sobre sua filosofia. É consenso entre
os novos intérpretes de John Stuart M ill que seus comentadores clássicos
foram também seus algozes, tendo contribuldo para perpetuar uma imagem
de sua doutrina que está muito longe de fazer jus à sua complexidade. De
acordo com a interpretação tradicional, a filosofia de Mill estaria eivada de
tensões, ou mesmo de contradições, em geral caudatárias de uma personali-
dade altamente influenciável que, preocupada em acolher as mais variadas
escolas de pensamento, não teria conseguido compaginá-las em um sistema
coerente, quiçá até mesmo por faltar-lhe competência intelectual para levar a
efeito um empreendimento de tal porte. Segundo esta visão oficial, a influ-
ência de correntes estranhas ao espírito do Utilitarismo teria exercido um
papel tão avassalador sobre a fraca personalidade de Mil!, que este chega
mesmo a romper com o Utilitarismo, sem, contudo, dar-se conta dos com-
promissos tacitamente assumidos com sua adesão a outros credos, nem vis-
lumbrado o alcance de sua heterodoxia.2 A recepção do pensamento millea-

2
Cf John Gray, Mil/ on liberty: a defence, p. 2. C/ também Ana de Miguel Alvarez,
Elites y participación politica en la obra de John Stuart Mi/1, pp. 6-7. Entre os rep-
resentantes mais influentes da interpretação tradicional, está James Fitzjames Ste-
phen, autor de Liberty, Equality, Fraternity [1873], Cambridge University Press,
1967. Na época contemporânea destacam-se: H. J. McCioskey, John Stuart Mil/: a
criticai study, Londres, Macmillan, 197 1; lsaiah Berlin, "John Stuart Mill and the
Jolm Stuart Mil/ e os ingredientes da Felicidade 191

no que tem se seguido à publicação de suas obras completas não deixou


inalterada a imagem que se tinha deste autor. Os novos intérpretes procu-
ram, em primeiro lugar, divulgar a obra de Mill, pondo em evidência as-
pectos até então amplamente negligenciados ou simplesmente desconheci-
dos, convidando o leitor a uma (re)descoberta da filosofia milleana. Em se-
gundo lugar, propugnam por uma interpretação que eles consideram mais
adequada do pensamento deste filósofo. Sem desconhecer a presença de ten-
sões na filosofia miUeana, os novos intérpretes buscam uma reconstrução da
qual deve emergir uma filosofia coerente e vigorosa. Aos poucos aquele tom
depreciativo que marcara a interpretação tradicional de Mill deixa de ser
dominante e as reconstruções recentes de sua filosofia prática permitem que
aflorem suas qualidades; em geral, procuram mostrar ainda que suas teses
sobre o utilitarismo, a liberdade e o governo representativo, longe de confli-
tarem umas com as outras, se apoiam e se fortalecem mutuamente.

2. O legado utilitarista e o despertar de John Stuart Mill

Mm é herdeiro do movimento utilitarista britânico, fundado por Jeremy


Bentham e desenvolvido por seu pai, James Mill. O utilitarismo, como se
sabe, é uma vertente da filosofia prática que apregoa como teste para se ava-
liar a qualidade moral de ações/regras/instituições sua potencial eficácia
para contribuir para o bem-estar geral ou para promover o maior saldo lí-
quido de felicidade ou bem-estar para o maior número de indivíduos. O Uti-
litarismo assume que o ser humano possui desejos, interesses, preferências,
necessidades, que devem ser contemplados pelo simples fato de fazerem
parte da natureza humana. Não apenas o Utilitarismo, mas, de um modo
geral, a filosofia moral britânica é, como se costuma dizer, tradicionalmente
naturalista, no sentido de que se estriba em uma concepção acerca da natu-
reza humana, e tacitamente assume que a ética não pode ignorá-la. O utilita-
rismo não foge à regra. As versões de Bentham e de James Mill apoiavam-
se, contudo, "numa visão clara, porém, restrita e Jimitada" 3 da natureza hu-
mana. Os seres humanos eram vistos como objetos naturais que, a despeito
de sua maior complexidade face aos demais habitantes do mundo da nature-
za, não deixam todavia de pertencer a ele, com tudo o que isso tem de limi-

cnds of life", in: Four essays on liberty. Oxford University Press, 1969; Gertrud
Himrnelfarb. On liberty and liberalismus. The case of John Stuart Mil/, San Fran-
cisco, 1990
3
John GTay. "John Stuart Mill: a crise do liberalismo". In Brian Redhcad (org.). O
pensamento político de Platão à Otan. p.l54
192 Maria Cecília M. de Carvalho

tante. Ademais; sua passividade mental era realçada; seu psiquismo estaria
submetido a uma lei de associação de idéias, e suas ações/abstenções visa-
vam o objetivo precípuo de alcançar o prazer e evitar a dor. Trata-se de uma
concepção de ser humano que pode ser tida por essencialista, dado que atri-
buía ao homem uma natureza a-histórica e a-social, na medida em que ne-
gligenciava a formação da personalidade através da interação social e da
herança cultural. Cabia ao legislador utilitarista criar instituições sociais de
forma a possibilitar que o interesse de cada um na busca de seu próprio pra-
zer se ajustasse harmoniosamente aos interesses de outros indivíduos, ser-
vindo assim ao interesse geral. Os utilitaristas acreditavam poder remodelar
os seres humanos através da educação para melhor se ajustarem a uma soci-
edade organizada com vistas à consecução da felicidade suprema. 4
John Stuart Mill parece ter sido cobaia de um experimento pedagógico
utilitarista, patrocinado por seu pai. Recebeu uma educação rígida, rigoro-
samente moldada com a fmalidade de prover-lhe os recursos mentais desti-
nados a capacitá-lo a fomentar a felicidade individual e geral. Todavia, não
por acaso, Mill não conseguiu ser uma pessoa feliz, pelo menos enquanto
durou a influência paterna. Na juventude, enfrentou crises mentais e colap-
sos nervosos, tendo suportado longo período de melancolia e depressão. Essa
experiência existencial o levou a repensar o legado utilitarista que recebera
do pai. Nesse contexto de revisão e ajuste de contas, foi importante seu des-
pertar para o valor da poesia e dos sentimentos que o utilitarismo até então
infravalorara. Inspirado por alguns poetas, como Wordsworth, Coleridge e
Shelley, e também pela filosofia alemã, John Stuart Mill remodelou a visão
utilitarista clássica acerca do ser humano, procurando ver em cada indivíduo
um ser ativo e criativo, dotado de uma personalidade a ser desenvolvida. Seu
despertar para os sentimentos o levou a se afastar daquela concepção que
reduzia o ser humano a um mecanismo movido pelo binômio prazer/dor e
lhe descortinou uma nova perspectiva acerca da felicidade humana. O re-
sultado deste renascer pode ter sido uma filosofia híbrida, que não deixa,
entretanto, de ser altamente instigante.
O foco do presente trabalho incidirá sobre a concepção milleana de feli-
cidade, a qual constitui a pedra angular da filosofia moral e social de Mill.
Com efeito, sobre o conceito de felicidade é que se alicerçam as idéias do
filósofo acerca da liberdade, da justiça, da virtude. No esforço de reconstruir
a filosofia prática milleana como um sistema consistente, os novos intérpre-
tes parecem querer sugerir que as tensões que ele .abriga podem se atenuar
quando vistas através da lente fornecida por uma concepção complexa e re-

4
Cf Idem, ibidem, p. 154
John Stuart Mil/ e os Jngrediemes da Felicidade l93

finada de felicidade, que é geradora de direitos e que impõe deveres. En-


quanto que a interpretação clássica ou tradicional se caracterizava por im-
putar à filosofia milleana urna série de incoerências- por exemplo, entre as
demandas de felicidade e de liberdade, assim como entre as exigências de
felicidade e de justiça, de felicidade e virtude, os novos intérpretes acreditam
ter encontrado na idéia de felicidade a chave para dissolver tais contradições
e enxergar as demandas de liberdade e de justiça como pré-requisitos ou
condições para uma felicidade, que não se opõe a uma vida virtuosa, mas a
pressupõe. O ensaio de J. S. Mil! sobre o Utilitarismo é iluminador sob vári-
os aspectos. Nele Mill faz valer que a felicidade humana não é algo que se
conquiste faciLmente; ela é, antes, o coroamento de uma vida marcada pelo
desenvolvimento e mobilização de uma série de qualidades morais. O con-
ceito de fel icidade perfilhado por Mill tem forte conotação moral e pouco ou
nada tem a ver com as sensações prazerosas passíveis de serem partilhadas
também por suínos, ou com os deleites de um néscio. Segundo E. Guisán,
poucas vezes um filósofo moral mostrou-se tão sensível ao que se costuma
denominar "dimensão espirituaL" do ser humano. Raramente um autor exi-
giu o acesso a um elevado nível de aprimoramento moral para a conquista
da felicidade. No entender de Mill, uma felicidade genuína só é alcançável
por aqueles indivíduos que foram previamente educados e que atingiram um
alto grau de aprimoramento morais.

3. A peculiaridade da concepção milleana de felicidade. Jobn S. Mill


versus J. Bentham

Para os autores do que se convencionou chamar de Utilitarismo Clássico -


representado sobretudo por J. Bentham e J. S. Mill - as ações humanas de-
vem se guiar pelo princípio da máxima felicidade. Embora fundamental para
o Utilitarismo, John Stuart Mill parece ter sido o primeiro filósofo a dispen-
sar atenção crítica ao conceito de felicidade. 6 Premido pela urgência de de-
fender a posição utilitarista contra o que considerou serem equívocos e ma l-

s Cf Esperanza Guisán. In: "Introducción" a E/ utilitarismo de John Stuart Mill; ver


sobretudo p. 16.
6
O. Hõtfe lembra que J. Bentham só esporadicamente tece considerações sobre a
felicidade. Excetuando-se as passagens em que ele equipara a felicidade ao prazer,
ao lucro, à vantagem ou ao bem, e aquelas onde esboça seu cálculo felicífico, não se
encontra em Bcntham uma análise mais detida do conceito de felicidade, o que só
teria sido recuperado por J. S. Mil!. Cf O. Hõffe. "Zur Theorie des Glücks im klas-
sischen Utilitarismus". ln: Ethik und Politik, p. 120.
194 Maria Cecília M de Carvalho

entendidos, enfrentou com disposição o desafio de apresentar uma caracteri-


zação mais acurada de um conceito complexo, não desconhecendo a necessi-
dade de dar legitimidade à sua concepção. Seu utilitarismo resulta inquesti-
onavelmente mais sutil e refinado que o de Bentham. Pode-se dizer com
Esperanza Guisán que a ética milleana representa o mais alto grau de refi-
namento das éticas teleológicas do bem-estar, seja pela sutileza de suas re-
flexões, seja pela extrema sensibilidade moral aí revelada. 7 É claro que tal
não deve nos eximir de averiguar se a maior sofisticação de sua posição não
foi adquirida ao preço de sacrificar-lhe a coerência interna.
Não cabe dúvida de que o utilitarismo esposado por Mill difere em as-
pectos não-irrisórios daquela versão mais primitiva do utilitarismo professa-
da por J. Bentham. Para este, a qualidade moral de uma ação é função de sua
tendência para aumentar ou diminuir a felicidade dos indivíduos concerni-
dos, sendo esta entendida substantivamente como prazer e/ou ausência de
dor. O Princípio de Utilidade para Bentham prescreve a escolha daquele
curso de ação cujas conseqüências promovem o maior saldo líquido de feli-
cidade, vale dizer, a maior soma de prazer, descontada a dor eventualmente
engendrada. Tal princípio fora estatuído por Bentham para orientar tanto as
ações dos indivíduos no seu dia-a-dia, como também para nortear a ação
legiferante de governantes, destinado, portanto, a reger tanto a ética indivi-
dual como a ética social.
Segundo Bentham, o ser humano está por natureza determinado a esco-
lher o prazer e a evitar a dor. É conhecida a afirmação benthamita, segundo
a qual a natureza teria colocado a humanidade sob o domínio implacável de
dois senhores soberanos, a dor e o prazer. Pode-se dizer que para Bentham o
Princípio de Utilidade é não apenas um princípio descritivo, que daria conta
de como os seres humanos de fato se comportam ~ buscando o prazer e evi-
tando a dor - mas também um principio normativb, na medida em que pres-
creve como ideal moral a busca do prazer e a fuga da dor.
John Stuart Mill distancia-se da concepção segundo a qual o ser humano
seria como um mecanismo determinado pela busca do prazer e fuga da dor:
para Mill o homem é um ser dotado de faculdades elevadas, de ordem inte-
lectual, moral e afetiva, e capaz de permanente progresso moral. Entende
que a existência de faculdades elevadas gera a exigência de que a felicidade
humana esteja em consonância com tais faculdades e que não possa se iden-
tificar com o mero contentamento. Felicidade não se confunde com o sim-
ples sentir-se satisfeito ou saciado. Mill defende a distinção entre felicidade
e satisfação, felicidade e contentamento, lembrando que nenhum ser humano

7
Cf Esperanza Guisán, lntroducción a la ética, p. 153.
John Stuart Mil/ e os Ingredientes da Felicidade 195

inteligente concordaria em converter-se em um néscio, ainda que, em troca,


desfrutasse de maior satisfação.
Outra diferença importante em relação a Bentham é que, para este, os
prazeres são todos igualmente valiosos. 8 Em contrapartida, John Stuart Mill
defende um utilitarismo qualificado, que emerge como a resultante de um
processo de severa auto-crítica e de distanciamento daquele "utilitarismo
ingênuo" a que ele aderira em sua juventude. Por "utilitarismo ingênuo" se
entende a postura reducionista e simplificadora que pretende que todos os
conceitos morais sejam reconstrutíveis utilitaristicamente ou definíveis em
termos de prazer/utilidade. O Utilitarismo de Mill, ao contrário, procura
contemplar a complexidade das experiências morais e a multiplicidade de
valores e normas. Afasta-se em muitos aspectos da versão benthamita da
utilidade, a ponto de alguns intérpretes entenderem que ele ultrapassa as
fronteiras deste modelo de reflexão ético-política. Pode-se dizer que o utilita-
rismo de Mill é perfectibilista, pois se apóia no suposto de que o ser humano
é suscetível de aprimoramento e deve aspirar seu desenvolvimento e aperfei-
çoamento. Não se trata, por conseguinte, de uma ética que se paute por inte~
resses cegos ou por desejos facticamente acolhidos, passíveis, portanto, de
serem objeto de levantamento empírico. Como herdeiro da Ilustração, Mill
estimula no ser humano o ideal de transcendência e superação das próprias
limitações, rumo ao aprimoramento moral. No ensaio Utilitarianism Mill se

8
A este respeito pode-se lembrar que também a obra de Bentham foi alvo de mal-
entendidos e de interpretações equivocadas. A tese da equiparação de todos os praz-
eres deve - como salientou acertadamente Ana de Miguel AJvarez - ser entendida no
contexto do projeto reformista c democrático acalentado por Bentham. A exigência
de que todos os prazeres fossem vistos como igualmente valiosos, - ou, como disse
Bentham, desde que a quantidade de prazer seja a mesma, fazer poesia ou jogar
" pushpin" tem o mesmo valor - assim como aquela declaração, atribuída a Bentham,
de que cada um conta como um c ninguém como mais do que um - devem ser enten-
didas no contexto de sua preocupação em denunciar a existência de iniqüidades e de
interesses sinistros de uma minoria em detrimento da maioria da população, com
vistas a promover uma profunda reforma social e jurídica. Bentham estava forte-
mente interessado em que o povo fosse ouvido c tivesse seus desejos atendidos. A
maioria da população está obviamente mais afeita a prazeres simples, que exigem
menos esforço para serem vivenciados, e é menos sensível à beleza da poesia, cuja
apreciação requer um gosto educado. A radicalidade com que Bcntham defendia a
democracia o levou a insistir em que nenhum interesse fosse excluído do cálculo
utilitarista, nenhum prazer fosse considerado menos nobre ou valioso do que outros.
Daí seu famoso dictum : "quantitity of pleasurc being equal, pushpin is as good as
poetry." Cf. Ana de Miguel AJvarez, Cómo leer a John Stuart Mil/, pp. 25-26.
196 Maria Cecília M. de Carvalho

empenha em elucidar o conteúdo da teoria utilitarista, contra supostos pre-


conceitos dos críticos, procurando dirimir equívocos que estariam denegrin-
do esta filosofia. Como assinala E. Guisán 9, as doutrinas morais que procla-
mam a desejabilidade da felicidade humana têm sido alvo de múltiplos ata-
ques. Estes repousam por vezes em teses e pressupostos pouco defensáveis,
como o de que uma ética que prescreva a busca da felicidade nos equipararia
aos porcos, ou o de que a norma que tem por conteúdo o dever de buscar a
felicidade seria ociosa, uma vez que todos estamos já empenhados na con-
quista da felicidade, razão por que não necessitaríamos de conselhos, exorta-
ções ou deveres que nos instem a agir hedonisticamente. Ademais, muitos
crêem que as inclinações hedonistas são perniciosas e estão a exigir um
freio, e não um encorajamento. Em suma, o hedonismo utilitarista rebaixaria
o ser humano ao nível de porcos, não estando, por conseguinte, à altura de
seres humanos. Uma filosofia que exalta o prazer incorreria no grave erro de
equiparar o ser humano aos animais irracionais, o que equivaleria, em últi-
ma análise a uma degradação do ser humano. Em defesa do utilitarismo, e
contra todos os que criticaram a Epicuro ou que condenaram o hedonismo
como uma doutrina tosca e à altura tão-somente de porcos, Mill escreve:

Resulta degradante a comparação da vida epicúrea com a dos animais preci-


samente porque os prazeres de um animal não satisfazem à concepção de fe-
licidade de um ser humano. Os seres humanos possuem tàculdades mais ele-
vadas que os apetites animais e uma vez que são conscientes de sua existên-
cia não consideram como felicidade nada que não inclua a gratificação da-
quelas faculdades. 10

Ademais, segundo Mill, não há por que restringir o significado da pala-


vra prazer, como se esta só pudesse se aplicar apropriadamente à sensação
positiva que acompanha a satisfação dos instintos. Para Mill, não só é possí-
vel discriminar entre prazeres, mas tal discriminação é perfeitamente con-
sistente com o Princípio de Utilidade. Considera

9
Cf Esperanza Guisán, "lntroducción" escrita para a tradução espanhola da obra de
J. S. Mill. El Utilitarismo, p. 07
10
Mill, John Stuart, E/ Utilitarismo, p. 47. No original lê-se: "The comparison ofthe
Epicurean life to that of beasts is felt as dcgrading, prcciscly because a beasrs
pleasures do not satisfy a human being's conceptions o f happiness. Human beings
have facuJties more elevated than the animal appetites, and, whcn once made con-
scious of thcm, do not regard any thing as happiness which does not include their
gratification"(J. S. Mill, "Utilitarianism", p. 331).
Jolm Stuart Mil/ e os Ingredientes da Felicidade 197

( ...) de todo compatível com o principio de utilidade o reconhecimento do


fato de que alguns tipos de prazer são mais desejáveis e valiosos do que ou-
tros."

Mill reconhece que o utilitarismo benthamita não é infcnso a uma hie-


rarquização entre os prazeres, sendo compatível com a afirmação de que
alguns são mais valiosos do que outros; ressalta, porém, que em Bentham tal
discriminação se funda em critérios meramente quantitativos. Não sendo
possível nenhuma distinção intrínseca entre prazeres, qualquer hierarquiza-
ção resulta meramente contingencial. À diferença de Bentbam, Mil! intro-
duz um padrão de ordem qualitativa para possibilitar sua discriminação para
além da quantidade. Assim, aqueles q ue derivam da gratificação das facul-
dades mais elevadas são mais valiosos do que os que resultam da satisfação
dos sentidos. Naturalmente que o recurso à categoria de qualidade introduz
pelo menos dois complicadores na teoria milleana. O primeiro diz respeito
ao fato de que havendo diferenças intrínsecas entre prazeres, as quais deter-
minariam que alguns são intrinsecamente mais nobres ou desejáveis do que
outros, a teoria parece se comprometer com algum valor - irredutível ao
prazer - que lhe adentraria sorrateiramente, ameaçando implodir seu hedo-
nismo. A segunda dificuldade resulta do fato de a distinção qualitativa entre
prazeres afustar a teoria milleana da possibilidade de ofertar um procedi-
mento de decisão que nos habilitasse a escolher entre cursos alternativos de
ação. Se Bentbam dispunha do cálculo fel icífico que, pelo menos em tese,
tornava operacionalizável a exigência de decidibilidade entre cursos de ação
alternativos, Mill inviabiliza o cálculo e se vê compelido a buscar um subs-
tituto para ele; para satisfazer a tal demanda, imposta pelo seu hedonismo
qualitativo, introduz a categoria dos juízes competentes, formada pelo con-
junto das pessoas mais experimentadas, que teriam fam iliaridade com os
diversos tipos de prazer. A preferência deste colegiado de pessoas compe-
tentes substitui - na filosofia milleana - o cálculo felicífico da doutrina ben-
thamita, e se constitui no critério a ser !evado em conta em nossas decisões.
Para Mill, é um fato inquestionável que aqueles que estão familiarizados
tanto com os prazeres animais ou inferiores como com os que resultam das
qualidades humanas mais elevadas sempre assinalam serem os últimos os
mais valiosos para a felicidade humana. 12 E, nesse contexto, Mill assevera:

11
Idem, ibidem. No original: "It is quite compatiblc with the principie of utility to
rccognize thc fact, that some kinds o f pleasure are more dcsirablc and more valuablc
thanothers" (Op. cit., p. 331).
12
Cf Idem, ibidem, pp. 48-49.
198 Maria Cecília M. r,Je Carvalho

é melhor ser um ser humano insatisfeito que um porco satisfeito; melhor ser
um Sócrates insatisfeito que um néscio satisfeito. E se o néscio ou o porco
opinam diferentemente é em virtude de conhecerem apenas um lado da
questão. 13

De acordo com a visão tradicional, Mill introduzira diferenças qualitati-


vas entre os prazeres, no intuito desesperado de recuperar a credibilidade de
um utilitarismo para o qual o único valor era o prazer. Tal monismo axiol6-
gico, embora substantivamente inaceitável, era, pelo menos, coerente com o
hedonismo professado. Em contrapartida, ao tentar livrar o utilitarismo dos
ataques que o vituperavam, Mil! apelara para uma distinção qualitativa entre
prazeres, sem perceber que tal fato o afastava do hedonismo que ele, no en-
tanto, nunca abjurou. Se esta reflexão estiver correta, a teoria de Mil!, a des-
peito de que possa denotar o elevado sentido moral de seu autor, estaria
contaminada por uma irremediável contradição.
Os novos intérpretes da obra de Mil! são de opinião que algumas passa-
gens do ensaio Utilitarianism, isoladas do contexto maior da obra milleana,
fomentaram uma série de erros de interpretação do corpus milleano. Uma
leitura que se pretenda mais adequada requer que se leve em conta o con-
junto de sua obra. Sobretudo não se pode negligenciar o ensaio Sobre a li-
berdade (On Liberty, 1859), onde seu autor afirma :

Encaro a utilidade como a última instância em todas as questões éticas; mas


é preciso que se trate da utilidade em seu mais amplo sentido, da utilidade
fundada nos interesses permanentes do homem como ser capaz de progres-
so.L4

O texto Sobre a Liberdade nos dá importantes pistas para uma recons-


trução da filosofia moral de Mill, pois aí se acha exposta com nitidez sua
concepção acerca do ser humano, alicerce de sua ética. Embora nesta obra a
felicidade desponte como o único fim da existência humana, nela Mil!
aponta para outros ingredientes da felicidade, quais sejam, a liberdade e a

13
Cf Idem, ibidem, p. 51. No original: "It is bctter to be a human being dissatisfied,
than a pig satisfied; bctter to bc a human bcing dissatisficd. that a fool satisfied. And
if the fool or the pig are o f a difJcrent opinion, it is bccause thcy only know their
own si de ofthe question." (Op. cil., p 333).
14
Mill, J. S. Sobre a liberdade, p. 54. No original: " I regard utility as the ultimate
appeal on ali ethical qucstions; but it must be utility in the largest sensc, grounded
on the permanent intcrests ofman as a progrcssive being'' (J.S. Mill, "On liberty'', p.
198).
John Stuart Mil/ e os Ingredientes da Felicidade 199

individualidade. Também neste ensaio a peculiaridade de Mill frente aos


utilitaristas que o precederam não se deixa ocultar: ela se mostra sobretudo
no imenso valor atribuído à diversidade, à plenitude da vida, à espontanei-
dade, à singularidade do individuo e no desprezo que nutria pela mesqui-
nhez, pela uniformidade, por tudo aqui lo que oprimia a criatividade, pela
tirania da opinião pública, do costume, da autoridade. Mill enaltece a novi-
dade, a dissidência, a independência, os pensadores que desafiam o estabele-
cido. Foi durante toda sua vida o defensor dos hereges, dos apóstatas e blas-
femos, permanecendo seu comportamento em plena harmonia com seu pen-
samento. •~ Para Mill o ser humano se distingue dos animais não-humanos
por sua capacidade de conceber fins, os quais podem ser buscados e realiza-
dos de múltiplas maneiras. Se existissem pílulas de felicidade, ou técnicas
que proporcionassem às pessoas prazer duradouro, Mill não endossaria seu
uso por considerá-lo degradante, indigno do ser humano. A felicidade para
Mill nada tem a ver com um estado prazeroso de passividade, mas há de ser
uma conquista humana, algo que só se alcança através das opções que são
feitas ao longo da vida.
Também no ensaio sobre o Utilitarismo há passagens que permitem
afirmar que Mill não identificava a felicidade com o prazer ou com o prazer
não qualificado. 16 Mill rompe de vez com o hedonismo vulgar que equipara-
va felicidade ao prazer tout court.

