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MATHESIS 3 1994 35-42 O LUGAR DA PRAGMATICA NA TEORIA E NA ANALISE LINGUISTICAS JOAQUIM FONSECA 1. Na Linguistica contemporanea reconhecem-se com nitidez dois grandes paradigmas dominantes: designa-los-ei de Linguistica do Sistema e Linguistica do Uso/Funcionamento do Sistema. 1.1. A Linguistica do Sistema pode ser globalmente caracterizada na base dos seguintes tragos que nela so salientes: (i)- tem como referéncia central, no recorte do seu objecto formal, a nogdo de Jangue (F. de Saussure) ou a de competéncia linguistica (N. Chomsky), entendidadas como acervo idiomatico tomado como complexo sistematico de signos ¢ de principios que regem a sua estruturagdo e a sua combinatéria; i) - considera estes signos como tipos, a que chega através de uma forte idealizagio/modelizagao dos dados linguisticos concretos, ¢ caracteriza-os com base nas suas relagdes paradigmaticas e nas suas virtualidades sintagmaticas, referindo estas ultimas a boa formagdo de unidades até ao limite maximo da frase; (ii) - 6 dominada, do ponto de vista metodoldgico, pelo principio da imanéncia, na base do qual abandona os contextos/a enunciagdo para se aplicar ao estudo das regularidades intemnas ao sistema; (iv) - elege, no dominio do plano significativo das linguas, o estudo do significado como configuragdo estavel de indole marcadamente informativa-representativa-descritiva; (v)- preocupa-se com a clara defini¢ao de um campo auténomo para a reflexdo sobre a linguagem e as linguas naturais, fechando-se a 36 JOAQUIM FONSECA consideragdo de articulacées, que ndo ignora, entre clas ¢ areas conexas relevantes. Estes tragos, que se apresentam fortemente interligados, radicam todos na opedo que esta Linguistica faz pelo estudo da angue/competéncia linguistica com a secundarizacéo ou abandono da realizacdo discursiva efectiva, onde intervém factores de extrema heterogeneidade. O objecto de estudo que se da apresenta, em contrapartida, uma suficiente homogeneidade - considerada como requisito bisico para a reflexio cientifica -, sendo que o complexo de regularidades a levantar € visto como subjacente a, ¢ explicativo da, multiplicidade e variedade aparentemente inesgotiveis, e, por isso mesmo, ndo sistematizaveis, dos produtos verbais efectivamente actualizados. Neste quadro, a Jangue/ competéncia linguistica é bem um ‘todo em si mesmo’, e um ‘principio de ordenagao’ daquela variedade/heterogeneidade que marca o exercicio linguistico concreto em diversificadas situag6es de comunicacao. A Linguistica do Sistema, por forca dos tracos referenciados, apresenta uma apreciavel unidade - independentemente das diferencas que separam uma orientagao estritamente estruturalista (onde, de resto, cabem diversas correntes especificas) de uma orientacdo gerativista, nas suas formulagoes classicas ou nas suas versdes mais recentes. 1.2, Ao lado da Linguistica do Sistema perfila-se um outro grande paradigma - o da Linguistica do Uso/Funcionamento do Sistema. Esta pode ser globalmente apresentada na base da consideracao dos seguintes tragos: () - tem como referéncia central a nog’o de competéncia de comunicac4o tomada como um complexo heterogéneo de recursos dominados pelos falantes para a produgdo e a recepgdo-interpretagdo de discursos - recursos esses em que se inscrevem os estritamente linguisticos, mas também outros, que com eles entretém interacées fortes, integrantes de diversos sistemas semidticos; (ii) - ocupa-se dos signos e suas combinatérias, considerando-os na sua boa formagao - do sintagma ao texto (e ja nao estritamente até a frase) , mas também, ¢ sobretudo, na sua adequacdo aos contextos em que so actualizados; toma, entdo, as unidades linguisticas como ocorréncias; (ii) - recusa 0 principio da imanéncia, abrindo-se 4 considera¢éo, como apontei no ponto anterior, dos contextos e da propria enunciagao - e abrindo-se, dessa forma, também a consideracao do influxo dos contextos/ (LUGAR DA PRAGMATICA NA TEORIA E NA ANALISE LINGUISTICAS. 