4. O nexo felicidade - justiça - liberdade

Como ressalta Ana de Miguel Alvarez17, apoiando-se em Fred Berger e John

15
Cf Isaiah Berlin. Cuatro ensayos sobre la libertad. Madrid, Alianza Universidad,
1996
16
Mill escreve: " To give a clear view of the moral standard sct up by the thcory.
much more requires to be said; in particular, what things it includes in the idcas of
pain and pleasure, and to what extent this is left an open question" (J. S. Mill,
" Utilitarianism", p. 330). Traduzindo: "Para se oferecer uma idéia clara do critério
moral que esta teoria estabelece é necessário q ue se indique muito mais: em especial
que coisas inclui nas idéias de dor e de prazer e em que medida é esta uma questão a
ser debatida." (C/ J. S. Mill, E! Utilitarismo, p. 47). Parece claro, como sublinha
Berger, que se Mill pretendesse identificar a felicidade com o prazer não assinalaria
a necessidade de que se "indique muito mais" a este respeito. Cf. Berger, op. cit.,
pp. 37-38.
17
Cf Ana de Miguel Alvarez, op. cit., p. 30. Bergcr escreve:" human happiness is
not an open concept in the sense that it consists of plcasures completely unspecified.
Milrs concept ofhappiness is partly determinate in the sense that there are particu-
200 Maria Cecília M. de Carvalho

Gray - a obra conjunta de Mil! apresenta um conceito de felicidade unificado


e consistente, que é não-hedonista, plural e hierárquico. A felicidade de que
fala Mill não é hedonista no sentido de que valorize qualquer tipo de prazer;
por outro lado, dai não se segue que seja anti-hedonista. Se a felicidade não
é um simples agregado de prazeres, ela não se encontra na ausência de pra-
zer ou na presença de dor. Trata-se outrossim de um conceito plural e hie-
rárquico, no sentido de a felicidade - como diz Mil! - ser um todo concreto
que se compõe de diferentes partes ou elementos. Mil! não chega a apresen-
tar uma lista com todos estes componentes; há que se percorrer sua obra a
fim de encontrá-los. Cumpre notar que tais elementos não possuem todos o
mesmo grau na hierarquia. Alguns são considerados por Mil! mais valiosos
do que outros para a conquista da felicidade. Para Berger, o conceito de feli-
cidade é em parte aberto, em parte fechado. Está parcialmente fechado, na
medida em que determinados elementos são um requisito da felicidade, não
sendo, pois, negociáveis; acha-se parcialmente aberto porque há um número
indeterminado de coisas que podem chegar a formar parte da felicidade de
cada pessoa. Os elementos ou condições necessárias da felicidade humana
seriam a autonomia ou liberdade e a segurança. A liberdade está relacionada
com a dignidade pessoal e com o direito que uma pessoa tem de plasmar e
desenvolver seu projeto de vida; a segurança tem a ver com a necessidade de
podermos confiar nas expectativas erguidas; nós nos sentiríamos inseguros
se não pudéssemos confiar nos outros, na palavra empenhada, nas promessas
e acordos tácitos; o interesse em segurança é às vezes qualificado por Mil!
como o mais vital : "nenhum ser humano pode prescindir de segurança." 18
Se tais condições são indispensáveis para a felicidade, então esta não se con-
cebe sem uma teoria da justiça que eleve à categoria de direitos humanos ou
direitos morais exatamente aqueles requisitos na ausência dos quais a felici-
dade não passaria de uma quimera. Para Mill existe uma relação íntima en-

lar elements requisite to it. It is partially open in the sense that an indeterminate
number ofthings can come to be seen as elements in a person's happiness. Human
well-being- given human capacities - rcquires some particular elements, and may
come to require many others which cannot be specified ahead of time. (Recall that in
the paragraph in which Mill first described the Greatest Happiness Principie, he
indicated that to some extent what is included 'in the ideas of pain and plcausre' is
left 'an open question')". (F. Berger, op. cit., pp. 39-40). Para J. Gray "Mill's con-
ception o f happiness was avowedly indi vidualist and pluralist. According to Mill,
each man possesses a quiddity or peculiar endowment, the development of which is
indispensable to his happiness". (Gray, J. Mil/ on liberty: a defence, p. 45).
•s Cf J. S. Mill, E/utilitarismo, p. 118. " ( ...) security no human being can possibly
do without" (J. S. Mill "Utilitarianism", p. 385).
John Stuart Mil/ e os Ingredientes da Felicidade 201

tre felicidade, liberdade, virtude e justiça. Felicidade permanece um ideal,


inalcançável sem liberdade ou sem justiça. No último capítulo do ensaio
sobre o Utilitarismo Mill situa a felicidade em um patamar acima da justiça;
seu intuito todavia não foi o de anular ou amesquinhar a justiça, mas o de
elucidar a ordem de razões. A promoção da justiça se afiguraria, pois, desti-
tuída de uma razão de ser e insuscetível de ser entendida como algo impres-
cindível para a vida humana, estivesse ela desvinculada da busca de uma
sociedade melhor e mais feliz. Nesse sentido, segundo Mill, é a felicidade
que torna inteligível e exigível todo esforço para se dar realidade ao ideal de
justiça.

5. Liberdade e individualidade como ingredientes da felicidade

Obra esclarecedora, porém, não menos polêmica para se aceder ao conceito


milleano de felicidade é o ensaio On Liberty, sobretudo o capítulo Ill que
tem como título ''Da individualidade como um dos elementos do bem-estar."
É no mínimo ousada a pretensão de Mill de que sua radical defesa da liber-
dade e da individualidade possa se estribar em seu Utilitarismo. Que a afir-
mação da individualidade e a promoção da liberdade tenham como conse-
qUência um incremento de felicidade coletiva é uma das teses de Mill que
ainda enfrentam grande resistência, a despeito do empenho dos estudiosos
em convencer os críticos do contráriQ. Em apoio a Mill, pode~se dizer que
não convém obscurecer o fato de que tanto o desenvolvimento da individua-
lidade como a defesa das liberdades despontam como exigências de sua pe-
culiar concepção de felicidade. De acordo com Mill, ela é certamente inaces-
sível a indivíduos fracos, desprovidos de vontade própria, que se limitam a
seguir costumes e tradições, a reproduzir as opiniões majoritárias. Para Mill,
as concepções hegemônicas exercem sua tirania sobre os indivíduos, que
precisam mantê-las sob controle sob pena de se verem asfixiados por elas.

Onde a norma de conduta não é o próprio caráter da pessoa, mas as tradições


e costumes alheios, aí está faltando um dos principais ingredientes da felici-
dade humana, e, certamente, o principal ingrediente do progresso individual
e social. 19
,Mas, afinal, que individualidade é essa, de que fala Mill, como um dos

19
Mill, J. S. "On Liberty'', p. 250:" Where, not the person's own character, but the
traditions or customs of other pcople are the rui c of conduct, there is wanting one of
the principal ingredients of human happiness, and quite the chie f ingredient o f indi-
vidual and social progress."
202 Maria Cecília M. de Carvalho

elementos do bem-estar? E que liberdades ele considera imperioso proteger?


A individualidade é o contrário da passividade e da submissão; ela é ativida-
de, energia. Não é portanto algo dado, com o qual já se nasce, mas uma con-
quista, que supõe esforço e desenvolvimento de um "caráter ativo."2tl Outros
elementos constitutivos da individualidade são a autodeterminação e o auto-
desenvolvimento. Autodeterminação quer dizer autonomia, capacidade de
escolha entre modos alternativos de vida, que envolve também a capacidade
de uma pessoa projetar e dar realidade ao seu próprio plano de vida. Mil!
considera obviamente que a autodeterminação não está à altura de crianças e
de deficientes mentais, posto que requer o desenvolvimento das capacidades
mais elevadas do ser hum ano.
A individualidade conclama à audácia de se pensar e agir por conta pró-
pria. Para Mill o ma is grave na tirania exercida pela opinião majoritária não
é tanto o fato de as individualidades serem esmagadas, mas o de as pessoas
se mostrarem satisfeitas dentro de um tal cárcere. A força da censura para
modelar as personalidades é poderosa, sendo dificil sua demolição. A des-
peito da pouca importância que se dá à individualidade como autodetermi-
nação, para Mill ela é uma das fontes d e progresso humano.21
Ao lado da autodeterminação, a individualidade, como a entende Mill,
requer o desenvolvimento das potencialidades individuais. Todavia, nem
sempre Mill se defme claramente no que respeita ao ponto "auto-
desenvolvimento." A questão para a qual parece não haver uma resposta
inequívoca nos textos é a de saber se existe uma direção a ser privilegiada
pelo desenvolvimento individual ou se Mill estaria disposto a valorizar qual-

°
2
Cf Ana de Miguel Alvarez. Cómo leer a John Stuart MUI, p. 71. Cf Mill "On
Liberty", p. 252.
21
Cf Idem, ibidem, p. 73. Alvarez rebate as acusações de que Mill identifica a indi-
vidualidade com excentricidade c genialidade e a de que e le sustenta uma concepção
clitista da individualidade, a qual faria exigências excessivas ao indivíduo comum.
Reconhece que Mill concede espaço à excentricidade e à genialidade de alguns, que
atuariam como urna espécie de compensação ao acomodamento c ao bem-estar
medíocre da maioria. Todavia, isso não significa que todos os indivíduos devam ser
excêntricos, geniais ou inconformistas. Mi 11 entende que é preciso que se criem con-
dições para que as individualidades possam allorar; trata-se de um requisito des-
tinado a possibilitar a emergência de caracteres notáveis ou originais. Para Mill o
importante não é querer ser original pelo simples prazer de ser diferente, de se remar
contra a corrente. O importante para Mill é que as pessoas sejam capazes de fazer
autênticas opções; no caso de se acolherem crenças ou valores correntes, o funda-
mental é que eles sejam acolhidos criticamente, conhecendo-lhe os fundamentos. Cf
Idem, ibidem, pp. 72-73.
John Stuart Mil/ e os Ingredientes da Felicidade 203

quer perfil que resulte do desenvolvimento pessoal, contanto que tal perfil
emerja da autodeterminação. De um lado, levando-se em conta que o autor
tem uma concepção exigente do que vem a ser a felicidade humana, salien-
tando que esta não se confunde com quaisquer prazeres, mas supõe a gratifi-
cação das faculdades elevadas, ele não pode ser indiferente à substância que
se queira dar ao desenvolvimento individual. Parece mais compatível com a
concepção de felicidade milleana supor que há um modelo a ser seguido, um
padrão para se ajuizar o grau de desenvolvimento ou a excelência de uma
forma de vida. Há todavia passagens que fazem supor o contrário, ou seja,
que o desenvolvimento individual de que fala Mill é incompatível com mo-
delos pré-fixados. Vejamos, por exemplo, a seguinte passagem:

Supondo-se obter que máquinas - autômatos com forma humana - construís-


sem as casas, cultivassem o trigo, pelejassem as batalhas, processassem as
causas, erigissem as igrejas, fizessem as orações, muito se perderia em trocar
por elas mesmo os homens e as mulheres que habitam, hoje, as partes mais
civilizadas do mundo, e que são, seguramente tão-só miseráveis espécimes
do que a natureza é capaz de produzir e produzirá. A natureza humana não é
uma máquina a ser construída segundo modelo, e destinada a realizar exata-
mente a tarefa a ela prescrita, e sim uma árvore que necessita crescer e des-
envolver-se de todos os lados, na conformidade da tendência das forças in-
ternas que a tornam uma coisa viva.22

Mil! parece valorizar o caráter enérgico, que defende sua individualidade


como diferença. Contrapõe o caráter ativo ao passivo e considera a posse de
impulsos enérgicos como desejável em si m esmo.

Não é porque sejam fortes os desejos que os homens agem mal, e sim porque
as consciências são fracas. Não há conexão natural entre o impulso forte e a
consciência fraca ( ...). A energia pode voltar-se para maus usos, pode-se
sempre, contudo, praticar maior bem com uma natureza enérgica do que com
uma indolente e impassíve1. 23

Cabe, portanto, à sociedade não apenas tolerar, mas fomentar a diversi-


dade de modos de vida. O indivíduo deve ser o soberano absoluto sobre seu
destino, desde que não ocasione dano a terceiros.
O pensamento de Mill acerca do valor da individualidade permanece
todavia, impregnado de uma tensão: de um lado, parece ser indiferente a

22
J. S. Mill, Sobre a Liberdade, p. IOI.
23
J.S. Mill, idem, ibidem.
204 Maria Cecília M. de Carvalho

direção tomada pelo desenvolvimento humano; desde que resulte da auto-


determinação e não fira interesses alheios, a afirmação da individualidade é
sempre desejável. De outro lado, sua adesão ao utilitarismo o compromete
com valores morais, tais como nobreza de caráter e virtude. Não resulta cla-
ro como se há de harmonizar ambos os apelos com os recursos teóricos colo-
cados à disposição pela filosofia,m illeana.
Mm pretende fundar seu liberalismo sobre os alicerces de seu utilitaris-
mo. Recusa explicitamente qualquer apelo a direitos naturais e a um con-
trato social. Daí seu interesse em mostrar que as liberdades individuais, que
seu Princípio de Liberdade deve proteger, favorecem o bem-estar social e são
úteis, portanto, à felicidade coletiva, só podendo sofrer restrição se causarem
dano a terceiros.
O Princípio de Liberdade tem a função precípua de subsidiar a decidibi-
lidade sobre que classes de ação podem permanecer sujeitas ao controle legal
e/ou moral da sociedade e quais as que concernem exclusivamente ao indiví-
duo, devendo este guardar a soberania sobre elas. O Principio estatui que
somente aquelas ações que causem dano a terceiros podem ser sancionadas.
A única razão justificadora de uma restrição da liberdade individual é a pre-
venção do dano a outrem. A promoção do bem-estar ou felicidade, ainda que
para um grande número de indivíduos, assim como a prevenção de um dano
ao próprio agente, não constituem razões que justifiquem uma restrição da
li herdade. 24
No capítulo V de On Liberty, Mill escreve que

( ...) o indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam
respeito aos interesses de ninguém a não ser dele próprio ( ...). ( ...) por
aquelas ações prejudiciais aos interesses alheios o indivíduo é responsável, e
pode ser sujeito à punição social ou legal, se a sociedade for de opinião que
uma ou outra é requerida para sua proteção. 25

24
Em "On Libcrty." Mill escreve que "the sole end for which mankind are war-
ranted, individually or collcctivcly, in interfering with the liberty o f action of any of
their numbcr, is self-protection. That the only purpose for which powcr can be right-
fully exercised over any member of a civilised community, against his will, is to
prevent harm to othcrs. His own good, either physical of moral, is not a sufficient
warrant", p. 197.
2
s Mill, J. S. Sobre a liberdade, p. 137. (trad. minha). No original lê-se: "The max-
ims are, first, that the individual is not accountable to society for his actions, in so
fàr as thesc concem the intercsts of no person but himself. ( ...). Secondly, that for
such actions as are prejudicial to the intcrests of others, the individual is account-
John Stuar/ Mil/ e os Ingredientes da Felicidade 205

O alcance do Princípio de Liberdade depende, ao que parece, do conceito


de dano, que, por sua vez, procede do conceito de interesse legítimo. Uma
ação proscrita pelo Princípio de Liberdade é, pois, aquela que causa dano a
terceiros por ferir seus interesses legítimos. A definição do que venha a ser
interesse legítimo não é, obviamente, neutra, mas supõe algumas opções.
Mill repudia tanto o moralismo como o paternalismo na determinação dos
interesses a serem protegidos, dado que tais posturas implicariam um intole-
rável cerceamento das liberdades individuais. Por conseguinte, Mill não in-
clui a ofensa como ação que fira interesses legítimos de uma pessoa - como
quer o moralismo. Noutros termos, ninguém que se sinta indignado, escan-
dalizado ou ofendido com o posicionamento político, religioso ou com o
comportamento de terceiros pode alegar que teve seus interesses legítimos
violados. Recusa também o paternalismo, vale dizer, não endossa o cercea-
mento da liberdade de urna pessoa, com o intuito de protegê-la contra si pró-
pria, ou qualquer restrição de sua liberdade em nome de um suposto bem
que viria ao encontro de seus interesses. Como Mi ll, por outro lado, recusa o
apelo ao jusnaturalismo26 para dar legitimidade a interesses e, dado que con-
sidera a Utilidade o princípio axiológico supremo de sua filosofia prática, é
este princípio que deverá balizar a noção de interesse legítimo.
Que uma defesa da liberdade seja compatível com o Utilitarismo ou pos-
sa ser fundada sobre premissas utilitárias é uma das teses mais questionadas
na literatura. John Gray defende a pretensão milleana de fundar o Princípio
de Liberdade no âmbito de seu utilitarismo, fazendo valer que a valorização
milleana da liberdade individual está em perfeita consonância com seu he-
donismo qualitativo. Argumenta ainda que o argumento de On liberty só
pode ser devidamente avaliado em conexão com a defesa da justiça e dos
direitos morais empreendida por Mil! no último capítulo de seu ensaio sobre
o Utilitarismo. 27

6. Felicidade e virtude

Se o desenvolvimento da individualidade é um dos ingredientes da felicidade

able, and may be subjected cither to social or to legal punishments, if society is of


opinion that one or thc other is requisite for its protection". p. 294.
26
Cf J. S. Mill "On Liberty" onde se lê: ''lt is proper to state that I forcgo any ad-
vantage which could be derivcd to my argument from the idea of abstract right, as a
thing indepcndent of utility. I regard utility as the ultimate appeal on ali cthical
qucstions", p. 198.
27
C/ John Gray, Mil/ on liberty: a def ence, pp. !Oss.
206 Maria Cecília M. de Carvalho

humana - como Mill afirma em On Liberty - não menos importante parece


ser o cultivo da virtude. Entende por virtude o interesse pelo bem público, o
empenho de uma pessoa em favor dos interesses alheios. O cultivo da virtu-
de pode até não tomar mais feliz o agente que a cultiva, mas certamente
serão mais felizes os que tiverem o privilégio de conviver com pessoas virtu-
osas. Nesse sentido, a virtude é elemento constitutivo da felicidade humana,
sendo requerida para a produção da maior felicidade do maior número.
Em várias passagens, Mill reitera que o egoísmo é uma das principais
causas de infortúnio. Pessoas voltadas para si próprias, despreocupadas com
a sorte dos demais, costumam ser infelizes, ainda que acumulem posses. Na
ausência de desvelo para com os demais, dificilmente uma pessoa pode ser
genuinamente feliz.
O interesse pelos outros, a solidariedade, a preocupação com o bem-
comum, são verdadeiras fontes de felicidade. Não passa de preconceito a
idéia de que o utilitarismo é incompatível com a virtude. Em nossa tradição
ocidental, a idéia de virtude costuma ser associada às idéias de ascese, de
renúncia, de sacrificio. O altruísmo, a virtude são concebidos como auto-
controle, domínio da natureza animal, sacrifício dos instintos e dos desejos.
Essa é a razão de ser tão arraigada a idéia de que o utilitarismo não contem-
pla adequadamente a moralidade, que a virtude não cabe dentro do utilita-
rismo, sendo este o outro da justiça, da virtude, da dignidade humana 28• A
suposta incompatibilidade entre virtude e utilitarismo tem sua raiz no fato de
que na tradição a vida moral tem sido sempre associada a certo grau de abs-
tinência, renúncia, sacrifício. Ademais, como que para fomentar a tese de
que o utilitarismo seria avesso à virtude, Bentham recusa explicitamente a
moral ascética. E John Stuart Mill não poupa críticas ao Calvinismo, bem
como a todas as religiões e cosmovisões que exaltam uma visão mutilada do
ser humano. Como o conceito de virtude sempre esteve ligado à ascese, o
Utilitarismo prontamente adquiriu a imagem de ser contrário à virtude e
favorável a uma vida devassa, aspecto que os críticos do Utilitarismo têm se
empenhado em promover.
Os equívocos de interpretação que envolvem a doutrina utilitarista exis-
tem desde sempre. Há muito que os utilitaristas precisaram se defender con-
tra mal-entendidos, involuntários ou não. Mill se perguntava: será que a
doutrina utilitarista nega que as pessoas desejem a virtude ou sustenta que
ela não é desejável?29 É claro que não. O Utilitarismo não apenas afirma a

23
Cf a respeito a interessante a análise de J. M. Bermudo. Eficacia y Justicia. Pos-
sibi/idad de un utilitarismo moral, p. 204.
29
Cf. J. S. Mill, E/ Utilitarismo, p. 91
John Stuart Mil/ e os Ingredientes da Felicidade 207

desejabilidade da virtude, mas exige que ela seja desejada desinteressada-


mente. Mill faz uma apologia da virtude, atribui-lhe até mesmo valor intrín-
seco. Concebe a felicidade como um complexo agregado de partes, sendo
cada uma delas desejável por si mesma. A virtude faz parte da felicidade, é
um ingrediente da mesma. Quem duvida disso é porque ou bem confunde
felicidade e contentamento, ou não compreende que a virtude possa gerar
felicidade e até prazer; tal incompreensão está certamente associada ao pre-
conceito que produz identificação entre virtude e ascese.
Para Mill,

Se pode haver alguma dúvida possível acerca de que uma pessoa nobre possa
ser mais feliz em razão de sua nobreza, o que não pode ser posto em dúvida é
o fato de que toma mais felizes aos demais e que o mundo em geral ganha
imensamente com isso." 30

A razão da maior idoneidade dos prazeres elevados reside no fato de que


a utilidade não é um critério egoísta que prescreva a máxima felicidade do
próprio agente, porém, a máxima felicidade para o maior número. Mill pas-
sa a declarar abertamente que o Utilitarismo só poderá alcançar seus objeti-
vos mediante o cultivo geral da nobreza das pessoas.
Opõe-se, todavia, àqueles que afirmam que a virtude, enquanto ascese,
renúncia, é em si mesma o fim mais nobre da vida humana; àqueles que
consideram o ser humano imerecedor da felicidade, ou que entendem ser a
renúncia a ela o ponto de partida ou a condição necessária para uma vida
virtuosa. Mill busca demonstrar a suposta irracionalidade desta postura re-
correndo a um caso extremo: o sacriflcio dos heróis e dos mártires. O com-
portamento de quem sacrifica sua vida lutando por mudar uma sociedade
injusta é a "maior virtude, que pode ser encontrada em um ser humano."31
Todavia, um sacriflcio desta grandeza somente se toma compreensível e
racionalmente defensável, quando suportado para evitar que outros tenham
que passar pelo mesmo. Neste sentido, pode-se dizer que não é um fim em si
mesmo, senão um meio para melhorar o mundo, em última instância, para
que as pessoas sejam ou possam cbegar a ser mais felizes. Mill afirm a que
"quem faz isso ou afirma fazê-lo com alguma outra finalidade não merece
mais admiração que o asceta alçado em seu pedestal.'.n
A utopia milleana- para dizer com E. Guisán- inclui o sonho de que os

30
Mill. J..S .. op. cil., p. 53.
31
Idem. ibidem, p. 61.
JZ Idem, ibidem, p. 60.
208 Maria Cecília M. de Carvalho

indivíduos alcançarão um dia um patamar tão elevado que seu interesse pes-
soal coincidirá com o bem alheio, e a preocupação de cada um para com o
bem dos demais chegará a ser tão espontânea como o é a de atender às ne-
cessidades físicas mais prementes da vida. 33

7. A justiça como ingrediente da felicidade

No que tange a este ponto permitir-me-ei ser breve, pois tratei alhures34 das
relações entre justiça e utilidade sob a ótica milleana. A despeito das notóri-
as dificuldades enfrentadas pelo Utilitarismo em conciliar as demandas por
justiça com aquelas ditadas pelo Princípio da maior felicidade, John Stuart
Mill não pode ser acusado de insensibilidade com relação ao problema. Ele
demonstra conhecer as objeções ao Utilitarismo feitas a partir do horizonte
da justiça e busca oferecer-lhes uma resposta no âmbito de seu utilitarismo.
Suas análises contidas no ensaio ''Utilitarianism" visam mostrar que a Utili-
dade é a "ratio", o fundamento, que dá sentido e legitimidade às demandas
por justiça. Considera que o termo 'justiça" é ambíguo, obscuro e, portanto,
insuficiente para orientar nossas decisões. Tais dificuldades só seriam sana-
das se recorrêssemos ao conceito de utilidade. Aquelas objeções tradicionais,
como a de que o utilitarismo justificaria o castigo de inocentes, a de que ele
seria compatível com um Estado totalitário e supressor dos direitos e garan-
tias individuais, se assim exigir a felicidade do maior número, são rechaça-
das por Mill. Seu conceito de felicidade exclui um Estado totalitário que
viole as liberdades e desrespeite o bem-estar de minorias em nome de um
suposto beneficio para as maiorias. Nada mais distante de Mill que um uti-
litarismo que transigisse em questões de justiça ou permitisse um tratamento
leviano dos chamados direitos morais; ademais, suas reflexões têm o condão
de sugerir que a justiça não pode ser insensível às exigências derivadas da
utilidade; a despeito disso e, não obstante o empenho de Mill em mostrar a
compatibilidade entre justiça e utilidade, bem como a subordinação daquela
a esta, parece que justiça e utilidade, se não são conceitos antagônicos, são
parcialmente distintos: justiça parece ter a ver com o bem de cada um, en-
quanto a utilidade se refere ao bem entendido coletivamente. Destarte, a tese
milleana da subsunção da justiça sob a utilidade não resiste a um exame

33
C/ Esperanza Guisán, Jntroducción a la ética, p. 157.
34
Cf M. C. M. de Carvalho, " John Stu.art Mill acerca das relações entre justiça e
utilidade." Comunicação apresentada na Mesa-Redonda sobre "Justiça, Utilitarismo
e Política" no 1° Simpósio Internacional sobre a Justiça, realizado em Florianópolis
no período de 18 a 22 de agosto de 1997, inédita.
Jolm Stuart Mi/1 e os Ingredientes da Felicidade 209

mais acurado, do que resulta continuar sendo a demanda por justiça a pedra
de toque das éticas utilitaristas e um dos grandes desafios a serem ainda en-
frentados por este modelo de investigação ética.

Referências bibliográficas

Alvarez, A. M. 1994. Cómo /eer a John Stuart Mil/. Madrid: Júcar.


- -. 1990. Elites y participación política en la obra de John Stuart Mil/.
Madrid: Tese de doutoramento, inédita.
Berger, F. R. 1984. Happiness, Justice and Freedom. The moral and politi-
cal philosophy of John Stuart Mil/. Berkeley, Los Angeles, Londres:
University of California Press.
Berlin, I. 1969. "John Stuart Mil! and the ends of life". In: Four essays on
liberty. Oxford University Press.
- -. 1996. "John Stuart Mill y los fines de la vida". In: Cuatro ensayos
sobre la libertad. Madrid: Alianza, pp. 244-70.
Bermudo, J. M. 1992. Eficacia y Justicia. Possibilidad de um utilitarismo
moral. Barcelona: Horsori.
Carvalho, M. C. M. de. 1997. "John Stuart Mill acerca das relações entre
justiça e utilidade." Comunicação apresentada no 1° Simpósio Internaci-
onal sobre a Justiça, realizado em agosto de 1997 em Florianópolis. Iné-
dita.
Gray, J. 1983. Mil/ on /iberty: a defence. Londres: Boston: Melbourne and
Henley: Routledge and Kegan Paul.
- -. 1989. "John Stuart Mill: a crise do liberalismo" . ln: Brian Readhead
(org.). O pensamento político de Platão à Otan. Trad. de Talita Macedo
Rodrigues. Rio de Janeiro: lmago, pp.l52-62.
Guisán, E. 1995. Introducción a la ética. Madrid: Cátedra.
- -. 1984. " lntroducción" à obra El Utilitarismo de John Stuart Mill. Trad.
de E. Guisán. Madrid: Alianza.
- - . 1992. " EI Utilitarismo". In Victoria Camps (org.) História de la ética,
2° vol. Barcelona: Crítica.
- - 1992. ''Utilitarismo". In: Victória Camps e Oswaldo Guariglia (org.),
Encic/opedia Jberoamericana de Filosofia. Vol. 2. "Concepciónes de la
ética". Madrid: Trotta.
- -. 1990. Manifiesto hedonista. Barcelona: Anthropos,
210 Maria Cecília M. de Carvalho

- - . 1986. Razón y pasión en la ética. Los dilemas de la ética contempo-


ránea. Barcelona: Anthropos.
Himmelfarb, G. 1990. On liberty and liberalism. The case of John Stuart
Mil/. San Francisco.
Hõffe, O. 1979. Ethik und Politik. Gnmdmodelle und - probleme der
praktischen Philosophie. Frankfurt: Suhrkamp.
McCioskey, H J. 1971. John Stuart Mil/: a critica/ study. Londres: Mac-
millan.
Mill, J. S. 1962. "Utilitarianism". In Marshall Cohen (org.). Ethical, Políti-
ca/ and Religious. Nova York: The Modem Library.
- -. "On liberty''. In Marshall Cohen (org.), op. cit.
- -. 1991. Sobre a liberdade. Trad. de Alberto da Rocha Barros. Petrópo-
lis: Vozes.
- -. 1984. El Utilitarismo. Trad. de Esperanza Guisán, Madrid: Alianza.
Schumacher, R. 1994. John Stuart Mil/. Frankfurt: Nova York: Campus.
Skorupski, J. 1989. John Stuart Mi/1. Londres: Nova York: Routledge.
Stephen, J. F. 1967. Liberty, Equality, Fraternity. Cambridge University
Press.
Wolf, J-C. 1992. John Stuart Mi/ls "Utilitarismus ". Ein kritischer Kom-
mentar. Friburgo: Munique: Karl Alber.

mcccilia@zeus.puccamp.br
"DE RERUM NATURA": OBSERVAÇÕES SOBRE A MORAL
EPICURISTA E ALGUNS DESDOBRAMENTOS

RITA DE CÁSSIA L ANA


Mestranda em Filosofia na PUC-Campinas

Apresentarei neste trabalho uma pesquisa sobre algumas noções que estão
presentes em dois autores, Tito Lucrécio Caro e David Hume, e que parecem
ser de importância para compreendermos algumas características que estão
embutidas nos problemas morais, como por exemplo, que princípios estão
pressupostos em urna teoria ética, ou por que deve existir fundamento teórico
válido para que se possa extrair obrigação moral para determinadas ações e
comportamentos sociais.
A relevância de se recuperar um texto clássico em suas peculiaridades
lingüísticas e conjunturais está na possibilidade de examinar fontes filosófi-
cas que serviram a outras vertentes teóricas posteriores; pois, ao apreciarmos
o deslocamento de alguns conceitos que ocorreu entre a antigüidade clássica
e o século xvm, poderemos observar o que se preservou e o que foi descar-
tado, se ficaram intactos os pressupostos teóricos, ou qual alteração sofre-
ram.
Isto nos permite compreender melhor o naturalismo e o empirismo da
Idade Moderna e, em última análise, nossos próprios problemas contempo-
râneos, já que constantemente utilizamos conceitos extraídos de correntes
filosóficas do passado para embasar as atuais teorias do conhecimento.
Considero, pois, que a partir do texto lucreciano estabelecido por Ernout
(responsável pela versão erudita do texto, usada em estudos acadêmicos),
pode-se realizar um exame de alguns conceitos fundamentais para a moral
epicurista, buscando problematizar, em um segundo momento, a apropriação
que o empirismo inglês 1 logrou sobre esse corpo teórico; a questão que per-
manece como pano de fundo desse estudo é o problema da possibilidade de
atingir um conhecimento confiável e passível de ser demonstrado.
Esta consideração sobre os fundamentos do conhecimento é bastante

I Para essa finalidade e dado o espaço restrito desta monografia, limitei o estudo
apenas a David Hume, o que não invalida a proposição do trabalho, dada a repre-
sentatividade e influência das teses desse autor.

Mortari, C. A. & Dutra, L H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 211-21.
212 Rita de Cássia Lana

atual, e a única pretensão do presente texto é resgatar posições teóricas dos


autores que venham elucidar o caminho percorrido em direção ao ceticismo
e suas conseqüências para uma teoria moral.

I. Sobre a noção de útil e moral no "De Rerum Natura"

O epicurismo, embora seja uma corrente filosófica nascida na antigüidade


greco-latina, provou e tem provado ser um corpo de idéias de notável fecun-
didade conceitual e longevidade. E, por séculos, muitos dos preceitos hedo-
nistas e das idéias defendidas no Jardim têm alimentado o intelecto de outros
pensadores, e até mesmo servido como ponto de partida para novas investi-
gações filosóficas.
No entanto, em virtude das contingências históricas, muito pouco restou
em termos de material escrito pelos fundadores do epicurismo, que tenha
chegado até nossos dias. Do próprio Epicuro, nada além de cartas, algumas
de autoria duvidosa, e aforismos registrados por seus discípulos.
Se há algum escrito comprovadamente fidedigno e que se constitua em
corpus doutrinário de razoável extensão, é a obra de Tito Lucrécio Caro, o
"De Rerum Natura." Trata-se de um longo poema, composto de seis livros
que abrangem os principais aspectos do pensamento epicurista: a física, a
canônica e a ética.
O texto estabelecido na edição erudita de Alfred Emout2, se apoia nos
manuscritos de Leyden (Oblongus e Quadratus), do século LX, nos frag-
mentos de Viena e Copenhague e nos manuscritos italianos; essas cópias
medievais, segundo pesquisas de estudiosos do assunto, derivam de um su-
posto manuscrito em latim vulgar, aproximadamente do século VIl d.C.
Por sua vez, este seria uma cópia de um manuscrito em maiúsculas, que
supõe-se ter sido feita no século IV ou V d.C.
Apesar de lacunas no texto, do extravio de algumas partes do poema, da
repetição de versos feita pelo descuido de alguns copistas e da ausência de
revisão, sabe-se que esta obra atravessou os séculos relativamente incólume,
em comparação com o destino que atingiu outros importantes manuscritos
clássicos. De fato, Ernout chega a compará-la aos mais célebres manuscritos
em minúsculas, como o Mediceus, de Virgílio, ou o Ambrosianus, de Plauto.
Pouco se sabe sobre a vida de Lucrécio, e nada se afirma com certeza; a
suposta doença mental da qual padecia, o suicídio presumido, as confusões
acerca das iniciais de seu nome com as de um cônsul romano, tudo isso são
apenas conjecturas; de concreto, apenas seu poema e o comentário que Cíce-

2 Ernout. A. De La Natw·e. Cf bibliografia deste trabalho.


"De Rerum Natura ": Observações sobre a moral epicurista 213

rol enviou a seu irmão sobre a obra, observando a arte e o espírito que brota-
vam do texto.
Supõe-se, pelo tria nomine do autor, que fosse patrício; no entanto, ainda
que esses dados biográficos sejam pouêo exatos, a importância da obra
transcende a questão da informação sobre a autoria; e o impacto das idéias
contidas em seu bojo é o que nos interessa.
Em conformidade com Epicuro, a quem elogia por diversas vezes ao lon-
go do poema, Lucrécio vê na filosofia um objetivo central: libertar o homem
de seus temores e superstições, conduzindo-o a uma serenidade intelectual e
espiritual4 que superaria as vicissitudes da vida humana.
Este t eÃ.oÇ (telos) do epicurista ressalta que o valor da filosofia repousa
no que ela tem de útil. Oferecer respostas aos problemas que afligem os ho-
mens no cotidiano, prescindir daquilo que provoque o agitar das paixões e
ambições humanas, suportar os infortúnios apoiado na amizade de outros
homens que também busquem essa finalidade, eis o que propõe Lucrécio a
Mêmio.
É verdade que há uma versão rasteira das teses de Epicuro, que enfatiza
os prazeres sensuais e que constitui a face mais difundida do hedonismo;
raramente se encontra uma crítica que ultrapasse essa casca externa da teo-
ria e procure discutir as normas de bem viver com sobriedade de recursos,
preconizada pelos hedonistas da antigüidade.
Mas a pretensão aqui é ir além desse senso comum sobre o hedonismo, e
explorar algumas categorias que embasam essa noção de utilidade, qual seja,
aquela que Lucrécio assume.
Assim, para convencer Mêmio (e o leitor do poema) das teses epicuristas,
Lucrécio apresenta sua compreensão de como funcionam a natureza e o uni-
verso, em outras palavras, sua fisica.
Nessa cosmologia de Lucrécio, a sua versão do atomismo é apresentada
como modelo explicativo para a existência de tudo que há no universo, para
o surgimento dos corpos mais simples e mais complexos que formam a natu-
reza. Tudo que existe é formado por partículas indivisíveis, que se agregam
e se separam, constituindo o universo.
Nada acontece pela vontade dos deuses, mas apenas por efeito de forças
naturais; para Lucrécio, os deuses existem, mas habitam os intermundos e
são completamente alheios aos homens e ao que ocoiTe na natureza.

3 "Lucreti poemata, ut scribis, ita sunt ..." Cícero, Marco Túlio, apud Emout, A. De
La Nature. lntroduction. p. lX, opus cit.
4 Trata-se da noção de ataraxia, o estado em que se encontraria o sábio após terem
cessado as agitações do espírito causadas pelas preocupações mundanas.
214 Rita de Cássia Lana

A vida humana é produto da combinação de átomos, que formam tanto a


alma quanto o corpo, e que se degeneram, destruindo a ambos; assim, nada
há após a morte, que é apenas o desagregar atômico do corpo e do espírito,
retornando ao mesmo estado de pré-nascimento. E da mesma forma, tudo
que existe no universo.
Daí a completa inutilidade da religião, que apenas induziria o homem ao
temor e à superstição, o que significa conduzir ao afastamento da verdade,
ao erro; pois se a causa dos fenômenos naturais independe de qualquer enti-
dade metafisica, a crença nos deuses não tem utilidade alguma para auxiliar
os indivíduos em sua luta pela manutenção da existência. E também está aí a
certeza de que o mundo que conhecemos está fadado a desaparecer, destruí-
do por esse movimento incessante dos átomos, que tendem a se degenerar.
Encontramos aqui um primeiro ponto de sustentação da ética epicurista.
Se a vida se reduz ao que conhecemos durante nossa permanência no mun-
do, se após a morte nada subsiste a lém de átomos, o sentido da vida não
pode estar senão na existência material.
Lucrécio não chega a dizer que não há uma causa última no universo; o
que ele recusa é a possibilidade de existir uma causa final para a humanida-
de.
Ele assim se expressa sobre o assunto:

Imaginar que o interesse dos mortais guiou os deuses na criação do mundo,


ao que parece, é desviar-se para bem longe da verdade. Eu, mesmo que igno-
rasse quais são os princípios das coisas, ousaria contudo, pelo simples estudo
dos fenômenos celestes e sobre outros fatos ainda, sustentar e demonstrar
que o mundo não foi feito em absoluto para nós por urna vontade divina:
tanto se apresenta corrompido por defeitos. 5

Nesse trecho, Lucrécio nos dá o exemplo da via pela qual podemos co-
nhecer verdadeiramente as coisas: a observação escorada pelo intelecto e
pela doutrina epicurista. E para explicar o surgimento do universo, Lucrécio
oferece a noção de acaso.
Quanto à questão da liberdade em Lucrécio, ela está atrelada a uma
identificação entre acaso e necessidade. Conforme a explicação lucreciana, a

5 "Quorum ominia causa constituísse deos cum fingunt, ominibu rebus magno opere
a uera lapsi ratione uidentur. Nam quarnuis rerum ignorem primordia quae sint, hoc
tamem ex isis caeli/rationibus ausim confirmare, aliisque ex rebus reddere multis,
nequaquam nobis diuinitus esse creatam naturam mundi: tanta stat praedita culpa."
Lucrécio, De Rerum Natura. Livro ll, versos 174-181. Cf. bibliografia.
"De Rerum Natura ": Observações sobre a moral epicurista 215

forma pela qual acontecem os movimentos dos átomos explica também os


movimentos de todos os corpos. O poeta explica que se os átomos não se
desviassem 6 ligeiramente em sua trajetória ao cair, não se dariam os choques
que produzem tudo que existe no universo; conseqüentemente, trata-se de
um movimento necessário para explicar a existência do mundo e de tudo que
há nele.
No entanto, Lucrécio afirma que esse movimento é fruto do acaso, esta-
belecendo essa identidade entre o que é aleatório e imprevisível e aquilo que
não pode ser de outra forma, ou seja, há uma necessidade de que as coisas
aconteçam na natureza por acaso.
É sabido que, ao contrário de outras escolas filosóficas, os epicuristas
desprezavam o conhecimento que não apresentasse utilidade prática; sabe-se
inclusive que o próprio Epicuro não considerava ser necessário o aprendiza-
do da matemática e da geometria se isto não resultasse em algo útil para o
individuo solucionar seus problemas de sobrevivência e bem-estar. A pura
especulação sem finalidade prática era desaconselhada pelo epicurismo. Lu-
crécio parece, então, desejar reabilitar os conhecimentos de física, atribuin-
do-lhes uma utilidade: dissipar os terrores religiosos e o medo da morte7 e
fortalecer o homem moralmente perante as agruras da existência material.
Distinguir a verdadeira causa dos fenômenos, compreendendo que nada é
eterno, além dos átomos que compõem os corpos, e aceitar serenamente a
existência material, buscando evitar a dor e alcançar a paz espiritual, eis a
relação proposta por Lucrécio entre a física e a ética, que é marcadamente
~povecnÇ (phronesis), norma prática e prudencial para a vida humana.
Parece que o mais interessante a observar nessa teoria é a associação, ou
até mesmo a correspondência entre a Qoção de acaso e necessidade; o nexo
entre causa e conseqllência é necessariamente causal; cabe aqui um parênte-
ses para uma rápida lembrança sobre o que dirá Hume acerca do problema
da relação causa e efeito: "É o costume e não outra coisa que leva os animais
a inferir, de cada objeto que lhes impressiona os sentidos, seu acompanhante
usual, e conduz sua ímâginação, pelo aspecto de um deles, a conceber o ou-
tro dessa maneira particular que denominamos crençd' (grifo do autor). 8

6 O chamado clinãmen, ou "declinação", que os átomos sofreriam em seu movi-


mento no éter e que os levaria a se agregarem ..
7 Para Lucrécio, o temor da morte era um dos principais motivos que conduzia à
agitação das paixões e da ambição, como forma de afirmar a vida face à ignorância
das verdadeiras causas do universo.
8 Hume, O. Investigação sobre o Entendimento Humano. Seção IX, parágrafo 84.
Cf bibliografia.
216 Rita de Cássia Lana

Também cumpre lembrar que justamente essa noção de desvio ou decli-


nação é o aspecto mais criticado da teoria Jucreciana, pois, de outra maneira,
não haveria como explicar o surgimento do universo.
Mas apesar dessas estreitas conexões entre a fisica e a ética, em alguns
pontos de seu texto, o poeta deixou de explorar as conseqüências de suas
proposições até o fim; o exemplo que utilizaremos aqui é o de como (na opi-
nião de Lucrécio), nossos sentidos apreendem os fenômenos, e dos possíveis
enganos a que estamos sujeitos por causa dessa maneira de perceber o mun-
do e seus acontecimentos.
Lucrécio fala-nos a respeito dos simulacros (&tôoÃ.ov I eidolon), os quais
se desprendem dos corpos e impressionam nossos sentidos; e explica como
podem se chocar diferentes simulacros ou imagens, como surgem as ilusões
de óptica, etc. No entanto, para ele, os sentidos não se enganavam; o erro era
cometido pelo espírito9; não se podendo atribuír aos olhos, por exemplo, o
erro cometido pelo intelecto. Essa afirmação abre uma lacuna na teoria do
conhecimento lucreciana, para que os céticos critiquem sua explicação do
mundo e dos fenômenos, pois se não há segurança na percepção advinda dos
sentidos, nada se pode conhecer com certeza absoluta, o conhecimento não é
algo passível de demonstração cabal.
A isto Lucrécio respondia que se o cético dizia nada saber, então nem
isso ele poderia afirmar, ou seja, se podia ou não saber, uma vez que afirma-
va nada saber. 10 Esta questão sobre a possibilidade do conhecimento confiá-
vel evoluiu desde então, e vamos encontrá-la no coração da filosofia empi-
rista de Hume, que é nosso próximo ponto de análise neste trabalho.

2. Empirismo, ceticismo e ética

Séculos mais tarde, David Hume fará sua apreciação das teses epicuristas; e
embora tenha recuperado e ampliado o papel da utilidade para a moral, sua
fundamentação é bastante diferente daquela de Lucrécio.
Para Hume, o conhecimento pelos sentidos não é responsável pela produ-
ção de conhecimento confiável e livre de enganos. A experiência, para ele,
não implicava na produção de exatidão ao conhecer, nem de um saber que
pretenderia atingír o status de episteme. Segundo o autor,

Parece evidente que, se todas as cenas da natureza fossem constantemente


mudadas, de tal modo que não houvesse dois acontecimentos semelhantes

9 Lucrécio. op. cit. Livro IV, versos 380-386.


I O Vide os versos citados na nota anterior, e também os versos 470-477.
''De Rerum Natura": Observações sobre a moral epicurista 217

um ao outro, mas cada objeto fosse inteiramente novo, sem nenhuma pare-
cença com o que quer que eu ti vesse visto antes, nunca chegaríamos a con-
ceber a menor idéia de necessidade ou de uma conexão entre esses obje-
tos. li

Certamente, se Hume desprezou a física e a canomca de Lucrécio, o


mesmo não fez com os ensinamentos éticos dos epicuristas.
Apesar de escrito um ensaio chamado "O Epicurista" 12, além de outros
ensaios que se referem a doutrinas de escolas filosóficas greco-latinas, Hume
é mais explícito sobre sua adesão à utilidade como critério moral em outra
obra 13, " Uma investigação sobre os princípios da moral."
A grande divergência entre Hume e modelos explicativos como o de Epi-
curo está colocada no terreno da fundamentação do conhecimento; para
Hume, o campo da ética e a matéria moral não constituem objeto de escrutí-
nio para o entendimento racional. Em seus "Ensaios Morais, Políticos e Li-
terários", ele diz: "Os princípios morais não estão no mesmo caso que os
princípios especulativos de qualquer espécie" (p. 326, Do Padrão do Gos-
to) 14 e completa: "A Moral e a Crítica são, propriamente, menos objetos de
entendimento que de gosto e sentimento."ll
De fato, ele se aplica a demonstrar por que razão não tem como levar a
cabo a tarefa de buscar o melhoramento ético do homem ou fundamentar
essa busca. A moral é matéria de sentimento e gosto, como ele já diz ao final
da Investigação sobre o Entendimento Humano. 16
Hume coloca sua investigação sobre a moral no campo do empírico; é
observando o comportamento dos homens, comparando os casos particulares
e extraindo a partir disso regras gerais, que obteremos algum sucesso em
produzir conhecimento no campo da ética. Ainda que na opinião do autor
haja pouco mérito em se buscar princípios universais para a ética; como ele
mesmo diz: "é inegavelmente muito pequeno o mérito de estabelecer em
ética autênticos preceitos gerais. Quem recomenda quaisquer virtudes morais
na realidade não faz mais do que o que está implicado nos próprios ter-

li Hume, O. Opus cit. , pág. 166, seção Vlll, parágrafo 64.


l2 Cf bibliogra1ia ao final deste trabalho.
!3 E cita muito vários epicuristas como exemplo. Vide a re ferência bibliográfica
completa no final deste trabalho.
14 Humc. O. Cf bibliografia
15 Hume, David. Investigação sobre o Entendimento i lwnano. p. 202.
16 Idem. p. 202.
218 Rita de Cássia Lana

mos.'' 17
Deve-se notar que esse conhecimento possui o estatuto de convicção, de
verossimilhança; ou seja; acreditamos que é assim, mas não possuímos ma-
neira de provar cabalmente. É bem conhecida a forma como Hume critica o
princípio de indução e abala o edificio do conhecimento.
Aqui aparece de forma explícita a divergência entre a teoria do conheci-
mento de Hume e as teses de Lucrécio, pois se para o último a identificação
de acaso e necessidade eram condição sine qua non para o funcionamento da
física epicurista, para o primeiro, nada garante sequer que possamos de-
monstrar a existência de causas efetivas. Assim diz Hume:

... nossa idéia de necessidade e causação provém inteiramente da uniformi-


dade que se pode observar nas operações da natureza, onde objetos seme-
lhantes aparecem constantemente juntos e o intelecto é levado pelo costume
a inferir um deles do aparecimento do outro. Nestas duas circunstâncias con-
siste toda aquela necessidade que atribuímos à matéria. Além da conjunção
constante de objetos similares e da conseqüente inferência de um a outro,
não temos a menor noção de qualquer necessidade ou conexão. 18

Sua argumentação contra a maneira indutiva de tentar alcançar a verda-


de última sobre as coisas foi tão devastadora que acabou por conduzir o pró-
prio autor a uma busca de condições para sustentar satisfatoriamente as teses
morais que defendia.
Não se deve desprezar, portanto, a própria contemporização que Hume
faz:

E, contudo, devo confessar que esta enumeração coloca o assunto em uma


perspectiva tão iluminadora que não posso, presentemente, estar mais seguro
de qualquer verdade à qual chego pelo raciocínio e pela argumentação do que
o estou sobre o fato de que o mérito pessoal consiste inteiramente no caráter
útil ou agradável das qualidades, seja para a pessoa que as possui, seja para
os outros que têm algum relacionamento com ela. Mas quando reflito que,
embora se tenha medido e delineado o tamanho e a forma da Terra, explica-
do os movimentos das marés, submetido a ordem e a organização dos corpos
celestiais a leis que lhe são peculiares, e reduzido o próprio infinito a um
cálculo, ainda persistem as disputas entre os homens relativas ao fundamento
de seus deveres morais; quando considero isto, eu dizia, volto a cair na des-

17 l·lume, D. Ensaios Morais, Políticos e Literários. p. 318.


18 Hume, D. Opus cit. , p. 166, seção VUI, parágrafo 64. Grifo do autor.
"De Rerum Natura ": Observações sobre a moral epicurista 219

confiança e no ceticismo, e a suspeitar que, se fosse verdadeira esta hipótese


tão óbvia, ela teria jâ hâ muito tempo recebido o sufrágio e a aceitação unâ-
nimes da humanidade.t9

Tentando salvaguardar um mínimo racional para o campo da ética, pro-


põe que os sentimentos e o gosto sejam auxiliados pela razão para decidir
problemas morais; para tanto, Hume se reporta a diversos autores da anti-
gUidade clássica além de Lucrécio.

3. Conclusão

Na introdução deste trabalho, propusemos um resgate do percurso filosófico


sobre alguns conceitos próprios da corrente epicurista, e sobre como Hume
apropriou-se da noção de utilidade para critério moral, descartando com seu
empirismo e ceticismo a física e a canônica próprias de Epicuro e Lucrécio.
Portanto, em primeiro lugar, note-se que dados todos os avanços tecnoló-
gico-científicos contemporâneos, muito pouco da física e da canônica lucre-
dana resistem; já à época de Hume era assim, e hoje apenas os preceitos
éticos, em sua sabedoria prática é que sobrevivem, talvez porque respondam
a questões centrais para a humanidade.
Nesse sentido, não causa estranheza que tenha sido justamente a ética tão
fecunda; os avanços tecnológico-científicos que derrubaram as idéias de Epi-
curo e Lucrécio sobre como entender o universo foram incapazes de respon-
der a questões como: o que é viver bem? Qual é o sentido da existência hu-
mana? Quais são os deveres do homem?
Estas questões acompanham a humanidade deste tempos imemoriais e há
uma resposta positiva para elas em Lucrécio; podemos discordar da resposta,
mas não podemos negar que ela exista. Esta resposta é o epicurismo, con-
forme já foi descrito neste trabalho.
Em segundo lugar, quanto à fundamentação, o não-cognitivismo, em que
pesem todos os desdobramentos que possam advir dele, não tem nenhum
efeito mais devastador do que sobre a ética, pois se tudo é opinião (????) e
hábito em matéria de moral, mesmo a tentativa de socorro que Hum e intenta
não constitui base suficiente para sustentar uma ética utilitarista, ou qual-
quer outra ética que tenha pretensões de validade universal, pois a própria
possibilidade de um conhecimento confiável está em jogo, através da crítica
ao método indutivo.

19 Hume, D. Investigação sobre os Princípios da Moral. Seção XIX, Conclusão,


parte I, p. I 64.
220 Rita de Cássia Lana

O problema pode ser descrito da seguinte forma: se de premissas parti-


culares não se pode extrair conclusões universalizáveis, com pretensões de
certeza e racionalidade e, segundo o autor, a moral é matéria de hábito, pro-
duto da contínua observação de comportamentos particulares, como fica a
tentativa de fundamentar a ética através da razão, de lhe outorgar um esta-
tuto epistêmico? O critério de utilidade parec~ resultar muito frágil diante de
uma teoria do conhecimento nos moldes de Hume.
Mesmo tentativas contemporâneas de recuperar alguma validade racional
para o método indutivo, sejam elas conforme Carnap ou mesmo Rei-
chenbach, acabam transferindo o problema para outro patamar, sem obter
solução satisfatória, como bem apontou Popper; pois enquanto Reichenbach
propõe a racionalidade da indução como método de validação, Popper afir-
mará a inexistência de justificativa racional ou de qualquer função lógica
para o método indutivo, já que conforme sua teoria, o contexto da descoberta
possui um aspecto especulativo, tentativo, prescindindo da inferência induti-
va.
E q·uanto à justificação última, ela não existe com relação às hipóteses
científicas, já que o teste para falsear uma teoria apoia-se em regras lógicas
dedutivas.
Finalizando, o que parece ser oportuno questionar aqui é o quanto se
perde ou se ganha, em termos de confiabilidade para as teorias éticas, quan-
do nos deparamos com uma teoria moral more Hume (que se inscreve em
uma teoria do conhecimento em franca abertura para o ceticismo); abrir mão
da racionalidade como condição para fundamentar a moral, em favor de
sentimentos morais (a)racionais não representa uma abertura em direção ao
irracionalismo, por mais que se queira colocar o princípio de utilidade como
freio?
Aliás, caberia aqui uma pergunta: sem a pretensão de validade universal
ainda podemos falar em moral? E neste caso, ou seja, se admitirmos que
podemos, de onde vamos extrair obrigatoriedade para recomendar a ação ou
autoridade para penalizar os atos indevidos? O empirismo/naturalismo de
Hume não parece responder essas perguntas de modo consistente.

Referências bibliográficas

Barreto, J. A. 1993. Esmeraldo & Moreira, Rui V. O problema da indução:


o cisne negro existe. Fortaleza: Edição dos Autores.
Brun, Jean. 1987. O Epicurismo. Tradução portuguesa de Rui Pacheco. Lis-
"De Rerum Natura ": Observações sobre a moral epicurista 221

boa: Edição 70.


Conte, G. B. 1991. " lnsegnamenti per un lettore sublime: forma de testo e
forma de destinatário nel De Rerum Natura di Lucrezio." In Generi e
Lettori. Lucrezio, L 'Elegia D'Amore, L 'Enciclopedia di Plinio. Milano:
Amoldo Mondadori.
Duvernoy, J-F. 1993. O epicurismo e a sua tradição antiga. Rio de Janeiro:
Zahar.
Farrington, B. 1968. A doutrina de Epicuro. Rio de Janeiro: Zahar.
Femandez-Galliano, M. 1988. "Epicuro y su jardin." In Camps, V. (ed.)
História de la Ética - de los Gregos ai Renascimiento. Barcelona: Edito-
rial Crítica. 3 vols.
Flew, A. G. N. 1982. " Hume." In O'Connor, D. J. (comp.) História Crítica
de la Filosofia Occidental - Tomo V: E/ Empirismo Inglés. Barcelona:
Paidós.
Gentili, B. et ai. 1990. "Filosofia e' poesia didascalica': Letteratura scienti-
fica e tecnica." In Storia de/la Lelteratura Latina. Roma: Bari: Laterza.
Hirschberger, J. 1969. História da filosofia na antigüidade. Tradução de A.
Corrêa. São Paulo: Herder.
Hume, D. 1948. An enquiry concerning the principies ofmorals/Essay mo-
ral and política/. In Hume, David. Hume 's Moral and Política/ Philo-
sophz. New York: Hafuer Press.
- - . 1985. Ensaios morais, políticos e literários. In Coleção Os Pensado-
res. São Paulo: Abril Cultural.
- -. 1995. Uma investigação sobre os princípios da moral. Campinas:
Editora da Unicamp.
Lucrécio. 1984. De La Nature. Edição bilíngüe latim-francês com texto
compilado e estabelecido por Ernout, A. Paris: Societé d'Edition "Les
Belles Lettres". 2 vols.
- -. 1985. Da Natureza. Tradução de A. Silva. In Coleção Os Pensadores.
São Paulo: Abril Cultural.
- -. 194 1. Da Natureza. Tradução portuguesa de A. J. Leitão. São Paulo:
Edição Cultural.
Stegmüller, Wolfgang. 1977. A filosofia contemporânea. São Paulo:
EDUSP.
HEGEL E A CRÍTICA AO HISTORICISMO JUlúDICO

ALCINO EDUARDO BONELLA


Universidade Federal de Uberlândia

Neste trabalho, comentaremos alguns aspectos da crítica de Hegel à escola


histórica do direito e da noção de racionalidade ética em Hegel. Por um lado,
Hegel contesta o principal argumento do historicismo jurídico, segundo o
qual da mera gênese histórica de uma lei ou norma se possa extrair sua vali-
dade normativa. Por outro, Hegel elabora uma forma complexa de racionali-
dade ética, que inclui elementos históricos (assim como jurídicos e sociais).

1. A Filosofia do Direito de Hegel

A filosofia de Hegel, especialmente suas Linhas Fundamentais da Filosofia


do Direito 1, representou um grande esforço de compreensão do desenvolvi-
mento do Estado Moderno. Diferentemente do contratualismo e do libera-
lismo de sua época, Hegel operou com um registro conceitual e político mais
complexo, em que os dois pilares principais do pensamento político moderno
- a defesa da autonomia individual e a exigência de um estado de direito -
são analisados coletivamente e institucionalmente. A justificação racional
das instituições é encontrada na natureza social do envolvimento das pessoas
com instituições efetivas da vida política moderna. Para Hegel, os indivíduos
jogam um papel decisivo na determinação do conteúdo das leis, mas não de
forma imediata ou plebiscitária. Eles atuam mantendo ou modificando práti-
cas sociais vinculadas a sua liberdade. Neste sentido mais complexo, pode-
mos dizer que Hegel se insere na grande tradição política do liberalismo.
Hegel, ao buscar compreender o direito, não quis elaborar uma fi losofia
moral do dever, e não é este o sentido da sua filosofia normativa. Ele não

1
Hegel, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e
Ciência do estado em Compêndio. (Tradu.ção de Marcos Lutz Müller, em preparação
para publicação, Campinas, Unicamp, 1997). Citaremos "FD" e o parágrafo respec-
tivo. Quando citarmos somente a nota utilizaremos o número do parágrafo acompa-
nhado de "n" (por exemplo, ao citarmos a nota do parágrafo 258, usaremos FD 258
n). Quando nos reportarmos ao parágrafo e à nota, separaremos os dois com vírgula
(por exemplo, FD 258, n).