37 enunciagdo na producdo verbal efectiva tanto quanto - importa reté-lo - no proprio desenho da estrutura da lingua; (iv) - ocupa-se certamente do significado das unidades linguisticas, mas reconhece modos substancialmente diversos de significar e distingue significados de indole representativa dos de indole n4o representativa, incluindo expressamente nestes significados de natureza accional; por outro lado, ocupa-se também, e sobretudo, do sentido projectado em discurso, procurando levantar principios e mecanismos que operam na configuracio do comunicado, a tomar como complexo heterogéneo de dimensées significativas obtidas também, de modo regular e alargado, por ampliac4o e mesmo transformacao do dito: (v) - esta sua condi¢do de abertura aos contextos/a enunciagio leva- aa minimizar problemas de autonomia da reflexdo linguistica, privilegiando antes conexdes relevantes com realidades sem duvida exteriores as linguas, mas inequivocamente no alheias a sua estrutura e ao seu funcionamento efectivo; abre-se, assim, decididamente ao discurso e, entdo, a interdisciplinaridade ou mesmo transdisciplinaridade. ‘Na base do exposto, a Linguistica do Uso/Funcionamento do Sistema apresenta-se como uma Linguistica que visa uma efectiva aproximacdo aos fenémenos comunicativos - procurando, entao, levantar no aparente caos ou na variedade aparentemente inesgotavel do exercicio discursivo principios integradores e regularidades sistematizaveis, e propor em consonancia com isso uma caracterizacg4o adequada da propria estrutura da lingua. Tal programa de trabalho pode condensar-se na seguinte formulacao: “consideragao da linguagem em contexto - dimensoes linguis- ticas, cognitivas, psicologicas, sociais e culturais do uso da lingua tomada na pluralidade dos discursos em que se objectiva; caracterizagdo da estru- tura da lingua 4 luz destas dimens6es do exercicio”. Importa reconhecer que esta condigao de abertura da Linguistica do Uso/Funcionamento do Sistema lhe traz nao poucos problemas de unidade e coeréncia intema. 0 campo de observaveis a que se aplica ¢ extremamente vasto e heterogéneo, revelando-se nao susceptivel de uma plena modelizagao. A tal se responder insistindo no papel organizador que representara a configuracdo clara e consistente de algumas linhas integradoras da reflexdio, como aquelas que se contém na formulacao acima sublinhada. 2. As problematicas que a Linguistica do Uso/Funcionamento do Sistema se dé como objecto de estudo nao sto outras sendo as que cabern na Pragmitica Linguistica. 38 JOAQUIM FONSECA 2.1. Na proposta classica de Ch. Morris (na sequéncia de Ch. S. Peirce), reconhecem-se, como se sabe, em todo o processo semidsico instaurado pela actualizacdo de signos, trés niveis diferenciados: o nivel sintactico, respeitante As relacdes entre os signos; 0 nivel semantico, respeitante as relacdes dos signos com o mundo para que remetem; 0 nivel pragmatico, respeitante as relacdes entre os signos e os seus interpretantes/intérpretes. 2.2. Isso mesmo tem, naturalmente, lugar no dominio da semiose activada na produc verbal. A consideracao do nivel pragmatico da semiose verbal, ou seja, 0 estudo das ocorréncias dos signos linguisticos considerados nas suas relagdes com os seus utilizadores e com as circunstancias em que a utilizagdo tem lugar, traz consigo a abertura da reflexdo aos aspectos, ja acima referenciados, que ultrapassam a estrita competéncia linguistica e a estrita imanéncia dos produtos verbais, e arrasta também uma re-andlise/ re-ordenamento dos niveis correspondentes a sintaxe e 4 semAntica. Esta re-andlise tem a ver fundamentalmente com a definigéo do lugar a atribuir as dimensdes pragmaticas naquele complexo de niveis - e tal lugar sera determinado pelo alcance a reconhecer a essas dimensdes nao apenas no funcionamento efectivo da lingua no discurso situado como também na propria estrutura organizativa da lingua. Convira lembrar que a proposta de Morris desenha uma concep¢ao linear, aditiva, da sintaxe, semantica e pragmatica. Segundo esta proposta, estes trés niveis so considerados aut6nomos, devendo ser sucessivamente encarados na descri¢do: a sintaxe ‘precede’, e é independente de, a semantica; esta ‘precede’, ¢ é independente de, a pragmatica. No dominio da reflexdo linguistica, vao ja longe os tempos da crenga na viabilidade de uma sintaxe autonoma - e est j4 também superada a ideia de que a considerag4o de uma pragmatica aut6noma permitiria uma semntica igualmente autonoma, aplicada particularmente ao dominio das condi¢des de verdade dos enunciados. E que quer ‘de dentro’ quer ‘de fora’ da estrita reflexdo linguistica se tomou incontomavel a dificuldade que reside, por um lado, no facto de uma seméntica das condic6es de verdade dos enunciados nfo se poder apresentar imune a consideracdo de dependéncias contextuais (como as activadas pelos deicticos), e, por outro lado, na circunstancia