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analftica. Florianópolis: NEL, pp. 222-31.
Hegel e a crítica ao historicismo jurídico 223

moral do dever, e não é este o sentido da sua filosofia normativa. Ele não
acreditou que pudesse haver um direito natural auto-evidente, capaz de ser-
vir para resultados teóricos e práticos coerentes e convergentes. Ele não
acreditou que tivesse existido um contrato original de indivíduos naturais,
produzindo o Estado, como se a vida política fosse contingente e associativa.
Ele não aceitou que um critério de utilidade geral avaliasse bem a autonomia
humana realizada historicamente nas instituições modernas. Ele criticou a
abordagem do imperativo moral do tipo kantiano, um imperativo categórico
de universalização, incapaz de gerar qualquer dever concreto e substantivo.
Esses deveres são gerados pelos compromissos sociais e políticos que as
pessoas desenvolvem em uma dada comunidade histórica. As abordagens
liberais disponíveis (direito natural, contratualismo, utilitarismo, moral
kantiana), que poderiam fundar a exigência de liberdade do homem, são
abstratas, e são elas que precisam ser compreendidas pela cultura política
moderna, desenvolvida a partir das mudanças religiosas, políticas e intelec-
tuais na história européia. Por isso, Hegel pode ser visto como o fundador de
um tipo de argumento em filosofia política que hoje chamamos de
"comunitarista", e que tem no historicismo um ingrediente fundamental.
No debate atual em ética e filosofia política, o comunitarismo é uma
abordagem que prioriza a comunidade e a vida política, e critica como abs-
trato o individualismo liberal. Uma das críticas de um tipo de comunitaris-
mo a Rawls, por exemplo, é que o individuo liberal, sujeito principal de um
contrato social, é uma ficção metafisica e política. O indivíduo não existiria
fora das relações sociais e históricas que o engendram. A comunidade e seus
valores modelaria o caráter individual (Sandel, 1982). Nestes termos am-
plos, podemos considerar Hegel um dos fundadores do comunitarismo mo-
derno: ele se dedicou a renovar a filosofia clássica de Platão e Aristóteles
dentro da filosofia moderna, e sua ética é o exemplo mais cabal deste proje-
to, articulando uma compreensão e justificação coletiva da vida social e
política com a necessidade da individualidade livre e da crítica racional. Em
Hegel, não há indivíduo sem comunjdade, nem comunidade racional sem
indivíduo livre.
Ao destacar os aspectos históricos e sociais e valorizar a vida política
institucional e suas tradições, Hegel e os comunitaristas em geral estão su-
jeitos à crítica de convencionalismo. Uma formulação filosófica desta crítica
sustenta que a abordagem comunitarista, ao se opor ao liberalismo, se com-
prometeria com duas teses "organicistas": uma sustentando que o indivíduo
depende da sociedade em que vive, outra que, por causa daquela dependên-
cia, o indivíduo não poderia desenvolver uma identidade separada da do
grupo social a que pertence, nem criticar os padrões de avaliação do seu
224 Alcino E. Bonella

grupo social a que pertence, nem criticar os padrões de avaliação do seu


grupo com critérios não-sociais e pré-estatais. Claro está que, se o comunita-
rismo sustenta de fato a tese dois, ele estará comprometendo seu relativismo
(a noção de historicidade das normas) com alguma forma de convenciona-
lismo social (a noção de que é o grupo social o responsável último pelas leis
e exigências morais), um tipo de tradicionalismo.
Hegel defende, a seu modo, a tese um. Para ele, o indivíduo é um agente
social envolto por práticas institucionais da sua sociedade, formado no con-
texto de práticas inter-subjetivas que propiciam o material de sua cultura.
Mas dificilmente se pode dizer que ele defende a tese dois. Para Hegel, o
indivíduo não está enclausurado em sua cultura ou sociedade, nem lhe é
subserviente, se tal sociedade for racional. Assim como não há indivíduo
sem práticas sociais mais abrangentes, também não há prática social sem
agentes individuais que participam de algum modo da vida política. Um
modelo histórico da crítica de convencionalismo tradicional, endereçada a
Hegel, é a imagem, consolidada no século dezenove, de um Hegel aliado da
grande "Restauração Prussiana", um Hegel ideólogo do Estado autoritário.
Para muitos comentadores, tal crítica não se sustenta, nem historicamente,
nem filosoficamente.
Westphal (1995) sustenta que a estilização de um Hegel da Restauração
Prussiana, com um pensamento conservador e reacionário choca-se: a) com
o embate e ataque frontal de Hegel tanto com Von Haller, principal formu-
lador daquele movimento, como também com a escola histórica do direito,
defensora de um tipo clássico de organicismo jurídico2 ; b) com a defesa

2
Segundo 1-lirscheberger, 1967, a Escola Histórica do Direito é influenciada pelo
movimento Romântico (um amplo movimento filosófico e cultural que, reunindo
poetas e filósofos, exprime uma predileção pela dimensão mística e simbólica, criti-
cando o iluminismo racionalista europeu, especialmente, o francês). Entre os princi-
pais participantes do Romantismo, estão Novalis (1772-1801), Schelegel (1772-
1829) e Hõlderlin (1770-1843). Já na Filosofia do Direito do movimento romântico,
destacam-se Adam Müller (1779-1829) e Karl Ludwig von Haller ( 1768-1854). O
primeiro critica Adam Smith e a concepção utilitária de Estado (com sua Economia
Política liberal). Para Müller, o Estado deveria ser visto como um indivíduo que
abarca a todos os indivíduos, a lei estatal estaria manifesta na vida, valores morais e
princípios religiosos tradicionais da comunidade. Müller influenciou também a
Friedrich K. Savigny (1779-1861), defensor da idéia de formação ogânica do direito,
em oposição às correntes do direito natural. Von Haller também combateu a concep-
ção racionalista (contratualismo) de Estado. Este teria uma origem orgânica na tradi-
ção, advindo da célula primitiva da sociedade, a família. Hirscheberger diz que ele e
Schelling deram a orientação teórica para Friedrich Julius Stahl (1802-1862), o autor
Hegel e a crítica ao historicismo jurídico 225

hegeliana da relevância e necessidade dos códigos legais, principalmente,


em função dos d ireitos dos cidadãos e da liberdade3 ; c) com a associação de
Hegel ao movimento de reformas liberais da Prússia no início do século
dezenove, elaborando uma filosofia politica claramente, de cunho liberal e
reformista, pensa Westphal.
Para Westphal, Hegel é um teórico liberal e reformista que baseou sua
filosofia política na análise da liberdade humana. E é também um liberal
complexo, que compreende a autonomia individual somente dentro de um
contexto comunitário e político. De fato, da leitura atenta da FD, vemos que
Hegel sempre entendeu o Estado como parte de urna vida ética que garanti-
ria direitos e deveres para todos os integrantes da comunidade social e polí-
tica.
Ele, ao contrário de vários pensadores do século XIX e XX, quis com-
preender a eticidade da (e na) esfera política, e sempre vinculou a teoria do
Estado à reflexão sobre a liberdade. Neste sentido, sua abordagem retomou
aspectos relevantes das teorias do direito natural dos séculos XVII e XVITI,
reinterpretados criticamente. Por exemplo, Hegel sempre defendeu que ser
cidadão e obedecer ao Estado requeria uma ')ustificação racional".
Com a preocupação ética de compreender como a cultura moderna e o
Estado moderno desenvolvem-se, ampliando a liberdade subjetiva e efeti-
vando instituições vinculadas às conquistas de direitos fundamentais, Hegel
está formulando uma filosofia política normativa. Nas palavras de Rawls,
um ideal que oferece embasamento aos direitos constitucionais.
Hegel se opõe à escola histórica do direito, contestando seu principal
argumento, segundo a qual da gênese histórica de uma dada norma ou le i
poderíamos extrair sua validade positiva e sua legitimidade ética. Esse tipo
de argumento é muito comum mesmo em outras formas de historicismo.
Como há uma negação da possibilidade de conhecimento objetivo fora da
história, que seria sempre relativa e contingente, o que resta ao teórico seria

Schelling deram a orientação teórica para Friedrich Julius Stahl ( 1802-1862), o autor
do programa do velho conservadorismo de Frederico Guilherme TV. Cremos que a
identificação de Hegel com este tipo de abordagem (tradicionalista-organicista) pode
dever-se a sua concordância com a crítica romântica ao iluminismo. Mas para refor-
çar seu embate com esta corrente, basta comparar os titulos da principal obra de von
Haller (Restauração da Ciência do Estado) com a principal, sobre política e direito,
de Hegel (Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, ou Direito Natural e Ciên-
cia do Estado em compêndio).
3
Ou seja, Hegel se afasta de um tipo de positivismo jurídico, como será elaborado
mais tarde por Kelzen.
226 Alcino E. Bonel/a

a compreensão da gênese dos fatos e de sua interpretação.

2. Filosofia Normativa Complexa e Crítica ao Historicismo

Como Hegel entende seu próprio empreendimento de elaborar uma Filosofia


do Direito? Entre os vários aspectos importantes que uma resposta completa
implica, o aspecto normativo merece ser ressaltado. Seja porque a leitura
tradicional de Hegel não deu suficiente peso a esta dimensão, seja porque,
apesar do risco de deturparmos uma das principais intenções do autor,
aquela de evitar uma filosofia abstrata do dever, cremos que a Filosofia do
Direito de Hegel só pode ser bem compreendida se apreendemos seu ideal
normativo complexo.
Por aspecto normativo podemos compreender dois elementos: a presença
de uma forma de racionalidade ética, ou seja, uma forma de avaliação da
correção moral (nas palavras de Hegel, ética) das instituições e práticas
sociais, e a exigência de uma forma de justiça pública. Hegel não quer ape-
nas explicar os fatos sociais, ou esclarecer teoricamente uma disciplina filo-
sófica (a ética teórica). Sua compreensão do direito, da moral e da vida ética
é uma forma complexa de justificar os direitos do homem e defender certas
exigências jurídico-políticas do mundo moderno. Ele compreende, como
salienta Rawls, a tarefa da Filosofia Politica como uma tarefa prática de
reconciliação dos indivíduos com a racionalidade da tradição política em que
vivem.
Para Hegel, a expressão e justificação da liberdade como direito racional
é matéria de um suporte mútuo de considerações jurídicas, morais e éticas,
complexamente articuladas numa rede de instituições e práticas sociais, e
somente em tal conjunto institucional e social, o Estado Moderno, com sua
cultura moderna desenvolvida a partir da Reforma Protestante, da Revolução
Francesa e do Iluminismo, pode-se pensar e garantir adequadamente o Di-
reito em sentido amplo. Não o direito entendido como direito jurídico limi-
tado, "mas como abrangendo o ser-aí de todas as determinações da liber-
dade" (Enciclopédia, 486t.
Um Adendo5 muito significativo nos dá uma noção muito clara de como
Hegel entendia sua elaboração de uma Filosofia do Direito. Podemos dividir

4
Hegel, G. W. F. 1995. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio
(1830): vol. 3: A Filosofia do Espírito. (Trad. de Paulo Meneses) São Paulo: Loyola.
Citaremos E, seguido do parágrafo definido por Hegel.
5
Cf Hegel. Prefácios. Trad. Manuel J. C. Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacional, pp.
188-192.
Hegel e a crítica ao historicismo j urídico 227

o Adendo em três momentos. Primeiro, uma Filosofia do Direito começa


como estudo imediato das leis em um dado Estado. Para saber o que é o
direito, nos voltamos primeiro para o que é de direito legalmente. Mas, por
aprofundamento filosófico-jurídico, e este é o segundo momento, ela apreen-
de a distinção entre as leis naturais e as positivas. Enquanto as primeiras são
exatas e externas à vontade humana, as leis jurídicas não são absolutas e são
postas pelo homem. Depreende-se, então, que o solo do direito não é a natu-
reza, mas a liberdade. Esta separação entre natureza e "espírito" prepara o
terreno para a superação tanto do apelo "tradicionalista" aos costumes
quanto do apelo ''positivista" à jurisprudência.
Porém, o direito nasce do "espírito", ou seja, da liberdade; então não
teríamos um sólo muito inseguro, o arbítrio das opiniões e o bel-prazer de
cada um um, para o basearmos? Dizer que o solo é a liberdade não geraria
discórdia e conflito? Para Hegel, não. Nesta oposição entre natureza e liber-
dade, reside a necessidade de um outro aprofundamento: apreender e conhe-
cer o que é o direito fundamentalmente, considerar a racionalidade do di-
reito. Esta racionalidade é a "coisa" da ciência especulativa chamada Filo-
sofia do Direito, e a diferencia da jurisprudência, que pressupõe a lei positi-
va e sua autoridade. No Adendo, argumenta-se, e este é o seu terceiro mo-
mento, em favor de tal racionalidade como uma "necessidade da época" e
como uma "necessidade conceitual", uma manifestação do pensamento críti-
co. Vejamos.
Conhecer a racionalidade do direito é uma necessidade de todos os tem-
pos, mas a época atual (de Hegel) teria uma necessidade mais imediata.
Antes (hã uns 30 ou 40 anos), valia ainda o apelo à tradição (com a venera-
ção, temor e respeito que ela suscitava nas pessoas). Neste ambiente tradici-
onal em que as leis se baseiam no costume, a reflexão sobre o direito podia
ser histórica e jurisprudencial, ou seja, conhecer as condições históricas em
que nasciam as leis. Tais circunstâncias em si eram sem necessidade, e a
filosofia do direito era um tipo de particu Iaridade dos direitos.
Agora, sustenta-se no Adendo, ergueu-se o pensamento e um critério
superior de direito: temos de respeitar o homem porque ele é homem, e não
porque ele pertence a esta ou aquela comunidade, com algum "status cultu-
ral" definido. Numa nova época, novos princípios se erguem . Esta nova
época gera uma crise de justificação. Se os religiosos iam ao Corão e os
juristas à legislação, agora o tempo os ultrapassou.
A manifestação conceitual desta nova época considera o pensamento
como pertencente à natureza do direito. Pensar livremente é o que converte o
homem em homem. Apreendemos o direito pensando, ou seja, pensando
livremente sobre a liberdade. Um dos sentidos em que o solo do direito não
228 Alcino E. Bonella

fica preso ao arbítrio das opiniões e ao bel-prazer de cada um, está em con-
siderarmos a liberdade em suas manifestações institucionais. O verdadeiro
conceito do direito é a unidade do conceito da liberdade do homem em si
com a realização deste na existência, na realidade. "Quando nós então con-
sideramos a liberdade, não ficamos no conceito, mas passamos a sua realiza-
ção, passamos, portanto, à consideração da realização efetiva da liberdade,
ao mundo que o espírito edifica para si" (p. 192).
Esta forma de racionalidade ética fica mais ressaltada em outras passa-
gens em que Hegel critica a abordagem puramente histórica e puramente
jurídica, seja da lei, seja do Estado. Por exemplo, Hegel sustenta (FD, nota
do § 3) que o trabalho puramente histórico (a análise das circunstâncias que
originam a lei) e jurídico (a análise da coerência lógico-formal das leis entre
si) são investigações de valor e de interesse, mas ficam à margem da investi-
gação filosófica do direito. Hegel escreve que uma disposição jurídica pode
apresentar-se plenamente fundamentada e coerente com as circunstâncias
existentes e com as instituições jurídicas vigentes, como uma multidão de
disposições do Direito Privado Romano, e ser, no entanto, "em si e por si
injusta e irracional".
É desse modo que Hegel pode dizer que a escravidão é injusta, não para
esta ou aquela sociedade, mas em si e por si, assim como certos costumes de
mutilar e matar devedores ou de tornar as crianças propriedades absolutas de
seus pais. Mesmo que uma disposição jurídica seja justa e racional, mostrar
isso não equivale a mostrar como ela surgiu historicamente, as circunstânci-
as, os casos, as necessidades de seu estabelecimento. Isso nós usamos para
explicar ou mesmo conceber, mas não para justificar. Numa justificação
baseada exclusivamente na história ou na jurisprudência em sentido estrito,
escamoteia-se a questão da verdadeira justificação, ou seja, dos pressupostos
usados como parte de um argumento normativo, como as circunstâncias e as
leis. As circunstâncias podem já ter sido modificadas, ou podem sê-lo pela
ação humana, como as leis. Além disto, a resposta normativa a uma dada
circunstância pode não ser a única, nem a melhor.
Metodologicamente, está em questão a distinção entre pensar a gênese de
uma instituição, lei ou costume vigente, e pensar a validade disto. Porém,
Hegel não sustenta a possibilidade de uma forma simples e fácil de justificar
eticamente. E ele também se refere à verdadeira abordagem histórica, que
não considera a lei isolada e abstratamente, mas a compreende como ele-
mento condicionado de uma totalidade, correlacionada com outras determi-
nações do caráter de um povo e de uma época. Nisso adquirem sua significa-
ção c sua justificação (!). Ele também sustenta que seria um mal-entendido
opor o direito natural (reinterpretado por ele como direito racional à liberda-
Hegel e a crítica ao hisloricismo jurídico 229

de) ao direito positivo, como se estivessem necessariamente numa relação de


contraposição e conflito. Vimos antes que a reflexão sobre o direito começa
com as leis vigentes em cada Estado, e que a representação liberal abstrata é
insuficiente.
Repete-se um certo padrão do que podemos chamar de filosofia normati-
va complexa em Hegel: critérios abstratos (e Hegel defende a não oposição
entre direito natural ou filosófico e direito positivo criticando os que contra-
põe à lei "o sentimento do coração, a inclinação e o arbítrio") não podem
apreender bem a realidade político-jurídica existente historicamente, mas
isso não significa que não exjsta nenhum padrão de racionalidade ética, e
que a reflexão sobre o direito fique presa a algum tipo comum de relativis-
mo. Hegel combate o principal argumento da escola histórica do direito, que
também será o principal do positivismo jurídico posterior, a da origem histó-
rica relativa das leis como critério para a validade normativa delas.
lsso nos faz compreender melhor a defesa insistente que Hegel faz da
codificação das leis. A escola histórica do direito e von 1-Jaller menospreza-
vam essa necessidade porque ela romperia com a tradição "natural" dos
costumes jurídicos da comunidade. Ora, o positivismo jurídico posterior
também será defensor intransigente da necessidade de padrões codificados
para a aplicação do direito, e nisso parece Hegel pôr-se de acordo.
Mas as razões de Hegel são sobretudo éticas. Uma codificação das leis
garante o direito dos indivíduos saberem o conteúdo das normas que regu-
lamentam suas práticas, na linguagem de Hegel, passam a existir como
pensamento e, assim, serem conhecidas. "O que é em si o direito, está posto
(gesetzt) no seu ser-aí objetivo, isto é, determinado pelo pensamento para a
consciência, e conhecido como o que é direito e vale como tal, é a lei
(Gesetz); e o direito graças a essa determinação é direito positivo em geral"
(FD, 211).
Estes aspectos esclarecem o debate de Hegel com von Haller. Este último
seria o maior exemplo da omissão da racionalidade e da eliminação do pen-
samento na abordagem das leis e do Estado (FD, 258 n). Hegel lamenta que
ele destile seu ódio e mau humor azedo contra tudo que seja legislação e
direito formalmente codificados. Para Hegel, tal ódio é a porta de entrada
para o fanatismo e a hipocrisia das boas intenções. Enquanto Hegel valoriza
a codificação dos direitos e a garantia constitucional para o cidadão como
conquistas importantes do mundo moderno, von Haller tomaria posição pela
tese de que tais conquistas são favores dispensáveis dados pelas autoridades,
um tipo de presente dos poderosos (FD, 258 n).
Ao serem conhecidas, as leis codificadas garantem aos cidadãos que .eles
não serão lesados pelo abuso da autoridade pública (FD, 219 n), garantem
230 Alcino E. Bonel/a

realização do direito subjetivo ao processo e à publicidade da jurisprudência


(FD, 222, 224). Hegel, inaugurador de um tipo de aristotelismo ou comuni-
tarismo moderno, pode ser lido aqui como um defensor de uma ética de
direitos.
Vemos, então, como a Filosofia do Direito busca uma racionalidade ética
fundada na liberdade, e, neste sentido, além de normativa, pode ser dita
liberal, em sentido amplo de uma ética e filosofia política baseada na liber-
dade do homem. Mas a efetividade da liberdade no direito não pode ficar
presa ao arbítrio e ao bel-prazer de cada um, nem representar o direito como
posse e satisfação do instinto, sacrificando, em função disto, uma parte da
nossa liberdade. Neste sentido mais simples, trata-se da representação liberal
tradicional da liberdade como arbítrio individual, e do direito como restrição
e acomodação dos arbítrios que se inter-relacionam. "Deve-se abandonar
esta representação porque a liberdade, o espiritual, recebe o seu ser-aí por
intermédio do direito, e não deverá ser limitada pelo mesmo" (Prefácio, p.
192). Aqui Hegel pode ser dito um liberal complexo. Sua ética busca superar
o tradicionalismo e o ''positivismo jurídico" numa especulação histórico-
epocal e lógico-conceitual da liberdade do homem em suas instituições.
Segundo Wood (1995), uma dada ordem social somente conta como
ética, em Hegel, por causa de sua racionalidade. Um critério ético desta
racionalidade requer o reconhecimento da individualidade humana como um
valor. Por exemplo, a Grécia antiga, ainda que primeira forma de vida ética,
é menos desenvolvida que a modernidade européia, onde se expandiu a no-
ção de valor do direito individual de cada homem.
Wood reforça que a ética, para Hegel, não é, por um lado, uma reflexão
abstrata e fora da cultura de uma dada sociedade, nem é, por outro, a aceita-
ção de qualquer ordem existente somente por ser real. O ponto de vista ético
seria um tipo de auto-compreensão da ordem social e política efetiva, uma
reflexão crítica sobre a ordem existente, que, na sua origem histórica e no
desenvolvimento de valores culturais, forneceria o subsídio para uma forma
de compreensão racional. Assim, o ponto de vista ético se distinguiria do
ponto de vista social relativo de uma dada comunidade e também do ponto
de vista da moralidade abstrata.
O Estado, por exemplo, que conta para Hegel como a forma mais alta e
mais completa de realização da liberdade do indivíduo, não é qualquer Esta-
do existente, mas aquele que tem como característica distintiva o modo pelo
qual suas instituições integram e permitem a liberdade subjetiva, incluindo
certa arbitrariedade e auto-satisfação pessoal (cf. FD 124 n, 185 n, 206 n), a
santidade da consciência moral e religiosa (Cf FD 139), a universalidade da
personalidade (209, n) e garantias constitucionais (270).
Hegel e a crítica ao historicismo jurídico 231

Referências bibliográficas

Beiser, F. (ed.) 1995. The Cambridge Companion to Hegel. New York:


Cambridge Univ. Press.
Benson, P. 1994. " Rawls, Hegel and Personhood: A Reply to Sibyl Scbgwar-
zenbach". In Political Theory, August, 22(4): 491- 500.
Bonella, A. E. 1995. Moral deontológica e princípio de universalização.
Dissertação de Mestrado: Campinas: Unicamp.
Hegel, G. F. W. 1997. Linhas Fundamentais da Filosofia da Direito. Tradu-
ção não publicada de Marcos L. Müller, Campinas: Unicamp.
- -. 1995. Enciclopédia das Ciências Filosóficas (Vol. 3: A Filosofia do
Espírito). (Trad. De Paulo Meneses). São Paulo: Loyola.
- - . Prefácios. Lisboa, Imprensa Nacional, s/d.
Kant, I. 1980. Fundamentação da metafisica dos costumes. São Paulo: Abril
Cultural, col. Os Pensadores.
Rawls, J. 1995. A theory ofjustice. Cambr idge: Belknap Press.
- - . 1990. Justice as Fairness, a briefer restatement. Harvard University:
(Material didático não publicado).
- -. 1985. "Justice as Fairness: Political, not Metaphysical". In Philosophy
and Public Ajfairs, 14(3): 223- 51.
- -. 1993. Political Liberalism. New York: Columbia University Press.
Sandel, M. 1982. Liberalism and the limits of justice. Cambridge: Caro-
bridge University Press.
Schwarzenbacb, Sibyl A. 1991. ''Rawls, Hegel and Communitarianism". In
Political Theory, 19(4): 539- 71.
- - . 1994. "A Rejoinder to Peter Benson" . In Political Theory, 22(3): 501-
07.
Weil, E. 1985. Hegel et L 'État. Paris: Vrin.
Westphal, K. 1995. "The basic context and structure of Hegel's Philosophy
of Right", Beiser, F. The Cambridge Companion to Hegel. New York:
Cambridge Univ. Press.
Wood, A. W. "Hegel 's ethics". In Beiser, F. idem.
Wolff, R. P. 1977. Understanding Rawls. Princeton: Princeton University
Press.
0 PROBLEMA ONTOLÓGICO DA INTERSUBJETIVIDADE:
CONTRA O SOLIPSISMO SOCIAL

RENATO SCHAEFFER
Departamento de Filosofia da UFJF

Estou chamando aqui de "solipsismo social" aquele pressuposto amplamente


predominante, paradigmático mesmo, em disciplinas como a filosofia da
mente e a filosofia social, que aparece criticado nas seguintes palavras de
John Dewey, em Teoria da vida moral:

A idéia de que os indivíduos nascem separados e isolados, c são trazidos à


sociedade por meio de algum processo artificial, é puro mito. Os laços e liga-
ções sociais são tão naturais quanto os físicos. ( ...) É louvável a independên-
cia de caráter e julgamento. Mas é independência que não significa separa-
ção; é algo que se manifesta em relação aos outros. ( ...) o ser humano é
"individuo" por causa de suas relações com outros e de seus relacionamentos
para com estes. Caso contrário, é somente indivíduo como o é um pedaço de
pau, isto é, espacial e numericamente separado (p.253).

Solipsismo social é a própria "filosofia social do pedaço de pau." É pos-


sível, quero me perguntar, conciliar o "individualismo metodológico" com a
rejeição categórica do solipsismo social? Dito de outra forma: conciliar a
noção intuitiva de uma causalidade atrelada ao agente humano individual,
com a noção, nem tão intuitiva, de uma socialidade ontológica, de algum
modo intrínseca ao indivíduo, por detrás da comunicação, da participação
intersubjetiva? O que significará, ontologicamente - se rejeitamos a
"ontologia social do pedaço de pau" - dizer que a individualidade pessoal
depende das relações e relacionamentos sociais?
O sociólogo Norbert Elias ataca o mesmo problema em A sociedade dos
indivíduos:

A relação entre as pessoas é comumente imaginada como a que existe entre


as bolas de bilhar: elas se chocam e rolam em direções diferentes. Mas a in-
teração entre as pessoas e os "fenômenos reticulares" que elas produzem são
essencialmente diferentes das interações puramente somatórias das substân-
cias fisicas. Tomemos, por exemplo, uma forma relativamente simples de

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Ana/Itica. Florianópolis: NEL, pp. 232-47.
O Problema Ontológico da lntersubjetividade 233

relação humana, a conversa. ( ...) Se considerarmos não apenas as observa-


ções e contra-observações isoladas, mas o rumo tomado pela conversa como
um todo, a seqüência de idéias entremeadas, carreando uma às outras numa
interdependência contínua, estaremos lidando com um fenômeno que não
pode ser satisfatoriamente representado nem pelo modelo físico da ação e re-
ação das bolas nem pelo modelo fisiológico da relação entre estímulo e res-
posta (p. 29).

Continua Elias, pouco adiante:

Por mais certo que seja que cada pessoa é uma entidade completa em si
mesma, um indivíduo que se controla c que não poderá ser controlado ou re-
gulado por mais ninguém se ele próprio não o fizer, não menos certo é que
toda a estrutura de seu autocontrolc, consciente e inconsciente, constitui um
produto reticular formado numa interação contínua de relacionamentos com
outras pessoas, c que a forma individual do adulto é uma forma específica de
toda a sociedade. ( ...) Não existe um grau zero da vinculabilidade social do
indivíduo, um "começo" ou ruptura nítida em que ele ingressa na sociedade
como que vindo de fora ... (p.3 1).

Infelizmente, todavia, em momento algum é abordada pelo autor a ques-


tão propriamente ontológica da socialidade radical intrínseca à intersubjeti-
vidade, como fundamento para rejeitarmos uma ''filosofia social de bolas de
bilhar." Elias escreve ainda o seguinte:

Poderíamos indagar como e por que a estrutura da rede humana e a estrutura


do indivíduo se modificam ao mesmo tempo de uma certa maneira. como na
transição da sociedade guerreira para a sociedade nobiliárquica, ou desta
para a sociedade trabalhadora de classe média, quando os desejos dos indiví-
duos, sua estrutura instintiva e de pensamento, c até o tipo de individualida-
des, também se modificam. Então se constata - ao se adotar um ponto de
vista dinâmico mais amplo, em vez de uma concepção estática - que a visão
de um muro intransponível entre um ser humano c todos os demais, entre os
mundos interno e externo, evapora-se c é substituída pela visão de um en-
trelaçamento incessante e irredutível de seres individuais, na qual tudo o que
confere a sua substância animal a qualidade de seres humanos, principal-
mente seu autocontrole psíquico e seu caráter individual, assume a forma que
lhe é específica dentro e através de relações com os outros (p. 34-35).

Mas, infelizmente, repito, nada nos é esclarecido acerca das condições


ontológicas de possibilidade de um tal "entrelaçamento incessante e irreduti-
234 Renato Schaeffer

vel" das pessoas numa estrutura social essencialmente reticular. Para que o
referido " ponto de vista dinâmico mais amplo" fosse esclarecedor, teríamos
que saber como a estrutura motivacional-temporal da ação humana é deter-
minada por uma socialidade imanente.
A questão que estou colocando - a da explicação da socialidade da inter-
subjetividade enquanto fenômeno real, causalmente produtivo, motor do
cotidiano e da história - não é sequer tocada, nem de leve, pelo conceito de
"subjetividade coletiva", conforme recentemente defendido pelo sociológo
José Maurício Domingues, no artigo "Sistemas sociais e subjetividade coleti-
va." Domingues pretende ultrapassar a exclusividade do sujeito individual
autoconsciente na causação social, questionar sua "primazia ontológica" (26,
n. 10). Para superar as limitações teóricas da tradicional bipolaridade
"indivíduo" e "sociedade" - atrelada a esta outra, "ação" e "estrutura" (5, 6)
-, ele propõe um "modelo causal" onde as noções básicas são o ''nível de
centramento" (da subjetividade coletiva) e o "nível de intencionalidade cole-
tiva" (20, 2 1). São suas palavras: "A teoria da subjetividade coletiva propõe-
se como uma nova abordagem geral do tema dos sistemas sociais, a qual não
os reifica ..." (p. 25). Confesso que sou incapaz de ver como é possível reti-
rar a "primazia ontológica" do indivíduo sem, de alguma forma, ''reificar os
sistemas sociais." A única hipótese alternativa viável seria, no meu entender,
supor algum tipo de canal de comunicação intersubjetiva ontologicamente
efetivo, capaz de permitir a interpenetração ontológica do agente individual
por conteúdos essencialmente sociais. Apenas uma tal hipótese poderia jus-
tificar o que diz Dewey, em "O público e seus problemas": "vontades, esco-
lhas e propósitos têm seu locus em seres singulares," embora o conteúdo
intencional não seja "algo puramente pessoal" (p. 330).
John Searle, no artigo ''Intenções e ações coletivas", apresenta um inte-
ressante encaminhamento para nosso problema, ao defender que o conteúdo
da intencionalidade individual de um agente engajado numa ação humana
conjunta possui um componente intrínseco irredutivelmente coletivo. Isto é:
a intencionalidade mental do indivíduo é já também, de modo intrínseco,
uma intenção coletiva (que ele também chama de "we-intention"). O que
quer isso dizer? Tomemos dois sujeitos A e B, empenhados na ação coletiva
de compor uma canção, A sendo o letrista e B o compositor. Se em determi-
nado momento tivéssemos apenas os conteúdos intencionais INTENÇÃO-A
(escrever um verso) e INTENÇÃO-B (compor uma frase musical), onde
estaria afmal a intenção coletiva propriamente dita, intrínseca a cada agente
-no caso, a intenção de compor uma canção? Como distinguir, empregando
essas fórmulas para INTENÇÃO-A e INTENÇÃO-B, o caso em questão de
um outro, em que simplesmente o poeta A estivesse fuzendo um verso e o
O Problema Ontológico da lntersubjetividade 235

músico B uma melodia, sem qualquer intenção de compor uma canção em


cooperação? Por outro lado, não parece correto descrever as intenções indi-
viduais direta e simplesmente como intenções coletivas: afinal, independen-
temente da efetividade motivacional do conteúdo da intencionalidade coope-
rativa, a intenção de escrever os versos não deixa de ser uma intenção indi-
vidual por excelência, dependente de um cérebro particular com seus neurô-
nios.
A estrutura proposta por Searle para o conteúdo da intencionalidade
cooperativa pode ser sintetizada pela seguinte fórmula, inteiramente geral:
MINHA INTENÇÃO COLETIVA X POR MEIO DE MINHA INTENÇÃO
INDIVIDUAL Y (em contraste com MlNHA INTENÇÃO INDIVIDUAL X,
numa ação individual não-social). Voltando a nosso exemplo: haveria nas
mentes individuais do letrista e do compositor intenções com as seguintes
formas, respectivamente: MINHA INTENÇÃO COLETIVA DE FAZER
UMA CANÇÃO POR MEIO DE MINHA INTENÇÃO INDIVIDUAL DE
FAZER UMA LETRA e MINHA INTENÇÃO COLETIVA DE FAZER
UMA CANÇÃO POR MEIO DE MINHA INTENÇÃO INDIVIDUAL DE
FAZER UMA :MELODIA. Searle argumenta como segue:

Por que tantos filósofos estão convencidos de que a intencionalidade coletiva


deve ser redutível à intencionalidade individual? Por que eles não estão dis-
postos a reconhecer a intencionalidade coletiva como um fenômeno primiti-
vo? Creio que a razão é que eles aceitam um argumento que parece atraente,
mas é falacioso. O argumento é que, como toda intencionalidade existe nas
cabeças de seres humanos individuais, a forma dessa intencionalidade só
pode fàzer referência aos indivíduos em cujas cabeças ela existe. Assim, pa-
rece que qualquer um que reconheça a intencionalidade coletiva como uma
forma primitiva de vida mental deve estar comprometido com a idéia de que
há algum espírito mundial hegeliano, uma consciência coletiva, ou algo
igualmente implausível. Os requisitos do individualismo metodológico pare-
cem nos forçar a reduzir a intencionalidade coletiva à individual. Parece, em
resumo, que temos que escolher entre o reducionismo, de um lado, ou uma
supermente flutuando sobre as mentes individuais, de outro. Quero afirmar,
pelo contrário, que o argumento contém urna falácia e que o dilema é falso. É
de fato verdade que toda minha vida mental está dentro do meu cérebro, e
toda sua vida mental está dentro do seu cérebro, e assim por diante para todo
o mundo. Mas daí não se segue que toda minha vida mental deva ser expres-
sa na forma de um pronome referindo-se a mim.(...) A intencionalidade
[coletiva] que existe em cada cabeça individual tem a forma "nós intencio-
namos." (p. 25-26).
236 Renato Schaeffer

Do ponto de vista ontológico, porém, a posição de Searle me parece in-


teiramente problemática. Ele pretende conciliar um "senso pré-in tencional
acerca 'do outro"' como um parceiro "atual ou potencial" (p. 413) mais do
que como mero agente consciente, por um lado, com sua noção de
Background biológico intracerebral, por outro. Dito de outra forma: o que
atualiza, quando se dá a ação co1etiva, o senso pré-intenciona l do outro
como meu parceiro potencial, tornando-o meu parceiro atual, efetivo, parece
ser uma representação dele dentro de meu cérebro, e não sua presença em
carne e osso à minha frente. Pasmem, meu parceiro na ação cooperativa é,
do ponto de vista epistemológico, não mais que uma minúscula imagem
psiconeurocortical!
O modelo de Searle tem, contudo, o mérito de apontar para o que há de
especificamente humano na ação coletiva - em contraste com os conhecidos
fenômenos de contágio afetivo, comuns em multidões, mas ocorrendo tam-
bém entre poucas pessoas (mesmo entre os animais superiores há algo como
o contágio afetivo). Pois a ação coletiva situa-se no âmbito da vontade en-
quanto tal. Em Psicologia da sociedade, Morris Ginsberg considera os três
níveis de comportamento: instinto, desejo e vontade como estruturas cogniti-
vo-afetivas de complexidade ascendente. Assim, enquanto que, para o ins-
tinto, o objeto é uma presença sensorial imediata e "há um sentimento que
mantém a cadeia de atos", para o desejo há já " idéias livres", ligadas a pas-
sado e futuro, à recordação e à previsão de situações, e emoções devidas à
"lacuna entre o impulso e sua realização." A vontade, cuja "estrutura cogni-
tiva é a da comparação analftica, dos conceitos e dos princípios gerais" e
cuja estrutura afetiva é a dos sentimentos, envolve " a ação do eu como uma
identidade permanente, tendo continuidade e identidade, dotada de capaci-
dade de formar ou aceitar as regras gerais de ação" (p. I0). De acordo com
esse quadro, apenas a estrutura complexa do eu capaz de vontade seria capaz
de abrigar uma intenção coletiva no âmago da própria intencionalidade
individual. Parece sensato, então, considerar justamente tal estrutura do eu
como reduto ontológico da socialidade enquanto possibilidade das relações
intersubjetivas reais. Tal socialidade ontológica responderia não só pela
capacidade de formular intenções coletivas, mas pela própria capacidade que
tem o eu de viver na esfera do pensamento.
A obra de George Herbert Mead é o locus clássico da investigação gené-
tica da relação entre pensamento e intersubjetividade. Em Mente, se/f e
sociedade, Mead apresenta o conhecido modelo segundo o qual a existência
da personalidade e do pensamento têm como condição de possibilidade a
internalização por parte do sujeito social do que este autor chama de " outro
generalizado" - as expectativas e a imagem que os demais membros da
O Problema Ontológico da lntersubjetividade 237

sociedade têm do indivíduo. A estabilidade estrutural da personalidade de-


pende de um processo dialético de auto-organização entre as tendências
expressivas centrífugas naturais do individuo e os conteúdos provenientes da
precipitação centrípeta da humanidade dentro da sua subjetividade. Diz
Mead que deve a linguagem ser concebida segundo um " behaviorismo soci-
al", isto é, "não do ponto de vista de significados internos a serem expressos,
mas em seu contexto mais largo de cooperação no grupo" (p. 6). Opõe-se ao
modelo da comunicação do "prisioneiro na cela", que se dirige a outro prisi-
oneiro em situação semelhante através de pancadas na parede: " cada um de
nós, nessa visão, está confinado na cela de sua própria consciência, e saben-
do que há outras pessoas assim confinadas" (p. 6 nota 6). Mead distingue a
auto-consciência da mera vida consciente subjetiva; é apenas em conexão
com a objetividade essencialmente social da auto-consciência que surge a
possibilidade de compartilhamento do significado simbólico abstrato, lin-
güístico. Ele defende que é "desempenhando o papel" do adulto - isto é,
despertando nela própria a mesma resposta expressiva que sua ação lingüís-
tica desperta no adulto - que a criança gradativamente passa da mera comu-
nicação afetivo-expressiva para a linguagem plenamente s imbólica.
Mas nada é explicado por Mead acerca da ontologia do encontro inter-
subjetivo criança-adulto que permite a introjeção do "outro generalizado" na
subjetividade - e o surgimento da auto-consciência através da conversação
objetiva com a humanidade assim intemalizada no indivíduo social. Mais
recentemente, Vincent M. Colapietro, em A abordagem de Peirce ao se/f
uma perspectiva semiótica da subjetividade humana, detalhou o processo de
conversação interna da auto-consciência em termos da equiparação das tría-
des eu-mim-você e signo-objeto-interpretante. O eu, ou self-presente, é si-
gno, ou seja, fala do objeto que é o mim, ou self-passado, para o interpre-
tante você, ou self-futuro. Aquil, é correto dizer que a auto-consciência só é
"constituída" pela linguagem em sentido fraco, isto é, no sentido de se ex-
pressar essencialmente pela conversação simbólica interior, mas não em
sentido forte, já que tal possibilidade, por sua vez, reside na estrutura onto-
lógica de tipo essencialmente semiótico da própria organização mental.
Mead associa o " mim" ao "outro gener alizado"; empregando a distinção
lógica determinável-determinado, podemos dizer que tal "mim" é o determi-
nado a partir de um determináve l estrutural. A questão é: a introjeção do
"outro generalizado" - a passagem do determinável ao determinado - não
permite supor uma comunicação ontológica mais radical que a do solipsismo
social, isto é, do modelo da filosofia social do " pedaço de pau", ou das " bolas

I Conforme enfatizado por Norbert Wilcy, em O se/fsemiótico.


238 Renato Schaeffer

de bilhar", ou do "prisioneiro na cela"?


Em Psicologia das situações vitais, Eduardo Nicol escreve o seguinte:

Dizemos que o outro geral e o outro particular fazem parte da situação, não
porque sejam estranhos ao eu e o demarquem, como as águas do mar demar-
cam a terra de uma ilha que elas rodeiam por todos os lados como algo estra-
nho à terra. O sujeito não está rodeado pelo trans-subjetivo. O sujeito é pro-
priamente sujeito, ou está sujeito ao trans-subjetivo, porque o incorpora na
sua própria vida (p. 105).

É uma tal compreensão do trans-subjetivo como algo ontologicamente


sui generis que nos permite interpretar as seguintes duas afirmações de
Maurice Nédoncelle, em A reciprocidade das consciências: (1) que outrem,
conforme me é dado na experiência, não pode a rigor ser incluído sob o
conceito geral de ''não-eu", que abrange a mera alteridade perceptual do
objeto intencional do mundo natural (pp. 43-44); e (2) que a reciprocidade
transubjetiva só pode ser apreendida empiricamente sob a forma da relação
interpessoal diádica (p. 27), isto é, no encontro face a face. Nédoncelle in-
siste que a socialidade essencial à díade intersubjetiva, enquanto experiência
real, não pode jamais ser ampliada, estendida para englobar outros indivídu-
os: o ato social legítimo- isto é, real - é inapelavelmente diádico, eu-você.
Isso talvez não seja, empiricamente falando, inteiramente evidente ou indis-
cutível - como no caso em que um jogador de futebol disputa uma bola com
dois adversários simultaneamente. Talvez possamos dizer que o problema
ontológico da intersubjetividade apresenta, então, três aspectos ou níveis: (1)
o da relação do sujeito social com a socialidade abstrata do "outro generali-
zado; (2) o da ação coletiva concreta de diversos parceiros humanos; e (3) o
da relação existencial essencialmente diádica de um sujeito social com outro,
no encontro face a face.
Em Conhecimento e política, o filósofo político Roberto Mangabeira
Unger argumenta (mais ou menos à la Hegel) que o fenômeno social en-
quanto tal se baseia na existência, na natureza humana, de uma dimensão
universal - o se/f abstrato - e uma dimensão particular - o se/f concreto.
Este autor fala da

tendência de pensar no sujeito como um indivíduo, cuja participação em gru-


pos é um aspecto secundário de sua existência ( ...) Claramente, contudo, os
traços mais marcantes e pervasivos da vida social não podem ser explicados
como criações de indivíduos particulares. Enquanto insistirmos em ver o su-
jeito como um indivíduo isolado, os arranjos fundamentais da sociedade, seus
O Problema Ontológico da lntersubjetividade 239

modos de organizar a vida, a linguagem que seus membros falam e as cren-


ças morais ou políticas que eles adotam, tudo parecerá pertencer à ordem
natural das coisas. Serão conhecidos apenas como os fenômenos naturais são
conhecidos, e o entendimento do universal continuará a ser separado da per-
cepção do particular (p. 211 ).

Unger defende que a correta concepção da cultura como criação humana


realmente - e não apenas nominalmente - social depende de uma compreen-
são da personalidade como estrutura complexa que abriga a universalidade
de um self abstrato e o que ele chama de parcialidade de um self concreto.
"O animal é particular, mas não é parcial. Os homens podem ser parciais
apenas porque têm o traço da universalidade" (p. 223). O autor continua:

Todo homem é tanto um indivíduo particular, com um lugar definido no sis-


tema das relações sociais, quanto um exemplar da humanidade universal.
(...) nenhum homem está satisfeito até que possa conectar a particular posi-
ção que ocupa e o trabalho particular que produz com sua humanidade uni-
versal. Ele quer que sua vida, em suas limitações e em sua brevidade, seja
uma expressão e não um sacrifício da multiplicidade que ele partilha com a
humanidade (p. 222).

Parece lícito depreender que o problema ontológico da socialidade intrín-


seca do indivíduo passa necessariamente pela elucidação do sentido ontoló-
gico da imanência de uma humanidade universal no indivíduo particular.
Em certo sentido, temos aqui talvez apenas uma instância do clássico pro-
blema dos universais. Considero o realismo extremo perfeitamente defensá-
vel: uma lei da natureza, por exemplo, como insistia Peirce, embora não
exista no sentido em que um corpo existe, é no entanto perfeitamente real,
real como virtualidade, latência, potencialidade efetiva. Neste sentido, a
humanidade universal tampouco existe como o indivíduo existe, mas é real.
Essa "parcialidade" do indivíduo, devida à sua universalidade imanente,
essa incompletude ontológica na forma de abertura transubjetiva deve, além
disso, ser algo de certo modo empiricamente verificável, dado na experiência
cotidiana, não algo meramente concebido e postulado, nos moldes da velha
metafisica. E não é mais ou menos isso o que está por trás das seguintes
palavras do jurista Dalmo Dallari?

[O] uso e o gozo de todos os direitos fundamentais da pessoa humana ocorre


na convivência, ou seja, as pessoas não se isolam das outras no momento de
fazer uso de um direito, não sendo correto dizer, como é hábito, que os di-
240 Renato Schaejfer

reitos de um terminam onde começam os de outro. Os direitos, na prática,


estão sempre entrelaçados e muitos são gozados ao mesmo tempo e no mes-
mo lugar por pessoas diferentes. Assim, por exemplo, o direito de andar li-
vremente nas ruas cabe igualmente a todos e é exercido ao mesmo tempo por
muitas pessoas, como acontece, na realidade. com todos os outros direitos
fundamentais.

Ou seja, a experiência do direito, o meu e o dos outros - a experiência da


própria humanidade universal -, mais que mera concepção abstrata, é dada
numa situação vital, mundana. Como diz Cornelius Castoriadis, em A insti-
tuição imaginária da sociedade: quando falamos da práxis como "ação de
uma liberdade sobre outra liberdade" (p. 129), "[o] sujeito em questão não é
pois o momento abstrato da subjetividade filosófica, ele é o sujeito efetivo
totalmente penetrado pelo mundo e pelos outros" (p. 128). Enquanto possi-
velmente apenas na relação diádica por excelência a plena particularidade
do indivíduo me é dada, na ação coletiva em geral o que é experimentado é a
inter-humanidade universal - através da presença em carne e osso, é certo,
de meus parceiros humanos aqui e agora no mundo.
No que pode ser considerado uma elaboração da velha noção humeana da
relação intersubjetiva de simpatia, Raymond Ruyer, em Os alimentos psíqui-
cos: a política da felicidade, escreve que, além da nutrição fisiológica - "à
base de moléculas de proteína, de açúcar e de gordura" da nutrição simbóli-
ca, espiritual ou ideológica -"à base de idéias, supostamente verdadeiras," é
essencial ao ser humano a nutrição psíquica - "à base de sensações enrique-
cedoras, de espetáculos ( ...) de informações expressivas ... " (p. 10). São
pródigos de nutrientes psíquicos, nos diz Ruyer,

os jogos, os esportes, o camping, as viagens, a vida social enquanto que ela


traz ocasiões de contatos, de espetáculos, de manifestações do maravilhoso,
de comédias ou dramas, de luxos e catástrofes, a vista e o contato dos outros,
os terraços de cafés, as revistas com suas sensações, indiscrições, escândalos,
confidências, o rádio e a televisão ... (p.ll).

Perguntemo-nos, então: como entender o fenômeno da alimentação psí-


quica do ponto de vista ontológico? Não seria lícito igualar muito simples-
mente a carência psíquica do indivíduo humano pela expressividade existen-
cial encarnada do seu semelhante - tanto quanto a carência fisiológica por
moléculas de proteína, açúcar e gordura - a uma incompletude ontológica
essencial e natural? Não é essa mesma incompletude inter-humana que per-
mite à criança chegar finalmente à linguagem simbólica, quer dizer, chegar
O Problema Ontológico da lntersubjetividade 241

a desempenhar o papel do outro generalizado, como diz Mead, a partir de


encontros iniciais meramente afetivo-expressivos com o adulto? No meu
entender, a incompletude ontológica do individuo com relação à humanida-
de universal se mostra empiricamente, na criança, no impressionante grau
de permeabilidade afetivo-expressiva. Isso fica bem conceituado por Daniel
Stern, em O mundo interpessoal do bebê, com seu modelo de regulação
externa (por parte do cuidador) da auto-experiência do bebê de poucos meses
de idade: estados como os de excitação, afeto, segurança e apego podem
receber um feedback positivo ou negativo, em sua intensidade ou em sua
qualidade. O que atestaria, porém, de modo ainda mais notável a permeabi-
lidade do bebê ao inter-humano seria a confirmação da hipótese de Stem de
ser ''provável(... ) que as experiências de redução da fome e de outras regu-
lações do estado somático sejam experiências das principalmente como
transformações dramáticas no auto-estado que requerem a mediação física
de outrem" (p. 92).
É interessante supor que este caso - da alimentação psíquica - se situa de
certa forma entre a extrema particularidade da relação intersubjetiva face a
face eminentemente diádica e a participação na inter-humanidade universal.
Talvez seja mesmo o caso de propor a hipótese de que o relacionamento
humano apresenta sempre, empiricamente falando, uma determinada dosa-
gem, indefinidamente variável a cada caso, entre dois elementos categorial-
mente distintos - que eu chamaria de intersubjetividade e inter-humanidade.
O primeiro diria respeito ao nivel da permeabilidade ontológica que se tra-
duz nas interações que constituem o campo dos afetos positivos e negativos
dos fenômenos da simpatia; o segundo diria respeito ao nível da permeabili-
dade ontológica que precisa ser postulada, creio eu, para dar conta - de
modo eminentemente realista, isto é, não-nominalista- da validade objetiva
da comunicação lógico-lingüística. A flagrante separação entre os indivíduos
teria que ser concebida ontologicamente como uma mera "ponta do ice-
berg": além dos corpos físicos propriamente ditos- o que quer que seja um
corpo flSico - , o atributo da separatividade se aplicaria, então, também ape-
nas ao nível do psiquismo vital-somático (pois é sabido que não existe a
possibilidade de uma experiência de simpatia para com a "dor fisica" de
outrem enquanto tal, nos moldes da simpatia para com seu sofrimento psi-
cológico-existencial - não há comunicação experiencial da fome de uma
criança, por exemplo, por terrível que esta seja, mas há tal comunicação no
caso do sofrimento do pai ou mãe que não pode mitigar a fome do filho). 2
Parece inteiramente possível qualificar a partir deste modelo dual inter-

2 Cf o clássico Natureza e formas da simpatia, de Scheler.


242 Renato Schaeffer

subjetividade/inter-humanidade (com o adendo de separatividade do psi-


quismo vital) a aplicação que faz Peirce de seu "sinequismo" (a doutrina de
um radical continuísmo ontológico subjacente às interações fenomênicas) à
socialidade humana. Diz o pai da semiótica e do pragmatismo:

Mas estamos confinados numa caixa. de carne e sangue? Quando comunico


meu pensamento e meus sentimentos a um amigo com o qual estou em plena
simpatia, de modo que meus sentimentos passam para dentro dele e eu estou
consciente do que ele sente, não estou eu vivendo em seu cérebro tanto
quanto em meu próprio- bem literalmente? Em verdade, minha vida animal
lá não está; mas minha alma, meu. sentimento, pensamento, atenção es-
tão...(p. 7.591)
(...) seus vizinhos são, em certa medida, você, e numa medida bem maior
do que, sem estudos profundos em psicologia, você poderia crer.(...) todos os
homens que se assemelham a você e estão em circunstâncias análogas são,
em certa medida, você, embora não exatamente do mesmo modo em que seus
vizinhos são você (p.7.571).

Assim, insisto em que faz todo o sentido abraçar a hipótese segundo a


qual o "substrato" da experiência social empírica, em geral, é como que uma
combinação de dois ingredientes ontológicos apenas idealmente distintos - o
pólo mais particular da intersubjetividade, de um lado, e o pólo mais univer-
sal da inter-humanidade, de outro. É interessante especular, ainda, que, a
rigor, a esfera da inter-humanidade possui um raio tão grande quanto se
queira. É nesse sentido que eu interpretaria o que o grande compositor Stra-
vinsky declara a respeito da tradição musical:

O artista impõe uma cultura a si mesmo e acaba impondo-a aos outros. É as-
sim que a tradição se estabelece. A tradição é inteiramente distinta do hábi-
to, mesmo de um excelente hábito, já que o hábito é por definição uma aqui-
sição inconsciente, e tende a tomar-se mecânica, ao passo que a tradição re-
sulta de uma aceitação consciente e deliberada. A tradição autêntica não é a
relíquia de um passado irremediavelmente transcorrido; é uma força viva que
anima e condiciona o presente. Nesse sentido, o paradoxo segundo o qual
tudo o que não é tradição é plágio tem sua razão de ser... (...) Esse senso de
tradição, que é uma necessidade natural, não deve ser confundido com o de-
sejo plausível do compositor de afirmar o parentesco que sente, através dos
séculos, com algum mestre do passado (pp. 58-59).

Isto é: sou inclinado a considerar segundo o mais estrito não-


nominalismo a realidade, em termos da noção de inter-humanidade, dos
O Problema Ontológico da lntersubjetividade 243

liames atemporais - e contudo efetivos! - da tradição musical, no sentido


descrito por Stravinsky - que cuidadosamente a distingue do hábito e, en-
quanto algo dotado da objetividade de uma ''necessidade natural", também
de um mero "desejo" tingido de subjetividade.
Tomando a noção de tradição em seu sentido cultural mais amplo, somos
levados ao problema básico da relação entre história e mente humana. Cito
as profundas palavras de Collingwood, de seu A idéia de história:

( ...) seria sofistico argüir que, como o processo histórico é um processo de


pensamento, deve haver pensamento já presente, como sua pressuposição,
em seu princípio, e que uma explicação do que esse pensamento é original-
mente e em si mesmo tem que ser uma explicação não-histórica. A história
não pressupõe a mente; é a vida mesma da mente, a qual não é mente exceto
enquanto vive o processo histórico e se conhece como vivendo dessa maneira
{p. 221).

Seria, portanto, na consideração da dimensão propriamente histórica que


a verdadeira natureza da inter-humanidade, mais do que nunca, se revelaria:
pois dizer que a operação da mente é essencialmente histórica é apontar de
modo inequívoco para além dos limites da vida do próprio indivíduo - isto é,
limites que demarcam sua história fisiológica, digamos assim. Como diz
ainda Collingwood, na mesma obra:

Definiu-se o homem como animal capaz de aproveitar a experiência de ou-


tros. Isso seria totalmente falso no que toca a sua vida corporal: ele não se
nutre porque outro tenha comido, nem descansa porque outro tenha dormido.
Mas, sim, é certo no que coneeme a sua vida mental: e a maneira como se
realiza esse aproveitamento é por meio do conhecimento histórico. O con-
junto do pensamento o da atividade mental humana é uma possessão comu-
nitária, e quase todas as operações que nossas mentes executam são opera-
ções que aprendemos de outros que já as executaram. Como a mente é o faz,
e a natureza humana (se essa denominação designa algo real) não passa de
um nome para as atividades humanas, esse adquirir a habilidade para fuzer
determinadas operações equivale a adquirir uma natureza humana determi-
nada. Desse modo, o processo histórico é um processo em que o homem cria
para si este ou aquele tipo de natureza humana ao recriar em seu próprio
pensamento o passado do qual é herdeiro (pp. 220-221 ).