de essa mesma semantica ignorar dimensdes comunicativas basilares que se furtam a uma caracterizacdo em termos de verdade/falsidade (como é 0 caso da dimenso accional da linguagem). A solucdo mais elegante e mais adequada a natureza da linguagem verbal esta em considerar a pragmatica como integrada na semantica, ‘O LUGAR DA PRAGMATICA NA TEORIA E NA ANALISE LINGUISTICAS 39 salientando-se que as dimensGes pragmaticas da significac4o se inscrevem de raiz tanto no funcionamento dos discursos como na propria estrutura interna da lingua. Ha, pois, que considerar que a semantica ¢ a pragmatica se interpenetram profundamente, se apresentam imbricadas uma na outra. 3. Convira salientar que as dimensdes pragmaticas da linguagem se vinculam a enuncia¢ao. Sendo assim, a consideragéo das dimensdes pragmaticas como integradas na semantica converge com uma concep¢do do sentido que faz dele, em aspectos centrais, uma imagem que os enunciados dao da sua propria enunciacdo. E, como nada de essencial esta no discurso que nao esteja na lingua, ha que assumir que as dimens6es pragmiticas da significacdo estdo inscritas, pré-formadas, na lingua. 3.1. Uma tal concepcdo leva necessariamente a postular que a enunciacdo constitui forga organizadora particularmente determinante da propria estrutura da lingua. Prova irrecusavel disso mesmo é-nos fomecida por aspectos de inegavel centralidade como os seguintes: -a enunciacdo implanta na lingua a matriz dialogal que é constitutiva da linguagem verbal - matriz dialogal essa imediatamente configurada nos pronomes pessoais (la e 2a pessoas); -a enunciacdo promove 4 existéncia efectiva signos (os deicticos e os sui-referenciais em geral) ¢ mecanismos especificos da construgéo do discurso e do sentido do discurso (basicamente, os mecanismos da implicitag4o pragmatica), desenhando ao mesmo tempo o modo particu- lar de significar desses signos e desses mecanismos - o significar por indicag&o/mostracao (dizer,); - a enunciacdo configura paradigmas, transcategoriais, de larga centralidade na organizacdo da lingua e no seu funcionamento'. ' Para uma andlise desenvolvida do que fica sumariado nestes trés pontos, ¢ de questdes conexas, ver Fonseca, J, “Heterogeneidade na lingua e no discurso”, Revista da Faculdade de Letras - Linguas ¢ Literaturas, Vol. VIII, Porto, 1991 (Também in Fonseca, J, Linguistica e Texto/Discurso. Teoria, Descrigo, Aplica¢do. Lisboa, 1992). 40 JOAQUIM FONSECA 3.2. Apoia-se, deste modo, a consideragdo das unidades linguisticas como ocorréncias no principio de que a estrutura da lingua incorpora as condigdes do seu uso. Tal equivale a perspectivar a lingua de um angulo novo, a atribuir-lhe um estatuto tedrico novo, O traco definidor de um tal estatuto deve ser devidamente sublinhado: a lingua apresenta-se como um sistema de Virtualidades que integra em si mesmo 0 processo que é o seu proprio funcionamento. O dinamismo intemo sempre reconhecido a lingua recebe agora uma nova caracterizacdo: esse dinamismo provém de a lingua compreender nao apenas a multifuncionalidade a que serve, para que esta orientada, mas sobretudo a matriz dessa multifuncionalidade que € a interlocu¢do, a interac¢do, 0 dialogismo - a tomar como propriedades verdadeiramente constitutivas da linguagem. Interlocugao, interaccdo, dialogismo dao-se concretamente no discurso - mas exactamente ai s6 se podem dar porque est&o pré-formados na propria organizacao daquilo mesmo que permite o discurso, isto é, a lingua. Esta é decisivamente enformada por aquilo que corresponde a propria natureza e a vocac4o primeira, que € discursivo-interactiva, da linguagem. 4. As dimensées pragmaticas da significacdo nado podem, assim, ser tomadas como dimensdes acrescentadas do exterior 4 consideragao da linguagem e dos discursos em que ela se concretiza. O estudo das unidades linguisticas como ocorréncias, abrindo-se, sem divida, a um vasto e heterogéneo campo de varidveis, ndo se perde na considera¢éo do momentaneo, do ocasional, do individual - antes tem a ver com constancias/invariancias e funcionalidades que se inscrevem plenamente na estrutura da lingua como regularidades sistematicas. Estas regularidades constituem basicamente convengoes sociais ligadas ao uso, atestando inequivocamente que o reconhecido e irrecusdvel cardcter social da lingua nao envolve a sua independéncia em relagdo a actividade discursiva concreta nem a considera¢do da significagdio como independente do acto enunciativo. A