Se aceitarmos tais colocações dentro de um espírito não-nominalista, não


vejo como fugir de um modelo da dimensão histórica da inter-humanidade
244 Renato Schaeffer

como interpenetração ontológica. Um ponto fundamental para a filosofia


social seria a tematização do cruzamento entre inter-humanidade e inter-
subjetividade- ou seja, o cruzamento do pólo da universalidade com o pólo
da particularidade. Pois é indubitável e inevitável o fato de o pensamento-
história (no sentido de Collingwood, acima) adquirir uma infinita variedade
de colorações quando "passa" pelas mentes-cérebros individuais - a mente-
cérebro de que trata, com toda razão (nos limites obviamente impostos por
seu método), o individualismo metodológico. Uma pista valiosa, dentro de
um tal empreendimento teórico, para distinguir os dois pólos da permeabili-
dade ontológica - inter-humanidade e intersubjetividade - é a fornecida por
Ruyer no já citado Os alimentos psiquicos. Este autor compara os três níveis
de nutrição humana - material, psíquica, mental -, afirmando que a diferen-
ça entre eles "prende-se sobretudo à importância relativa variável do orga-
nismo nutrido e do alimento. Na nutrição material, o organismo mantém sua
arquitetura própria" (p. 15). O caso da nutrição psíquica - isto é, lembrando,
o nível dos afetos positivos e negativos ligados à simpatia intersubjetiva -
representaria uma espécie de meio tenno, em que a estrutura do organismo
não permanece sempre rigorosamente invulnerável às influências mais ou
menos metamorfoseantes do alimento psíquico. Assim, nesse segundo caso,
por um lado,

instintos e necessidades fundamentais resistem também, em sua forma, aos


regimes psíquicos. ( ...) Mas já, sobretudo na infãncia, um mau regime psí-
quico, uma carência alimentar psíquica, produz deformações irreversíveis. A
psique é como que modelada pelo ai imento cultural, que aporta estruturas
fundamentais ao caráter, se não ao temperamento. A assimilação psicológica
de uma língua materna é mal denominada. Não é uma assimilação como a de
carne de boi ou carneiro, que não torna quem come boi ou carneiro- ao pas-
so que a língua francesa faz o senegalês francófono ficar um pouco francês,
ou o inglês, o nigeriano anglófono um pouco inglês (pp.IS-16).

Utilizando o meu jargão, diríamos que, para a assimilação do falante


pela língua, mais do que, até certo ponto, da língua pelo falante, como
sugere Ruyer, concorrem tanto intersubjetividade quanto inter-humanidade-
e não parece falso dizer que a dosagem exata desses elementos pode variar
de individuo e - por que não? - de língua para língua, conforme o predomí-
nio do elemento psíquico-simpático ou do elemento ideal-mental. No extre-
mo desse pólo ideal-mental, o nutriente, diz Ruyer,
pelo núcleo de verdade lógica e científica que contém, impõe sua ordem pró-
pria à mente. É agora a mente, não o alimento, que é assimilada, que se do-
O Problema Ontológico da lntersubjetividade 245

bra à ordem das razões e das leis, e que não as assimila, o que quer que di-
gam sofistas, céticos e convencionalistas, que dão a impressão de crerem que
as vontades, os desejos, as categorias humanas e sociais, podem fazer que
dois e dois não perfaçam quatro (p.l6).

Essa me parece a maneira adequada de encaminhar o problema de avali-


ar a dosagem dos dois tipos de comunicação ontológica- intersubjetiva, em
que prevalece o elemento da particularidade psicológico-simpática, e inter-
humana, em que prevalece o elemento da universalidade histórico-mental.
Seria também o caso de a filosofia social pensar seriamente em adotar-
adaptar o modelo semiótico de Peirce: desenvolver uma concepção de semio-
se social como (entre outras coisas) geração encadeada e auto-sustentada de
sucessivos "interpretantes" energéticos, emocionais e lógicos, interpretantes
esses que, por um lado, como quer o individualismo metodológico, depen-
dem de cérebros-mentes perfeitamente individuais, mas que, por outro, per-
tencem à ordem ontológica propriamente lógica ou semiótica da propagação
de tais interpretantes - ações, emoções e pensamentos humanos. O jogo de
tais interpretantes, sugiro, reflete (possivelmente entre outras coisas) a dosa-
gem entre intersubjetividade e inter-humanidade, entre a particularidade
humana e sua universalidade.
Como quer que seja, quero finalizar propondo que o primeiro passo na
crítica ao solipsismo social - a filosofia socia l do "pedaço de pau", da "bola
de bilhar", da "cela do prisioneiro" - deve ser a rejeição categórica de qual-
quer modelo intracerebralista da intencionalidade perceptual, tanto para a
percepção estritamente sensorial do mundo natural quanto - e principal-
mente - para a percepção pensante de outros seres humanos. O solipsismo
social assenta antes de mais nada sobre a tão ingênua ontologia neurofisica-
lista, que confina a mente ao cérebro; e, de fato, se cada mente está em seu
cérebro, e não diretamente no mundo e em parceria, potencial ou atual, com
outras mentes, a socialidade inter-humana imanente bem como a comunica-
ção intersubjetiva efetiva são impossíveis. Pois outrem não poderia me co-
municar inter-humanidade - universal ou particular - através de dutos neu-
ronais.3

3 Penso ser perfeitamente lícito interpretar o problema neuropsicológico do reconhe-


cimento facial como evidência de um nível básico de comunicação ontológica inter-
subjetiva. É sabido que bebês muito pequenos são altamente sensíveis a rostos hu-
manos- a princípio apenas a rostos ao vivo, mas logo depois, também, a representa-
ções de rostos em geral - , sendo que nada no mundo desperta mais o interesse cog-
nitivo-afetivo de bebês do que a visão de um rosto humano. Vale a pena mencionar
246 Renato Schaejfer

Referências Bibliográficas

Castoriadis, C. 1986. A instituição imaginária da sociedade. Trad. Guy


Reynaud, Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Colapietro, V. M. 1989. Peirce's approach lo lhe se/f: a semiolic perspecti-
ve on human subjectivity. Albany: State University ofNew York Press.
Collingwood, R. G. l993.La idea de historia. Trad. Edmundo O'Gorman e
J. H. Campos. Mexico: Fondo de Cultura Económica.
Dallari, D. de A. 1996. Nem censura nem racismo. O Globo, 28/08, p.7.
Dewey, J. 1984. The public and its problems. In: The Later Works 11, org. J.
A. Boydston. Carbondale: University ofSouthern Illinois Press.
- . 1980.Teoria da vida moral. In: Experiência e natureza : Lógica: a teo-

aqui um experimento recente da equipe do psicólogo Morris Moscovitch, da Univer-


sity of Toronto (Journal of Cognilive Neuroscience, setembro de 1997) com um
sujeito adulto que teve o cérebro danificado em acidente automobilístico. Este sujeito
perdeu a capacidade de reconhecer visualmente objetos, sem perder, contudo, sua
acuidade visual e capacidade cognitiva. Segundo os autores do trabalho, nas palavras
do resenhista Constance Holden, da Science, "essa pode ser a evidência mais forte
até agora de que o reconhecimento facial é uma função cerebral altamente específica,
separada daquela usada para reconhecer ()bjetos." Diz ainda Holden, adiante: "O
próximo desafio é achar o substrato neural do reconhecimento facial. Observações
em pacientes cujos looos cerebrais foram separados mostraram que o hemisfério
direito cuida dessa tarefa. E estudos eletrofisiológicos mostraram ondas cerebrais
particulares associadas à percepção facial." Do ponto de vista por mim defendido no
presente trabalho, o sentido desse "substrato neural" pode ser melhor compreendido
como o correlato somático da sensibilidade ontológica de um ser humano a outro,
sensibilidade do organismo (no sentido biológico mais amplo de um "naturalismo
esclarecido") à presença viva de outrem, sensibilidade que não pode deixar de se
refletir de algum modo no tecido do sistema nervoso central. Lanço a hipótese - que
me parece bem mais razoável que esta outra: a de que há um sistema altamente
específico para dar conta do reconhecimento facial - de que o que foi preservado no
referido sujeito, após o acidente, foi um nível por assim dizer mais fundamental- c
não mais especifico- do córtex visual, correlato neuronal justamente do nível mais
fundamental, proto-cognitivo, envolvido na percepção intersubjetiva. O que se per-
deu foi o correlato fisico das operações mais abstratas - e, de qualquer forma, sem
dúvida ontogeneticamente posteriores - envolvidas na categorização conceitual dos
objetos distais da visão. A criança nasce respirando uma atmosfera ontológica-
epistemológica eminentemente intersubjetiva, daí a grande dificuldade, amplamente
conhecida pela psicologia do desenvolvimento, de galgar da língua falada e pre-
dominantemente narrativa à língua escrita e predominantemente descritiva.
O Problema Ontológico da lntersubjetividade 247

ria da investigação : A arte como experiência: Vida e educaçã : Teoria


da vida moral. São Paulo: Abril Cultural.
Domingues, J. M. 1996. Sistemas sociais e subjetividade coletiva. In Dados:
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 39(1): 5-31 .
Elias, N. 1994. A sociedade dos indivíduos. Michael, S. (org.). Trad. Vera
Ribeiro, Rio de Janeiro: Zahar.
Ginsberg, M. 1966. Psicologia da sociedade. Trad. Waltensir Dutra. Rio de
Janeiro: Zahar.
Holden, C. 1997. A special place for faces in the brain - seção ''Random
Samples." Science 278(3): I .
Mead, G. H. 1974. Mind, se/f and society. Morris. C. W. (org.). Chicago:
The University ofChicago Press.
Nédoncelle, M. 1942. La réciprocité des consciences: essai sur la nature de
la personne. Paris: Aubier.
Nicol, E. 1989. Psicología de las situaciones vitales. México: Fondo de
Cultura Económica.
Peirce, C. S. 1958. Col/ected Papers. Burks. A. W. (org.), Cambridge, MA:
Harvard University Press. vol. 7 e 8.
Ruyer, R 1975. Les nourritures psychiques: la politique du bonheur. Paris:
Calmann-Lévy.
Searle, J. 1990. Collective intentions and actions. In Cohen, P. R et ai.
(orgs.) Intentions in communication. Cambridge; MIT Press.
Scheler, M. 1971. Nature et formes de la sympathie. Trad. M. Lefebvre.
Paris: Payot.
Stem, D. 1992. O mundo interpessoal do bebê: uma visão a partir da psica-
nálise e da psicologia do desenvolvimento. Trad. M. A. V. Veronese.
Porto Alegre: Artes Médicas,
Stravinsky, I. 1996. Poética musical (em seis lições). Trad. L. P. Horta. Rio
de Janeiro: Zahar.
Unger, R M. 1975. Knowledge and politics. New York: The Free Press.
Wiley, N. 1996. O se/fsemiótico. Trad. L. P. Rouanet. São Paulo: Loyola.
SOBRE "0 PENSAMENTO"
la PARTE

LUlZ HEBECHE
Universidade Federal de Santa Catarina

Um espanto inevitável surge quando se trata de pensar o pensamento, quan-


do o que se torna assunto do pensàmento, o que é o pensado pelo pensa-
mento, é o próprio pensamento. O espanto se deve a que o pensamento, ao
confrontar-se consigo mesmo, permanece oculto para si mesmo. Temos en-
tão que afastar o espanto de que o pensamento, ao pensar o pensamento,
possa dar conta de si mesmo, pois isso levaria a um outro nível em que se
teria de pensar o pensamento que tem como objeto o pensamento que pensa
o que é pensado pelo pensamento, e assim por diante. E como se pode afas-
tar o espanto invocando o que espanta? Para afastarmos o espanto, tratare-
mos não de invocar uma superentidade, mas simplesmente de descrever as
circunstâncias em que se usa esta palavra, pois quando tratamos o pensa-
mento adentramos na impaciência do interior, porquanto pensar o pensa-
mento só é possível desde que se tenha presente o cenário do interior, e o
interior não é uma coisa qualquer, mas a vida. O conceito de pensamento é
central para o interior e chega mesmo a ser confundido com ele, pois parti-
cipa da multiplicidade dos modos do seu vir ao encontro, uma vez que a sua
complexa rede conceitual diz respeito ao que é distintivamente humano no
mundo. Não que o pensamento, como qualquer conceito do interior, seja
algum processo levado a cabo às ocultas, nem como um proceder meramente
mecânico, mas como uma habilidade para levar a cabo certas atividades e
uma espécie de dar conta dessas ações e intenções e, portanto, de dar-lhes
um rumo novo. Porém uma vez que o conceito de interior é vago, a atmosfe-
ra difusa em que operam seus conceitos toma sua discriminação uma tarefa
dificil, pois muitos deles tem uma variabilidade de aplicação maior e, por-
tanto, parecem mais imprecisos do que outros. Mas já podemos ir conside-
rando que a indeterminação é uma marca das vivências do interior e, que,
portanto, a própria análise do interior sempre se dará sob o signo da intrans-
parência, oriunda não de um fundo intangível, mas porque esses conceitos
permeiam e se confundem com a vida. E assim, como parte do conceito de

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Analítica. Florianópolis: NEL, pp. 248-62.
Sobre o Pensamento 249

interior, resulta fácil para o conceito de pensamento; por um lado, desviar-se


para o misterioso ou o sublime; de outro lado, provoca a busca de explica-
ções teóricas capazes de desfazer os enigmas do processo do pensar, como a
psicologia comportamental ou a neurologia. A tentativa de dissolver o misté-
rio que envolve o pensamento por uma teoria - seja científica ou filosófica -
é precisamente constituída desde a ilusão de compreender a natureza do pen-
samento sem atentar para o uso deste conceito, isto é, para como ele já desde
sempre toma parte na nossa vida, de como e em que condições ele é usado.
Desfazer o mistério é, portanto, dar conta da nova superstição de que pode-
mos tudo explicar teoricamente, como se o mistério que envolve o conceito
de pensamento fosse eliminado pela exposição de sua estrutura ou processo
oculto. Não é o mistério que provoca a confusão, mas a confusão é que ori-
gina o mistério do que se oculta. Não se trata, porém, de simplesmente eli-
minar o mistério, substituindo-o pela claridade da explicações, mas de mos-
trar que ele se origina da vagueza dos conceitos, e não, o contrário. E vague-
za aqui não é sinônimo de caos, isto é, que não se possam distinguir os múl-
tiplos modos de como o interior se faz presente, e que o distinguem do exte-
rior, desde a relação lógica entre esses conceitos. A vagueza se deve a que
nenhum superconceito pode ser tomado como fundamento. Afastamos a cor-
tina para ver o efetivo uso do conceito de interior e nos deparamos com uma
atmosfera carregada por uma fina névoa que circunda cada trecho do cená-
rio. E Wittgenstein mesmo reconhece que aqui seu esforço não é pela exati-
dão, mas pela visão panorâmica (Übersichtlichkeit) (RPP, 1, § 895). No des-
envolvimento de seus estudos esboçou vários planos para a classificação dos
conceitos ou vivências psicológicos e sempre os foi alterando à medida que
sua própria compreensão da maior ou menor similaridade entre esses con-
ceitos ia também se alterando; e isso se deve a dificuldade de se ter uma vi-
são panorâmica precisa e suficientemente clara do "mundo da consciência".
Já na primeira tentativa de classificação- RPP, 1, § 836 - ele inicia per-
guntando se deveria chamar todo o campo psicológico de vivência
(Erlebens), e, desse modo, se considerariam todos os verbos psicológicos
como conceitos de vivência. A partir do reconhecimento da vivência como
conceito central para o conjunto da filosofia da psicologia, ele passa a dividi-
los em classes e sub-classes. Em outras oportunidades ele revisará a posição
dos conceitos psicológicos, mas o que continuará sempre imprecisa é a posi-
ção e a verdadeira natureza do conceito de pensar. É uma dificuldade saber
se o pensamento é uma subclasse de vivências, ou se sequer faça parte do
campo psicológico, ou ainda se não seria um domínio em separado, mas
ainda adjacente ao âmbito das vivências (Schulte, 1993, pp. 28-30). Sabe-
mos que o substrato da vivência é o domínio de uma técnica, e que só quem
250 Luiz Hebeche

tem esse poder, essa habilidade, é que pode afirmar efetivamente ter vivenci-
ado um determinado âmbito do mundo. Mas a vivência que constitui um
objeto não é mesma de quem tem ciúmes, dor de cabeça, ou tem expectativas
em relação a seu futuro. Se por um lado é necessário comparar vivências e,
portanto, estabelecer critério para aquilo que vem ao encontro, de outro,
tem-se de reconhecer a dificuldade de, no mundo interior, precisar tais crité-
rios, pois a significação de um conceito psicológico estará sempre demasiado
próximo de sua vivência. É por isso que esse conceito é central no conjunto
da filosofia da psicologia. De qualquer modo, o "mundo da consciência" se
apresenta desde a trama de seus fragmentos, em que cada fragmento é defi-
nido na "regra" ou "padrão" como seu modo peculiar de vir ao encontro, e
algo só vem ao encontro dentro do jogo de linguagem. Por isso, se não se
pode aceitar que o pensar seja um fenômeno (Erscheinung), embora possa-
mos falar do "fenômeno do pensar" (RPP, 2, § 31), pois ainda que haja uma
diferença intransponível entre o pensar e os outros conceitos internos como
as sensações e as emoções (eu me reEaciono com minha dor de cabeça ou
minha dor de cotovelo de modo diferente de como me relaciono com meu
pensamento), pois se também se pode "observá-las" no corpo, na fisionomia,
na expressão pela linguagem, ou por gemido ou grito, o pensamento, ao
contrário, parece algo que se desdobra sempre "dentro de nós". Isso, todavia,
não quer dizer que o pensamento não venha ao encontro de algum modo. A
"profundidade" do pensamento se deve ao que há de áspero na superficie.
Ou melhor: como se pode pensar a natureza do pensamento se a principio
ela estivesse oculta? É nos jogos de linguagens que o conceito de pensa-
mento pode ser discriminado. E como os jogos de linguagem vão se alteran-
do no curso da vida, ou melhor, vão imiscuindo seus limites, o "ver como"
se deve ao caráter incerto do modo como cada jogo se relaciona com outro,
numa situação em que se toma difícil precisar claramente esses limites. Pois
o interior é como uma rede de conceitos e ao se tocar num deles os seus
efeitos repercutem sobre toda a extensão da rede. No entanto, se o pensa-
mento se distingue dos outros conceitos do interior por ser o mais imune às
vivências, isso recoloca a questão: como localizar aí um conceito puro de
pensamento, se o interior mesmo é vago?

"O interior está oculto para mim", não é igualmente tão vago como o con-
ceito de " interior"? Pois considere então: o interior é, no fim das contas, sen-
sações + pensamentos + representações + disposições + intenções, etc.
(LWPP, I,§ 959).

Nessa descrição nos deparamos com a diversidade do interior. Mas -


Sobre o Pensamento 251

diferentemente da sensações e dos sentimentos - ao tentarmos descrever o


pensamento, não corremos o risco de transformá-lo num super-conceito do
interior? O conceito de pensar está para o interior como o conceito de corpo
está para o exterior. Pois a diversidade do interior parece também confundir-
se com a diversidade do pensar. É por isso que o conceito de pensar é duro.
A diversidade de seu emprego parece abranger toda a "árvore genealógica"
dos conceitos psicológicos, ao mesmo tempo que participa da sua indetermi-
nação. É também por isso que a tentativa de compreender o pensar de modo
simples faria perder a variedade de seus aspectos, ou ainda pior, correr-se-ia
o risco de tomar o "mundo do pensamento" como uma visada unilateral dos
aspectos, pois aqui de nada adianta a noção de que seguir a regra seja "isto",
pois o conceito pode também ser "aquilo" . Uma resposta simples ao signifi-
cado do pensar a partir da idéia que basta observarmos como o pensamento
ocorre em nós mesmos para que desde aí pudéssemos, desde logo, encontrar
sua verdadeira natureza. Seria semelhante a alguém que, sem conhecer o
jogo de xadrez, quisesse, vendo o último lance da partida, descobrir o signi-
fi cado da expressão "xeque-mate" (PU, § 316). Trata-se então de compreen-
der que o conceito de pensar participa de jogos de linguagens distintos, mas
afins, e, desse modo, não há um modo unilateral do pensar, mas semelhan-
ças que constituem este " fenômeno". E para o esclarecimento do modo do
pensamento vir ao encontro, convém desde logo desfazer o paralelo engana-
dor de que a proposição seja uma expressão do pensamento, assim como o
grito é uma expressão da dor, como se a proposição pudesse comunicar a
alguém o que ocorre em seu aparelho mental, como o grito de alguém exte-
rioriza uma dor no estômago (PU,§ 317-318). A idéia de que o pensamento
seja expresso diz respeito à sua relação com seu meio mais freqUente de ex-
pressão - a linguagem - e à questão de se é possível falar sem pensar ou
pensar sem falar, pois se um ou outro fosse o caso, então o pensamento seria
entendido como um processo interno independente de seus meios de expres-
são, como, alíás, no caso de Platão, os meios de expressão seriam obstáculos
ao pensamento. A verdade é o resultado do diálogo silencioso da alma con-
sigo mesma, isto é, só se conquista o mundo do pensamento puro pela aboli-
ção da linguagem, e toda tentativa de expressar o pensamento não poderá ser
feita sem perda para o pensamento. Porém a questão de se é possível pensar
sem falar é semelhante a de se se pode falar sem respirar (Hacker, 1990, p.
346), pois se a dor dá vida ao grito, já não se pode dizer que a proposição
seja uma mera manifestação externa do pensar, pois isto dá a idéia de que o
pensamento é algo etéreo e que necessita de algum meio ou recurso para se
fazer presente, e que a linguagem seja esse meio de transportar o que ocorre
no interior para o exterior. A proposição, porém, não é um veículo que
252 Luiz Hebeche

transporta o pensamento e que pode, a qualquer momento, ser requisitado ou


abandonado no fim do percurso. O veículo e o veiculado são um só. De
modo que o conceito de pensamento, tornado como processo ou como algo
instantâneo que pode já estar pronto antes mesmo de sua manifestação, só
seria compreendido desde a descrição de seu emprego, pois se e le não é um
processo misterioso interno, se ele também não se manifesta corno um pro-
cesso externo, como se numa frase se fosse acompanhando-o palavra por
palavra para, no fim, ter-se o pensamento por inteiro. A concepção de que o
pensamento vai se ordenando através de imagens ou palavras está ainda pre-
sa à noção de processo oculto que, através dessas imagens, se faz presente,
guardando todavia o segredo deste fazer-se presente, ou melhor de que o
pensamento viria ao encontro desde um âmbito não totalmente discernível.
Isto é, o pensamento viria ao encontro desde um fundo que escaparia ao pró-
prio pensamento, de modo que a condição de todo ato de pensar é o que não
poderia ser pensado. Em outros termos: para compreender-se o pensamento,
para pensar o pensamento, ter-se-ia de dar conta do âmbito secreto de onde
ele emerge, mas esse âmbito oculto e misterioso seria irresistível para toda
compreensão. Causa mais espanto, todavia, que o pensamento não possa
radicalmente dar conta de si mesmo, que tenha como obstáculo insuperável a
condição de seu vir ao encontro, pois então a raiz do pensável seria o impen-
sável - mas como pode ser obscuro aquilo que esclarece?
Nossa maior dificuldade ainda continua sendo a de que o pensamento é
freqüentemente concebido como um processo oculto que, às vezes, se desdo-
bra lenta e dificultosamente, outras vezes, ocorre de modo instantâneo, e que
ainda se pode dar de modo voluntário ou involuntário. A concepção do pen-
samento como processo, aliás, é associada à noção de que parece haver solu-
ção de continuidade entre o pensamento e sua expressão, como geralmente
acontece quando escrevemos e falamos pensando, como se nossas palavras
inibissem o caráter espontâneo do pensar. De outro modo, há também a no-
ção - como no cálculo de cabeça - do pensamento instantâneo, isto é, da-
quele pensar que assume um modo extremamente rápido e que parece atro-
pelar nossas palavras. A noção de pensamento - como um raio que atravessa
instantaneamente minha mente - reforça a imagem de que o pensamento é
algo irnponderável, o que o distingue dos modos em que pode ser expresso,
ou de que ele seja um processo interno que acompanha ou não as atividades
externas, e que, freqüentemente, se debate contra elas, como se o seu modo
de expressão fosse uma barreira ou uma amarra. Pois quando, tal como na
velocidade de um raio, tenho em minha mente surpreendido um pensamento
por inteiro, sinto-me então incapacitado de expressá-lo, porquanto ele é
sustado pela limitação dos meios de expressão. Isso parece indicar que o
Sobre o Pensamento 253

pensamento independe da linguagem ou de qualquer meio de transmissão.