irrupc4o do discurso na lingua que estas regularidades atestam nao se apresenta como fendmeno ocasional e esporddico, antes como realidade plenamente constitutiva da lingua: tais regularidades inscrevem-se no proprio recorte e na propria defini¢&o de recursos basilares e imprescindiveis da lingua para o jogo discursivo. Sendo assim, importa assumir, em consonancia com a natureza e funcionamento da lingua e dos discursos, a centralidade da pragmatica na teoria e na anilise linguisticas - centralidade essa que ndo trunca nem ‘O.LUGAR DA PRAGMATICA NA TEORIA E NA ANALISE LINGUISTICAS 41 muito menos impede a consideragdo das interaccdes que tém lugar entre pragmatica e seméntica-sintaxe. Mais simplesmente: 0 estudo adequado do plano significativo das linguas suscita uma concep¢ao do sentido visto como enformado, desde a raiz, dos aspectos pragmaticos da significacao. Sera bom lembrar que nestes cabem as indicagdes fundamentais que os enunciados fornecem sobre a sua enunciagéo, nomeadamente, sobre 0 hic et nunc e a(s) fonte(s) ¢ o(s) destinatario(s) - ¢ suas relagdes - do discurso (sobre os quais se ergue também toda a construgao da referencia), sobre as intencdes argumentativas-comunicativas e sobre os poderes (os direitos e correspondentes deveres, ¢ sua distribuicdo) instaurados no e pelo discurso, poderes esses que transformam as relagdes interpessoais © contexto e que, por isso mesmo, intervém no proprio desenho do desenrolar do discurso. Aestas indicagdes ha ainda que juntar as que tangem aos efeitos comunicativos pré-figurados na lingua por forga da natural obediéncia da actividade verbal aos principios comunicativos-interactivos activados na e pela enunciacdio do discurso. A cconsideragao, irrecusavel, das marcas da enunciagdo no enunciado ~express4o corrente e consagrada de todo um vasto programa de trabalho no campo enunciativo-pragmatico - revela-se constituir a via particularmente apropriada para o estudo do discurso, mas ndo menos para o estudo da lingua, objecto formal inequivoco de toda a Linguistica. S6 que - e esta € a diferenga especifica da Linguistica do Uso/ Funcionamento do Sistema - tal objecto formal nao pode ser considerado como artefacto separado do discurso e do que nele de essencial tem lugar (a comunicac4o-interacc4o), logo, amputado das dimens6es basicamente constitutivas da linguagem: a cognicdo, a alteridade, a interlocucao. Um outro qualquer estudo da linguagem verbal - em particular o que teima em tomar as linguas ‘em si mesmas e por si mesmas’ e a centrar-se sobre um falante-ouvinte (nao uma instancia de producao diferenciada de uma instancia de recep¢do-interpretagdo) e, mais do que isso, sobre um falante-ouvinte fortemente idealizado (subtraido aos contextos, concebido com dominando um sistema de signos e de principios arquitectado como assepticamente isolado de outros sistemas semidticos, alheado das dimensdes psico-sociais do discurso e da dinamica das relagdes interpessoais) - é, no dominio das modemas Ciéncias Humanas e Sociais, um projecto marcadamente reduccionista e de alcance e relevancia menores, porque deixa de lado o essencial: a vinculagdo da linguagem verbal a cognicdo, a realidade social, 4 subjectividade/intersubjectividade - ou seja, ao Homem. Sendo certo que, como escreve E. Benveniste, “Le langage est dans la nature méme de l'homme”, que “le langage enseigne la définition méme a JOAQUIM FONSECA de ’homme”, a Linguistica, ciéncia da linguagem verbal, nao pode sendo ter no seu centro a consideracdo do ‘homem na lingua ¢ no discurso’. Tal é, inequivocamente, 0 polo integrador da reflexdo desenvolvida pela Pragmatica Linguistica - a qual obtém, assim, uma natural centralidade na teoria e descricéo das linguas naturais. A assumpedo plena e coerente desta perspectiva levard seguramente a que ja nao faca muito sentido reivindicar a integracao da pragmatica na semantica, pois que de “integrada” @ pragmatica passari decisivamente a desenhar-se, nas palavras de F. Armengaud, como “intégrante ou fondatrice”: “Alors que la pragmatique est chronologiquement la demiére-née des trois disciplines sémiotiques, ses théses ne cessent de refluer sur celles de disciplines plus t6t maries, dont l’'autonomie peut paraitre désormais fragile.” ? > Benveniste, E, Problémes de Linguistique Générale, Patis, 1966, p. 259. > Ammengaud, F, La Pragmatique, Paris, 1985, p. 12-13. (O sublinhado é meu).

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