Teríamos então um caso típico da angústia gerada pelo choque do pensa-
mento com os limites da linguagem. No entanto, o que poderia ser uma an-
gústia que fosse apenas angústia e um pensamento que fosse apenas pensa-
mento fora dos modos específicos do seu vir ao encontro? O que não vem ao
encontro é o não tematizável. No caso do pensamento como raio, que é apre-
endido num instante, como se pode saber do que se trata? Como se pode
saber o que foi apreendido de modo instantâneo?
A idéia de atividade do pensamento também se confunde com a do falar
ou do imaginar interior, e, portanto, de que ele se vincula a imagens, embora
isso não dê conta de sua verdadeira natureza, pois o pensar é dinâmico, en-
quanto as imagens tendem a permanecer. Mesmo se pudéssemos ver uma
sucessão de imagens na mente de a lguém, ainda assim seus pensamentos nos
escapariam, pois não poderíamos saber como ele ordena essas imagens no
processo do pensar; as imagens não se confundem precisamente com o pen-
sar, pois, neste caso, é o pensar que daria vida às imagens. Isso é o que res-
salta no conceito de pensar seu caráter inefável semelhante ao da ocultação
do interior que operaria por detrás da linguagem. Essa concepção falsa tam-
bém é própria da associação do pensar e da fala interior como contraposta à
fala externa, quando em determinadas circunstâncias nos perguntamos se
nosso interlocutor não está fingindo, e se suas palavras são apenas um dis-
farce para ocultar o que realmente pensa. E mais ainda: que as palavras que
recorre na conversação são animadas e direcionadas pelo pensamento. Esta é
a noção de que o pensamento é um espécie de divisor de águas entre o falar
pensante e o falar que não resulta do pensar. Exemplos disso podem ser en-
contrados no conhecido caso do "pensar em voz alta", isto é, de quando se
toma urna sentença como expressão de um pensamento, e nos perguntamos
em que condições isso realmente ocorr e, pois, afinal, muitas vezes parece
não haver correspondência entre o que se diz e o que efetivamente se pensa,
ou de que o que se diz parece não estar determinado pelo pensamento, e en-
tão as palavras seriam vazias e inconsistentes, ou ainda, quando não se con-
segue atingir o cerne do que se pensa, dizendo-se: "ainda preciso pensar
melhor sobre isto" ou "não consigo acompanhar o curso de teu pensamento".
E isso também está a indicar que o pensamento é um processo às ocultas de
modo que constantemente nos escapa, um processo que ocorre de modo in-
dependente e paralelo às próprias palavras. É o caso de quando se aprende
uma lingua estrangeira, e o professor nos diz que temos de aprender a pen-
sar nessa nova lingua, como se o pensamento como processo interno tivesse
agora que ser transferido para uma nova situação, tivesse de manipular de
modo distinto uma outra sintaxe e ortografia, como se o pensamento, ao as-
254 Luiz Hebeche

sumir a nova língua, trocasse de endereço junto com seu portador; poder-se-
ia, portanto, sem alterar o pensamento, dar-lhe outras formas de expressão,
trocar-se-ia de lingua como se troca de roupa. Quando se diz que só se pode
filosofar em alemão ou em grego, não se estaria aí defendendo que o pensa-
mento mais profundo só pode ser expresso nessas línguas, pois trata-se uni-
camente de duas tradições filosóficas que marcaram a cultura do ocidente. O
que importa não é que o pensamento possa ser melhor expresso em uma ou
outra língua, mas que o pensamento venha sempre ao encontro em alguma
delas, seja o alemão ou o português, que o pensamento não seja ele mesmo
uma atividade secreta e misteriosa que - per moto proprio - lance mão de
algum modo privilegiado de vir ao encontro, tendo ele mesmo de ser
''traduzido" para a linguagem. Esta é a mesma concepção que separa o pen-
samento do seu modo de vir-ao-encontro; é a que também, freqüentemente,
leva a dizer-se que fulano agiu ou falou sem refletir, ou que não mediu suas
palavras, que apenas sofismou, isto é, que suas palavras carecem de espírito
ou de conteúdo que só o pensamento originalmente pode ter. O pensamento
mesmo se toma uma super-entidade interna, uma espécie de vulcão que ex-
pele o mundo. O professor de fisica aconselha seus alunos a não se limita-
rem a decorar as fórmulas ou a recorrerem apenas às maquinas de calcular,
mas a pensarem no que se constitui como a efetiva solução do problema.
Sem a força do pensar, as fórmulas da fisica seríam como que entidades va-
zias. Assim como para as imagens da memória, também o pensamento seria
uma espécie de "sopro vital", e sem ele as palavras seriam apenas uma reu-
nião casual de letras mortas. O conceito de pensamento tem, desse modo,
uma aura de algo inefável que se distingue das coisas mais terrenas como,
por exemplo, comer ou beber, de modo que freqüentemente se costuma to-
má-lo como um ''processo incorpóreo" para distinguir sua gramática da do
comer ou beber, pois o que poderia ser mais distinto? No entanto, esta posi-
ção também resulta do engano de se considerar o pensamento como processo
incorpóreo que se contrapõe a um processo corpóreo, assemelhando-se este
engano à idéia de que apenas os signos numéricos são reais, mas os números
não são reais. Tomamos um determinado modo de expressão inadequado e
não somos capazes de reconhecer o seu defeito de origem. A gramática do
pensamento é distinta do comer ou beber, mas não porque o pensamento é,
ao contrário destes, um processo imaterial que se desenrolasse distintamente
do processo material (PU, § 328). Nosso engano já estava, portanto, na falsa
imagem que condicionou a noção de pensamento incorpóreo, cuja terapia
nos possibilitará uma visão geral dos vários modos do pensamento vir-ao-
encontro, ou melhor, dos vários usos desse conceito ou das circunstâncias
em que ele é empregado, e para fazer isso não se necessita nenhuma teoria,
Sobre o Pensamento 255

pois trata-se apenas de descrever o que já desde sempre está à mão. Dessa
forma, a natureza do pensamento é concebida como um processo oculto e
inefável, condição dos meios de expressão, mas inacessível a esses meios, e
que, por isso mesmo, como algo resistente à analise, é agora substituído pela
concepção de que a essência de urna palavra - o pensamento, no caso - está
no uso da mesma, pois, ao contrário, da concepção llo processo incorpóreo
que se desenrola às ocultas no espírito ou numa mente. Não podemos adivi-
nhar qual é o funcionamento de uma palavra, temos de visualisar o seu em-
prego e aprender a operar com ele, só isso indica que compreendemos uma
palavra (PU, §340). E não se trata apenas de distinguir uma palavra da ou-
tra, mas o uso de cada uma delas. O mundo não é um superconceito, porque
é forjado desde os âmbitos desses distintos usos. Essa perda da aura do con-
ceito de pensamento, porém, não ocorre sem resistência. É preciso vencer o
preconceito que vê o recurso ao uso como algo "repulsivo". O conceito de
pensamento não é mais entendido a partir de uma essência interna que lhe
dá univocidade, mas pelo aglomerado de atividades afins, pois se o pensa-
mento se distingue do andar ou do comer, ele mesmo não vem ao encontro
de um único modo.
Mas é precisamente a ilusão de que a relação entre o pensamento e as
palavras seja um processo duplo que ainda tem de ser desfeita, uma vez que
ela introduziria um âmbito vazio entre o pensamento e o seu conteúdo, como
se a emergência do pensamento fosse independente do pensado. Uma vez
que o pensamento tem de vir ao encontro para que, de a lgum modo, possa
ser tematizado, isso não quer dizer que seja um processo semelhante ao virar
a esmo as páginas de um livro, ou que, ·c omo na fulguração de sua imedia-
tez, viesse ao encontro bruscamente, distinguindo-se do vazio do seu entor-
no, pois o pensamento coincide com o mundo, e não há espaços vazios no
seu vir ao encontro. E só se pode falar do conteúdo de um pensamento, desde
que haja harmonia entre o pensamento e a realidade. É essa harmonia que
originalmente impede que o pensamento seja algo imponderável ou que ope-
re no vazio. Ele não vem ao encontro para preencher o âmbito em que ainda
não chegou. A rejeição de que o pensamento seja um processo feito às ocul-
tas significa que não se trata de uma duração que possa ser cronometrada,
como se o pensamento fosse com maior ou menor velocidade o que é pensa-
do, como se o pensamento, como os tentáculos de um polvo, pudesse agarrar
algo de fora e trazer para junto de si. O pensamento já sempre coincide com
o pensado, o que não quer dizer que o pensamento seja algo imutável, pois a
ação do pensar envolve simultaneamente o que pode ou não ser pensado. O
pensar não procede num único viés, ele implica o domínio de uma técnica de
variação, isto é, ele implica uma autocorreção à medida que avança, poden-
256 Luiz Hebeche

do alterar os seus conceitos, pois a relação entre regra e caso não está con-
gelada como num céu platônico, mas, ao contrário, a sua práxis abre a pos-
sibilidade de alterar a regra, de modo que a mudança aqui não diz respeito
apenas ao falar, mas também ao fazer (Tun) (RPP, I, § 910). Isso também
quer dizer que o querer já está sempre envolvido com o dominar uma técni-
ca, pois não haveria como discernir urna que fosse apenas um querer inde-
pendente do jogo de linguagem em que vem ao encontro. A ambigüidade do
algo como algo estabelece a essência do conceito como um aglomerado de
seus empregos, pois, de um lado, se opera com a intencionalidade que per-
mite dizer o que é dito, de outro, atenta para a própria expressividade do
pensar, regido por jogos de linguagem aparentados, os quais são em geral
chamados de atos do pensar cuja ramificação é tão vasta quanto a do con-
ceito de pensamento. No entanto, esses dois conceitos não podem ser con-
fundidos, isto é, conceber a intenção apenas sob o modelo do pensamento,
embora a gramática do pensar se assemelhe a dos verbos intencionais- que-
rer, intentar, desejar, esperar, ordenar etc. - pois do mesmo modo que um
pensamento pode estar correto ou não, também um desejo pode ser satisfeito
ou não, uma expectativa pode ser efetivada ou frustrada, e uma ordem pode
ser obedecida ou descumprida. A pergunta é como se relacionam esses ver-
bos com a realidade, pois à primeira vista dão a idéia de que um espaço va-
zio se abre entre eles e a sua realização, como se minha expectativa que p,
para ser realizada a contento, tenha de ser preenchida pelo estado de coisas
que p, como o bloco do êmbulo preenche o vazio do tubo, porém não se ex-
plica a realização de uma expectativa recorrendo às noções causais ou com-
portamentais, em que a relação entre o conteúdo da expectativa fosse preen-
chido por um evento ou estado de coisas, pois trata-se de uma relação intrín-
seca entre a expectativa e o que é esperado. A harmonia entre os verbos in-
tencionais e a realidade deve ser encontrada na gramática da linguagem (Z,
§ 55), e, como consideramos neste caso que é na linguagem que o pensa-
mento ou a expectativa vem ao encontro, é precisamente porque é na lin-
guagem que expectativa e realização se tocam (PU, § 445). Isso quer dizer
que os verbos intencionais já têm um conteúdo; e seria então um erro tomar
tais verbos "como se eles tivessem a virtude de antecipar figurativamente um
estado de coisas, de modo que a intenção se realizaria pelo preenchimento
(Erfülung) de "!ma forma oca graças aos dados fornecidos pela sensibilida-
de" (Giannotti, 1995, p. 2 11 e p. 221 ). E isso, aliás, seria, desde o conceito
de pensamento, uma retomada do modelo objeto-designação, como se o pen-
samento pudesse ser comparado com algo que, desde fora, viesse ao encon-
tro. Mas aqui qualquer explicação fenomênica ou psicológica não dá conta
da questão lógica que aí está em jogo, pois o sentido de uma palavra só vem
Sobre o Pensamento 257

originalmente ao encontro no jogo de linguagem específico, e é precisamente


esta possiblidade de discriminar ou comparar jogos de linguagem que aponta
sempre para um "como", e, desse modo, permite pensar o que não é o caso,
sem que se venha a perder a harmonia entre pensamento e realidade, pois

O acordo (Obereinstimmung), a harmonia do pensamento com a realidade re-


side em que ao dizer falsamente que algo é vermelho, não é por isso que é
vermelho. E se quero explicar a alguém a palavra vermelho na proposição
" Isto não é vermelho", aponto com este intuito para algo vermelho. (PU, §
429).

E isso tocaria - segundo Giannotti (ibid. p. 220) - o ponto nevrálgico de


que a proposição se tome um pensamento intencional, pois então é possível
pensar o que não é o caso, isto é, pensar isto assim e assim, sem que esteja
assim, pois assim como "-p" é uma operação sobre p, também o sentido de
uma proposição negativa só pode ser entendido nessa frase se se explicar o
significado de vermelho. E isso envolve o modo com que já sempre opera-
mos com o sistema das cores, a forma de vida onde a gramática das cores é
constituída. Em outras palavras, a expressão "ter a intenção de... " é engano-
sa, se entendida como algo que se antecipa ao seu modo de vir ao encontro,
corno algo que antes de ser efetivado paira em meu espírito, tornando-me
previamente ciente daquilo que é projetado na expressão da minha intenção,
isto é, a noção de intenção presta-se a forjar o engano de que pudéssemos
saber o que fazemos antes de sua expressão lingüística, e, portanto, recria o
paralelismo entre o pensamento e o seu modo de vir ao encontro. O conceito
de pensamento intencional, porém, nada tem a ver com o conteúdo interno
da mente ou algo a que a consciência tivesse acesso imediato e privilegiado,
corno se eu tivesse em minha mente significações muito vagas à margem de
sua expressão linguística. Podemos aí recolocar a questão de um outro modo:
uma vez que podemos, na linguagem, expressar o pensamento, como pode-
mos tratar do conteúdo aí expresso? Ou ainda: como especificar este conteú-
do sem o descolamento entre o que se expressa e o que é expressado, uma
vez que se aceita a tese de que só se pode falar de conteúdo de um pensa-
mento se há uma harmonia interna entre ele e a realidade? Há, como vere-
mos, vários modos do pensamento vir ao encontro, e nem todos são verbais.
E, se já somos sempre cientes do modo como veiculamos nossos pensamen-
tos nas palavras, então o que ocorre para que eles sejam veiculados sem que
tenhamos de recorrer à noção de processo interno? Noção esta que é, aliás,
reforçada pelos casos em que pensamos algo, mas não o expressamos, como
se o pensamento fosse sustentado num circuito interno ou num veículo in-
258 Luiz Hebeche

terno consciente que, apesar da interrupção do ato de pensar é capaz de dar


conta do pensamento todo. No entanto, essa é precisamente a imagem do
processo interno que procuramos desfazer. A imagem do veículo interno
consciente que, à primeira vista, se contrapõe ao exterior, ou é decalcada de
seu modelo tal como a noção de objeto privado interno é concebida desde o
objeto externo. Segundo esta concepção errônea, sou ciente de meu pensa-
mento de modo semelhante ao que sou ciente do pensamento de outrem, à
medida que sou capaz de compreender o que ele expressa lingilisticamente.
Mas se tenho meu pensamento interrompido, isto é, quando já não o expres-
so em palavras, como quando repentinamente vejo o leite ferver e derramar,
e apago o fogo, ou quando um programa me aborrece, e eu troco de canal
sem expressar lingüisticamente o meu pensamento, isso está a indicar que a
consciência legitima para mim o pensamento, mesmo quando as palavras
faltam, pois então elas são apenas um modo de o pensamento expressar-se,
mas não a condição do seu vir ao encontro; não seriam, portanto, as pala-
vras, mas o estar ciente do conteúdo expresso nelas o que, nesse caso, real-
mente importaria; este "estar ciente" seria um intermediário entre as pala-
vras e os fatos, o pensamento, portanto, t~ria de atravessar minha mente
para abarcar seu objeto, e a coisa sobre a qual eu penso dependeria de um
terceiro elemento, uma espécie de "olho da mente". Mas se isso é assim,
então a pergunta inevitável - corretamente posta por Malcolm Budd - é a de
como se relaciona o estar ciente de um pensamento e o conteúdo dele, ou
melhor "como pode o conteúdo de meu pensamento ser derivável do evento
que constitui a ocorrência do pensamento? É possível para mim não estar
ciente do que ocorre quando eu penso um pensamento e, portanto, não estar
ciente deste pensamento, ou estar ciente da natureza da ocorrência, mas não
estar ciente do conteúdo do pensamento ou ainda derivar um conteúdo erra-
do (como no caso da terceira pessoa)?" (Budd, l989,p. 129). Essa dificulda-
de aponta para a insuficiência da noção de que apenas um veículo consciente
interno dê, tomando os moldes do estar ciente do pensamento de outrem,
condições para que um pensamento tenha direito de cidadania no mundo,
como se, ao dizer "Eu penso que p", eu estivesse especificando com ''p" um
conteúdo que já não estivesse expresso na linguagem.

"A esta palavra, ambos pensamos nele." Suponhamos que cada um de nós ti-
vesse dito a mesma palavra para si próprio, em silêncio, - e MAIS que isto
não pode significar, - Mas estas palavras não estariam apenas em germe
(Keim)? Elas devem, contudo, pertencer a uma linguagem e a um contexto,
para ser realmente a expressão do pensamento naqueles homens.
Sobre o Pensamento 259

Se Deus tivesse olhado em nossas almas, não poderia ter visto lá de quem
falávamos. (PU, § 558)

A noção de intenção - e de todos os verbos intencionais - está como que


embebida no seus modos de vir ao encontro: nos costumes e nas instituições.
Os modos de vir ao encontro, portanto, não dependem de um sujeito mono-
lógico, mas situam-se na trama da vida. Só nesses modos de vir ao encontro
é que podemos reconhecer o sucesso e as vicissitudes das intenções. E como
só se efetiva a intenção de dançar, se se domina a técnica da dança, de pes-
car se se apreendeu a pescar, também só pode pensar quem domina as técni-
cas ou práticas em que o pensar está envolvido. A dificuldade do exercício
do pensamento não se deve a que ele seja algo profundo, e por isso freqüen-
tente nos escapa, mas à tensão entre o pensado e o ainda não pensado, o do-
mínio de um âmbito de mundo que ainda não se alcançou.
Há, portanto, uma constante inclinação para separar o pensamento e a
linguagem. Mas, ainda que a proposição seja sempre um veículo do pensar,
isso não significa, como vimos, que a proposição e o pensar sejam externos
um ao outro, como se a linguagem pudesse ser uma espécie de vestimenta de
um processo interno e secreto. O caso da leitura de uma passagem dificil
igualmente parece reforçar esta idéia, de que o pensar e o texto duro que
resiste à compreensão são procedimentos distintos e paralelos. No entanto,
de que modo ele vem ao encontro? Como conferir se o pensamento diz res-
peito ao que se encontra no texto? Não há uma resposta específica para isto.
A vagueza do interior se expressa também na diversidade do conceito de
pensamento. E Wittgenstein chega a compará-la a alguém que atravessa
uma rua, lançando olhares à esquerda e à direita, tentando abranger os as-
pectos da circunvizinhança (RPP, 2, § 208). Assim é que a atividade do pen-
samento só poderá ser testada em relação à leitura do texto dificil quando
puder publicamente explicar o que apreendeu na leitura citando e comentan-
do um trecho, chamando a atenção para este ou aquele detalhe, comparando-
o com outras passagens do autor, etc. Esses pequenos recursos e habilidades
publicamente partilhadas dão a dimensão possível do ato de pensar, o que
não quer dizer que o pensamento se confunda apenas com a linguagem pre-
dicativa. Pode-se também pensar sem falar ou escrever. E isso novamente
indica que o pensar não é um conceito unívoco, que não tem - entre seus
vários usos - um uso que seja mais genuíno do que outro. Habitualmente
operamos com o conceito de pensar de modo diverso; às vezes ele se asse-
melha ao meditar ou ao ponderar e temos então uma maior ênfase no ele-
mento reflexivo. A ênfase no reflexivo é resultante de inclinação errônea em
tomar o pensamento como um processo mental. Ela pode ser um empecilho
260 Luiz Hebeche

à compreensão da pluralidade do conceito de pensamento, pois há também


elementos práticos no pensar. E deve-se evitar a confusão nos respectivos
jogos de linguagem. Tome-se alguém que monta um quebra cabeça ou con-
serta uma máquina; esse é um caso típico em que está presente o caráter
prático em detrimento do elemento reflexivo. Alguém procura reparar num
defeito da máquina e atua fazendo escolhas entre as ferramentas de que dis-
põe, procurando a mais adequada para sua tarefa, rejeitando uma, tentando
outra que lhe parece mais eficaz, ora limitando-se apenas a manifestar suas
vicissitudes, através de murmúrios ou ruídos guturais, suas hesitações, de-
cepções, surpresas, decisões, satisfações (hum-hum, ahã), ou então dizendo
coisas, como: ''Não, este é muito estreito, talvez seja melhor usar este outro"
ou "Agora deu!" ou "Apanhei-o!", ou "Este não ficou tão mal", e assim por
diante. Desse modo, não se pode separar o pensamento da atividade de con-
sertar a máquina, como também não se pode tomá-lo como um processo pa-
ralelo que acompanha o conserto da peça; e, nesse caso, ainda se pode dis-
tingui-lo de uma atividade meramente mecânica (RPP, 2, § 183- 184). Além
dos elementos reflexivos e práticos do conceito de pensamento, pode-se con-
siderar um componente emotivo do pensamento, de cuja análise Wittgens-
tein deixou apenas alguns indícios (Budd, 1989, p. 155). A gramática do
pensamento, por confi.mdir-se com a complexidade do conceito de interior,
parece ter mais a ver com as emoções do que com as sensações. O uso desse
conceito, à primeira vista, pode, em certas situações, estar como que conta-
giado pelas emoções, porquanto se pode falar de um pensamento triste, de
um pensamento alegre ou jovial, de um pensamento assustador ou esperan-
çoso; pois se um pensamento pode originar essas emoções, ele não pode fa-
zer o mesmo com uma dor qualquer, dor de dente ou de cabeça. Posso me
livrar de uma dor tornando uma aspirina, mas que medicamento me afastaria
de pensamentos tristes ou repugnantes? Qual a relação entre estas duas ins-
tâncias conceituais? Não estaríamos assim confundindo dois conceitos dis-
tintos, tomando o uso de um pelo de outro, como se o pensamento fosse uma
ocorrência paralela às emoções, ou como se se pudesse mesmo ser açambar-
cado por elas, como se fosse vulnerável a emoções como o medo ou o temor.
Esse tipo de engano origina questões, como: o pensamento é vulnerável ao
medo ou o medo é vulnerável ao pensamento? O engano deve-se novamente
a que uma emoção pudesse ser a causa de um pensamento, que um pensa-
mento agradável se devesse a uma emoção que, desde fora, afetasse o pen-
samento e o afastasse do tédio ou da amargura. Novamente estamos às voltas
com o modelo objeto-designação, em que a relação conceitual é externa; ou o
pensamento dirige-se para a emoção, ou a emoção contamina o pensamento,
ou simplesmente o acompanha. Neste caso o elemento emocional é parte
Sobre o Pensamento 261

integrante dele. Um pensamento temeroso ou assustador é algo que diz res-


peito ao modo de ser do pensamento mesmo, e, como tal, não poderia ser
alterado por emoções alegres ou prazeirosas. Um pensamento assustador
pode ser alterado, dando um rumo distinto ao pensamento, ou substituindo-o
por um pensamento mais agradável. Uma expressão como "Não posso pen-
sar sobre isto sem medo" pode ser contornada com por outra "Não há razões
(Grund) para ter medo, veja que..." (RPP, 2, § 161). O medo é vulnerável ao
pensamento, mas no sentido em que um pensamento com medo pode ser
substituído por um pensamento mais tranqüilizador ou mais audacioso que,
ao se articular de um outro modo, rompe a barreira do medo incrustada no
próprio pensamento.
Por ora, temos condições de compreender o conceito de pensamento I)
fora da aura de sublime ou de imponderável à medida que ele é agora, ao
contrário, compreendido desde a noção "repulsiva" de uso (RPP, I, § 548) -
a essência do pensamento encontra-se na gramática; 2) o pensamento não é
uma atividade mental ou cerebral; 3) o pensamento não é "atividade auxili-
ar", com a qual se alcançaria um objetivo externo, ou pela qual algo emergi-
ria na superficie do mundo; 4) a linguagem não é um meio através do qual
se revela o pensamento; 5) o pensamento não é um enigma que pode ser
resolvido por a lguma teoria, e, 6) o conceito de pensamento é plw-ívoco.

Referências bibiográficas e abreviaturas

Budd, M. 1989. Wittgensteins 's Philosoplry o.f Psychology. Londres: Rou-


tledge.
Gianotti, J. A. 1995. Apresentação do Mundo. São Paulo: Companhia das
Letras.
Hacker, P. M. S. I 990. Wittgenstein: Meaning and Mind; An Analytical
Commentaty on the Philosophical lnvestigations. Oxford: Blackwell.
vol. 3.
Schulte, J. 1993. Experience and Expression: Wittgenstein 's Philosophy of
Psycho/ogy. Oxford: Clarendon Press.
Wittgentsein, L. 1984. Werkausgabe. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 8
vols.
- -. 1984. Phi/osophische Untersuchungen (PU). Band I, Frankfurt am
Main: Suhrkamp.
- - . 1980. Remarks on the Phi/osophy of Psychology. (RPP, l) Oxford:
Blackwell, vol. I.
262 Luiz Hebeche

1980. Remarlcs on the Phi/osophy of Psychology. (RPP, 2), Oxford:


Blackwell, vol. 2.
--.1982. Last Writings on the Phi/osophy of Psycho/ogy: Preliminary
Studies for Part li of Philosophica/ Investigations. vol. I (LWPP, 1),
Oxford: Blackwell.
- - . 1992. Last Writings on the Phi/osophy of Psychology: The Inner and
the Outer, vol. 2 (LWPP, 2), Oxford: Blackwell.
0 MODELO DETERMINISTA DO UNIVERSO
NA FILOSOFIA MODERNA

SARA ALBIERI
Universidade Federal de Santa Catarina

A metáfora que melhor representa o modelo dos pensadores modernos é a do


relógio. Ela alude a um mostrador e um mecanismo: do lado externo, visí-
veis, os fenômenos da natureza; por trás deles, ocultas, as engrenagens que
os impulsionam, suas causas. O que o mostrador apresenta é movimento; é
ele que precisa ser explicado. A chave que decifra suas proporções, que
permite seu cálculo é mecanismo: o funcionamento regular de engrenagens
internas, uniforme, regido por leis. Se o mostrador nos aparecer confuso,
desregulado, não será devido ao acaso: um exame do mecanismo apontará as
causas interferentes da disjunção. E também o modo de corrigi-la. Porque a
explicação mecânica da ação está também na origem da intervenção: o reló-
gio do universo envolve os teóricos que explicam os seus movimentos, e os
técnicos que efetuam consertos, substituições e aprimoramentos em suas
partes. Tanto é possível decifrar as leis que regem o mecanismo, como inter-
vir nele, para reparos ou aprimorá-lo.
Ciência moderna, mas também técnica moderna. O relógio da natureza
confere dignidade e importância aos artesãos que constroem seu análogo, o
relógio mecânico, tanto quanto aos que, a partir deste, desenvolverem os
sofisticados instrumentos que servem aos seus observadores e teóricos.
Vale notar que durante os séculos XVI e XVII os grupos intelectuais que
contribuíram para o desenvolvimento da saber científico tinham um caráter
amplo e heterogêneo, incluindo desde professores de matemática, astrono-
mia e medicina nas universidades, até a médicos, engenheiros, construtores
de instrumentos, óticos, viajantes. Foi um intervalo entre o mestre artesão
medieval e o doutor universitário da Idade Moderna, em que, para se tomar
"cientista", não era preciso latim ou matemática. "As publicações nos anais
das academias e o ingresso nas sociedades cientificas estavam abertos a
todos- professores, experimentadores, artesãos, curiosos e diletantes" 1• As

1
Rossi, P., Os Filósofos e as Máquinas, p. 10.

Mortari, C. A. & Dutra, L. H. de A. (orgs.) 1998. Anais do IV Encontro de


Filosofia Anafftica. Florianópolis: NEL, pp. 263-76.
264 SaraAJblui

universidades parecem ter-se mantido, durante o século XVII, fechadas às


doutrinas da nova filosofia mecânica experimental. Esta era principalmente
difundida nos anais e periódicos das academias e das várias sociedades cien-
tificas. Os cientistas "cultos" nos moldes tradicionais passam a levar em
consideração os grandes progressos da técnica empírica, relatados nas publi-
cações que polemizam com as teorias ministradas nas universidades, e de
alguma forma a incorporar para a nova ciência o ideal de submeter a nature-
za, antes exclusivo das artes e oficios. Era natural, então, que os produtos
dessas mesmas artes fornecessem às ciências suas metáforas.
A metáfora do relógio é uma espécie de lugar comum nos autores do século
XVII; ela está presente em Descartes, Locke, Newton e Boyle, apenas para
citar os maiores nomes. Ela parece adequar-se à doutrina corpuscularista,
comum a todos, na medida em que as partes diminutas que constituem a
tessitura última do real se ocultam à vista tal como as engrenagens de um
relógio sob o mostrador. Podemos citar Descartes:

"Para o que o exemplo de diversos objetos construídos pelo artifício dos ho-
mens me serviu bastante: pois não reconheço diferença alguma entre as má-
quinas que os artesãos constróem e os diversos corpos que só a natureza
constrói, exceto que os efeitos da máquinas só dependem da ação de certos
tubos ou peças ou outros instrumentos que, tendo que guardar alguma pro-
porção com as mãos daqueles que os fabricam, são sempre tão grandes que
suas formas e movimentos podem ser vistos, enquanto os tubos ou peças que
causam os efeitos dos corpos naturais são de ordinário pequenos demais para
serem percebidos por nossos sentidos. E é certo que todas as regras da mecâ-
nica pertencem à física, de modo que todas as coisas que são artificiais são
por isso naturais. Pois, por exemplo, enquanto um relógio marca as horas por
meio das engrenagens de que é feito, isto é tão natural quanto para uma árvo-
reproduzir seus 1Tutos."2

O corpuscularista Locke também recorre ao mesmo artificio textual:

Nossas Faculdades não nos conduzem mais longe no conhecimento e distin-


ção de Substâncias do que em uma coleção daquelas Idéias sensíveis que
nelas observamos; a qual, embora feita com maior diligência e exatidão de
que somos capazes, contudo está mais distante da constituição interna de
onde partem tais qualidades do que, como disse, está a idéia de um campo-

2
Descartes. CEuvres, vol. ill, iv, Príncipes..., p. 520.
O Modelo Determinista do Universo na Filosofia Moderna 265

onde partem tais qualidades do que, como disse, está a idéia de um campo-
nês do mecanismo interno daquele famoso relógio de Estrasburgo, do qual só
vê a figura externa e os movimentos. 3
A referência ao mecanismo da natureza se encontra também em Hume,
em geral, porém, aludindo à necessidade das leis que regem os fenômenos
da natureza:

"Tudo é certamente governado por leis estáveis, invioláveis" diz Fílon nos
Diálogos. "Em vez de admirar a orde m dos seres da natureza, deveriamos
ver claramente que seria absolutamente impossivel para eles, no menor as-
pecto, admitir qualquer outra disposição."4

Hurne fala também dos princípios da natureza humana a serem desco-


bertos por sua ciência, como as molas de um mecanismo- "descobrir, pelo
menos em certo grau, as molas e princípios secretos pelos quais a mente
humana é guiada nas suas operações" (EHU, I, 9).
O interessante disto tudo é que mecanismo está sempre associado a de-
terminismo. O relógio dos modernos é sempre interpretado como urna me-
táfora determinista no sentido forte. A cadeia causal que move o mecanismo
da natureza é um sistema preciso onde não há lugar para o acaso. Se se
altera, se se detém, novas causas interferiram: quando desvendadas e conhe-
cidas, reestruturam nosso modelo mecânico numa nova ordem. Em qualquer
caso, um determinismo otimista: a completa explicação do mecanismo é um
questão de tempo e de instrumentos. Quando as partes diminutas se toma-
rem visíveis nas poderosas lentes dos microscópios, confirmaremos o que
agora só podemos conjeturar acerca das causas ocultas dos fenômenos. O
determinismo mecanicista - e seu símbolo, o relógio - assim foi lido pela
posteridade.
No artigo "De Nuvens e relóg ios" 5 , Popper procura situar a metáfora do
determinismo clássico perante as teorias fisicas indeterministas. Assim, o
relógio de precisão representa sistemas fisicos que são regulares, ordenados,
e de comportamento altamente previsível. Já as nuvens representam sistemas
fisicos que, tal qual gases, são irregulares, desordenados e mais ou menos
imprevisíveis. Popper toma o determinismo físico como uma conseqüência
da dinâmica de Newton que afU111a um mundo de precisão matemática ab-
soluta. A metáfora do relógio é entendida da maneira mais radical: como um

3
Locke. Essay on Human Understanding, m, vi, 9.
4
Hume. Dialogues Concerning Natural Religion, p. 420.
5
Popper, K., De Nuvens e Relógios, in: Conhecimento Objetivo, p. 193s.
266 Sara Albieri

mecanismo completamente auto-suficiente, sem intervenções externas nem


acaso. O que a teoria de Newton fez valer para o movimento dos planetas,
marés e balas de canhão, passou a valer para todo o universo. O que não nos
parecia preciso como relógios - mas errático como nuvens, na metáfora de
Popper - assim o era apenas devido ao estado atual de nossos conhecimen-
tos, ou nossa ignorância. O avanço das descobertas acabaria por mostrar que
nuvens gasosas ou organismos têm mecanismos tão precisos quanto o
"relógio" que é o sistema solar newtoniano.
Talvez, porém, o modelo determinista não tenha uma aplicação tão paci-
fica e sem ambigOidade nos autores desse período. Talvez a metáfora do
relógio permita mais de uma interpretação. Em defesa de uma leitura dife-
rente do determinismo cartesiano, Laudan 6 transcreve o seguinte trecho:

Assim como um relojoeiro engenhoso pode fazer dois relógios que marquem
as horas igualmente bem e sem nenhuma diferença em sua aparência exter-
na, e contudo sem nenhuma semelhança na composição de suas engrenagens,
assim é certo que Deus trabalha de modos infinitamente diversos, cada um
dos quais lhe permite fazer tudo no mundo aparecer como é, sem tomar pos-
sível à mente humana conhecer qual dessas maneiras decidiu utilizar. E creio
ter feito o suficiente se as causas que listei sejam tais que os efeitos que pos-
sam produzir forem semelhantes àqueles que vemos no mundo, sem sermos
informados se há outros modos pelos quais são produzidos." 7

Trata-se de um texto revelador não só do mecanicismo de Descartes, já


bem conhecido e reconhecido pelas interpretações clássicas, mas que apon-
tam para um Descartes formulador de hipóteses. É tese de Laudan que, em-
bora Descartes afirme constantemente a dedutibilidade dos fatos da física a
partir dos Primeiros Princípios, nenhuma dedução por ele oferecida para
algum fato particular parece ser única ou exaustiva. Na verdade, em sua obra
científica, ele cairia constantemente em afirmações hipotéticas. O método
hipotético é o único método coerente com a fi losofia corpuscularista, e com a
metáfora do relógio. Se as "partes diminutas" - o mecanismo - estão para
sempre ocultas à nossa investigação e nosso conhecimento delas será sempre
conjecturai.
No texto de Descartes, a metáfora do relógio adquire o valor de uma
analogia. É possível falar das coisas imperceptíveis por analogia com as
sensíveis. É possível confiar em que os processos insensíveis sejam análogos

6
Laudan. L., The Clock Metaphor and Hypotesis, in: Science and Hypothesis.
7
Descartes, CEuvres, vol. ill, i v, Pricipes..., p. 521.
O Modelo Determinista do Universo na Filosofia Moderna 267

aos sensíveis, e que é possível conhecê-los estendendo hipoteticamente esta


similitude.
Se é esta a leitura privilegiada da metáfora do relógio, o mesmo vale para
Locke e sua aceitação da hipótese corpuscularista em ciência. Esta leitura,
evidentemente, contraria a versão tradicional do empirismo de Locke. Intér-
pretes como Yost, por exemplo, afirmam que o empirismo de Locke se opu-
nha claramente a toda teoria científica que fizesse hipóteses a respeito de
inobserváveis. Se recorria a elas, "eram hipóteses sobre correlações entre
qualidades observáveis, e não se referiam a mecanismos sub-
microscópicos. " 8
Contudo, há textos de Locke que apontam para a aceitação do método de
hipóteses como método científico. Por exemplo, referindo-se à limitação de
nosso conhecimento da co-existência de poderes nos corpos, defende a
''hipótese corpuscularista como a que mais avança numa explicação inteligí-
vel daquelas qualidades dos corpos." Mas admite que nenhuma hipótese
permitirá o conhecimento pleno daquelas qualidades; duvida que '"'com as
faculdades que temos sejamos um dia capazes de conduzir muito mais adi-
ante nosso conhecimento sobre isso."9 Como Descartes, ele admite o caráter
definitivamente oculto do mecanismo apenas para consagrar o caráter con-
jecturai e probabilístico de nossa ciência da natureza.
A aceitação do método de hipótese, segundo Laudan, parece ter enfra-
quecido à medida que aumentava a fé no microscópio, a ponto de, por volta
da metade do século XVIII, já perder francamente terreno para a observação
e a experiência. A metáfora do relógio ainda é utilizada, mas com um novo
significado: ela agora simboliza o otimismo frente aos mecanismos ocultos
da natureza, confiando que, através de instrumentos adequados, poderão ser
escrutinados por uma observação cuidadosa, estabelecendo ou refutando por
fim a teoria corpuscular. Henry Power confia em que, com a ajuda do mi-
croscópio seremos capazes de eventualmente ver corpúsculos e "determinar
seus mecanismos precisos." Ele prevê a construção de uma "filosofia verda-
deira e permanente", baseada na devassa microscópica da natureza e nas
"demonstrações infalíveis da mecânica."
Neste outro texto Power defende não somente uma base sólida para a
filosofia experimental como apresenta a síntese acabada do teórico e do
instrumental.

8
Yost, R , 1951. pp. 111-30.
9
Essay ••• Iv, iii, 19.
268 Sara Albieri

Pois os antigos dogmáticos e cspeculadores de noções, que somente viam os


efeitos visíveis c os resultados últimos das coisas, não entendiam mais da
natureza do que um rude camponês entende do mecanjsmo interno de um
relógio, de que somente vê os números e o círculo horário, e quem sabe ouve
o alarme soar nele. Mas quem der conta satisfatoriamente dos fenômenos,
deve ser de fato um artlfice, e um especializado nas engrenagens e artefatos
internos de tais engenhos anatômicos" 10•

E 1-fooke escreve:

" ... e com a ajuda dos microscópios, nada há tão pequeno que possa escapar à
nossa investigação. Parece provável que com a ajuda destes [instrumentos
óticos] a sutHcza da composição dos corpos, a estrutura de suas partes, a
textura variada de sua matéria, os instrumentos e o modo de seus movimen-
tos internos, e todas as aparências posslveis das coisas, poderão ser mais
plenamente descobertas ..." 11

Assim, aos poucos, a metáfora que Descartes e os filósofos sistemáticos


ajudaram a criar volta-se contra eles. Antes o relógio representava o teor do
conhecimento da natureza, feita de macanismos e regularidades, mas tam-
bém o seu limite, seu caráter hipotético e conjecturai diante do permanente-
mente oculto. Tratava-se de um "determinismo pessimista". Agora, a fé na
capacidade dos instrumentos óticos compara essa renúncia ao conhecimento
cabal dos mecanismos à atitude simplória do leigo, ao temor do homem rude
diante das sutilezas que o observador treinado está preparado para desven-
dar, dispondo de instrumentos adequados. As hipóteses recuam diante do
avanço da técnica.
Se é verdadeira a descrição dessa evolução histórica, Hume, enquanto
autor do século XVIII, deveria compartilhar desse novo "otimismo" meto-
dológico; em vez de lançar hipóteses para "salvar as aparências", deveria
tentar descobrir realidades. No entanto, este otimismo parece estar bem
longe de Hume. Por exemplo, embora se refira às molas e princípios que
produzem os fenômenos, através de um "mecanismo regular e constante",
nunca conta com a possibilidade de termos delas um conhecimento pleno.
Podemos até nos orientar pelo horizonte de wna ciência perfeita, ou a "mais

10
Power, H., 1664. Experimental Philosophy, Prefácio, citado por Laudan in 'The
Metaphor and Hypothesis", p. 48.
11
Micrografia, London, I 665, prefácio, citado por Laudan, The Clock Metaphor...,
p. 56,
O Modelo Determinista do Universo na Filosofia Moderna 269

inteligível filosofia"; contudo, ela não interfere na construção de nossa ciên-


cia hoje, que, para fins operacionais, não pode guiar-se por essa esperança.
As qualidades últimas e originais da natureza, incluindo a natureza humana,
que residem "na textura e estrutura particular das partes diminutas" dos
homens, animais e das coisas, estão totalmente escondidas dos nossos olhos
e dos microscópios: a idéia reguladora de Hume é que seu conhecimento se
encontra indefinidamente fora de nosso alcance. 12

Deve-se admitir que a natureza nos manteve a grande distância de seus se-
gredos, e apenas nos pennitiu o conhecimento de algumas qualidades super-
ficiais dos objetos, enquanto nos oculta aqueles poderes e princípios dos
quais depende inteiramente a influência desses objetos." 13

Os textos da teoria do conhecimento de Hume são inequívocos a respeito


do processo de descoberta de causas: a partir da experiência dos efeitos,
podemos inferir as causas, quer sejam apenas inobservadas ou inobserváveis.
É assim que chegamos ao conhecimento das leis das operações dos corpos
bem como dos princípios da natureza humana. Mas não é possível à espe-
culação filosófica apontar a causa última de qualquer dessas operações.

Reconhece-se que o supremo esforço da razão humana é reduzir os princípios


causadores dos fenômenos naturais a uma maior simplicidade e reportar os
numerosos efeitos particulares a umas poucas causas gerais por meio de raci-
ocínios baseados na analogia, na experiência e na observação. Mas, quanto
às causas dessas causas gerais, seria em vão que tentaríamos descobri-las; e
tampouco encontraremos jamais uma explicação delas que nos convença ple-
namente. Essas origens e princípios primeiros são completamente fechados à
curiosidade e à investigação humanas." 14

Levando-se em conta esses textos Hume parece ser tão cético a respeito
da explicação causal plena do universo quanto o é no célebre argumento
contra a fundamentação racional da indução. E no entanto outros textos
afirmam a tese da causação universal estendida igualmente a fenômenos
naturais e humanos.

12
Hume. O. NHR, ID, p. 316. Sobre a presença do método de hipóteses na filosofia
dde Hume. ver J. P. Monteiro, ''A Teoria e o Inobservável", in: Hume e a Epistemo-
logia.
13
EHU, IV, ii, 29.
14
EHU, IV, i, 26.
270 Sara Albieri

Admite-se universalmente que a matéria é atuada em todas as suas operações


por uma força necessária e que todo efeito natural é determinado com tal
precisão pela energia de sua causa, que, nas mesmas circunstâncias dadas,
não seria possível resultar dela nenhum outro efeito. (...) Admite-se univer-
salmente que existe uma grande uniformidade entre as ações dos homens em
todas as nações e idades, e que a natureza humana permanece sempre a
mesma em seus principios e operações." 15

Na verdade, a tese determinista humeana é a de que os fenômenos cons-


tituem uma só cadeia causal e de que não há ruptura que separe em dois
universos de conhecimento diferentes as operações dos corpos e as operações
da mente. "E em verdade, quando consideramos a afinidade com que a evi-
dência natural e a moral se ajustam uma à outra, e formam uma só cadeia de
argumentação, não hesitamos em admitir que elas são da mesma natureza e
derivam dos mesmos princípios." Dessa forma, nenhum fenômeno, quer
pertença à esfera da natureza, quer seja da ordem das ações dos homens,
escapa à "cadeia conexa de causas naturais e ações voluntárias" que não ~á
margem à intrusão do acaso16• Todos os fenômenos, morais ou naturais,
estão ligados por relações de causalidade, observáveis ou não, conhecidas ou
não, e por elas devem ser explicados. Apoiado em tal rede de relações, o
conhecimento das ações dos homens não é menos seguro que o dos fenôme-
nos da natureza.
Apenas é possível distinguir graus em nossas certezas morais, como nas
naturais. Assim, "existem algumas causas que são inteiramente uniformes e
constantes na produção de um efeito particular, e até hoje não se observou
17
um só exemplo de fallia ou irregularidade na sua operação" • Que o fogo
queima e a água sufoca a criatura humana são causas dessa ordem, assim
1
como que todos os homens são mortais. De resto 'pareceria ridículo dizer
18
que é somente provável que o sol nascerá amanhã." Do mesmo grau de
certeza partilha a seguinte afirmação: "um homem que ao meio-dia deixa a
sua bolsa cheia de ouro no passeio de Charing Cross, tão facilmente pode
esperar que ela crie asas e levante vôo dali como que a encontrará intata
uma hora depois." 19

15
EIID, vm, 64-65.
16
EIID, vm. 10.
17
EHU, VI, 47.
18
THN, I, iii, 11, p.l24.
19
EIID, vm, i, 10.
O Modelo Determinista do Universo na Filosofia Moderna 271

A tais inferências Hume atribui o valor de provas - "argumentos extraí-


dos da experiência que não deixam lugar a dúvida ou contestação."20 Muitas
vezes, porém, atribuímos a nossas inferências sobre questões de fato graus
inferiores de certeza, sempre que estas se referem a causas que se têm mos-
trado mais irregulares e incertas: "o ruibarbo nem sempre age como um
purgativo ou o ópio como um soporífero para todos os que ingerem esses
medicamentos." Nesses casos em que "efeitos diferentes" parecem decorrer
de "causas aparentemente idênticas", nossos argumentos têm o valor de
probabilidades. Costumamos esperar como mais provável, portanto como
acompanhado de maior certeza, o evento "mais usual", que no passado ocor-
reu um maior número de vezes, sem contudo deixar de levar em conta os
vários outros efeitos já ocorridos dando "a cada um deles um peso e autori-
dade particular, conforme se haja mostrado mais ou menos freqüente no
passado."21
Nesse âmbito em que toda experiência do mundo é repartida entre provas
e probalidades, não há lugar para o acaso. Hume estende sua idéia de deter-
minação e de necessidade para as questões de fato, não apenas quando se
trata de provas; também no caso das probalidades, tem que haver cadeias
causais necessárias, no sentido de que a cada efeito corresponde sempre uma
causa proporcional. Apenas, no caso destas últimas, nosso exame experi-
mental das causas falhou em distingui-ias adequadamente, e por isso é que
apenas aparentemente efeitos diferentes podem decorrer de causas idênticas.
O que pode parecer um fenômeno acidental não é senão um efeito cuja causa
nos é desconhecida, uma irregularidade que se deve a alguma causa parti-
cular, mas que não invalida de modo algum nossa concepção de uniformida-
de e necessidade. Assim, "quando os medicamentos não operam com os seus
poderes costumeiros", o médico nem por isso nega "a necessidade e unifor-
midade dos princípios que regem a economia animal." 22 Da mesma form a, o
filósofo que examina as ações dos homens não se deixa enganar por irregua-
ridades aparentes, porque confia que os "princípios e motivos interiores
poderão operar de maneira uniforme ... assim como os ventos, a chuva e as
nuvens são governados, ao que se supõe, por princípios constantes, embora a
sagacidade e a investigação humana não consigam descobri-los facilmen-
te."23 Os fenômenos em geral apresentam-se irregulares, e cabe à sagacidade

20
EHU, VI, nota 9.
21
EHU, VI, 47.
22
EHU, VII, i, 67.
23
EHU, 68.
272 Sara Albieri

do observador descobrir sua necessidade e regularidade, no caso do médico


como do astrônomo, corno também do filósofo moral.24
É deste ponto de vista que podemos entender a homogeneidade que Hu-
me reconhece entre necessidade fisica e necessidade moral. Se é verdade que
os fenômenos humanos nos parecem mais confusos, dificultando um recorte
experimental que exponha com nitidez a operação uniforme das cadeias
causais, nem por isso devemos concluir que são de outra ordem que os fe-
nômenos naturais, ou que ocorram de maneira menos necessária.
Se desconhecemos as causas de certos fenômenos, ou se efeitos diferentes
parecem decorrer das mesmas causas, isso se deve ao desconhecimento que
temos de todas as circunstâncias envolvidas na produção do evento. "As
mais irregulares e inesperadas resoluções dos homens podem ser freqüente-
mente explicadas pelos que conhecem todas as circunstâncias particular~ de
seu carát:~ e situação."2~ Portant~, o que Hume nos diz ~-~espeitot,da un~qade
entre fenomenos naturaiS e mora1s nada tem a ver com 'a' recusa de-um co-
nhecimento seguro; ao contrário, afirma que doravante as ciências do ho-
mem poderão contar com o mesmo grau de certeza sempre atribuído às ciên-
cias naturais.
Mas a tese humeana da causação universal não eqüivale a uma tese de-
terminista em sentido forte. Vimos que a explicação causal dos fenômenos
tem alcance limitado, e que inúmeros textos seus nos repetem que nunca
atingiremos as "causas ocultas" dos fenômenos, que os poderes pelos quais
os corpos operam permanecerão sempre completamente desconhecidos,
inacessíveis à nossa ciência26• E esse desconhecimento do "princípio últi-
mo", que liga uma causa a seu efeito é o mesmo, tanto para as conjunções
mais freqüentes, entre dois fenômenos, quanto para as mais extraordinári-
as.27
Nesse sentido, o ' 'relógio da natureza" de Hume não é diferente daquele
de Descartes ou Locke, sobre cujo mecanismo não é possível mais que um
conhecimento hipotético. Por outro lado, é preciso operar com esse conhe-
cimento como se ele realmente desse conta desse mecanismo oculto. Diz
Descartes:

24
Cf Lebrun, G., La Boutade de Charing-Cross.
2S Ibidem.
26
Por exemplo, no Tratado, Hume critica os filósofos que, para explicar qualquer
fenômeno ignorado, atribuem-no a uma "fàculdade" ou "qualidade oculta". THN, I,
iv, 4, p.224.
27
THN, I, i v, p.267.
O Modelo Determinista do Universo na Filosofia Moderna 273

" ... desejo que o que cu escreva seja tomado apenas como uma hipótese, a
qual está talvez bem distante da verdade; mas, mesmo que assim fosse, eu
acreditava ter feito o bastante se todas as coisas que fossem delas deduzidas
fossem inteiramente conformes às experitlneias: pois se assim for ela será tão
útil à vida quanto se fosse· verdadeira, porque poderia servir do mesmo modo
para dispor as causas naturais a produzirem os efeitos que se deseje. 28

Nada há de errado em tal procedimento. O título do § 204, parte lV dos


mesmos Princípios garante que "a respeito das coisas que nossos sentidos
não percebem, basta explicá-las como poderiam ser"; afinal, isto "é tudo o
que Aristóteles se dispôs a fazer."
Boyle, cartesiano quanto à maioria dos postulados metodológicos básicos,
conforme compe_tentemente mostra Laudan, confirma a origem aristotélica
dessa postura de ater-s~ ãs hipóteses que provem sua eficácia em explicar os
fenômenos e operá-los, sem perguntar pela verdade última:

O próprio Aristóteles (embora pareça às vezes expressar confiança) no seu


primeiro livro dos Meteoros candidamente confessa que, a respeito de muitos
fenômenos da natureza, julga suficiente que possam conduzir-se da forma
como ele os explica." 29

A concepção hobbesiana do conhecimento científico não é menos con-


jecturai, e muito semelhante à linguagem cartesiana:

" ... aquele que supondo um ou mais provimentos, pode deles derivar a neces-
sidade daquele efeito cuja causa se requer, fez tudo o que se espera da ra;r..ão
natural. E embora não prove que a coisa foi produzida dessa forma, contudo
prova que dessa forma pode ser produzida ... o que é tão útil quanto se as
causas mesmas fossem conhecidas.'' 30

Tantos exemplos para o caráter paradigmático dessa atitude metodológi-


ca frente ao uso de hipóteses e ao alcance das explicações assim produzidas.
Se mostramos que Hume também faz hipóteses, ele não é exceção quanto a
tomá-las por seu caráter operacional:

28
(Euvres, m, iii, Príncipes, p. 247.
29
Laudan, L., The Clock Metaphor ... , p. 41.
30
Hobbes, English Works, vol. VII, pp. 3-4, London, 1845.
274 Sara Albieri

Qualquer coisa pode produzir qualquer coisa. Criação, aniquilação, movi-


mento, razão, volição; todas estas podem surgir umas das outras, ou de qual-
quer objeto que possamos imaginar. (...)
Portanto, já que é possívcl1para todos os objetos tomarem-se causas ou efeitos
uns dos outros, pode ser adequado estabelecer algumas regras gerais, pelas quais
possamos saber quando o são de fato." 31

Esta é a introdução que Hume dá às regras para julgar as Causas e os


Efeitos", que dizem respeito a procedimentos de decisão sobre relações cau-
sais e métodos para testar a procedência de relações causais. Elas propõe um
guia seguro para casos duvidosos em que se insere a maioria de nossos raci-
ocínios sobre a natureza e os homens, sobre questões de fato. Algumas des-
sas regras já são versões dos Métodos da Concordância, Diferença e Varia-
ções Concomitantes mais tarde tornados famosos por Mill como métodos
para a avaliação da indução. Parece claro que Hume se preocupava sobretu-
do com a eficácia experimental das relações causais estabelecidas, e silenci-
ava sobre o seu caráter de adequação à verdadeira natureza dos fenômenos.
A metáfora do relógio refere-se também à técnica não sem propósito. Os
exemplos de Hume, vimos, são do astrônomo, do médico. Descartes também
defende essa aplicabilidade

"... pois a Medicina, a mecânica, e em geral todas as artes às quais o conhe-


cimento da fisica pode servir, só têm por finalidade aplicar de tal forma cer-
tos corpos sensíveis uns aos outros, que em decorrência de suas causas natu-
rais, certos efeitos sensíveis sejam produzidos."32

A tese da determinação em ciência, quando afirmada de forma estrita-


mente universal, não pode a rigor ser defendida como uma generalização
bem fundada acerca do mundo tal como o conhecemos. Não pode ser de-
monstrada, porque há um conjunto talvez infmito de eventos dos quais não
conhecemos as condições determinantes. Não pode ser refutada, porque
fracassar em descobrir as condições determinantes de um evento não de-
monstra que não existam de fato tais condições. Ela é uma tese frutífera
quando utilizada como princípio operativo, regulador, o qual, tal como o
principio da causalidade, constitui um dos principais objetivos da ciência,
isto é, a descoberta dos determinantes dos eventos.33

31
THN, I, iii, 15, p. 173.
32
Principes, p. 522.
33
Nagel. E., La Structura de La Ciência, p. 543.
O Modelo Determinista do Universo na Filosofia Moderna 275

É este o estatuto do determinismo em Hume: o de um princípio regulador


que ajuda a operar recortes experimentais. Nos dois campos, natural e mo-
ral, acaso e necessidade perdem sua dimensão ontológica e passam a desi-
gnar a passagem contínua que vai do regular ao extraordinário, distinções
de grau acessíveis ao observador sagaz, ao experimentador. Os diversos
graus de conexão causal entre os fenômenos só podem ser estabelecidos pela
ciência experimental que doravante se posicionará diante do "acaso" ou do
"acidente" como o cientista diante do ''fracasso" de um experimento, per-
guntando-se: "Qual a outra série descontínua cuja intrusão provocou a in:e-
gularidade aparente?" 34
Há dois sentidos, portanto, na metáfora do relógio, que correspondem a
dois tipos de determinismo. O determinismo em sentido forte, otimista, vê o
relógio como símbolo da regularidade da natureza que é missão da ciência
decifrar; com o avanço da técnica e dos instrumentos de observação, ela
acabará por fazê-lo. É esse o relógio que Popper critica em favor das nuvens.
O determinismo em sentido fraco é pessimista; sabe que a única evidência
sobre o mecanismo oculto do relógio é o mostrador. Este é apenas um indí-
cio da regularidade, da uniformidade. As hipóteses explicativas são eficazes
na medida em que levam em conta essa regularidade. Mas só valem por essa
eficácia, e por ela são avaliadas. É esse o mecanismo misterioso do relógio
para os pensadores modernos, de Descartes a Hume. Estes, ao mesmo tempo
que constróem suas hipóteses tendo como horizonte teórico a regularidade e
a uniformidade da causação universal, restringem seu alcance à explicação
dos fenômenos, aceitando que os segredos da natureza permanecerão inaces-
síveis a qualquer investigação.

Referências bibliográficas

Alexander, P., 1985. Jdeas, Qua/ities and Corpuscles: Loclce and Boyle and
Externa/ World. ambridge: University Press.
Descartes, R.,l973. CEuvres Philosophiques.Paris: Gamier.
Hobbes, Th. 1966. The English Works of Thomas Hobbes. Alemanha, Sci-
entia Verlag Aaalen.
Hume, D., 1967. A Treatise of Human Nature. (THN), Selby-Bigge (ed.),
Oxford: Clarendon Press.

34
Lebrun, G., La Boutade de Charing-Cross, p. 75.
276 Sara Albieri

- - . 1957. An Enquiry Concerntng the Principies of Mora/s. (EPM),


Oxford: Clarendon Press.
Laudan, L., 1981. Science and Hipothesis. Histtorical Essays on Scientific
Methodology. Boston : D. Reidel.
Locke, J., 1959. An Essay Concerning Human Understanding. New York:
Dover.
Monteiro, J. P. 1984. Hume e a Epistemologia. Lisboa: lmprensaNacional
Casa da Moeda.
Popper, K. R. 1975. Conhecimento Objetivo. São Paulo: Editora da USP.
Rossi, P. 1989. Os Filósofos e as Máquinas. ·São Paulo: Companhia das
Letras.
Yost, R 1951. ''Locke' s Rejection of Hypotesis About Sub-Microscopic
Events." Journa/ ofthe History ofideas, 12: 111-30.
• CONFECCIONADO NAS OFICINAS GRÁFICAS DA

I IMPRENSA UNIVERSITÁRIA DA UNIVERSIDADE


FEDERAL DE SANTA CATARINA
ABRIU99
FLORIANÓPOLIS- SANTA CATARINA- BRASIL
O IV Encontro de Filosofia
Analítica realizou-se em
Florianópolis, SC, de 6 a 9
de outubro de 1997, em
homenagem a Thomas S. Kuhn.
Foi promovido pela Sociedade
Brasileira de Análise Filosófica
c pelo NEL- Núcleo de
Epistemologia e Lógica, UFSC.
Os textos publicados neste
volume são parte dos trabalhos
apresentados.

SOCIEDADE
BRASILEIRA
DE ANÁLISE
FILOSÓFICA

Você também pode gostar